1
UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
FACULDADE DE DIREITO
JOSÉ LINDOMAR DA COSTA JÚNIOR
A PSICOGRAFIA COMO MEIO DE PROVA NO TRIBUNAL DO JÚRI
FORTALEZA
2014
2
JOSÉ LINDOMAR DA COSTA JÚNIOR
A PSICOGRAFIA COMO MEIO DE PROVA NO TRIBUNAL DO JÚRI
Monografia apresentada ao Curso de
Graduação em Direito da Universidade
Federal do Ceará, como requisito parcial à
obtenção do título de Bacharel em Direito.
Área de concentração: Direito Processual
Penal.
Orientador: Prof. Dr. Samuel Miranda Arruda.
Fortaleza
2014
3
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Universidade Federal do Ceará
Biblioteca Setorial da Faculdade de Direito
C839p Costa Júnior, José Lindomar da.
A psicografia como meio de prova no tribunal do júri / José Lindomar da Costa Júnior. – 2014.
62 f. : enc. ; 30 cm.
Monografia (graduação) – Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Direito, Curso de
Direito, Fortaleza, 2014.
Área de Concentração: Direito Processual Penal.
Orientação: Prof. Dr. Samuel Miranda Arruda.
1. Processo penal - Brasil. 2. Espiritismo. 3. Prova (Direito) - Brasil. 4. Júri – Brasil. I. Arruda,
Samuel Miranda (orient.). II. Universidade Federal do Ceará – Graduação em Direito. III. Título.
CDD 343.9
4
JOSÉ LINDOMAR DA COSTA JÚNIOR
A PSICOGRAFIA COMO MEIO DE PROVA NO TRIBUNAL DO JÚRI
Monografia apresentada ao Curso de
Graduação em Direito da Universidade
Federal do Ceará, como requisito parcial à
obtenção do título de Bacharel em Direito.
Área de concentração: Direito Processual
Penal.
Orientador: Prof. Dr. Samuel Miranda Arruda.
Aprovada em: ___/___/___
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________
Prof. Dr. Samuel Miranda Arruda (Orientador)
Universidade Federal do Ceará – UFC
______________________________________________
Prof. Dr. Francisco Régis Frota Araújo
Universidade Federal do Ceará – UFC
______________________________________________
Prof. Ms. Raul Carneiro Nepomuceno
Universidade Federal do Ceará – UFC
5
A Deus, pois sem Ele nada seria possível.
Aos meus queridos pais, amores eternos.
6
AGRADECIMENTOS
A Deus, razão de tudo.
Aos meus pais, pelo amor incondicional.
À minha mãe, Amélia, pelos ensinamentos, por sempre me guiar no caminho do bem e pelo
exemplo de honestidade e caráter.
Ao meu pai, Lindomar, in memorian, pela inspiração e confiança em minha capacidade de
crescer como homem.
À toda minha família, base de minha formação, em especial aos meus irmãos, Alinne e
Daniel, pela amizade e apoio em todos os momentos de minha vida; aos meus avós, Antonieta
e Flávio, por exercerem o papel de segundos pais, colaborando, sobretudo com minha
educação. Aos meus tios, padrinhos e primos, por fazerem parte dessa história.
À minha namorada, Mayara, pelo carinho e companheirismo.
À Universidade Federal do Ceará, por ter me possibilitado o contato com o universo
acadêmico, em especial ao professor Samuel Miranda Arruda, por ter aceitado me orientar no
presente trabalho e pela atenção despendida para viabilizar sua realização.
Aos colegas do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas – DNOCS, que me
ofereceram a primeira oportunidade profissional e muito contribuíram para a minha formação
pessoal.
Aos companheiros da 3ª Vara Criminal de Caucaia/CE, pelo aprendizado diário, tanto em
conhecimentos da área jurídica, como de conduta profissional e, principalmente, pela
amizade.
Por fim, mas não menos importante, aos meus amigos que, direta ou indiretamente fizeram
parte da minha formação e que de alguma forma contribuíram com a conquista deste objetivo.
7
“Tudo reportamos ao que conhecemos e não
compreendemos o que escapa à percepção dos
nossos sentidos, mais do que o cego de nascença não
compreende os efeitos da luz e a utilidade dos
olhos.”
(Allan Kardec)
8
RESUMO
Objetiva-se analisar a admissibilidade da psicografia como meio de prova no processo penal,
observando-se especificamente sua aplicação no Tribunal do Júri. Inicialmente, realiza-se
uma análise acerca do sistema probatório vigente no ordenamento jurídico brasileiro, com um
conciso estudo sobre a teoria geral das provas, verificando-se a finalidade da prova no
processo penal, seus princípios norteadores, os meios admitidos e proibidos, finalizando com
uma breve explanação quanto aos sistemas de apreciação das provas. Em seguida, abordam-se
os principais pontos relativos à psicografia e mediunidade, observando seus tipos, fazendo-se
ainda uma breve análise histórica. Ademais, será dado especial enfoque à análise da
grafoscopia como meio idôneo a demonstrar a autenticidade do documento psicografado e
comprovar o seu caráter científico. Finalmente, expõem-se os principais argumentos
defensivos e contrários à psicografia como prova a fim de demonstrar sua legitimidade e, por
conseguinte, sua aplicação nos processos de competência do júri popular, sendo necessário
apresentar as características e princípios constitucionais informadores deste procedimento,
bem como breve exame dos principais casos concretos em que um documento psicografado
foi admitido como prova no Tribunal do Júri.
Palavras chave: Direito Processual Penal. Provas. Psicografia. Tribunal do Júri.
9
ABSTRACT
Objective is to analyze the admissibility of psychographics as evidence in criminal
proceedings, specifically its application in the Jury Court. Initially, we make an analysis about
the current evidential system in the Brazilian legal system, with a brief study of the general
theory of evidence verifying the purpose of proof in criminal proceedings, its guiding
principles, the allowed and forbidden ways, ending with a brief explanation as to the
assessment of evidence systems. Then discuss whether the main points regarding the
channeling and automatic writing, observing their types, still making a brief historical
analysis. Moreover, special attention will be given to the analysis of graphoscopy as suitable
means to demonstrate the authenticity of the document and psychographic prove, analyzing its
scientific nature. Major defensive arguments for and against psychographics as evidence
ultimately expose themselves to demonstrate their legitimacy and therefore its application in
cases under the jury, being necessary to present the features and constitutional principles
informants of this procedure as well as brief examination of the main concrete cases in which
a document psychographic was admitted as evidence in Court Jury.
Keywords: Criminal Procedure. Proof. Psycographics. Jury Trial.
