HVMANITAS — Vol. XLVII (1995)
M A R I A D O C é U F I A L H O
Universidade de Coimbra
A PEDAGOGIA PELA LOUCURA NO ÁJAX DE SÓFOCLES
O canto entoado pelos Anciãos de Tebas como Estásimo I de
Antígona conheceu q fascínio da posteridade e, para além do contexto da
própria peça, nele se escutou uma ode de enaltecimento, por parte do
poeta ateniense, à quase inesgotável capacidade criadora e organizativa do
maior prodígio existente à face da terra: o Homem '.
No entanto, a segunda parte da ode, se culmina com a referência às
faculdades exclusivamente humanas da fala e do pensamento e ao fruto
mais excelso da sua criação — a existência de uma comunidade organiza
da e sustentada por leis — introduz, contudo, um elemento sombrio, como
que a apontar, paredes meias com o apogeu, aquela determinante que
denuncia e define, afinal, a natureza humana nos seus limites: a morte
inevitável. Diz o poeta (355-360):
SuaaóXcov 7táyff>v ímaíôpeia K<X! SúcTouPpa (psóysiv pélrj •navxoTtópoç' anopoç kn ouSsv spxsxat TO [xêXkov "AiSa u.óvov (psõ^iv OÒK S7lá^ETai-
1 Para uma sistematização da tipologia das várias interpretações do estásimo, veja-se M. H. da Rocha Pereira, Sófocles, Antígona, introd., trad, e notas, Coimbra, Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 1992, 3." ed., pp. 24-25.
98 MARIA DO CEU FIALHO
da geada do céu, da chuva inclemente
e sem refúgio os dardos evita, de tudo capaz.
Na vida não avança sem recursos.
Ao Hades somente
não pode fugir ~.
E Sófocles justapõe significativamente, a marcar a fronteira da capaci
dade enaltecida com a limitação, os adjectivos pantoporosl aporos (360).
Mas o Hades a que ninguém logra escapar é apenas, como limitação,
a mais drástica e mais certa — um fim que a todos espera. Suscite angús
tia ou nostalgia pelo que na vida tão rapidamente se esfuma, como a lírica
arcaica o deixa sentir em momentos da mais alta expressão poética, a
morte é um dado de facto, contabilizável como futuro último, rememorada
a sua presença nas mortes do quotidiano, na morte do outro, em que a
comunidade dos vivos participa através de actos rituais. A morte tem,
pois, uma dimensão social.
Contudo, se a morte constitui a certeza última, o homem sente, para
além disso, que a sua existência está marcada pela imprevisibilidade
daquilo que, no tempo, se lhe reserva e a afecta, determinando-a. A cons
ciência desta marca temporal que a tradição poética grega desde há muito
já exprimia3 — e que Píndaro tematizou na famosa definição dos homens
como epameroi (át. ephemeroi), 'dependentes do dia ' 4 — está sublinhada
em diversos passos da dramaturgia sofocliana5.
2 A tradução que citamos é de M. H. da Rocha Pereira (vide supra n.l). Mantivemos, no entanto, neste verso, a primeira versão da tradução de Antígona publicada pela Autora em Coimbra, Atlântida, 1968, p. 31, feita a partir do texto estabelecido por Jebb que, tal como Pearson, respeitou a tradição codicológica.
3 Já Arquíloco verbalizou tal noção em 122 West. E se, em 128 West, fala de um «ritmo que governa a vida», não se refere a uma lei de previsibilidade na existência humana, mas antes à relatividade da dor e fortuna presentes, que logo, sem consistência, se convertem nos seus contrários. Lembremos também, a título de exemplo, a Elegia às Musas (13 West) de Sólon ou recordemos, na lírica coral, as considerações poéticas sobre a condição e fragilidade humanas ou sobre a instabilidade da sorte tecidas por Simónides (frgs.. 15 e 76 Page, bem como 16 Page).
4 P. 8, 95. 5 E é posta tanto na boca dos deuses (Ai. 131-132), como na do protagonista
(e.g. OC, 607-615, onde Édipo diferencia a existência dos deuses, que não conhecem velhice nem morte, da dos mortais, sujeita à corrosão do «Tempo soberano»), como ainda, frequentemente, na boca do Coro (e.g. Ai. 715 sqq., 1418-1420; OT, estásimo IV, bem como as últimas palavras da peça, 1528-1530, que pensamos serem originais, conforme defendemos em Sófocles,Rei Édipo, introd. trad e notas, Lisboa, edições 70, 1991, p.151, n.109). A mesma noção de Arquíloco, de que a dor e alegria são relativas
A PEDAGOCIA PELA LOUCURA NO AJAX DE SOFOCLES 99
No estásimo I de Antígona o poeta realça um aspecto específico
desta imponderabilidade por que as realizações, fruto da techne, estão
determinadas através do contraste entre a capacidade de construir e agir,
própria do homem, e a incapacidade de avaliar com segurança os móbeis
e as consequências da sua acção (365-367):
CToepóv TI xò p.Tj%avóev xé%vac, ímèp slrtíS' s/cov TOTS U.SV KaKÓV, ÔXkox' S7t' SCTSXÒV SpTCSl'
Da sua arte o engenho subtil p'ra além do que se espera, ora o leva ao bem, ora ao mal.
O orgulho pelas capacidades humanas contrasta, pois, com um segun
do momento de insegurança e preocupação decorrentes da consciência de
que ao homem não assiste a possibilidade absoluta de traduzir em actos tais
capacidades assistido sempre por um critério justo da sua utilização. O que
confere à mais alta realização do homem, embora sancionada e fundamenta
da pela instância do divino — a polis organizada em que aquele vive, e
dentro da qual, apenas, a sua existência adquire sentido — um carácter de
equilíbrio ameaçado, onde se projecta essa limitação do homem no seu agir.
