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MAURICE MERLEAU - PONTY

O HOMEM E ACOMUNICAÇÃO

A Prosa do Mundo

Tradução de Celina Luz

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Primeira edição brasileira: 1974Copyright © 1969 f r l i i i i m - ; Gallimard

Traduzido do original em Francês:La Prose du Monde

Capa de Vera DuarteDireitos exclusivos para a língua portuguesa

BLOCH EDITORES S.A.Rua do Russell, 804 — Rio de Janeiro, GB — Brasil

Printed i» Brazil

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índice

Advertência

Nota Sobre a Edição

O Fantasma de Uma Linguagem Pura

A Ciência e a Experiência da Expressão

A Linguagem Indireta p i w T.

O Algoritmo e o Mistério da Linguagem

A Percepção de Outrem e o Diálogo

T A Expressão e o Desenho Infantil

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Advertência

A obra que Maurice Merleau-Ponty se propunha intitularA Prosa do Mundo ou Introdução à Prosa do Mundo estáinacabada. Sem dúvida devemos até pensar que o autor aban-donou-a deliberada m ente e que não teria desejado, vivo, con-duzi-la a seu termo, pelo menos na forma outrora esboçada.

Este livro devia constituir, quando foi começado, a pri-meira peça de um díptico — a segunda revestindo-se de umcaráter mais francamente metafísico — cuja ambição eraoferecer, no prolongamento da Fenomenologia da Percepção,uma teoria da verdade. Da intenção que comandava essaempresa possuímos um testemunho, tanto mais precioso por-que as notas ou esboços do plano reencontrados são de fracosocorro. Trata-se de um relatório enviado pelo autor a MartialGueroult, por ocasião de sua candidatura ao Collège deFrance1; Merleau-Ponty enuncia nesse documento as ideias Jmestras de seus primeiros trabalhos publicados, assinalando ,depois que se engajou desde 1945 nas novas pesquisas desti-nadas "a fixar definitivamente o sentido filosófico das primei- ,rãs", e rigorosamente articuladas a estas já que delas recebemseu itinerário e seu método.

"Acreditamos encontrar na experiência do mundo perce-bido, escreve ele, uma relação de um novo tipo entre o espírito \ a verdade. A evidência da coisa percebida relaciona-se com '

sen aspecto concreto, a textura mesmo de suas qualidades,a essa equivalência entre todas as suas propriedades sensíveisque fazia Cézanne dizer que se devia poder pintar até os \. Um inédito de Merleau-Ponty. Revue de Métaphysique et

Morale, n.° 4, 1962, A. Colin.

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odores. É diante de nossa existência indivisa que o mundoê verdadeiro ou existe; sua unidade, suas articulações se con-fundem, c ê dizer que temos do mundo uma noção global cujoinventário nunca se acaba, e que fazemos nele a experiênciade uma verdade que transparece ou nos engloba mais do quenosso espírito a detém e circunscreve. Ora, se agora nos con-sideramos, acima do percebido, o campo do conhecimentopropriamente dito, onde o espírito quer possuir o verdadeiro,definir ele mesmo objetos e aceder, assim, a uma sabedoriauniversal e desvinculada das particularidades de nossa situa-ção, a ordem do percebido não faz figura de simples aparên-cia, e o entendimento puro não é uma nova fonte de conhe-cimento a respeito da qual nossa familiaridade perceptiva como mundo não passa de um esboço informe? Somos obrigadosa responder a essas questões por uma teoria da verdade pri-meiro, e depois por uma teoria de intersubjetividade queabordamos em diversos ensaios, como A Dúvida de Cézanne,O Romance e a Metafísica, ou, no que diz respeito à filosofiada história, Humanismo e Terror, mas dos quais devemos ela-borar com todo o rígor os fundamentos filosóficos. A teoriada verdade é objeto de dois livros nos quais trabalhamos

agora."Esses dois livros são mencionados um pouco mais adiante:

Origem da Verdade e Introdução à Prosa do Mundo. Marleau-Ponty define seu propósito comum que é fundar sobre adescoberta do corpo como corpo ativo ou potência simbólica"uma teoria concreta do espírito que se mostrará a nós numarelação de troca com os instrumentos que dá a si próprio"...Para nos recusar qualquer comentário que acarretaria o riscode induzir abusivamente os pensamentos do leitor, limitamo-nos a indicar que a teoria concreta do espírito devia ordenar-se em volta de uma ideia nova da expressão que ali haveriapara libertar e da análise dos gestos ou do uso mímico docorpo e do de todas as formas de linçuagem, até as mais'sublimadas da linguaeem matemática. É imoortante, por outrolado, chamar a atenção sobre algumas linhas que esclarecemo desígnio de A Prosa do Mundo e que revelam sobre o tra-balho completado.

"Esperando tratar compleíamente esse problema (o dopensamento formal e da linguagem) na obra que preparamossobre a Origem da Verdade, nós o abordamos por seu ladomenos abrupto num livro cuja metade está escrita e que trata1

da linguagem literária. Nesse domínio é mais adequado mostrar'que a linguagem jamais é a simples vestimenta de um pensa-mento que se possuiria ele mesmo em toda a clareza. O sentidode um livro é primeiramente dado não tanto pelas ideias, comopor uma variação sistemática e insólita dos modos da lingua-gem e do relato ou das formas literárias existentes. Esse sota-que, essa modulação particular da palavra, se a expressão tem

fxito, f assimilada pouco a pouco pelo leitor e lhe torna arrs-sível um pensamento ao qual ele permanecia as vezes indife-rente ou mesmo rebelde anteriormente. A comunicação emliteratura não é o simples apelo do escritor a significações quefariam parte de um a priori do espírito humano: muito maiselas suscitam a isso por arrebatamento ou por uma espécie deação oblíqua. No escritor o pensamento não dirige a lingua-gem de fora: o escritor é ele mesmo um novo idioma que seconstrói, se inventa meios de expressão e se diversifica segun-do seu próprio sentido. O que chamamos poesia só é talvez aparte da literatura onde essa autonomia se afirma com osten-tação. Qualquer grande prosa é também uma recriação doinstrumento significante, a partir de então manejado segundouma sintaxe nova. O prosaico se limita a tocar por sinaisconvencionados significações já instaladas na cultura. A grandeprosa ê a arte de captar um sentido que nunca tinha sidoobjeíivado até então e torná-lo acessível a todos os que falama mesma língua. Um escritor é ultrapassado quando não é maiscapaz de fundar assim uma universalidade nova e comunicarno risco. Parece-nos que poderíamos dizer também das outrasinstituições que cessaram de viver quando se mostram inca-pazes de levar uma poesia das relações humanas, ou seja, oapelo de cada liberdade a todas as outras. Hegel dizia que óEstado romano é a prosa do mundo. Nós intitularemos Intro-dução à Prosa do Mundo este trabalho que deveria, elaboran-do a categoria da prosa, lhe dar, além da literatura, uma sig-nificação sociológica."

Esse texto constitui certamente a melhor das apresenta-ções da obra que publicamos. Tem também o mérito de escla-recer um pouco sobre as datas de sua redação. Endereçado aM. Gueroult pouco tempo antes da elejção do Collège deFrance — que ocorreu em fevereiro de 1952)—, não duvida-mos que ele se refere às cento e setenta páginas reencontradasnos papéis do filósofo após sua morte. São bem essas páginasque formam a primeira metade do livro então interrompido.Nossa convicção fundamenta-se em duas observações comple-mentares. A primeira é que em agosto de 1952, Merleau-Pontyredige uma nota que contém os inventários dos temas já tra-tados; ora, esta, apesar de sua brevidade designa claramenteo conjunto dos capítulos que possuímos. A segunda é que entreo momento em que comunica a Martial Gueroult o estágiode avanço de seu trabalho e o mês de agosto, o filósofo decideextrair de sua obra um capítulo importante e modificá-lo sen-sivelmente para publicá-lo como ensaio em Os Tempos Mo-dernos: este aparece em junho e julho do mesmo ano, sob otítulo A Linguagem Indireta e as Vozes do Silêncio. Ora, temosa prova que este último trabalho não foi começado antes domês de março, pois faz referência no começo a um livro doFrancastel, Pintura e Sociedade, que só em fevereiro saiu da

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impressora. Certo, esses poucos elementos não permitem fixara data exata em que o manuscrito foi interrompido. Autori-zam-nos todavia a pensar que ela não foi posterior ao começodo ano de 1952. Talvez situe-se alguns meses antes. Mas comosabemos, por outro lado, por uma carta que o autor mandouà sua mulher, por ocasião do verão precedente, que ele consa-grava nas férias o principal de seu trabalho a A Prosa doMundo, é legítimo supor que a parada se deu no outono de1951, ou no mais tardar no começo do inverno 1951-1952.

Menos exatas, por outro lado, são as referências que deter-minam os primeiros momentos do trabalho. A redação doterceiro capítulo — cujo objetivo é comparar a linguagem pic-tórica e a linguagem literária — não pode ter sido começadaantes da publicação do último volume da Psicologia da Arte.ou seja, antes de julho de 1950: as referências a A Moeda doAbsoluto não deixam dúvidas sobre esse ponto. Considerandoo trabalho feito sobre a obra de André Malraux, cujos traçosreencontramos num longo resumo-comentário, seríamos leva-dos a pensar que entre as duas se passaram várias semanas ouvários meses. Não nos esqueçamos que Merleau-Ponty ensi-nava na época na Sorbonne e consagrava também parte deseu tempo a Tempos Modernos. A hipótese é reforçada pelapresença de várias* referências a um artigo de Maurice Blanchot— O Museu, a Arte e o Tempo —, publicado em Crítica nomês de dezembro de_1950. Este último indício nos envianovamente ao ano de' 1951 )

Nada proíbe, é verdade, a suposição de que os dois pri-meiros capítulos estavam quase inteiramente redigidos quandoo autor decidiu apoiar-se nas análises de Malraux. Tal mu-dança no decorrer de seu trabalho não é inverossímil. Duvida-mos somente que isso tenha acontecido, pois todos os esboçosdo plano que foram encontrados prevêm um capítulo sobrea linguagem e a pintura; e o estado do manuscrito não sugereuma ruptura na composição. Além disso, é significativo queo exemplo do pintor seja tomado nas últimas páginas do se-gudo capítulo, antes de passar, seguindo um encadeamentológico, ao centro do terceiro. Assim, inclinamo-nos a concluirque Merleau-Ponty escreveu a primeira metade de sua obrano espaço do mesmo ano.

Mas é certo que tivera bem antes a ideia de um livrosobre a linguagem e, mais precisamente, sobre a literatura.Se a obra de Malraux pode pesar sobre sua iniciativa, o ensaiode Sartre, O Que £ a Literatura? publicado em 1947, impressio-nou-o profundamente e o confirmou em sua intenção de ]tratar dos problemas da expressão. Um resumo substancial!desse ensaio é redigido em 1948 ou 1949 — após a publica-ção, em maio de 1948, de Situações U, das quais todas as ré-'ferências são emprestadas — e acompanhado de um comen-/tário crítico que manifesta, às vezes, uma oposição vigorosa /

An irscx ilc seu autor: ora, numerosas ideias que farão a tramailo A V rosa tio Mundo são ali enunciadas e já religadas a um|tni|cio cm curso. Todavia este ainda não recebeu uma formacxalii. Merleau-Ponty toma na época a noção da prosa numa.nc jvu ) puramente literária; não encontrou o título nem otema geral de seu futuro livro. Assim contenta-se em anotarno linal de seu comentário: "Ê preciso que eu faça uma es-pfcle de O Que É a Literatura?, com uma parte mais longaxtthre o sinal e a prosa, e não toda uma dialética da literatura,mus cinco percepções literárias: Montaigne, Stendhal, Proust,ííreton, Artaud." Uma nota sem data, mas que já traz o títulode Prosa do Mundo, sugere que ele imagina um pouco maistarde uma obra considerável, repartida em vários volumes,cujo objetivo seria aplicar as categorias redefinidas de prosac de poesia aos registros da literatura, do amor, da religião eda política. Não são anunciadas ali nem a discussão dos tra-balhos dos linguistas que posteriormente ocupará lugar im-portante, nem, o que é mais significativo, um estudo da pin-tura: seu silêncio sobre esse ponto deixa supor que ainda nãotinha lido, nessa data, a Psicologia da Arte, ou calculado opartido que poderia dali tirar para uma teoria da expressão.Mas é preciso ainda se abster de concluir dessa nota que o in-teresse de Merleau-Ponty pela linguística ou pela pintura aindanão tivesse despertado: ele já interrogara os trabalhos dede Saussure e de Vendryès e os invocava notadamen-te em seu comentário de O Que Ê a Literatura?; seu ensaiosobre a Dúvida de Cézanne, publicado em Fontaine em 1945(antes de ser reproduzido em.Sens e non-sens) e redigido vá-'rios anos antes, e seus cursos na Faculdade de Lyon testemu-nham por outro lado, do lugar que tomava em suas pesquisas,a reflexão sobre a expressão pictórica. Podemos ainda adiantarque, no primeiro esboço de A Prosa do Mundo, ele não pensaem explorá-las e que só o fará em 1950 ou 1951, quandotiver decidido conduzir seu empreendimento em limites maisestreitos.

Sobre os motivos dessa decisão, só podemos ainda proporuma hipótese. Digamos somente, tirando partido da carta aM. Gueroult, que a ideia de escrever um livro, A Origem daVerdade, que desvendaria o sentido metafísico de sua teoriada expressão, tenha podido conduzi-lo a modificar e a reduzirseu projeto primitivo. Não lhe era necessário, para esse fim,ligar logo, como ele o fez, o problema da sistematicidade dalíngua e o de sua historicidade, o da criação artística e o doconhecimento científico, enfim o da expressão e o da verdade?E necessário, simultaneamente, subordinar um trabalho, apartir de então concebido como preliminar, à tarefa funda-mental que ele entrevia? Em suma, acreditamos que a últimaconcepção de A Prosa do Mundo é o índice de um novo estadode seu pensamento. Quando Merleau-Ponty começa a escrever

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este livro, ele já está trabalhando para um outro projeto, quenão anula este em curso, mas limita seu alcance.

Se não nos enganamos, talvez fiquemos menos desarma-dos para responder a outras perguntas mais importantes: porque o autor interrompe a redação de sua obra em 1952, quan-do já conduziu-a à metade do caminho; essa interrupção sig-nifica um abandono; uma negação?

Por certos sinais podemos julgar que o filósofo ficoumuito tempo ligado ao seu empreendimento. No Collège deFrance, escolheu como assunto de seus dois primeiros cursos,no ano 1953-1954, O Mundo Sensível e a Expressão e O UsoLiterário da Linguagem. Esse último tema, em particular,lhe dá a ocasião de falar de Stendhal e de Valéry, aos quais,segundo certas notas, tencionava dar lugar em seu livro. No,ano seguinte trata ainda do Problema da Palavra1. É um ifato, no entanto, que, além de ensinar, trabalha em outra di-recão. Relê Marx, Lênin e Trotski, e acumula sobre Max lWeber e Lukács notas consideráveis: o objetivo próximo é a 'partir de então a redação das Aventuras da Dialética, que apa-recerão em 1955. Mas nada deixa pensar que na época sacri-ficou A Prosa do Mundo. Pelo contrário, uma nota intitula-da Revisão do Manuscrito (aliás difícil de interpretar, poisparece misturar ao resumo do texto já redigido novas formu-lações que são talvez o anúncio de importantes modificações)nos persuade, pela referência que faz a um curso ministradoem 1954-1955, que quatro anos pelo menos após a composi-ção dos primeiros capítulos o projeto continua mantido. Masaté quando isso continua? Por falta de pontos de referênciadatados, não correríamos o risco de uma hipótese. Observa-sesomente que antes de 1959 diversos rascunhos traçam os es-boços de uma outra obra que tem o título Ser e Mundo ou ode Genealogia do Verdadeiro, ou ainda o já conhecido Origemda Verdade; e, enfim, que em 1959 a publicação em Signesde Linguagem Indireta e as Vozes do Silêncio parece excluira da obra deixada em suspenso.

Supondo-se todavia que o abandono fosse definitivo, nãose poderia deduzir daí que significava condenação do trabalhoconsumado. O mais provável é que as razões que o haviamincitado, em 1951 ou pouco antes, a reduzir as dimensões desua obra sobre a expressão, em proveito de um outro livro,lhe proibiam mais tarde de retomar o manuscrito interrom-pido. O primeiro desejo de escrever um novo O Que Ê a Lite-ratura?, depois de alcançar por essa via o problema geral daexpressão e da instituição, fora definitivamente barrado pelode escrever um novo O Que Ê a Metafísica? Esta tarefa nãotornava vã seu antigo empreendimento, mas não lhe deixava

2. Resumos de cursos, N. R. F., 1968.

ii possibilidade de voltar a ele, e sem dúvida ela ocupou-oi-iiila vez mais até que tomou corpo em O Visível e o Invisível3,herdeiro em 1959 de Origem da Verdade.

No entanto não ficaríamos satisfeitos de invocar motivospsicológicos para apreciar a mudança que se verifica nos in-vestimentos do trabalho. Nossa convicção é que ela foi co-mandada por uma profunda reviravolta da problemática ela-borada nas duas primeiras teses. Que se consulte a carta aM. Gueroult, ou a explanação Títulos e Trabalhos que sus-tenta sua candidatura ao Collège, veremos que nesse tempoMerleau-Ponty aplica-se em sublinhar a continuidade de suasantigas e novas pesquisas. Que se vá em seguida às notas queacompanham a redação de Visível e Invisível, deveremos con-'vir que ele submete então a uma crítica radical a perspec-tiva adotada em Fenomenologia da Percepção. De 1952 a1959 uma nova exigência se afirma, sua linguagem se trans-forma: ele descobre o engodo a que estão ligadas as "filoso-fias da consciência", e que sua própria crítica da metafísicaclássica não o eximia; afronta a necessidade de dar um fim-darncnto ontológico às análises do corpo e da percepção deque tinha partido. Não basta então dizer que ele se volta paraa metafísica e que esta intenção o afasta de A Prosa doMundo. O movimento que o leva para um novo livro é aomesmo tempo mais violento e mais fiel à primeira inspiraçãodo que se poderia supor considerando os géneros que pare-cem assinalar as duas obras. Pois é verdade que a metafí-sica pára de lhe aparecer, nos últimos anos, como o solo detodos os seus pensamentos, que ele se deixa deportar paraalém de suas fronteiras, que acolhe uma interrogação sobreo ser que abala o antigo estatuto do sujeito e da verdade, queentão, num sentido, ele vai bem além das posições sustenta-das nos documentos de 1952; e é verdade também que o pen-samento do Visível e Invisível germina no primeiro esboço deA Prosa do Mundo, através das aventuras que, de modificaçãoem modificação, encontram seu final na interrupção do ma-nuscrito — de tal maneira que a impossibilidade de continuaro antigo trabalho não é a consequência de uma nova escolha,mas sua causa.

Não esqueçamos os termos da carta a M. Gueroult. Oautor julga, em 1952, que A Estrutura do Comportamento ea Fenomenologia da Percepção trazem às suas novas pesqui-sas seu itinerário e seu método: tal é, sem dúvida, na época,a representação que ele faz. Mas, justamente, não passa deuma representação, que só vale, como ele mesmo nos ensi-nou, para ser confrontada com a prática, ou seja, com a lin-guagem da obra começada, com os poderes efetivos da prosa.Ora, um leitor que conhece os últimos escritos de Merleau-Ponty não lhe dará inteira razão; não deixará de entrever em

3. N. R. F., 1964.

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A Prosa do Mundo uma nova concepção da relação do ho-mem com a história e com a verdade, e de notar na medita-ção sobre a "linguagem indireta" os primeiros sinais da me-ditação sobre a "ontologia indireta" que virá alimentar O Vi'sível e o Invisível. Se reler as notas deste último livro, perce-bera mais que as questões levantadas no antigo manuscrito es-tão reformuladas em vários lugares, em termos vizinhos, e —que se trate da língua, da estrutura e da história, ou da cria-ção literária — prometidas a se inscrever na obra em curso.A questão levantada: o abandono do manuscrito implica nu-ma negação? Respondemos então sem hesitação pela negativa.O próprio termo abandono nos parece equívoco. Que o ado-temos se ele contribuir para que se entenda que o autor nãoteria nunca reatado com o trabalho começado na única inten-ção de lhe trazer o complemento que faltava. Mas que admi-tamos, por outro lado, que A Prosa do Mundo, até na lite-ralidade de certas análises, teria podido reviver no tecido doVisível e Invisível, se esta última obra não tivesse sido inter-rompida pela morte do filósofo.

Resta, dir-se-á, que o texto publicado por nossos cuida-dos não o teria sido por seu autor, que o apresentamos comoa primeira metade de um livro, enquanto a segunda não de-veria ter sido feita, ou que, a tivesse ele composto, ela teriaprovocado uma tão profunda modificação na parte anterior-mente redigida que se tornaria uma outra obra. Isto é ver-dade, e já que os esclarecimentos que demos não tornam su-pérfluos mas, ao contrário, requerem do editor uma justifica-ção de sua iniciativa, acrescentemos que a publicação se cho-ca a outras objeções, pois o terceiro capítulo de A Prosa doMundo já tinha sido feito numa versão próxima, e o manus-crito revela negligências, notadamente repetições, que o escri-tor não teria, finalmente, consentido. Essas objeções, formu-lamos a nós mesmos há muito tempo, mas sem julgá-las con-sistentes. E talvez um risco, pensamos, entregar ao públicoum manuscrito posto de lado por seu autor, mas quanto maispesada seria a decisão de relegá-lo à mala de onde os seus ohaviam tirado, quando nele encontramos um maior poder decompreensão da obra do filósofo e de interrogar o que ele nosdá a pensar. Que prejuízo não infringiríamos a leitores que,agora mais do que no tempo em que ele escrevia, se apaixo-nam pelos problemas da linguagem, privando-os de uma luzque não se veria jamais iluminando em outro lugar. A queconvenções, enfim, obedeceríamos, que fossem mais importan-tes que as exigências do saber filosófico, e diante de quemdeveríamos submeter-nos quando calou-se o único que podianos ligar? Enfim estes pensamentos nos bastaram: Merleau-Ponty disse em A Prosa do Mundo o que não disse em seusoutros livros, que teria sem dúvida desenvolvido e retomado

i-in (t Visível e o Invisível, mas que mesmo lá não pode che-C.M ii expressão. Certo, o leitor observará que uma parte doIrs io é próxima de Linguagem Indireta e as Vozes do Silêncio,mas se clc é atento perceberá também sua diferença e tiraráilu sua comparação um acréscimo de interesse. Não deixaráde salientar os defeitos da composição, mas seria bem injustoHC não conviesse que Merleau-Ponty, mesmo quando lhe acon-tece estar abaixo de si mesmo, permanece um incomparávelBiiia.

CLAUDE LEFORT

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Nota Sobre a EdiçãoO texto de A Prosa do Mundo, como assinalamos, esten-

dc-se por cento e setenta páginas que estão redigidas em folhassoltas, do formato comum para máquina de escrever, emsua maioria cobertas de um só lado. Um certo número defolhas apresentam abundantes correções; nenhuma está isen-ta. Nem o título da obra nem a data são mencionados.

O manuscrito compreende quatro partes expressamentedesignadas por algarismos romanos: páginas l, 8, 53, 127.Distinguimos duas outras partes com o cuidado da lógica dacomposição: uma quinta, página 145, tirando partido de umespaço anormalmente longo no alto da página; uma sexta,página 163, sugerida por um sinal (cruz em triângulo) e umespaço análogo, também no alto da página. A ordem ado-tada corresponde às indicações da nota de agosto de 1952(intitulada revisão do manuscrito), que contém seis parágra-fos, dos quais só os quatro primeiros, em verdade, estãonumerados.

Acreditamos certo dar títulos aos seis capítulos assimconstituídos, pois o autor não formula nenhum. Sua únicafunção é designar o mais claramente possível o tema prin-cipal do argumento. Os termos escolhidos por nós foramtodos tirados do texto.

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As notas ou esboços de plano encontrados nos pare-ceram impublicáveís em seguida ao texto, pois estão despro-vidas de data, às vezes confusas ou muito elípticas e dis-cordantes. Por outro lado era impossível selecionar entre elasalgumas sem ceder a uma interpretação que poderia, comrazão, parecer arbitrária. Que nos permitam dizer somente queelas sugerem uma segunda parte consagrada ao exame dealgumas amostras literárias — mais frequentemente ligadasaos nomes de Stendhal, Proust, Valéry, Breton e Artaud — euma terceira parte levantando problema da prosa do mundoem sua generalidade, mas olhando-o da política e da religião.

Por outro lado, quisemos reproduzir as anotações quese encontravam à margem do texto ou no final da página.Estas talvez desencorajarão muitos leitores, de tanto as fórmu-las são condensadas ou árduas, mas poderão negligenciá-lassem inconvenientes, enquanto outros as aproveitarão.

Na transcrição nós nos fixamos como regra limitar aomáximo nossa intervenção. Quando o erro percebido erainsignificante (mudança indevida do género ou do número),nós o corrigimos; quando a retificação solicitava substituiçãode palavras, fizemos uma nota para chamar a atenção doleitor por um sic. As referências foram precisadas ou com-pletadas cada vez que isso nos pareceu possível.

Assinalemos enfim que as notas introduzidas por nós, quemencionem uma particularidade do texto ou dêem lugar acomentários do autor, são precedidas de um asterisco. Asque ele queria figurando estão precedidas de um algarismoarábico. Para evitar qualquer confusão, seu texto está emromano; o nosso em itálico.

A convenção adotada para indicar as palavras queresistiram à leitura é a seguinte: se estão ilegíveis, (?); se du-vidosas mas prováveis, (sujeito?).

C.L.

O Fantasma de UmaLinguagem Pura

Eis que há muito tempo fala-se sobre a terra e os três»iu:irtos do que se diz passam despercebidos. Uma rosa,ftnwe, o tempo está bonito, o homem é mortal. Aí_estãoI H I I - J L nós os casos puros da expressão. Parece-nos que atingeo jiugc quando assinala sem equívoco acontecimentos, esta-ilu:; de coisas, ideias ou relações, porque, aí, não deixa maisnada a desejar, não contém nada que não mostre e nos faziir.-;iizar ao objeto que designa. O diálogo, o relato, o jogo\! palavras, a confidência, a promessa, a prece, a eloqiiên- l

rl : i , a literatura, enfim essa linguagem à segunda potência '••onde só se fala de coisas e ideias para atingir alguém, ondeu» palavras respondem às palavras, e que se carrega em simesma, se constrói acima da natureza um reino sussurran-te e febril, nós a tratamos como simples variedade de formascanónicas que enunciam alguma coisa. Exprimir, não passaentão de substituir uma percepção ou uma ideia por-umsinal convencionado que a anuncia, evoca ou abriga. Claro,aí só há frases feitas e uma língua é capaz de assinalar oque nunca foi visto. Mas como o poderia ela.se o novojaãoTosse feito de elementos antigos, já expressos, se ele nãofosse inteiramente definível pelo vocabulário e as relaçõesde sintaxe da língua em uso? A língua dispõe de um certonúmero de sinais fundamentais, arbitrariamente ligados asignificações chaves; ela é capaz de recompor qualquer sig-nificação nova a partir daquelas, consequentemente de dizê-

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Ias na mesma linguagem, e finalmente a expressão se ex-prime porque reconduz todas as nossas experiências ao sis-tema de correspondências iniciais entre tal sinal e tal signi-ficação de que nos apoderamos aprendendo a língua, e queé, ele, absolutamente claro, porque nenhum pensamento seiarrasta nas palavras, nenhuma palavra no puro pensamen-to de alguma coisa. Veneramos todos, secretamente, esseideal de uma linguagem que, em última análise, nos liber-taria dela mesma entregando-nos às coisas. Uma língua épara nós este aparelho fabuloso que permite exprimir umnúmero indefinido de pensamentos ou de coisas com umnúmero finito de sinais, porque foram escolhidos de manei-ra a recompor exatamente tudo o que se pode querer dizerde novo e a lhe comunicar a evidência das primeiras desig-nações de coisas.

Já que a operação tem sucesso, já que se fala e que seescreve, é que a língua, como o entendimento de Deus, con-tém Q germe de todas as significações possíveis, é que todosos nossos pensamentos estão destinados a ser ditos por ela,é que toda a significação que aparece na experiência doshomens traz em seu coração sua fórmula, como, para ascrianças de Piaget, o sol traz em seu centro seu nome. Nossalíngua reencontra no fundo das coisas uma palavra que asfez.

Essas convicções só pertencem ao senso comum. Reinamsobre, as ciçncias exatas (mas não, como veremos, sobre alinguística). Vai-se repetindo que a ciência é uma línguabem feita. É dizer também que a língua é começo de ciência.e que o algoritmo é a forma" aauitadã linguagem. Ora," elaliga a sinais escolhidos significações definidas de propósitoe perfeitas. Fixa um certo número de relações transparentes;institui, para representá-las, símbolos que por si mesmosnão dizem nada, que então nunca dirão a não ser o que seconvencionou fazê-los dizer. Tendo-se assim subtraído aosdeslizamentos de sentido que fazem o erro, está, em princí-pio, certa de poder, a cada momento, justificar inteiramen-te seus enunciados por recursos às definições Iniríais. Quan-do se tratar de exprimir no mesmo algoritmo das relaçõespara as quais não foi feita ou, como se diz, problemas "deuma outra forma", talvez seja necessário introduzir novasdefinições e novos símbolos. Mas se o algoritmo preencheseu ofício, se quer ser uma linguagem rigorosa e controlarem todo momento suas operações, é preciso que nada deimplícito tenha sido introduzido, é preciso enfim que as rela-

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i i nv i r i e mitigas formem juntas uma só família, queH' | i i i in i : i i ler lvur de um só sistema de relações possíveis,

l l i> i n n m n . i que uí nunca haja excesso do que se quer dizermin j i i r :.e Uí/, ou do que se diz sobre o que se quer"dizer,i|iir K M l n i i l permaneça simples abreviação de um pensamen-

i j t i i i pmleria a, qualquer momento se explicar e se justifi-i u í |>ur Inteiro. A única virtude — mas decisiva — da ex-| nu e rnl.uo substituir as alusões confusas que cada umtli* MI INHON pensamentos faz a todos os outros por atos de•lliiiinencao de que sejamos verdadeiramente responsáveis,|iHH|ti<* o exato alcance é conhecido por nós,-é,.recuperarpuni 11<> . ' : u vida de nosso pensamento, e o valor expressivoilu Mlf.onLino fica inteiramente suspenso à relação sem equí-v i i e n ilus -significações derivadas com as significações primi-l i v t i i . e destas com sinais por si mesmos insignificantes,n i i i l r n pensamento só encontra o que ele ali colocou.

o algoritmo, o projeto de uma língua universal, é _arevolta contra a linguagem dada. Não se quer depender demm.-! confusões, quer-se refazê-la na medida da verdade,ivik-flni-la segundo xn pensamento .de D_eu.s, recomeçar doy.ero u história da palavra, ou antes arrancar a palavra, àhl:;t.órla. A palavra de Deus, essa linguagem antes da lingua-K « ' M i que continuamos a supor, não encontramos mais naslínguas existentes, nem misturada à história e ao mundo. Éo verbo interior que é juiz desse verbo exterior. Nesse senti-do, estamos no oposto das crendices mágicas que colocamu palavra sol no sol. No entanto, criada por Deus com oinundo, veiculada por ele e recebida por nós como umMessias, ou preparada no entendimento de Deus .para oHlatcma dos possíveis que envolve eminentemente nossoIMlindo confuso e reencontradapela^refleyãn do homem gqpordena em nome dessa instância interior o caos das línguashistóricas, a linguagem, em todo caso, se parece com ascoisas e as ideias que exprime, é o duplo do ser, e não seconcebe coisas ou ideias que vêm ao mundo sem palavras.Que seja mítica ou inteligível, há aí um lugar onde tudoo que é ou que será se prepara ao mesmo tempo para serdito.

Nisso se acha, para o escritor, uma crença de estado.É preciso reler sempre essas espantosas frases de La Bruyè-rc citadas por Jean Paulhan: "Entre todas as diferentesexpressões que podem dar um só de nossos pensamentos,só uma é a boa. Não a encontramos sempre falando ou

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escrevendo: é verdade, apesar disso, que ela existe1." Quesabe ele sobre isso? Sabe somente que aquele que fala puque escreve é primeiramente mudo, inclinado para o quequer significar, para o que vai dizer, e que de repente aonda de palavras vem em socorro a esse silêncio, e dá a eleum equivalente tão justo, tão capaz de devolver ao próprioescritor seu pensamento quando ele o tiver esquecido, queé preciso acreditar que ela já era falada no inverso, domundo. Já que a língua está aqui como um instrumentoadequado a todos os fins, já que, com seu vocabulário, seusachados e suas formas que tanto serviram, ela respondesempre ao apelo e se presta a exprimir tudo, é porque a

vlíngua é o tesouro de tudo o que se pode ter a dizer, quei)nela já está escrita toda a nossa experiência futura, como o)/destino dos homens está escrito nos astros. Trata-se somen-'te de encontrar esta frase já feita nos limbos da linguagem,de _captar as palavras surdas QUP n f*** Trmrmnm Como

Jté

parece que nossos amigos, sendo o que são, não poderiamchamar-se diferente do que se chamam, que lhes dandoum nome, somente deciframos o que era exigido por aquelacor de olhos, aquele ar do rosto, aquele andar — só algunssão mal batizados e carregam a vida inteira, como umaperuca ou uma máscara, um nome mentiroso ou um pseu-dónimo —, a expressão e o exprimido trocam bizarramenteseus papéis e, por uma espécie de falso reconhecimento,parece-nos que ela o habitava desde a eternidade.

Mas se os homens desenterram uma linguagem pré-histórica falada nas coisas, se nisso há, além de nossosbalbucios, uma idade de ouro da linguagem em que _as pa-lavras diziam respeito às próprias coisas, então a comunica-ção não tem mistério. Mostro fora de mim um mundo quejá falava como mostro com o dedo um objeto que já estavano campo visual dos outros. Diz-se que as expressões dafisionomia são por si mesmas equívocas e que esse enrubes-cimento do rosto é para mim prazer, vergonha, cólera, calorou vermelhidão orgíaca segundo a situação indica. Damesma maneira a gesticulação linguística não importa aoespírito de quem a observa: ela lhe mostra em silêncio coisascujo nome ele já sabe, porque é seu nome. Mas deixemos omito de uma linguagem das coisas, ou melhor, vamos abor-dá-lo em sua forma sublimada, a de uma língua universal,

1. Lês Fleurs ãe Tarbes, N.R.F., 1942, p. 128.

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t | i n < t i t l iwolvr antecipadamente tudo o que pode ter aM i i i M i i j i i r Mias palavras e sua sintaxe refletem os possí-

vel- h i i n l i i i i H t i l a i s c .suas articulações: a consequência é anu n N n i i ha nisso virtude da palavra, nenhum poder

i i i l i i nrla. l > ; i a é puro sinal para uma pura significação.•Ir mir laia cifra seu pensamento. Ele o substitui por

u n i MI i . u i i " sonoro ou visível que não passa de sons no arMM inn;o.'t dr mosca sobre um papel. O pensamento se sabe• nn limita; notifica-se exteriormente por uma mensagem< | l l i > mm o contém, e que o designa somente sem equívocoI M I I H mu outro pensamento que é capaz de ler a mensagemJHinpir rle atribui, pelo efeito do uso, das convenções hu-M i n i u i M ou de uma instituição divina, a mesma significaçãotu M iiirMinos sinais. Em todo caso, não encontramos jamais1nn . palavras dos outros nada além do que nós mesmos co-Innimos nelas, a comunicação é uma aparência, não nos(r i r i i i i i i nada de verdadeiramente novo. Como seria ela capazitr nos levar além de nosso próprio poder de pensar, já quem Mimís que nos apresenta não nos diriam nada se nósl u i mo possuíssemos por inclinação a sua significação? Évrnladc que, como Fabrice, observando sinais na noite, ouolhando deslizar nas lâmpadas imóveis as letras lentas enipldas do jornal luminoso, parece-me ver nascer lá umanovidade. Alguma coisa palpita e se anima: pensamentodr homem mergulhado na distância. Mas enfim não passadr miragem. Se eu não estivesse lá para perceber uma ca-drncla e identificar as letras em movimento, só haverianmpil lo um pisca-pisca insignificante como o das estrelas,ilns lâmpadas que se acendem e apagam, como o exige acorrente que passa. A própria notícia de uma morte ou deuni desastre anunciados por telegrama, não é absolutamen-tr uma novidade; só a recebo porque já sabia que mortes edesastres são possíveis. Claro, a experiência que os homenslom da linguagem não é essa: eles amam loucamente bater-papo com o grande escritor, visitam-no como se vai ver arstatua de São Pedro, acreditam então surdamente nas vir-tudes secretas da comunicação. Eles bem sabem que umanotícia é uma notícia e que de nada adianta ter pensadomuitas vezes na morte enquanto não se sabe da morte dealguém que se ama. Mas do momento em que refletem sobreu linguagem, em vez de vivê-la, não vêem como se poderiaconservar-lhe esses poderes. Afinal, compreendo o que medizem porque sei antecipadamente o sentido das palavras

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que me dirigem*, e enfim só sócoloco a mim mesmo os problemas que posso resolver. Doissujeitos pensantes fechados sobre suas significações — entreeles mensagens que circulam, mas que não contêm .nada, eque são somente ocasião para cada um prestar atenção aoque ia sabia — finalmente, quando um fala e o outro escuta,pensamentos que se reproduzem um ao outro, mas apesarde si mesmos e sem jamais se defrontar — , sim, como dizPaulhan, essa teoria comum da linguagem teria por con-sequência "que tudo se passasse no fim entre os dois comose não tivesse havido linguagem2".

* Na margem: descrever o sentido de acontecimento por oposiçãoao sentido disponível.

2. Lês Fleurs de Tarbes, p. 128.

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A Ciência e a Experiênciada Expressão

Ora, é bem um resultado da linguagem se fazer es-t|iirrer, na medida que ela consegue exprimir-se. À me-,dlda que sou cativado por um livro, não vejo mais as le-írus sobre a página, não sei mais quando verei a página,atruvés de todos esses sinais, todas essas folhas, viso ei iUnjo sempre o mesmo acontecimento, a mesma aventura,uo ponto de não mais saber sob que ângulo, em qual pers-pectiva me foram oferecidos, como, na percepção ingénua,À um homem com um tamanho de homem que vejo láadiante e não poderia dizer sob que grandeza aparenteeu o vejo a não ser com a condição de fechar um olho, defragmentar meu campo de visão, de apagar a profundida-de, projetar todo o espetáculo num único plano ilusório,comparar cada fragmento a algum objeto próximo comomeu lápis, que lhe dá enfim uma grandeza própria. .Comos dois olhos abertos, a comparação é impossível, meu lá-pis é objeto próximo, os longínquos são os longínquos, delea eles não existem medidas comuns, ou então, se consigoa comparação por um objeto da paisagem, não posso emtodo caso fazê-la ao mesmo tempo para os outros objetos.O homem lá adiante não tem nem um centímetro nemum metro e setenta e cinco, é um homem-a-distância, seutamanho está lá como um sentido que o habita, não como lum caráter observável, e nada sei dos pretendidos sinaispelos quais meu olho o anunciaria para mim. Assim comoum grande livro, uma grande peça, um poema fica em mi-

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.

nhaJemfíra.nça mmn um bloco. Posso, revivendo a leituraou a representação, recordar-me de tal momento, tal pala-vra, tal circunstância, tal reviravolta da ação. Mas fazen-|do-o, comercio uma lembrança que é única e que não pre-lcisa desses detalhes para permanecer em sua evidência/tão singular e inesgotável quanto uma coisa vista. Essaconversa que me tocou, e na qual por uma vez tive ver-dadeiramente o sentimento de falar a alguém, eu a sei in-teira, poderia amanhã contá-la aos que se interessam porela, mas, se verdadeiramente ela me apaixonou como umlivro, não precisarei associá-la a lembranças diferentes umada outra, eu a conservo ainda em mãos como uma coisa,o olhar de minha memória a envolve, bastará que eu_merêmstãltTlio acontecimento para que tudo, os gestos dointerlocutor, seus sorrisos, suas hesitações, suas palavrasreapareçam no justo lugar. Quando alguém — autor, .ouamigo — soube exprimir-se, os sinais são logo esquecidos,só permanece o sentido, e a perfeição da linguagem passadespercebida.

Mas nisso mesmo está a virtude da linguagem: é elaque nos atira ao que significa; dissimula-se UõTTiossosolhos por sua própria operação; seu triunfo é se apagar enos darjyraan, ^]^m rins palavras. ao própnojjensamentodo autor, de tal maneira que após acreditarmos ter:hoíTên-tretido compete sem palavras, âe espírito a espírito. As pa-TavrasTlfha vez esfriadas recaem sobre a pagina a título desimples sinais, e justamente porque nos projetaram bemadiante de si, parece-nos incrível que tantos pensamentosnos tenham vindo delas. Foram elas no entanto que noafalaram, à leitura , qi ia nri o^suslentãcTas' pelo movimento denosso olhar e de nosso-dÊSei0,mas também o sustentando,relançando-o sem cessar, refaziam conosco a dupla do cegoe do paralítico — quando eram graças a nós, e éramos gra-ças a elas palavras mais que linguagem, e a um só tempoa voz e seu eco.

Digamos que há aí duas linguagens: a linguagem dedepois, a que é adquirida, e que desaparece diante do sen-tido de que se tornou portadora — e a que se fez no mo-mento da expressão, que vai justamente me fazer deslizardos sinais ao sentido — , a linguagem falada e a linguagemfalante. lima. VPS ^P Ti n 1ivroi glP \^ Twn /*nrY^ ni^ jiy

m* r u c N M i o dizer que no decorrer da leitura é semprePH i i i i do lod», como ele podia aparecer-me no ponto em

n. . i i i i v u , ( jue eu compreendia cada frase, cada cadênciaH n i n t i i . r ; n l ; i suspensão dos acontecimentos, ao ponto de,

> < u l i M m , pudor ter o sentimento de ter criado o livro dei i i i i l r nu parle, como o diz .Sartre1. Mas, enfim, é só de-

M M H , enfim, este livro que eu amo, não teria podidoIn Mus, enfim, é preciso primeiro ler e Sartre ainda'

li t i l* multo bem que a leitura pegue como o fogo pega..A p i o v i i r i n o fósforo, inflamo um ínfimo pedaço de papel,P H n que meu gesto recebe das coisas um socorro inspira-iln. rumo se a lareira e a madeira seca esperassem só porHe puni desencadear o fogo, como se o fósforo só fosse umi i i - . 1 -i encantamentos mágicos, um apelo do semelhanteAO qnul o semelhante responde fora de qualquer medida.Art f i l in começo a ler preguiçosamente, só contribuo comum pouco de pensamento — e repentinamente algumaspuinvrus me despertam, o fogo pega, meus pensamentosqueimam, não há mais nada nesse livro que me deixe in-ilUrrente, o fogo se alimenta de tudo o que a leitura joganrle. Recebo e dou com o mesmo gesto. Dei meu conheci-mento da língua, contribuí com o que sabia sobre o sen-i n l u dessas palavras, dessas formas, dessa sintaxe. Dei tam-hem toda uma experiência dos outros e dos acontecimen-tos, todas as interrogações que ela deixou em mim, essasNltiiações ainda abertas, não liquidadas e também aque-lus das quais só conheço o modo comum de resolução. MasO livrn ngn m^ jnf.PrP-S-SRTJR. taTlt.O •<"*- nfln rP9 ffrlQgl=f ^Q Q""

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5

dlvíduo único e irrecusável além das Ietras_e_das- páginas;é a partir dele que rfípnrnntrn ns riptalTies dft fllig Jffefiao

Já sei. De tudo o que levava, ele serviu-se para me atrairalém. Com o favor desses sinais de que o autor e eu con-vicmos, porque falamos a mesma língua, ele me fez acre-ditar justamente que estamos sobre o terreno já comumdas significações adquiridas e disponíveis. Ete-inslialnikserm meu mundo. Depois, insensivelmente-ete desviou os si-nais de seu sentido comum, e eles me arrastaram como umturbilhão para esse outro sentido, que, .vnn nim-nçar Sei,antes de ler Stendhal, o que é um patife e posso entãocompreender o que ele quer dizer quando escreve que o fis-cal Rossi é um patife. Mas quando o fiscal Rossi começaa viver, não é mais ele que é um patife, é o patife que éum fiscal Rossi. Entro na moral de Stendhal pelas pala-

1. "O Que É a Literatura?" Tempos modernos, n.° 17, fevereiro de1947, p. 791. Reproduzido em Situations II, N. R. F-, p. 94.