10
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 12
2. TEORIA GERAL DAS PROVAS ..................................................................................... 14
2.1. A prova no Direito Processual ........................................................................................ 14
2.2. A busca da verdade no processo penal .......................................................................... 16
2.3. Objeto e sujeito da prova ................................................................................................ 17
2.4. Classificação das provas .................................................................................................. 18
2.5. Ônus da prova .................................................................................................................. 18
2.6. Princípios da prova .......................................................................................................... 21
2.6.1. Princípio da autorresponsabilidade das partes ............................................................. 21
2.6.2. Princípio da comunhão da prova .................................................................................. 21
2.6.3. Princípio da audiência contraditória ............................................................................ 21
2.6.4. Princípio da oralidade ................................................................................................... 22
2.6.5. Princípio da concentração ............................................................................................. 22
2.6.6. Princípio da publicidade ................................................................................................ 23
2.6.7. Princípio do livre convencimento motivado ................................................................. 23
2.6.8. Princípio da não autoincriminação .............................................................................. 23
2.7. Fases do procedimento probatório ................................................................................. 23
2.8. Meios de prova e liberdade probatória.......................................................................... 24
2.9. Vedações probatórias ...................................................................................................... 26
2.9.1. Provas ilícitas ................................................................................................................. 27
2.9.2. Prova ilícita por derivação e a teoria dos frutos da árvore envenenada ..................... 28
2.9.3. Teoria da proporcionalidade ou da razoabilidade ........................................................ 29
2.9.3.1. Teoria da proporcionalidade aplicada pro reo ........................................................... 30
2.9.3.2. Teoria da proporcionalidade aplicada pro societate .................................................. 31
2.9.4. Teoria da exclusão da ilicitude da prova ...................................................................... 32
2.10. Prova emprestada .......................................................................................................... 33
2.11. Sistema moderno de avaliação de provas .................................................................... 33
2.11.1. Sistema da íntima convicção ....................................................................................... 34
2.11.2. Sistema da prova legal ................................................................................................. 35
2.11.3. Sistema da livre convicção .......................................................................................... 35
11
3. A PSICOGRAFIA .............................................................................................................. 37
3.1. Considerações preliminares ............................................................................................ 37
3.2. A mediunidade e as espécies de médiuns ...................................................................... 39
3.2.1. Médiuns mecânicos ....................................................................................................... 40
3.2.2. Médiuns intuitivos ......................................................................................................... 40
3.2.3. Médiuns semimecânicos ................................................................................................ 41
3.2.4. Médiuns inspirados ........................................................................................................ 41
3.2.5. Médiuns de pressentimento ........................................................................................... 41
3.2.6. Médiuns especiais .......................................................................................................... 42
3.3. O aspecto científico da psicografia ................................................................................. 42
3.3.1. Breve histórico ............................................................................................................... 42
3.3.2. Perícia grafotécnica e psicografia ................................................................................ 44
4. A PSICOGRAFIA NO PROCESSO PENAL .................................................................. 47
4.1. Posicionamentos controvertidos quanto à admissibilidade da psicografia como
prova no processo penal ......................................................................................................... 47
4.2 A carta psicografada como meio de prova ..................................................................... 50
4.3. A possibilidade de utilização da carta psicografa no Tribunal do Júri ...................... 52
4.3.1. Breves considerações sobre a instituição do Tribunal do Júri no Brasil .................... 52
4.3.2. Os princípios constitucionais do Tribunal do Júri ....................................................... 54
4.3.2.1. A plenitude de defesa ................................................................................................... 54
4.3.2.2. Sigilo das votações ...................................................................................................... 55
4.3.2.3. Soberania dos veredictos ............................................................................................. 55
4.3.2.4. Competência para julgamento de crimes dolosos contra a vida ................................ 56
4.3.3. Análise dos principais casos de aceitação da psicografia como prova no Tribunal do
Júri ........................................................................................................................................... 56
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................. 59
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................. 61
12
1. INTRODUÇÃO
A prova constitui elemento essencial para a dinâmica processual, pois é por meio
dela que se torna possível a colheita de componentes que permitam comprovar a existência e a
veracidade de um fato e influenciar no convencimento do julgador quando da aplicação do
direito.
O processo penal, por sua vez, merece atenção especial, haja vista ser regido pelo
princípio da busca da verdade real. Assim, a mera convenção entre as partes, como se dá no
processo civil, não é suficiente para a aplicação do direito penal, em virtude dos bens jurídicos
que tutela. Logo, faz-se necessária a real demonstração da verdade dos fatos, o que confere
uma maior importância aos meios probatórios.
Em razão disso, o ordenamento jurídico brasileiro adota um sistema
exemplificativo de produção de provas, permitindo-se que diversos meios sejam utilizados na
instrução processual, previstos em lei ou não, desde que não ofendam normas de direito
material e processual. É nesse tema que se discute a possibilidade ou não de uma carta
psicografada ser utilizada como meio de prova.
O direito brasileiro já presenciou casos em que a psicografia foi aceita como meio
de prova, sendo as cartas escritas pelo médium Chico Xavier, maior difusor da Doutrina
Espírita no Brasil, as que mais se fizeram presentes nas demandas judiciais. Entretanto, o
assunto gera discussões, dividindo a doutrina entre os que aceitam o documento como meio
de prova legítima e os que o consideram como uma afronta aos princípios processuais
constitucionais.
A psicografia, por ser manifestada de forma quase absoluta por médiuns espíritas,
é vista como sendo um dogma, uma crença deste segmento religioso. Baseando-se nisso,
inúmeros juristas clamam pela sua inaplicabilidade como prova, por desrespeitar, sobretudo, a
laicidade do Estado brasileiro.
Por sua vez, diversos estudiosos que se debruçaram sobre a temática verificaram
que a psicografia possui, primordialmente, um viés científico e, apoiando-se nesse
entendimento, afirmam não haver impedimento para sua admissibilidade como meio idôneo
de prova.
Porém, apesar da relevância do tema para a atualidade, sobretudo pela importância
de se reconhecer a psicografia como um fenômeno científico e não apenas filosófico e
religioso, raras foram as vezes que tal documento foi levado a juízo e, por conseguinte, não há
13
jurisprudência formada e os estudos doutrinários ainda são bastante esparsos. Logo, a
temática merece adequada atenção, razão pela qual é o objeto do presente trabalho.
Assim, visando demonstrar a possibilidade de admissão da psicografia como meio
de prova no Tribunal do Júri, faz-se necessário analisar o sistema probatório vigente no direito
brasileiro, que será tratado no primeiro capítulo. Será abordada a Teoria Geral das Provas,
verificando-se a finalidade da prova, seus princípios norteadores, bem como os meios
admitidos e proibidos e os sistemas de apreciação de provas.
No segundo capítulo, adentraremos no conceito de psicografia e mediunidade, da
qual decorre a manifestação psicográfica. Serão abordados os tipos de psicografia e de
médiuns e se analisará o histórico da psicografia. Dar-se-á, ainda, especial atenção à perícia
grafotécnica como meio apropriado para a demonstração da autenticidade e comprovação da
cientificidade do documento psicografado.
Por fim, o terceiro capítulo tratará das principais teses defensivas da aceitação da
psicografia como prova penal, em confronto com os argumentos contrários, a fim de
comprovar sua legitimidade. Aliado a isso, abordar-se-á a possibilidade de utilização das
cartas no Tribunal do Júri, ocasião em que serão analisadas as principais características deste
procedimento e os casos concretos nos quais a psicografia foi aceita, sedimentando, desta
forma, o entendimento de que pode ser perfeitamente cabível a utilização desses documentos
como prova ante o procedimento do júri popular.
14
2. TEORIA GERAL DA PROVA
O termo prova deriva do latim probatio, que significa ensaio, verificação,
inspeção, exame, argumento. Provar é demonstrar a verdade a alguém em relação ao fato
ocorrido.
O Dicionário Aurélio destaca, dentre outras, a seguinte acepção acerca do verbete
“prova”:
1. Aquilo que atesta a veracidade ou a autenticidade de alguma coisa; demonstração
evidente. 2. Ato que atesta ou garante uma intenção, um sentimento; testemunho,
garantia. [...] 15. Dir. Jud. Civ. e Pen. Atividade realizada no processo com o fim de
ministrar ao órgão judicial os elementos de convicção necessários ao julgamento.
16. Dir. Jud. Civ. e Pen. Cada um dos meios empregados para formar a convicção
do julgador. 18. Filos. O que leva à admissão de uma afirmação ou da realidade de
um fato [...]. 1
O prestigiado mestre Fernando da Costa Tourinho Filho entende que “provar é,
antes de mais nada, estabelecer a existência da verdade; e as provas são os meios pelos quais
se procura estabelecê-la.”2
Assim, provar é demonstrar incontestavelmente a veracidade de um fato arguido.
Para tanto, necessário se faz a apresentação de elementos suficientemente capazes de atestar
que tal fato realmente ocorreu.
2.1. A Prova no Direito Processual Penal
A importância da prova para o Direito consiste em formar o convencimento do
juiz levando ao seu conhecimento os fatos sobre o qual versa determinado litígio, provando-
lhe a existência. A finalidade das provas é, portanto, mostrar para o julgador o que realmente
ocorreu, para que ele faça um juízo de valor e procure restaurar, na medida do possível, a
verdade real.