Naturalmente que, se o fim da acção humana é imprevisível, no
homem que age manifestando, bem patente nos seus actos, o desequilíbrio
do excesso, tenha esse excesso a forma de ambição desmedida ou de
audácia, detecta já a reflexão do poeta elegíaco, como depois a do coro
trágico, um elemento de perigo para a vida da comunidade.
Adverte Sólon na Eunomia 6
aúxoi Ss cpGeípsiv peyáXrjv nóXiv àtppa5ír|ioiv áoroi PoúA,ovTai xpiíuaai neiGópevoi,
Sfjpou 9' f]yspóvcov aSiKoç vóoç. oíatv STOïJJ,OV SfSpioç SK ueyáXrjç áXyea itoXXà 7ta9sív
oò yòp s7ií.oravTai Kcné%eiv KÓpov oòSè Tiapoúaaç sucppocTiíivaç Koapeív Saitòç êv fjaoxíf)1
e logo uma se converte na outra, numa espécie de «ritmo circular», está expressa no Párodo de As Traquínias, 129-131.
6 Frg. 4 West, 5-10. Após os excessos dos cidadãos terem tomado foros de desgraça pública, o processo toma agora o rumo inverso, afectando, até à privacidada mais íntima, a existência de cada cidadão.
Por ser do conhecimento comum dos destinatários deste texto a versão portuguesa da Eunomia da autoria de M.H.da Rocha Pereira e publicada na colectânea de traduções de textos gregos Hélade, entendemos mais pertinente citar a referida versão do que elaborarmos nós outra.
100 MARIA DO CEU FIALHO
Mas querem destruir a grande urbe, com os seus desvarios,
cedendo às riquezas, os próprios cidadãos, e dos chefes do povo o espírito injusto, a quem está destinado
sofrer muitas dores pela sua grande insolência. Pois não sabem refrear os seus excessos, nem pôr ordem
nos bens presentes, na paz do banquete.
Tal situação vê-a o poeta como uma ferida inevitável que alastra
(v.17) pela cidade7 , e o poema de Sólon8 parece ecoar no canto dos
Anciãos de Tebas(369-371):
vóp.ouç yspaícov %9ovòç Bscõv T ëvopKov SíKCXV
VJ\|/Í7IOXIç' âixoXiç ôxcoí xò \xr\ KaXòv E,úveaxi xóXu.aç %ápiv
Se da terra preza as leis e dos deuses na justiça faz fé, grande é a cidade, mas logo a perde quem por audácia incorre no erro.
O texto grego confronta hypsipolis lapolis para realçar não só a
incompatibilidade entre a polis ideal e o comportamento do audacioso,
como, até certo ponto, para salientar a tensão latente no que de mais per
feito envolve a realização humana e que, simultaneamente, está sujeito às
consequências de uma acção viciada.
Ora, se o conhecimento de uma acção que leva a um fim inesperada
mente adverso suscita a reflexão sobre a fragilidade do que é humano, a
percepção de um comportamento nascido do excesso, da insensatez, pro-
7 A cidade como um organismo vivo, susceptível de ser afectado por doença, vai aparecer na tragédia, nomeadamente em Sófocles, Rei Édipo, conforme já referimos no nosso estudo Luz e trevas no teatro de Sófocles, Coimbra, Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 1992, pp. 50 sqq. Alcméon de Crotona, em contrapartida, entende o estado de saúde e de doença do indivíduo à semelhança do equilíbrio ou desequilíbrio institucional da polis. Assim, entendia a harmonia dos elementos no corpo humano como uma isonomia e o estado anómalo na sua inter-relação, com preponderância de um deles como uma monarchia (frg.4 B DK).
Esta reciprocidade de imagens é bem expressiva para compreender a indissociabi-lidade e interdependência indivíduo-pólis até ao fim da época clássica.
8 Num outro fragmento elegíaco (6 West, 3-4) Sólon estabelece o nexo de causalidade entre KÓpoç (a saciedade) e a insolência (vjppiç) tecido através do comportamento de um espírito «incapaz de um correcto juízo» (urj vóoç apxioç rji). Veja-se C.Bowra, Early Greek Elegists, New York, 1969, pp. 81 sqq.
A PEDAGOCIA PELA LOUCURA NO AJAX DE SOFOCLES 101
voca a repulsa instintiva em quem se encontra perante uma ameaça de
perigo iminente. O espectáculo da hybris no concidadão representa o
germe possível do desequilíbrio da polis através de um seu elemento con
taminado, qual membro enfermo a afectar a saúde do todo. Por isso os
Anciãos de Tebas expurgam do seu convívio o insensato (372-375):
|J,rjT' SfO.01 Tiapsorioç yÉvoíxo pr)x' tcov (ppovSv ôç Trio' epSsi.
Longe do meu lar o que assim for! E longe esteja dos meus pensamentos o homem que tal crime perpetrar!
Desejam, no entanto, como se vê, mais do que isso — expulsá-lo do
pensamento, como se o excesso tivesse a força de contágio e pudesse,
então, afectar quem cultiva a sensatez, como uma ameaça, com força ter
rível de propagação, a fazer perigar o frágil equilíbrio da virtude e a esta
bilidade de quem a cultiva9.
Transcende os nossos objectivos apurar aqui se os Gregos considera
vam uma demarcação entre norma e anormalidade no comportamento
humano, caso tal seja possível, ou se sentiam a fronteira que as separa
como uma obscura e complexa zona de intercepção.
Facilmente se depreende, no entanto, que o caso extremo do excesso
absoluto — mania 10 —, da absoluta privação de senso, episódica ou dura
doira, e o comportamento totalmente imprevisto e fora de regra que ela
9 Na segunda estrofe do estásimo II de Rei Édipo (882-896) o Coro chega mesmo a formular o desejo de que o hybristes seja destruído pela sorte, como uma maneira de se evidenciar o sentido daquilo em que acredita. Para a interpretação do controverso xl Seï |xe X°P£^S1V (v- 896), veja-se a nota 78 à nossa tradução da peça, já citada.