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vras de todo mundo de que ele se serve, mas essas pala-vras sofreram entre suas mãos uma torção secreta. À me-dida que os confrontos se multiplicam e que mais flechasse desenham em direção a esse lugar de pensamento ondenunca fui antes, onde talvez, sem Stendhal, eu nunca teriaido, enquanto que as ocasiões nas quais Stendhal as em-prega indicam sempre mais imperiosamente o sentidonovo que ele lhes dá, .eu me aproximo mais dele até queleia enfim suas palavras na própria intenção com que eleas. escreveu. Não se pode imitar a voz de alguém sem reto-mar algo de sua fisionomia e enfim de seu estilo pessoal.Assim a voz do autor acaba por induzir em mim seu pen-samento. Palavras comuns, episódios já conhecidos — um

1 duelo, uma cena de ciúme —, que primeiro me enviam aomundo de todos, funcionam repentinamente como os emis-sários do mundo de Stendhal e acabam por me instalarsenão em seu ser empírico, pelo menos nesse eu imaginá-rio com que ele se entreteu com ele mesmo durante cin-quenta anos ao mesmo tempo que o comerciava em obras.É então somente que o leitor ou o autor pode dizer comPaulhan: "Nesse clarão pelo menos, fui você2". Crio Sten-dhal, sou Stendhai lendo-o, mas é -be instalar-me nele. A realeza do leitor é só imaginária,já^que ele tira toda sua potência dessa máquina infernalquê é o livro, aparelho de criar significações. As relaçõesdo leitor com o livro parecem esses amores em que primei-ro um dos dois dominava, porque tinha mais orgulho oupetulância; mas logo tudo desaba e é o outro, mais taci-turno e mais sábio, que governa. O momento da expressai*é aquele em que a situação se inverte, quando o livro tomaposse do leitor. A linguagem falada é aquela que o leitortrazia com ele, é a massa de relações de sinais estabeleci-dos com significações disponíveis, sem a qual, de fato, elenão teria podido começar a ler, que constitui a língua e oconjunto dos escritos dessa língua, é então também a obrade Stendhal uma vez que terá sido compreendido e viráacrescer a herança da cultura. Mas_ a Jincnnçpm fnlnnteé a interpelação que o livro endereça ao leitor não preve-nido, e essa operação pela qual um certo arranjo de sinaise_de significações já disponíveis vem a alterar» depois atransfigurar, cada um deles e finalmente secretar umasignificação nova, a estabelecer no espírito do leitor, como

2. Lês Fleurs de Tarbes, p. 138.

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um i n ' i mio a partir de então disponível, a linguagemHf H i i m i i i i i i Uma vê/ adquirida essa linguagem, possoiIN M I l * i n ilusão de tê-la compreendido por mim mesmo:!9> i | n i i i , i n i r Lraiislormou e tornou capaz de compreende-']'IH In i " - i . indo su passa de fato como se não tivesse havidol l n | i t i u i ' . ' - i i i . e, depois, fico lisonjeado de compreender Sten-dl"d n p n t l i r de meu sistema de pensamentos, e já é muitom i h i < nmrcdo com parcimônia um setor desse sistemai "i picles que pagam uma dívida antiga emprestandoil -dor. Talvez a longo prazo isso seja verdade. Talvez,j n - t . 1 1 1 a Htendhal, ultrapassaremos Stendhal, mas é por-M i n r ir lerá parado de nos falar,4iorque seus escritos per-di i .mi para nós sua virtude de expressão^Enquanto a lin-Mii i i | ' , cm funciona verdadeiramente, não é simples, coavite,pui a « p i e m escuta ou lê, descobrir em si mesmo significa-M ' < . ip i r li já estejam. É essa manha, pela qual o escritort n i o orador, tocando em nós essas significações, tire delas•mm estranhos e que parecem à primeira vista falsos e dis-•oimntes, e depois nos religue tão bem ao seu sistema deIn mia que a partir de então o tomamos pelo nosso. En-' , " > . dele a nós, só passarão a existir puras relações de es-l i l r lLu a espírito. Mas tudo isso começou pela cumplicidadedn palavra e de seu eco, ou, para usar a palavra enérgicamie llusserl aplica à percepção de outrem, pelo acopla-tin-nlo da linguagem.

A leitura é um afrontamento entre os corpos gloriosos« • impalpáveis de minha palavra e a do autor. É bem verda-de, como dizíamos antes, que ela nos atira à intenção signi-Hcaiite de outrem para além de nossos pensamentos pró-prios como a percepção das próprias coisas para além deuma perspectiva que só percebo depois. Mas este podermesmo de me ultrapassar pela leitura eu o possuí pelo fato

i Ir :;er sujeito falante, gesticulaçã£iJin^uíaUc^,.cj3niQ,minhapercepção só é possível por meu corpo. Essa marca de luzque se marca em dois pontos diferentes sobre minhas duasretinas, eu a vejo como uma só marca a distância porquetenho um olhar, um corpo ativo que tomam em face dasmensagens exteriores a atitude que convém para que oespetáculo se organize, se escale e se equilibre. Da mesmamaneira, vou direto ao livro através da confusão, porquemontei em mim mesmo esse estranho aparelho de expres-são que é capaz, não somente de interpretar as palavrassegundo as acepções recebidas e a técnica do livro segun-J

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do os prorfiril'mpnfng já conheci fins "r*« de s?íor ele e dotar por ele de novos-órgãos. Não

do poder da liaguagem. enquanta-não-SeJtiverreconhecido essa linguagem operante ou constituinte queaparece quando a linguagem constituída, repentinamentedescentrada e privada de seu equilíbrio, ordena-se nova-mente para ensinar ao leitor — e mesmo ap autor — o queele não sabia pensai_cu_dizer. A linguagem nos leva às pró-prias coisas na exata medida em que, antes de ter umasignificação, ela «-significação. Se só lhe concedemos suafunção segunda, é que supomos dada a primeira, que aelevamos a uma consciência de verdade da qual é, em rea-lidade, a portadora e enfim que se põe a linguagem antesda linguagem.

Procuraremos além precisar este esboço e dar umateoria da expressão e da verdade. Será preciso então es-clarecer ou justificar a experiência da palavra, pelas aqui-sições do saber objetívo — psicologia, patologia da ex-pressão e linguística. Será preciso também confrontá-lacom as filosofias que pensam ultrapassá-la e tratá-la co-mo uma variedade de puros atos de significação que a re-flexão nos faria perceber sem mais. Nosso objetivo agoranão é esse. Só queremos começar esta pesquisa procurandoevidenciar o^ funcionamento da palavra na. literatura ereservamos então para uma outra obra explicações maiscompletas. Como no entanto é insólito começar o estudoda palavra por sua função, digamos, a mais complexa, e;ir daí ao mais simples, devemos justificar o procedimentofazendo entrever que o. fenómeno da expressão, tal como!aparece na palavra literária, não é uma curiosidade ouuma fantasia da introspecção em margem da filosofia ouda ciência da linguagem, que o estudo objetivo-4a lingua-gem a encontra tão bem quanto a -experiência literária eque as duas pesquisas, são concêntricas. Entre a ciênciada expressão, se ela considera seu objeto por inteiro, ea experiência viva da expressão, se é bastante lúcida, co-mo niSSO haveria rnrte? ^ p-iên^ia. pãn  vfflfrMfo a um nn-

mafimntro .mundo, mas a este aqui, falacoisas que vivemos. Ela as constrói combinando as purasideias que define como Galileu construiu o deslizamentode um corpo sobre um plano inclinado a partir do casoideal da queda absolutamente livre. Mas, enfim, as ideias

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H i'"1 • . i i l m i r U d a s à condição de iluminar a opaci-t l i n i i dm r . i i . . ; ; r u teoria da liriguagem..dev£-abrài_um_ca-Hi ln l i " n i ' a experiência dos sujeitos falantes. A ideial|p u n i u l l i i r . i i a K f i n se forma e apoia sobre a linguagem•l i tu l u n i [ul t imas, que somos, e a linguística não passaid M M I I I n i i i i i r l ru metódica e mediata de esclarecer por to-I|HH MH m i i n w fulos de linguagem esta palavra que se pro-I M M K IM mi nus e à qual, mesmo em meio ao nosso traba-Ih» r i r i i i i r i r o , continuamos ligados como qne pnr nm cnr-i l i i . i i i i i i l n l h ' , 1 !

< f«i : iUirium de se desfazer dessa ligação. Seria agrada-,v i l i l r i x n r enfim a situação confusa e irritante de um seri| in r u < | iu> ele fala, e de olhar a linguagem, a sociedade,

«r <'om ela não estivéssemos engajados, do ponto dev l n t u ilr Sirius ou do entendimento divino — que é sempuniu < l r vista. Uma eidétique da linguagem, uma gra-Í M . Í / / Í - Í I pura como a que Husserl esboçava no começo deNUM rurrdra — ou então uma lógica que só conserva das

cões as propriedades de forma que justificamtransformações, são duas maneiras, uma platoni-

, H. outra nominalista, de falar de linguagem sempi i iavras ou pelo menos de tal maneira que a significaçãoiluf» ninais que empregamos, retomada e redefinida, nuncapxrrtlu o que nela pusemos e o que sabemos nela encon-I n i r . Quanto às palavras ou formas que não sofrem por se-íriu assim recompostas, não têm, por definição, nenhumnri iNdo para nós, e o não sentido não causa problemas, aInterrogação não passando da espera de um sim ou deum não que a resolverão, igualmente em enunciado. Que-i i a . - H - então criar um sistema de sigr4fi(ia£fie^...deliBera-ilas que traduzisse as das línguas em tudo p que elas têmilr irrecusável e fosse a invariante à qual só acrescentamconfusões e acaso. É em relação a ele que se poderia me-dir o poder de expressão de cada uma. Enfim o sinal re-tomaria sua pura função de indício, sem nenhuma misturat l r significação. Mas ninguém pensa mais em fazer umalógica da invenção, e aqueles mesmos que acreditam pos-NÍvcl exprimir depois, num algoritmo todo voluntário, osenunciados adquiridos, não pensam, então, que essa puralinguagem esgote a outra, nem suas significações a sua.ora, como colocaríamos em conta do non-sens o que, naslínguas empíricas, excede as definições do algoritmo ou

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as da gramática pura, já que é nesse caos pretendido quevão ser percebidas as relações novas que {oinaiau neces-sário e possível introduzir novos símbolos?

O novo uma vez integrado, e a ordem provisoriamenterestabelecida, não se pode pensar em fazer repousar sobreele mesmo o sistema da lógica e da gramática pura. Sabe-se a partir de então que, sempre na véspera de significar,não significa nada por si mesmo, já que tudo o que exprimeé retirado de uma linguagem de fato e de uma omnitudo rea-litatis, que, por princípio, ele não abraça. O pensamento nãopode ffiçhar-fif snhrp g? panificações ue ele deliberadamentereconheceu, nem fazer delas a medida 3o sentido, nem tra-tar a palavra, e a língua comum, como simples exemplosdela mesma, já que é por elas finalmente, que o algaritmoquer dizer alguma coisa. Há nisso pelo menos uma interro-gação que não passa de uma forma provisória do enuncia-do — e é aquela que o algoritmo endereça infatigavelmen-te ao pensamento de fato. Não há questão particular so-bre o ser à qual não corresponda nele um sim ou não quea termine. M^s a. qiiegtftn fte sa.bef pnrqiip há giiq^pg, ecomo são possíveis esses nãn-seres que não sabem e qne-reriam saber, não poderia encontrar resposta no ser.

A filosofia não é a passagem de um mundo confusoa um universo de significação fechadas. Ela começa aocontrário com a consciência do que rói e faz explodir, mastambém renova e sublima nossas significações adquiridas.Dizer que o pensamento, mestre dele mesmo, manda sem-pre a um pensamento misturado de linguagem, não e di-zer que é alienado, cortado por ele da verdade e da certe-za. É preciso compreendermos que a.linguagem nãn é nmimpedimento para a pnnsoiPTiHg, q^P r>5r. v^, diferençajffira ela entre o ato de se atingir e o ato de se exprimir,e que a linguagem, no estado nascente e vivente, é o gestode retomada e .de recuperação que me reúne a mim mes-mp__como a outrem. É preciso pensarmos~ã^cÕnsT:iêncianos acasos da linguagem e impossível sem seu contrário.

A psicologia primeiro nos faz redescobrir como o eufalo uma operação, relações, uma dimensão que não sãoos do pensamento, no sentido comum do termo. Eu pen-so, isto significa: há um certo lugar chamado eu, on-de fazer e saber que se faz não são diferentes, onde o ser

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com sua revelação a si mesmo, onde entãousão do exterior é concebível. Esse eu não

Min i In / « ( / i / ; o que fala entra num sistema de relaçõesu j | i < . . u | i . i rm e o tornamabertç e. vnlTtt*r6vpl Alguns doen-'PI MI n i i i l n m que se fala em sua cabeça ou em seu corpo,nu i n i . I M i j i n - uni outro lhes fala quando são eles mesmosi|u> n i i i i H h i m ou pelo menos esboçam as palavras. O quei | H < i i | i i p NP pense das relações do doente e do homem•An, p |nrri : ;o que, em seu exercício normal, a palavra se-|M i h- u m . i lal natureza que nossas variações doentias ne-ÍH • i - I . I M I e permaneçam a cada instante possíveis. É-pre-p l n . i i p i p rxista cm seu centro alguma coisa que a tornaN i i H > i | i i i v i ' l dessas alienações. Se dizemos que há no doente

.HPOPS bizarras ou confusas de seu corpo, ou, como set i l / I n , i^rturbações da coenestesia, é só inventar umar i i i i i ludc ou uma palavra em vez de fazer compreendern iiconleeimento, é, como se diz, batizar a dificuldade.M M i . n i i i M melhor, percebemos que as perturbações da coe-«i ' f t / (Ví/u fazem crescer ramificações em toda parte e que .u m . i coenestesia alternada é também uma mudança de VBOMO relacionamento com outrem. Falo e acredito quei i n 1 1 coração fala, falo e acredito que me_ falam, falo _ettrrcdlto que alguém fala em mim Q11 rnpsr™ i"« a^v»™N i i l i l i i o que eu ia dizer antes que o diga — todos esses fe-nómenos frequentemente associados devem ter um centrocomum. Os psicólogos o encontram em nosso relaciona-mcnl.o com outrem. "O doente tem a impressão de ser semfronteira em relação a outrem... O que dá a observação...^ estritamente... a impotência em manter a distinção do«Mv» e do passivo, do eu e de outrem3." Essas perturba-flfiea da palavra fípt-ãn ligaHim g n™a pprtnrhnpãn rin prtS-

prlo corpo e da relação com outrem. Mas como compreen-der esse' Taco? É que o falar e o compreender são os mo-,mentos de um só sistema eu-ou.trernr e aue o portador des-•c sistema não é um eu puro (que só veria nele um cie«eus objetos de pensamento e se colocaria diante), é o eudotado de um corpo, e continuamente ultrapassado pornssc corpo, que as vezes lhe subtrai seus pensamentos pa-ra atribuí-los a si próprio ou para imputá-los a .um outro,l'cia minha linguagem e pelo meu corpo, sou acomodado;i outrem. A própria distância que o sujeito normal colo-

( . Wiillon, Lês Origines dtt Caractere Cíiez l'Enfant, 1934, pp. 135-136.

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ca entre si e outrem, a clara distinção do falar e de ou-vi-lo é uma das modalidades do sistema dos sujeitos en-carnados. A alucinação verbal é uma outra. Se aconteceque o doente acredita que lhe falam, enquanto é ele quefala de fato, o princípio dessa alienação se encontra na si-tuação de qualquer homem: como sujeito encarnado, souexposto a outrem, como aliás putrer" i rnim m^cmn e

me identifico a ele que fala na minha frente. .Faiar e ouvir,ação e percepção só são para mim operações diferentes quan-do reflito, e decomponho as palavras pronunciadas eminfluxos motores ou em momentos de articulação —as palavras ouvidas em sensações e percepções auditivas.Quando falo, não me represento os movimentos a fazer:todo o meu aparelho corporal se reúne para alcançar e di-zer a palavra como minha mão se mobiliza por si mesmapara pegar o que me estendem. Bem mais: não é a pala-vra a dizer que viso, e nem mesmo a frase, é a pessoa, fa-lo com ela segundo o que ela é com uma segurança às ve-zes prodigiosa, uso palavras, com efeitos que ela pode com-preender, ou aos quais ela possa ser sensível e, se pelomenos tenho tato, minha palavra, g a, um só tempn nrgãnde ação e de sensibilidade, essa mão leva olhos à sua ex-tremidade. Quando ouço, não é preciso dizer que tenhoa percepção auditiva dos sons articulados, mas o discursofala em mim; ele me interpela e eu ressoo, ele me envolvee me habita a tal ponto que não sei mais o que é de mime o .que é .dele. Nos dois casos, eu me projeto em outrem, ointroduzo em mim, nossa conversação se parece com aluta dos dois atletas nas duas pontas da única corda. Qeu que fala está instalado em seu corpo e em.sua lin-guagem não como numa prisão, mas ao contrário, comonum aparelho que p transporta magicamente na., perspec-tiva de outrem. "Há. . . na linguagem, uma ação dupla, aque fazemos nós mesmos e a que fazemos fazer ao sóciasrepresentando-o dentro de nós mesmos4." A cada instanteele me lembra que, monstro incomparável no silêncio,.sou, ao contrário, pela palavra, posto em presença de umOutro eU ntfffiftt* qilfi rpr.ria Jiftffo. ip^gntp dP rninhfl Jiry-

guagem e que me sustenta no ser também. Não^ há_jjãla-vra (e finalmente personalidade) a, não sei1 para um euque leva em si esse germe de despersonalização*. Falar e

4. Lagache, Lês Hallucinatioiis Verbales et Ia Parole, P. U. F., 1934,p. 130.

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não supõem «nmente o pensamento, masr aU l u l o iiniis essencial, e como fundamento do próprio pen-ftuiucnln. o poder de,s£ deixar,, desfazer e refazer por umu n i u » nl.ual, vários outros possíveis e presuntivamente porluJu» K a mesma transcendência da palavra que encon-I I M I I H I H em seu uso literário já está presente na lingua-I M - M I comum logo que eu não me contento com a lingua-K I - I M pronta, que é em verdade uma maneira de me calar,n i j i i c falo verdadeiramente a alguém. A linguagem, sim-plr.M desenrolar de imagens, a alucinação verbal, simplesexuberância de centros de imagens, na antiga psicologia,nu nitão entre os que a combatiam, simples produto deum puro poder de pensar, n^jwgppte £ a pulsação de

relações comigo mesmo e com outrem.Mas enfim, a psicologia analisa o homem falante, é

rnlão natural que ela acentue a expressão de nós mesmosnu linguagem. Isto não prova que sua função primeira«cju essa. Se eu qi^ero rnrriv^lcar-me com outrem. é precisoprimeiro qnft pn ^ispnnha Ho nn-in língua f^jp TiníTT"?! nní

nus visíveis para ele e para mim. Essa função primordial* Na margem: A síntese do acoplamento ou de transição — lê socius

Olharnuo é representado, mas representado como representante r*

i—" Como ouvir e falar, primeiro simples modalidade de per-I i l KU"

ccpção e movimento, os ultrapassa: pela estrutura da linguagem,a criação de sinais. Nos dois níveis, o reconhecimento, do pas-sivo pelo ativo e do ativo pelo passivo, do alocutário pelo locutoré projeção, é introjeção. Q. estudo .Jeito por mim do turbilhão dalinguagem, de outrem como me atraindo a um sentido, aplicarseprimeiro ao turbilhão de outrem como me atraindo a eje. Não ésomente que eu seja fixado por outrem, que ela seja o X pelo qualsou visto, tolhido. Ele é o alocutário, ou seja, um zumbido de mimno exterior, meu duplo, meu gémeo, porque tudo o que.faço, façq-ofazer e tudo o que ele faz, me faz fazer. A linguagem é bem fun-dada, como quer Sartre, mas não sobre uma apercepção, fundadasobre o fenómeno do espelho ego — alter ego, ou do eco, ou seja,sobre a generalidade carnal: o que me esquenta o esquenta, sobrea ação mágica do semelhante sobre o semelhante (o sol quente meesquenta) sobre a fusão eu encarnado^—- mundo; esse fundamentonão impede que a linguagem se virediãlêticamente sobre o queo precede e transforma a coexistência com o mundo e com oscorpos como puramente carnal, vital, em coexistência de linguagem.

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é supostamente dada nas análises do psicólogo. Se consi-derássemos a linguagem não mais como um meio de re-lacionamento humano, mas porque exprime coisas, nãomais em seu uso vivo, mas, como o linguista, em toda asua história e como uma realidade exposta diante de nós,as análises do psicólogo, como as reflexões do escritor, po-deriam bem nos aparecer como superficiais ao olhar dessarealidade. É aqui que a ciência nos reserva um de seus pa-radoxos. É ela justamente que nos reconduz mais segu-ramente ao sujeito falante.

Tomemos para texto a famosa página em que Valéryexprime tão bem o que há de opressivo para o homem ré-fletindo na história da linguagem: "O que é a realidade? •*•se interroga o filósofo; e o que é a Uberdade? Ele se coloca'na condição de ignorar a origem a um tempo metafórica,social, estatística desses nomes, cujo deslizar para sentidosindefiníveis vai permitir-lhe a produção em seu espíritodas combinações mais profundas e mais delicadas. Elenão precisa acabar sua interrogação pela simples históriade um vocábulo através das idades, pois o detalhe dos des-prezes, dos empregos figurados, das locuções singularesgraças ao número e às incoerências das quais uma pobrepalavra se torna tão complexa e misteriosa quanto um ser,irrita como um ser uma curiosidade quase ansiosa, furta-se a qualquer análise em termos acabados e, criatura for-tuita das necessidades simples, antigo expediente de co-mércios vulgares e trocas imediatas, eleva-se ao alto des-tino de excitar toda a potência interrogante e todos osrecursos de respostas de um espírito maravilhosamenteatento5."

É bem verdade que a reflexão é primeiro reflexão so-bre as palavras, mas Valéry acredita que as palavras só lcomportam a soma dos contra-sentidos e mal-entendidos 'que as elevaram de seu sentido próprio ao seu sentido fi-gurado, e que a interrogação do homem que reflete ces-saria se ele tomasse conhecimento dos acasos que reuni-ram na mesma palavra significações inconciliáveis. Era ain-da dar demais ao racionalismo. Era ficar no meio do ca-minho na tomada de consciência do acaso. Havia aí, atrásdesse nominalismo, uma extrema confiança no saber, jáque Valéry acreditava pelo menos possível uma história

5. V aríete III, N. R. F., pp. 176-177.

| m lavras capaz de decompor inteiramente seu-sentidon Hin i l imr como falsos problemas os problemas colocadospor H I I I I ambiguidade. Ora, o _paradoxQ. é_.qu_e_a históriai l n ini | ' , i i ; i , se é feita de acasos demais para admitir um de-nrtivi)lvlmcnto Ingir^ nãn produz nada, n,9 entanto, quenfln trilha motivo — que mesmo se cada palavra, segundou dicionário, oferece uma gr a n ri p- diversidade de sentido,vamos direto àquela, q"? convém na fras* Hpt.prTnjnada (e•n alguma coisa subsiste de uma ambiguidade, fazemosil r lu ainda um meio de expressão) e que enfim há sentidotuim nós que herdamos palavras tão gastas e expostas pe-lii história aos deslizamentos semânticos menos previsíveis.Kulainos e compreendemov4ielo menos na primeira abor-

Sfi ficáasCTnnff -ffifllTflrinfc rtsut fiipmifífg|çnfl<?Tnnrtt.pr riP snaliáveis que as palavras

leríamos nem mesmo a ideia de falar, a_ypntade de expres-HIÍO desapareceria. É então porque _ a linguagem não é, noInstante em que funciona, o simples resultado do passadoque arrasta atrás de si, que essa história é o traço visíveldr um poder gue ela não anula. E como no entanto ré-,imnciamos ao fantasma de uma linguagem pura ou deum algoritmo, que concentraria em si o poder expressivo e» emprestaria somente às linguagens históricas, é precisoque encontremos na própria História, em pleiia desordem,o que torna mesmo possível o fenómeno da comunicaçãoc do sentido.

AqúTas aquisições das ciências da linguagem são de-cisivas. Valéry mantinha-se na alternativa do filósofo queacredita alcançar, pelas reflexões, significações puras etropeça nos mal-entendidos acumulados pela historia daspalavras. A psicologia e a linguística estão mostrando pe-lo fato que se pode renunciar à filosofia de caráter perma-nente sem cair no irracionalismo. Saussure mostra admi-ravelmente que se as palavras, e mais geralmente a língua,consideradas através do tempo — ou, como ele diz, segun-do a diacronia —, oferecem de fato o exemplo de todos osdeslizamentos semânticos, não é a história da palavra ouda língua que faz seu sentido atual, e, por exemplo, nãoé a etimologia que me dirá o que significa atualmente Qpensamento. A maioria dos sujeitos falantes ignoram a etimologia — ou melhor, em sua forma popular, ela é ima-ginária, projeta numa história fictícia o sentido atual daspalavras, não explica, supõe. Quaisquer que sejam os aca-

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sos e as confusões através das quais o francês caminhou, ede que se pode, e de que se deve reconstituir o desenrolartitubeante, acontece ainda que falamos e dialogamos, es-se caos é retomado em nossa vontade de nos exprimir ecompreender os que são conosco membros de nossa comu-nidade linguística, da língua, que a faria aparecer, no li-mite, como um caos de acontecimentos, uma linguisticada palavra que deve mostrar em si, a cada momento, umaordem, um sistema, uma tonalidade sem as quais a comu-nicação e a comunidade linguística seriam impossíveis. Ossucessores de Saussure se perguntam mesmo se se podesimplesmente justapor a vida sincrônica e a vida diacrô-nica — e, como afinal cada uma das fases que o estudolongitudinal descreve foi um momento vivo da palavra,tendendo para a comunicação, cada passado um presentevoltado para o futuro, se as exigências expressivas de uminstante sincrônico e a ordem que elas impõem não pu-dessem estender-se num lapso de tempo, definir, pelo me-nos por uma fase da diacronia, um certo sentido das trans-formações prováveis, uma lei de equilíbrio pelo menos pro-visória, até que este equilíbrio, uma vez atingido, implicapor sua vez em novos problemas que empurrarão a línguaem direção a um novo ciclo de desenvolvimento*... Em to-do caso, Saussure tem o imenso mérito de completar ainiciativa que libera a história do historicismo e tornapossível uma nova concepção da razão. Se cada palavra,

,cada forma de uma língua, tomadas separadamente, re-cebem no curso de sua história uma série de significaçõesdiscordantes, não há equívoco na língua total considera-da em cada um de seus momentos. As mutações de cadaaparelho significante, por mais inesperadas que pareçam,se consideradas isoladamente, são solidárias das de todasas outras e isto faz com que o conjunto permaneça meiode uma comunicação. Ajiistória objetiva era — toda histó-ria fica para Saussure — uma análise que decompõe alinguagem e em geral as instituições" é ás sociedades numnúmero infinito de aeascjS. Mas não pode ser nossa únicaaproximação em direção à linguagem. Então a linguagemse tornaria uma prisão, condicionaria mesmo o que se pode

Na margem: Não é preciso que o ponto de vista sincrônico sejainstantâneo. Encadeamento de cada parte da palavra sobre o todo,é preciso que seja também encadeamento de um tempo sobre outro,e eternidade existencial.

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ilt/.rr IL respeito e, sempre suporta no que se diz dela, nãoMCI In rapaz de nenhum esclarecimento. A própria ciênciatln linguagem, envolta em seu estado atual, não obteriai n i n i verdade da linguagem e a história objetiva se des-l i u i i l u a si mesma*. Com Saussure, esse envolvimento daliM| ' .mitfem pela linguagem é justamente o que salva a ra-eliumlidade, porque não é mais comparável ao movimen-to objetivo do observador, que compromete sua observa-Crto dos outros movimentos, atestando ao contrário entrem <]i ie falo e a linguagem com que falo uma afinidadepermanente. Há um eu falo que encerra a dúvida a rés-![M'||,O da linguagem como o eu penso que encerrava a dú-vida universal. Tudo o aue digo da lincmao-pm amas isto não invalida o que digo, revela somente que alinguagem Se tnpa _e_jgp prvmprPPnHp q, <^ rppgma( JstpJjnffS^

tni somente que ela não é objeto, que é susceptível de uman-tomada, que é acessível do interior. E" se consíõTêrasse-nios no presente as línguas do passado, se nos reunísse-mos para retomar o sistema de palavras que elas foramcm cada um dos momentos de sua história, então, atrásdas circunstâncias incontestáveis que as modificaram —t) desgaste das formas, a decadência fonética, o contágiodiis outras falas, as invasões, os usos da Corte, as decisõesda Academia —, reencontraríamos as motivações coeren-tes segundo as quais esses acasos foram incorporados aum sistema de expressão suficiente. A história da lingua-gem conduz ao ceticismo enquanto história objetiva, poiscia faz aparecer cada um de seus momentos como umacontecimento puro e se fecha ela própria no momentoom que se escreve. Mas este presente se revela subitamen-te presença num sistema de expressão, e assim todos osoutros presentes também. Entãn, npcimentes, se desenha a série de sistemas que sempre

.curaram a .expressão. 'A subjetividade inalienável de mi--(nhã palavra me torna capaz de compreender essas sub-,Ijetividades apagadas de que a história objetiva só me dava)traços. Já que falo e depois aprendo, na troca com outrossujeitos falantes, o que é o sentido de uma linguagem, en-tão a própria história da linguagem não é somente uma

Na margem: Saussure mostra a necessidade de haver um interior.da linguagem, um pensamento distinto do material linguístico — e 'no entanto ligado a ele, não lógico.

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série de acontecimentos exteriores um ao outro e exterio-res a nós. A objetividade pura conduzia à dúvida. A cons-ciência radical da subjetividade me faz redescobrir outrassubjetividades, e assim uma verdade do passado linguís-tico. Os acasos foram retomados interiormente por umaintenção de comunicar que os muda em sistema da ex-pressão, eles o são ainda hoje no esforço que faço paracompreender o passado da língua. A história exterior seduplica com uma história interior que, de sincronia emsincronia, dá um sentido comum pelo menos a certos^ciclosde desenvolvimento. O recurso.-à_palavra. àesse subjetivismo metódico anula o absurdismo de. _Va-léry, conclusão inevitável do saber pnquanto.-B£jcongide-rasse a subjetividade só como um resíduo, como um con-

mi «pjn j rin Pvtprinr fl -?"lUÇãP da.s~fln-

vidas a respeito da linguagem não se encontra num re-curso a alguma língua universal que dominaxia a Histó-ria, mas no que Husserl chamará o presente vivo, numa'.palavra, variante de todas as palavras que se disseram an-tes de mim, também modelo para mim do que elas fo-

,ram...^ Resta compreender esse sentido sincrônico da lingua-gem. Isso exige um reviramento de nossos hábitos. Jus-tamente porque falamos, somos levadosj ppn«nr q^P^na.sãs formas de expressão convêm às próprias coisas, e. pro-curamos nas falas estrangeiras o equivalente do que étão bem expresso pela nossa. Mesmo o rigoroso Husserl,colocando, no começo dê sua carreira, os princípios deuma gramática pura, pedia que se fizesse a lista dasformas fundamentais da linguagem, após o que se pode-ria determinar "como o alemão, o latim, o chinês expri-mem a proposição de existência, a proposição cate-górica a premissa hipotética, o plural, as modalida-des do possível, do verossímil, o não, etc." "Não se pode,acrescentava, desinteressar-se da questão de saber se o gra-mático se contentará com suas visões pessoais e pré-cien-tíficas sobre as formas de significação, ou das representa-ções empíricas e confusas que tal gramática histórica lhefornece, a gramática latina por exemplo — ou se ele temsob os olhos o puro sistema das formas numa formula-ção cientificamente determinada e teoricamente coeren-te —, ou seja, a de nossa teoria das formas de significa-

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i .»-»1 " Husserl só esquecia uma coisa, que não basta, parai'hr|',ar à gramática universal, sair da gramática latina,r <|ur n lista que dá das formas de significação possíveisniiTcKu. a marca da linguagem que ele falava.

Parece-nos sempre que os processos de experiência• < i, 111 içados em nossa língua seguem as próprias articulações<|n MT, porque é através dela que aprendemoa.a.viaáJn^e,i|ncTrndo çensar a linguagem, ou seja, reduzi-la à condiçãoi Ir uma coisãs diante do pensamento, continuamos a correri » risco de tomar por uma Intuição do ser da linguagemim processos pelos quais nossa linguagem tenta determi-nar o ser. Mas que dizer quando a ciência da linguagem

que só é em verdade uma experiência da palavra maisvariada, e estendida ao falar dos outros — nos ensina nãofinmcnte que não admite as categorias de nossa língua,mus ainda que são uma expressão retrospectiva e ines-Krncial de nosso próprio poder de falar? Não somente nãoha análise gramatical que descubra elementos comuns atodas as línguas fi pada. lin^m não contem pecessanafgfen-\4i o equivalente dos modos de expressão que se encon-tram nas outras — é a entonação que significa a nega-rão, o duel do grego antigo é confundido em francês como plural, o aspecto russo não tem equivalente em francêsr, em hebreu, a forma que chamamos futuro serve paramarcar o passado nas narrações, enquanto que a formanomeada pretérito pode servir de futuro, o indo-europeunão tinha passivo, infinitivo, o grego moderno ou o búl-garo perderam seu infinitivo7)—, mas ainda não se podenem reduzir a sistema os processos de express_ãp_de umalíngua e, confrontadas com o uso vivo, as significações lé-xicas ou gramaticais não passara nunca de aproximações.Impossível marcar em francês onde acabam os semante-mas ou as palavras, onde começam os simples morfemas:o quidi da língua (j'ai faim, qu'il ãit) começou por serfeito de palavras: não passa, no uso, de um morfema. Opronome e o auxiliar de il a fait começaram por ser se-

6. Logische Untersuchunen II, 4. Untersuchung, Max Niemeyer Ver-iag, 1913, p. 339. Trad. fr. Recherches Logiques, P.U.F., 1959,t. II, pp- 135-136. Husserl devia em seguida retomar sem cessar oproblema das relações da razão e da história, para chegar, em suasúltimas formulações, a uma filosofia que as identifica. (A notainacabada menciona somente a Origem da Geometria.)

7. Vendryès, Lê Langage, Ia Renaissance du Livre, 1921, pp. 106-134.

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mantemas: não têm atualmente outro valor além do au-mento, o sigma e a desinência do aoristo grego. Eu, tu, ele,me, te, o, começaram por ser palavras e o são ainda emalguns casos quando empregados isoladamente (Eu o di-go), mas cada vez que aparecem soldados ao verbo, comoem je dis, tu ais, U dit (pronunciados jedi, tudi, idi),não passam do o final do latim dico, podem ser tratadoscomo uma espécie de flexão do verbo por adiantamento,e não têm mais a dignidade de semantemas. O género daspalavras em francês só tem existência pelo artigo que osustenta: nas palavras que começam por vogal e onde aelisão mascara o género do artigo, o género da própriapalavra torna-se flutuante e pode até mudar. O ativo e opassivo não são na linguá falada essas entidades que osgramáticos definem, e o segundo quase nunca é o inversodo primeiro: nós o vemos invadir a conjugação ativa enela encravar um passado com o verbo ser que dificilmen-te se deixa conduzir ao sentido canónico do passivo. As ca-tegorias do substantivo, do verbo e do adjetivo elas pró-prias pisoteiam umas às outra/"Um sistema morfológicosó compreende sempre um número restrito de categoriasque se impõem e dominam. Mas em cada sistema há sem-pre outros sistemas que se introduzem e se cruzam, re-presentando, ao lado das categorias gramaticais plena-mente expandidas, outras categorias em via,de desapare-cer ou, ao contrário, em fase de formação8'*. Ora, essesfatos de uso podem ser compreendidos de duas maneiras:ou bem se continuará pensando que só se trata aí decontaminações, desordens, acasos inseparáveis da existên-cia no mundo, e se guardará contra qualquer razão daconcepção clássica da expressão, segundo a qual a clarida-de da linguagem vem da pura relação de denotação que sepoderia em princípio estabelecer entre sinais (?) e signffí-caçoes límpias. Mas então se deixará talvez escapar o quefaz o essencial da expressão. Pois, enfim, sem ter feito aanálise ideal de nossa linguagem, e a despeito das dificul-dades que ela encontra, nós nos compreendemos na lin-guagem existente. Não é então ela, no coração do espírito,que funde e torna possível a comunicação. A todo momen-to, sob o sistema da gramática oficial, que atribui a tal si-nal tal significação, vê-se transparecer um outro sistema

8. Ibid., p. 131 (Texto exato da segunda frase: Mas em cada sistemahá sempre mais ou menos outros sistemas...)

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expressivo que traz o primeiro e procede diferentemente(Ido: a expressão, aqui, J3MV.ARtA.nr/lPTigrig, pontiO ppr Jgm-

to, ao exprimido; cada um de seus elementos não se pre-cisa e não recebe a existência linguística a não ser pelo querlc recebe dos outros e pela modulação que imprime a to-dos os outros. É o todo que tem um sentido, não cada parte.A partícula av do grego clássico não é somente intradu-zível em francês, é indefinível mesmo em grego. Trata-secom todos os morfemas (e vimos que o limite do seman-Icma e do morfema é indeciso), não de palavras, mas decoeficientes, de expoentes9 ou ainda de ferramentas lin-guísticas que têm menos uma significação do que umvalor de emprego. Cada um deles não tem poder significan-te que se possa isolar, e no entanto, reunidos na palavra,ou, como se diz, na cadeia verbal, compõem juntos um sen-tido irrecusável. A muridarift ria iinga^gem_não está atrásdela, numa gramática universal que carregãríamò"s~oini-quamente a nós, ela está na frente dela, no que os gestosinfinitesimais de cada pata de mosca no papel, de cada in-flexão vocal, mostram no horizonte como seu sentido. Paraa palavra assim compreendida, a ideia mesmo de umaexpressão consumada é. quimérica.: o que chamamos assimé a comunicação conseguida. Mas ela só o é se aquele queescuta, em vjfe de seguir malha por malha da cadeia ver-bal, retoma por sua conta e ultrapassa ao consumá-la agesticulação linguística do outro.*

Parece-nos que, em francês, rhomme que j'aime ex-prime mais completamente que o inglês the man I love.Mas, nota profundamente Saussure, é porque falamos fran-cês. Parece-nos inteiramente natural dizer: Pierre frappePaul, e que a ação de um sobre o outro está explícita ouexpressa pelo verbo transitivo. Mas é ainda porque fala-mos francês. Essa construção não é por si mais expressivaque uma outra; poderíamos mesmo dizer que é menos, oúnico morfema que indica a relação de Pierre e de Paul, sen-do aqui, como diz Vendryès, um morfema zero.10 The manI love não é menos eloquente para um inglês. "Pelo únicofato de que compreendemos um complexo linguístico ( . . . ) ,

9. Ibid., p. 99.10. Ibid., p. 93.

* Mi margem: A claridade da linguagem é de ordem perceptiva.7T

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esta sequência de termos é a expressão adequada do pen-samento."11 É preciso então que nos desfaçamos do hábitoque temos de subentender o relativo em inglês: é falarfrancês em inglês, não é falar inglês. Nada está subenten-dido na frase inglesa, do momento em que ela é compreen-dida — ou melhor, só há subentendidos numa Ungua qual-quer que ela seja, a própria ideia de uma expressão ade-quada, aquela de um significante que viria cobrir exafa-mente o significado, aquela enfim de uma comunicaçãointegral são inconsistentes.*) Não é depositando todo omeu pensamento em palavras onde os outros viriam beberque comunico com eles, é compondo, com minha gargan-ta, minha voz, minha entonação, e outro tanto com as pa-lavras, as construções que prefiro, o tempo que escolho dar,a cada parte da frase, um enigma tal que ela só comportauma única solução, e que o outro, acompanhando em si-lêncio essa melodia semeada de mudanças de abertura,pontas e quedas, venha a toma-la por sua conta e a dizê-lacomigo, o que é compreender. Vendryès nota com profun-didade: "Para fazer sentir ao leitor o contrário de uma im-pressão dada, não basta grudar uma negação nas palavrasque a traduzem. Pois não se suprime assim a impressãoque queremos evitar: evocamos a imagem acreditando ba-ni-la..." O morfema gramatical não se confunde com oque se poderia chamar o morfema de expressão.12 Há ne-gações que confessam. D sentido está além da letra,.Qj3fin-tido é sempre irónico. No caso em que nos parece que oexpresso foi atingido, direta ou prosaicamente, e que ai hágramática mais do que estilo, é somente porque o gestoé habitual, que a retomada por nós é imediata, e que nãoexige de nós nenhum remanejamento de nossas operaçõescomuns. Os casos em que, ao contrário, precisamos acharna frase do momento a regra de equivalência e substitui-ções que ela admite, na linguagem sua própria chave, e na

11. F. de Saussure, Cours de Linguistique Générale, Payot, p. 197.12. Vendryès, op. cit., pp. 159-160.

* Na margem: Comunicação da ordem do pré-objetivo. A signifi-cação transporte quase sensorial: é um relevo nó universo da lin-guagem. Daí a palavra que é injúria, o bocado inteligível. É pre-ciso compreender cada frase dita não como um percebido, mascomo um gesto que vai tocar um conjunto_cultural. "Daí a relativaindiferença dos sinais um a um: eles não passam de diacríticos."

cadeia verbal seu sentido, são aqueles pelos quais podemoscompreender os fatos mais comuns da linguagem.

Há então uma primeira reflexão, pela qual destaco a.significação dos sinais, mas ela chama uma segunda re-flexão que me faz reencontrar além dessa distinção ofuncionamento efetivo da palavra.

Isso mesmo que chamo significação não me aparececoma pensamento sem nenhuma mistura de linguagema não ser pela virtude da linguagem que me leva para oexpresso; e o que chamo sinal e "reduzido à condição de uminvólucro inanimado, ou de uma manifestação exterior dopensamento, se aproxima tanto quanto quisermos da signi-ficação logo que eu o considere como funcionando na lin-guagem viva. "O alvo (die Meinung) não se encontra foradas palavras, ao lado delas; mas pela palavra (redend) con-sumo constantemente um ato de alvo interno, que se fun-de com as palavras e por assim dizer as anima. O resulta-do dessa animação é que as palavras e todas as palavrasencarnam, por assim dizer, o alvo em si próprios p » ^ar-regam, encarnado nelas, como sentido".13-1 Antes que a lin-'

1 guagem carregue significações que nos mascaram sua ope-. ração tanto quanto a revelam, e que uma vez nascidas pa-\o simplesmente coordenadas a sinais inertes, é pre-

ciso que elasecrete por seu arranjo i n te m n ^ijn fíftrt/) apn-tido originário sobre o qual as significações serão retira-das; é preciso que haja aí um estudo que se coloque sob alinguagem constituída e considere as modulações da pa-lavra, a cadeia verbal como expressivas por si mesmas,14 ecolocar em evidência, aquém de qualquer nomenclatura es-tabelecida, o valor linguístico* imanente aos atos da pala-vra. Aproximamo-nos dessa camada primordial da lingua-gem definindo com Saussure os sinais, não como os repre-sentantes de certas significações, mas como meios de dife-

13. Husserl, Formale und Transzendentale Logik, Niemeyer Verlag,Halle (Saale), 1929, p. 20. O texto de Husserl é o seguinte: "Diese(die Meinung) aber liegt nicht ausserlích neben deu Worten; son-dem redend vollziekem wir fortlaufend ein inneres, sich mit Wor-ten verschmelzendes, sie gleichsam beseelendes Meinem. Der Erfolgdieser Beseelung ist, dass die Worte und die ganzen Reden in sicheine Meinung gleichsam verleiblichen und verleiblicht in sich aisSinn tragen."