1 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio Básico. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, p
535. 2 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 35. Ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013, p 233.
15
Desta forma leciona Cândido Dinamarco que, “na dinâmica do processo e dos
procedimentos, prova é um conjunto de atividades de verificação e demonstração, mediante as
quais se procura chegar à verdade quanto aos fatos relevantes para o julgamento”. 3
Ainda conforme entendimento do professor Tourinho Filho, “entendem-se,
também, por prova, de ordinário, os elementos produzidos pelas partes ou pelo próprio Juiz
visando a estabelecer, dentro do processo, a existência de certos fatos”. 4
É na fase de instrução probatória que o Ministério Público, em caso de ação penal
pública, ou o querelante, ofendido na ação penal privada, terá a oportunidade de demonstrar a
procedência da pretensão punitiva, ou seja, provando o que alegou na denúncia ou queixa, e o
acusado, por sua vez, através da defesa técnica, terá a chance de demonstrar a improcedência
da imputação deduzida na peça acusatória. 5
O mestre Guilherme de Souza Nucci entende que o termo “prova” possui três
sentidos, quais sejam:
a) Ato de provar: é o processo pelo qual se verifica a exatidão ou a verdade do fato
alegado pela parte no processo (ex.: fase probatória); b) meio: trata-se do
instrumento pelo qual se demonstra a verdade de algo (ex.: prova testemunhal); c)
resultado da ação de provar: é o produto extraído da análise dos instrumentos de
provas oferecidos, demonstrando a verdade de algum fato. 6
Reconhece-se, portanto, uma “concepção estática, que é a prova em si mesma;
uma expressão dinâmica, através da instrução probatória, e uma feição dialética, com a
submissão da prova à discussão processual e posterior valoração da sentença”. 7
Observa-se, desta maneira, que às partes de uma demanda judicial é concedido o
direito de utilizarem-se dos meios disponíveis para “revelar” a verdade do que se alega, a fim
de obter o convencimento daquele que vai julgar.
Assim, o direito à prova está intrinsecamente ligado ao desempenho do direito de
ação e de defesa, sendo um verdadeiro direito subjetivo com vertente constitucional.
3
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual e Civil. V. III. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p.43 4 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op. cit., p 233.
5 LIMA, Marcellus Polastri. Curso de Processo Penal. 7. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 381.
6 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 11. Ed. rev. e atual. Rio de Janeiro:
Forense, 2014, p. 488. 7 TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 8. Ed. rev. e atual.
Salvador: Juspodivm, 2013, p. 388.
16
A produção probatória, portanto, está intimamente ligada à noção de reconstrução
dos fatos. Sendo impossível reconstruir exatamente o momento da prática criminosa, por meio
das provas busca-se uma verdade provável, aproximada, do acontecido. Esta é a função
primordial das provas.
2.2. A Busca da Verdade no Processo Penal
A busca da verdade é princípio norteador do processo. Tal elemento, contudo,
assume aspecto distinto no processo penal daquele constante no processo civil. No Direito
Processual Civil vigora a figura da verdade formal ou convencional, que seria um acordo
surgido das manifestações formuladas pelas partes. Por sua vez, no Processo Penal, deve ser
buscado o conhecimento dos fatos como realmente ocorreram, sendo o processo o
instrumento de apreciação da verdade. Logo, no Processo Penal, deve se respeitar o princípio
da verdade real. Assim esclarece Vicente Greco:
É princípio do processo penal, que interfere na garantia da ampla defesa, a aferição,
pelo juiz, da verdade real, e não apenas da que formalmente é apresentada pelas
partes no processo. O poder inquisitivo do juiz na produção das provas permite-lhe
ultrapassar a descrição dos fatos como aparecem no processo, para determinar a
realização ex officio de provas que tendam à verificação da verdade real, do que
ocorreu, efetivamente, no mundo da natureza. Essa faculdade faz com que o juiz
exerça, inclusive sobre a defesa, uma forma de fiscalização de sua eficiência,
podendo destituir o advogado inerte ou determinar as provas para descoberta da
verdade, ainda que sem requerimento do réu. No processo penal, o conteúdo da
sentença deve, o mais possível, aproximar-se da verdade da experiência.8
Contudo, a busca da realidade dos fatos como realmente ocorreram na ocasião do
crime é impossível de ser buscada. Assim, pretende-se, pela instrução probatória, o
conhecimento de uma verdade mais próxima possível do acontecido, uma verdade provável.
Para Ada Pellegrini Grinover, a verdade não é absoluta; é antes, de tudo, uma
verdade judicial, processualmente válida, que não pode ser obtida a qualquer preço. 9 Logo,
não se deve falar em verdade real, mas sim em verdade processual.
8 GRECO FILHO, Vicente. Manual de Processo Penal. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 75.
9 GRINOVER, Ada Pellegrini. As Provas Ilícitas na Constituição. In: TUBENCHLAK, James; BUSTAMANTE, Ricardo
Silva de (Coords.). Livro de Estudos Jurídicos. V. 3, Rio de Janeiro: Instituto de Estudos Jurídicos, 1991, p. 21.
17
Assim, por meio deste princípio, as partes devem procurar, utilizando-se de
todos os meios possíveis, a demonstração da verdade, de modo que as alegações suscitadas
permitam uma verificação mais aproximada possível da verdade real, que é o objetivo do
processo.
2.3. Objeto e sujeito da prova
Todos os fatos cuja veracidade as partes pretendem demonstrar por entenderem
necessário para a formação do convencimento do magistrado podem ser objeto de prova. O
objeto é, portanto, aquilo sobre o que o juiz deve ter suficiente conhecimento para resolver a
demanda.
Para Manzini, “objeto de prova são todos os fatos, principais ou secundários,
que reclamem apreciação judicial e exijam comprovação”. 10
Contudo, importante salientar que somente os fatos relevantes, pertinentes ao
processo, é que devem ser objeto de prova. Fatos impertinentes, quais sejam, aqueles que não
possuem o condão de sedimentarem o convencimento do juiz, devem ser recusados, levando
em consideração a sua inutilidade para o desfecho da ação.
Ademais, cumpre ressaltar que somente os fatos que ensejam dúvida, isto é,
que exijam comprovação, é que constituem objeto de prova. Nesse sentido, explica Manzini
que “se um fato é evidente, não pode o Juiz desconhecê-lo, pois sua discricionariedade na
valoração da prova se exercita no terreno da dúvida, não se podendo admiti-la no da
certeza”.11
Assim, os chamados fatos notórios, aqueles considerados de conhecimento do
homem comum, são dispensados de análise probatória. Ressalte-se, entretanto, que não se
encaixam no conceito de fatos notórios aqueles relativos a uma comunidade específica,
devendo, deste modo, serem nacionalmente conhecidos. Os fatos atuais também não devem
ser considerados notórios do grande público, pois se deve considerar que o tempo faz com que
a notoriedade se esmaeça.
Guilherme de Souza Nucci entende ainda que, dentro do conceito de notórios,
situam-se os fatos “evidentes – extraídos das diversas ciências (ex.: lei da gravidade) - e os
intuitivos – decorrentes da experiência e da lógica (ex.: o fogo queima)”. 12
10
MANZINI, Vincenzo apud TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op. cit., p. 235. 11
Ibidem 12
NUCCI, Guilherme de Souza. Op. cit., p. 494.
18
Restam ainda dispensados de comprovação probatória os fatos que contêm uma
presunção legal absoluta. Tais fatos, pela sua natureza, não comportam prova em sentido
contrário. Como exemplo, podemos citar a inimputabilidade penal do menor de 18 (dezoito)
anos, prevista no art. 228 da Constituição Federal.
2.4. Classificação das provas
Os elementos de prova são todos os fatos ou circunstâncias em que assenta o
convencimento do magistrado.
As provas podem ser classificadas, tendo-se em vista o conteúdo ou objeto,
como diretas ou indiretas, conforme se refiram ao próprio fato ou thema probandum, ou,
então, a outro, mas que por ilação, levam ao fato probando. 13
Há ainda a classificação quanto ao sujeito, podendo a prova ser real ou pessoal.