10 A noção de excesso está já contida na raiz *man-. J. Mattes, Der Wahnsinn im griechischen Mythos und in der Dichtung bis zum
Drama des fuenften Jahrhunderts, Heidelberg, 1970, pp.100 sqq. enumera outras designações para loucura, entre as quais X aaa (cf. Baquílides, Ode XI, 102 e Esquilo, frg.368 Mette).
Sobre a personificação de Lyssa diz Wilamowitz, na sua edição de Euripides. Herakles, Darmstadt, Wiss. Buchgesellschaft, 3 Bd., 1959, 2.a ed. Vol. II, 123-124, que Esquilo a introduziu na sua dramatização do mito de Penteu. Euripides, ao pô-la em cena no Heracles Furens, leva, no entanto, Lyssa a exprimir reservas quanto à loucura a suscitar em Héraclès, julgando, assim, a sua própria natureza como algo que ao mesmo tempo lhe é estranho — o que é expressivo quanto à perspectiva de Euripides
102 MARIA DO CEU FIALHO
dita e que permanece por completo alheio à compreensão do homem não
possam deixar de suscitar neste sentimentos de temor e insegurança11,
É que o espectáculo da loucura põe o homem sensato, capaz de
reflectir, perante algo de misterioso e imponderável que pode determinar a
mente humana, que pode levar até à perda de identidade do indivíduo,
sem que se saiba como, quando e porque se desencadeia o agente respon
sável. A quem apenas permanecer à superfície do que observa, a face
exterior da loucura — o gesto e a palavra incongruente — podem oferecer
motivo de riso.
De qualquer modo, temor ou riso são comportamentos que distanciam
quem deles é objecto 12. O louco é um ser isolado, que a comunidade não
integra e, antes, instintivamente rejeita, quase num gesto de autodefesa.
Tal como noutras culturas, os Gregos buscaram a primeira explicação
para a loucura na interferência de entidades divinas, como a corrente
designação de 'doença sagrada' — theia nosos — o deixa perceber13.
E se no séc.V escritos médicos documentam já uma designação um pouco
diferente — a de 'loucura sagrada', theia mania — quer isto dizer, con
forme nota Dodds 14, que os estudiosos do tempo devem ter restringido
sobre a religião e os deuses, vistos como convencionais: «Wenn er den Volksglauben, indem er ihm folgt, ad absurdum fuehrt, so ist es ihm ganz genehm.»
Opinião diversa sobre os deuses em Euripides, nomeadamente no Héraclès, é defendida por W. Desch no seu artigo «Der «Herakles» des Euripides und die Goetter», Philologus, 130, 1986, 8-23. Este artigo é notável pelo minucioso e sistemático historial que apresenta das interpretações mais relevantes para a compreensão e estudo da peça.
11 Platão tenta compreender o fenómeno da loucura opondo a de origem humana à de origem divina e sistematizando quatro tipos de mania de intervenção divina, caracterizados diversamente de acordo com a natureza dos diversos deuses que a provocam: Fedro 265, a-b.
12 O medo e o riso simultâneos são a reacção suscitada pela visão de Héraclès louco nos criados do palácio: Eur. HF, 950.
13 E.R. Dodds, The Greeks and the Irrational, Univ. of California Press, 1973, 8." ed., p.67 assinala: «It has long been observed that the idea of possession is absent from Homer, and the inference is sometimes drawn that it was foreign to the oldest Greek culture. We can, however, find, in the Odyssey traces of the vaguer belief that the mental disease is of supernatural origin. The poet himself makes no reference of to it, but he once or twice allows his characters to use language which betrays its existence.» E documenta com Od. 18.327 e 20.377.
14 Op. cit. pp. 67-68. No escrito médico Prognostikon o seu autor deixa perceber a sua convicção de que há uma origem divina para certas doenças II. 112.5. No entanto, o De morbo sacro VI, 394, 9 sqq., como nota Dodds, vai mais longe, defendendo que não há doenças mais divinas que outras, já que todas são divinas, na medida em que remetem para uma ordem divina, e todas são humanas, já que decorrem de causas fisicamente verificáveis pelos homens.
A PEDAGOCIA PELA LOUCURA NO AJAX DE SOFOCLES 103
apenas a certos tipos de loucura uma origem divina. O que representa
uma indiscutível evolução.
Mas para o cidadão comum manteve-se, decerto, preponderante o
entendimento da loucura como uma forma de maldição cora origem na
divindade. Para reforçar este sentimento arreigado contribui a tradição
mitológica do enlouquecimento de figuras como, por exemplo, Ájax,
Héraclès, Penteu, Agave, quer transmitida através da simples narração —
mythos — quer através do seu tratamento poético.
Que poderia levar um deus a fazer cair sobre o homem semelhante
maldição? Uma desmedida culpa humana ou, pura e simplesmente, o
desagrado divino, conforme acontece com Hera em relação a Héraclès.
Nota Josef Mattes que, nestes casos, o efeito da loucura se opera fun
damentalmente sobre os órgãos de percepção e a figura momentaneamente
louca pratica actos imaginados sobre um objecto real que não corresponde
àquilo que os seus olhos vêem l3.
Naturalmente, para que a loucura se torne uma punição é necessário
que se lhe siga a lucidez como tempo de reconhecimento de algo irrepará
vel cometido durante o lapso de consciência do real16. Para Héraclès, na
peça homónima de Euripides, e para Agave, nas Bacantes, o regresso pau
latino à lucidez fá-los defrontar com familiares queridos mortos às suas
próprias mãos. No caso de Agave reconhece-se a dupla punição de
Dioniso, sobre Penteu e sua mãe; no caso de Héraclès, Hera serve-se da
loucura para levar o herói inocente, mas perseguido pelo ressentimento da
deusa por causa do seu nascimento, a manchar as suas mãos e para o des
truir 17. Ela conta com a reacção do herói após a loucura para completar o
seu plano 18. É a solidariedade humana, incarnada em Teseu, que reabilita
o filho de Alcmena e o afasta do suicídio 19.