14. Esse estudo é a fonologia. •

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renciação da cadeia verbal e da palavra, como "entidadesopositivas, relativas e negativas".15 Uma língua é menosum somatório de sinala (palavras e formas gramaticais e

meio mptinriinn n*nnais uns dos outros, e construir assim um mu^erso %de lin-guagem, do qual dizemos depois — quando é bastante pre-ciso para cristalizar uma intenção significativa e fazê-larenascer em outrem — que exprime um universo jie_jDen-samento, enquanto ele lhe dá existência no mundo e arran-ca sozinho ao "caráter transitivo de fenómenos interioresum pouco de ação renovável e de existência independen-tfillí.6 "Na língua só há diferenças sem termos positivos. Quese tome o significado ou o significante, a língua não com-porta nem ideias nem sons que preexistiriam ao sistemalinguístico, mas somente diferenças conceituais e diferen-ças fônicas saídas desse sistema."17 O francês não é a pala-vra de sol, mais a palavra de sombra, mais a palavra deterra, mais um número indefinido de outras palavras e deformas, cada uma dotada de sentido próprio — é a confi-guração que desenham todas essas palavras e todas essasformas segundo suas regras em emprego de linguageme que apareceria de maneira ofuscante se não soubéssemosainda o que querem dizer, e se nos limitássemos, como acriança, a perceber seu vaivém, sua recorrência, a maneirapela qual se frequentam, se chamam ou se repelem, e cons-tituem juntas uma melodia de um estilo definido. Notamoscom frequência que é impossível, num dado momento, fa-zer o inventário de um vocabulário — mesmo que seja ode uma criança, de um indivíduo ou de uma língua. Serápreciso contar como palavras distintas, aquelas que se for-mam por um processo mecânico a partir da mesma pala-vra de origem? Será preciso contar essa palavra que aindaé compreendida, mas que não é mais empregada, e que estáà margem do uso? Como Q campo visual, o campo linguís-tico de um indivíduo acaba no vago. É que fálãr~n"a"fre'tèr àsua disposição um certo número de sinais, mas possuir alíngua como princípio de distinção, qualquer que seja onúmero de sinais que ela nos permite especificar. Há iín-

15. Saussure, op. cit., p. 171.16. Valéry.17. Saussure, op. cit., p. 172.

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nuas em que não se pode dizer: s'asseoir au soleil18, por-que dispõem de palavras particulares para designar a irra-diação da claridade solar, e reservam a palavra soleilpura o próprio astro. Quer dizer que o valor linguístico des-NII palavra não é definido pela presença ou ausência deoutras palavras ao seu lado. E como se pode dizer a mes-ma coisa destes, parece que a linguagem nunca diz nada.inventa uma gama de gestos que apresentam entre si_$i-jcrenças bastante claras para que a conduta da lingua-{/cm, à medida que se repete, se recorta e se confirma elamesma, nos forneça, de maneira irrecusável, o funciona-mento e os contornos de um universo de sentidos. Bem imais, as palavras, as próprias formas, por uma análiseorientada como esta, aparecem logo como realidades se-gundas, resultados de uma atividade de diferenciações maisoriginária. As sílabas, as letras, os torneamentos e as de-sinências são os sedimentos de uma primeira diferencia-ção que, desta vez, procede sem nenhuma dúvida a rela-ção de sinal à significação, já que é ela que torna possívela distinção mesma dos sinais: os fonemas, verdadeiros fun-damentos da palavra, já que se encontram pela análiseda língua falada e não têm existência oficial nas gramáti-cas e nos dicionários, não querem, por si mesmos, dizernada que se possa designar. Mas, justamente por essa ra-zão, eles representam a forma originária do significar, fa-zem-nos assistir, sob a linguagem constituída, à opera-ção prévia que torna simultaneamente possíveis as signifi-cações e os sinais discretos. Como a própria língua, consti-tuem um sistema, quer dizer, são menos um número finitode utensílios do que uma maneira típica de modular, umpoder inesgotável de diferenciar um gesto linguístico deum outro, e finalmente, à medida que as diferenças sãomais precisas, mais sistemáticas, aparecem em situaçõeselas próprias mais bem articuladas e sugerem sempre maisque tudo isto obedece a uma ordem interna, poder de mos-trar à criança o que era visado pelo adulto.

Talvez se verá melhor como a linguagem significa;i considerando-a no momento em que inventa um meio deexpressão. Sabe-se que em francês o acento está sempre naúltima sílaba, salvo nas palavras que terminam com ume mudo e que em latim o acento está na penúltima sílaba

18. Ibid., p. 167.

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quando ela é longa (amícus), na precedente se a penúlti-ma é breve (anima). O sistema de flexões do latim não po-dia evidentemente subsistir a não ser que as finais perma-necessem perceptíveis. Ora, justamente porque elas nãoeram acentuadas, enfraqueceram. A língua primeiro ten-tou repará-las, enxertando em palavras francesas restos deflexões latinas que permaneceram mais vivas: daí as desi-nências em ons e em ez das duas primeiras pessoas doplural; daí certos particípios passados em u derivadosdas terminações latinas em utus, bastante raras (lu, vu,tenu, rompu).19 Isso não bastou e a decadência continuouem outra parte. Vem um momento em que o que era ruí-na torna-se maqueta, de onde o desaparecimento das finaisdo latim, fato de decadência, é percebido pelos sujeitos fa-lantes como expressões de um princípio novo. Há um mo-mento em que" õ" acento latino, permanecendo na sílaba emque sempre estivera, muda no entanto de lugar pelo desa-parecimento das seguintes. "O lugar do acento mudou semque se tivesse tocado nele."20 O acento sobre a última sí-laba é então mantido com regra já que invadiu até as pa-lavras de empréstimo, que não devendo nada ao latim, ouaté às que só vinham dele pela escrita (facile, cônsul, ti-cket, burgrave).21 Com essa espécie de decisão da língua,tornava-se necessário um sistema que não mais fosse fun-dado sobre a flexão mas sobre o emprego generalizado dapreposição e do artigo. A língua então se apoderou de pa-lavras que eram cheias e esvaziou-as para fazer delas pre-posições (ainsi chez, casa, pendant, vu, excepté, malgré,sauf, plein) ,22 Como compreender esse momento fecundo da'língua, que transforma um acaso em razão e, de uma ma-neira de falar que se apagava, faz repentinamente umanova, mais eficaz, mais expressiva, como o próprio refluxodo mar após uma onda que excita e faz crescer a onda se-1

guinte? O acontecimento é demasiado hesitante para queimaginemos algum espírito da língua ou algum decretodos sujeitos falantes que sejam seu responsável. Mas tam-bém é demasiado sistemático, supõe demasiada conivência

19. Vendryès, op. cit, p. 195.20. Saussure, op. cit., p. 126.21. Ibid., p. 127.22. Vendryès, pp. 195-196.

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rntrc diferentes fatos de detalhe para que o reduzamos àMima das mudanças parciais. O acontecimento tem umInterior, embora não seja a interioridade do conceito. "Ja-muis o sistema á. modificado vdiretamente; nele mesmo eleà imutável, só alguns elementos são alterados sem respeitoA solidariedade que os ijga an todo. É como se um desses |

(planetas que gravitam em volta do Sol mudasse de dimen- /IHIÍO e de peso: esse fato isolado acarretaria consequências/(gerais e deslocaria o equilíbrio de todo o sistema solar."23'Acrescentemos somente que o novo equilíbrio do sistemasolar seria só o resultado das ações exercidas e sofridas porcada uma de suas partes e que poderia ser menos rico deconsequências, menos produtivo e por assim dizer de me-nor qualidade que aquele ao qual sucederia. Ao contrárioos modos de expressão do francês que vêm religar aquelesdo latim têm como efeito restabelecer um poder de expres-são ameaçado. O que sustenta a invenção de um novo siste-.ma de expressão é então o empurrão dos sujeitos falantesque querem fazer-se compreender e que retomam comouma nova maneira de falar os restos gastns HR ntp niif,rffmodo HpjPvprflfiftpn. A língua é toda acaso e toda razão por-que não existe sistema expressivo quft siga um plar\p'e iia \o tefina sua origem em algum dado acidental, mas tam-

bém não há acidente que se torne instrumento linguísticosem que a linguagem tenha insuflado nele o valor de uma >nova maneira de falar, tratando-o como exemplo de umaregra futura que se aplicará a todo um setor de sinais.E nem é mesmo preciso colocar em dois (?) distintos o for-tuito e o racional, como se os homens trouxessem a ordeme os acontecimentos à desordem. A vontade de Qgpressãnela mesma é ambígua e contém um fermento que trabalhapara modifica-la: cada língua, diz por exemplo Vendryès24,é submetida a cada momento às necessidades gémeas econtrárias da expressividade e da uniformidade. Para queuma maneira de falar seja compreendida, é preciso que vápor si, é preciso que seja geralmente admitida; o que supõeenfim que ela tenha seu análogo em outros torneamentosformados sobre o mesmo padrão. Mas é preciso ao mesmotempo que ela não seja habitual ao ponto de se tornar in-

23. Saussure, p. 125.24. Vendryès, p. 192.

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distinta, é preciso que ela atinja ainda aquele que a ouveempregar, e todo o seu poder de expressão vem de que elanão é idêntica às suas concorrentes. Exprimir-se é entãoum empreendimento paradoxal, já Jiue_jaupÕÊ_umu2un3ãjieexpressões aparentadas, já estahfileridas, Incontestadm eque sobre esse fundo a forma empregada se destaque^per-maneça bastante nova para despertar a atenção. É umaoperação que tende à sua própria destruição, já que se su-prime à medida que se credita, e se anula se não se credita.É assim que não se saberia conceber expressão que fosse de-finitiva já que as próprias virtudes que a tornam geral atornam pelo mesmo ato insuficiente. Logo que a palavrapega, logo que ela se torna viva, a língua artificial maisracionada torna-se irregular e se enche de exceções.25 As lín-guas só são tão sensíveis às intervenções da história gerale ao seu próprio gasto porque são secretamente famintas ide mudanças que lhes dêem o meio de se tornarem ex^ ipressivas novamente.^ Há, então, seguramente, um tote-'.rior da linguagem, uma intenção de significar que anima,os acidentes linguísticos e faz da língua, a cada momen-to, um sistema capaz de se recortar e de se confirmar elepjójirào. Mas essa intenção diminui à medida que se con-1

suma; para que seu voto se realize é preciso que não se rea-jlize totalmente, e para que alguma/coisa seja dita é preciso|(que nunca seja dita inteiramente. O poder expressivo^ deum sinal deve-se ao fato de ele integrarjim sTstemaj^co-existir com outros sinais e não porque tenha sido instituí-do por Deus pu pela Natureza para designar uma significa-ção. E mais, mesmo esse sentido linguajar ou esse valor deuso, essa lei eficaz do sistema que fundam a significação,

25. Vendryès, p. 193.

* Na margem: Ponto essencial: não fazer a sincronia instantânea,pois isso faria repousar a totalidade da palavra sobre os poderesabsolutamente transcendentes da consciência. É preciso que hajaaí um fundo nonthétique da língua em seu estado imediatamenteanterior, que acaso e razão se unam, que cada presente seja dife-renciação em relação ao precedente. Nenhum traço do passadolongínquo no presente é demais: há senão consciência desse pas-sado, pelo menos consciência de um passado em geral, de uma típica!'histórica.

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imo NUO primeiro apanhados pelos sujeitos pensantes, sãopruUciidos pelos sujeitos falantes, e só estão presentes nosm-idcntcs históricos que o sugeriram a eles e se tornarãowmplos para os gramáticos, como o caráter de um ho-mrin está presente em seus gestos e em sua escrita antes(Ir qualquer psicologia, ou como a definição geométricado círculo está presente em minha visão de sua fisionomiacircular. A significação dos sinais é Primeiro sua configu-.!ratão nojiso^o estilo de relações inter-humanas que deles«mana; e só a lógica cega e involuntária das coisas perce-bidas, toda suspensa à atividade de nosso f nrpa3 pode-nos'fazer entrpypy ^ Pgpíyit^ pTinnimn qna inwnta, Tin p,OniC5ft j

da língua, um ^QYOjm^" Hp fgp^^sãni' As coisas percebidas" ,riaõ seriam para nós irrecusáveis, presentes em carne eosso, se não fossem inesgotáveis, nunca inteiramente dadas,,não teriam o ar de eternidade que lhe encontramos se nãose oferecessem _a uma inspeção^ que em nenhum tempopode terminar»: Da mesma maneira, a expressão nunca étotalmente expressão, o expresso nunca é totalmente ex-presso, é essencial à linguagem que a lógica de sua cons-trução não seja nunca a das que se podem colocar em con-ceitos, e à verdade de nunca ser possuída, mas somentetransparente através da T5gícá turva de um sistema deexpressão que carregados traços de um outro passado eos germes de um outro futuro.* _/s Compreendamos bem que isso não invalida o fato da

expressão e não prova nada contra a verdade do expresso.Invocando as ciências da linguagem, não nos fechamosnuma psicologia ou uma história da expressão, que só apa-nhassem as manifestações atuais, e seriam cegas para opoder que as torna possíveis, enfim para uma filosofia

* Na margem: Tudo isto f t ó f a z colocar melhor cm evidenciadatranscendência da.. .signif*taç^ fiP* p^acaõ aQ*nguag8in> fcomo aanálise da percepção coloca em evidência a transcendência da coinzem relação aos conteúdos e Abshattungen. A coisa surgiu lá en-quanto acredito apanhá-la numa tal variação da hylè onde ela sóestá em filigrana. Da mesma maneira o pensamento surgiu lá eu-1quanto eu o procuro em tal inflexão da cadeia verba!. Mas o poderde transcendência da palavra e da percepção resulta precisamente^HH sua própria P.r8(UlÍZai5fv A passagem à Bedeutung não é salto'no espiritual. l

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dos-objetoa, do pensamento,*0s progressos da psicologia e da linguística devem-se

justamente a que, revelando o sit^eitoL^aLante e a palavraao presente, elas encontram o meio de ignorar as alter-nativas do atual e do possível, do constituído e do consti-tuinte, dos fatos e condições de possibilidade, do acaso eda razão, da ciência e da filosofia. Sim, quando falo atual-mente, digo bem alguma coisa e é em bom direito que ptfe-tendo tirar coisas ditas e atingir às próprias coisas. É embom direito também que, além de todos os semi-silênciosou todos os subentendidos da palavra, pretendo ter-mefeito entender e coloco uma diferença entre o que foi ditoe o que nunca o foi. Enfim é em bom direito que trabalhopara me expressar* mesmo se está na natureza dos meiosde expressão serem transitórios: agora, peio menos, _ eudisse alguma coisa, e o quase silêncio de_ Mallarmé é ain-da alguma coisa cpe toi expressa. Q que há semprg de he-buloso em cada linguagem,, e que a impede de ser o re-flexo de qualquer língua universal — onde o sitiaTreco-

* Na margem e entre ganchos: Contra Vendryès: nada de limitesda língua, nada de estrutura da língua (já que o sistema ali estásempre misturado a outros sistemas), nada de comparações entreelas, elas exprimem todas tão bem (recusa de valores em Ven-dryès — talvez Saussure). Esses limites e esses valores existem,simplesmente são da ordem do perceptivo: há uma Gestalt dalíngua, há no presente vivo do expresso e do não expresso, hátrabalho a fazer. Enfim, é preciso que a linguagem signifique al-guma coisa e não seja sempre" linguagem sobre linguagem. Masa significação e o sinal são de. ordem perceptiva, não de ordemdo Espírito absoluto. Sim, há uma questão de saber como os pri-meiros sinais se tornaram capazes de sedimentação., e de todo um(?) de cultura, e há uma questão de saber como pensar a consu-mação presuntiva da linguagem na não-linguagem, no pensamen-to. Mas esses dois fatos não passam de outra coisa que é fatomesmo da percepção e da nacionalidade; do logos do mundo es-tético. Pedir uma explicação, é (?) d'obscurum per obscurius.A essa nota se encontra, nas últimas linhas, superposta uma outra'.a^sedimentação: o fato de Stiflang de um sentido que será na-chvollsichivar. A expressividade é temporária. Mas poderemos voltarao presente no/passado. Há retomada de um outro passado pelomeu presente. Cada ato de _p_alavra retgma_lQdas_3< ""*rayjiisl'a-mente se não há limites absolutos entre. 33 língiiac RAHimfjnfggS^ ereativação.

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h i l i l u exatamente o conceito — nãoLa impedi-. no exercirio vivo da palavra, de preencher seu papel de revcluciio,I I I - M I de comportar suas evidências típicas, suas cxpcrlfin-rius de comunicação. Que a linguagem tenha uma signifi-cação metafísica, quer dizer que ela ateste sobre outrasivlii<;õcs e outras propriedades além das que pertencem,m-|íundo a opinião comum, à multiplicidade das coisas danatureza encadeadas por uma casualidade, a experiênciada linguagem viva nos convence suficientemente disso, jáque ela caracteriza como sistema e ordem compreensívelesta mesma palavra que, vista de fora, é um concurso deacontecimentos fortuitos. A esse respeito, é possível queos linguistas não tenham percebidç sempre a que pontosua própria descoberta nos afastava do positivismo. Justa-innnt.p SP as patpgnriag gramatirais rins snns Hás"fprmflfl e

das palavras revelam-se •çbstratáS', porque cada espécie desinais, na língua no presente, só funciona apoiada sobretodas as outras — justamente se nada permite traçar en-tre os dialetos e as línguas ou entre as línguas sucessivasc simultâneas fronteiras precisas, e se cada uma delas sóc "uma realidade em potencial que não chega ao ato26" —,justamente se o que chamamos o parentesco das línguasexprime muito menos analogia de estrutura interna queuma passagem histórica de uma a outra que se encontra,por sorte, atestada, mas poderia não sê-lo sem que o pró-prio exame das línguas ali suprida27 — as dificuldades queencontramos a dar uma fórmula racional de cada língua,a defini-la sem equívoco por uma essência onde suas carac-terísticas encontrariam sua comum razão de ser, e a es-tabelecer entre essas essências claras relações de deriva-ção, longe que elas nos autorizem a pulverizar a língua

26. Vendryès, op. cit., p. 285.27. Ibid., p. 363; "Se só conhecêssemos o francês no estado de língua

falada e sob sua forma atual, e se não ignorássemos por outrolado as outras línguas romanas e o latim, não seria tão fácil provarque o francês é uma língua indo-européia: alguns detalhes de es-trutura como a oposição de U est, ils sont (pron. ilè, ison), ou me-lhor, ainda a forma dos nomes de números ou dos pronomes pes-soais, com alguns fatos de vocabulário como os nomes de paren-tesco, eis tudo o que o francês conserva do indo-europeu. Quemsabe se não encontraríamos razões mais tópicas para ligá-lo aosemítico ou ao ftnnt-ougrien." •

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dos. objetos. do pensamento,*0s progressos da psicologia e da linguística devem-se

justamente a que, revelando o svjsitcLjaLante e a palavraao presente, elas encontram o meio de ignorar as alter-nativas do atual e do possível, do constituído e do consti-tuinte, dos fatos e condições de possibilidade, do acaso eda razão, da ciência e da filosofia. Sim, quando falo atual-mente, digo bem alguma coisa e é em bom direito que jife-tendo tirar coisas ditas e atingir às próprias coisas. É embom direito também que, além de todos os semi-silênciosou todos os subentendidos da palavra, pretendo ter-mefeito entender e coloco uma diferença entre o que foi ditoe o que nunca o foi. Enfim é em bom direito que trabalhopara me, expressar.' mesmo se está na natureza dos meiosde expressão serem transitórios: agora, peio menos, _ eudisse alguma coisa, e o quase silêncio de_ Mallarmé é ain-da alguma "còlsã que íoi expressa. O que há sempre õ£ .ne-buloso_gm cada Impuagam. e que a impede de ser o re-flexo de qualquer língua universal — onde o sínãTreco-

* Na margem e entre ganchos: Contra Vendryès: nada de limitesda língua, nada de estrutura da língua (já que o sistema ali estásempre misturado a outros sistemas), nada de comparações entreelas, elas exprimem todas tão bem (recusa de valores em Ven-dryès — talvez Saussure). Esses limites e esses valores existem,simplesmente são da ordem do perceptivo: há uma Gestalt dalíngua, há no presente vivo do expresso e do não expresso, hátrabalho a fazer. Enfim, é preciso que a linguagem signifique al-guma coisa e não seja sempre" linguagem sobre linguagem. Masa significação e o sinal são de. ordem perceptiva, não de ordemdo Espírito absoluto. Sim, há uma questão de saber como os pri-meiros sinais se tornaram capazes de sedimentação., e de todo ,um(?) de cultura, e há uma questão de saber como pensar a consu-mação presuntiva da linguagem na não-linguagem, no pensamen-to. Mas esses dois fatos não passam de outra coisa que é fatomesmo da percepção e da nacionalidade; do logos do mundo es-tético. Pedir uma explicação, é (?) d'obscurum per obscurius.A essa nota se encontra, nas últimas linhas, superposta uma outra:a sedimentação: o fato de Stiflang de um sentido que será na-chvollsichioar. A expressividade é temporária. Mas poderemos voltarao presente no/passado. Há retomada de um outro passado pelomeu presente. Cada ato de _p_alavra retg_rna_iQdaa,.q« ""tr?s justa-mente se nan há limites flbsnlutps pntre. qs línguas. Rp.Himfir|fggS^ e

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I n l r l i i exalamente o conceito — não a impede, no cxcrrlrio vivo da palavra, de preencher seu papel de revulugiio,nriii ílc comportar suas evidências típicas, suas exporlftn-r laH <Ic comunicação. Que a linguagem tenha uma signifi-rueuo metafísica, quer dizer que ela ateste sobre outrasrelações e outras propriedades além das que pertencem,nei;undo a opinião comum, à multiplicidade das coisas danatureza encadeadas por uma casualidade, a experiênciada linguagem viva nos convence suficientemente disso, jáque ela caracteriza como sistema e ordem compreensívelesta mesma palavra que, vista de fora, é um concurso deacontecimentos fortuitos. A esse respeito, é possível queos linguistas não tenham percebido sempre a que pontosua própria descoberta nos afastava do positivismo. Justa-mente se SL& categorias gramgt-lcg^-s f^ng gnrts, rias _fprjy\flp edas palavras revelam-se ^bstratãfr, porque cada espécie desinais, na língua no presente, só funciona apoiada sobretodas as outras — justamente se nada permite traçar en-tre os dialetos e as línguas ou entre as línguas sucessivasc simultâneas fronteiras precisas, e se cada uma delas sóé "uma realidade em potencial que não chega ao ato26" — ,justamente se o que chamamos o parentesco das línguasexprime muito menos analogia de estrutura interna queuma passagem histórica de uma a outra que se encontra,por sorte, atestada, mas poderia não sê-lo sem que o pró-prio exame das línguas ali suprida27 — as dificuldades queencontramos a dar uma fórmula racional de cada língua,a defini-la sem equívoco por uma essência onde suas carac-terísticas encontrariam sua comum razão de ser, e a es-tabelecer entre essas essências claras relações de deriva-ção, longe que elas nos autorizem a pulverizar a língua

26. Vendryès, op. cit., p. 285.27. Ibid., p. 363: "Se só conhecêssemos o francês no estado de língua

falada e sob sua forma atual, e se não ignorássemos por outrolado as outras línguas romanas e o latim, não seria tão fácil provarque o francês é uma língua indo-européia: alguns detalhes de es-trutura como a oposição de i'/ est, ils sont (pron. ilè, ison), ou me-lhor, ainda a forma dos nomes de números ou dos pronomes pes-soais, com alguns fatos de vocabulário como os nomes de paren-tesco, eís tudo o que o francês conserva do indo-europeu. Quemsabe se não encontraríamos razões mais tópicas para ligá-lo aosemítico ou ao finni-ougrien." .

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numa soma de fatos fortuitamente reunidos e a tratar afunção mesma da linguagem como uma entidade vazia,mostram que num sentido, nessa imensa história onde na-'da acaba ou começa subitamente, nessa proliferação ine-'xaurível das formas aberrantes, no movimento perpétuo •das línguas onde passado, presente e futuro são mistura-dos, nenhum corte rigoroso é possível e que enfim só há, ía rigor, uma só linguagem a vir a ser.28* Se é preciso renun-"ciar à universalidade" àbsírãtãníélinia gramática racionalque dá a essência comum a todas, as linguagens, só é parareencontrar a universalidade concreta de uma linguagem ]que se diferencia de si mesma sem, jamais se renegar, aber-tamente. Porque eu falo presentemente, minha língua nãoé para mim uma soma de fatos, mas só um instrumentopara uma vontade -de expressão total. E porque ela é issopara mim soucapaz de entrar em outros sistemas ãe ex-pressão compreendendo-os primeiro como variantes domeu, depois deixando-me habitar por eles ao ponto depensar o meu como uma variante daqueles. Nem a uni-dade da língua, nem a distinção das línguas, nem seu pa-rentesco não deixam de ser pensáveis, para a linguísticamoderna, uma vez que se renunciou a conceber uma essên-rcia das línguas e da linguagem: shnple^mjejiÍ£_Êla§_sãojiconceber numa dimensão que não é mais aquela, do con-ceito ou da essência, mas da existência. Mesmo se o siste-ma do francês está todo cheio de formas, palavras e sonsque não são mais e de outras que não são ainda o francêscanónico, permanece que o sujeito falante está conscientede uma norma de expressão e muito sensível às formas in-sólitas do falar; permanece que, quando se vai do latim aofrancês, mesmo se não há fronteira que se passa, vem ummomento em que incontestavelmente a fronteira é passa-da. E a comparação das línguas, a estimação objetiva deseu poder de expressão contínua possível, embora cadauma, já que foi falada, tenha até um certo ponto satisfeitoà necessidade de expressão. Embora nenhuma expressãoseja jamais expressão .absoluta — ou sobretudo por essaprópria razão —, há palavras que dizem assim outrasque dizem de outra maneira, há as que dizem mais e ou-

28. Ibid., p. 273.* Na margem, essas duas fórmulas superpostas: universal existencial,

eternidade existencial.

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IniH que dizem menos. Bmhora nSn s» pnaga sonhar comuniu linguagem, que nos abra a significações nuas e quenrnlmma palavra não se apague totalmente diante do sen-UUu cm direção do qual ela faz sinal — ou justamente porittttu razão —, acontece que há, no exercício da linguagem,consciência de dizer alguma coisa, e presunção de um con-wimo da linguagem, de uma palavra que termina. tudo.Simplesmente, a existência distinta dos sistemas da pala-vra e a das significações, que visam é da ordem_dp perce-bido, ou do presente, não da ordem da ideia ou do eterno.Ku não saberia dizer quando precisamente o sol, que se põe,virou de sua claridade branca à sua claridade rosa. Não sa-beria dizer em que momento esta imagem que se desenhasobre a tela mereceria ser chamada um rosto, mas um mo-mento vem em que é um rosto que está lá. Se espero paraacreditar nessa cadeira na minha frente ter verificado quecia satisfaz bem a todos os critérios de uma cadeira real,não acabaria nunca; minha percepção adianta-se ao pen-samento pelos critérios.£ me diz enfim que, *««*« aparên-cias querem dizer: uma .cadeira. Da mesma maneira, em-bora nada seja dito totalmente diante da história univer-sal, há um certo dia em que todos os sinais que me faziamos livros e os outros quiseram dizer isto, e em que os com-preendi. Se eu fosse supor que eles só chamaram minhaatenção sobre a pura significação que eu trazia em mim,e que venho recobrir e como que reabsorver as expressõesaproximadas que me ofereciam, então eu renunciaria acompreender o que é compreender. Eois a potência da lin-guagem não está no tête-à-tête que proporcionaria ao rios-so espírito e^s coisas, nem jihâs no privilégio que teriamrecebido asvprimeirãs palavras de designar os elementosmesmo dojer, como se todo conhecimento a vir e todapalavra ulterior se limitassem a combinar esses elemen-tos. O poder da linguagem não está nem nesse futuro deintelecção para o qual vai, nem nesse passado mítico deonde proviria: está todo inteiro em seu presente na me-dida em que consegue ordenar as pretendidas palavras-chave de maneira a lhes fazer dizer mais que jamais .dis-seram, que se ultrapasse como produto do passado e nosdê assim a ilusão de ultrapassar qualquer palavra e ir aspróprias coisas porque com efeito ultrapassamos toda lin-guagem dada. Nesse momento, alguma coisa está bem ad-!

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quirida de uma vez por todas, fundada para sempre, e po-derá ser transmitida, como os atos de expressão passadoso foram, não porque teríamos assim um pedaço do mundointeligível ou alcançado o pensamento adequado, mas por-que nosso uso presente da linguagem poderá ser retomadoenquanto a mesma linguagem estiver em uso, ou enquan-to os sábios forem capazes de remetê-la ao presente. Essamaravilha que um número finito de sinais, de torneados epalavras possa dar lugar a um número indefinido de em-pregos, ou esta outra e idêntica maravilha que_o sentidolinguístico nos orienta para um além da linguagem, é oprodígio mesmo do falar, e quem quisesse explicá-lo porseu começo ou por seu f i m perderia de vista seu laser.Há bem no exercício presente da palavra retomada de todaa experiência anterior, apelo ao consumo da linguagem,eternidade presuntiva, mas como a coisa percebida, nos dáa experiência de ser mesmo no momento em que ela con-trata na evidência do presente, umae a prfisnngfin f|e um, futuro sem fim que a conteria...

Em suma, o que encontramos, é que os sinais, os mor-femas, as palavras Uma a y-mn não signifinam narta quesó venham a nnnt.pr pignifina.çãn pçr sua reunião. R queenfim a comunicação vai do todo da língua falada ao tododa língua entendida. Falar é a cada momento detalharuma comunicação cujo principio já está cqlpcado. Pergun-tar-sé-á talvez como. Pois, enfim, se o que nos dizem da|história da terra tem fundamento, é preciso que a palavra,tenha começado, e ela recomeça com cada criança. Que a/criança vá ao todo às partes da língua — mesmo se elamesma só emprega, para começar, algumas de suas possi-bilidades —, não é surpreendente, já que o funcionamen-to da palavra adulta se oferece a ela como modelo. Ela aapanha primeiro como conjunto vago e por um movimen-to de vaivém, cada um dos instrumentos de expressão quedele emergem suscita remanejamento do conjunto. Masque dizer da primeira palavra da humanídlicrèTTiira não seapoiava sobre uma língua já' estabelecida; foi bem precisa,se dirá, que ela fosse significante por si mesma. Mas issoseria esquecer que o princípio da comunicação já estavadado antes dela pelo fato de o homem perceber outro ho-mem no mundo, como parte do espetáculo, e que assim

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luUo o que o outro fiu Jú tom u IUUMIUU auiitido do que o queeu Tuço, porque suu uçuu (nu medida em que sou especta-dor) visa aos mesmos objetos com os quais tenho a ver. Aprimeira palavra não se estabeleceu numa inexistência d<>uuuiunicação, porque ela emergia_dasjcomuns e tomava raízes num mundo sensível.que já tinhaccH.sudo de ser mundo privado*) Certo, ela trouxe a essacomunicação primordial e muda tanto é mais do que re-cebia dela. Como todas as instituições, transformou o con-gOncre em homem. Ele inaugurou um novo mundo, e, paranós que estamos dentro e sabemos de que reviramento co-purniciano ela é responsável, é^ legítimo recusar as pers-pcctivas que apresentariam o mundo das instituições e dalinguagem como segundo e .derivado*em roín^" u» t t i i i imnt ia natureza, e de viver mima espéniq de religi^p flç homem.Mo entanto, como todas as religiões, .esta,_só -vive^de^em,-préstimos exteriores. Ela perderia consciência de -si pró.pria se se fechasse em si mesma, e .cessaria de honrar-ahomem se não fnnhpçesse também o silêncio pré-huma-no. A primeira palavra encontrava seu sentido no contextode co"ria*uTâ5,"Ja~còmuTrs; "Como a primeira constituição con-tinuava ultrapassando-a uma história espontânea. Já quenão se pode fazer a economiat_no fi,incinnampnt.o.-da lin-guagem estabelecida, desse movimento pelo qual o auditorou o leitor ultrapassais gestos linguísticos em direção de,seu sentido, o mistério da primeira palavra não é maior)que o mistério de qualquer expressão conseguida. Em umcomo em outro há,iny_asãi) de um espetáculo príva_do porum senso ágil, indiferente às trevas individuais que vemhabitar. Mas esse vazio do sentido preparou-se no total davida individual, como a ebulição na massa de água, desdeque o sentido.poaguloiíàe em coisas. A palavra num senti-do retoma e supera, mas em um sentido conserva e conti-nua a certeza sensível, ela não penetra nunca conipleta-mente o silêncio eterno da subjetividade privada. Agora,ainda, ela continua sob as palavras, não cessa de envolvê-las, e, por pouco que as vozes sejam longínquas ou indistin-tas, ou a linguagem bastante diferente da nossa, pode-mos reencontrar, diante dela, o estupor da primeira tes- jtemunha da primeira palavra.

Na margem: Logos do mundo estético e logos.

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.~~-(me

Não compreendemos mesmo a linguagem a não ser aesse preço. Dizer que nenhum sinal isolado nada significa,e que a linguagem reenvia sempre à linguagem, já que acada momento só alguns sinais são recebidos, é dizer tam-bém que a linguagem exprime tanto pelo. que está entreas palavras como pelas próprias palavras, .e pelo que não3iz como pelo que diz, como o pintor pinta, tanto pelo1

ele traça, pelos brancos que coloca, ou aelás traços de,gmcel que não realizou*. O ato de pintar tem duas ias.es:ha ã mancha de cor ou de fusão que se coloca num ponto datela ou do papel, e há o efeito dessa mancha no conlunCôTsemmedida comum com ela, já que ela não é quase nada e quebasta para mudar um retrato ou uma paisagem. E alguémflue olharia a pintura de muito_ pertor o nariz sobre seupincel^ só veria o inverso~9e i seiT trabajho. QJmrerso é aque-le fino traço negro, o verso é a grande mancha de sol queqle cjrcunsnrpve. A experiência foi feita. Uma câmara re-gistrou em marcha lenta o trabalho de Matisse. A impres-são era prodigiosa, ao ponto do próprio Matisse ficar, con-

/ ta-se, emocionado. O mesmo pincel que, visto a olho nu •/ saltava de uma ação a outra, era visto meditar, num tem-

po dilatado e solene, numa iminência de começo do mun-,^Vjdo, começar dez ações possíveis, executar diante da tela1

como que uma dança preparatória, aflorá-la várias ve-zes até quase tocá-la, e se abater enfim como um raio so-bre o único traçado necessário. Há, bem entendido, algu-ma coisa de artificial nesta análise, e se Matisse acredita-va, com base no filme, que ele verdadeiramente escolheu,naquele dia, entre todos os traçados possíveis, e resolveucomo o Deus de Leibniz num imenso problema de mínimoe máximo**} ele se engana: ele nãq ^ um ^pm^ur^n| ^ umhomem. Não teve, sob o olhar de seu espírito, todos osgestos possíveis, não teve que eliminar todos menos um,riflrròO TQ*5r> a «na fftn^a É a câmara e sua lentidão queexplicitam todos os._passíyeis. Matisse, instalado nurri tem-po e uma visão de homenj) olhou o cbnjujifo.aíuãQ:&f-tual de sua tela eTevutTa maõ pára a região que chamavao pincel para que. o quadro fosse enfim o que ele se tor-nava. Ele resolveu por um gesto simples o problema que,

* Na margem: Analisar — que significa essa referência ao comum, 'à norma? Há aí uma típica de çomunicafião, que é preciso com- ,preender se queremos compreender os Abweichungen.

** Na margem: Mínimo e máximo: definido por que quadro?

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da análise e depois, parece comportar um númeroInf in i to de dados*, como, segundo Bergson, a mão na lima-I h i i do, ferro obtém de uma só vez um arranjo muito com-pllrmlo. Tudo se passou no mundo humano da percepç&oi- do tícsto, e é o artifício da câmara e da marcha lenta quenos dá do acontecimento uma versão fascinante fazendo-nos acreditar que a mão de Matisse passou milagrosamen-te tio mundo físico onde uma infinidade de soluções sãopossíveis, ao mundo da percepção e do gesto onde somen- /Ir algumas o são. No entanto, é verdadfi.aue a mão hesitou,que meditou, é então verdade que houve escolha, que qIraço escolhido'o foi de mangira a gatififpaftr dez condiçõesesparsas sobre o quadro, informuladas, informuláveis paraalguém outro que não fosse Matisse, já que não estavamdefinidas e imposta&.a.não.-S£r-Dela.intencão de fazer ague-Ic quadro que ainda não existia^ É^ a mesma coisa com apalavra verdadeiramente expressiva1— e então com todaa linguagem em sua fase dtTestabelecimento. Ela não es-colheu somente um sinal por uma significação já definida,como se vai procurar um martelo para enfiar um pregoou uma torquês para arrancá-lo. Ela tateia em volta deuma intenção de significar que não dispõe de nenhumtexto para se guiar, que justamente esta escrevendo. E sequeremos*pegar a palavra em sua operação mais limpa, ede maneira a justificá-la plenamente, precisamos evocartodas as que teriam podido tomar seu lugar, e que foramomitidas, sentir como elas teriam, de outra maneira, tocado

* Na margem: Comparar com a análise abaixo do estilo das mi-niaturas. O estilo como generalidade pré-conccitual — generalidadedo pivot que é pré-objetivo, e que faz a realidade do mundo: acoisa está onde eu a toco, não um geometral dos Abschattungen,escapa a Erlebnisanalyse (sua entrada a seu registro é somentenotada em minha história) porque há uma transtemporalidadeque não é a do ideal, mas a do ferimento mais profundo, incurável,

i Esta racionalidade não constituída da coisa-pivô (racionalidade nãoconstituída só é possível se a coisa é não frontal, objeto, mas oque morde em mim e o que mordo por meu corpo, se a coisa é,ela também dada em compreensão indireta, lateral como outrem —'uma tal racionalidade tem a deceníracãQ^sojno fundamento do sen-tido) já é análoga do ato~"3é pintar: resolvemos problemas nãocolocados, i. e., o que fazemos tem mais sentido do que sabemos.É sobre esta instituição primordial do corpo que está fundada todaa elaboração simbólica que, ela também, consiste em entrar diretocom os pés num terreno desconhecido.

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e abalado a cadeia da linguagem, a que ponto esta era. ver-dadeiramente a única possível*! se esta significação deviavir ao mundo... Em suma, é.preciso pnngiHpmrmnq q pa.1q-:

vra antes que ela seja pronunciada, sobre o fundo do silên-1cio que a precede, que jiãqjiára de acompanhá-la, e sem oqual ela não diria nada; mais ainda, precisamos ser sensí- jveis a esses fios de silencio com os quais o tecido da pala- rvra está misturado**? Há, para as expressões já adquiridas, lum sentido direto que corresponde, ponto por ponto, atorneados, formas, palavras instituídas; justamente porqueessas expressões estão adquiridas, as lacunas e o elementode silêncio aí estão obliterados, mas o sentido das expres-;soes em formação não pode, por princípio, ser dessa espé-cie: é um sentido lateral ou oblíquo que resultando comér-cio das próprias palavras (ou das significações disponíveis).É uma maneira nova de sacudir o aparelho da linguagem,ou o de relato, para lhe fazer devolver não se sabe o que,já que justamente o que se diz então nunca foi dito. Sequeremos compreender .a linguagem em sua operação slg^nificante de origem, pr_pnjsamna fingir rmnra ter falado,operar sobre ela uma redução sem a qual el^se esconderiaa nossos olhos reconduzindo-nos ao que significa para nósolhá-la como surdos olham Os que lhes falam, e comparar •a arte da linguagem às outras artes da expressão que nãorecorrem a ela, tentar vê-Ià~~cõmò~ uma dessas afies mudas.Pode acontecer que o sentido da linguagem tenha, sobreo sentido do quadro, alguns privilégios, e que no final dascontas tenhamos que ultrapassar esse paralelo, mas é so-mente tentando que perceberemos o que o torna finalmen-te impossível, e que teremos oportunidade de descobrir omais próprio da linguagem.

* Na margem: noção do lgõjjjx não-surftimento gfljitrárin ex-m-,y hilo ma* aparecimento lãTeTãl de um aparelho de sentido que só

exiba pouco a pouco seu conteúdo.. .** Na margem: não se sabe o que se diz, sabe-se depois de ter dito.

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A Linguagem Indireta

Mesmo se, finalmente, devemos renunciar a tratar apintura como uma linguagem — o que é um dos lugares co-muns de nosso tempo —, e justamente para colocar à pro-va esse lugar comum, é preciso começar por reconhecer queo paralelo é um princípio legítimo. Levando em conta or-ganismos, objetos ou fragmentos de objetos que existempesadamente e o que a cerca, cada um em seu lugar, e no en-tanto percorridos e religados na superfície por uma rede devetores, na espessura por uma fusão de linhas de força, opintor joga os peixes e conserva a rede. Seu olhar se apro-pria das correspondências, das perguntas e das respostas quenão são, no mundo, indicadas a não ser surdamente, e sem-pre flhftfariM ppln Pstnpnr rina nhjpfog el6S OS desinveste, OSliberta e lhes proporciona um corpo mais ágil*. Levandoem conta, por outro lado, as cores e uma tela que fazem par-te do mundo, ele os priva subitamente de sua inerência: atela, as próprias cores, porque foram escolhidas e compos-tas segundo um certo segredo, cessam para nosso olhar decontinuar lá onde estão, fazem um buraco na plenitude domundo, tornam-se como as fontes ou as florestas, o lugar deaparição dos Espíritos, sá^stão lá como o mínimo da ma-téria de que um sentido tinha necessidade para se manifes-tar**. A tarefa da linguagem é semelhante: levando em

* Na margem: Metensomatose da arte. O que é transportado?** Na margem: O imaginário alojado no mundo.

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conta uma experiência que pode ser banal mas se resumepara o escritor num certo sabor muito preciso da vida, le-vando em conta, por outro lado, palavras, formas, tornea-dos, uma sintaxe, e mesmo géneros literários, maneiras decontar que estão, pelo uso, já investidas de uma significa-ção comum, à disposição de cada um, escolher, retinir, ma-

/ nejar, atormentar esses instrumentos de tal maneira que in-/ duzam o mesmo sentimento da vida que habita o escritor\ cada instante, mas exibido a partir de então num mundo

imaginário e no corpo transparente da linguagem. Ê^então,dos dois lados, a mesma transmutação, a mesma migraçãode um sentido esparso na experiência, que deixa a car-ne onde não chegava a se reunir, mobiliza em seu proveitoinstrumentos já investidos, e os emprega de tal maneiraque enfim eles se tornam para ele o próprio. corpo de quetinha necessidade enquanto passa à dignidade da. .signifi-cação expressa. Já que a mesma operação expressiva fun-ciona aqui e lá, é possível considerar a pintura sobre o fun-do da linguagem e a linguagem sobre o fundo da pintura, eé necessário, se queremos subtraí-los ao nosso hábito, à falsaevidência do que vai de si.

Nossa comparação da linguagem e da pintura só épossível graças a uma ideia da expressão criadora que émoderna, e durante séculos os pintores e escritores traba-lharam sem suspeitar seu parentesco. Mas é fato, como odemonstrou André Malraux, que cada um à sua maneira ecada um por sua conta, eles conheceram a mesma aventu-ra. Como a linguagem, a pintura vive primeiro no meio dosagrado exterior. Eles só conhecem seu próprio milagre emenigma, no espelho de uma Potência exterior. A transmuta-ção' que operam do sentido em significação, transformam emhomenagem ao Ser que se acreditam destinados a servir.É preciso dizer não somente que eles se oferecem como meiospara celebrar o sagrado : isso não explicaria que eles se iden-tificam tão universalmente e tão longamente à religião. Épreciso dizer que eles são eles próprios culto e religião, por-que não assumiram seu próprio poder. Enquanto a arte évoltada à cidade e aos seus deuses, enquanto a palavra éconcebida como o simples exercício de uma linguagem deinstituição divina, o prodígio da comunicação entre os ho-mens é projetado para atrás de nós, j\a^f p a ut^f^nra sepja.Tiifpst.g-m nnmn n jntm at.rft-vég rip, nps^jg uma arte C deuma palavra de origens em que tudo está antecipadamente

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. ft < lu t qiir ò predito piirllr puni ilur todo seu sen-tido rccupuruean rn l r r ou modrrnos ilu pintura e da lin-r . i i : i r , r i M por eles mesmo.s. Polo se nós estamos multo longe(Ir conceber a arte e a linguagem como instituições divinasdus quais só deveríamos utilizar, estamos ainda cheios deuma concepção clássica da arte e da linguagem que nãoptussa em suma de uma secularização daquela concepção- - e que mesmo, em vários aspectos, é menos que ela concilie(tom a consciência moderna da expressão. Se a arte é arepresentação de uma natureza que pode no máximo-.em-belezar, mas seguindo as receitas que ela lhe ensina, se,como o queria La Bruyère, nossa palavra só tem como pa-pel reencontrar a expressão justa antecipadamente assina-lada a cada pensamento por uma linguagem das própriascoisas, pode-se bem dizer que o ato de pintar e o ato de es-crever começam a ser autónomos, já que eles não reconhe-cem outro mestre a não ser a verdade ou a natureza; maspor outro lado, destacados do sagrado, quer dizer dó .queultrapassa o homem, ordenados a uma natureza em si ou auma linguagem em si, eles cessam de viver em estado detensão, eles se .destinam a um estado de, perfeição em quea expressão plena"seria atingida e será preciso uma verda-deira reviravolta das ideias recebidas para que elas reencon-trem a consciência de seu inacabamenta, Somos nós mesmossempre tentados a voltar a esse~xacionalismõ7}5 preciso en-tão examiná-lo melhor — com mais insistência talvez do queMalraux o fez.