Como prova real, podemos mencionar aquelas que emergem do próprio fato, por exemplo, a
mutilação de um membro ou a exibição de uma arma. Já prova pessoal é aquela declarada de
forma consciente, com o fito de realçar a veracidade de um fato afirmado. Como exemplo,
temos o interrogatório, o testemunho, o depoimento perante autoridade policial.
Quanto à forma como se apresenta, a prova pode ainda ser classificada em
testemunhal, documental e material. A primeira é tida como a expressa afirmação de uma
pessoa, independente, tecnicamente, de ser testemunha ou não, como no caso do
interrogatório do acusado. A prova documental é o documento que irá condensar graficamente
a manifestação de um pensamento, como as cartas, livros, ou mesmo um contrato. Por sua
vez, a prova material simboliza qualquer elemento que corporifica a demonstração do fato, a
exemplo do exame de corpo. 14
2.5 Ônus da Prova
A palavra ônus tem origem no latim – onus – e significa fardo, cargo, peso,
imposição. O ônus da prova é, portanto, o encargo de provar. O doutrinador André Estefam o
define como “o encargo processual acometido às partes, impondo-lhes provar determinado
fato, sob pena de suportar uma situação processual adversa, desvantajosa”. 15
13
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op. cit., p. 238. 14
TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Op. cit., p. 391. 15
ESTEFAM, André. Provas e Procedimentos no Processo Penal. São Paulo: Damásio de Jesus, 2008, p. 27.
19
Júlio Fabrini Mirabete entende que:
Ônus da prova é a faculdade ou encargo que tem a parte de demonstrar no processo
a real ocorrência de um fato que alegou em seu interesse, o qual se apresenta
relevante para o julgamento da pretensão deduzida pelo autor da ação penal. 16
Assim, o ônus da prova refere-se à necessidade da parte de ver suas alegações
acolhidas pelo juiz. É a imprescindibilidade de provar o que foi alegado, sob pena de ter seu
pleito rejeitado pelo julgador. Deste modo, é também um interesse, pois à parte interessa ter
sua pretensão acolhida em juízo.
Uma questão importante quanto ao ônus probatório deve ser suscitada: trata-se de
uma faculdade e não uma obrigação. Camargo Aranha nos apresenta um ensinamento de
Friedrich Lent, em que faz uma distinção entre ônus e obrigação:
A diferença essencial entre ônus da prova e obrigação está, pois, no meu entender,
na circunstância de que o adimplemento do ônus é deixado livremente à vontade da
parte onerada ao contrário do que ocorre com a obrigação, qualquer que seja a
reação provocada por seu inadimplemento. Pertence, pois, à essência da obrigação a
necessidade de ser cumprida. [...] Disto resulta que, enquanto o não cumprimento do
ônus não se apresenta como ato contra o direito, visto que o comportamento da parte
é deixado à sua escolha, o inadimplemento de uma obrigação é fato em contradição
com a ordem jurídica e importa em consequências adequadas. 17
Observa-se, assim, que o ônus da prova não é um dever imposto às partes. A não
produção de provas não acarreta uma sanção autônoma, não sendo, assim, uma obrigação.
Contudo, importante salientar, como já dito anteriormente, que as partes interessadas em
demonstrar ao juiz a veracidade de um fato alegado possuem o dever processual de fazê-lo,
pois, caso contrário, haveria uma sanção processual, consistente em perder a causa. 18
No processo penal, como regra, o ônus da prova é da acusação. Assim dispõe o
art. 156 do Código de Processo Penal, in verbis:
16
MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 18. Ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2007, p. 258. 17
LENT, Friedrich apud ARANHA CAMARGO, Adalberto José Q. T. de. Da Prova no Processo Penal. 6ª Ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 9. 18
NUCCI, Guilherme de Souza. Op. cit., p. 495.
20
Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao
juiz de ofício: I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção
antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade,
adequação e proporcionalidade da medida; II – determinar, no curso da instrução, ou
antes, de proferir a sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre
ponto relevante. 19
A regra concernente ao onus probandi é regida pelo princípio actori uncumbit
probatio ou onus probandi incumbit ei qui asserit. Ou seja, deve incumbir-se da prova o autor
da tese levantada. 20
Assim, a acusação, ao alegar um fato em juízo, tem o dever legal de prová-lo,
pois, do contrário, restará prejudicada sua objeção. No entanto, tem prevalecido na atualidade
o entendimento de que pode o réu chamar para si o interesse de produzir prova, o que ocorre
quando alega, em seu benefício, algum fato que ocasionará a exclusão da ilicitude ou da
culpabilidade.
Entretanto, o ônus da prova da defesa não pode ser considerado de maneira
absoluta, em razão dos princípios da presunção de inocência e do in dúbio pro reo. Assim,
caso em determinada situação a defesa quede inerte, tendo mínima atividade probatória e, ao
final do feito, o magistrado se encontrar em dúvida, o infrator deve ser absolvido.
Quanto à iniciativa probatória do juiz, entende-se que o papel do magistrado é
complementar. A lei lhe faculta a produção de provas quando ainda houver dúvidas sobre
ponto importante para a formação de seu convencimento.
A produção de provas de ofício pelo juiz encontra respaldo na aplicação dos
princípios da verdade real e do impulso oficial. Assim entende Tourinho Filho ao dizer que o
magistrado “não se achando em presença de verdades feitas, de um acontecimento que se lhe
apresente reconstruído pelas partes, está obrigado a procurar, por si mesmo, essas verdades”.21
Guilherme Nucci complementa, tratando do princípio do impulso oficial, que “o
procedimento legal deve ser seguido à risca, designando-se audiências previstas em lei e
atingindo o momento culminante do processo, que é a prolatação da sentença”. 22
19
GRECO, Rogério. Vade mecum penal e processual penal. 5. Ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2014, p. 243. 20
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op. cit., p. 268. 21
Idem, p. 270. 22
NUCCI, Guilherme de Souza. Op. cit., p. 497.
21
2.6. Princípios da prova
As provas são regidas por princípios diversos, destacando-se o da oralidade, da
comunhão da prova, o da auto responsabilidade das partes, o do contraditório, o da
concentração, da publicidade e do livre convencimento motivado.
2.6.1. Princípio da Autorresponsabilidade das Partes
Este princípio decorre do ônus da prova no que tange à responsabilidade de cada
parte de assumir o encargo de demonstrar a veracidade do que foi alegado.
Consequentemente, a parte assume também as consequências pela sua inatividade, erros e
negligência.
2.6.2. Princípio da Comunhão da Prova
Uma vez produzida uma prova no processo penal, esta pode ser aproveitada tanto
pela acusação como pela defesa e, obviamente, pelo juiz. Assim, explicita Marcellus Polastri
Lima:
No processo penal, cada parte pode ter iniciativa da prova, mas uma vez a parte
trazendo para os autos a sua respectiva prova, e sendo esta efetivamente produzida
(dando-se a aquisição para o processo), existirá a sua comunhão, passando a prova a
ser do processo e não mais da parte. 23
2.6.3. Princípio da Audiência Contraditória
Este princípio prevê, no processo penal, a garantia a qualquer das partes o
direito de se manifestar acerca de uma prova produzida pela parte contrária, podendo, até
mesmo, produzir contraprova. A audiência é, portanto, bilateral, sendo o processo declarado
nulo se uma das partes não estiver ciente ou não tiver oportunidade de se manifestar sobre
prova produzida nos autos. 24
Assim explica Leandro Cadenas Prado:
23
LIMA, Marcellus Polastri. Op. cit., p. 407. 24
LIMA, Marcellus Polastri, loc.. cit.
22
É a base do princípio constitucional do contraditório (art. 5º, LV), prevendo que
sempre que produzida uma prova, seja dada oportunidade de manifestação à outra
parte, ainda que a produção tenha sido efetivada com base em determinação judicial
ex officio.25
2.6.4. Princípio da Oralidade
No processo penal pátrio, a partir da reforma de 2008, passou a haver a
predominância da prova falada. Nesse sentido, temos como exemplo os testemunhos,
interrogatório do acusado, entre outros.