15 Op. cit., pp. 81-82. 16 Mattes, op.cit. pp.93-95, salienta que a loucura é temática apropriada à tragé
dia pelo que envolve de dor no isolamento que persegue o louco — dor semelhante ao exílio e análoga ou pior que a morte. Por isso a loucura representa, na tragédia, o abandono dos deuses (cf. Eur. HF, 1086 e Bakch. 11, 108 sqq.).
O louco, alvo do riso ou do temor, após regressai' à lucidez reconhece, envergonhado, os seus actos e a sua time ressente-se. O autor cita Esquilo, Supp. 562 sqq. e Pr.599.
17 O que fris, a cruel mensageira dos deuses, confessa: vv. 822 sqq. Veja-se Wilamowitz, op.cit., vol.11, pp. 122-123.
Sobre a cena Iris-Lyssa e o tratamento irónico da complexa perspectiva do divino em Euripides, vide M. Halleran, «Rhetoric, Irony and the Ending of Euripides'Herakles», CA, 5, 1986, 171-181, sobretudo 179-180.
18 Cf. vv.1300 sqq. 19 O motivo do valor e importância da amizade é, aliás, recorrente na peça.
Aparece na primeira intervenção de Anfitrião, no prólogo (v.55) e é verbalizado nas
104 MARIA DO CEU FIALHO
No caso da loucura de Ájax, operada em Sófocles pela intervenção
de Atena, os intuitos de vingança do herói sobre os Atridas e Ulisses, por
lhe não terem sido atribuídas as armas de Aquiles em benefício do rei de
ítaca, são frustrados pela deusa que, no momento em que a vindicta esta
va a ponto de ser executada, faz descer sobre os olhos do herói um
conhecimento enganador20 e o leva a chacinar as reses do exército, pen
sando assassinar os chefes dos Aqueus. O despertar da loucura traz consi
go o horror da chacina e a consciência de se ter convertido em objecto de
riso. O que é intolerável para um herói homérico, cuja arete depende do
reconhecimento da comunidade militar. O motivo do riso é, aliás, fulcral
no decorrer da peça21.
Os factores que suscitam a intervenção da deusa são vários e alguns
deles controversos, não apenas por questões relacionadas com a interpreta
ção da peça, mas também pelo nosso conhecimento incompleto da tradi
ção épica do ciclo troiano. Pela boca do Mensageiro sabe o espectador
que o adivinho Calcas alude a antigos gestos de Ájax, reveladores de
soberba e hybris. O herói, ainda em Salamina, repudia os conselhos pater
nos e dispõe-se a rejeitar a ajuda dos deuses no combate (767-769): o
que, efectivamente, cumpre, recusando o auxílio de Atena (774-775).
A origem da ira da deusa, a abater-se um dia sobre o orgulhoso guer
reiro, vê-a Calcas nesta atitude e pensamentos que não são próprios de um
homem (777). Mattes 22 entende que o contexto deixa esfumada a questão
últimas palavras de Héraclès (vv. 1425-1426), bem como nas palavras que o Coro profere, a encerrar a peça.
Ao despertar do sono em que caiu, após o acesso de loucura, Héraclès procura, antes de mais, um amigo (1106). A chegada de Teseu, como imagem ideal da tpiXo-E,svía ateniense e da amizade grata, abala Héraclès pela imagem que de si apresenta perante o amigo (1199-1201). É Teseu que instiga Héraclès e o persuade, pelo recurso aos argumentos do vínculo da amizade e do papel que esta deve desempenhar, a quebrar o isolamento a que o infortúnio e maldição da loucura o levaram (1214 sqq.). Ao herói filho de Zeus abre-se, por essa via, a integração numa nova polis (1311). O que Sófocles dramatizará, também, no Édipo em Colono. E também aí, ao estrangeiro perseguido pela sorte, é um Teseu idealizado quem lhe oferece e lhe assegura o acolhimento em solo ático.
A importância de philia na peça euripidiana é salientada por D. J. Conacher, «Theme, Plot and Technique in the Heracles of Euripides», Phoenix, 9, 1955, 139-152 (sobretudo 148-149).
20 Vv.51-52. 21 Sobre este assunto veja-se, sobretudo, o artigo de G.Grossmann, «Das Lachen
des Aias », MH, 25, 1968, 65-85. Cf. o passo atrás citado (n.12) de Eur. HF, 950 e note-se o riso desmedido como sintoma da loucura de Héraclès (HF, 935).
22 Op. cit., p. 50 sqq. Para P. Biggs, no seu artigo «The Disease Theme in Sophocles' Ajax, Philoctetes
and Trachiniae», C Ph, 61, 1966, 223-227, a loucura do herói representa o culminar de
A PEDAGOCIA PELA LOUCURA NO AJAX DE SOFOCLES 105
se a ira de Atena é responsável pelo julgamento das armas e, indirectamente pelo desespero e ressentimento de Ajax, ou apenas pela sua loucura. Pensamos que um e outro momento — o do julgamento e o da vingança frustrada — estão intrinsecamente ligados por uma relação de causa-efeito de modo a que a punição divina se vá operando nesse nexo, no decorrer do tempo, e não seja pontual.
No entanto, e tendo em linha de conta a extrema importância das palavras de Calcas quanto ao significado da acção dramática, a causa primeira da cólera divina é inegavelmente realçada. É que do modo como se processou o julgamento das armas de Aquiles, a peça pouco nos diz. O que dramaticamente interessou a Sófocles foi a sentença final: a atribuição das armas a Ulisses e a humilhação revoltada de Ajax, que se sentia com direito a recebê-las como o mais valoroso dos guerreiros gregos.
Sófocles omite dados da tradição poética que aludem à intervenção de Atena no julgamento e a uma relativa isenção por parte dos juízes23, para insinuar outra imagem do episódio, através das palavras acusatórias de Teucro a Menelau e às quais há que reconhecer um peso indubitável, segundo Kamerbeek24, com quem estamos de acordo.