Tudo mostra, como ele diz, que a pintura clássica naEuropa se concebe como a representação dos objetos e doshomens em seu funcionamento natural.* A. predileção pelapintura a óleo, que permite, melhor que outra, atribuir acada elemento do objeto ou do rosto humano um represen-tante pictural distinto, a procura de sinais que possam, in-corporados aos quadros, dar a ilusão da profundidade ou dovolume pelo jogo das luzes, pela síntese ou pelo claro-escu-ro — a do movimento, a das formas, a dos valores táteis eas diferentes espécies de matéria (que se pense nos estudospacientes que conduziram à sua perfeição a representaçãodo veludo) , esses segredos, esses processos descobertos porum pintor, transmitidos aos outros, aumentados a cada ge-ração, são »« oioTTMmtn? HO nmft tiémira jgrpl de represen-tação que, no máximo, atingiria a própria coisa, o própriohomem, dos quais não se imagina um instante que possam

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conter o acaso ou o vago. Eles evocam um progresso dapintura em direção de um mundo e um homem consuma-dos dos quais se trata, para ela, de igualar o funcionamen-to soberano. Sobre o caminho cujo fim está claramente de-finido, são dados passos sobre os quais não será preciso vol-tar. A carreira de um pintor, as produções de uma-escQla,o próprio desenvolvimento da pintura vão em direção dasobras nas quais se resumem toda uma série de aquisições,em direção das obras-primas onde, enfim, é obtido o queera antes procurado, què;^peio menos provisoriamente, tor-nam inúteis todos os ensaios anteriores e que em todo casomarcam para sempre um certo progresso da pintura... En-fim, a relação do pintor e de seu modelo, tal como se exprimena pintura clássica, supõe também uma certa ideia da co-municação entre o pintor e o espectador de seus quadros.Quando o pintor clássico, diante de sua tela, procura umaexpressão dos objetos e dos seres que guarde toda a rique-za e conserve todas as propriedades, é que ele quer ser tão'convincente quanto as coisas, que ele pensa que só pode

j j àtingir-hos como elas nos atingem: impondo aos nossosY f sentidos um espetáculo irrecusável. Toda a pintura clás-

sica supõe esta..ideia- de -uma comunicação- entre o pin-tor e seu público através da evidência das coisas. O proble-ma moderno de saber como a intenção do pintor renasceránaqueles que olham seus quadros — ele não é nem colocadopela pintura clássica que se volta, para assegurar a comuni-cação, ao aparelho da percepção considerado como meio na-tural de comunicação entre os homens. Nao_tenios todos nósolUos, que funcionam mais ou menos na mesma maneira, e,se o pintor soube descobrir sinais suficientes da. profundida-de ou do veludo, não teremos todos, olhando seu quadro, omesmo espetáculo, dotado da mesma espécie de evidênciaque pertence às coisas percebidas?

No entanto, se a pintura clássica deu-se por objetivo arepresentação da natureza e da natureza humana, fica queesses pintores eram pintores, e que nenhuma pintura vá-lida consistiu jamais em representar simplesmente. Mal-raux indica frequentemente que a concepção moderna dapintura, como expressão Criadora/ foi uma novidade para opúblico muito mais que paRTbs próprios pintores, que sem-pre a praticaram, mesmo se não tinham consciência delae não faziam sua teoria, que, por essa razão mesma, fre-quentemente aateciparamajimtura. que. nós praticamos, e

permanecem os Inlrrrcwtorni» i l f N l u t i H i l i H i I!H h u l » » Mciio à pintura. É prcciao rutilo primai uuu, IM u l l t i Mpara o mundo e no próprio nmnirutii i MI I J H I < HI 'H" ( | |HVMII Ilhe pedir o segredo de uma roprcuuilmjUo «itflcIrUtl»,operavam sem querer essa transformação ou PAIMfose que a pintura em seguida propôs a ai uiuaiuumente como objetivo. Mas então, para definir u pinturaclássica, não basta sem dúvida falar de representações oude natureza, ou de uma referência a nossos sentidos comomeios de comunicação naturais: não é assim que a pinturaclássica nos toca, não é nem mesmo assim que ela tocouseus primeiros espectadores, e precisamos encontrar omeio de ligar nela o elemento e criação e o elemento derepresentação.

Talvez chegássemos a isso examinando mais de pertoum dos meios de representação de que ela mais frequen-temente se orgulhou: a perspectiva, e mostrando que narealidade ele era inteiramente criado. Malraux fala às ve-zes como se os sentidos e os dados dos sentidos, através dosséculos, não tivessem nunca variado, e como se, tanto quan-to a pintura se referia a eles, a perspectiva clássica impunha-se a ela. É certo no entanto que essa perspectiva Tft? é 1inmlei de funcionamento da percepção, que ela provém da or-dem da cultura, que é uma das maneiras inventadas pelohomem de projetar diante dele o mundo percebido, e nãoo decalque desse mundo. Se nós confrontamos as regrascom o mundo da visão espontânea, logo nos aparece que elassão uma interpretação facultativa, embora talvez mais pro-vável que uma outra — não que o inundo percebido des-minta as leis da perspectiva e imponha outras, mas sobre-tudo porque ele não exige nenhuma em particular, e que éde uma outra ordem que não elas. É preciso não se cansarde voltar às belas observações dos psicólogos que mostra-ram que, na percepção livre e espontânea, os objetos es-calonados em profundidade não têm nenhum tamanho app-renBêlàèfinido. Os objetos afastados não são mesmo maioresdo que ensina a perspectiva, a Lua no horizonte não émaior que a moeda que tenho perto de mim, pelo menosdesse tamanho que seria como a medida dos dois objetos:ela é "objeto grande a distância"; o tamanho de que se tra-ta é como o quente ou o frio uma qualidade que adere àLua e que não se pode mais medir por um certo número departes alíquotas da moeda.

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O objeto próximo e o objeto distante não são mais com-paráveis, são um próximo e de uma pequeneza absoluta,o outro distante e de uma grandeza absoluta, e é tudo.Se quero passar disso à perspectiva, é prpcJRn

de olhar livremente o espetáculo inteiro, que feche um olhoe circunscreva minha visão, que marque num objeto que te-nho o que chamo a grandeza aparente da Lua e a da moeda,e que, enfim, eu leve sobre o plano único do papai as co-muns medidas que obteuiio. Mas durante esse tempo omundo percebido desapareceu :•> não posso obter o aennini-nador comum ou a medida comum que permite a projeçãoplana a não ser renunciando à simultaneidade dos objetos.Qnnnrin PM vin f-nm nm sn olhar a. mnPfía P a T,ua. era Pre-

-.- ciso que meu olhar se fixasse num dos dois, e o outro meAparecesse então na margem, objeto-pequeno-visto-de-per-to, ou objeto-grande-visto-de-longe, incomensurável com oprimeiro, e como situado num outro universo. O que euiftvn para n ifflpfl] ppn é pst.a. flftyyjstêneia dos objetns perce-bidnsr sua rivalidade diante de meu olhar. Encontro o meiode arbitrar seu conflito que faz a profundidade. Decido fa-zê-los coabitar num mesmo plano e consigo isso substituin-do ao espetáculo total e coagulando sobre o papel numa sé-rie de visões locais monoculares, das quais nenhuma é super-posável às partes do campo perceptivo vivo. Enquanto ascoisas disputavam meu olhar, e ancorado numa. He1'"-**, eusentia a solicitação que ás outras endereçavam. ao .meuolhar e que as fazia coexistir com a primeira, enquanto euestava a cada instante investido no mundo' das"cõis'ás è"in-vadido por um horizonte de coisas a ver, incompatíveis com

*t aquela que eu via atualmente, mas por aí mesmo simultâ-- neas com ela, construo uma representação em que cada uma

^ cessa, de exigir para si toda a visão, feita de concessões àsoutras e consente a só ocupar no papel o espaço que lhe édeixado por elas. Enquanto meu olhar percorrendo livre-mente a profundidade, a altura e o comprimento não se sub-metia a nenhum ponto de vista, porque os adotava e osrejeitava todos vez por vez, renuncio a essa ubiquidadee convenho só fazer, figurar em meu desenho o que poderiaser visto de um certo ponto de observação por um olho imó-vel fixado sobre um certo ponto de fuga, de uma certalinha de horizonte escolhida de uma vez pôr" todas. En-quanto eu tinha a experiência de um mundo de coisas, for-migantes, exclusivas, das quais cada uma chama o olhar e

ipir .só seria iihriu;iulii mediante um percurso temporal ondenic lu ganho e, uo meamu U-mpo porcld, ols que esse mundoiTl.-itiiHxa numa perspoctivu urduuádu onde os longínquos sen-iigmim a só longínquos, inacessíveis e vagos como convém,onde os objetos próximos abandonando algo de sua agres-.-ilvldade, ordenam suas linhas interiores segundo a lei co-mum do espetáculo, e se preparam já para se tornar lon-l-.ínquos, quando for preciso, onde nada em suma engate oolhar e faça figura de presente. Todo o quadro está no pás- ,.•indo, no mundo do completo ou da eternidade; tudo tomaum ar de decência e de discreção; as coisas não me intèr-pt-lam e não sou comprometido por elas. E se acrescento ariisc artifício da perspectiva geometria o da perspectivaaérea, como o fazem em particular tantos quadros venezia-nos, sente-se a que ponto aquele que pinta a paisagem eaquele que olha o quadro são superiores ao mundo, como odominam, como o abraçam com o olhar. A perspectiva émuito mais HA n» i^ sgrftflo técnico para representaruma realidade que se daria a todos os homens dessa ma-neira: ela é a realização mesma e a invenção de um mundodominado, possuído de parte em parte, num sistema instan-tâneo, cujo olhar espontâneo nos oferece no máximo o es-boço, quando tenta vãmente conter juntas todas as coisasdas quais cada uma o exige por inteiro. A perspectiva geo-métrica não é mais a única maneira de ver o mundo sensí-vel como o retrato clássico não é a única maneira de ver ohomem. Esses rostos, sempre a serviço de um caráter, deuma paixão ou de um humor — sempre significantes — su-põem a mesma relação do homem com o mundo que se lêna paisagem clássica, a relação do adulto seguro de si como mundo que domina. A expressão da infância da -pintoraclássica quase ™"Hfía é a ria, ir^nria p^^ «i própria e foiqual ela vive. É o olhar pensativo que admiramos às vezesnos bebés ou nos animais porque_Jaz.p,rPns HPIPS n emblemade uma meditação de affuTToTquando não passa da ignorân-cia de nosso "mundo. A pintura clássica, antes de ser e paraser representação de uma realidade e estudo do objeto, deveser primeiro metamorfose do mundo percebido num universoperemptório e racional, e do homem empírico^confuso eincerto, em caráter identificável.

Importa compreender a pintura clássica como umacriação, "te isto, no próprio momento em que quer ser repre-sentação de uma realidade. Dessa colocação em perspectiva

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depende a ideia que se fará da pintura &Qdernjfc> Enquantose acredita que a objetividade dos clássicos é"justificada pelofuncionamento natural de nossos sentidos e fundada sobrea evidência da percepção, qualquer outra tentativa só podeser considerada se romper .com a objetividade e com a per-cepção, voltar-se para o indivíduo e fazer da pintura umacerimónia em sua honra. Há só um tema em pintura, que éo próprio pintor1. Não é mais o aveludado dos pêssegos quese procura, como Chardin, é, como Braque, o aveludado doquadro. Enquanto os clássicos eram eles mesmos sem que-rer, os pintores modernos procuram primeiro ser originaise seu poder de expressão se confunde com sua diferença in-dividual2. Já que a pintura não é mais para a fé oupara a beleza, ela é para o indivíduo3, ela é a anexa-ção do mundo pelo indivíduo4. O artista será então "da fa-mília do ambicioso, do drogado5", voltado como eles a umúnico prazer teimoso e monótono, prazer de si mesmo e pra-zer do si mais individual, o menos cultivado, prazer do de-mónio, de tudo o que, no homem, destrói o homem... Mal-raux sabe, no entanto, que a pintura moderna não é só issoe que estaríamos maT^aplicando a Cézanne ou a Klee porexemplo essa definição. Sim, pintores modernos entregamcomo quadros esboços que os clássicos guardavam para si,mesmo quando eram mais eloquentes que seus quadros, eprocuravam traduzir na linguagem toda explícita de umaobra acabada. Sim, em alguns modernos, o quadro nãopassa da assinatura, a marca de um momento de vida, cedepara ser visto em exposição, na série de obras sucessivas,enquanto que o quadro clássico se bastava e se oferecia àcontemplaçãp. Mas a tolerância do inacabado pode quererdizer duas coisas: ou bem de fato que se renuncia à obra enão se pretende mais do que a expressão imediata do ins-tante, do sentido e do indivíduo — à expressão 'bruta, comodiz ainda Malraux — ou que o acabamento, a apresentaçãoobjetiva e convincente para os sentidos, não é mais conside-

1. O Museu Imaginário, a Psicologia da Arte, Skira, p. 59. (Todas ascitações de Malraux foram tiradas dessa edição; não foi possível com-pará-los à edição Gallimard de Voix du Silence, já que os dois textospublicados pelo escritor são sensivelmente diferentes.)

2. Ibid., p. 79.3. Ibid., p. 83.4. La Monnaie de FAbsolu, p. 118.5. La Création artistique, p. 144.

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rada como necessária nem mesmo como suficiente; e que seencontrou alhures o sinal próprio da obra consumada. Bau-dclaire escreveu, o que Malraux lembra, "que uma obra fei-ta não era necessariamente acabada e uma obra acabadanão necessariamente feita6." "Sublinhemos as últimas pala-vras, e compreenderemos que os modernos, pelo menos osmelhores e mais preciosos, não procuram o inacabado peloInacabado, que colocam acima de tudo o momento em quea obra está feita, esse momento, precoce ou tardio, em queo espectador é atingido pelo quadro, retoma misteriosa-mente por sua conta o sentido do gesto que o criou e, sal-tando os intermediários^sein-outraguia anão serjimjmo-vimento da linha inventada, um traço do pintor quase des-provido de matéria, alcança o mundo silencioso do pintor,a partir de então proferido e acessível. Há a improvisaçãodos pintores-crianças, que não aprenderam seu próprio ges-to; eles se deixam possuir e dissolver pelo instante, e sobúnico prazer teimoso e monótono, prazer de si mesmo epretexto que um pintor é uma mão, pensam que basta teruma mão para pintar. Tiram de seu corpo prodígios me-nores como um jovem moroso pode sempre tirar do seu,bastando que o observe com complascência suficiente, al-guma pequena estranheza boa para alimentar sua religiãode si mesmo ou da psicanálise. Mas frfi tambén a improvi-sação daquele que, virado para o mundo, uma obra fazendoa curta escala à outra, acaba por se constituir um órgão deexpressão e como uma voz aprendida que é rnqls sua queseu ^ritojagjnrigens. Há a improvisação da escritura auto-mática e há aquela de La Chartreuse de Parme. Uma dasgrandezas do pensamento e da arte moderna é ter desfeitoos falsos laços que uniam a obra válida e a obra acabada. Jáque a própria percepção nunca é acabada., já que não nosdá um mundo a exprimir e a pensar a não ser através dasperspectivas parciais que invade de todos os lados, que suainenarrável evidência não é daquelas que possuímos, e queenfim só se anuncia também por sinais fulminantes comopode sê-lo uma palavra, a permissão de não acabar não énecessariamente preferência dada ao indivíduo sobre ó mun-do, ao não-significante sobre o significante, fia pode sertambém o reconhecimento de uma maneira de comunicarque não passa pela evidência objetiva, de uma significaçãoque não visa a um objeto já dado, mas o constitui e o inau-

6. Lê Musée Imaginaire, p, 63.

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gura, e que só é prosaica porque desperta e reconvoca porinteiro nosso poder de exprimir e nosso poder de compreen-der. A pintura moderna nos coloca todo um outro problemaque não é o da volta ao indivíduo: trata-se de saber como sepode comunicar sem o socorro de uma natureza preestabe-lecida e sobre a qual nossos sentidos se abririam a todos,como pode haver aí uma comunicação antes da comunjca-ção e enfim uma razão antes da razão.

Sobre esse ponto, Malraux, em certos trechos de seu li-vro, ultrapassa seus enunciados contestáveis sobre o indi-vidualismo da pintura moderna, e vai mais longe do quejamais se esteve, desde que Husserl mtroduziu^na.ra traduzirnossa relação original ao mundo. _a noção deÇesfí^ Ç) que opintor procura colocar num quadro, não e o seu imediato,a própria nuança do sentir, é seu ,estilo7 e tem tanto a con-quistar sqbre_seus_DrónrÍQS,£nBaios^. snhrp n SR^ Hp.rift, copiosobre a pintura dos outros ou sobre o mundo. Quanto tempo,diz Malraux, antes que o escritor tenha aprendido a falarcom sua própria voz. Da mesma maneira, quanto tempo an-tes que o pintor que não tem, como o historiador da pintu-ra, a obra exibida a sua visão, mas a faz, reconheça, afoga-do em seus primeiros quadros, os lineamentos do que será,mas somente se ele não se engana sobre si mesmo, sua obrafeita... Para dizer a verdade, não é mesmo neles que ele sediscerne a si próprio. O pintor não é mais capaz de ver seusquadros do que o escritor de se ler. Essas telas pintadas,esses livros, têm com o horizonte e o fundo de sua própriavida uma semelhança demasiado imediat.a para que ume outro possam experimentar em todo o seu relevo o fe-nómeno da expressão. É preciso outros fluxos interiorespara que a virtude das obras expltfda_suscitando nelas signi-ficações de que não eram..capazes. É mesmo neles somente ,

/ que as significações são significações: para p escritor ou para \ o pintor, só há a ajusãn dn açu an qe.v, familiaridade do ron-

1 ronar pessoal pomposamente chamado monologo interior,'não menos enganador que o que temos com nosso corjxTou,como dizia Malraux justamente em A Condição Humana,que nossa voz ."ouvida pela garganta"... O pintor faz seu_rasto, mas, salvo quanto se trata de oDras já antigas e ondeele se diverte em reencontrar o que depois se tornou, elenão gosta tanto de olhá-lo: ele tem melhor através de sij^para ele tudo está sempre no presente, o fraco acento desuas primeiras obras é eminentemente contido na lingua-

r- IN . [ < • ,'iiiit iimlurlilmln, muni u uKMMifhlH HiltillillNHM, H H[tilo (Ir rn.Ho purll i-i i lni i-ni <pi i i l ip i i>i UUUIMK|||M MHIt<IHll*ft• l» Mi-m ;ic voltar puni MUin piliiirliun uUliU, D pcln llllll n l M i Ir I r i V l l l CUÍISUIUUUO CCTUltt OpClUCQua I ' J I U J L ' M 1 V I U . "mrrilor (; o pintor são dutudos cuniu de nuvua úruAnn o imp r i i n u - n U i i n , nessa nova condição que se Uurum, u tixn-.vin-iln que está a_diz?r sobre seus poderes extraordinários, sãorupn/r:; — a menos que um misterioso esgotamento inter--vmhii, dos quais a história oferece exemplos — de ir no:Mínimo sentido mais longe, comqjse se alimentassem de,íiiiu .substância, crescessem com seus dons, como se cadapiisso feito exigisse e tornasse, possível um outro passo,-niino se, enfim, cada expressão conseguida prescrevesse" ao-autómato espiritual uma outra tarefa ou ainda fundasse1uma instituição da qual ele não terminaria de verificar oexercício. Assim, esse esquema interior que se realiza,M-mpre mais imperiosamente nos quadros, ao ponto da fa-mosa cadeira tornar-se para nós "um brutal ideograma dopróprio nome de Van Gogh7", para Van Gogh não está es-:bocado em suas primeiras obras, não é mais legível no que.chamamos sua vida interior, pois então Van Gogh não te- ,ria precisado de quadros para se alcançar, e cessaria de*pintaL Ele é essa vifla na mpHiHn Pm rpip pia $a1 de sua.inerênciaTe de seU silêncio} que sua diferença a mais própria1

pare de gozar A.SÍ mesrna .eJflrnfcsg^gTorde compreender e;de fazerj!nmpreender. de ver e fazer ver^- não então fé-chada em algum laboratório privado, no âmago do indiví-;duo mudo, mas difuso em seu comércio com o mundo visi-vel, espalhado em tude-o que ele-vê. O estilo é o que torna,possível toda significação. Antes do momento em que ossinais ou emblemas se tornarem em cada um e no próprioartista o simples índice de significações que ali já estão, é,preciso que haja esse momento fecundo em que eles deramforma à experiência, pn^qug um ae.ntÍdQ- que so erate mi mrpTvrp | Pnpnnt.rnn na emlflfimaa qiifi t;c torná-lo manejável para o artista e acessível aosjmiios.Se queremos verdadeiramente compreender a origem da sig-nificação — e, se não o fizermos, não compreenderemos ne-:nhuma criação, nenhuma cultura, retornaremos à suposiçãode um mundo inteligível onde tudo tenha anteriormentesignificado —, é preciso aqui nos privar de Ioda. significa-ção já instituída, e voltar à situação de partida de um mun-

t7. O Museu Imaginário, pp. 79-80. '

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do não-significante que é sempre a do criador, pelo menosã respeito do que justamente ele vai dizer. Meçamos bem oproblema: não há a compreender como significações, ouideias, ou procedimentos dados vão ser aplicados a esseobjeto, que figura imprevista vai tomar o saber nessa cir-cunstância. Há primeiro a compreender como este objeto,esta circunstância se põem a significar, e em que condi-ções. Na medida em que o pintor já pintou, e em que ele éoê""certa maneira mestre de si. inesrno., o que lhe é dadocomo seu estilo, não é um certo número de ideias ou de ti-ques dos quais ele possa fazer o inventário, é um modo deformulação tão reconhecível pelos outros, tão pouco visí-vel para ele mesmo quanto sua silhueta ou seus gestos detodos os dias. Quando então Malraux escreve que o estilo éo "meio de recriar o mundo segundo os valores do homemque o descobre8" ou que ele é a "expressão de uma significa-ção emprestada ao mundo, apelo, e não consequência deuma visão9" ou enfim que ele é "a redução a uma frágilperspectiva humana do mundo eterno que nos arrasta numaderiva de astros segundo seu ritmo misterioso10",, é certoque essas definições não vão ao centro dojenômeno: elasnão sècolocam no momento em que o\esglQ> onera, elas sãoretrospectivas, elas nos indicam certas consequências dele,mas não o essencial. Quando o estilo está no trabalho, o pin-tor não sabe nada da antítese do homem e do mundo, da sig-nificação e do absurdo- lá que o homem e a significação sedesenharam sobre ò fundo do mundo justamente pela opera-cão do estilo. Se esta noção, como acreditamos, merece ocrédito que Malraux lhe abre, é com a condição de que elaseja primeira, e que o estilo então não se possa tomar porobjeto, já que ele ainda não é nada e só se tornará visível naobra. Não podemos dizer seguramente que o estilo seja ummeio de representar, o que seria supor-lhe algum modeloexterior, e supor a pintura feita antes da pintura, mas tam-bém não que a representação do mundo seja "um meio doestilo11", o que seria fazê-lo conhecido anteriormente comoum fim. É preciso vê-lo aparecer ao ponto de contato.dopintor e jo mundo, no fundo de sua percepção de pintor ecomo uma exigência saí3a~3ela. lualraux o mostra numa de

8. A Criação Artística, p. 151.9. Ibid., p. 154.10. Ibid., p. 154.11. Como o diz Malraux em A Criação Artística, p. 158.

N i i i i - i melhorem purtrmxPiiN u |i»iii«m/ftw IA MUUM* Um* n t i lMin que pussa, nuu u p i imui iu jwm niím U n i 1 ' H i i l i t i h t t mil1pnmi , um manequim colorido, um nNiN<lAiMlliJ (<ill Ul IU|*iUM r.spuço, é "uma expressuo individual, lumll inci i ln l , »•Kiinl", é uma^trne^toda inteira presente, cum uuu vluur tinuu fraqueza, no andar ou mesmo no choque do sulto no-bre o chão. É uma maneira única de variar o acento dofier feminino e através dele do ser humano, que compreendorcimo compreendo uma frase, porque ela encontra em mimo nlstema de ressonâncias que lhe convém. Já então a per-cepção estiliza, quer dizer que ela afeta todos os elementosde um corpo ou de uma conduta, de uma certa comum des-vlução em relação a alguma norma familiar que eu possuoem meu íntimo. Mas, se eu não sou pintor, essa mulher quepassa só fala ao meu corpo ou ao meu sentimento da vida.Sc eu o sou, essa.primeira significação vai suscitar umaoutra. Não vou somente retirar sobre minha percepçãovisual e levar para a tela os traços, as cores, os tra-çados, e esses somente, entre os quais se tornará manifes-to o valor sensual ou o valor vital dessa mulher. Minha es-colha e os gestos que ela guia vão ainda se submeter a "umacondição mais restritiva: tudo o que encontrava, compa-rado a^_realobsen)ó^eZ, será... submetido a um princípiode deformação mais secreto, que fará com que, enfim, o queo espectador verá sobre a tela não será mais somente aevocação de uma mulher, npm fle. iiTflq. profissão, nem deuma conduta, nem mesmo de uma concepção da vida(a do modelo ou a do pintor) mas de uma maneira típicade habitar o mundo e tratá-lo, enfim de significá-lo pelorosto co~mo pela roupa, pela carne como pelo espírito. "Todoestilo é a colocação em forma dos elementos do mundo quepermitem orientar este para uma de suas partes essen-ciais12". Há significação logo que submetemos os dados domundo a^uma "aetormaçao" coerente13". Mas de onde vem \e ela nos pareça coerente e que todos os vetores visíveis )

e morais do quadro convirjam para a mesma significação /X? Eles não podem, dissemos, reenviar a nenhuma ordemde significações preestabelecidas.'. É preciso então qutTomundo percebido pêlo homem seja tal que possamos fazernele aparecer, por um certo arranjo de elementos, os em-

12. Citado por Maurice Blanchot, "O Museu, a Arte e o Tempo", iuCritique, n.° 43, dezembro 1950, p. 204.

13. A Criação Artística, p. 152.

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blemas não somente de nossas intgncfifisainda."cnTriõssa reiaçaó mais última cnm nCse/-Jo mundopercebido e talvez mesmo o^doDensamento é feito de talmaneira que não se pode colocãíí;riéfe^o que quer que sejaque não assuma logo sentido nosTSTmos de uma lingua-gem da qual nos tornamos depositários, mas que é tareiatanto quanto herança. Basta que, no pleno das coisas, cuii ir-mos de certos ocos, certas fissuras — e desde que, .yr^emos,nós oTãzemos -- para fazer vir ao mundo aquilo mesmoque lhe é mais estranho: um sentido,)uma incitação irmãaas que nos arrastam para o presente ou o lutunTTO" opassado, para o ser e p não ser... Há estilo (ê daí signifi-cação) desde que há figurai e^funSoâ. uma norma e umdesvio, um alto c um Baixo, _ou seja, desde que céfíõs "ele-mentos do mundo tomam valor de dimensões segundo asquais a partir de então mpriimns tnrin n régio, em relação. .às quais indicamos todo o resto. O estilo é em cada pintro sistema de equivalências que ele se constitui para estaobra de manifestação, o índice geral e concreto da defor-Btg£gg_ coerente pela qual ele concentra a significação ain-da esparsa em sua percepção, e a faz existir expressamente.^ A e^re^sJ^^ictui^re^ojna^e^gP-P^^ a .colocaçãoem forma dó mundo que é começada na percepção, é' dizerque a obra não se faz longe das coisas e em algum labora-tório íntimo, do qual o pintor teria, e só ele, a chave. É di-zer também que ela não é de sua parte um decreto arbi-trário, e que ele se relaciona sempre com seu mundo comose o princípio das equivalências pelas quais vai manifestá-loestivesse ali desde sempre enterrado. Não é preciso aquijque_.os . escritores subestimem o trabalho, o èsntcto do""pin-tor, e sob pretexto que de f ato a pintura_é pintura, e_naopalavra, esqueçam o que há de metódico na procura dopintor. É verdade, seu sistema de equivalências, mal tiradodo espetáculo do mundo, ele investe de novo nas cores, numespaço, sobre uma tela; o sentido impregna o quadro maisque o quadro o exprime, "Esta rasgadura amarela do céuacima do Gólgota . . . é uma angústia feita coisa, uma an-gústia que se tornou rasgadura amarela do céu e que assimfica submerso, empastado pelas qualidades próprias das coi-sas...14" O sentido se entranha no quadro, habita ou ob-seda o quadro, treme à sua_ volta "como iuna bruma de ca-lor15" mais do que e manifestado por ele, fi. gomo "um es-14. J. P. Sartre, Situations II, N. R. F., p. 61.15. Ibid., p. 60.

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!HM;M llll(MINI) P Vi tn. > i f ' l l l | > M ' pillllilii II l l | l < h > l il l l l l l l lui r i l l lc O

i r i i r u I n i t i " ' l nu M r u p i l m l l n < | i i i ' u i i i i l i i i r / n ilu ((mnlmi h r proíbr p x p i i i u i i H! * f n ImpwiNilii P Ulvr* I t n v M f t v H i < nl, i r os p ro í l . sNln i in lM du l l i i | ' . i i u | ' , n i i , nni l i lnrn I l i r n u i|iin nniurontecc ouvindo unia llii^uii r.sinin^rlnt i p i r fuhimoM intilria nos parece sempre monótona, murcadu tlr. «ubor forlrdemais e sempre a mesma, justamente porque ela não 6u nossa e não fizemos dela o instrumento principal de nos-iius relações com o mundo. O sentido do quadro perma-nece cativo para nós, que não nos comunicamos com o mun-do pela pintura. Mas para o pintor — e mesmo para todosos apaixonados da pintura — é bem preciso que ele sejamais que uma bruma de calor na superfície da tela, já quecie é capaz de exigir esta cor ou este objeto de preferênciaa qualquer outro, e que comanda tais arranjos subordina-dos tão imperiosamente quanto uma sintaxe ou uma lógi-ca. .. Claro, o sentido dessa rasgadura amarela do céu,acima do Gólgota, permanece cativo da cor, como o avelu-dado permanece cativo do azul ou a alegria ácida do verdemaçã. Mas todo o quadro não está nisso. Essa angústia ade-rente à cor só é um componente de um sentido total ™e-nos patético, mais durável, mais legível, e que permaneceráem nós quando tivermos_há muito tempo deixado o quadrocom' lãs oinos. Mairaux tem razão de contar a anedota" cfohoteleiro de Cassis que vê Renoir trabalhando diante domar e aproxima-se: "eram mulheres nuas que se lavavamnum outro lugar. Ele olhava não sei o que, e mudava so-mente um cantinho." E Malraux prossegue: "O azul domar tinha-se tornado o do regato das Lavandières. . . Sua_visão era menos uma maneira de olhar o mar do que a se-creta elaboração de um mundo ao qual pertencia aquelaprofundidade de azul que ele retomava à imensidão17". Masjustamente, por que o azul do mar pertencia ao mundo dapintura de Renoir? Como podia ele lhe ensinar algumacoisa a respeito do regato das Lavandières? tf. gn*»mento . do mundo, e especialmente o mar, às vezes crivadode turbilhões, plumas "e vmcos^.QU enTao maciço, espesso^e imóvel em si mesmo, exibe um número ilimitado de iigu-ras do ser, mostra uma certa maneira que tem de respon-der e viErar sob o ataque do olhar, que evoca todas as es-pécies de variantes, e, enfim, ensina, além dele mesmo,

16. Ibid., p. 61.17. A Criação Artística, p. 113.

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uma maneira geral de falar. Pode-se pintar mulheres nuasê um regato de água suave diante do mar em Cassis, por- .que só se pede ao mar a maneira que ele tem de interpre-tar a substância líquida, de manifestá-la e compô-la comela mesma para lhe fazer dizer isto ou aquilo, em suma,uma típica das manifestações da água. Fode-se pintarolhando o mundo porque o estilo que definirá o pintor para /

j os outros, parece-lhe encontrá-lo nas próprias aparências/i (enquanto, bem entendido, elas são aparências suas).

Se, como o exprime ainda Malraux, a pintura ocidentalvariou tão pouco seus assuntos, se, por exemplo, de geraçãoem geração e desde Rembrandt até Soutine, o boi esfoladoreaparece, é que não é necessário, para atingir a pintura,explorar pacientemente todas as coisas, nem mesmo é ruim,para manifestar um estilo, tratar novamente um tema játratado, e que enfim a pintura é um sistema de equivalên-cias e de significações que é mais convincente fazer aflo-rar num objeto familiar ou frequentemente pintado quenum objeto desconhecido, onde elas arriscam se'afundar."Um certo equilíbrio ou desequilíbrio peremptório de corese de linhas transtorna aquele que descobre que a portaentreaberta lá é a de um outro mundo18." Um.QUtro mundo__— entendamos: o mesmo mundo que o pintor vê, e falan-do sua própria linguagem, mas liberado do peso sem npgieque o retém atrás e mantém no equívoco. Como o pintorou o poeta seriam outra coisa a não ser seu encontro com

- o munãp? ue que falariam? De que mesmo a arte abstratafalaria, senão de uma certa maneira de negar ou de recusaro mundo? A austeridade, a obsessão das superfícies ou dasformas geométricas tem ainda um odor de vida, mesmo sese trata de uma vida vergonhosa ou desesperada. A pinturareordena o mundo prosaico e faz, se quisermos,. .um.,nola=.causto de objetos como a poesia faz queimar a linguagemcomum. Mas, quando se trata de obras que amamos reverou reler, a desordem é sempre uma outra ordem, um novosistema de equivalências exige esse transtorno, não qualquer jum, e é em nome de uma relação mais verdadeira entre '

l as coisas que seus laços comuns são desatados.Um poeta, uma vez por todas, recebeu por tarefa tra-

duzir essas palavras, essa voz, esse sotaque, dos quais cadacoisa ou cada circunstância lhe reenvia o eco. Não há mu-danças na linguagem comum diante da qual ele recue pa-ra chegar ao fim de sua tarefa, mas ele não propõe nenhum18. A Criação Artística, p. 142.

que nuu rinju mnt.lviidn l imlnirviM. rrtntwcndo n primeirom:.ninho dr O l,!i»íu. l , i . < ! < < Muh hl-.iur n irr.irrilim KmSCguldil, MTM l{n|'.ii|lnr Mir, u .•il l lr.l l l l l lrnu mio i- i|illlli|liriuma, r l ; i sc funda .solm- o M.- . lmm de rqi i lvulrnr l i iM. mi mrlhor, sobre o princípio de sclcçào e sobre u reuni dr c-xpressão que prescreve esse romance, destinado como oatáa comunicar isto e não aquilo. "O personagem é substituí-do por um outro, como, num quadro, uma janela, clara de-mais para a parede que perfura, é substituída por uma/armação de cachimbos19". A significação comum da janela,da armação de cachimbos, da parede é não negada, já queé sempre do mundo que falamos se queremos ser entendi-dos, mas pelo menos reintegrada a uma significação maisoriginária, mais ampla, sobre a qual é retirada. O aspecto_da parede, da janela, dos cachimbos não vale somente j>araIndicar, além de si mesmos, utensílios a manejar. Ou me-Ihor — pois a percepção é sempre .ação —, a ação, acjui,torna-se gragiè, quer dizer que ela se recusa às abstraçõesdo útil e nEuTéntende sacrificar os meios ao fim, à_aparên-cia à realidade. Tudo conta a partir de então, e o uso dosobjetos menos que sua aptidão a compor junto, até emsua textura íntima, um emblema válido do mundo ao qualsomos confrontados.

Nada de espantoso se essa visão sem viseiras, essa açãosem partipris, descentram e reagrupam os objetos do mun-do ou as palavras. Mas nada também de mais louco queacreditar que basta quebrar a linguagem para escrever LêsIlluminations. Malraux nota profundamente pintores mo-dernos que, "se bem que nenhum falasse de verdade, todos,diante das obras de seus adversários, falavam de impos-tura20". Eles não querem mais falar de verdade na medidaem que a palavra evoca uma adequação entre a coisa e apintura. Mas eles não recusariam sem dúvida falar de ver-dade se se entendesse por ela a coerência de uma pinturaconsigo mesma, a presença nela de ura princípio único queprescreve a cada elemento sua modulação. Os clássicos,cuja arte ia bem além, viviam pelo menos na ilusão repou-sante de uma técnica da pintura que permite aproximar opróprio veludo, o próprio espaço... Qs-mndernos bpm sa-bem que nenhum espetáculo no mundo se impõe totalmenteà percepção, e ainda menos bem uma pintura, e que a ze-bruna imperiosa do pincel pode mais para nósjEazer possuir19. A Criação Artística, p. 147.20. A Moeda do Absoluto, p. 125.

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com o olhar a lã_ou a_carne do que a reconstituirão maispaciente das aparências. Mas o que eles colocaram no lu-gar de uma iiispeçffb do espírito que descobriria a própriatextura das coisas, não é o caos, é a lógica alusiva -do-mun-do. Eles não têm mefíos que os clássicos a intenção de sig-nificar, a ideia de qualquer coisa a dizer, da qual podemosaproximar-nos mais ou menos. Simplesmente "ir mais lon-ge" de Van Gogh no momento em que ele pinta Lês Cor-beaux não indica mais alguma realidade para a qual seriapreciso marchar, mas o que resta a fazer para exprimirmais ainda o encontro e o conflito do olhar com as coisasque solicitam, do corpo com o mundCLque ele habita, da-quele que tem a ser com aquilo que é. Se é aí que a artesignifica, é claro demais que não pode fazê-lo parecendg^secom as coisas ou com os seres do mundo. "Como sempreem arte, mentir para ser verdadeiro", escreve Sartre comrazão. Diz-se que o registro exato da conversação mais bri-lhante dá em seguida a impressão da indigência. Aqui averdade mente. A conversação exatamente reproduzida nãoé mais o que era quando a vivemos: faltam ai a presençados que falavam, todo esse acréscimo de sentidos que dãoos gestos, as fisionomias, que dá sobretudo a evidência deum acontecimento que teve lugar, de uma invenção e deuma improvisação continuadas. A conversação não existemais, não provoca mais de todos os lados ramificações, elaé achatada na única dimensão do sonoro. Em vez de nosconvocar inteiros, só nos toca levemente, pelo ouvido. É_di-zer que, para nos satisfazer como pode fazê-lo, a obra dearte que, ela também, só se endereça comumente a um denossos sentidos, e que em todo caso nunca nos dá o génerode presença que pertence ao vivido, deve ter um poder quefaça dela, não a existência esfriada, mas a existência su-blimada, e mais verdadeira que a verdade. A pintura mo-derna, como em geral o pensamento moderno, nos obrigatotalmente a compreender o que é uma verdade que nãose parece às coisas, que seja sem modelo exterior, sem ins-trumentos de expressão predestinados, e que seja, no en- jtanto, verdade.

Mas, enfim, perguntar-se-á, talvez, se verdadeiramentea pintura era uma linguagem, haveria meio de dar na lin-guagem articulada um equivalente do que ela exprime à sua /maneira. Que diz ela então?

Se enviarmos, como tentamos fazer, o pintor ao contatode seu mundo, talvez encontraremos menos enigmática a

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( |m< iilnivc* ilHn liiniutninm II iiminln MH |iln1,1 Mil, r.SMU que, di-idi- ;irii:i riiniiv* ulu u Iliut til lilinln, n nilliliirm ai mesmo, o esau ouíliii que, u uulll UUÍUUA"* rc iUi l inurrrl.aa obras do puasudu c lhes umincu u n i rro que Hunnunca haviam tido. Quando um escritor olna os pintores,rir liça um pouco na situação em que se encontram osamantes de literatura a respeito do próprio escritor. O que,pensam, eis então o que faz de seu tempo o escritor queHasto tanto? Eis a casa em que ele mora? Eis a mulher comu qual ele partilha sua vida? Eis as pequenas preocupaçõesil« que está cheio? Nós pensamos no escritor a partir daobra como pensamos numa mulher distante a partir dasCircunstâncias, das palavras, das atitudes em que ela se ex-primiu mais puramente. Quando reencontramos a mulherumada ou quando conhecemos o escritor, ficamos tolamentedecepcionados de não reencontrar em cada instante de suapresença aquela essência de diamante, aquela palavra per-feita, que nos habituamos a designar por seu nome. Masaí só se trata de prestígio (às vezes mesmo inveja, ódiosecreto). Q,segundo grau da maturidade é compreender quenão há super-homem. nenhum homem que não tenha 3eviver uma vida de homem, e que o segredo da mulher amada,do escritor e do pintor não está em algum além de suavida empírica, mas tão estreitamente misturado às suasmínimas experiências, tão pudicamente confundido comsua percepção do mundo, que não poderia ser questão dereencontrá-lo à parte, face a face. Lendo a Psicologia daArte, surpreendemo-nos às vezes de ver que Malraux que,como escritor não tem nada a invejar a ninguém, e sabeseguramente disso, o esquece quando se trata dos pintores,vota-lhes o mesmo género de admiração que não aceitariade seus leitores, e os transforma em deuses. "Que génio nãofica fascinado por esta extremidade da pintura, por esseapelo diante do qual o tempo vacila? É o instante da pos-sessão do mundo. Que a pintura não possa ir mais longe,e o velho Hals torna-se deus21". Isto é o^intop visto poroutro. Para ele mesmo, não é nada disso. um

ao trabalho, que reencontra cada manhã, na configuraçãoque as coisas _ ré tomam sob., seus olhos, o mesmo apelo, amesma exigência, a mesma incitação imperiosa à qualnunca acabou de responder. Sua obra não se acaba, elaestá oompro no^utui**. Um dia, a vida foge, o corpo se

21. A Criação Artística, p. 150.

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desfalca. Outra vez, e mais tristemente, é a interrogaçãoesparsa através dos espetáculos do mundo que cessa de sepronunciar. Então o pintor não é mais ou é pintor honorá-rio. Mas enquanto pinta é sempre aberto para as coisas ou,se é ou torna-se cego, sobre esse indivíduo irrecusável quese deu a ele, no primeiro dia de sua vida, como o que erapreciso manifestar. E é porque seu trabalho, obscuro paraele mesmo, é no entanto guiado e orientado. Ele só vê atrama, e só os outros podem ver seu lugar, porque o que lheé implicitamente dado a cada minuto de sua experiêncianão pode ter sob seus olhos o relevo e a configuração im-previsível da vida de outrem. Mas esse encaminhamentodo cego é, no entanto, juncado pelos indícios: jamais ele criano vazio, ex-nihilo. Só se trata de levar mais longe o mesmorasto já esboçado no mundo como ele o vê, em suas obrasprecedentes ou nas do passado, de retomar e generalizaresse acento que tinha aparecido no canto de um quadroanterior, de converter em instituição um costume já insta-lado sem que o próprio pintor possa jamais dizer, porqueisto não tem sentido, o que é dele e o que é das coisas, o queestava em seus precedentes quadros e o que ele ali acres-centa, o que tomou de seus predecessores e o que é seu.A tripla retomaria, pela qual ele continua ultrapassando,conserva destruindo, interpreta deformando, infunde umsentido novo ao que no entanto_çhamava e antecipava essesentido, não é somente metamorfose no sentido dos contosde fadas, milagre ou magia» violência ou agressão, criaçãoabsoluta numa solidão absoluta, é também uma respostaao que o mundo, o passado, as obras anteriores lhe..pediain,consumação, fraternidade. Husserl empregou a bela pala-vra de Stiftung para designar primeiro essa fecundidadeindefinida de cada momento doJiejnno, que justamente por-que ele é singular e que passa, nunca poderá cessar de .tersido ou de ser universalmente — e, mais ainda, a fecundi-dade, derivada daquela, operações de cultura que abrem umatradição, continuam valendo após seu aparecimento histó-rico, e exigem além delas mesmas operações outras e asmesmas. É assim que o mundo desde que ele o viu, suasprimeiras tentativas e todo o passado da pintura, criam parao pintor umajtradicão; quer dizer, diz Husserl, o esqueci-mento das origens, o dever de recomeçar de outra maneirae de dar ao passado, não uma sobrevivência que é a formahipócrita do esquecimento, mas a eficácia da retomada ouda repetição que é a forma nobre da memória.

M n l i n i i K l l i n U l n HM III* I I I|HH I lA li» i l H l l * H l u H I | Hnu rn in iMIn ilu t i M p l i l l n «••«• l>ll|tt»MI|HH AlWHI

Inimigos, Delocrulx n I M ^ I P N , mi niin u pni lm h i n d u I H I M It ihtrrrá o mesmo tempo, ctuirN p f i i l . u t P N i j i i n MH I J I I P I U I Urliis.slcos e são neoclássicos, quer dlxrr <> r iml i iu lu , PNNKNrfd.llus que escapam ao olhar de seu criador c só m- tomamvlHlvcls quando o Museu reúne as obras dispersadas atra-vés da terra, ou quando a fotografia aumenta as miniatu-ras, transforma por seus enquadramentos um pedaço doquadro, transforma em quadros os vitrais, os tapetes e asmoedas, e dá à pintura uma consciência de si própria quec sempre retrospectiva. "... Como se um imaginário espí-rito da arte crescesse de miniatura em quadro, de afrescocm vitral, uma mesma conquista, e repentinamente a aban-donasse por uma outra, paralela ou repentinamente oposta,como se uma torrente subterrânea de história unisse, arras-tando-as, todas essas obras esparsas ( . . . ) . Um estilo conhe-cido em sua evolução e suas metamorfoses torna-se menosuma ideia do que a ilusão de uma fatalidade viva. A repro-dução, e ela só, fez entrar na arte esses Superartistas ima-ginários que tem um confuso nascimento, uma vida, con-quistas, concessões ao gosto da riqueza ou da sedução, umaagonia e uma ressurreição,, e que se chamam estilos**." Se aexpressão é criadora a respeito do que ela metamorfoseia*,

22. O Museu Imaginário, p. 52.* Na margem: 1) A metamorfose (aquela lá ou, em geral, a do pas-

sado pelo presente, do mundo pela pintura, do passado do pintorpor seu presente) não é no entanto mascarada. Ela só é possívelporque o dado era pintura, porque há aí um Logos do mundo sen-sível (e do mundo social e da história humana). — A ilusão ana-lítica de Malraux e o fenómeno de mundo cultural, O único mis-tério está aí: é o do Nachvoltzug, Ele respousa sobre o mistério domundo natural e de seu Logos. O homem ultrapassa o mundo semse dar conta e como naturalmente. — Historicidade torrente sub-terrânea e historicidade interior do homem ao homem e do homemao mundo. Historicidade profana ou prosaica e sagrada. 2) Tudoisto, que é verdade de pintura, o é também de linguagem. (Descar-cartes, Stendhal, nossa unidade com eles.) Contra a ideia de umaação da linguagem que (seja?) verdadeiramente nossa. 3) Reservaa fazer (questão última a remeter à lógica) : a sedimentação da arterecai à medida que ela se faz. Quase isso, devemos verdadeiramentecolocar em suspenso a linguagem significante, para deixar apare-cer a linguagem pura, e a linguagem é pintura como a pinturaé linguagem. Precisamos desfazer-nos da ilusão de ter possuídodizendo.