A oralidade já havia ganhado destaque no processo penal após sua previsão no art.
62 da Lei nº 9.099/95, sendo este um dos princípios norteadores dos procedimentos nos
Juizados Especiais. Com a reforma de 2008, tal princípio passou a abranger também o
procedimento comum, no qual passou a ser assegurado, como regra, a realização de alegações
finais orais, ante o disposto no art. 403 do Código de Processo Penal, in verbis:
Art. 403. Não havendo requerimento de diligências, ou sendo indeferido, serão
oferecidas alegações finais orais por 20 (vinte) minutos, respectivamente, pela
acusação e pela defesa, prorrogáveis por mais 10 (dez), proferindo o juiz, a seguir,
sentença.
2.6.5. Princípio da Concentração
Partindo-se da premissa de que as provas a serem produzidas no processo devem
ser preponderantemente faladas, percebe-se que o juiz que deverá proferir a sentença deverá
ser o mesmo que fez a instrução probatória. Desta forma, na lição de Polastri Lima:
Tal princípio deflui do princípio da oralidade, partindo da necessidade de haver a
concentração das provas em uma audiência, com celeridade na coleta das provas,
havendo uma verdadeira procura pela imediação.26
Assim, tanto a concentração como a mediação levam, também, à adoção do
princípio da identidade física do juiz.
25
PRADO, Leandro Cadenas. Provas Ilícitas no Processo Penal: Teoria e Interpretação dos Tribunais Superiores. Rio de Janeiro: Impetus, 2006, p. 6. 26
LIMA, Marcellus Polastri. Op. cit., p. 409.
23
2.6.6. Principio da Publicidade
Assegurado em nossa Carta Magna, em seu art. 5º, LX, pelo princípio da
publicidade tem-se que todo ato judicial é público, estando a produção das provas inclusa
nesses atos. Como exceção, estão os processos que tramitam em segredo de justiça, em
virtude de assim exigir o interesse público.
Tal princípio decorre do sistema acusatório, que exige que todos os atos sejam
públicos, como garantia ao contraditório e à ampla defesa, bem como ao devido processo
legal.
2.6.7. Princípio do Livre Convencimento Motivado
Tal princípio é reconhecido no item VII da Exposição de Motivos do Código de
Processo Penal Brasileiro, e pelo mesmo é permitido ao magistrado liberdade para decidir,
desde que o faça de forma motivada. 27
Aliado a isso, atente-se ao fato de que no sistema processual penal brasileiro não
vigora o critério da prova tarifada. Assim, o julgador tem liberdade de valorar as provas de
acordo com seu convencimento, desde que de forma motivada, considerando o que foi
extraído dos autos.
2.6.8. Princípio da Não Autoincriminação (nemo tenetur se detegere)
Por meio deste princípio, se tem o entendimento que acusado não poderá ser obrigado a
produzir prova que o incrimine. Não fica, assim, o réu obrigado a responder perguntas em
sede de interrogatório, ou fornecer letra de próprio punho para prova pericial, entre outros.
2.7. Fases do Procedimento Probatório
O procedimento probatório é composto de quatro etapas, quais sejam: a)
proposição; b) admissão; c) produção; d) valoração.
A primeira fase é o momento onde as partes requerem as provas que devem ser
produzidas no decorrer do processo, ou mesmo juntam aos autos as provas pré-constituídas.
27
TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Op. cit., p. 412.
24
Como exemplo, podem ser citados o arrolamento das testemunhas de acusação na ocasião do
oferecimento da denúncia ou queixa (art. 41 do CPP), ou das testemunhas de defesa na
apresentação da sua resposta à acusação (art. 396-A do CPP).
Importante, salientar que essa oportunidade, em regra, não é preclusiva, nada
impedindo que no curso do processo as partes requeiram a produção de provas, ou o
magistrado determine a sua realização de ofício. 28
Posteriormente, é na etapa da admissão que o juiz autorizará a realização daquilo
que foi requerido a título de prova, ou a introdução ao processo das provas pré-constituídas.
Consequentemente, segue-se a fase de elaboração das provas requeridas e, por conseguinte, o
direito de contraprova da parte contrária, em respeito ao princípio do contraditório.
Por fim, percorrida todas as fases da ação, tendo sido os autos devidamente
instruídos, ocorrerá a etapa de valoração das provas. Esse momento normalmente é o da
própria sentença, no qual o juiz apreciará cada prova produzida, conferindo-lhes o valor que
julgar pertinente, em atenção ao seu livre convencimento motivado.
2.8. Meios de Prova e Liberdade Probatória
Todos os recursos, diretos ou indiretos, utilizados para alcançar a verdade dos
fatos no processo são meios de prova.
Para Nestor Távora, “os meios de prova são os recursos de percepção da verdade e
formação do convencimento do magistrado”. 29
O princípio da busca da verdade no processo penal reflete diretamente na
produção de provas. Na sua finalidade de reconstruir fatos pretéritos para dar embasamento ao
magistrado na sua tomada de decisões, com a finalidade de fazer justiça, a atividade
probatória pouco sofre limitações, sendo dada ampla liberdade às partes de utilizarem
variados meios de prova.
É de se reconhecer, nos ordenamentos jurídicos, dois sistemas que tratam da
aquisição probatória no processo: o sistema das provas taxativas e o das provas
exemplificativas. Assim entende Marcellus Polastri Lima:
Existem dois critérios que regem a admissão e aquisição de provas, o chamado
sistema de provas taxativas, onde só se podem ser utilizadas as provas previstas
28
TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Op. cit., p. 412. 29
Ibidem, p. 391.
25
expressamente em lei, e o sistema das provas exemplificativas, ou seja, a lei
processual indica as mais comuns, mas não fica a parte impedida de se utilizar de
outra prova.30
No Brasil, foi adotado o sistema exemplificativo, em virtude do referido princípio
da busca da verdade, permitindo-se que uma infinidade de meios de provas, ainda que não
disciplinados em lei, possam ser utilizados, não havendo impedimento para a produção de
provas além das indicadas no nosso Código de Processo Penal.
Nessa toada, corrobora Edilson Mougenot Bonfim:
O Código de Processo Penal estabelecia taxativamente os meios de prova
admissíveis, no entanto, atualmente, aqueles que são regulados no diploma
processual são apenas os utilizados de forma mais frequente, sendo um rol aberto,
permitindo-se que as partes optem por meios não especificados em lei. 31
Assim, tanto é possível a utilização de meios probatórios disciplinadas na
legislação processual, em seus artigos 158 a 250, que são as chamadas provas nominadas;
como se pode ainda recorrer a meios não normatizados, que são as conhecidas provas atípicas
ou provas inominadas.
Neste sentido, explica Vicente Greco Filho que outros meios de prova, porém, são
admissíveis, desde que consentâneos com a cultura do processo moderno, ou seja, que
respeitem, os valores da pessoa humana e a racionalidade.32
Ademais, a não-taxatividade dos instrumentos de prova pode ser extraída do art.
155, parágrafo único, do CPP, quando assevera que “somente quanto ao estado das pessoas
serão observadas as restrições estabelecidas pela lei civil”. 33
Contudo, a liberdade probatória encontra limitações. Os meios de prova podem
ser lícitos – quando admitidos no ordenamento jurídico – ou ilícitos. Assim, somente aqueles
meios comprovadamente lícitos devem ser considerados para a formação do entendimento do
juiz.