Já no lamento de Ajax sobre a sua fortuna o protagonista assevera (442-446):
eí Ç5v ' A%iXXsbq xóõv 07tXa>v xcõv S V nkpx
Kpíveiv ájxeXXs Kpáxoç à p t a x s í a ç xtví, OòK av xiç aux ' s(^ap\|/sv áXXoç ávx ' êuoõ . võv 5' aí$x' 'Axpe iSa t tpcoxl TtavxoopySi cppsvaç 87Tpaf;av, àvõpòç xoõõ' àTtcocjavxsç Kpaxiy
Se Aquiles estivesse vivo e fosse julgar a primazia da excelência a
um candidato às suas próprias armas, nenhum outro as receberia, senão
eu. Mas agora os Atridas conseguiram-nas para um vilão e repudiaram o
meu valor.
um processo de desajustamento entre o protagonista e a comunidade, que se iniciou com a atribuição das armas de Aquiles a Ulisses.
Sobre o âmbito da loucura, veja-se o nosso trabalho já citado Luz e Trevas no Teatro de Sófocles, pp.19-21.
R. Gruetter, Untersuchungen zur Struktur des sophokleischen Aias, diss., Kiel, 1971, P-35 sq. salienta que a loucura aparece como o culminar das contradições que dominam a existência de Ajax. Condição para a loucura é a aspiração heróica do protagonista e a intervenção divina.
23 Sobre a tradição épica e o seu aproveitamento selectivo por parte de Sófocles, veja-se a introdução de R. Jebb à sua edição comentada da peça: Sophocles. The Plays and Fragments. Part VII : Ajax, Amsterdam, 1907 (rep.1967), §§1-7, bem como J. C. Kamerbeek, The Plays of Sophocles. Commentaries Part I: Ajax, Leiden, 1963, pp. 5-6.
24 Op. cit. comm. ad. 1135.
106 MARIA DO CBU FIALHO
M a s estas pa lavras p o d e m ainda ser en tendidas c o m o d i t adas p e l o
ressent imento . Todavia , o m e s m o se não pode j á entender n o confronto
entre Teucro , que pugna pe la pres tação de honras fúnebres ao i rmão , e os
dois Atr idas — pr imeiro Menelau , e m seguida A g a m é m n o n — , que a tal
acto p iedoso se opõem, Mene lau confessa (1134):
HiaoCvx' S|xíasv Kal ah TOUT' fi7iío"Taoo.
Ele odiava-me e eu odiava-o. E tu sabias isso.
O verso seguinte contém, na resposta de Teucro, a referida acusação:
K^S7TTT)ç yàp (XOTOU vi/Tjtpoicoiòç T]í>ps9rjÇ.
Pois tu revelaste-te um ladrão que desvia votos.
O perfil dos dois Atridas, na peça, como tipos expressivos de defor
mação da conduta e pensamento na democracia da polis, confere toda a
verosimilhança às certezas de Teucro.
Sendo assim, o ressentimento de Ajax é legítimo e justifica o seu
propósito de vingança, esta, no entanto, tal como a concebe, é excessiva e
selvática. E é por dentro desse seu plano, em que se projecta o pendor de
excesso e de isolamento do herói, que Atena age, toldando-lhe a percep
ção e desviando-o dos chefes do exército para as reses, enquanto o anima
a prosseguir na chacina que há-de ser a sua vergonha e o caminho para o
seu suicídio.
Se da sintomatologia da loucura faz parte apenas o erro de sentidos
ou também o júbilo frenético com que executa a vingança25, é problema
que o dramaturgo deixa em aberto, bem mais interessado em valorizar o
significado desta theia mania, que em analisar os seus sintomas (conforme
Mattes também opina26). E neste sentido adquire traços de profunda iro
nia trágica o facto de Ajax, para além do erro de sentidos, entender ainda
que Atena é sua aliada e congratular-se com isso, pedindo-lhe que se
mantenha sempre assim, como sua aliada, (symmachon, v.117). É agora,
quando Atena o destrói, que Ájax aceita um funesto patrocínio, esquecido
das palavras insolentes proferidas outrora, em tempo de lucidez.
Que pretende o poeta exprimir ao encenar a loucura, o doloroso des
pertar do herói e o seu suicídio? demonstrar, na sua dramaturgia, que
25 Héraclès, em HF, 970 sqq. também julga vingar-se ao matar os seus próprios filhos por erro de percepção.
26 Op. cit., p. 82.
A PEDAGOCIA PELA LOUCURA NO AJAX DE SOFOCLES 107
quem erra por excesso cedo ou tarde é castigado? .. .De Ajax, na sua
queda, fica-nos, no entanto, a impressão deixada por outros heróis sofoclia-
nos que, na sua derrocada e isolamento, manifestam intacta uma certa
forma de grandeza. O que Knox, aliás, tão bem analisou no seu conhecido
livro The Heroic Temper. Studies in Sophoclean Tragedy21.
Do primeiro impulso de suicídio que o herói manifesta desde que
recupera a razão, por não suportar imaginar-se despojado do seu prestígio
antigo ao ser agora alvo de troça — troça do exército, dos seus velhos
inimigos —, por não suportar o regresso às suas raízes, à casa paterna
mostrando-se despido de feitos de valor (464), passa ao aprofundamento e
amadurecimento desse propósito, a partir de uma nova visão da sua exis
tência e das leis a que entende estar submetida a natureza e o homem.
Referimo-nos ao belíssimo e controverso episódio II, constituído pela
longa rhesis conhecida por «discurso enganador».