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e justamente se ela a ultrapassa sempre fazendo-a entrarnuma configuração onde muda de sentido, isso já era ver-dade de atos de expressão anteriores, e mesmo em certamedida de nossa percepção do mundo antes da pintura.Jáque ela projeta no mundo a assinatura de uma civilização,o traço de uma elaboração humana, fossos atos de expres-são ultrapassam seus dados de partida em direção de umaoutra arte. Mas esses próprios dados ultrapassavam tam-bém os atos de expressão anteriores para um futuro que nóssomos, e nesse sentido chamavam a própria metamorfoseque nós lhes impomos. Não se pode mais fazer o inventá-rio de uma pintura — dizer o que está nela e o que não está— como não se pode de um vocabulário, e pela mesma ra-zão: ela não é uma soma de sinais, ela é um novo órgão dacultura humana que torna possível, não um número finitode movimentos, mas um tipo geral de conduta, e que abreum horizonte de investigações. Malraux disse: a metamor-fose pela qual nos reencontramos nos clássicos, que estavamconvencidos de explorar uma reaildade, a pintura, no sen-tido moderno de criação, não é fortuita: o§_ clássicos jáeram pintores no sentido moderno também. Quando o pen-samento ateu faz reviver as obras que se acreditava aserviço de um sagrado ou de um absoluto, sem poder parti-lhar a experiência religiosa à qual elas estavam ligadas, elaos confronta com a interrogação de onde nasceram. Já queachamos retomar nas artes que, historicamente, são ligadasa uma experiência muito estranha à nossa, é porque elas 'têm alguma coisa a nos dizer, é que seus artistas, acredi-tando continuar simplesmente os terrores primitivos ouos da Ásia e do Egito, inauguravam secretamente umaoutra história que é ainda a nossa, e que tornamos presen-tes enquanto os impérios, as tribos, as crenças aos quaispensavam pertencer desapareceram há muito tempo. Se umplano de Georges de La Tour, um fragmento de um quadrode nos fazem pensar na pintura do século XIX,não é certo, que La Tour tenha sido nem Manet, mas éassim mesmo que Latour e eram pintores no mesmosentido que Manet, é que eles pertenciam ao mesmo univer-so*. Malraux mostra com profundidade que o que faz paranós "um Vermeer" não é que a tela pintada um dia tenhacaído das mãos do homem Vermeer, é que ela realiza a"estrutura Vermeer", ou que ela fala a linguagem de Ver-

* Os espaços em branco estão no texto.

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Ml ' ri , ||||«r ill/.CI I | 1 M < .-hl i.Ui'l VII II NlftlHIHt ll l< l>i | i | IVi l lPltr l i t1

|nu llcilliir. i j i i t - fn/ mm t|in< ItiiliiN nu iniuiiHilii* iln i|iini||ii,rumo rrm li|',illluri Nulin* M U I <|lltllll fUlll>N, lllillljl i>«mo e Insubstituível dr.svln. Mivuim m* V C I M I I T I r i i v c l h o c l i t utivesse pintado com pcçiut r pcdn^o-s n tn ( ( i m i l m nrn i miMOnriu, não seria "um verdadeiro Vermcer". K se IKI cnti trArln» fulsário conseguisse retomar não somente a escrita, maso próprio estilo dos grandes Vermeer, ele não seria mais exa-tumente um falsário. Seria um desses pintores que traba-lhavam no atelier dos clássicos e pintavam par eles*. É ver-dude que isso não é possível: para ser capaz de repetir o pró-prio estilo de Vermeer após séculos de outra pintura, e quan-do o próprio problema da pintura mudou de sentido, seriapreciso que o falsário fosse pintor, e então ele não faria"falsos Vermeer", faria, entre dois quadros originais, um"estudo baseado em Vermeer" ou ainda uma "homenagema Vermeer" onde colocaria de si. Resta que, o que o denun-cia como falsário e o torna falsário, não é que seus quadrosse assemelhem aos de Vermeer, é que eles não se parecem obastante. Que o quadro tenha ou não saído das mãos doindivíduo Vermeer que habitava um organismo perecível,a história da pintura não pode nunca sabê-lo, não estálá o que distingue para nós o verdadeiro Vermeer e o falso,não é nem o que os distingue em verdade. Vermeer, porqueera um grande pintor, tornou-se algo como que uma insti-tuição ou uma entidade, e como a história tem por papeldescobrir o sentido do Parlamento sob o Antigo Regimeou sentido da Revolução francesa, como ela deve, para fazê-lo, colocar em perspectiva, designar isto como essencial eaquilo como acessório ou contingente no Parlamento ou naRevolução, assim a história da pintura deve definir atravésda figura empírica das telas ditas de Vermeer, uma essên-cia, uma estrutura, um estilo, um sentido de Vermeer, con-tra o qual não podem prevalecer, se for o caso, os detalhesdiscordantes arrancados ao seu pincel pelo cansaço, a cir-cunstância ou o costume. O fato que o quadro tenha sidosecretamente fabricado por um de nossos contemporâneossó intervém secundariamente, e porque ele impede o quadrode alcançar verdadeiramente o estilo de Vermeer. Não é pre-ciso dizer somente que, por falta de informações, os histo-riadores da pintura não podem julgar da autenticidade anão ser pelo exame do próprio quadro. Isto não é uma im-

* Na margem: quase platonismo.

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perfeição de nosso conhecimento e de nossa história: é aprópria história, quando chega a isso, como é sua tarefa,que deve compreender os fatos. Mesmo em Direito, umcatálogo completo da obra de um advogado não é indis-pensável e não é suficiente para saber o que é verdadeira-mente dele. Pois ele não passa, diante da história, de umacerta palavra dita no diálogo da pintura, e o que podedizer ao acaso não conta, como se lhe deve atribuir, se acoisa é possível, o que outros disseram exatamente comoele o teria dito. Não contra a história empírica, que só éatenta para os acontecimentos, e cega para os conteúdos,mas assim mesmo além dela, uma outra história se escreve,que distingue o que o acontecimento confundia, mas tam-bém aproxima o que separava, que desenha a curva dos es-tilos, suas mutações, suas metamorfoses surpreendentes,mas também e ao mesmo tempo sua fraternidade numa sópintura.

Os primeiros desenhos nas paredes das cavernas defi-niam um campo de pesquisas ilimitado, colocavam o mundocomo que a pintar ou a desenhar, chamavam um futuroindefinido da pintura, e é o que nos toca neles, é o que fazcom que nos falem e que lhes respondamos por metamor-foses em que eles colaboram conosco. Há duas historicida-des, uma, irónica ou mesmo derrisória, cheia de contra-sensos, onde cada tempo luta contra os outros como contraestrangeiros impondo-lhes suas preocupações, suas pers-pectivas. Ela é esquecimento mais que memória, é frag-mentação, ignorância, exterioridade. Mas a outra, sem aqual a primeira seria impossível, é o interesse que nosprende ao que não é nós, a vida que o passado por umatroca contínua encontra em nós e nos traz, é sobretudo a

j vida que continua a levar em cada criador que reanima, re-\a e retoma a cada quadro o empreendimento inteiro) do passado.

A esse respeito a função do Museu, como a da Biblio-teca, não é unicamente benfeitora:""êRmos dá bem o meiode ver junto, como obras, como momentos de um só esforço,produções que se arrastavam através do mundo, enterradasnos cultos ou civilizações de que queriam ser o ornamento.Nesse sentido o Museu funda nossa consciência da pinturacomo pintura. Mas vale mais procurá-lo em cada pinturaque trabalha, pois ela o faz no estado puro, enquanto queo Museu a associa a emoções de menor qualidade. Seriapreciso ir ao Museu como a ele vão os pintores, na alegria

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' I n JljUoju). r min r u i n i i V I I I I I U M IA HHH H i n m l n t i x i , mm numivvcrfincTu i|iui, no ílnul < h i * mmUi, iiUu í\> I m i n u l v l t l »< > Museu nus dá má uuiuu-lftirtii, uniu niimrlOiirl i i iln l i u l i OMA Ideia nos vem de vns em (jiiuiulo qm< PNNIIN ulimn iiÃn furui» afinal feitas para acabar entre CMMUN purcdr» HCVITIIH,//paru o prazer dos que passeiam aos domingos, para aã crl-fui iças em folga escolar, ou dos intelectuais de segunda-feira.Hc»timos vagamente que há desperdício nisso e que esserecolhimento de solteironas, esse silêncio de necrópole, esserespeito de pigmeus não é o verdadeiro meio da arte, jjuetantos esforços, tantas alegrias e penas, tantas cóleras, etantos trabalhos não estavam destinados a refletir umdia a claridade triste do Museu do Louvre... O Mtisentransforma as obras em obras, faz só aparecer os estilos,mas acrescenta também, ao seu verdadeiro valor, um falsoprestígio, destacando-os dos acasos no meio em que nas-ceram, fazendo-nos acreditar que Superartistas, fataltãff-des, guiavam a mão desses artistas desde sempre. En-qnantn qnp n pstiln e*m P f fH f f pínfnr yjyia rnmO a pulsa- \o mais secreta de seu coração, enquanto cada um deles,

enquanto é palavra e estilo, se reencontrava em todas as loutras palavras e todos os outros estilos e ressentia seu es-forço como parente do seu*, Q MIISPII ron verteu assa his-toricidade secreta, pudica, não deliberada, e como involun-tária. èmTusEoria oficial e pomposa: a iminência de umaregressão que tal pintor não suspeitava dá à nossa ami-zade por ele uma nuança patética que lhe era bem estra-nha. Para ela trabalhou alegremente, toda uma vida dehomem, sem pensar que estivesse sobre um vulcão, e nósvemos sua obra como flores à beira do precipício. O Mu-seu torna os pintores tão misteriosos para nós quanto assanguessugas ou as lagostas. Essas obras que nasceramno calor de uma vontade, ele qum outro mundo, è ò sopro que-as levava Jião4iassajjia_cla-ridade pensativa do Museu, sob as vitrinas ou os vidros, deuma jrraca palpitação na superfície... Q MU«RH mata aveemência da pintura como a Biblioteca, dizia Sartrfi,_lrans-forma em' mensagens os escritos que eram os gestos de umhomem. . . Elg_é_a historicidade de jriõrtS. Mas há aí umahtsTqrícidad«rde__vida, da qual ele não passa" da imagemdecaída: é aquela que habita o pintor no trabalho, quandoele ata com um só gesto a tradição que retoma e aquela

Sic.

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\e funda, é aquela que, sem que ele deixe seu lugar, seutempo, seu trabalho abençoa e amaldiçoa, o^reúne de um

' afi£Qlpfi.a. j;udo Q que jamais foi Pintado no mundo. Ajyer-dadeira história da pintura é não a <lue _coloca a pintura

V no passado e invoca os Superarustag ff pg tamiidad.^ ftg^ria aquela que, a rnlnra toda nn prfíspnte, habita os artis-tas e reintegra o pintor à fraternidade dos pintores.

Pintores somente? Mesmo se o hoteleiro de Cassis nãocompreende a transmutação que Renoir opera do azul doMediterrâneo à água das Lavandières, ele quis ver Renoirtrabalhar, isso o interessa também, e nada impede afinalque ele reencontre esse caminho.qUe..ps_habitante3 das ca-vernas abriram um dia sem transição, e que o mundpjvoíteã ser para ele também mundo a pintar. Renoir" teria erradoííeTgunTãnSo ao hoteleiro o que ele gostava, e tentando agra-dá-lo. Nesse sentido, ele não pintava para o hoteleiro. De-finia ele mesmo, por sua pintura, as condições sob as quaisentendia ser aprovado. Mas enfim pintava para que umquadro ficasse lá, visível. É ao mundo, à água do mar, queele tornava a pedir o segredo da água das Lavandières e ocaminho de um a nutro, g] abria para aqueles quer comele, estavam presas no mundo. Como diz Jules Vuillemin,não era questão de falar sua linguagem, mas exprimi-la seexprimindo. A respeito de sua própria vida, o sentimentodo pintor é da mesma ordem: seu estilo não é o estilo desua vida, mas ele a leva, ela também, em direção da ex-pressão^ Compreende-se que Malraux não gosta das expli-cações psicanalíticas em pintura. A explicação nunca vaimuito longe: mesmo se o manto de Santa Ana é um abutre,mesmo se admitimos que, enquanto Vinci o pintava comomanto, um segundo Vinci em Vinci, a cabeça inclinada, odecifrava como abutre, à maneira de um leitor de adivinha-ções (afinal não é impossível: há, na vida de Vinci, um gos-to pela mistificação assustadora que bem podia levá-lo aencaixar seus monstros numa obra de arte) — ninguémfalaria desse abutre se o quadro de Vinci não tivesse umoutro sentido. A explicação só dá conta de detalhes, nomáximo dos materiais de uma obra. Mesmo se o pintorgosta de manejar as cores, o escultor a argila porque ele é.um anal, isso não nos diz sempre o que é pintar ou esculpir23.Mas a atitude oposta, a^deuoção^dosartistas que faz com

23. Também Freud nunca disse que explicava Vinci pelo abutre, e dissequase que a análise parava onde começava a pintura.

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' l ' " ' não MI- qtichM nnl unia ih< Niiit v l i h t , i|t(t< ni|ui|iirnuiN.u;i ( i l i in rutnn Ul|| t l l l l i l |Ur Idlll t||l l l lnlmlu |lllvinlll ml |HI

lillcii, cíowdulmmdi). riu titnihrin miunini NIIII vi>itli i itHi nPois .se Lrommlo í- oiil.ru m i - . i i n lnn dr v l l l i n n

Ur uma infância infeliz, nuo é que rir trnhu um pí- no ulrm,r que, de tudo o que viveu, conseguiu fazer um melo de In-trrprctar o mundo — não é que ele não tivesse tido corpoou visão, é que sua situação corporal ou vital foi consti-tuída por ele em linguagem. Quando passamos da dimen-ftun dos acontecimentos à da expressão, mudamos de ordemmus não mudamos de mundo: os mesmos dados que eramsofridos tornam-se sistema significante. Cavados do inté^rior, privados enfim desse impacto sobre nós que os tor-nava dolorosos, tornados transparentes ou mesmo lumi-nosos, e capazes de iluminar não somente os aspectos doinundo que se parecem com eles, mas ainda outros, elespodem ser metamorfoseados, eles não cessam de estar lá.O conhecimento que se toma disso jamais substituirá a e3?periência da própria obra, mas ajuda a medir a criaçãoestética. Aqui ainda a metamorfose ultrapassa, mas con-servando, e é de cada coisa vivida (às vezes mínima) quesurge a mesma incansável demanda: a demanda de ser ex-primido.

Se então nós nos colocamos no pintor, no momento emque o que lhe foi dado viver de destino corporal, de aven-turas pessoais ou de acontecimentos históricos se organizano ato de pintar, em volta de algumas linhas de força queindicam sua relação fundamental ao mundo,, precisamosreconhecer que sua obra, se não é jamais o efeito disso, ésempre uma resposta a esses dados e que as" paisagens, asEscolas, as amantes, os credores, e mesmo as polícias, as re-voluções que podem confiscar o pintor e perdê-lo para apintura, são também o pão que ele consagrará, o alimentodo qual sua pintura se nutrirá. Assim o pintor cessa de seisolar num laboratório secreto Viver na pintura é aindarespirar esse mundo, e precisamos compreender que o pin-tor e o homem vivem sobre o terreno da cultura tão natu-ralmente quanto SR fosse flarin ppla , 1^73

Precisamos conceber sobre o mundo do natural aspróprias relações que o pintor entretém com a história dapintura. Meditando sobre as miniaturas ou sobre as moe-das em que a ampliação fotográfica revela miraculosa-mente o mesmo estilo que é manifesto nas obras de grandetamanho, e sobre essas obras de arte das Estepes desterra-

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das além dos limites da Europa, longe de qualquer influên-cia, e onde os modernos ficam estupefatos de reencontraro mesmo estilo que uma pintura consciente inventou oureinventou em outro lugar, Malraux não evita a ideia deuma torrente subterrânea de História que reúne os pin-tores mais distantes, de uma Pintura que trabalha atrásdas costas dos pintores, de uma Razão na história de queeles seriam os instrumentos. Esses monstros hegelianosSão a antítese e O nnmpIpmPTitn HP SPII Inrilvlflnalignnn;

qnarídõ^sê fechou a arte do mais"secreto do -indivíduo^aconvergência das obras independentes só se pode explicarpor algum destino que_.as_ .domina. Mas quando, ao contrá-rio, recolocamos o pintor em presença do mundo, como ten-tamos fazer, o que se tornam a Pintura em si ou o Espíritoda .Pintura?

Partamos do fato mais simples — sobre o qual aliás jáfornecemos alguns esclarecimentos. Nós que examinamoscom lupa a medalha ou a miniatura, maravilhamo-nos denelas reencontrar escondido o mesmo estilo que os artistasdeliberadamente impuseram a obras de maior escala. Mas,como dizíamos antes, é simplesmente que a mão leva a todaparte seu estilo, que é indivisa no gesto e não precisa, paramarcar a matéria com seu traço, seguir ponto por ponto ocaminho infinito do buril. Nossa escritura se reconhece,tracemos letras sobre o papel, com três dedos da mão, oucom giz, no quadro, com todo nosso braço — porque nossocorpo não a detém como poder de circunscrever um certoespaço absoluto, nas condições dadas uma vez por todase pelo meio de certos músculos à exclusão de outros, mascomo uma potência geral de formular um tipo constante[de gestos?] mediante todas as transposições que poderiamser necessárias. Ou melhor, não há mesmo transposição:simplesmente nós não escrevemos no espaço em si, comuma mão em si, um corpo em si ao qual cada nova situa-ção significaria problemas de adaptação muito complica-dos. Nós escrevemos no espaço percebido, onde os resulta-dos de mesma forma são na hora análogos, e onde as di-ferenças de escala são imediatamente superadas, como asmelodias da mesma forma executadas em diferentes altu-ras ali são imediatamente identificadas, re q ™ãp com aqual escrevemos é uma mão-espírito, que possui, com afórmula de um movimento, como que um conceito naturalde todos os casos particulares em que pode ter que se rea-lizar. Todo o milagre de um estilo já presente nos elemen-

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íim llWUIVrtN (111 «ilil (Ml (III UlIlllHllllH, MH MIIIMilii lllll

mano que ntm i c -v r l im i n r f l in i in t In i t l i i , n i i t lr i iwriplo nuii lupa, retomam cnliiu u Ulu tp in , i i M l i n l l i i i i n l n hn n u n n l ohumano das coisus p iTcHi l i l n . - i , o arl.InU piV mm n m i r t i nU*no inundo inumano, que nos rcvclum os aparelhou de- opllcu, como o nadador sobrevoa sem querer todo um uni-verso soterrado, que a luneta submarina lhe revela para seumedo, ou como Aquiles efetua na simplicidade de um pas-M > uma soma infinita de espaços e de instantes. ELcertpivitá aí um grande milagre, cuja palavra de homem nãodeve nos disfarçar a estranheza. Pelo menos podemos veraqui que esse milagre é habitual, que nos é natural, quecomeça com nossa existência encarnada e que não é ocaso de procurar sua explicação em algum Espírito do Mun-do, que operaria em nós sem nós, e pensaria em nosso lu-gar, aquém do mundo percebido, na escala microscópica:aqui o espírito do mundo éjjós, desde que sabemos TIOSmover, desde que sabemosCoZftg>. Esses atos simples encer-ram já todo o mistério da açao expressiva. Pois movo meucorpo sem mesmo saber quais músculos, quais trajetos ner-vosos devem intervir, e onde seria preciso procurar os ins-trumentos desta açao. .Como o artista faz irradiar seuestilo, até os elementos i;pyipívpfe 4a mataria qi1f> trabalha.Quero ir lá, e eis-me aqui, sem que eu tenha entrado nosecreto inumano da maquinaria corporal, sem que a tenhaajustado aos dados objetivos do problema, à localização doobjetivo definido em relação a algum sistema de coordena-das. Olho onde está o objetivo, sou aspirado por ele, etoda a máquina do corpo faz o que tem que fazer paraque eu chegue a ele. Tudo se passa no mundo humanoda percepção e do gesto, mas meu corpo geográfico oufísico obedece às exigências desse pequeno drama, que nãocessa de produzir nele mil milagres naturais. Meu olharem direção do objetivo, já tem ele também seus prodígios:pois, Jfambem, se instala com autoridade no ser e ali seconduz como em país conquistado. Não é o objeto que agesobre meus olhos e obtém deles os movimentos de acomo-dação e de convergência; pudemos mostrar que, ao con-trário, não veria jamais nada nitidamente e não haveriaobjeto para mim se eu não dispusesse meus olhos de ma-neira a tornar possível a visão do único objeto. Para cúmu-lo do paradoxo, não se pode também dizer aqui que o es-pírito religa o corpo e antecipa o que vamos ver: não, sãonossos olhares eles mesmos, é sua sinergia, é sua explora-

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cão ou sua prospecção que colocam no ponto o objeto imi-nente, e jamais as correções seriam bastante rápidas e bas-tante precisas se se devessem apoiar num verdadeiro cál-culo de efeitos. É preciso então reconhecer sob o nome deolhar, de mão e em geral de corpo um sistema de sistemasvoltado à inspeção de um mundo, capaz de abarcar as dis-frâp m a s tfe -tra-p spa ssar o futuro perceptivo, de desenharjia

' jfl,sipirip7. inmnfíphívpi cio ser ocos e relevos, distâncias eafastamentos, um sentido... O movimento do artista tra-

I çando seu arabesco na matéria infinita explicita e prolon-ga o milagre da locomoção dirigida ou dos gestos de toma-da. Não somente o corpo se volta a um mundo do qual .elecarrega em si o esquema; ele o possui a distância mais doque é possuído. Com mais forte razão, o gesto de expressão,que se encarrega ele mesmo de desenhar e fazer pareceralém do que ele visa, consome uma verdadeira recuperaçãodo mundo e o refaz para conhecê-lo. Mas já, com nossoprimeiro gesto orientado, as relações infinitas de alguémcom sua situação tinham invadido nosso medíocre planetae aberto à nossa conduta um campo indefinido. TÇdajper-cepção, e toda ação que a supõe, em suma, todo usíTUenosso corpo, é já expressão primordial, quer dizer, não otrabalho segundo o derivado que substitui ao exprimido si-nais dados por outras coisas com seu sentido e sua regrade emprego, mas a operação que primeiro constitui os si-nais em signos, iaz habitar neles o exprimido, não sob a con-dição de alguma convenção prévia, mas pela eloquência deaffli priípri" armmjo e «te sua ronfignraçãí). .implanta umsentido no que não tinha, e que então, longe de se esgo-

I tar no instante em que tem lugar, abre um campo, inau-/ gura uma ordem, funda uma instituição ou uma tradi-V cão.... Ora, se a presença do estilo nas miniaturas que nin-\m havia jamais visto, e, em um sentido jamais feito, sei

confunde com o mistério de nossa corporalidade e não chá- \a nenhuma explicação oculta, parece-nos que se pode

dizer outro tanto dessas convergências singulares, que fa-/zem com que de uma jionta a outra do mundo artistas que/se jgnoravam produzam obras que se parecem. Pedimosuma causa que explique essas semelhanças, e falamos deuma Razão na História ou de um Espírito da Pintura oude um Superartista que conduz os artistas sem que elesqueiram. Mas primeiro é colocar mal o problema falar desemelhanças: elas são afinal pouca coisa em relação às

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h i i n l a i l r de relnvcnguo .srm u n i u c aem t i n x l r l u 6para dar conta dessa coincidenriu. O verdadeiror compreender não por que obras se parecem, mas por queeulluras tão diferentes se engajam na mesma procura, sepropõe a mesma tarefa (sobre cujo caminho reencontrarão,na ocasião, os mesmos modos de expressão), por que oque produz uma cultura sempre tem um sentido para. osnulros, mesmo se não é seu sentido de origem, por que nósnos damos a pena de metamorfosear em arte os fetiches,enfim por que há uma pintura_íiu.um universo da pintura.Mas isso só é problema se começamos por nos colocar noinundo geográfico ou físico, e aí colocar as obras como tan-tos outros acontecimentos separados, cuja semelhança ousomente aparentamento é então improvável, e exige umprincípio de explicação. Propomos ao contrário reconhe-cer a ordem da cultura ou do sentido como uma ordçmoriginal de advento, que não deve ser derivada daquele, seexiste, de puros acontecimentos, nem tratada como o sim-ples efeito de certos encontros pouco prováveis. Se admi-timos que. o próprio..áíUSfiSbLhumano é significar além desua simples existência de fato, inaugurar um sentido, resul-ta disso que todo gesto é comparáve^ a todo outro, que pro-venham todos de uma só sintaxe, que cada deles seja umcomeço, comporte uma sequência ou recomeços enquantonão é, como o acontecimento, opaco e fechado sobre si mes-mo, e uma vez por todas findo, que vale além de sua tím-_pies presença de fato, e que nisso é por adiantamento aliado ^_ou cúmplice denodas as outras tentativas de expressão.Mais: não somente é compatível com elas, e se organiza comelas num mundo da pintura, mas ainda, se o traço fica ee se a herança é transmitida, é essencial ao gesto pictural,uma vez feito modificar a situação da tentativa universalem que estamos todos engajados. Pois a obra, uma vezfeita, constitui novos signos em signos, torna então mane-jáveis novas significações, aumenta a cultura como umórgão acrescentado poderia aumentar os poderes de nossocorpo, e abre então um novo horizoiite,d£_nfia£ruifia. Nãosomente então todos os gestos que fazem existir a cultura,estão entre eles numa afinidade de princípio, que faz delesos momentos de uma só tarefa, mas ainda um exige o outroem sua diferença, já que dois entre eles não podem ser idên-

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ticos, a não ser com a condição de se ignorar. E, tanto quan-to, não nos espantemos mais de reencontrar a assinatura doartista lá onde seu olhar não podia atingir, quando admiti-mos que o corpo humano se exprime ele mesmo em tudo oque faz, assim as convergências e as correspondências entre

liobras de toda origem, fora de toda influência expressa nahistória da arte, não surpreendem quando nos instalamos na

"ordem da cultura considerada como um campo único. Nãoqueremos dizer aqui que o corpo humano forneça uma ex-plicação"' para isso e que nomens que se ignoravam e viviama imensas distâncias no tempo e no espaço retomem" >mesmo gesto, porque seu corpo é o mesmo: pois justamenteo próprio do corpo humano é não comportar natureza.

Certo o campo de pesquisas inaugurado por uma obrapode ser abandonado se a obra for perdida, queimada ouesquecida. O advento não dispensa o acontecimento; nãohá, acima da dos acontecimentos, uma segunda casuali-dade que faria do mundo da pintura um outro mundo su-pra-sensível, com suas leis próprias, como o mundo da Graçade que falava Malebranche. A criação nuitnrai é «em pfirÃ-cia se não encontra um veículo nas circunstâncias exterio-res, hão pode nada contra elas. Mas verdade ê que, porpouco que a história a isso se preste, a obra conservada etransmitida desenvolve em seus herdeiros consequênciassem proporção com o que ela é como pedaço de tela pinta-da, e uma história única da cultura se consolida acima das

v interrupções ou regressões porque desde o começo da obra(inicial signifíra..além de sua existência empírica.l O difícil e essencial é aqui compreender que, colocando \m universo do sentido ou um campo de significações dis-

tinto da ordem empírica dos acontecimentos, não colocamosuma eternidade, um Espírito da Pintura que se possuiria

v no inverso do mundo e ali se manifestaria pouco a pouco...Ã ordem ou o campo de significações que faz a unidade dapintura e abre por adiantamento cada obra sobre um futurode pesquisas é comparável àquele que o corpo inaugura emsua relação com o mundo e que faz participar cada mo-

* Na margem: E não é também o espírito que explica por sua per-manência. O verdadeiro problema não é o das semelhanças, mas dapossibilidade je metamorfose, de [retomada.] As semelhança&~&ãoegf-p-rSn- O_próprio da cultura e nunca começar e não acabar noinstante.

mnito de seu grain m> raMIo do liiiln* pn nimn MMImmmjrrtima cm tudo o que fn/.. n l r i n < t n i t l v « i M l i l i n l i > di<

\s partes que o tornu fráglj e vulnrrím-l , du íi uipiu clní»- reunir num gesto que domina sua dispersão. Uu niesinumaneira, além das distâncias do espaço e do tempOj há urnaiinlUucle do estilo humano que reúne os gestos de todos ospintores numa sá.tentativa; numa só história cumir sua produção numa só arte ou numa só cultura.?*ilude da cultura prolonga ajprn rins limit.pg ^Individual o mesmo género de conexão que se estabeleceentre todos os seus momentos, quando uma vida é instituída,(mando uma consciência, como se diz, é selada num corpor que aparece ao mundo um novo ser, a quem advirá não sesabe o que, mas a quem a partir de então alguma coisanão deixaria de advir, não deixaria de ter uma ^isfaSrinbreve ou curta. O pensamento analítico, cego para o mun-do percebido, quebra a transição perceptiva- de uin lugar aoutro, de uma perspectiva a outra e procura do lado doespírito a garantia de uma unidade que já está lá quandopercebemos, quebra também a unidade da cultura e procurareconstitui-la de fora. Afinal, diz ele, só há obras, indiví-duos, de onde vem então que eles se pareçam? É então quese introduz o Espírito da Pintura. Mas como devemos re-conhecer como um fato último a possessão corporal doespaço, o abarcamento do diverso pelo corpo, como nossocorpo enquanto vive e se faz gesto só repousa sobre si mesmoe não poderia ter esse poder de um espírito separado, assima história da pintura que corre de uma obra a outra, re-pousa sobre si mesma e só é levada por esses esforços quese soldam um ao outro pelo único fato que são esforços deexpressão. A ordem intrínseca das significações não é eter-~na: se não segue cada ziguezague da história empírica,desenha, chama uma série de démarches sucessivas. Ela nãose define somente, como dissemos antes provisoriamente,pelo parentesco de todos os seus momentos numa só tarefa:precisamente porque são todos momentos da pintura, cada

* Na margem: A ordem dos significantes é comparável à do corpo.Os atos de significação são essencialmente históricos, o advento éacontecimento. O pintor toma a sequência da percepção. E isto nãoquer dizer explicação pelo corpo.

*\a margem: Naturalmente não é inserção de todos os pintores numl só corpo: o corpo aqui é a história. O que queremos dizer é que' ela existe à maneira do corpo, que ela está do lado do corpo.

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um deles, se_é ^nafíTYarin p t.ransnmt.iHn, modifica a situa-ção do empreendimento, e exige que aqueles que virão emseguida sejam justamente outros.

Quando se diz que cada obra [verdadeira?] abre um ho- •,rizonte de pesquisas, isto quer dizer que ela torna possível oque não o era antes dela, e que ela transfigura o empreen-dimento pictural ao mesmo tempo que o realiza. Dois gês-

' tgs culturais não podem então ser idênticos a não ser qflese ignorem um ao outro. Sua eficácia, de que falávamos»

\s acima, tem justamente por consequência tornar im-'' possível em arte a pura e simples repetição. É então essefP

ciai à arte desenvolver, quer dizer ao mesmo tempo mudare, como diz Hegel, "voltar em si mesma", então de se apre-sentar sob forma de história, e o sentido do gesto expressivosobre o qual fundamos a unidade da pintura é por prin-cípio um sentido em génese* O advento não é um ultrapãs-samento do tempo, é uma promessa~3ê acontecimentos. Adominação de um sobre o múltiplo cuja historia da pinturanos oferece o exemplo, como a que encontramos no exercí-cio do corpo percebendo, não consome a sucessão numaeternidade: ela a exige ao contrário, ela precisa dela, aomesmo tempo que a funde em significação. E não se trata,entre os dois problemas, de uma simples analogia. £ a ope-ração expressiva do corpo, começada pela mínima percep-ção, que se amplia em pintura e em arte. p campo dassignificações picturais está aberto desde que um homemapareceu no mundo., E_n primeiro desenho na parede dascavernas só^ fundava uma tradição porque recolhia nelauma oulra: á da,"percepção^ A quase eternidade da ar te^se confunde com a quase eternidade da existência encar-nada, e temos em nosso corpo antes de qualquer iniciaçãoà arte a primeira experiência do corpo impalpável da his-tória.

^ Indiquemos para finalizar que, compreendida assim al história, escaparia às vãs discussões de que é hoje objeto,,í e retornaria ao que deve ser para o filósofo: o centro de suas

reflexões, não como uma natureza simples^ -absolutamenteclara por si mesma, e_c|ue explicaria todo o resto, mas, aocontrário, como o lugar mesmo de nossas interrogações ede nossos espantos. Que seja para adorá-la ou para odiá-la,concebe-se hoje a História e a dialética história como umaPotência exterior. Entre ela e nós, é preciso então escolher,e escolher a História, isso quer dizer devotar-se de corpo ealma ao advento de um homem futuro, renunciar em favor

desse futuro a qualquer julgamento sobre os meios, em favordii eficácia a todas as considerações de valor, ao "consenti-mento de si mesmo a si mesmo". Rst.n fíistftrin-íHnin secula-rlzu as concepções mais rudimentares de Deus, e não é poriií-aso que nossas discussões contemporâneas retornam tãovoluntariamente a um paralelo entre o que chamamos atranscendência hnris>Av±al^AsL w^ória fi p transçffidên>cia vertical de Deus. Na verdade 6 Rnlogar mtL\s vezes. Faz mais de vinte séculos que a Europa renun-

ciou à transcendência dita vertical e é um pouco forte es-quecer que p Cristianismo é em boa parte o reconhecimentode um mistério na relação do homem e de Deus: justamenteo Deus cristão não quer relação vertical de subordinação,ele não é somente um princípio de que seríamos as conse-quências, uma vontade de que seríamos os instrumentos,há como que uma espécie de impotência de Deus sem nós, eClaudel vai até a dizer que Deus não está acima de nós,mas abaixo, querendo dizer que nós não o achamos comoum modelo supersensível ao qual seria preciso nos subme-termos, mas como um outro nós-mesmos, que esposa e au-tentifica toda a nossa obscuridade. A transcendência,então, não domina o homem, ele é estranhamente seu por-tador privilegiado. Por outro ladn nenhuma filnsnfia riaHistória jamais reportou sobre o futuro toda a realidade dopresente e destruiu o si para lhe dar lugar. Essa neurose dofuturo seria exatamente a não-filpsofia, ,a recusa deliberadade saber em que acreditamos. Hegel justamente não intro-duz a História como uma necessidade bruta que oblitera ojulgamento e suprime o si, mas como uma realização ver-dadeira. Nenhuma filosofia consistiu jamais em escolherentre transcendências — por exemplo, entre a de Deus e ado futuro humano — , elas estão todas ocupadas em media-tizá-las, em compreender como Deus se faz homem ou comoo homem se faz Deus, em elucidar esse estranho envolvi-mento dos fins e dos meios que faz com que a escolha deum meio já seja a escolha de um fim — que torna entãoabsurda a justificação dos meios pelos fins — que o si sefaz mundo, cultura, e que a cultura precisa ser animadapor ele. Em Hegel, como se repete em toda parte, tudo oque é real é racional e então justificado, mas justificadoora como aquisição positiva, ora como pausa, ora mesmocomo um refluxo que promete um novo fluxo, em sumajustificado relativamente, a título de momento da Históriatotal, sob condição que essa História se faça, e consequen-

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temente n» «nítido nn qiin m» dl/ i | im M I W M W próprios errosvarwtjtini / ic t / í f i .s c que nm;tm pin|-.re.sMos «ao nossos erroscompreendidos, c i tpie imo up"K'1 u diferença de crescimen-tos e de dcelmlos, de nascimentos e de mortes, de regres-sões c do progressos. ..

A concepção do Estado, em Hegel, não se atém a essasabedoria, mas assim mesmo não é uma razão para esque-cer que na Filosofia do Direito ele rejeita como erros doentendimento abstraio tanto o julgamento da ação só pelosefeitos como o julgamento da ação só pelas intenções, e quecolocou no centro de seu pensamento esse lugar onde ointerior se faz exterior, essa volta ou essa transferência quefaz com que passemos em outrem e outrem em nós. As polé-micas contra a transcendência horizontal, em nome datranscendência vertical (admitida ou somente lamenta-da) não são então menos injustas a respeito de Hegel doque a respeito do Cristianismo. É a indigência do pensa-mento marxista, mas também a preguiça do pensamentonão-marxista, um cúmplice do outro, que acabam hoje porapresentar a diálética em nós ou fora de nós como potên-cia de erro, de mentira e de fracasso, transformação do bemem mal, fatalidade da decepção. Não passava ai, em Hegel,de uma suas faces, ela era outro tanto como que uma graçaque faz sair o bem do mal, que por exemplo nos atira nouniversal quando só pensamos perseguir nosso interesse.

IEla não era, por si, nem feliz, nem infeliz, nem ruína doindivíduo, nem adoração do futuro; era, Hegel o dizia mais,ou menos, uma marcha que cria ela própria seu trajeto eretorna em si mesma, um movimento então sem outro guiaalém de sua própria iniciativa, e que no entanto não esca-pava para fora de si mesmo, recortava-se ou confirmava-sede ciclo em ciclo — era então um outro nome para o fenô-

de ifívprpssãh sobre o qual insistimos, que se retomade próximo em próximo e se relan_ça como por um-mistériode racionalidade. È reencontraríamos sem dúvida o con-Ceitò de História em seu verdadeiro sentido se nos habi-,tilássemos a formá-lo, como propomos, sobre o exemplo!

' das_artes ou da linguagem: pois a intimidade de toda ex-pressão a toda expressão, sua dependência comum a umasó ordem que o primeiro ato de expressão instituiu, reali-zam pelo fato da junção do individual e do universal, e aexpressão, a linguagem por exemplo, e oem o que temos uemais individual, ao mesmo tempo que, dirigindo-se aosoutros, ela se faz valer como universal. O fato central ao

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(piul a diálética de Hcgul retorna de cem maneiras é quenós não temos que escolher entre o por si e o por outrem,rnlrc o pensamento segundo nós mesmos e o pensamento.segundo outrem que é propriamente alienação, mas que, nomomento da expressão, o outro a quem me dirijo e eu queme exprimo estamos ligados sem concessão de sua partenem da minha. Os outros tal qual são ou tal qual serãonão são os únicos juizes do que faço: se eu me quisessenegar em seu proveito, eu os negaria também como Eu;eles valem exatamente o que eu valho, todos os poderes quelhes dou, eu me dou ao mesmo tempo. Eu me submeto aojulgamento de um outro que seja ele mesmo digno do quetentei, quer dizer no final das contas de um par escolhidopor mim mesmo. A História é juiz — mas não a Históriacomo Poder de um momento ou de um século •— a Históriacomo esse lugar onde se reúne, se inscreve e se acumulaalém dos limites dos séculos e dos países tudo o que disse-mos e fizemos de mais verdadeiro e mais válido, levandoem conta as situações em que tivemos de dizer. Do que eufiz, os outros julgarão, porque pintei o quadro para que eleseja visto, jaqraue minha ação comprometeu o futuro dosoutros, mas riem a arte nem a política consistem em agra-dá-los ou Jisonjeá-los. O que esperam do artista como dopolítico"? que ele os leve na direção de valores onde só emseguida reconhecerão seus valores. O pintor e o político for-mam os outros bem mais que os seguem, o público queeles visam não é dado, é o público que sua obra suscitará;os outros nos quais eles pensam não são os outros empí-ricos, nem então a humanidade concebida como uma espé-cie; são os outros tornados tais que ele* possa viver com eles,a história à qual ele se associa (e tanto melhor que nãopensa muito em fazer histórico e produz honestamentesua obra, tal qual a quer) não é um poder diante do qualele deva dobrar os joelhos, é a entrevista perpétua que seata entre todas as palavras, todas as obras e todas as açÕesválidas, cada.uma,de seu lugar e em sua situação singularcontestando e confirmando a outra, cada Uma recriandotodas as outras. A história verdadeira vive então toda in-teira de nós, é em nosso presente que ela toma a força delevar ao presente todo o resto, o outro que respeito vive demim como eu dele, uma filosofia da História não me tiranenhum de meus direitos, nenhuma de minhas iniciativas.

Sic.

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É verdade somente que ela acrescenta às minhas obriga-ções de solitário aquela de compreender outras situaçõesalém da minha, de criar um caminho entre meu querer e odos outros, o que é me exprimir. De uma vida a outra aspassagens não são traçadas adiantadamente. Pela acão_dacultura, eu me instalo em vidas que não são a minha, eu_asconfronto, eu as manifesto uma a outra, eu as torno com»patíveis numa ordem de verdade, eu me faço responsável detodas, eu suscito uma vidav universal — como me _instalode um golpe no espaço pela presença viva e espessa de~mèucorpo. E como a operação do corpo, a das palavras ou daspinturas continua obscura para mim: as palavras, os traços,as cores que me exprimem saem de mini como meus gestos,são-me arrancados pelo que quero dizer como meus gestospelo que quero fazer. Nesse sentido, na em toda expressão,e mesmo na expressão pela linguagem, uma espontaneidadeque não sofre ordens, e nem mesmo as ordens que eu gosta-ria de dar a mim mesmo. As palavras, na arte da prosa,transportam aquele que fala e aquele que as ouve num uni-verso comum, mas só o fazem arrastando-nos com elas parauma significação nojca, por uma potência de designação queultrapassa sua definição ou sua significação recebida e quese depositou nelas, pela vida que levaram todas juntas emnós, por aquilo que Ponge chamava com felicidade suaespessura semântica e Sartre seu húmus significante.Essa espontaneidade da linguagem que nos livra de nossasoposições não é uma ordem. A história que ela funda nãoé um ídolo exterior: ela é nós mesmos com nossas raízes,'nosso crescimento próprio e os frutos de nosso trabalho.

História, linguagem, percepção, só aproximando essestrês problemas é que se poderá retificar em seu sentido pró-prio as belas análises de Malraux e tirar delas a filosofiaque comportam. Veremos então que é legítimo tratar apintura como uma linguagem: esse tratamento da pinturadesnuda nela um sentíãõperceptivo, cativo da configuraçãovisível, e no entanto, capaz de recolher em si mesmo numaeternidade, sempre a refazer toda uma série de expressõesanteriores sedimentadas —, e que a comparação tem pro-veito não somente em nossa análise da pintura, mas tam-bém para nossa análise da linguagem: pois ela nos fazdiscernir sob a linguagem falada, sob seus enunciados e seubarulho, sabiamente ordenados a significações todas feitas,uma linguagem em operante ou falante cujas palavras vi-vem de uma vida surda como os animais das grandes profun-

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ilc/ii.s, SP unem r m* N r p u i n i n ruinn i > n i t i i < NUM M i i . n l M i m . i i u Inir rui ou indireta. A trunapurôucltt dit l l i iHUi tumi ru l iu ln , ruimhriivu claridade da palavra qiu- NÓ o .som r do m*nUi1u ( | i innó b sentido, a propriedade que tem aparentemente de ex-tndr o sentido dos sinais, de isolá-lo ao estado puro (narealidade simples presunção de encarná-lo em varias fór-mulas em que permanece o mesmo) seu poder pretendidode resumir e de encerrar realmente num só ato todo umtornar-se expressão, esse poder cumulativo, em suma, só ét> mais alto ponto de uma acumulação tácita ou implícitado género da pintura.