Diz-se que um meio de prova não é admitido no ordenamento jurídico quando
expressamente proibido em lei ou quando for considerado imoral, antiético, atentatório à
30
LIMA, Marcellus Polastri. Op. cit., p. 412. 31
BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de Processo Penal. 3ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 311-312. 32
GRECO FILHO, Vicente. Manual de Processo Penal. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 188. 33
BRASIL, Código de Processo Penal. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm>. Acesso em: 18 de set. de 2014
26
dignidade da pessoa humana e aos bons costumes, bem como contrário aos princípios gerais
do direito. 34
Tal limitação à instrução probatória e, por consequência, à busca da verdade real e
à amplitude probatória decorre da necessidade ser garantida os direitos fundamentais do
indivíduo contra o qual foi instaurada uma ação penal, bem como respeitados a ética e o valor
da pessoa humana. Assim entende Ada Pellegrini Grinover:
E é exatamente no processo penal, onde avulta a liberdade do indivíduo, que se torna
mais nítida a necessidade de se colocarem limites à atividade instrutória. A
dicotomia defesa social/direitos de liberdade assume frequentemente conotações
dramáticas no juízo penal; e a obrigação de o Estado sacrificar na medida menor
possível os direitos de personalidade do acusado transforma-se na pedra de toque de
um sistema de liberdades públicas. 35
Logo, a liberdade probatória, apesar de amparada na busca da verdade real,
encontra limitações, de forma a se evitar que a persecução penal ocorra de modo a ferir as
liberdades individuais do investigado.
2.9. Vedações Probatórias
Como dito no tópico anterior, a liberdade de prova no processo penal não é
absoluta. Assim, não é toda e qualquer espécie de meio probatório que é admissível. A busca
da verdade real e a amplitude da produção probatória encontram limitações. Nessa toada, a
Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso LVI, afirma ser “inadmissível, no processo, as
provas obtidas por meios ilícitos”. 36
No mesmo sentido, o Código de Processo Penal brasileiro dispõe, em seu artigo
157, que “são inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim
entendidas as obtidas em violação às normas constitucionais ou legais”. 37
34
GRINOVER, Ada Pellegrini. Liberdades públicas e processo penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982, p. 98. 35
GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As Nulidades no Processo Penal. 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 153. 36
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 12 de set. de 2014. 37
BRASIL. Código de Processo Penal. Op. cit.
27
A vedação à prova ilícita é inerente ao Estado Democrático de Direito que não
admite a prova do fato e, consequentemente, punição do indivíduo a qualquer preço, custe o
que custar. 38
Portanto, é dever do Estado impor limites à instrução probatória, a fim de se evitar
uma persecução penal ilimitada, onde os fins justifiquem os meios, desrespeitando direitos e
garantias fundamentais. Nesse contexto está a inadmissibilidade das provas ilícitas.
2.9.1. Provas ilícitas
A lei constitucional veda a possibilidade de utilização de provas ilícitas no
processo. Igualmente, a legislação processual penal, corroborando o disposto na Lei Maior,
afirma ainda serem provas ilícitas aquelas obtidas em violação a normas constitucionais ou
legais.
Para o doutrinador Adalberto José Q. T. Camargo Aranha, “são proibidas em
qualquer processo, seja judicial, seja administrativo, todas as provas cuja colheita, cuja
obtenção, tenha como origem um meio ilícito”. 39
O conceito de ilícito vem do latim illicitus, possuindo duas acepções: em uma
visão mais restrita, quer dizer o proibido por lei; em uma visão ampla, é ilícito aquilo que é
contrário à moral, aos bons costumes e aos princípios gerais de direito.
A partir dessa definição, baseando-se nas lições de Nuvolone, está o magistério de
Alexandre de Moraes, para quem:
As provas ilícitas não se confundem com as provas ilegais e as ilegítimas. Enquanto,
conforme analisado, as provas ilícitas são aquelas obtidas com infringência ao
direito material, as provas ilegítimas são as obtidas com desrespeito ao direito
processual. Por sua vez, as provas ilegais seriam o gênero do qual as espécies são as
provas ilícitas e as ilegítimas, pois configuram-se pela obtenção com violação de
natureza material ou processual ao ordenamento jurídico. 40
Acrescenta Julio Fabrini Mirabete que:
38
RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 7. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 414. 39
ARANHA CAMARGO, Adalberto José Q. T. de. Da Prova no Processo Penal. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p.53. 40
MORAES, Alexandre de apud NUCCI, Guilherme de Souza. Op. cit., p. 107.
28
São também inadmissíveis as provas que sejam incompatíveis com os princípios de
respeito ao direito de defesa e a dignidade humana, os meios cuja utilização se
opõem às normas reguladoras do direito que, com caráter geral, regem a vida social
de um povo. 41
Com efeito, observa-se que o conceito de prova ilícita, ou prova proibida, é
bastante amplo, abrangendo não somente as violações ao direito material e processual, como
também as ofensas aos princípios gerais do direito e garantias fundamentais.
Desta forma, podemos citar como exemplo de prova ilícita a confissão obtida
mediante tortura ou mesmo a interceptação telefônica realizada sem autorização judicial. Por
sua vez, temos como exemplo de prova ilegítima o laudo pericial subscrito por um perito não
oficial ou a exibição de documentos que a defesa não teve vista dos autos, de acordo com o
art. 475 do Código de Processo Penal.
No entanto, com o objetivo primordial evitar ações excessivas no decorrer da
persecução criminal, preservando-se o devido processo legal, dentre outros direitos e garantias
individuais, doutrina e jurisprudência têm dado larga aceitação à aplicação de teorias que
relativizam a inadmissibilidade das provas ilícitas, como será visto a seguir.
2.9.2. Prova ilícita por derivação e a teoria dos frutos da árvore envenenada
Além das provas obtidas ilicitamente, doutrina e jurisprudência têm entendido
pela inadmissibilidade das chamadas provas ilícitas por derivação, que são aquelas em si
mesmas lícitas, mas produzidas a partir de outra ilegalmente obtida.
Tal conceito é proveniente da teoria dos frutos da árvore envenenada (fruit of th
poisonous tree doctrine), formulada pela Suprema Corte dos Estados Unidos, que consiste em
que, existindo uma origem ilícita, toda a prova decorrente desta, ainda que essencialmente
lícita, não poderá ser admitida, pois já estaria contaminada.
O ordenamento jurídico brasileiro reconhece a inadmissibilidade da prova
derivada da ilícita, conforme ditado no parágrafo 1º do artigo 157 do Código de Processo
Penal:
São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não
evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas
puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras. 42
41
MIRABETE, Julio Fabrini. Op. cit., p. 253. 42
BRASIL. Código de Processo Penal. Op. cit.
29
Saliente-se, todavia, que o próprio legislador previu uma relativização quanto à
proibição dessa espécie de prova. Conforme se compreende da leitura do trecho acima, há
duas possibilidades desta ser admitida na instrução processual.
Em primeiro caso, se resta comprovado que a nova prova advém de fonte
considerada independente lícita, poderá ser admitida no processo. A própria lei processual
penal traz como conceito de fonte independente aquela que por si só, seguindo os trâmites
típicos e de praxe próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao
fato objeto da prova. 43
Há também a teoria da “limitação da descoberta inevitável”. Por meio desta teoria,
é possível a admissão de uma prova decorrente de uma violação constitucional, desde que de
uma forma inevitável esta seria descoberta de qualquer modo por outro meio.
Por fim, tem-se o chamado fenômeno da limitação da contaminação expurgada,
que trata da hipótese de ser expurgada a ilicitude de um meio probatório essencialmente lícito
gerado por um fato comprovadamente ilegal, em virtude de um acontecimento posterior. É o
caso de um indivíduo que faz uma confissão sob tortura em fase policial e que, a posterioi,
voluntariamente confirma a afirmação em juízo.
2.9.3. Teoria da Proporcionalidade ou da Razoabilidade
Desenvolvida na Alemanha, no período pós-guerra, a teoria da proporcionalidade
(Verhaltnismassigkeitsprinzip) parte da premissa de que nenhum direito reconhecido na
Constituição é de caráter absoluto, sendo possível a exclusão da ilicitude de determinada
prova quando, analisado o caso concreto, é observado que sua proibição ensejaria no
afastamento de algum direito fundamental de maior relevância.