Não vamos aflorar aqui os problemas suscitados pela complexa inter
pretação do passo, por já o termos feito noutro lugar28. O que Ajax pare
ce ter entendido da sua experiência é que há uma lei inelutável que o
tempo ilumina: no tempo se manifesta que nada é absoluto, que tudo
muda, tudo cede ao seu contrário, seja pelo ritmo que rege os fenómenos
da natureza, seja pela ausência de ritmo, pela absoluta margem de proba
bilidades que rege o que é humano. E o seu modo de ser não se ajusta a
viver nesta mudança. Ajax é inflexível. A única cedência possível, lógica,
é retirar-se desse mundo, onde já não sente brilhar o seu valor, e refugiar-
-se nas trevas da morte. O que entende como purificação, salvação.
A ira da deusa opera apenas num dia, anuncia Calcas — o dia em
que decorre a acção do drama29. E o que um dia pode conter para os
mortais efémeros aponta-o Atena, nas suas últimas palavras, antes de
abandonar definitivamente a cena (131-132) após o espectáculo de Ajax
louco que oferece aos olhos de Ulisses:
cbç T)u,spa KXíVSI xe tcáváyei náXiv anavua xávSpeímsicr ...
.. .o dia derruba e ergue de novo tudo o que ao homem diz respeito.
27 Berkeley, 1964. 28 Luz e Trevas no Teatro de Sófocles, sobretudo pp. 29-42. 29 Remetemos de novo para o nosso já citado livro, pp. 43-45. Segundo J. F. O'Connor, Disease Imagery in Aeschylos and Sophocles, diss. Ohio
State University, 1974, p. 84, o dia da ira pode ser visto como equivalente à noção da medicina hipocrática de 'dia crítico', o dia determinante na evolução de uma doença.
108 MARIA DO CEU FIALHO
N ã o é, pois , apenas à queda, mas à reabil i tação de Ájax , impl icada
na expressão ' d e n o v o ' , que estes versos pa recem aludir.
O Prólogo inicia-se com Ulisses em cena, com o gesto de quem
busca um rasto, já na proximidade de uma tenda, e observado por Atena,
que ele não vê. A ligação entre o herói e a deusa é, por demais, conhecida
do público ateniense e encontra-se bem realçada no diálogo inicial. São
velhos aliados. Atena rompe o silêncio e dirige-se-lhe como quem o
conhece desde há muito e lhe lê os gestos sem segredos (1-2):
'Ael |iév, ã> meu Aapxíou, SsSopKá a s Tieípáv TIV' 8%9pSv âp^ácai 0T]pcí)p:svov
Sempre te tenho visto, ó filho de Laertes, à procura de um meio de
apanhar os teus inimigos.
A atitude, familiar a Atena, é descrita através de uma metáfora cine
gética. Ulisses segue o rasto do inimigo com a porfia implacável e o
gosto da perseguição, da busca, de um cão dotado de bom faro.
A sintonia é perfeita. Ulisses reconhece que a deusa o compreende.
Ele mesmo retoma, na primeira pessoa, a imagem de caça empregue pela
deusa(20):
Ketvov yap, oôôsv' áXXov, í/veóco náXai.
É dele (Ajax), não de outrem, a pista que sigo desde há muito.
E o topos da caça repete-se, de novo na boca de Atena, implicando
sempre Ájax como o animal caçado30 — quer pela busca de Ulisses, quer
pela loucura que a deusa lhe provoca, qual rede funesta para onde o lança
(60). Ájax, o perseguidor dos chefes do exército, caça animais, julgando
derrotar homens. E é ele, afinal, quem é caçado e preso na armadilha que
ainda não reconhece31.
Mas o que Ulisses irá encontrar, no fim do prólogo, ultrapassa de longe
aquilo que procura, como veremos. E é através dessa capacidade de seguir
os indícios que ele encontra que a loucura de Ájax cumpre a sua pedagogia.
E através da pedagogia bem sucedida Ájax é, finalmente, reabilitado.
30 Héraclès louco é comparado, na sua fúria, a um touro pronto para arremeter (HF, 869).
31 O'Connor, op.cit., pp. 66 sqq., chama a atenção para a utilização da imagéti-ca de caça no diálogo entre Atena e Ulisses (vv.2, 5-6, 8, 20, 32, 37).
Veja-se também J. Jouanna, «La métaphore de la chasse dans le prologue de Y Ajax de Sophocle», BAGB, 1977, 168-186.
A PEDAGOCIA PELA LOUCURA NO AJAX DE SOFOCLES 109
Atena constrói para Ulisses um espectáculo dentro do próprio espectá
culo, conduzindo assim o espectador ateniense a uma identificação de ponto
de vista com a do espectador ideal em que Ulisses se vai convertendo32.
Ao seguir o rasto do assassino das reses, Ulisses pretende averiguar a
veracidade do que já corre pelo exército — que o autor é o príncipe de
Salamina. Na dúvida, vai confirmando progressivamente a suspeita à
medida que se aproxima da sua tenda, a que se encontra nos confins do
acampamento grego, sinal tão expressivo do isolamento de Ajax33 como o
seu grande escudo defensivo, vestígio de tempos remotos e único no exér
cito aqueu já em Homero34, e a que Ulisses se refere na primeira resposta
a Atena (18-19):
Kal vCv tnéyvmq su \i' èn' ávSpí Soa^ievei páaiv KUKA,OCVT', Al'avxi xãi axiKeacpópcor
Até agora me compreendeste perfeitamente — guio os meus passos a cercar um inimigo, Ajax, o do alto escudo.
O modo como se refere a Ajax deixa transparecer a predisposição
hostil e o total empenho na empresa.
Mas o que Ulisses não sabe e não logra até ao momento compreen
der são as razões possíveis para a actuação do seu rival. É isso que a
deusa lhe faz progressivamente conhecer até se propor dar início ao
espectáculo da loucura. Ulisses confessa à partida o seu temor de encarar
um louco. Atena oferece-lhe o prazer possível de rir do inimigo, a coberto
das trevas da insanidade com que vela os olhos deste.
Contudo, Ulisses não ri. O silêncio a que Atena o obrigou (v.87)
para se proteger e para não quebrar, poderíamos dizer, a ilusão dramática
da pequena encenação que a deusa cria, é um silêncio de observação, inte
riorização reflexiva da cena e aprendizagem do que ela traduz de mais
profundo.