É preciso começar admitindo que a linguagem na maio-ria dos casos não procede distintamente da pintura. Ujnromance exprime como um quadro. Pode-se contar o assunto

| do romance como o do quadro, mas a virtude do romance,como a do quadro, não está no assunto, O que conta —não é tanto que Julien Sorel, sabendo que é traído por Mme.de Renal, vá a Verrière e tente matá-la — é, após a novela,esse silêncio, essa cavalgada de sonho, essa certeza sempensamento, essa resolução eterna . . . Ora, isto não é ditoem nenhum lugar. Nenhuma necessidade de Julien pen-sava, Julien queria. Basta, para exprimir, que Stendhaldeslize em Julien, passe a um monólogo em Julien, e façacircular sob nossos olhos, em velocidade de viagem, os obje-tos, os obstáculos, os meios, os acasos. Basta que ele decidacontar em três páginas, em vez de contar em dez, e calaraquilo mais que dizer isto. Nem é mesmo que o romancistaexprime escolhendo e pelo que ele omite tanto quanto peloque menciona. Pois não se trata nem mesmo para ele deescolher. Consultando os ritmos de sua própria cólerj} desua própria sensibilidade a outrem, ele lhe dá subitamenteum corpo imaginário mais vivo que seu próprio, jcorpo, fazcomo numa segunda vida a viagem de Julien segundo ui5ãcadência de paixão seca que escolhe para ele o visível e òinvisível, o que tem a dizer e a calar. A yoixtade-d£jnQrtenão está em nenhum lugar nas palavras, está entretelas,nos vácuos do espaço, de tempo, de significação qúé 'delimi-tam, como a do movimento no cinema está entre as iimóveis que se seguem, ou como as letras, em certos recla-mes, são menos feitas por alguns traços negros do quepelas praias brancas que indicam vagamente — brancas,mas cheias de sentido, vibrantes de vetores e tão densasquanto o mármore . . . QjEmancista pptrfítfíTn no™tor — e todo homem com. gnnignAr v^m^m -T—. um».

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gem de iniciados: iniciados ao mundo;ao universo de possí-veis que são um corpo humano, uma vida humana. E o quehá a dizer, ele supõe conhecido, instala-se na conduta deum personagem e dá ao seu leitor só a assinatura, o traçonervoso e peremptório que deposita no que o cerca. Se éescritor, quer dizer capaz de encontrar as elipses, as eli-sões, as pausas da conduta, o leitor responde à convocaçãoe o alcança no centro do mundo imaginário que ele governaff anima, o romance como o relato de um certo número deacontecimentos, como enunciado de ideias, teses ou con-clusões, em suma, como significação direta, prosaica oumanifesta, e o romance como inauguração de um estilo?significação oblíqua ou latente são uma simples relação dehomonímia, e é o que Marx bem compreendeu quando a_dp-tou Balzac. Não se tratava ali, podemos acreditar^de algumretorno ao liberalismo. Marx queria dizer que uma certamaneira de fazer ver o mundo do dinheiro e os conflitosda sociedade moderna importava mais que as teses, e queessa visão, uma vez adquirida, levaria às suas justas con-sequências com ou sem o consentimento de Balzac.

Temos bastante razão de condenar o 'íQrmalismo, masesquecemos geralmente que o que é condenável nele não éque estime demais a forma, é que a estima pouco, demais,ao ponto de ...destacá-la do sentido. Np que ele não é dife-rente de uma literatura do assunto, que, ela também, des-taca o sentido da obra da estrutura. O verdadeiro contrá-rio do formalismo é uma boa teoria da palavra que a dis-tingue de qualquer técnica ou de qualquer instrumentoporque ela não e somente meio a serviço de um fim exte-rior, e que ela tem em si mesma sua moral, sua regra deemprego, sua visão do mundo como um gesto revela todaa verdade de um homem. E esse uso vivo da linguagem é,ao mesmo tempo que o contrário do formalismo, o de umaliteratura dos assuntos. JJma linguagem, em efeito, quesó procuraria exprimir as próprias coisas, esgotaria seupoder de ensinamento nos enunciados de fato. Uma Un-guagem, ao contrário que dá nossa perspectiva sobre ascoisas, que arranja nelas ura relevo, inaugura uma discus-são sobre as coisas que não acaba com ela, suscita em simesma a pesquisa, torna possível a aquisição. O aue éinsubstituível na obra.de arte — o que faz dela não somen-te uma ocasião de prazer, mas um órgão do espírito cujoanálogo se encontra em todo pensamento filosófico ou po-lítico se ela é produtiva — é que ela contém melhor que

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Ideias, matrizes de ideias; ela nos fornece emblemas dosquuis jamais pararemos de desenvolver o sentido, e, justa-mente porque se instala e nos instala num mundo do qualnão temos a chave, nos ensina a ver e nos faz pensar comonenhuma obra analítica pode fazê-lo, porgiip nenhuma aná-lise pode encontrar_.num.Qbjeto outra coisa além do quenele pusemos. O que há de ocasional na comunicação lite-rária, o que há de ambíguo o irredutível à tese em todas asgrandes obras de arte não é urn defeito provisório da litera-tura, que poderíamos esperar ultrapassar, é o preço que épreciso pagar para ter uma linguagem rnnq^ j Dadora, quenão se limite a enunciar Q_que já ^Mpmog. ™?g "*« IP+-T*O-duza a experiências estranhas^ a perspectivas que não serãojamais as nossas e nos desfaça enfim d_e.*,**. XT^— f • •

y "-" "v- a*wn»i«i iiira.wiu.ni-ios. Não veríamos jamais nenhuma paisagem nova, se nãotivéssemos, com nossos olhos, o meio de surpreender, deinterrogar e colocar em forma configurações de espaço e decor jamais vistas até então. Não faríamos nada se nãotivéssemos, com nosso corpo, o meio de saltar por cimatodos os meios nervosos e musculares do movimento paranos levar ao objetivo antecipado, £ da mesma maneira, im-periosa e breve, que o artista, sem transições nem prepiaía-ções, nos atira num mundo novo. E como nosso corpo nãopode reencontrar-se entre as coisas ou frequentá-las a nãoser com a condição de renunciarmos a analisá-lo para usá-lo — a linguagem literária só pode dizer coisas novas coma condição que façamos causa comum com" ela,' que ces-semos de examinar de onde vem para segui-la onde for, quedeixemos as palavras, os meios de expressão do livro seenvolver nesse bafo de significação que devem ao seu arran-jo singular, e todo o escrito virar em direção de um valorsegundo e tácito onde alcança quase a irradiação muda dapintura. Tanto quanto o da pintura, o sentido próprio daíobra de arte não é logo perceptível como uma deformagãolcoerente imposta ao visível. E sempre assim o será. Críticosbem poderão confundir o modo de expressão de um roman-cista com o de um outro, fazer entrar a configuração esco-lhida numa família de outras configurações possíveis —ou mesmo realizadas... Esse trabalho só é legítimo se co-loca as diferenças de técnica em relação com as diferen-ças do projeto e do sentido, e se guardar sobretudo de ima-ginar que Stendhal, para dizer o que tinha a dizer, podeemprestar o estilo e o relato de Balzac. O pensamento crí-tico nos explica a nós mesmos o que percebemos no ro-

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mance, e porque o percebemos ali. À linguagem do roman-cista que mostra ou faz transparecer o verdadeiro e não otoca, ele substitui uma outra linguagem» que pretende pos-suir seu objeto. Mas ele é como essas descrições de umrosto sobre um passaporte que não nos permitem imagi-ná-lo. O sistema de ideias e de meios técnicos que ele en-contra nas obras de arte, retira-os dessa significação ines-gotável de que o romance se revestiu quando veio descen-trar, distender, solicitar numa nova direção nosso imagodo mundo e as dimensões de nossa experiência. O romancesobrevindo nela a transforma, antes de qualquer significa-ção, como a linha auxiliar introduzida numa figura abre ocaminho à solução.

Responder-se-á talvez que em todo caso a linguagemdo crítico, e sobretudo a do filósofo, tem justamente a am-bição de converter numa verdadeira possessão o ponto deapoio deslizante que a literatura nos dá sobre a experiên-cia. Restaria a saber — nós nos perguntaremos adiante— se, mesmo nisso, crítica e filosofia não se limitam a exer-cer, como na segunda potência e numa espécie de reitera-ção, o mesmo poder de expressão elíptico que faz a obrade arte. Comecemos em todo caso por constatar que à pri-meira vista a filosofia não mais que a arte não investe seuobjeto, não o retém em mão de maneira a não deixar nadamais a desejar. As metamorfoses da filosofia de Descar-tes são célebres: nós a iluminamos com nossas luzes comoa pintura moderna ilumina Greco ou Tintoreto. Antes denós, Spinoza, Malebranche, Leibniz tinham, como se sabe,|cada um à sua maneira, acentuado, mudado as relações^de figuras e fundos e reivindicado cada um seu Des-cartes. Descartes é bem esse francês de há três séculos queescreveu as Meditações e outros livros, respondeu a Hobbes,a Mersenne, a outros, tomou por divisa larvatus prodeo elez aquela peregrinação a Notre-Dame-de-Lorette, . . . masé também muito mais: como Vermeer, Descartes é umadessas instituições que se esboçam na história das ideiasantes de nela aparecer em pessoa, como o sol se anunciaantes de desvendar subitamente uma paisagem renovada— que, à medida que duram, não cessam de crescer e detransformar em si mesmas os acontecimentos com os quaissão confrontadas, até que, insensivelmente, o movimento seinverte, e que o excesso de situações e de relações inassimi-láveis para elas sobre aqueles que podem absorver as altera,

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r Niirir l l .u i i i i n i o i i l i u M M mu i [ i n - no mt.imlo não teria exis-tido nem HiiN. D r m - i i i l r M f< l írucurU-a. N I M M 6 tumbém tudoo ({uo i lcpol f í MI w purocu Lr In un i i i i r l iu lu , nu que cie deu sen-lido e milldudu hlalòrlcu r e tunibern tudo o que derivou(Uilc, o ocasiona 1 1 smo de Mu 1 11 b nine l»; escondido num cantoda Dioptrique, a substância de Spinoza numa volta dasRespostas às objeções. Como traçar um limite entre o quecie pensou e o que se pensou a partir dele — entre o quenós lhe devemos e o que nossas interpretações lhe empres-tam? Seus sucessores, é verdade, apoiam lá onde ele pas-sava vivamente, deixam perecer o que ele explicava cuidado-samente. É um grande organismo onde eles transtornama distribuição dos centros vitais e funções. Mas enfim éainda ele que os desperta aos seus mais próprios pensa-mentos, que os anima em sua agressão contra ele, e nãose pode então mais fazer um inventário rigoroso dos pen-samentos de Descartes como não se pode numa língua fa-zer o inventário dos meios de expressão. Ele concebeu maisvivamente que ninguém a distinção da alma e do corpo,mas nisso mesmo viu melhor que ninguém o paradoxo desua união na utilização da vida. Se quisermos mais do quepor seus escritos, desde o começo zumbindo de enxames depensamentos que iam invadi-los, cercar Descartes pelo queo homem Descartes tinha na cabeça*, na soma de minu-tos de sua vida, a contagem também não é possível: o cam-po de nosso espírito, como nosso campo visual, não é limi-tado por uma fronteira, p"erde-se numa zona vaga onde osobjetos não se pronunciam a não ser fracamente, mas exis-tem com uma espécie de presença. Não é somente falta deinformações — falta de um diário datado de seus pensa-mentos — que nos coloca fora de condição para dizer seDescartes, num momento de sua vida, sim ou não, con-cebeu o idealismo, é porque todo pensamento um poucoprofundo, não somente no escrito, mas ainda, no homemvivo, coloca em movimento todos os outros. O movimento

n t.n-da Segunda Meditação á.irfoaliqmn

mamos por verdade, num sentido não ultrapassável comotoda verdade, e que paremos nisso algum tempo, como oquer Descartes, para disso ser penetrado para todo sempre

* O texto trazia em primeiro lugar, "se queremos, mais que a seusescritos . . . limitar Descartes ao que o homem Descartes . . . ". Oautor substituiu limitar por cercar, mas não corrigiu o primeiromembro da frase.

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— ou qmi mi nml iA i ln I H < I I N I < U I I I N pinln l imnl l i> COIMO ver-dmlci piurliil in i inu vora»di r i m U n inp l i i r continua-lo emdlri^uii u um « t i l u t i l l v l i u i ilo mundo, como Descartes oqur r l i m i l i r n i , Nrp . i i i u tn l i i r i i r n m U M Inclinação natural umnino piirUruhu' (In In/ i t u t n u t l r interior, ou ao contrário(lu lu/ . i m l u i n l uma nprnicju) do Deus criador sobre nós.Jii mui UcHcartrn dm ao menos uma vez a filosofia comomeuilueftos pi i l rmliunoH: não um movimento do espíritopm (llrcciio do uniu verdade exterior e imóvel, mas umaInmHfonimcuo pulo exercício do pensamento no sentido deH I I I I . H rrrUv/as e da própria verdade, é então Jjue ele admiteu verdade permanente de cada passo, que suas conclusõesus tornam todas válidas e que ele não admite verdade quenão se tenha tornado. Há então nele, entre outras coisas,o idealismo. Mas o idealismo como momento não é idea-lismo, e não está então em Descartes. Mas está já que osoutros momentos, em que Descartes o ultrapassa, não sãolegítimos, e que não passa adiante a não ser esquecendoseu começo... Assim a discussão prossegue como deve en-tre os comentadores. O inventário dos pensamentos queDescartes vivo formou é impossível para uma razão de prin-cípio que é que nenhum pensamento se deixa separar Oidealismo estava e não estava nele, como, nas adivinhações,o coelho está na folhagem e não está enquanto não a olha-mos de um certo ângulo. O pensamento de um filósofofora de qualquer equívoco dos escritos e tomado, se issotem um sentido, em si mesmo, no estado nascente, nãosendo uma soma de ideias, mas um movimento que arrastaatrás de si um rasto e antecipa seu futuro, a distinção doque ali se encontra e do que as metamorfoses a vir ali en-contrarão, não pode, por assim dizer, deixar de ser macros-cópica. A comparar os próprios escritos de Descartes -— aordem de seus pensamentos, as palavras de que se serve,o que ele diz claramente e o que nega — com os escritos deSpinoza, as diferenças saltam aos olhos. Mas desde que seentre bastante em seus escritos para que a forma exteriorseja ultrapassada, e que apareça no horizonte o problemaque lhes é comum, os adversários de antes aparecem enga-jados um contra o outro na luta mais sutil, onde cada um,o parricida e o infanticida, bate-se com as armas que sãotambém as do outro. É próprio do gesto cultural desper-tar em outro senão uma consonância* pelo menos_um eco.Enquanto que Malebranche escreve a Dortous de Mairantodo o mal que pensa de Spinoza e que se afrontam dois

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pensamentos opacos e teimosos, eis que repentinamente noponto em que eles se chocam, reencontramos mais dois es-píritos singulares, cada um fechado sobre si e estranho aooutro: descobrimos que batendo no outro cada um se feretambém, não se trata mais de um combate singular, mas deuma tensão, no mundo cartesiano, entre a essência e a exis-tência. Não insinuamos aqui nenhuma conclusão cética:6 só no interior de um mesmo mundo cartesiano que osadversários são irmãos; e não o são sem querer: Malebran-che só é tão severo com Spinoza porque Spinoza tem-omeio de impulsioná-lo bastante longe na estrada do spino-zismo e que ele não quer nela ir. Não dizemos então quetoda oposição seja vã nem que alguma Providência nascoisas dá razão a todo mundo. Dizemos que num mesmomundo de cultura os pensamentos de cada um levam aooutro uma vida escondida, ao menos a título de obsessão,que cada um move o outro como é movido por ele, mistura-se ao outro no momento mesmo em que o contesta: istonão é princípio de ceticismo mas, ao contrário, de verdade.É porque, entre os pensamentos, se produz essa difusão,essa osmose, é porque a separação por compartimento dospensamentos é impossível, é porque a questão de saber aquem pertence um pensamento é desprovida de sentido quehabitamos verdadeiramente o mesmo mundo e que há nelepara nós uma verdade. E se, enfim, na falta de encontrarnas obras que ele escreveu ou nos pensamentos que viveuo absoluto de Descartes, procurávamos por ele na escolhaindivisível que subentendiam não somente essas obras eesses pensamentos favoritos mas também, no dia a dia,essas aventuras e essas ações, certamente chegaríamos assimao mais individual, ao que "mil anos de História não po-dem destruir24". Dizendo sim ou não ao que lhe era dadoa ver, a conhecer ou a viver, as decisões irrevogáveis deDescartes colocam um limite que nenhum outro futuropoderá arrancar, e definem, acreditaríamos, um absolutopróprio de Descartes que nenhuma metamorfose pode mu-dar. No entanto, toda. a-.questão não é saber se dizemossim ou não, mas por que o dizemos, que sentido damos aesse sim on a esse não, o que aceitamos exatamente dizendosim^ o_ que recusamos dizendo não. Já para seus contem- jporaneos, as decisões de Descartes precisavam ser compreen- !didas, e eles não o podiam fazer sem nisso colocarem algo

24. J. P. Sartre.

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lll' M . . 1 1 I ) |Hll|l||ll Ml>'HlUl l<H Mltll | i ' i i l l i l. M . i . , i - l l . | l H i ] > r i < > - {

un iu* , HI> i l M l h i l i N H i i i i - i i l i ' I M l i i i ) 1 " ' ' " - ' i ' 1 , i tem Nr esmagarM U I N I I I I M i l c i - U i i K N , I N M I H I < i i n i i i / i i n r in ; i ainda eni-lhc pre-

i l i N i i . i i i h ninei i i f i n n c i | I I M | I ! M ( j i n - manifestavam, oi | i i i < l l i cN i l i i v u < (u melhor, cada uma delas só tinha

| i i n v l n i i i l i ) «' precisava de continuações para ser1,oli i l i i i r t i l r drlrrmlmuia. A constatação do se esse, que asttrj/uldt' colocam no número das naturezas simples, de-via em Meditações se isolar delas como uma primeira ver-dade, como uma experiência privilegiada, O sentido dose esse de acordo com as Regulae ficava então em sursis.E como se pode dizer a mesma coisa de todas as outrasobras de Descartes, e como o filósofo cessa de escrever oumorre, não porque acabou sua obra mas porque, abaixode seu projeto total de viver e de pensar, alguma coisa ino-pinadamente se desfalca» como toda morte é prematuraao olhar da consciência que ela atinge, a vida e a obrainteira de Descartes só tomam finalmente um sentido irre-vogável aos olhos dos sobreviventes, e pela ilusão do es-pectador estranho. Para Descartes vivo, e tão estreitamenteque tivesse sido pressionado para se pronunciar em seuhorizonte histórico, em face de tal instituição, de tal UTo-sofia reinante, de tal religião, tão resolutamente ele tenhadito sim a isto» não aquilo, cada decisão longe de ser umabsoluto, podia ser interpretada pelos outros. A questão«lã religião de Descartes não fica decidida pela peregrina-ção a Notre-Dame-de-Lorette nem pelo que ele disse docatolicismo em suas obras: resta saber o que podia ser essesim, junto ao conjunto de pensamentos que ele exprimiualhures. Não se trata tanto de saber se ele foi religioso masexa que sentido o foi, que função preenchia a religião noconjunto Descarnes. Não estava ela só presente nele de

Imaneira marginal, anónima, como um elemento do equi-pamento histórico de seu tempo e sem compromisso comum centro próprio de seu pensamento, que colocaríamosna claridade natural? Ou, ao contrário, ia ela até o coraçãodo filósofo Descartes, e como ali se compunha com o resto?Essas questões, que chamam nossa interpretação, não seriapreciso postular que ele mesmo as tenha articulado e re-solvido no dia em que decidiu fazer uma peregrinação aNotre-Dame-de-Lorette, e que ele conservou em seu íntimo asolução num âmago que seria o absoluto de Descartes. Nãomenos obscuro aos seus próprios olhos do que aos nossos,pode acontecer que não tenha tido a chave de sua própria

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vida; que, nascido num tempo em que a religião estava es-tabelecida, ele participasse simplesmente dessa religião ge-ral e unisse crenças e uma luz natural, que nos parecemdiscordantes, sem lhes procurar centro comum; que, final-mente, ele não tivesse tido chave única dessa vida, queela só seja enigmática como o é o irracional, o fato puro,a vinculação de um pensamento a um tempo, quer dizer,enigmático em si, sem que em nenhum lugar haja uma so-lução... Que seja assim ou que, ao contrario, seja a reli-gião, seja o pensamento puro que dê a chave Descartes,enquanto o segredo dele mesmo não era dado exatamentenele; ?]fí tjnhq,, npn m^nos que nós, que decifra-1" n" itá-lo e é essa tentativa de interpretação queobra e sua vida. O absoluto de Descartes, o homem Descar-tes em seu tempo, duro como um diamante, com suas ta- 1

1 refas concretas, suas decisões, seus empreendimentos, nós é Jque imaginamos, porque ele está morto, e há muito tempo.Quanto a ele, no presente, não pode acontecer que não pro-duza, a cada minuto, uma significação Descartes, com tudoo que as significações comportam de contestável, não podefazer um gesto sem entrar no labirinto da interpretação de

1 si mesmo esperando que os outros nisso se metam. Maltocaria ele nesse concurso singular de circunstâncias queconstituem seu lugar histórico — ao ensino do colégio deLa Flèche, à geometria, à filosofia tal qual lhe deixaramseus predecessores, a essa guerra que vai fazer, a essa ser-va que lhe dará uma filha, aquela horrível rainha da Sué-cia que precisa instruir — tudo toma sob seus dedos umsentido Descartes, que se pode compreender de várias ma-neiras, tudo se põe a funcionar num mundo Descartes,enigmático como todo indivíduo; sua própria vida se põea testemunhar de uma maneira de tratar a vida e o mun-do e, como todos os outros, esse testemunho pede interpre-

í tacão. Não achamos nem mesmo no indivíduo total esse, próprio de Descartes que em vão procuramos em seu pen-samento, ou melhor, só o achamos ali em enigíijà,^sem acerteza de que o enigma comporta uma resposta. O que fazcom que essa vida, acabada há trezentos anos, não tenha fi-cado enterrada no túmulo de Descartes, que ela permaneçaemblema e texto a ler para todos nós, e que ela continua láembaixo, "desarmada e não vencida, como um limite", éjustamente porque ela já era significação e que nesse sen-tido ela chamava a noetamorfose. Em vão então procura-ríamos mesmo aqui alguma coisa que não seja só de Des-

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cartes. Ele não é singular como uma pedrinhajju_comouma essência,: é singular coma um tom, um estilo ou umalinguagem, quer dizer participarei pelos outros, e mais, queindivíduo. Mesmo religado à sua vida, o pensamento fiofilosofo,— o mais decidido que exista a ser explicitado^jise definir, a se distinguir — como o pensamento alusivgdo romancista não exprime sem subentendido.

Fica que a linguagem, mesmo se de fato recaia na pre-cariedade de formas de expressão mudas tem em princípiooutras intenções além delas. QJiomem que fala ou cpieescreve toma em relação ao passado uma atitude que, só édele. Todo o mundo, todas as civilizações continuam p,pas-'sado: os pais de hoje vêem sua infância na de seus pró-prios filhos, retomam para com eles as condutas de seuspróprios pais, ou, então, por rancor, passam ao extremooposto, praticam a educação libertária se sofreram a edu-cação autoritária, mas, por esse desvio, alcançam frequen-temente sua t_radição, já que a vertigem da liberdade le-vará a criança ao sistema da segurança e fará dela emvinte anos um pai autoritário. Cada conduta que assumi-mos em relação a um filho é percebida por ele não somenteem seus efeitos mas ainda em seu princípio. Ele não asofre somente como filho criança, ele a assume como adulto

l futuro, não é somente objeto mas já sujeito, fica cúmplicecom as próprias severidades que sofre, porque seu pai é um

^ outro ele mesmo. Daí vem que a educação autoritária nãofaz, como se poderia crer, verdadeiros revoltados: após asrevoltas da juventude, vê-se reaparecer no adulto a própriaimagem de seu pai. É talvez porque criança, com umasutileza extraordinária, não percebe somente a rigidez deseus pais mas, por detrás, o fundo de angústia e incertezaque frequentemente a motivam, que sofrendo com umaaprende a sofrer com a outra e, quando vier a hora deser pai, não fugirá a nenhuma das duas, e entrará por suaconta no labirinto da angústia e da agressão que faz os vio-lentos. Assim, a despeito dos ziguezagues, que levam àsvezes ao ponto de partida, e porque cada homenzinho, atra-vés de cada cuidado de que foi objeto, cada gesto que tes-temunha, se identifica à forma de vida dos pais, se estabe-lece uma tradição passiva à qual todo o peso da experiên-cia e das aquisições próprias não serão bastante para tra-zer alguma mudança. Assim se faz a temível e necessáriaintegração cultural, a retomada de idade em idade de umdestino. Claro, as mudanças intervêm — nem que fosse

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porque u n lum;» h e n l n nme|um>efl Hcm ter vivido as pré-MilHttiiH r ( | i i r HM e o i u l i i h m n | > i r m l l t l n : ; , laolodns di is experiên-cias ( j u c UM i i i o l i v i n u , podem Hcr por riu investidas de umnovo sentido. Mius cm todo eu.so, es.sa.s mudanças se fazem naobscuridade, é raro que a criança compreenda sua raça,compreenda as profundas emoções pelas quais começou aviver, e tire disso um ensinamento em vez de deixá-las agirnela. Ela se contenta normalmente em continuá-las, nãoem sua verdade, mas no que elas têm de injurioso e into-lerável. A tradição de uma cultura é nft .^i,pe.rfície mono-tonia e ordem, em profundidade tumulto e caos, e a própriarutura não é, mais que a docilidade, uma liberação.

A imensa novidade da expressão é que ela faz, enfim,sair a cultura tácita de seu círculo mortal. Quando asartes aparecem numa cultura, aparece também uma novarelação ao passado. Um artista não se contenta em con-tinuá-lo, pela veneração ou pela revolta; ele o recomeça;não pode, como uma criança, imaginar que sua vida éfeita para prolongar outras vidas; se ele pega o pincel, éque num sentido a pintura está ainda por fazer. No en-tanto, essa própria independência é suspeita: justamentese a pintura está sempre por fazer, as obras que ele pro-duzirá vão-se acrescentar às obras já feitas: elas não ascontêm, não as tornam inúteis, elas as recomeçam; a pin-tura aprpwita, n»"qpnjfl ffS fpi pnssfvpl graçafl fl tnpassado de pintura, nega demasiado deliberadamente essepassado para poder nit.raa-^-1" yprriaHpirgmpnfc Ela sópode esquecê-lo. E o preço de sua novidade é que ela fazparecer o que veio antes dela como uma tentativa falha,é que uma outra pintura amanhã a fará parecer co_mouma outra tentativa falha, e que, enfim, a pintura inteirase dá como um esforço abortado para dizer alguma coisaque permanece sempre a. dizer. É aaui que percebemoso próprio da linguagem.

Pois o homem que escreve, se não se contenta em con-tinuar a linguagem que recebeu, ou em redizer as coisasjá ditas, não quer.. -também substituí-la por um idiomaque, como o quadro, se baste e seja fechado sobre sua pró-pria significação. Quer realizá-la e destruí-la ao mesmotempo, realizá-la destruindo-a ou destruí-la realizando-a.Ele a destrói como palavra toda feita, que não revela maisem nós do que significações languescentes, e não tornapresente o que diz. Ele a realiza no entanto porque a

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T.-c-V

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língua dada que o penetra de parlo cm parte e já dá umafigura geral aos seus pensamentos mula secretos, não estálá como uma inimiga, e qu« no contrário está inteiramentepronta para converter um aquisição o que significa denovo. É como se ela tivesse sido feita para ele, mas tam-Bfim" ele feito puni Ha, como se o dever de falar que lhedetermina n língua c a qual ele foi votado aprendendo-a,fosse rir i i u - N i i i o , u mais justo título que a pulsação de suavida, ou qun a língua instituída já comportasse o escritorcm si mesma como um de seus possíveis. Cada pintura novatoma lugar no mundo inaugurado pela primeira pintura,consome o voto do passado, tem dele procuração, age emseu nome, mas não o contém em estado manifesto, ela émemória para nós se conhecemos além a história da pin-tura, ela não é memória para si, não pretende totalizar oque a tornou possível; a palavra, ao contrário, não contentede ir além, pretende recapitular, recuperar, conter em_ subs-tância o passado e, como não saberia, a menos que o repe-tisse textualmente, dá-lo a nós em sua presença, ela o faz. 50-frer uma preparação que o torna capaz de se manifestarnela; ela quer nos dar a verdade dele. Ela se ata sobre simesma, se retoma e se reapodera. Ela não se contenta emimpulsionar o passado fazendo-se um lugar no mundo, elaquer conservá-lo, em seu espírito ou em seu sentido. As pro-priedades do número fracionário não tornam falsas as donúmero inteiro, nem as geometrias não euclidianas as de Eu-clides, nem mesmo as concepções de Einstcin as da físicaclássica: as novas formulações fazem aparecer as antigascomo casos particulares especialmente simples, onde certas •possibilidades de variações não foram empregadas, e que só i/seriam enganadoras se as fizéssemos à medida do próprio 'ser. A geometria plana é uma geometria no espaço onde sefaz uma dimensão nula, o espaço euclidiano um espaço an dimensões onde se faz n — 3 dimensões nulas. A verdadedas formulações antigas não é então uma ilusão: são falsasno que negam, são verdadeiras no que afirmam e é depoisbem possível ver nisso uma tomada antecipada sobre asexplicitações do futuro. É então propriedade do algoritmoconservar as formulações antigas à medida que ele as mu-da em si mesmas e em seu sentido legítimo, reafirmá-las nomomento em que as ultrapassa, salvá-las destruindo-as, econsequentemente fazê-las aparecer como partes de uma to-talidade em construção, ou como esboços de um conjunto

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imoAqui U rtMlInu nlm.u.i iinii iinimuM mniirllir

nliiriiu. i- ln Inli^m MM pi liiicli nn il^iinu r/ii'.iliinriim rtninrnir puni n hilmo um vn^o npclo, Mr, n) i jur rir ivnll/.ii r n i j i i c ln Illt-Nlllll qur rhiinm vn . |H qiir n

.salva — , ela 6 a experiência da n i r . -umi vrnlmlr na qualvirá fundir-se. Daí vem que nisso há aquisição da clòncla,r i iquanto que a pintura está sempre em suspenso, dai vcinque o algoritmo torna disponíveis as significações que eleconseguiu proferir, quer dizer que elas nos parecem leya_r,além de suas formulações provisórias, uma existência inde-pendente. Ora, há alguma coisa de análogo em toda lin-guagem. O escritor só se concebe numa língua estabeleci-da, enquanto cada pintor refaz a .sua. E isto quer dizer |jque a obra da linguagem, construída a partir desse bem co- /mum que é a língua, pretende nela se incorporar. Isto querdizer também que ela se dá de um só golpe como incluídana língua, ao menos a título de possível; as próprias trans-formações que leva a ela nela permanecem reconhecíveisapós a passagem do escritor, enquanto a experiência deum pintor, passando em seus sucessores, cessa de ser iden-tificável. Isto quer dizer que o passado da linguagem não ésomente passado superado, mas também passado compre-endido. A pintura é Tmiffe

Há um uso crítico, filosófico, universal da língua, quepretende recuperar as coisas como elas são, enquanto a pin-tura as transforma em pintura — que pretende recuperartudo, e a própria linguagem, e o uso que dela fizeram outrasdoutrinas. Sócrates mata Permênides, mas os assassinatosfilosóficos são ao mesmo tempo o reconhecimento de umafiliação. Spinoza pensa exprimir a verdade de Descartes, e,claro, Hegel a verdade de Spinoza, de Descartes e de todosos outros. E é evidente, sem outros exemplos, que o filósofo,do momento em que visa à verdade não pensa que ela otenha esperado para ser verdadeira, visa-a como verdadedesde sempre. É essencial à jrgrdade ser integral, enquantoque nenhuma pintura válida jamais pretendeu ser integral.Se, como diz Malraux, a unidade dos estilos só aparece noMuseu, na comparação das obras, se ela está entre os qua-dros ou atrás deles, ao ponto de o Museu fazê-los aparecercomo super artistas, atrás dos artistas, e a história dapintura como uma onda subterrânea de que nenhum delesesgota a energia, é que o Espírito da Pintura é um espíritofora de si. É, ao contrário, essencial à linguagem procurar

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t NU, 1'Hll lplUUt | H t l M 1 ' l l l l r i l n W^ITi lc i i lr HI1US prÓ-I H V ;Ol'N l l l ' MÍIIl>, 'l"1 f " l l t l Kn|)l'P It pllllWI'U, CHI VCZ

< ) M M i i i n i > i t t i > r m p i i r . i t l " . ' ' " i i i m o ivtplriLu da llnguagem_éMM p i i < h < i n l i < n i ' i r n p i i i i n pnm .M, quereria nada ter a nãoMCI t l n «I. A uULudu du. linguagem e a da pintura a respeitod t p l.cinpo são quase opostas. Apesar das roupas dos persona-gens, da forma dos móveis e dos utensílios que nele figu-ram, as circunstâncias históricas às quais pode aludir, oquadro instala na mesma hora seu charme numa eternida-de sonhadora onde, vários séculos mais tarde, não temosdificuldade em alcançá-lo, sem mesmo ter sido iniciadosna história da civilização em que ele nasceu. O escrito, aocontrário, só começa a nos comunicar seu sentido mais du-rável após nos ter iniciado nas circunstâncias, debates hámuito passados: As Provinciais não nos diriam nada se nãoremetessem ao presente as disputas teológicas do séculoXVII, em O Vermelho e o Negro as trevas da Restauração.Mas esse acesso imediato ao durável que a pintura se ou-torga, ela o paga curiosamente e sofre, muito mais que alinguagem, o movimento do tempo, as próprias obras-pri-mas de Leonardo da Vinci nos fazem pensar mais nele doque em nós, na Itália mais que nos homens. E, ao contrá-rio, a literatura, na própria medida em que ela renuncia àprudência hipócrita da arte, em que ela afronta bravamen-te, o tempo, em que ela mostra, em vez de evocar vagamen-te, o fundamento em significação para sempre. Sófo-cles, Tucídides e Platão não refletem a Grécia, eles a fa-zem ver, mesmo a nós que estamos tão longe. As estátuasde Olimpia, que fazem outro tanto ou mais para nos ligara ela, alimentam também no estado em que chegaram anós — embranquecidas, quebradas, destacadas da obra to-tal — um mito fraudulento da Grécia, não resistem aotempo como o pode fazer um escrito. Manuscritos rasgados,quase ilegíveis, e reduzidos a algumas frases, nos dão maisesclarecimentos do que estátua alguma em pedaços o po-deria fazer, porque a significação está neles depositada deoutra maneira, concentrada de outra maneira, porque na-da iguala a maleabilidade da palavra. A primeira pinturainaugura um mundo, a primeira palavra abre um universo.Enfim a linguagem diz e as vozes da pintura são as vozesdo silêncio... Se espremermos o sentido dessa pequenapalavra dizer, se esclarecermos o que faz o preço da lin-guagem, acharemos nela a intenção de desvendar a própria

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coisa, de ultrapassar o enunciado em direcão. do .que elesignifica. Cada palavra pode reenviar a todas as outras pa-lavras possíveis e tirar delas seu sentido, permanece queno momento em que ela se produz, a tarefa de exprimir nãoé mais diferenciada, reenviada a outras palavras, ela estáfeita e nós compreendemos alguma coisa. Dizíamos maisalto com Saussure que um ato singular de palavra não é desi significante e só. vem a sej. como .modulação de um siste-ma geral de expressão, e desde qm? SR diferen.™* ifog outP"gestos linguísticos que compõem a língua, tão bem que a lín-gua só pode, em suma, carregar diferenças de significaçõese pressupor uma comunicação geral, mesmo se vaga e inar-ticulada. É preciso agora acrescentar: a maravilha P T1P *"-tes de Saussure não sabíamos nada disso, e que o esquece-mos ainda cada vez que falamos, por exemplo quando fala-mos de Saussure. A maravilha é que, simples poder de di-ferenciar significações, e não de dá-las a quem não as teria,a palavra parece, no entanto, contê-las e veiculá-las. Istoquer dizer que não devemos deduzir o poder significantede cada uma do poder das outras, o que faria círculo, nemmesmo de um poder global da língua: um todo pode ter ou-tras propriedades além de suas partes, não se pode fazerex-nihilo. Cada ato linguístico, parcial como parte de umtodo e ato comum do todo da língua, não se limita a dis-pender seu poder, ele o recria porque nos faz verificar,na evidência do sentido dado e recebido, a capacidade quetêm os sujeitos falantes de ultrapassar os sinais em direcãodo sentido, do qual após tudo o que chamamos língua só éo resultado visível e o registro. )s sinais não evocam somen-te para nós outros sinais, e isto sem fim, a linguagem nãoé como uma prisão onde estejamos, encerrados, ou um guiacujas indicações devêssemos seguir cegamente, porque emseu uso atual, na integração desses mil gestos, aparece,enfim, o que eles querem dizer, e ao que eles nos proporcio-nam um acesso tão fácil que não teremos nem mais neces-sidade deles para aí nos referirmos. Mesmo se, em seguida,nos apercebêssemos que não tocamos ainda as próprias coi-sas, que essa parada na volubilidade de nosso espírito só exis-tia para preparar uma nova partida, que o espaço euclidia-no, longe de se oferecer com uma claridade última, tinhaainda a opacidade de um caso muito particular e que suaverdade só era verdade de segunda ordem, que precisava serfundada numa nova generalização do espaço, permanece que

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O m o v i m e n t o pelo qual pnrtnamon de nmn evldenelnli uma iwldenela (|nn o 6 mei ion enlidielece cnhe uma e ou-tra nmn retaeuo t le |inpllru<;ito mie r própria da» coisas( I l l i m O r r i m i l / n l i e i i l r i i . eomo u r l IóMolo , elioriL.se sobre OSparadoxon d» ex lNlene l a e um n oid.ro eoiiHomem suas for-l'iin n NP 1'Hpanlar, empenham «e, «e quisermos, um e outro,u l e e i i p r n i r nmiplr l m i i r i i l r o mundo. Mas não ao mesmoponto O rraeaitm» do enqnl/.orrflnlco é sofrido, e só se f azconhecido por i t l ^n inaM 1'ra.se.s enigmáticas. O_ que charna-niof* o frara.HNo tio filósofo deixa atrás rfpjp tndn nm~raBtndr n l U M de expressão que nos fazem retomar nossa condi-rão. Quando então comparamos a linguagem às formasmudas da expressão — ao gesto, à pintura —, é preciso verbem que ela não se contenta, como as outras, em desenhar,na superfície do mundo, vetores, direções, uma deforma-ção coerente, um senso tácito. O chimpanzé que aprendea empregar um ramo de árvore para atingir seu objetivosó o f az comumente se os dois objetos puderem ser vistosnum só olhar, se estão em contato visual. Ele não vê oramo de árvore como bastão possível a não ser que elese ofereça no mesmo campo visual onde figura também oobjetivo. É dizer que esss^senUdjo. novo do ramo é um feixede intenções práticas que o reúnem ao objetivo, à iminên-cia de um gesto, ao índex de uma manipulação. Ela nascesobre o circuito do desejo, entre o corpo e o que procura,e o ramo de árvore só se vem intercalar nesse trajeto por-que o facilita, não conserva todas as suas propriedades deramo de árvore. Os psicólogos mostram que uma caixa é paraum chimpanzé ou meio de se sentar ou meio de subir, masnão os dois ao mesmo tempo. Basta que um congénere es-teja sentado sobre a caixa para o chimpanzé parar detratá-la como meio de subir. É dizer que a significação quehabita essas condutas é como que viscosa; adere á distri-buição fortuita dos objetos, só é significação para um corpoengajado em tal momento em tal tarefa. A significação dalinguagem, no momento em que nós a aprendemos, pareceao contrário se liberar de qualquer tarefa. Quando, paraencontrar a superfície do paralelograma, eu o trato comoum retângulo possível e enuncio aquelas suas proprieda-des que autorizam por princípio a transformação, não melimito a mudá-lo, pretendo que essa mudança o deixe inta-to e que no próprio paralelograma, sendo ele um retângulopossível, a superfície é igual ao produto da base pela altura.

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Não temos somente substituição de um sentido a outro, massubstituição de sentidos equivalentes, a nova estrutura nosaparece como já presente na antiga, ou a antiga aindapresente na nova, o passado não é simplesmente ultrapas-sado, é compreendido, o que exprimimos dizendo que háverdade e que aqui emerge o espírito. Antes, como num ca-leidoscópio, uma nova paisagem era repentinamente dadaà ação do animal, oferecendo-lhe algumas condições dofato que ele aproveitaria, agora o mesmo objeto nos revelauma propriedade sua, que tinha antes de nós, que conser-vará depois. Passamos da ordem das causas à ordem dasrazões, e de um tempo que acumula as mudanças a um tem-po que as compreende.

O que é preciso ver, no entanto, é que não saímos sem-pre do tempo, nem de um certo campo de pensamento, queaquele que compreende mesmo a geometria nem sempre éum espírito sem situação no mundo natural e na cultura,que ele é herdeiro, no melhor dos casos o fundador, de umacerta linguagem, <juê~ a significação não transcende a pre-sença de fatos dos sinais, que como instituição está alémdas contingências que a fizeram nascer. Certo, quandoGalileu conseguiu reunir sob uma significação comum osmovimentos uniformemente acelerados, os movimentos uni-formemente retardados, como o de uma pedra que se atirapara o céu, e o movimento retilíneo uniforme de um corpoque não é submetido à ação de nenhuma força, as três or-dens de fatos tornam-se bem as variantes de uma só dinâmi-ca, e nos parece ter fixado uma essência de que eles são sóexemplos. Mas esta significação só pode por princípio trans-parecer através das figuras concretas que ela une. Que elanos apareça a partir desses casos particulares, isto nãoé um acidente de sua génese, que não afetaria a si própria,isto está inscrito em seu conteúdo e se quiséssemos desta-cá-la das circunstâncias em que se manifesta, ela se anu-laria sob nossos olhos. Ela não é tanto uma significaçãoalém dos fatos que a significam, mas sim o meio pelo qualpodemos passar de um a outro, ou o traço de sua geraçãointelectual. A verdade única e comum, de onde os vemo*emanar depois, não está atrás deles como a realidade estáatrás da aparência, ela não pode fundar nenhum movi-mento progressivo pelo qual deduziríamos dela, ela não ésua verdade a não ser com a condição de a mantermossempre em seu contato. Quando Gauss nota que a soma

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K |MlMtHliiiM imiiiun-, r l. M» iln notim* purdnls,

lHihiPi|llfi|iliitMPlitn nina r ) | ' . i i ; i l u / / ; l e chega

n *M n i ii rónimlii - (n | 1), quando dá esta significação2

a toda sequência contínua de números, o que o assegurade ter descoberto sua essência e verdade, é que vê derivarda série de números os pares de valor constantes que vai

ncontar, em vez de efetuar a soma. A fórmula - (n -f- 1)

não leva à essência desse fato matemático, só é demonstra-da na medida em que compreendemos, sob o mesmo sinal ndua_s vezes empregado, a dupla função que ele preenche:a da quantidade de números a somar (n ordinal) e a donúmero final da série (n cardinal) . E qualquer outra fórmu-la, equivalente aos olhos do algebrista, que podemos tirar

n + l n (n + 1) (n2 + n)dessa, tal qual - (n) ou - ou - ,

2 2 2só tem valor expressivo por seu intermediário, porque elasó faz ver a relação entre o objeto considerado e sua ver-dade. Claro é permitido a um pensamento cego usar essasúltimas fórmulas e nos assegurarmos que os resultados quese obterá por esse meio serão verdadeiros também, somentena medida em que tivermos podido construí-los a partirdele, reiterando a operação que nos tinha permitido cons-truí-la a partir da série de números. Assim nada, limitanosso poder de formalizar, quer dizer de construir expres-sões cada vez mais gerais de um mesmo fato, mas, pormais longe que vá a formalização, sua significação perma-nece como que em sursis, não quer atualmente dizer nadae não tem nenhuma verdade enquanto não apoiarmos suassuperestruturas sobre uma coisa vista. Significar, signifi-

j car alguma coisa, este ato decisivo só é consumado quandol as construções se aplicam ao percebido como ao que tem

significação ou expressão, e o percebido com suas signifi-cações viscosas fica em dupla relação com o compreendido:de um lado ele só è esboço e início, chama uma retomadaque o fixa e o faz ser enfim; de outro ele é seu protótipo eacaba só de fazer do compreendido a verdade atual. Certo,

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só é preciso que o sensível, se entendemos por isso a quali-dade, contenha tudo o que pertence, e não há mesmo qua-se nada na percepção humana que seja inteiramente sen-sível, o sensível é inencon travei. Mas não há nada tambémique possamos pensar efetivamente e atualmente sem religá-lo ao nosso campo de presença, à existência atual de um/percebido, e nesse sentido ele contém tudo. Não há ver-dade que possa somente se conceber fora de um campo depresença, fora dos limites de uma qualquer situação e deuma estrutura qualquer que seja. É-nos dado sublimar essasituação até chegar ã fazê-Ta parecer como caso particularde toda uma família de situações, mas não de cortar as raí-zes que nos implantam numa situação. A transparênciaformal do algoritmo recobre uma operação de vaivém entreas estruturas sensíveis e sua expressão, e toda a génese designificações médias, mas é preciso reativá-las para pensaro algoritmo?