Assim, tal teoria reconhece que, no momento da aplicação da lei, havendo conflito
entre os bens jurídicos tutelados, o intérprete deve dirimi-lo de maneira a dar prevalência
àquele bem que possibilite uma melhor aplicação do direito, a fim de evitar injustiça. Veja-se
o entendimento de Robert Alexy:
Princípios são mandamentos de otimização em face das possibilidades jurídicas e
fáticas. A máxima da proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, exigência de
sopesamento, decorre da relativização em face das possibilidades jurídicas. Quando
uma norma de direito fundamental com caráter de princípio colide com um princípio
43
BRASIL. Código de Processo Penal. Op. cit..
30
antagônico, a possibilidade jurídica para a realização dessa norma depende do
princípio antagônico. Para se chegar a uma decisão é necessário um sopesamento
nos termos da lei de colisão. 44
Seguindo a teoria, discorre Camargo Aranha:
Se, eventualmente, houver um conflito entre as garantias individuais constitucionais,
será apenas um conflito aparente, pois o sistema jurídico daquela sociedade fará a
harmonização, determinando a prevalência do de maior relevância em comparação
ao de relevância menor. 45
Portanto, para os defensores da teoria da proporcionalidade, apesar de esta não
estar prevista explícita na Constituição Federal, seu sistema de princípios permite a mitigação
de determinados direitos em face de outros, em respeito à harmonia do ordenamento jurídico.
Isso se dá pelo sopesamento desses princípios em cada caso concreto, a fim de promover uma
melhor aplicação do Direito.
2.9.3.1. Teoria da proporcionalidade aplicada pro reo
A dominante doutrina tem entendido, há muito tempo, pela possibilidade da
aplicação da teoria da proporcionalidade para admitir a utilização no processo penal de uma
prova ilícita em favor do réu quando se tratar da única forma de absolvê-lo ou de comprovar
um fato importante para sua defesa. Assim assegura Ada Pellegrini Grinover, Scarance
Fernandes e Magalhães Gomes Filho:
Não deixa de ser, em última análise, manifestação da proporcionalidade a
possibilidade praticamente unânime que reconhece a possibilidade de utilização, no
processo penal, da prova favorável ao acusado, ainda que colhida como infringência
a direitos fundamentais seus ou de terceiros. 46
No mesmo sentido, disserta Vicente Greco Filho:
44
ALEXY, Robert.Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 117. 45
ARANHA CAMARGO, Adalberto José Q. T. de. Op. cit., p.63 46 GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Op. cit., 161.
31
Uma prova obtida por meio ilícito, mas que levaria à absolvição de um inocente
teria de ser considerada, porque a condenação de um inocente é a mais abominável
das violências e não pode ser admitida ainda que se sacrifique algum outro preceito
legal. 47
Observe-se, assim, que esta vertente do princípio ou teoria da proporcionalidade é
corolário dos princípios constitucionais da presunção de inocência e do in dubio pro reo.
Destarte, como já analisado, deve ser resguardada a liberdade do réu em caso de dúvida
quanto à sua incriminação. Se não há fatos ou indícios de autoria que permitam a condenação
do acusado, deve ser declarada sua absolvição, permitindo-se, para tanto, que uma prova
proibida favorável à sua defesa seja juntada aos autos.
Assim expressa Torquato Avolio:
A aplicação do princípio da proporcionalidade sob a ótica do direito de defesa,
também garantido constitucionalmente, e de forma prioritária no processo penal,
onde impera o princípio favor rei, é de aceitação unânime pela doutrina e
jurisprudência. 48
Importante salientar, contudo, que uma prova ilícita em favor do réu somente é
admitida no processo quando esta for a única capaz de inocentá-lo. Havendo outro meio de
prova possível e lícito, a prova proibida, nos termos do Código de Processo Penal, é
inadmissível, devendo ser desentranhada do processo.
2.9.3.2. Teoria da proporcionalidade aplicada pro societate
Em casos excepcionais, tendo sido aceita a possibilidade de utilização da teoria da
proporcionalidade pro societate, ou seja, em proteção à sociedade.
Logo, a depender do caso concreto, é assegurada a obtenção e utilização de meio
probatório ilícito para defender os interesses da acusação. A aplicação dessa teoria deve ser
restringida a situações extremas, pois, do contrário, estaria se incentivando a violação de
direitos fundamentais pelo Estado.
47
GRECO FILHO, Vicente. Manual de Processo Penal. Op. cit., p. 178. 48
AVOLIO, Torquato apud CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 19 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 368.
32
Como um exemplo para melhor compreensão, temos esse interessante acórdão do
Supremo Tribunal Federal:
A administração penitenciária, com fundamento em razões de segurança pública,
pode, excepcionalmente, proceder à interceptação da correspondência remetida
pelos sentenciados, eis que a cláusula da inviolabilidade do sigilo epistolar não pode
constituir instrumento de salvaguarda de práticas ilícitas. 49
Conclui-se, deste modo, que é possível a utilização de prova proibida no processo
penal, a depender do caso concreto a ser analisado. Em situações em que a aludida prova for a
única forma de se garantir a inocência do réu, o princípio da vedação da prova ilícita é
mitigado visando assegurar a defesa do acusado. Em casos extremos e excepcionais, há a
possibilidade de utilização em prol da sociedade. De modo geral, o princípio da
proporcionalidade, para ser aplicado, deve dar prevalência ao bem jurídico de maior
relevância.
2.9.4. Teoria da exclusão da ilicitude da prova
Esta teoria informa que a prova, aparentemente ilícita, deve ser reputada válida,
quando a conduta do agente na sua captação está amparada pelo direito (excludentes de
ilicitude). 50
É o caso, por exemplo, de um indivíduo que adentra em uma residência sem
prévia permissão do proprietário para produzir uma prova fundamental em favor de sua
inocência. Assim, ainda que a prova tenha decorrido da prática do crime de violação de
domicílio (art. 150 do Código Penal), tal conduta foi motivada com o fito de salvaguardar
outro bem jurídico, sua liberdade, em face um perigo atual e eminente, qual seja, a existência
de uma persecução penal, encontrando-se, portanto, em estado de necessidade.
Logo, em virtude do contexto em que foi produzida, a presença dos excludentes
de ilicitude afastam, em determinadas circunstâncias, a ilicitude da prova, passando a ser
assegurada a sua utilização no processo.
49 BRASIl. Supremo Tribunal Federal. Disponível em:
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=72703> Acesso em: 10 de out. de 2014
50 TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Op. cit., p. 403.
33
2.10. Prova Emprestada
A prova emprestada consiste naquela que é produzida em um processo e
transportada documentalmente para outro. Pode ser uma confissão, um testemunho, uma
perícia ou qualquer outro documento.
O nosso ordenamento jurídico autoriza esse traslado de provas, sobretudo, em
virtude do princípio da verdade real, permitindo assim uma colaboração com a busca da
justiça.
Contudo, o juiz deve verificar se, no procedimento originário, foi respeitado o
devido processo legal e, em decorrência deste, os princípios do contraditório e da ampla
defesa. Logo, o valor probatório dessa prova emprestada fica condicionado à sua passagem
pelo crivo do contraditório, do contrário ela se torna ilícita, visto que obtida com violação de
princípios constitucionais. 51
Acrescenta o professor Francisco Marques de Lima que:
É impositivo que seja submetida às partes por igual, pois, do contrário, prevalece a
máxima “acta facta in uno judicio in alio judicio non fidem faciunt”. Os atos
produzidos em juízo não têm eficácia em outro. 52
Aliado a isso, especial atenção deve ser dada para a situação de o processo
emprestante da prova ser declarado nulo. Nesse caso, o magistrado procederá no sentido de
analisar se a nulidade efetivamente contaminou a instrução probatória. Em caso afirmativo, a
prova também perderá sua validade.
2.11. Sistemas Modernos de Avaliação da Prova
Após o momento da produção das provas, dá-se como findada a primeira fase da
instrução criminal, que é a fase probatória. Procede-se, assim, à fase das alegações finais,
feitas, em regra, de forma oral.