Ajax, o caçador caçado, regozija-se com os despojos imaginários e
dá largas ao seu espírito de vingança numa situação que o torna deplorá-
32 U. Parlavantza-Friedrich, Taeuschungsszenen in den Tragoedien des Sophokles, Berlin, 1969, pp. 7 sqq. nota que, se o diálogo Atena-Ajax tem um espectador silencioso em cena, é a ele que Atena se dirige secretamente ao falar com o seu interlocutor.
33 Aspecto salientado por Ch. Segal, Tragedy and Civilisation, Cambridge, 1981, pp. 125 sqq.
34 Sobre o aproveitamento de traços do Ajax homérico, veja-se R.P. Winnington-Ingram, Sophocles. An Interpretation, Cambridge, 1980, pp. 14 sqq.
110 MARIA DO CEU FIALHO
vel, completamente alheia ao seu normal comportamento d e guerreiro
sóbrio e prestigiado, conforme a própria Atena realça a Ulisses, terminada
esta breve cena (118-120):
ôpãiç, 'OSUCTCTSC, xf]v 9sœv io%bv ôCTT)' TOÚTOU tíç áv CTOl xâvSpòç f\ 7tpovoúaT8poç f\ Spãv á{j,eívcov TjopsGrj xò. tcaípia;
Tu vês, Ulisses, tamanho é o poder dos deuses. Que homem se mostrava mais prudente do que este e mais corajoso no tempo oportuno?
Atena explora a distorção de sentidos e o júbilo frenético do louco
através do diálogo que com ele mantém, como se do seu lado estivesse.
O que este acredita.
O que Ulisses aprende é justamente a não seguir o riso a que a deusa
o convida, mas antes a ter compaixão, após a primeira reacção de terror
confessado, porque a loucura inesperada do inimigo, e provocada pela
divindade, lhe ensinou como é frágil tudo aquilo que é humano e incon
sistente o que o homem pensa inabalável na existência. De antagonista de
Ajax, Ulisses passou a sentir aquilo que o identifica com o herói destruí
do. Sombras vãs somos nós, reconhece Ulisses, fazendo ecoar a definição
do homem segundo Píndaro {sonho de uma sombra P. 8.95). Assim o
confessa à deusa, quando Ájax recolhe de novo à sua tenda e se encon
tram ambos a sós (121-126):
... êíioiKxíp© 5s viv SúOTTJVOV E)j.7iaç, Kaííisp ovca SuansvTJ, ÓSOÓVEK' aXTJl CTUyKaTsÇsOKTGU KaKTJl, OÒ§SV TÒ TOÚTOU \lãXk0V f] T0Ò(XÒV O-K07TfflV.
cmcõ yàp fj|j,ãç oúSsv Õvxaç àXXo TTXTJV ei'ScoX', ôcjoiTiep ÇSjxsv, fj Koótpr|v criciáv.
...de todo me condoo desse desgraçado, apesar de ser meu inimigo, pois ele cedeu ao jugo de uma sorte funesta e não pondero menos a minha condição que a dele. É que eu vejo que nós, os que vivemos, nada mais somos que fantasmas ou uma sombra vã.
Terá a deusa falhado o seu objectivo com a exibição da loucura do
príncipe de Salamina, uma vez que convida cruelmente Ulisses a regozi-
jar-se sobre o inimigo humilhado, lho põe em frente como uma presa de
caça sem defesa? Sendo assim, Ulisses teria aprendido a sophrosyne e a
compaixão a despeito da vontade divina e a disposição da deusa, na peça,
seria convidar o herói seu protegido a uma cruel desumanidade.
A PEDAGOCIA PELA LOUCURA NO AJAX DE SOFOCLES 111
O que, de facto, se torna finalmente claro quanto à presença divina,
nas derradeiras palavras de Atena antes de partir, é que, se a punição de
Ájax está em curso, Ulisses, por seu turno, foi posto à prova durante o
prólogo, pelo convite ao cruel regozijo sobre o inimigo humilhado, mas
chegou, não obstante, à compreensão exacta de uma situação em que,
como homem, se sentiu envolvido e retratado35.
Diz a deusa, antes de abandonar a cena (127-133):
ToiaÕTa -roívuv eíaopSv vmépK07iov u.T]5év Ttox' si7ir|iç aúxòç stç Bsobç ereoç, U,T]5' ÔyKOV «pT)l |lT)Sév', et xivoç nXéov íl Xeipi Ppíôsiç f) patcpou nXoòxov pátíer òç fjpspa KXíVSI te Kàváysi náXiv ãnavxa TavOpciwrsicr xoòç SS adxppovaç 8 s O l CpiX,OVJCTl, K a l CTTVjyOÕCTl TOUÇ K a K O U Ç .
Pois ao obsei-vares tais factos, nunca tu mesmo pronuncies, em relação aos deuses, uma palavra altaneira, nem te deixes tomar pelo orgulho se preponderares sobre outrem, quer pela força do teu braço, quer por uma vasta riqueza acumulada. E que o dia derruba e ergue de novo tudo o que ao homem diz respeito. Aos homens sensatos amam-nos os deuses — e abominam os pérfidos.
Que em Ulisses se operou uma mudança na sua disposição interior
desde o início até ao fim do prólogo, parece ter ficado claro36. O herói só
33 Um outro dos efeitos da divindade em cena — o que não parece ser comum em Sófocles — é acentuar o fosso que separa a imutabilidade divina da instabilidade do homem existente no tempo: B. M. W. Knox, «The Ajax of Sophocles», HSPh 65, 1961, 2.
36 Th. Rosenmeyer, The Masks of Tragedy, Austin, 1963, p. 159, salienta que a diferenciação das personagens na peça se faz a partir das suas diversas concepções de tempo.