Embora o próprio da sedimentação nas ciências sejacontratar na evidência de uma só tomada uma série deoperações, que não precisam mais ser explicitadas paraoperar em nós, a estrutura assim definida só tem seu ple-no sentido e se presta a novos progressos do saber se con-serva alguma relação com nossa experiência, e se reco-meçamos, mesmo por uma via mais curta, a construí-la apartir dela. Nós é que dizemos que as teorias ultrapassadassão conservadas pelas teorias ulteriores: elas só o são me-diante uma transposição que converte em transparênciaaquilo que, nelas, era opaco como todo dado de fato; esseserros só são salvos como verdade, não são então salvos.E talvez com eles nossa teoria deixe, fora de si mesma esuas evidências, uma franla de saber pressentido que aciência, em sua próxima curva, retomará. A ciência válidanão é feita de seu presente somente, mas também de suahistória.

Se isso é verdade do algoritmo, por razão mais forteo é da linguagem. Hegel é o único a pensar que seu sistemacontém a verdade de todos os outros, e se alguém os co-nhecesse só através de sua síntese, não os conheceria nada.Mesmo se Hegel é verdadeiro, do começo an fim, naria rifc-pensa ler aqueles que vieram antes dele, .pois ele não ospode conter a não ser "no que eles afirmam". Conhecidos \o que negaftv, oferecem ao leitor uma outra situação de

pensamento," "que não está em Hegel eminentemente, que /

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não está absolutamente nele, de ondo Hcgcl 6 visível numângulo que ele mesmo Ignora. Hugol c o único a pensarque ali não está para ou trem c seja aos olhos dos outrosexatamente o que ele sabe ser. Mesmo se ele representaum progresso em relação às outras filosofias, pode .haveraíj.em tal passagem de Descartes ou de Platão, em tal mo-vimento das Meditações ou dos Diálogos, e justamente porcausa das ingenuidades que as mantinham ainda afas-tadas da verdade hegeliana, um contato cnm as coisas,uma faísca de significação que só passariam eminentementena síntese hegeliana, e às quais seria preciso sempre ,yoj-tar, nem que fosse para compreender Hegel. Hegel é. omuseu, é todas as filosofias, se quisermos, ma.s privariasde sua zona de sombra, de sua finitude, de seu impactovivo, embalsamadas, "transformadas, acredita ele, nelasmesmas, mas para dizer a verdade transformada nele.Basta ver como uma verdade deperece quando cessa deser sozinha e quando é integrada a outra verdade maisampla — como por exemplo o cogito, quando ele passade Descartes a Malebranche, a Leibniz ou mesmo a Spino-sa, cessa de ser um pensamento e torna-se um conceito,um ritual que se rediz na ponta dos lábios — para com-preender que a síntese não pode, sob pena de morte, seruma síntese objetiva, que contivesse efetivamente todosos pensamentos terminados, ou ainda uma síntese real queseria tudo o que eles foram, ou, enfim, uma síntese em epara si que, no mesmo tempo e sob a mesma relação, sejae conheça, seja o que conheça, conheça o que é, conservee suprime, realize e destrua.

Hegel nos diz que a síntese conserva o passado "emsua profundidade presente". Mas como tem ela profundi-

• ' dade e qual é essa profundidade? É a profundidade do queela não é mais, é a profundidade do passado, e o pensamentoverdadeiro não o engendra, ela nele foi iniciada só pelofato do passado ou pela passagem do tempo. Se Hegel querdizer que essa passagem não é simples destruição e que opassado, à medida que se afasta, se transforma em seusentido, se quer dizer que, a igual distância entre uma or-dem de imutáveis naturezas e a circulação dos momentosdo tempo que se expulsam um ao outro, podemos depoisretraçar um encaminhamento de ideias, uma história in-teligível e retomar todo o passado em nosso presente vivo,ele tem razão. Mas com essa condição é que essa síntese,

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como aquela que nos dá o mundo percebido, permaneceda ordem do pré-objetivo e seja contestada por cada umdos termos que une, ou sobretudo é com a condição quecada um deles permaneça, como foi no presente, igual aotodo, o todo do mundo na data considerada e que o enca-deamento das filosofias numa história intencional perma-neça na confrontação de significações abertas, uma trocade antecipações e de metamorfoses. É certo num sentidoque o menor estudante de filosofia hoje pense com menospreconceitos que Descartes, e no sentido que ele está maisperto do verdadeiro, e essa pretensão é postulada por todohomem que se ponha a pensar depois de Descartes. Mas éainda Descartes que pensa através de seus sobrinhos-netos,e o que podemos dizer contra ele é ainda o eco de sua pa-lavra breve e decidida. É pelos outros que compreendemosHegel, no tanto que ele os ultrapassa, tanto quanto com-preendemos os outros por ele. Um presente que contivesserealmente o passado em todo o seu sentido de passado e,em particular, -Q passado-de-. todos- os passados, & jnundoem todo o seu sentido de mundo, seria também um presen-te sem futuro, já que nisso não haveria mais nenhuma re-serva de ser de' onde alguma coisa pudesse lhe vir. O ídolocruel do em si para si hegeliano é exatamente a definiçãoda morte. A sedimentação não é o fim da História. Não háHistória se nada permanece do que passa e se cada pre-sente, justamente em sua singularidade, não se inscreveuma vez por todas no quadro do que foi e continua a ser.Mas não há também História se este quadro não se cavasegundo uma perspectiva temporal, se o sentido que neleaparece não é o sentido de uma génese, acessível somentea um pensamento aberto como a génese o foi. Aqui o cúmu-lo da sabedoria e da manhã é uma ingenuidade profunda.

Quanto à literatura, aceita nmyiumente mais resoluta-nunca ser--total, e P" nng riá gígnificflT^g? ffierJRfi? O

próprio Mallarmé sabe bem que nada sairia de sua pena seele não permanecesse absolutamente fiel a seu voto de di-zer tudo, que só pode escrever livros renunciando ao Livro,ou melhor, que o Livro só é escrito em vários. Cada escritorsabe bem que, se a língua nos dá mais do que saberíamosencontrar por nós mesmos, não há a idade de ouro da lin-guagem. Quando recebeu a língua que escreverá, tudo está jainda por fazer, é-lhe preciso refazer sua língua no interior Jdessa língua; ela só lhe fornece uma sinalização exterior das •

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coisas; o contato pretendido com elas não está no começo dalíngua, mas no final de seu esforço, e nesse sentido a existên-cia de uma língua dada nos mascara mais do que nos mostraa verdadeira função da palavra. Quando colocamos emcontraste a eloquência da linguagem e o silêncio da pintu-ra, é comum compararmos a linguagem clássica e a cin-tura moderna. Se comparássemos a linguagem do escritormoderno e a aparente eloquência da pintura clássica, tal-vez o resultado fosse inverso — ainda, ou sobretudo, reen-contraríamos sob a estreiteza dos pintores clássicos suaprofundidade tácita e de novo pintura e linguagem apare-ceriam iguais no prodígio da expressão.

Todos os homens não pintam, é verdade, no lugar de/todos os pintores falarem, e bem além das necessidadesf da vida, e mesmo de sua pintura. O homem sente-se em casa' na linguagem como jamais se sentirá na pintura. A lin-guagem comum ou os dados da língua lhe proporcionama ilusão de uma expressão absolutamente transparentejsque atingiu seu objetivo. Mas após tudo a arte, também,passa nos costumes, é capaz da mesma evidência menor,após um tempo se generaliza, e o que pode permanecer desurrealismo na frente de nossas lojas vale mais ou menoso que pode restar da verdadeira filosofia ou da verdadeiraciência na linguagem do senso comum, e mesmo o que poderestar de Platão em Aristóteles, ou de Descartes em Hegel.Se é legítimo colocar ao ativo da linguagem não somenteas línguas, mas também a palavra, seria preciso, para serequitativo, contar ao ativo da pintura, não somente os atosde expressão registrados, quer dizer os quadros, mas aindaa vida contínua de seu passado no pintor trabalhando. Ainferioridade da pintura estaria relacionada então ao faTÕ"dela só se registrar em obras e não poder fundar as rela-ções cotidianas dos homens, enquanto que a vida da lin-guagem, porque usa palavras feitas e uma matéria sonorarfc qnp todos SQmos_xicos, se_dá o comentário [perpétuo]da língua falada. Não contestamos o próprio da sedimen-tação linguajeirá: o poder, próprio às formas críticas dalinguagem, senão de destacar as significações dos sinais,o conceito do gesto linguístico, pelo menos de encontrar,para a mesma significação, vários corpos expressivos, derecortar e retomar uma pela outra suas operações sucessi-vas ou simultâneas e assim religá-las todas numa só con-figuração, numa só verdade. Dizemos somente que esse

sistema, se desloca o centro de gravidade de nossa vida,institui para tudo o que podemos ler uma instância deverdade cuja mola não pode ser limitada, e faz assim apa-recer a pintura como um modo de expressão muda e su-bordinada, não franqueou no entanto limites próprios àexpressão sensível, só faz levá-los mais para longe, e quea luz natural que o descobre para nós é aquela mesmaque torna visível o sentido do quadro e não mais que elerecupera o mundo sem resto; de maneira que, quando alinguagem tornou-se bastante consciente de si para per-ceber isso, quando quer paradoxalmente designar e no-mear a significação sem nenhum sinal, o que acredita sero cúmulo da claridade e que seria seu desaparecimento,enfim o que Claudel chama Sigè Vábime, é-lhe precisorenunciar a ser a esfera de Parmênides ou a transparênciade um cristal cujos lados são visíveis a um só tempo e vol-tar a ser um mundo cultural, com suas facetas identificá-veis, mas também suas fissuras e lacunas.

Precisamos então dizer da linguagem em relação aosentido o que Simone de Beauvoir diz do corpo em rela-ção ao espírito: que não é primeiro, nem segundo. Não segosta por princípios e se houve filósofos para fazer, con-tra o amor, o elogio do casamento, pelo menos eles nãopretenderam definir o amor pelo casamento. Ninguém en-tão ousou jamais colocar verdadeiramente a alma no cor-po como o piloto em seu navio, nem fazer do corpo um ins-trumento. E como não é além disso só o corpo que ama(ele arranca àqueles que só quereriam viver dele gestosde ternura que vão além dele), ele é nós e ele não é nós,faz tudo e não faz nada. Nem fim, nem meio, ele está sem-pre misturado a empreendimentos que o ultrapassam,sempre ciumento de sua autonomia, bastante poderosopara se opor a qualquer fim que não fosse deliberado, nãotem nenhum a nos propor se enfim nos voltamos para elee o consultamos. Às vezes, e é então que temos o senti-mento de ser nós mesmos, ele se presta verdadeiramenteao que queremos, se deixa animar, toma por sua conta umavida que não é somente a sua; então, é feliz e espontâneo,e nós o somos. A linguagem, ela também, não está a servi-ço do_senticjQ, e não governa o sentido; de um ao outro nãoM_subQrdinacão» Jieja (ilatinção .que, .secunde. Aqui nin-guém comanda e ninguém obedece: falando ou escreven-do não nos referímos._a^algu_ma coisa a dizer que esteja

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diante fo r>ng^Higt.int,a palavra./* que temos a di-.zer só é uinexcessO- do que vivemos sobre o que ia foi õTto.Nós nos insTaiamos, com nosso aparelho de linguagem, nu-ma certa situação de saber e de história à qual ela é sen-sível, e nossos enunciados só são o levantamento final des-sas trocas. O pensamento político, a despeito das aparên-cias, é da mesma ordem: é sempre a elucidação de umapercepção histórica onde entram todos os nossos conheci-mentos, todas as nossas experiências, todos os nossos va-lores e do qual nossas teses são a formulação esquemática.Toda ação e todo conhecimento que não passam por essaelaboração, que quereriam posar ex-nihilo dos valores quenão tenham tirado de nossa história individual e coletiva,o que faria do cálculo dos meios um procedimento de pen-samento todo técnico, traz de volta o conhecimento e aprática aquém dos problemas que queriam resolver. Avi-4a_pessoal, o conhecimento e a História RO aYfrPfi3™ nh1i-quamente. e não reio e imediatamente em direrón de finsOTTconcéítos. O que procuramos demasiado deliberadamen-te não obtemos, e as ideias, os valores são, ao conirauo,dados por acréscimo àquele que soube libertar a fonte, querdizer, compreender p que vive. Eles só se oferecem primei-ro à nossa vida sigri!ticàntê'e falante como núcleos resis-tentes num meio difuso, não se definem e não se circuns-crevem, como as coisas percebidas, a não ser jpela cumpli-cidade de um fundo, e supõem tanto de sombra quantode luz. Nem é preciso dizer que os fins aqui preservem osmeios; não são nada mais que seu estilo comum, são o sen-tido total dos meios de cada dia, são a figura momentâneadesse sentido. E jnesmo as mais puras verdades supõemvistas marginais, não estaco inteiras no centro de visãoclara, e devem seu sentido aoTiõ"rizontè~qúè"propicia à suavolta a sedimentação e a linguagem.

Talvez o leitor dirá aqui que o deixamos com fome eque nos limitamos a um "é assim" que não explica nada.Mas é que a explicação consiste em tornar claro o que eraobscuro, a justapor o que estava implicado: ela tem en-tão seu lugar próprio no conhecimento da Natureza emseus começos, quando acredita justamente ter que ver comuma Natureza pura. Mas quando se trata da palavra oudo corpo ou da História, sob pena de destruir o que elaprocura compreender, e de achatar por exemplo a lingua-gem sobre o pensamento ou o pensamento sobre a língua- ;

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gem, só se poder fazer ver o jjara^qxo da expressão. A fi-losofia é o inventário dessa dimensão verdadeiramente uni-versal, onde princípios e consequências, meios e fins fazem

l círculo. Ela só pode, no que toca à linguagem, mostrar como dedo como, pela deformação coerente dos gestos e dossons, o homem chega a falar uma língua anónima, e peladeformação coerente dessa língua exprimir o que só exis-tia para ele.

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O Algoritmoe o Mistério da Linguagem

Várias vezes contestamos que a linguagem não esti-vesse ligada ao que significa a não ser pelo hábito e a con-venção: é bem mais próximo e bem mais afastado. Numsentido ela dá as costas à significação, não se preocupacom ela. É menos uma tabela de enunciados satisfatóriospara pensamentos bem concebidos do que uma profusãode gestos inteiramente ocupados em se diferenciar um dooutro e de se recortar. Os fonólogos viram admiravelmen-te essa vida sublinguística cuja indústria toda é diferenciare colocar em sistema sinais, e isso não é verdade somentede fonemas antes das palavras, é verdade também de pa-lavras e de toda a língua, que não é primeiro sinal de cer-tas significações, mas poder regulado de diferenciar a ca-deia verbal segundo dimensões características de cada lín-gua. Num sentido, a linguagem só tem que ver consigomesma: no monólogo interior como no diálogo não hápensamentos: são palavras que as palavras suscitam e,na medida mesmo em que pensamos mais plenamente,as palavras preenchem tão exatamente nosso espírito quenele não deixam um canto vazio para pensamentos purose para significações que não sejam linguajeiras. O misté-rio é que, no momento mesmo em que a linguagem estáassim obsedada por si mesma, lhe é dado, como que poracréscimo, nos abrir a uma significação. Dir-se-ia que éuma lei do espírito de só achar o que ele não procurou.Num instante esse fluxo de palavras se anula como baru-

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lho, nos atira em cheio ao que quer dizer, e, se a isso res-pondemos por palavras ainda, é sem querer: não pensamosmais nas palavras que dizemos ou que nos dizem do quena mão que apertamos: ela não passa de um pacote deosso e carne, não é mais do que a própria presença de ou-trem. Há então uma singular significação da linguagem,tanto mais evidente quanto mais nos abandonamos maisa ela, tanto mais equívoca quanto menos pensamos nela,rebelde a qualquer tomada direta, mas dócil ao encanta-mento da linguagem, sempre lá quando nos pomos a evo-cá-la, mas sempre um pouco mais longe que o ponto ondeacreditamos atingi-la. Como Paulhan o diz perfeitamente,ela consiste em "clarões sensíveis a quem os vê, escondi-dos a quem os olha", e a linguagem é feita de "gestos quenão se consumam sem alguma negligência".1 Ele é o pri-meiro a ter visto que a palavra em exercício não se con-tenta em designar pensamentos como um número, na rua,designa a casa de meu amigo Paul, mas verdadeiramentese metamorfoseia neles como eles se metamorfoseiam ne-la: "metamorfose pela qual as palavras cessam de ser aces-síveis aos nossos sentidos e perdem seu peso, seu barulho,e suas linhas, seu espaço (para se tornar pensamentos).Mas o pensamento de seu lado renuncia (para se tornarpalavras) à sua rapidez ou sua lentidão, à sua surpresa,à sua invisibilidade, ao seu tempo, à consciência interiorque dele tomamos".2 Tal é bem o mistério da linguagem.

Mas o mistério não nos condena ao silêncio? Se a lin-guagem é comparável a esse ponto do olho de que falamos fisiologistas, e que nos faz ver todas as coisas, não sa-beria, evidentemente, se ver a si mesma e não podemosobservá-la. Se se furta a quem a procura e se dá a quem aela renunciara, não se pode considerá-la em face, só restapensá-la enviesado, mimar ou manifestar seu mis-tério3, só resta ser linguagem, e Paulhan parece resignar-se a isso. No entanto, isto não é possível, e segundo seuspróprios princípios. Não se pode mais ser simplesmente alinguagem após tê-la colocado em questão: é cientementeque se retornaria a ela e, Paulhan o disse, ela não admiteessas homenagens medidas. Ao ponto de reflexão em quePaulhan chegou, ele só pode reencontrar o uso inocente

1. Lês Fleurs de Tarbes, p. 177.2. Cie} de Ia Poésie, 2.a ed., N. R. F., 1944, p. 86.3. Ibid., p. 11.

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da linguagem num segundo grau da linguagem, e, em fa-lando dela, o que se chama filosofia. Mesmo se for só paramimar ou manifestar a linguagem, falaremos dela, eaquilo de que falaremos não sendo aquele quem dela fala,o que diremos não será a definição suficiente. No momentoem que acreditamos apreender o mundo, como é sem nós,não é mais ele que apreendemos já que estamos lá paraapreendê-lo. Da mesma maneira, permanecerá sempre,atrás de nossos propósitos sobçe a linguagem, mais lingua-gem viva do que eles conseguirão imobilizar sob nossoolhar. No entanto a situação não seria sem saída, esse mo-vimento de regressão não seria vão e vã com ele a filosofia,a não ser que se tratasse de explicar a linguagem, decom-pô-la, deduzi-la, fundi-la, ou de qualquer outra operaçãoque dela fizesse derivar a claridade própria de uma fonteestranha. Então, a reflexão se daria sempre, sendo refle-xão, então palavra, o que ela pretende tomar por tema, eseria por princípio incapaz de obter o que procura. Mas háuma reflexão e há uma filosofia que não pretende cons-tituir seu objetivo, ou rivalizar com ele, ou clareá-lo comuma luz que já não seja sua. Falam-me e eu compreendo.Quando tenho o sentimento de só ter a ver com palavrasé que a expressão falhou, e, ao contrário, se é bem suce-dida, parece-me que penso lá, em voz alta, nessas pala-vras que eu não disse. Nada é mais convincente do que essaexperiência, e não se trata de procurar em outro lugar anão ser nela o que a torna incontestável, substituir a ope-ração da palavra por alguma pura operação de espírito. Ésomente questão — e é toda a filosofia — de tirar partidodessa evidência, confrontá-la com as ideias feitas que te-mos da linguagem, da pluralidade dos espíritos, de resta-belecê-la justamente em sua dignidade de evidência, queela perdeu pelo próprio uso da linguagem e porque a co-municação nos parece ir por si, de devolver-lhe, fornecen-do-lhe um fundo conveniente sobre o qual se possa desta-car, o que ela tem de paradoxal e mesmo de misterioso —enfim de conquistá-la como evidência, o que não é somen-te exercê-la, o que é mesmo o contrário... O melhor meiode conservar à linguagem o sentido prodigioso que encon-tramos para ela não é calá-la, renunciar à filosofia e re-tornar à prática imediata da linguagem: é então que o mis-tério sossobraria na familiarização. A linguagem só perma-nece enigmática para quem continua a interrogá-la, quer

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tií/.cr u fu lur c l r l n . O propilo 1 ' n i i l l i n i i por 1 1 : 1 vr/,rs o dedonr.HNIl i ' n i ' . l i - 1 1 1 1 1 ' . r m Kl r l n l u r i u n l | ' . i l t i i l l L ^ l i r 1 i l r i n i K L pro-

J f v i n t dr min i mi u n h e m nu i i r u n i r e m cm m i n i que sefurlu p i - i a i i M | > i i i i | ' . m i MIIN ui |H ít multa filosofia. A peque-nu pii luvni dr projecto nos umistará a uma teoria de re-lii(,-oi'H do Hcnlldu c das palavras. Tentaremos bem enten-dê-la como um raciocínio analógico que me faria reencon-trar meus pensamentos nas palavras de outrem. Mas sóé empurrar o problema para mais longe, já que sou capazde compreender isto mesmo que nunca exprimi. Seria pre-ciso então vir a uma outra ideia da projeção, segundo aqual a palavra de outrem não somente desperta em mimpensamentos já formados, mas ainda me arrasta num mo-vimento de pensamento de que eu não teria sido capaz so-zinho, e me abre finalmente a significações estranhas. Épreciso então aqui que eu admita que não vivo somentemeu próprio pensamento mas que, no exercício da palavra,eu me torne aquele que escuto. E é preciso que compreen-da finalmente como a palavra pode ser plena de um sen-tido. Tratemos, então, não de explicar isso, mas de cons-tatar mais precisamente a potência falante, de cercar essasignificação que não é nada mais do que o movimento úni-co cujos sinais são o traço visível.

Talvez a veremos melhor, se conseguirmos reencon-trá-la até no caos onde a linguagem se retringe a nadamais dizer além do que tenha sido voluntariamente e exa-tamente definido, a nada designar além do que tenha játomado possessão, nega seu próprio passado para se re-construir como algoritmo, e onde, em princípio, a verdadenão é mais esse espírito flutuante, presente em toda partee jamais localizável que habita a linguagem da literaturae da filosofia, mas uma esfera imutável de relações quenão eram menos verdadeiras antes de nossas formulaçõese não o seriam menos se todos os homens e sua linguagemviessem a desaparecer. Desde que os números inteiros apa-recem na história humana, eles se anunciam por certaspropriedades que derivam claramente de sua definição: to-da propriedade nova que nós lhes encontramos, já que eladeriva também das que serviram primeiro para circuns-crevê-los, nos parece tão antiga quanto elas, contemporâ-nea do próprio número; enfim, de toda propriedade aindadesconhecida que o futuro desvendará, nos parece que se

4. Lês Fleitrs de Tarbes, pp. 115 e seguinte.

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deve dizer que já pertence ao número inteiro; mesmo quan-do não se sabia ainda que a soma dos n primeiros núme-

nros inteiros é igual ao produto de por n + l, esta re-

2lação não existia entre eles? Se o acaso tivesse feito com

nque multiplicássemos por n -f- l, não teríamos en-

2centrado um resultado igual à soma dos n primeiros nú-meros inteiros, e esta coincidência não resultaria a partirde então da estrutura mesma da série, que devia em se-guida fundá-la em verdade? Eu não tinha ainda notado5que a série dos 10 primeiros números inteiros é compostade 5 pares de números cuja soma é constante e igual a10 + 1. Não tinha ainda compreendido que isto mesmoé exigido pela natureza da série, em que o crescimentode l a 5 obedece exatamente ao mesmo ritmo que o de-crescimento de 10 a 6. Mas, enfim, antes que tivesse re-conhecido essas relações, o 10 aumentado de uma unida-de era igual ao 9 aumentado do 2, ao 8 aumentado do 3,ao 7 aumentado do 4, ao 6 aumentado do 5, e a soma des-sas somas à dos dez primeiros números inteiros. Pareceque as mudanças de aspecto que introduzo nessa sérieconsiderando-a sob esse novo viés estão antecipadamentecontidas nos próprios números, e que, quando exprimo asrelações despercebidas até então, me limito a prelevá-lassobre uma reserva de verdade que é o mundo inteligíveldos números. Quando introduzo num desenho um traçonovo que muda sua significação •— que, por exemplo, me-tamorfoseia um cubo visto em perspectiva num piso de co-zinha —, não é mais o mesmo objetivo que está na minhafrente. Quando o chimpanzé que quer atingir um objetivofora de seu alcance colhe um ramo de árvore para se ser-vir dele como um bastão ou empresta um escabelo paradele se servir como uma escada, sua conduta mostra su-ficientemente que o ramo em sua nova função não perma-nece mais ramo para ele, que o escabelo cessa definitiva-mente de ser um assento para se tornar uma escada: atransformação é irreversível, e não é aqui o mesmo objetoque é tratado vez por vez segundo duas perspectivas, é um

5. O exemplo é dado e analisado nesses termos por Wertheimer, inProductive Thinking, Harper and Brothers ed., New York andLondon, 1945.

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ramo que se torna um biiHluii, r um mrulHn niir só tornauma escada como um movimento m > h i r o caleidoscópio fazaparecer um raprlAruln novn NUM (|iir ru possa nele re-conhecer o tintl|{<>. Mutr r IIM (•Htnitiinn.-òcs perceptivas ouas da IntollKonrlii pnUIru c HM construções do conhecimen-to que abrem aobrr uniu verdade, há essa diferença que asprimeiras, mesmo quando resolvem um problema e res-pondem u uma interrogação do desejo, só reconhecem ce-gamente no resultado aquilo mesmo que preparavam. Elasprocedem do eu posso, a verdade procede de um eu penso.de um reconhecimento interior que atravessa segundo seucomprimento a sucessão dos acontecimentos conhecedo-res, o fundo em valor, a atitude como exemplar e comoreiterável por princípio para toda consciência colocada namesma situação de conhecimento. Mas se a verdade, parapermanecer verdade, supõe esse consentimento de si a si,essa interioridade através do tempo, a operação expressiva

nque tira de S n a fórmula - (n -J- 1) deve ser garantida

2pela imanência do novo no antigo. Não basta mais que omatemático trate as relações dadas segundo certas recei-tas operatórias para transformá-las no sentido das rela-ções procuradas, como o chimpanzé trata o ramo de ár-vore segundo lhe é útil fazê-lo para atingir o objetivo; seela deve escapar à contingência do acontecimento, e des-vendar uma verdade, é preciso que a própria operação sejalegitimada pela natureza do ser matemático sobre o qualproduz. Parece então que não se pode dar conta do saberexato a não ser com a condição de admitir, ao menos nessedomínio, um pensamento que de si a si abolisse toda a dis-tância que envolve a operação expressiva de sua claridadesoberana e reabsorve no algoritmo a obscuridade congé-nita da linguagem. Ao menos aqui a significação cessa deter com os sinais a relação suspeita de que falamos: nalinguagem, ela fusionava na junção dos sinais, a um sótempo ligada ao seu agenciamento carnal e misteriosa-mente compartimentado atrás deles; ela brilhava além dossinais e não era no entanto que sua vibração, como o gritotransporta fora e torna presente por todos o próprio so-pro e a dor daquele que grita. Na pureza do algoritmo, elase destaca de todo compromisso com o desenrolar dos si-nais que comanda e legitima, e, do mesmo golpe, eles lhecorrespondem tão exatamente que a expressão não deixa

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nada a desejar e nos parece conter o próprio sentido; asrelações emaranhadas da transcendência dão lugar às re-lações próprias de um sistema de sinais que não têm vidainterior e de um sistema de significações que não descen-dem da existência animal.

Não temos a intenção de contestar o caráter de ver-dade que distingue os enunciados da ciência exata, nemo que há de incomparável no momento em que, reconhe-cendo uma verdade, toco em alguma coisa que não come-çou e não acabará de significar comigo. Essa experiênciade um acontecimento que subitamente se cava perde suaopacidade, revela uma transparência e se faz sentido parasempre, é constante na cultura e na palavra, e, se quiser-mos contestá-la, não se saberia mais o que procuramos.Trata-se somente de descobrir suas implicações e de pro-curar em particular se ela é, em relação à palavra, origi-nária ou derivada — mais precisamente: se não há, aténa ciência exata entre os sinais instituídos e as significa-ções verdadeiras que eles denotam, uma palavra instituin-te que produz tudo. Quando dizemos que as propriedadesnovamente descobertas de um ser matemático são tão ve-lhas quanto ele, esses próprios termos de propriedade e deser contêm já toda uma interpretação de nossa experiên-cia de verdade. A rigor, se vemos somente que certas re-lações supostas dadas acarretam necessariamente outrasrelações, é porque escolhemos as primeiras para princípioe para definição do objeto que as outras nos aparecem jácomo suas consequências. Tudo o que temos o direito dedizer é que há solidariedade de princípio entre elas, é quehá laços indestrutíveis, que, se tais relações são supostas,tais outras o são também, que tais e tais relações são si-nónimas. Isto faz bem entre elas uma equivalência quenão depende de sua manifestação, isto permite bem dizerque elas constituem um sistema que ignora o tempo, masas novas relações só podem ter outro sentido de ser na-quelas de que derivam, e, destas, não sabemos ainda seexistem de outra maneira a não ser uma existência ma-temática, isto é, como puras relações que nos agrada con-siderar. Sabemos a partir de agora que, livres de propor anosso exame diferentes objetos, diferentes espaços, porexemplo, não o somos, uma vez o objeto suficientementedeterminado, de dizer dele qualquer coisa. E é bem aí umanecessidade que nosso espírito encontra, mas a figura sob

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a qual ela lhe aparece depende d» ponto tlr purtlda queescolheu: o que e constunlo não o que tul ser matemáticonos impõe tais propriedades qu« m-rium suas, é somenteque é preciso um ponto de partida e que, tul ponto de par-tida uma vê/, escolhido, IIOHHO arbítrio termina aí, e en-contra seu limito no encadeamento das consequências.Nada nos mostra que essa resistência ao arbitrário sob di-ferentes formas de que se pode revestir se dirige à opera-ção de uma essência que desenvolve suas propriedades. Emvez de dizer que constatamos certas propriedades dos seresmatemáticos, diríamos mais exatamente que constatamosa possibilidade de princípio de enriquecer e de precisar asrelações que serviram para definir nosso objetivo, de pros-seguir a construção de conjuntos matemáticos coerentessomente esboçados por nossas definições. E certo, esta pos-sibilidade não é nada, esta coerência não é fortuita, essavalidade não é ilusória, mas ela não permite dizer que asrelações novas fossem verdadeiras antes de serem reve-ladas, nem que as primeiras relações estabelecidas trazemna existência as seguintes. Só se pode fazê-lo se fizermosa hipóstase dos primeiros em alguma realidade física: ocírculo traçado sobre a areia já tinha raios iguais, o triân-gulo uma soma de ângulos iguais a duas retas... e todasas outras propriedades que a geometria devia destacar. Sepudéssemos subtrair de nossa concepção do ser matemá-tico todo suporte desse género, ele não nos pareceria co-mo intemporal; mas sobretudo como um vir a ser de co-nhecimento.

Esse vir a ser não é fortuito. Cada uma das démarchesque o marcam é legitima, não é um acontecimento qual-quer, é prescrita, é em todo caso justificada após pelas dé-marches precedentes, e se a essência não está no princí-pio de nossa ciência, está nela presente em todo caso comoseu objetivo, e o vir a ser do conhecimento dirige-se paraa totalidade de um sentido. É verdade, mas a essência co-mo futuro de saber não é uma essência, é o que chamamosuma estrutura. Sua relação com o conhecimento efetivoé aquela da coisa percebida à percepção. A. percepção, queé acontecimento, abre sobre uma coisa percebida que lheaparece como anterior a ela, como verdadeira antes dela.E se ela reafirma sempre a preexistência do mundo, é justa-mente porque ela é acontecimento, porque o sujeito quepercebe já está enganjado no ser por campos perceptivos de

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sentidos, mais geralmente um corpo que é feito para ex-plorar o mundo. O que vem estimular o aparelho percepti-vo desperta entre ele e o mundo uma familiaridade pri-mordial, que exprimimos dizendo que o percebido existiaantes da percepção. De um só golpe, os da"dos atuais signi-ficam bem além do que trazem, encontram no sujeito quepercebe um eco desmesurado, e é o que lhes permite nosaparecer como perspectivas sobre uma coisa atual, enquan-to que a explicitação dessa coisa iria ao infinito e não se-ria acabada. A verdade matemática, trazida ao que consta-tamos verdadeiramente, não é de outra espécie. Se somosquase irresistivelmente tentados, para pensar a essênciado círculo, a imaginar um círculo traçado na areia que játem todas as suas propriedades, é que nossa própria no-ção da essência é formada ao contato e à imitação da coi-sa percebida tal qual a percepção no-la apresenta: maisvelha que a própria percepção, em si, ser puro antes dosujeito. E como não se trata, na percepção, de uma con-tradição, mas ao contrário sua própria definição, de serum acontecimento e de abrir sobre uma verdade, é precisocompreendermos também que a verdade, a serviço das ma-temáticas, se oferece a um sujeito já engajado nela, e tiraproveito dos laços carnais que o unem a ela.

Isto não é reduzir a evidências da matemática a dapercepção. Não negamos certamente, vamos ver, a origi-nalidade da ordem do conhecimento a respeito da ordemdo percebido. Tentamos somente desfazer o tecido inten-cional que religa uma a outra, reencontrar as vias da su-blimação que conserva e transforma o mundo percebidono mundo falado, e isto só é possível se descrevemos a ope-ração de palavra como uma retomada, uma reconquistada tese do mundo, análoga em sua ordem à percepção ediferente dela. O fato é que toda ideia matemática se apre-senta a nós com o caráter de uma construção posterior,de uma reconquista. Jamais as construções da culturatêm a solidez das coisas naturais, jamais estão lá como elas;há a cada manhã, após a ruptura da noite, um contato aretomar com elas; elas permanecem impalpáveis, flutuamno ar da cidade, mas o campo não as contém. Se, no en-tanto, em pleno pensamento, as verdades da cultura nosparecem à medida do ser e se tantas filosofias fazem re-pousar o mundo sobre elas, é que o conhecimento conti-nua sobre o arremesso da percepção, é que ele utiliza a tese

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do mundo que é o seu som fundamental. Acreditamos quea verdade é eterna porque ela exprime o mundo percebi-do e que a percepção implica num mundo que funcionavaantes dela segundo princípios que reencontra e que nãocoloca. É de um só movimento que o conhecimento se en-raíza na percepção e que dela se distingue. Ê um esforçopara reapreender, interiorizar, possuir verdadeiramenteum sentido que foge através da percepção ao mesmo tem-po que ali se forma, porque só tem interesse para o ecoque o ser tira dela mesma, não para o ressoador, esse seuoutro, que torna possível o eco. A percepção nos abre a ummundo já constituído, e só pode reconstituí-lo. Esse redo-bramento significa ao mesmo tempo que o mundo se ofe-rece como anterior à percepção e que nós nos limitamos aregistrá-lo, que queríamos engendrá-lo. Já o sentido dopercebido é sombra levada das operações que nos apron-tamos a executar sobre as coisas, não é nada mais quenosso levantamento sobre elas, nossa situação a respeitodelas. Cada vetor do espetáculo percebido coloca, além deseu aspecto do momento, o princípio de certas equivalên-cias nas variações possíveis do espetáculo, inaugura porsua parte um estilo da explicação dos objetos e um estilode nossos movimentos em relação a eles. Essa linguagemmuda o operacional da percepção e põe em movimento umprocedimento de conhecimento que não basta para com-pletá-la. Tão firme que seja minha tomada perceptiva so-bre o mundo, ela é toda dependente do movimento cen-trífugo que me atira para ele, e não o retomarei jamaisa não ser com a condição de colocar eu mesmo e espon-taneamente dimensões novas de sua significação. Aqui co-meça a palavra, o estilo de conhecimento, a verdade nosentido dos lógicos. Ela é chamada, desde seu primeiro mo-mento, pela evidência perceptiva, ela a continua, não sereduz a isso.

Uma vez colocada em evidência a referência à tese domundo — sempre subentendida pelo pensamento matemá-tico, e que lhe permite se dar como o reflexo de um mundointeligível -—, como podemos nós compreender a verdadematemática e sobretudo — é nosso objetivo — a expressãoalgorítmica que ela se dá? É claro primeiro que as proprie-dades da série de números inteiros não estão contidasnesta série. Uma vez destacada da analogia perceptiva quefaz dela alguma coisa (etwas uberhaupt) ela não passa

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a cada momento de ser o conjunto de relações que foramestabelecidas a seu respeito, mais um horizonte aberto derelações a construir. Esse horizonte não é o modo de apre-sentação de um ser matemático em si acabado: a cadamomento, não há verdadeiramente nada mais no céu e so-bre a terra a não ser as propriedades conhecidas do nú-mero inteiro. Pode-se dizer, se quisermos, que as proprie-dades desconhecidas já são operantes nos conjuntos deobjetos que encarnam os números, mas aí é só uma ma-neira de falar: quer-se exprimir assim que tudo o querevelará como números será tão logo verdade das coisasenumeradas, o que é bem certo, mas não implica em ne-

nnhuma preexistência do verdadeiro. A relação nova

2(n -f- 1), esta significação nova da série de números in-teiros aí aparece com a condição que reconsideremos e quereestruturemos Sn. É preciso que eu note que o progressode l a 5 é exatamente simétrico da regressão de 10 a 5,que assim chego a conceber um valor constante das somas10 + I, 9 + 'J, 8 -f 3, etc., e que, enfim, decomponho asérie em pares cada vez iguais a n + l e cujo número só

nsaberia ser igual a . Claro, essas transformações que

2são, no interior de um objeto aritmético, o equivalente deuma construção em geometria, são sempre possíveis; eume asseguro que elas não se devem a algum acidente, masaos elementos de estrutura que definem a série de números— e nesse sentido dele resultam. Mas elas não fazem parte,só aparecem diante de uma certa interrogação que faço àestrutura da série dos números, ou melhor, que ela mepropõe enquanto é situação aberta e a acabar, enquantose oferece como a conhecer. A operação pela qual exprimo

nSn nos termos (n -[• 1) só é possível se na fórmula

2final percebo a dupla função de n, primeiro como númerocardinal, em seguida como número ordinal. Não é umadessas transformações cegas pelas quais eu poderia em se-

n + l n2 -f nguida passar a n ou a . Percebo que

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n(11 \) rrMil l i t t l < > ;IM ú Mi/uci (iii rslruluru de Sn,

i- n i l i i i ) ( | i i r i i | i n m i n o i | i i t< < • i i t t n t vrnludr matemática. E,n i f í i i i i i i N t < t m r» | ' . u i i l i i exploro n t i n i d o :i l u n i i n l a obtidapHim pioiTHNof» M i r i - n r i i r o M ilr cfUrulo, só s« tratará aí deu n i u npn m;uo «i'|'.undii r menor, que na» nos ensina o queCi it vrnl iu l r . Nailu seria mudado ao que adiantamos lá sef (mar possível constituir um algoritmo que exprimisse porrelações lógicas as propriedades da estrutura da série dosnúmeros inteiros: do momento que essas relações formaisfornecessem — e é a hipótese — um equivalente exato daestrutura do número, elas seriam, como esta última, aocasião de construir a relação nova, mais que a conteriam.Nosso objetivo aqui não é mostrar que o pensamento ma-temático se apoia sobre o sensível, mas que é criador e quepodemos fazer outro tanto a propósito de uma matemáticaformalizada. Já que a construção da consequência é umademonstração e só se apoia sobre o que define o númerointeiro, eu bem poderia dizer, quando ela está acabada,que a fórmula obtida é exigida pelas fórmulas iniciais, oua significação nova da série pela própria série. Mas é umailusão retrospectiva. É assim que meu conhecimento pre-sente vê seu próprio passado, não é assim que ele foi, mes-mo no inverso das coisas. As consequências não eram ima-nentes à hipótese: só eram pré-traçadas na estruturacomo sistema aberto e engajado no vir a ser de meu pen-samento, e quando remanejo essa estrutura segundo seuspróprios vetores, é sobretudo a nova configuração que re-toma e salva a antiga, a contém eminentemente, se iden-tifica com ela ou a reconhece como indiscernível de si. É demeu movimento de conhecimento que resulta a sínteseque o torna possível. As geometrias não euclidianas con-têm isto de Euclides como caso particular, mas não o in-verso. O essencial do pensamento matemático é então nestemomento em que uma estrutura se descentra, se abre auma interrogação e se reorganiza segundo um sentido novoque no entanto é o sentido dessa própria estrutura. A ver-dade do resultado, seu valor independente de acontecimen-to vem de que não se trata de uma mudança onde as rela-ções iniciais perecem para serem substituídas por outrasnas quais não seriam reconhecíveis, mas de uma reestru-turação que, de uma ponta a outra, se sabe, está em con-

cordância consigo, que era anunciada pelos vetores da es-trutura dada, por seu estilo, tão bem que cada mudançaefetiva vinha preencher uma intenção, cada antecipaçãorecebe da construção a consumação que espera. Trata-se aíde um verdadeiro vir a ser do sentido, onde o vir a ser nãoé mais sucessão objetiva, transformação de fato, mas umvir a ser si mesmo, um vir a ser sentido. Quando digo quehá aqui verdade, isto não significa que experimento, entrea hipótese e a conclusão, uma relação de identidade quenão deixaria nada a desejar, ou que vejo uma derivar daoutra numa transparência absoluta: só há significação quese cerca de um horizonte de convicções ingénuas e entãonão chama outras explicitações, nenhuma operação expres-siva que esgote seu objeto, e as demonstrações de Euclidestinham seu rigor embora fossem sempre gravadas com umcoeficiente de facticidade, apoiadas numa intuição maciçado espaço que só devia ser tematizado mais tarde. Para quehaja verdade nisso é preciso e basta que a reestruturaçãoque dá o sentido novo retome verdadeiramente a estruturainicial, apesar de suas lacunas ou de suas opacidades. Novastematizações, em seguida, virão preencher as lacunas edissolver as opacidades, mas além de que serão elas pró-prias parciais, não farão com que, suposto um triânguloeuclidiano, ele não tenha as propriedades que sabemos, astransformações legítimas que conduzem do universo eu-clidiano às suas propriedades não cessarão de ser algumacoisa que se compreende, e que falta somente traduzir numalinguagem mais geral. O lugar próprio da verdade é, então,esta retomada do objeto de pensamento em sua significaçãonova, mesmo se o objeto conserva ainda, em suas dobras,relações que utilizamos sem perceber. O fato é que nestemomento alguma coisa está adquirida, há verdade, a es-trutura se propulsa para essas transformações. E a cons-ciência de verdade avança como o lagostim, virado paraseu ponto de partida, em direção dessa estrutura da qualela exprime a significação. Tal é a operação viva que sus-tenta os sinais do algoritmo. Se só consideramos seu resul-tado, pode-se acreditar que ela não criou nada: na fórmula

n(n + 1) só entram termos emprestados à hipótese,

religados pela operação da álgebra. A significação nova érepresentada pelos sinais e as significações dadas, sem

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min i n i i n . i i i i i n i i i r o i i i i v i - nu linguagem, sejam desviadosilr ' < n ' . c n t u i i i Inicial. A expressão algorítmica é cxata porniiifiu du uxuta equivalência que estabelece entre as rela-V»>rs dadas e as que concluímos. Mas a fórmula nova sóó fórmula da nova significação, só a exprime verdadeira-mente com a condição de darmos, por exemplo, ao termon primeiro o sentido ordinal, em seguida o sentido cardinal,e isto só é possível se nos referirmos à configuração dasérie dos números sob o aspecto novo que nossa interroga-ção acaba de lhe dar. Ora, aqui reaparece o movido dareestruturação que é característica da linguagem. Nós oesquecemos em seguida, logo que conseguimos encontrara fórmula, e acreditamos então na preexistência do ver-dadeiro. Mas ele está sempre lá, ele só dá sentido à fórmula.A expressão algorítmica é então segundo. É um caso par-ticular da palavra. Acreditamos que os sinais aqui reco-brem exatamente a intenção, que a significação é conquista-da sem mais, e que enfim o estilo que prescrevia à estrutu-ra as transformações que lhes demos é inteiramente do-minado por nós. Mas é porque omitimos de mencionar oultrapassamento da estrutura em direção de suas transfor-mações. E, certo, é sempre possível por princípio, já quesó consideramos as invariantes da estrutura estudada,não as particularidades contingentes de um traçado oude uma figura. Mas é um ultrapassamento, não é umaidentidade imóvel, e aqui, como a linguagem, a verdade énão adequação, mas antecipação, retomada, deslizamentode sentido, e só se toca numa espécie de distância. O pen-sado não é o percebido, o conhecimento não é a percepção,a palavra não é um gesto entre todos os gestos, mas apalavra é o veículo de nosso movimento em direção daverdade, como o corpo é o veículo do ser no mundo.