Por sua vez, Ch. Segal, op. cit., no capítulo sobre o Ájax (V, pp. 109-151), entende ser fulcral a oposição entre Ájax e Ulisses, construída a partir da imutabilidade do primeiro, incapaz de ceder e de compreender que toda a vida social tem um curso, e da capacidade do segundo para reflectir sobre os acontecimentos e a partir deles aprender sobre si mesmo, ajustando-se à mudança. «Ajax' tragic isolation is defined against the coordinates of human time and human space» (p. 115), enquanto «Odysseus is the perfect embodiment of social view of time: time acommodated to the flux and movements of the mortal condition, to the jarring of the circumstances» (p. 112).
Na esteira desta perspectiva, e fortemente influenciada por ela, veja-se J.Boulogne, «Ulysse: deux figures de la démocratie chez Sophocle», R Ph 62, 1988, 99-107.
A perspectiva contrária, de um Ulisses portador, à partida, dos traços de sophros-yne que vai manifestar posteriormente, infere-se de H. Gasti, «Sophocles' Ajax. The Military Hybris», QUCC, NS 40, 1992, 81-93.
112 MARIA DO CEU FIALHO
voltará a aparecer no êxodo, após o suicídio de Ájax que, no prólogo, não
pode antever. A sua intervenção no final opõe-o aos Atridas, obcecados
pelo ódio e ressentimento contra um inimigo já impotente.
Quando Teucro parece estar a ponto de ver frustrado o piedoso pro
pósito de prestar honras fúnebres a seu irmão, Ulisses acorre a reforçar a
causa e impõe a cedência de Agamémnon através da força da sua argu
mentação.
O motivo do direito à sepultura quanto a alguém que se excluiu de
uma comunidade — sejam quais forem os modos de exclusão — e o con
fronto de posições em torno a esta situação mereceu particular interesse
por parte de Sófocles, que o retoma em Antígona e, parcialmente, em
Édipo em Colono.
É inegável, para o dramaturgo, que o direito a ser sepultado constitui
algo que se situa para além do âmbito da legislação criada pelo homem
— tem fundamento divino, naquela mesma Dike anterior a toda a acção
humana e que, a partir do espaço olímpico, lhe confere normas, como diz
Antígona37. E um imperativo religioso que converte quem se opõe a ele
num ímpio arrogante como o declara Ulisses a Agamémnon (1342-1345):
óDCTT' OúK av èVSÍKCOç y' cm|j,áÇon:ó aoi.
oú yáp TI TOCTOV, âXXà tobç Oecov vójxouç (pGeípoiç av. avSpa 5' où SíKCUOV, si Bávoi, pXaTixsiv TÒV SCTGXóV, Oí>5' èàv |iiaSv KUpTjlÇ.
De modo que não seria lícito que ele sofresse agora uma desonra por tuas mãos. Não seria a ele, mas às normas dos deuses que tu irias ferir. Pois não é justo, uma vez que esteja morto, maltratar um homem nobre.
A atitude e argumentação de Ulisses são a clara evidência de que a
pedagogia operada no prólogo foi aprofundada e, uma vez convertida em
visão do mundo, aplicada à situação concreta do funeral de Ájax. Ulisses
impõe a sua posição frente a um Agamémnon incapaz de entender como é
relativo o que é humano e arreigado ao seu ódio, viciado na preponderân
cia absoluta do mais forte e do mais numeroso — avesso, afinal, ao ideal
democrático da isonomia38 e revelando uma conduta radicalmente oposta
à que Atena preconiza no fim do prólogo.
37 Ant. 450 sqq. Cf. OT, 865 sqq. 38 Vide Boulogne, op. cit., pp. 102-103.
A PEDAGOCIA PELA LOUCURA NO AJAX DE SOFOCLES 113
Ájax é sepultado. E as honras fúnebres, pelas quais o seu inimigo de outrora pugna e que os Atridas não logram impedir, representam, afinal, a rendição da comunidade a um direito que é de Ájax e ao valor do herói, que Ulisses reconhece agora como o melhor depois de Aquiles 39. Está reposta a justiça através da compaixão aprendida. Como Atena preconizara, um dia foi suficiente para destruir e reabilitar um homem. Para destruir, bastou a mão divina; para reabilitar, o deus recorreu à capacidade humana de aprendizagem que o poeta enaltece no estásimo I de Antígona.
No Héraclès de Euripides, o herói é reabilitado, após a loucura infligida por Hera, através da solidariedade de Teseu; no Ájax é a sophrosyne de Ulisses, avivada pelo espectáculo da destruição, que desempenha papel fundamental na reintegração do morto na polis, através dos funerais conseguidos. Num e noutro caso enaltece-se e ensina-se ao espectador o valor extremo dos sentimentos que aproximam os homens e que conduzem à entreajuda, fundamento do espírito de comunidade que constrói a polis.
No caso de Ájax, tal disposição moral e sentimentos são suscitados pelo processo de aprendizagem que analisámos, promovido pela divindade através do espectáculo de um isolamento humano radical — o da loucura — num homem de qualidades inegavelmente superiores, mas em cuja relação já problemática com a comunidade se agudizou o conflito até um ponto extremo.
Segai comenta40 que, mesmo na sua sede de autonomia, o apolis trágico necessita das virtudes e cooperação do politikos, para o caso, Ulisses. A observação tem toda a oportunidade, mas também a polis, por seu turno, testa a sua força e equilíbrio quando se manifesta apta a absorver e render homenagem àquela força excepcional, incompreensível e solitária que caracteriza o herói — capacidade que Ulisses manifesta e que o eleva acima dos outros chefes aqueus a quem se opõe.
Esta profunda interdependência, sancionada pela instância do divino, deve-a ter sentido profundamente o espectador ateniense de então, já que Ájax recebia em Atenas culto de herói, como uma das figuras tutelares mais queridas.
39 Representa também, para Segai, op. cit., p. 151, a importância que o ritual centrado na família desempenha naquilo a que chama o «universalismo» de Ulisses.
40 Op. cit., p. 150.