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A Percepção de Outreme o Diálogo

O algoritmo e a ciência exata falam das coisas, sósupõem no seu interlocutor ideal o conhecimento das de-finições, não procuram seduzi-lo, não esperam dele nenhu-ma cumplicidade, e, em princípio, o conduzem como quepela mão do que ele sabe ao que deve aprender, sem quetenha de deixar a evidência interior pela sedução da pa-lavra. Se mesmo nessa ordem das puras significações edos puros sinais, o sentido novo só sai do sentido antigopor uma transformação que se faz fora do algoritmo, queé sempre suposta por ele, se então a verdade matemáticasó aparece a um sujeito para quem há estruturas, situa-ções, uma perspectiva, a mais forte razão devemos admitirque o conhecimento linguajeiro suscita nas significa-ções dadas transformações que só ali eram contidas comoa literatura francesa é contida na língua francesa, ou asobras futuras de um escritor em seu estilo — e definircomo a própria função da palavra seu poder de dizer nototal mais do que diz palavra por palavra, e se ultrapassarela mesma, que se trate de lançar outrem em direção doque sei e que ainda não compreendeu, ou de levar a minimesmo em direção do que vou compreender.

Esta antecipação, este pisoteamento, esta transgres-são, esta operação violenta pela qual construo na figura,transformo a operação, faço-as tornarem-se o que são,mudo-as nelas mesmas — na literatura ou na filosofia, éa palavra que consuma. E, claro, não mais que na geo-

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i n r h i i t n falo (talco de um novo traçado não é uma cons-I.IIK;UO, imo mais que nas artes da palavra a existênciafísica dos sons, o traçado das letras sobre o papel, oumesmo a presença de fato de tais palavras segundo o sen-tido que lhes dá o dicionário, de tais frases feitas, basta alhes dar sentido: a operação tem seu interior, e toda asequência de palavras não passa de seu rasto, só indicaos pontos de passagens. Mas as significações adquiridassó contêm a significação nova no estado de traço ou dehorizonte, é ela que se reconhecerá neles e mesmo reto-mando-os os esquecerá no que tinham de parcial e ingénuo,ela só reilumina reflexos instantâneos na profundeza dosaber passado, só o toca a distância. Dele a ela há invo-cação, dela a ele resposta e aquiescimento, e o que religanum só movimento a sequência das palavras de que é feitoum livro, é um mesmo imperceptível desvio em relação aouso, é a constância de uma certa extravagância. Pode-se,entrando num cómodo, ver que alguma coisa foi mudada,sem saber dizer o quê. Novidade de uso, definida por umcerto e constante desvio de que não sabemos logo nos darconta, o sentido do livro é linguajeiro. As configuraçõesde nosso mundo são todas mudadas porque uma dentreelas foi arrancada à sua simples existência para repre-sentar todas as outras e se tornar chave ou estilo destemundo, meio geral de interpretá-lo. Frequentemente fa-lamos desses pensamentos cartesianos que vagavam emSanto Agostinho, em Aristóteles mesmo, mas que ali sólevavam uma vida morna e sem futuro, como se toda asignificação de um pensamento, todo espírito de uma ver-dade viesse de seu relevo, de seus contornos, de sua ilumi-nação. Santo Agostinho caiu sobre o Cogito, Descartes daDioptrique sobre o ocasionalismo, Balzac encontrou umavez o tom de Giraudoux —• mas não o viram e Descartesresta a ser feito após Santo Agostinho, Malebranche apósDescartes, Giraudoux após Balzac. O mais alto ponto deverdade não passa então ainda de perspectiva e consta-tamos, ao lado da verdade de adequação que seria a doalgoritmo, se jamais o algoritmo pudesse se destacar davida pensante que o contém, uma verdade por transpa-rência, confronto e retomada, à qual participamos nãoporque pensamos a mesma coisa, mas porque, cada um ànossa maneira, somos por ela concernidos e atingidos. Oescritor fala bem do mundo e das coisas, ele também, masnão finge dirigir-se em todos a um só espírito puro, dirige-

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se neles justamente à maneira que tem de se instalar nomundo, diante da vida e diante da morte, toma-os ondeestão, e arranjando entre os objetos, os acontecimentos,os homens, intervalos, planos, iluminações, toca neles asmais secretas instalações, se ataca aos seus laços funda-mentais com o mundo e transforma em meio de verdadesua mais profunda parcialidade. O algoritmo fala dascoisas e atinge por acréscimo os homens. O escrito fala aoshomens e alcança através deles a verdade. Não compreen-demos totalmente esse salto das coisas para seu sentido,essa descontinuidade do saber, que está em seu mais altoponto na palavra, a não ser que o compreendamos comopisoteamento do eu sobre outrem e de outrem sobre mim...

Entremos, então, um pouco no diálogo — e primeirona relação silenciosa com outrem —, se queremos com-preender o poder mais próprio da palavra.

Não notamos o suficiente que outrem nunca se apre-senta de face. Mesmo quando, no auge da discussão, euenfrento o adversário, não é nesse rosto violento, amea-çador, não é nem mesmo nessa voz que vem para mimatravés do espaço que se encontra verdadeiramente a in-tenção que me atinge. O adversário jamais é totalmentelocalizado: sua voz, sua gesticulação, seus tiques, não pas-sam de efeitos, uma espécie de encenação, uma cerimónia.O organizador está tão bem mascarado, que fico inteira-mente surpreso quando minhas respostas funcionam: oporta-voz se embaraça, solta alguns suspiros, alguns sonstrémulos, alguns sinais de inteligência; é preciso acreditarque havia alguém lá. Mas onde? Não nessa voz cheia de-mais, não nesse rosto zebrado de traços como um objetogasto. Não mais atrás desse aparelho: bem sei que lá sóhá trevas repletas de órgãos. O corpo de outrem estána minha frente — mas, quanto a ele, leva uma singularexistência: entre eu que penso e esse corpo, ou sobretudoperto de mim, ao meu lado, ele é como uma réplica demim mesmo, um duplo errante, obseda o que me cercamais do que aí aparece, é a resposta inopinada que recebode alhures, como se por milagre as coisas se pusessem adizer meus pensamentos, é sempre para mim que seriampensantes e falantes, já que são coisas e que eu sou eu*.* O texto da frase está manifestamente inacabado. Após dizer meus

pensamentos, o autor esboçou duas subordinadas que riscou, e de-pois, na releitura, sem dúvida, inscreveu por cima um ou como, quedeixou sem sequência.

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• m i n i D! i n r i i . - i n i i u i M . ura então sempre à margem doi | i u < vrju r rsciito, está ao meu lado, do meu lado ou atrásdo mlm, não está nesse lugar que meu olhar esmaga eesvazia de todo interior. Todo outro é um outro eumesmo. É como esse duplo que o doente sempre sente aoseu lado, que se lhe assemelha como um irmão, que nuncasaberia fixar sem fazê-lo desaparecer, e que visivelmentesó é um prolongamento além dele mesmo, já que um poucode atenção basta para reduzi-lo. Eu e outrem somos comodois círculos quase concêntricos, e que só se distinguempor uma leve e misteriosa deslocação. Esse aparentamentoé talvez o que nos permitirá compreender a relação a ou-trem, que por outro lado 6 inconcebível se tento abordarnutrem cio face, c por seu lado escarpado. Fica que outremn Ao 6 eu, c que 6 bem preciso chegar à oposição. Faço o outroà minha imagem, mas como pode ele nisso ter para mimuma imagem de mim? Não sou até o fim do universo, nãosou, sozinho, co-extensivo a tudo o que posso ver, ouvir,compreender ou fingir? Como, sobre essa totalidade quesou haveria uma vista exterior? De onde seria ela tomada?É bem isso no entanto o que acontece quando outrem meaparece. Nesse infinito que eu era alguma coisa ainda seacrescenta, um rebento cresce, eu me desdobro, dou à luz,esse outro é feito de minha substância, e no entanto nãoé mais eu. Como isto é possível? Como o eu penso poderiaemigrar fora de mim, já que é eu? Os olhares que eupasseava sobre o mundo como o cego tateia os objetoscom seu bastão, alguém os apreendeu pela outra ponta,e os volta contra mim para me tocar por minha vez. Nãome contento mais em sentir: sinto que me sentem, e queme sentem quando estou sentindo, e sentindo esse fatomesmo que me sentem... Não é preciso dizer somente quehabito a partir de então um outro corpo: isso só faria umsegundo eu-mesmo, um segundo domicílio para mim. Mashá um eu que é outro, que está instalado alhures e medestitui de minha posição central, embora, de toda evi-dência, só possa tirar de sua filiação sua qualidade demim. Os papéis do sujeito e do que ele vê se trocam ese invertem: eu acreditava dar ao que eu via seu sentidode coisa vista, e uma dessas coisas repentinamente se furtaa essa condição, o espetáculo vem a se dar a si mesmoum espectador que não sou eu, e que é copiado sobre mim.Como isso é possível? Como posso ver alguma coisa quese põe a ver?

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Dissemos, não compreenderemos jamais que outremapareça diante de nós; o que está diante de nós é objeto.É preciso compreender bem que o problema não é este.É compreender como me desdobro, como me descentralizo.A experiência de outrem é sempre a de uma réplica demim, de uma réplica a mim. A solução deve ser procuradado lado dessa estranha filiação que para sempre faz deoutrem meu segundo, mesmo quando o prefiro a mim eme sacrifico a ele. É no mais secreto de mim mesmo quese faz a estranha articulação com outrem; o mistério deoutrem não passa do mistério de mim mesmo. Que umsegundo espectador do mundo possa nascer de mim, nãoestá excluído, está ao contrário feito possível por mimmesrno, se pelo menos reconheço meus próprios paradoxos.O que faz que eu sou único, minha propriedade funda-mental de me sentir, ela* tende paradoxalmente a se di-fundir; é porque sou totalidade que sou capaz de pôr nomundo outrem e de me ver limitado por ele. Pois o milagreda percepção de outrem está primeiro nisto que tudo oque pode jamais valer como ser aos meus olhos só o fazacedendo, diretamente ou não, ao meu campo, aparecendono balanço de minha experiência, entrando em meu mun-do, o que quer dizer que o que é meu é verdadeiro e rei-vindica como sua testemunha não somente eu mesmo noque tenho de limitado, mas ainda um outro X, e final-mente um espectador absoluto — se um outro, se umespectador absoluto fossem concebíveis. Tudo está prontoem mim para acolher esses testemunhos. Resta saber comose poderão introduzir até mim. Isso será ainda porque omeu é meu, e porque meu campo vale para mim comomeio universal do ser. Olho esse homem imóvel no sono,e que repentinamente desperta. Ele abre os olhos, faz umgesto para seu chapéu caído ao seu lado e o toma parase garantir contra o sol. O que finalmente me convenceque meu sol é também dele, que ele o vê e sente comoeu, e que, enfim, somos dois a perceber o mundo, é preci-samente o que, à primeira vista, me proíbe de conceberoutrem: a saber que seu corpo faz parte de meus objetos,

* O autor modificou sua frase inicial que começava por minha pro-priedade primordial; não corrigiu ela que reenviava ao primeirosujeito.

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que é um deles, que figura em meu mundo. Quando ohomem adormecido entre meus objetos começa a lhes di-rigir gestos, usá-los, não posso duvidar um instante queo mundo ao qual se dirige seja verdadeiramente o mesmoque percebo. Se ele percebe alguma coisa, será bem meupróprio mundo já que nele está nascendo. Mas por que operceberia, como poderia eu conceber que ele o faça? Seo que ele vai perceber, inevitavelmente, é o mesmo queé percebido por mim, pelo menos essa percepção sua domundo que estou supondo não tem lugar em meu mundo.Onde a colocaria eu? Ela não está nesse corpo, que só étecidos, sangue e ossos. Não está sobre o trajeto dessecorpo às coisas pois só há, sobre esse trajeto, coisas ainda,ou raios luminosos, vibrações, e eis muito tempo que re-nunciamos às imagens esvoaçantes de Epicuro. Quanto aoespirito, é eu, não posso, então, colocar nisso outra per-cepção do mundo. Outrem então não está nas coisas, nãoestá em seu corpo e no é eu. Não podemos colocá-lo emnenhum lugar e efetivamente nós não o colocamos em ne-nhum lugar, nem no em si, nem no por si, que é eu. Sóhá lugar para ele em meu campo, mas esse lugar pelomenos está pronto para ele desde que comecei a perceber.Desde o primeiro momento em que usei meu corpo paraexplorar o mundo, soube que essa relação corporal com omundo podia ser generalizada, uma ínfima distância esta-beleceu-se entre mim e o ser que reservava os direitosde uma outra percepção do mesmo ser. Outrem não estáem nenhum lugar no ser, é por detrás que ele desliza emminha percepção: a experiência que faço de minha tomadasobre o mundo é o que me torna capaz de nele reconheceruma outra e de perceber um outro eu mesmo, se somente,no interior de meu mundo, se esboça um gesto semelhanteao meu. No momento em que o homem desperta ao sole estende a mão para seu chapéu, entre esse sol que mequeima e faz piscar meus olhos, e o gesto que lá de longeameniza minha fadiga, entre essa fronte consumada lá eo gesto de proteção que chama de minha parte, um laçoé atado sem que eu nada tenha que decidir, e se sou in-capaz para todo sempre de viver efetivamente a queima-dura que o outro sofreu, a mordida do mundo tal qual asinto sobre meu corpo é ferimento para tudo que aí estáexposto como eu, e particularmente para esse corpo que

começa a se defender contra ele. É ele que vai animar oadormecido antes imóvel, e que vai ajustar-se aos seusgestos como sua razão de ser.

Na medida em que adere ao meu corpo como a túnicade Nessus, o mundo não é somente para mim, mas paratudo o que, nele, faz sinal para ele. Há uma universalidadedo sentir — e é sobre ela que repousa nossa identificação,e generalização de meu corpo, a percepção de outrem. Per-cebo comportamentos imergidos no mesmo mundo que eu,porque o mundo que percebo arrasta ainda com ele minhacorporeidade, que minha percepção é impacto do mundosobre mim e tomada de meus gestos sobre ele, de maneiraque, entre as coisas que os gestos do adormecido visam eesses próprios gestos, na medida em que uns e outros fazemparte de meu campo, há não somente a relação exteriorde um objeto a um objeto, mas, como do mundo a mim,impacto, como de mim ao mundo, tomada. E se pergun-tarmos ainda como esse papel do sujeito encarnado, queé o meu, sou levado a confiá-lo a outros, e porque, enfim,movimentos de outrem me aparecem como gestos, o autó-mato se anima, e outrem está lá, é preciso responder, emúltima análise, que é porque nem o corpo de outrem, nemos objetos que ele visa, nunca foram objetos puros paramim, que são interiores ao meu campo e ao meu mundo,que são então de um só golpe variantes dessa relação fun-damental (mesmo das coisas digo que uma olha para aoutra ou lhe dá as costas). Um campo não exclui umoutro campo como um ato de consciência absoluta, porexemplo, uma decisão, exclui uma outra, tende mesmo, desi, a se multiplicar, porque é a abertura pela qual, comocorpo, sou exposto ao mundo, que não tem então essaabsoluta densidade de uma pura consciência que tornaimpossível para ela toda outra consciência, e que, gene-ralidade ele mesmo, não se apreende como um de seussemelhantes... É dizer que não haveria outros para mim,nem outros espíritos, se não tivesse um corpo e se eles nãotivessem um corpo pelo qual pudessem deslizar em meucampo, multiplicá-lo de dentro, e me aparecer à cata domesmo mundo, às voltas com o mesmo mundo que eu.Que tudo o que é para mim seja meu e só valha para mimcom a condição de vir a se enquadrar em meu campo, istonão impede, isto ao contrário torna possível a aparição de

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I , | n i i i | i i i - n i i i i i i i t i r i i n ; : i ( i a uiiin mesmo já é gene-n i l i i l a i l r K disso vem que, como dizíamos começando, ou-trem se Insere sempre na junção do mundo e de nós mes-mos, que esteja sempre aquém das coisas, e mais de nossolado do que nelas; é que ele é um eu generalizado, é quetem seu lugar, não no espaço objetivo, que, como Des-cartes disse bem, é sem espírito, mas nessa localidadeantropológica, meio turvo onde a percepção irrefletida sepõe à vontade, mas sempre à margem da reflexão, impos-sível do coiiHlllulr, scmpri; Jft constituída: encontramos ou-trrin como riiroulrumos nosso corpo. Desde que o olhamosdo frrnlr, rir sr ml usa à modesta condição de alguma coisainocente e que se pode manter a distância. É atrás de nósque ele existe, como as coisas assumem sua independênciaabsoluta à margem de nosso campo visual. Frequente-mente, e com razão, protestamos contra o expediente dospsicólogos que, tendo que compreender, por exemplo, comoa natureza é para nós animada, ou como há outros espí-ritos, se safam ralando de uma projeção de nós mesmosnas coisas, o que deixa a questão inteira, já que resta asaber quais motivos no aspecto mesmo das coisas exterio-res nos convidam à essa projeção, e como as coisas podemse comunicar ao espírito. Não nos preocupamos aquicom essa projeção dos psicólogos que faz transbordar nossaexperiência de nós mesmos ou do corpo sobre um mundoexterior que não teria com ela nenhuma relação de prin-cípio. Tentamos, ao contrário, despertar uma relação car-nal com o mundo e com outrem, que não é um acidentesobrevindo de fora a um puro sujeito de conhecimento(como poderia ele recebê-lo nele?), um conteúdo de ex-periência entre muitos outros, mas nossa inserção primei-ra no mundo e no verdadeiro.

Talvez atualmente estamos aptos a compreender comjusteza que consumação a palavra representa para nós,como ela prolonga e transforma a relação muda comoutrem. Num sentido, as palavras de outrem não trans-passam nosso silêncio, não podem dar-nos nada mais queseus gestos: a dificuldade é a mesma de compreender comopalavras arranjadas em proposições podem-nos significaroutra coisa além de nosso próprio pensamento — e comoos movimentos de um corpo ordenados em gestos ou emcondutas podem-nos apresentar alguém mais além de nós

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—, como podemos encontrar nesses espetáculos outra colsuulém do que ali colocamos. A solução aqui e ali é a mesma.Consiste, no que diz respeito a nossa relação muda comoutrem, a compreender que nossa sensibilidade ao mundo,nossa relação de sincronização com ele — ou seja, nossocorpo — tese subentendida por todas as nossas experiên-cias, retira à nossa existência a densidade de um ato abso-luto e único, faz da corporeidade uma significação trans-ferível, torna possível uma situação comum, e finalmentea percepção de um outro nós mesmos, senão no absolutode sua existência efetiva, pelo menos no desenho geralque dela nós é acessível. Da mesma maneira, no que dizrespeito a esse gesto particular que é a palavra, a soluçãoconsistirá em reconhecer que, na experiência do diálogo,a palavra de outrem vem tocar em nós nossas significa-ções, e nossas palavras vão, como o atestam as respostas,tocar nele suas significações, pisoteamo-nos um ao outrona medida em que pertencemos ao mesmo mundo cultural,e primeiro à mesma língua, e que meus atos de expressãoe os de outrem têm origem na mesma instituição. Todaviaesse uso geral da palavra supõe um outro, mais funda-mental — como minha coexistência com meus semelhan-tes supõe que eu os tenha primeiro reconhecido como se-melhantes, em outros termos que meu campo se tenharevelado fonte inesgotável de ser, e não somente de serpara mim, mas ainda de ser para outrem. Como nossadependência comum a um mesmo mundo supõe que minhaexperiência, a título geral, seja experiência do ser, damesma maneira nossa vinculação a uma língua comum oumesmo a um universo comum da linguagem supõe umarelação primordial de mim a minha palavra que lhe dá ovalor de uma dimensão do ser, participável por X. Poressa relação, o outro eu mesmo pode-se tornar outro epode-se tornar eu mesmo num sentido muito mais radical.A língua comum que falamos é alguma coisa como a cor-poralidade anónima que partilho com os outros organis-mos. O simples uso dessa língua, como os comportamentosinstituídos de que sou o agente e a testemunha só me dãoum outro em geral, difuso através de meu campo, umespaço antropológico ou cultural, um indivíduo de espécie,por assim dizer, e, em suma, mais uma noção do que umapresença. Mas a operação expressiva e em particular apalavra, tomada no estado nascente, estabelece uma si-

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liiucuo comum que não é mais somente comunidade de.vc; mas comunidade de fazer*. É aqui que tem verdadeira-mente lugar o empreendimento da comunicação, e que osilêncio parece rompido. Entre o gesto natural (se jamaispodemos encontrar um só que não suponha ou crie umedifício de significações) e a palavra, há esta diferençaque ele mostra os objetos dados por alhures aos nossossentidos, enquanto que o gesto de expressão, e em parti-cular a palavra, é encarregada de revelar não somenterelações entre termos dados cm outro lugar, mas até osp n i p r i n N Lermos (Ir.s.ms relações. A sedimentação da cultura,<pi r da u MOHHO.H gestos c às nossas palavras um fundocomum que vul de si, foi preciso primeiro que fosse con-mimldo por esses gestos e essas palavras mesmas, e bastauni pouco de cansaço para interromper esta mais pro-funda comunicação. Aqui, não podemos mais, para expli-car a comunicação, invocar nossa vinculação a um mesmomundo: pois é essa vinculação que está em questão e daqual se trata justamente de dar conta. No máximo pode-mos dizer que nosso enraizamento sobre a mesma terra,nossa experiência de uma mesma natureza é o que noslança no empreendimento: elas* não saberiam garanti-lo,não bastam para consumá-lo. No momento em que a pri-meira significação humana é expressa, um empreendi-mento é tentado que dispensa nossa pré-história comum,mesmo se ela prolonga seu movimento: é esta palavraconquistadora que nos interessa, é ela que torna possívela palavra instituída, a língua. É preciso que ensine ela

* Na margem: Isto é devido a que a palavra não visa mundo naturalmas mundo de espontaneidade — não sensível. Que se torna, nessenível, o outrem invisível? Ele é sempre invisível, de meu lado, atrásde mim, etc. Mas não na medida em que pertencemos a uma mesmapré-história: na medida em que pertencemos a uma mesma palavra.Esta palavra é como outrem em geral, inapreensível, intematizável,e, nessa medida, é generalidade, não individualidade. Mas é comose a individualidade do sentir fosse sublimada até a comunicação.Está aí a palavra que visamos, e que então não repousa sobre ageneralidade só. É preciso que ela seja superobjetíva, supersentida.Nela não há mais diferença entre ser singular e sentido. Nenhumaoposição entre minha língua e minha obra, particular e universal.Aqui o outro enxertado sobre o mesmo. Falar e ouvir indisccrníveisTo speak to e to be spoken to. Continuamos . E, ao mesmo tempo,violência da palavra. Supersignificante. Simpatia das totalidades.

* Sic.

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própria seu sentido, e àquele que fala e àquele que cscutn,não basta que assinale um sentido já possuído pelas duaspartes, é preciso que o faça ser, é-lhe então essencial seultrapassar como gesto, é o gesto que se suprime como tale se ultrapassa em direção de um sentido. Anterior a todasas línguas constituídas, sustento de sua vida, ela é, emcontrapartida, levada por elas na existência, e, uma vezinstituídas de significações comuns, leva mais longe seuesforço. É preciso então conceber sua operação fora detoda significação já instituída, como ato único pelo qualo homem falante se dá um ouvinte, e uma cultura quelhes seja comum. Certo, ela não está visível em nenhumaparte; como a outrem, não lhe posso assinalar lugar; comooutrem, ela está mais ao meu lado que nas coisas, masnem posso dizer que esteja em mim já que ela está outrotanto no ouvinte; ela é o que tenho de mais próprio,minha produtividade, e no entanto só é tudo isso paradisso fazer sentido e comunicá-lo; o outro, que ouve ecompreende, me alcança no que tenho de mais individual:é como se a universalidade do sentir, de que falamos, ces-sasse enfim, de ser universalidade para mim, e se redo-brasse de uma universalidade reconhecida. Aqui as pala-vras de outrem ou as minhas nele não se limitam naqueleque ouve e faz vibrar, como cordas, o aparelho das signifi-cações adquiridas, ou a suscitar alguma reminiscência: épreciso que seu desenrolar tenha o poder de me lançarpor minha vez para uma significação que nem ele nem eupossuíamos. Da mesma maneira que, percebendo um orga-nismo que dirige aos que o cercam gestos, venho a per-cebê-lo percebendo, porque sua organização interna éaquela mesma de minhas condutas e me falam de minhaprópria relação ao mundo, como, quando falo a outreme o ouço, o que escuto vem-se inserir nos intervalos do quedigo, minha palavra é recortada lateralmente pela de ou-trem, me escuto nele e ele fala em mim, é aqui a mesmacoisa to speak to e to be spoken to. Tal é o fato irredutívelque encerra toda expressão militante, e que a expressãoliterária nos tornaria presente se fôssemos tentados aesquecê-lo.

Pois ela renova sem cessar a mediação do mesmo edo outro, ela nos faz verificar perpetuamente que só hásignificação por um movimento, primeiro violento, quedispensa toda significação. Minha relação com um livro

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pclu, í;Liniliaridade fácil das palavras de nossalíngua, das ideias que fazem parte de nosso equipamento,como minha percepção de outrem é à primeira vista aquelados gestos ou dos comportamentos da espécie humana.Mas, se o livro me ensina verdadeiramente alguma coisa,se outrem é verdadeiramente um outro, é preciso que numcerto momento eu seja surpreendido, desorientado, e quenós nos reencontremos, não mais no que temos de seme-lhante, mas no que temos de diferente, e isto supõe umatransformação de mim mesmo e de outrem outro tanto; épreciso que nossas diferenças não sejam mais como quali-dades «pacas, 6 preciso que se tenham tornado sentidos.Na percepção de outrem, isto se produz quando o outroorganismo, cm vez de se comportar como eu, usa a res-peito das coisas de meu mundo um estilo que primeirome é misterioso, mas que pelo menos me aparece na horacomo estilo, porque responde a certas possibilidades dasquais as coisas de meu mundo estavam aureoladas. Damesma forma, na leitura, é preciso que num certo mo-mento a intenção do autor me escape, é preciso que elese entrincheire; então volto atrás, retomo impulso, ouentão passo e, mais tarde, uma palavra feliz me fará al-cançar, me conduzirá ao centro da nova significação, ace-derei a ela por aquele de seus lados que já faz parte deminha experiência. A racionalidade, o acordo dos espíritosnão exigem que nos encaminhemos todos à mesma ideiapela mesma via, ou que as significações possam ser fecha-das numa definição, exige somente que toda experiênciacomporte pontos de acionamento para todas as ideias eque as ideias tenham uma configuração. Esta dupla pos-tulação é a de um mundo, mas, como não se trata aquida unidade atestada pela universalidade do sentir, comoaquela de que falamos é invocada mais que constatada,como é quase invisível e construída sobre o edifício dosnossos sinais, nós a chamamos mundo cultural e chama-mos palavra o poder que temos de fazer servir certas coisasconvenientemente organizadas — o preto e o branco, osom da voz, os movimentos da mão —, a colocar em relevo,a diferenciar, a conquistar, a entesourar as significaçõesque erram no horizonte do mundo sensível, ou ainda deinsuflar na opacidade do sensível esse vazio que o tornarátransparente, mas que ele mesmo, como o ar insuflado nagarrafa, nunca fica sem alguma realidade substancial. Da

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mesma maneira então que nossa percepção dos outros vivosdepende finalmente da evidência do mundo sentido, quese oferece a condutas outras e no entanto compreensíveis— da mesma forma a percepção de um verdadeiro alter egosupõe que seu discurso, no momento em que o compreen-demos e sobretudo no momento em que se entrincheirade nós e ameaça tornar-se não-sentido, tenha o poder denos refazer à sua imagem e nos abrir a um outro sentido.Esse poder, ele não o possui diante de mim como consci-ência: uma consciência não saberia encontrar nas coisasa não ser o que nelas colocou. Ele pode fazer-se valer diantede mim enquanto sou eu também palavra, quer dizer ca-paz de me deixar conduzir pelo movimento do discursopara uma nova situação de conhecimento. Entre eu comopalavra e outrem como palavra, ou mais geralmente eucomo expressão e outrem como expressão, não há maisessa alternativa que faz do relacionamento das consciên-cias uma rivalidade. Não sou somente ativo quando falo,mas precedo minha palavra no ouvinte; não sou passivoquando ouço, mas falo a partir do... que diz o outro. Falarnão é somente uma iniciativa minha, ouvir não é sofrer ainiciativa do outro, e isto, em última análise, porque comosujeitos falantes continuamos, retomamos um mesmo es-forço, mais velho que nós, sobre o qual somos enxertadosum e outro, e que é a manifestação, o vir a ser da verdade.Dizemos que o verdadeiro sempre foi verdadeiro, mas éuma maneira confusa de dizer que todas as expressõesanteriores revivem e recebem seu lugar neste presente, oque faz com que possamos, se quisermos, lê-la nelas depois,mas, mais justamente, reencontrá-las nela. O fundamentoda verdade não está fora do tempo, está na abertura decada momento do conhecimento àqueles que o retomarãoe mudarão em seu sentido. O que chamamos palavra nãopassa dessa antecipação e essa retomada, esse tocar a dis-tância, que não se conceberiam eles próprios em termosde contemplação, esta profunda conivência do tempo comele mesmo. O que mascara a relação viva dos sujeitosfalantes é que tomamos sempre por modelo da palavra oenunciado ou o indicativo, e o fazemos porque acreditamosque só há, fora dos enunciados, balbucios, derrisão. É es-quecer tudo o que entra de tácito, de informulado, de não-tematizado nos enunciados da ciência, que contribuem paradeterminar seu sentido e que justamente dão à ciência de

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fim rimipo do Investigações. É esquecer toda ai<x| iM*NHtio 11 luraria em que teremos justamente que locali-zar o que se poderia chamar a super significação, e a dis-tingui-la do não-sentido. Fundindo a significação sobre apalavra, queremos dizer que o próprio da significação énunca aparecer senão como continuação de um discursojá começado, iniciação a uma língua já instituída. A signi-ficação parece preceder os escritos que a manifestam, nãoque eles façam descer sobre a terra ideias que preexisti-ram num céu inteligível, ou na Natureza ou nas Coisas,mas porque é o fato de cada palavra não ser somente ex-pressão disso, mas de se dar na hora como fragmento de umdiscurso universal, de anunciar um sistema de interpre-tação. São os afásicos que precisam, para conduzir umaconversação, de pontos de apoio, escolhidos anterior-mente, ou para escrever sobre uma página branca algumaIndicação — linha traçada anteriormente ou somentemancha de tinta sobre o papel —, que os arranca à verti-gem do vazio e lhes permite começar. E, se podemos rea-proximar o excesso de impulso e o defeito, é Mallarmé, naoutra extremidade do campo da palavra, quem é fascinadopela página branca, porque ele quereria dizer o tudo, quedifere indefinidamente de escrever o Livro, e que nos deixa,sob o nome de sua obra, escritos que as circunstâncias lhearrancaram — que a fraqueza, que sua feliz fraqueza, fur--tivamente permitiu. O escritor feliz, o homem falante nãotêm tanta ou tão pouca consciência. Não se perguntam,antes de falar, se a palavra é possível, não se detêm napaixão da linguagem que é ser obrigado a não dizer tudose queremos dizer alguma coisa. Eles se colocam com feli-cidade à sombra dessa grande árvore, continuam em vozalta o monólogo interior, seu pensamento germina empalavra, são compreendidos sem procurá-lo, fazem-se ou-tros dizendo o que têm de mais próprio. Estão bem em simesmos, não se sentem exilados de outrem, e, porque estãoplenamente convencidos que o que lhes parece evidente éverdadeiro, o dizem simplesmente, franqueiam as pontes deneve sem ver como elas são frágeis, gastam até o fim essepoder inaudito que é dado a cada consciência, se elase acredita coextensiva ao verdadeiro, de convencer os ou-tros, e entrar em seu reduto. Cada um, num sentido, é parasi a totalidade do mundo e, por urna graça de Estado, équando disso está convencido que isso se torna verdadeiro:

pois cntuo cie l u l a , r < > . - ; outrus o compreendem r ã tota-lidade privada fraterniza com a totalidade social. Na pala-vra se realiza o impossível acordo das duas totalidadesrivais, não que ela nos faça entrar em nós mesmos e reen-contrar algum espírito único ao qual participaríamos, masporque ela nos diz respeito, nos atinge de través, nos seduz,nos arrasta, nos transforma no outro, e ele em nós, porqueela abole os limites do meu e do não-meu e faz cessar aalternativa do que tem sentido para mim e do que é não-sentido para mim, de mim como sujeito e de outrem comoobjeto. É bom que alguns tentem obstacular a intrusãodesse poder espontâneo e a ele oponham seu rigor e suamá vontade. Mas seu silêncio acaba por palavras ainda, eem bom direito: não há silêncio que seja pura atenção, eque, começado nobremente, permaneça igual a si mesmo.Como dizia Maurice Blanchot, Rimbaud passa além dapalavra •— e acaba por escrever ainda, mas essas cartas daAbissínia que reclamam, sem traço de humor, uma hones-ta facilidade, uma família e a consideração pública... Acei-tamos sempre então o movimento da expressão; não ces-samos de ser seu tributário por tê-lo recusado. Como cha-mar finalmente esse poder ao qual somos votados e quetira de nós, bem ou mal, significações? Não é, certo, umdeus, já que sua operação depende de nós; e não é umgénio maligno, já que traz a verdade; não é a condiçãohumana — ou, se é humano, é no sentido em que ohomem destrói a generalidade da espécie, e faz admitiroutras em sua singularidade mais recuada. É ainda cha-mando-o palavra ou espontaneidade que designaremos me-lhor esse gesto ambíguo que faz o universal com o singular,e o sentido com nossa vida.

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A Expressão e oDesenho Infantil

Nosso tempo privilegiou todas as formas de expressãoelusivas e alusivas, então bem primeiro a expressão pic-tural, e nela a arte dos primitivos, o desenho das crian-ças e dos loucos. Depois todos os géneros de poesia invo-luntária, o testemunho, ou a língua falada. Mas, salvoentre aqueles de nossos contemporâneos cuja neurose faztodo o talento, o recurso à expressão bruta não se faz contraa arte dos museus ou contra a literatura clássica. Ao con-trário, é de natureza a tornarem-nos vivos lembrando-noso poder criador da expressão que traz tão bem quanto osoutros a arte e a literatura objetiva, mas que cessamosde sentir neles precisamente porque estamos instalados,como sobre um solo natural, sobre as aquisições que nosdeixaram. Após a experiência dos modos de expressão nãocanónicos, a arte e a literatura clássica se apresentam comoa conquista até aqui a mais realizada de um poder deexpressão que não se fundou naturalmente, mas que nelasse mostrou bastante eloquente para que séculos inteirostenham podido crê-lo coextensivo ao mundo. Para nós, en-tão, tornaram a ser o que nunca tinham deixado de ser:uma criação histórica — com tudo o que isto implica derisco, mas também de parcialidade ou de estreiteza. O quechamamos arte e literatura significante só significa numacerta área de cultura, e deve ser então religada a um podermais geral de significar. A literatura e a arte objetivas,

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que só crêem apelar para significações já presentes em todohomem e nas coisas, são, forma e fundo, inventadas, e sóhá objetividade porque primeiro um poder de expressãosuperobjetivo abriu para séculos um campo comum de lin-guagem, só há significação porque um gesto supersigni-ficante se ensinou, se fez compreender ele mesmo, no riscoe na parcialidade de toda criação. Antes de procurar, nocapítulo seguinte, o que podem ser as relações de operaçãoexpressiva com o pensador que supõe e que forma, coma história que continua e recria, recoloquemo-nos diantedela, de sua contingência e de seus riscos.

A ilusão objetivista está bem instalada em nós. Esta-mos convencidos de que o ato de exprimir, em sua formanormal ou fundamental, consiste, levando em conta umasignificação, em construir um sistema de sinais tal que acada elemento do significado corresponde um elemento dosignificante, isto é, a representar. É com esse postuladoque começamos o exame das formas de expressão maiselípticas — que do mesmo golpe são desvalorizadas — porexemplo da expressão infantil. Representar, será aqui, le-vando em conta um objeto ou um espetáculo, transpor-tá-lo e dele fabricar sobre o papel uma espécie de equiva-lente, de tal maneira que, em princípio, todos os elementosdo espetáculo estejam assinalados sem equívoco e sem con-fusão. A perspectiva planimétrica é sem dúvida a únicasolução do problema colocado nestes termos, e descrevere-mos o desenvolvimento do desenho da criança como umamarcha para a perspectiva. Fizemos ver antes que emtodo caso a perspectiva planimétrica não poderia ser dadacomo uma expressão do mundo que percebemos, nem entãoreivindicar um privilégio de conformidade ao objeto, e estaobservação nos obriga a reconsiderar o desenho da criança.Pois não temos mais agora o direito nem a necessidade dedefini-lo, somente em relação ao momento final em que elealcança a perspectiva planimétrica. Realismo fortuito,realismo falho, realismo intelectual, realismo visual, enfim,diz Luquet, quando quer descrever seus progressos1. Masa perspectiva planimétrica não é realista, vimos, é umaconstrução, e, para compreender as fases que a precedem,não nos basta mais falar de inatenção, de incapacidadesintética, como se o desenho perspectivo já estivesse lá, sob

1. Luquet, O Desenho Infantil, Alcan, 1927.

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os olhos da criança, e que todo o problema fosse explicarporque ela não se inspira com ele. Precisamos, ao contrá-rio, compreender, por eles mesmos e como consumaçãopositiva, os modos de expressão primordiais. Não se é obri-gado a representar um cubo por um quadrado e dois losan-gos associados a cada um de seus lados e a sua base a nãoser se resolvemos projetar o espetáculo sobre o papel, ouseja, fabricar um relevo onde possam figurar, com o obje-to, a base sobre a qual repousa, os objetos vizinhos, suasorientações respectivas segundo a vertical e a horizontal,seu escalonamento em profundidade, onde os valores nu-méricos dessas diferentes relações possam ser reencontra-dos e lidos segundo uma escala única — em suma, ondepudéssemos reunir o máximo de informações não tantosobre o espetáculo como sobre as invariantes que se reen-contram na percepção de todo espectador qualquer queseja seu ponto de vista. De maneira que só é paradoxalem aparência, a perspectiva planimétrica é tomada de umcerto ponto de vista, mas para obter uma notação domundo que seja válida para todos. Ela fixa a perspectivavivida, ela adota, para representar o percebido, um índicede deformação característica de meu ponto de estação,mas, justamente, por esse artifício, constrói uma imagemque é imediatamente traduzível na óptica de todo outroponto de vista, e que, nesse sentido, é imagem de um mun-do em si, de um geometral de todas as perspectivas. Eladá à subjetividade uma satisfação de princípio pela defor-mação que admite nas aparências, mas como essa defor-mação é sistemática e se faz segundo o mesmo índice emtodas as partes do quadro, ela me transporta nas própriascoisas, me mostra como Deus as vê, mais exatamente, medá não a visão humana do mundo, mas o conhecimentoque pode ter de uma visão humana um deus que não mer-gulhe na finitude. Está aí um objetivo que podemos pro-por-nos na expressão do mundo. Mas podemos ter umaoutra intenção. Podemos procurar tornar nossa relaçãocom o mundo, não o que ela é ao olhar de uma inteligên-cia infinita, e ao mesmo tempo o tipo canónico, normal,ou verdadeiro da expressão cessa de ser a perspectivaplanimétrica, eis-nos livres das imposições que ela faziaao desenho, livres, por exemplo, de exprimir um cubo porseis quadrados dissociados e justapostos sobre o papel,livres de aí fazer figurar as duas faces de uma bobina e de

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reuni-las por uma espécie de cano de aquecedor soldado,livres de representar a morte por transparência em seucaixão, o olhar por olhos separados da cabeça, livres de nãomarcar os contornos objetivos da aléia ou do rosto, e, emcompensação, de indicar as faces por uni redondo. É o quefaz a criança. É também o que faz Claude Lorrain quandodá a presença da luz por sombras que a cercam, mais elo-quentemente que o faria tentando desenhar o facho lu-minoso. É que o objetivo não é mais aqui construir umasinalização objetiva do espetáculo, e comunicar comaquele que olhará o desenho dando-lhe a armadura de re-lações numéricas que são verdadeiras para toda a percep-ção do objeto. O objetivo é marcar sobre o papel um traçode nosso contato com esse objeto e esse espetáculo, namedida em que eles fazem vibrar nosso olhar, virtualmen-te nosso tocar, nossos ouvidos, nosso sentimento do acasoou do destino ou da liberdade. Trata-se de deixar umtestemunho, e não de fornecer informações. O desenho nãodeverá mais se ler como antes, o olhar não o dominarámais, nós ali procuraremos mais o prazer de envolver omundo; ele será recebido, nos dirá respeito como umapalavra decisiva, despertará em nós o profundo arranjoque nos instalou em nosso corpo e por ele no mundo, car-regará o selo de nossa finitude, mas assim, e por aí mesmo,nos conduzirá à substância secreta do objeto de que poucoantes só tínhamos o envelope. A perspectiva planimétricanos dava a finitude de nossa percepção, projetada, achata-da, tornada prosa sob o olhar de um deus, os meios deexpressão da criança, quando forem deliberadamente re-tomados por um artista num verdadeiro gesto criador nosdarão, ao contrário, a ressonância secreta pela qual nossafinitude se abre ao ser do mundo e se faz poesia. E seriapreciso dizer da expressão do tempo o que acabamos dedizer da expressão do espaço. Se, em suas narrações grá-ficas, a criança reúne numa só imagem as cenas sucessi-vas da história, e só faz ali figurar uma única vez os ele-mentos invariveis do cenário, ou mesmo ali desenha umasó vez cada um dos personagens tomados na atitude queconvém a tal momento do relato — de maneira que con-tenha sozinho toda a história no momento considerado, eque todos juntos dialoguem através da espessura do tem-po e marquem de longe em longe a história — ao olhar doadulto razoável, que pensa o tempo como uma série depontos temporais justapostos, esse relato pode parecer

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cheio de lacunas e obscuro. Mas, segundo o tempo que vi-vemos, o presente toca ainda, tem ainda em mão o passa-do, está com ele numa estranha coexistência, e as elipsesda narração gráfica podem sozinhas exprimir esse movi-mento da história que abarca seu presente em direçao deseu futuro, como o rebatimento exprime a coexistênciados aspectos invisíveis, e dos aspectos visíveis do objeto ou apresença secreta do objeto móvel em que o fechamos. E certohá bem diferença entre o desenho involuntário da criança,resíduo de uma experiência indivisa, ou mesmo tomado comos gestos plásticos, falsos desenhos — como há uma falsaescrita, e a falsa palavra da tagarelice — e a verdadeira ex-pressão das aparências, que não se contenta em explorar omundo todo feito do corpo e a ele acrescenta o de um princí-pio de expressão sistemática. Mas o que está antes da obje-tividade simboliza como o que está acima, e o desenho in-fantil substitui o desenho objetivo na série de operações ex-pressivas que procuram, sem nenhuma garantia, recuperar oser do mundo, e nos faz percebê-lo como caso particular dessaoperação. A questão com um pintor nunca é saber se eleusa ou não usa a perspectiva planimétrica: é saber se elea observa como uma receita infalível de fabricação — éentão que esquece sua tarefa e que não é pintor — ou sea reencontra sobre o caminho de um esforço de expressãocom o qual acontece ela ser compatível ou mesmo onde elarepresenta o papel de um auxiliar útil, mas do qual nãodá o sentido inteiro. Cézanne renuncia à perspectativa pla-nimétrica durante toda uma parte de sua carreira; porquequer exprimir pela cor e a riqueza expressiva de uma maçãa faz transbordar seus contornos, e não se pode conten-tar do espaço que lhe prescrevem. Um outro — ou o pró-prio Cézanne em seu último período — observa as leisda perspectiva, ou melhor, não precisa infringi-las porqueprocura a expressão pelo traçado, e não tem mais necessi-dade de encher sua tela. O importante é que a perspectiva,mesmo quando está lá, só esteja presente como as regrasde gramática estão presentes num estilo. Os objetos dapintura moderna sangram, espalham sob nossos olhossua substância, interrogam diretamente nosso olhar, co-locam à prova o pacto de coexistência que concluímos como mundo por todo nosso corpo. Os objetos da pintura clás-sica têm uma maneira mais discreta de nos falar, e é asvezes um arabesco, um traço de pincel quase sem maté-

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ria que apela nossa encarnação, enquanto que o resto dalinguagem se instala decentemente à distância, no findoou no eterno, e se abandona às conveniências da perspec-tiva planimétrica. O essencial é que, num caso como nooutro, jamais a universalidade do quadro resulte das re-lações numéricas que ele possa conter, jamais a comunica-ção do pintor conosco se funda sobre a objetividade pro-saica, e que sempre a constelação dos sinais nos guie parauma significação que não estava em nenhum lugar antesdela.

Ora, essas observações são aplicáveis à linguagem.

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