Apresentadas as alegações pelas partes, cumpre única e exclusivamente ao juiz a
valoração das provas produzidas nos autos, devendo afastar qualquer preconceito com relação
à causa e deixar prevalecer a imparcialidade.
51
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op. cit., p. 238. 52
LIMA, Francisco Marques. Da prova no Processo Penal brasileiro: Aspectos doutrinários e jurisprudenciais. Revista Controle, Volume VI, n. 2, 2007, p. 101.
34
As regras de valoração da prova demonstram a transparência no ato de julgar,
revelando o porquê do convencimento que deu ensejo ao provimento jurisdicional,
funcionando como fator de conformação das partes e de fiscalização do órgão judicante. 53
Vários sistemas de valoração de provas foram desenvolvidos no decorrer da
história, prevalecendo, na modernidade, três, quais sejam: o sistema da íntima convicção; o
sistema da prova legal ou sistema tarifado; e o sistema do livre convencimento motivado ou
da persuasão racional.
2.11.1. Sistema da Íntima Convicção
Também denominado como sistema da certeza moral do juiz, advindo da Roma
antiga, estabelece que o juiz possui ampla liberdade de julgar somente de acordo com sua
consciência, sem qualquer vínculo a limitações legais. 54
Nesse sentido explica Camargo Aranha:
(Neste sistema) o juiz é soberano quanto à indagação da verdade e à apreciação das
provas. Age apenas pela sua consciência, não só no tocante à admissibilidade das
provas quanto à sua avaliação, seus conhecimentos e impressões pessoais, até contra
provas colhidas e, por fim, pode deixar de decidir se não formada a convicção. 55
Observe, pois, que o magistrado seguirá sua íntima convicção, seu íntimo
convencimento, não se prendendo a regras legais. Não fica o julgador adstrito a qualquer
norma legal, podendo julgar de acordo com seu conhecimento pessoal, suas impressões e
informações obtidas até mesmo fora do processo.
No nosso ordenamento jurídico, tal sistema encontra-se vigorando no
procedimento do Tribunal do Júri, em sua segunda fase. Neste momento, tem-se a atuação dos
jurados que, amparados pelos princípios constitucionais da soberania dos veredictos e do
sigilo das votações, julgam os quesitos sigilosamente, sem fundamentar.
53
TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Op. cit., p. 408. 54
LIMA, Marcellus Polastri. Op. cit., p. 453. 55
ARANHA, Adalberto José Q. T. de Camargo. Op. cit., p. 80.
35
2.11.2. Sistema da Prova Legal
Segundo este sistema, também conhecido como sistema da certeza moral do
legislador, ou ainda sistema da prova tarifada, o texto legal já prevê valores específicos para
as provas, devendo o juiz ater-se às regras de avaliação preestabelecidas na lei processual. 56
Não existe convicção pessoal do magistrado na valoração do contexto probatório,
mas obediência estrita ao sistema de pesos e valores impostos pela lei. Deste sistema decorre
o brocardo testis unus, testis nullus (um só testemunho não tem valor). 57
Tal método, apesar de possuir mero valor histórico, deixou resquícios em nosso
Código de Processo Penal. A título de exemplo, pode ser citada a exigência da lei do exame
de corpo de delito para a formação da materialidade dos crimes que deixar vestígios, sob pena
de nulidade, conforme disposto na aliena b, inciso III do artigo 564.
2.11.3. Sistema da livre convicção
Considerado um sistema misto, o sistema da livre convicção, ou da livre
persuasão, ou mesmo do livre convencimento motivado, é baseado nos sistemas anteriores, de
modo que sua principal característica é evitar o arbítrio judicial.
Neste sistema, o juiz é livre para formar sua convicção, não existindo hierarquia
entre as provas. Entretanto, saliente-se que essa liberdade não é absoluta, sendo necessária a
devida fundamentação de sua decisão, assegurando-se assim o direito das partes e o interesse
social. 58
Vê-se, logo, que este é o sistema adotado pelo nosso Código de Processo Penal,
conforme disposição prevista em seu artigo 155, in verbis:
O juiz formará sua convicção pela livre apreciação das provas produzidas em
contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos
elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares,
não repetíveis e antecipadas. 59
56
LIMA, Marcellus Polastri. Op. cit., p. 452. 57
CAPEZ, Fernando. Op. cit., p. 399. 58
TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Op. cit., p. 410. 59
BRASIL. Código de Processo Penal. Op. cit.
36
A Constituição Federal de 1988 traz a motivação das decisões judiciais como uma
garantia fundamental, prevista em seu art. 93, IX, que diz:
Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e
fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a
presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a
estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no
sigilo não prejudique o interesse público à informação.60
O juiz, portanto, decide livremente de acordo com sua consciência, devendo,
contudo, explicitar motivadamente as razões de sua opção e obedecer a certos balizamentos
legais, ainda que flexíveis. 61
Aliado a isso, conforme se observa da leitura do art. 155 do Código de Processo
Penal, alterado pela Lei nº 11.719/2008, somente a prova produzida em contraditório judicial
poderá servir de fundamento para sentença. Deve-se, assim, respeitar o brocardo quod neon
est in actis nonest in mundo: o que não está nos autos, não está no mundo. Portanto, não pode
o magistrado buscar como fundamento elementos estranho aos autos. É o que Fernando Capez
entende ser o princípio da sociabilidade do convencimento:
Trata-se, na realidade, do sistema que conduz ao princípio da sociabilidade do
convencimento, pois a convicção do juiz em relação aos fatos e às provas não pode
ser diferente da de qualquer pessoa que, desinteressadamente, examine e analise tais
elementos. Vale dizer, o convencimento do juiz deve ser tal que produz o mesmo
resultado na maior parte das pessoas que, porventura, examinem o conteúdo
probatório. 62
Conclui-se, assim, que este é o sistema de apreciação probatória mais justo, pois
garante a liberdade de convencimento do juiz, retirando-lhe, contudo, o arbítrio, de forma a
respeitar o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa, princípios norteadores do
processo penal.
60
BRASIL. Constituição Federal. Op. cit. 61
CAPEZ, Fernando. Op. cit., p. 399. 62
Ibidem, p. 400
37
3. A PSICOGRAFIA
Após um atento estudo sobre os objetivos, as finalidades e demais conceitos
acerca da prova no âmbito do processo penal, neste capítulo buscar-se-á analisar o fenômeno
da psicografia, definindo-o, observando suas espécies para, a seguir, verificar o seu
enquadramento como prova no processo penal.
3.1. Considerações Preliminares
Inicialmente, é importante salientar que muitos conceitos a serem utilizados nesse
capítulo serão extraídos de estudos da Doutrina Espírita Kardecista. Contudo, deve-se
considerar que tais fenômenos não são exclusivos desta seara, haja vista que a comunicação
com as chamadas “almas desencarnadas” seria antecedente ao surgimento da aludida doutrina
religiosa, conforme se demonstrará adiante.
A esse respeito, esclarece Nemer da Silva Ahmad:
A primeira carta psicografada data do ano de 1850, através do senador norte-
americano James Flower Simmons. Esta comunicação ocorre antes da codificação
da Doutrina Espírita que veio ser publicada, somente em abril de 1857 por Kardec.
Esse fato desvincula as cartas do aspecto religioso, tanto quanto da própria Doutrina,
vez que precedeu sua codificação. 63
A psicografia, palavra originada do grego psiké, que significa “alma”, e graphô,
“escrita”, é a escrita da alma ou da mente. Allan Kardec, decodificador da Doutrina Espírita,
aduz que a psicografia é a transmissão do pensamento dos Espíritos por meio da escrita pela
mão do médium. 64
Para Carlos Imbassahy, a psicografia é definida como sendo a escrita psíquica
onde o Espírito se manifesta escrevendo a sua mensagem, e a manifestação é tanto mais
perfeita quanto menos consciente é o médium. 65
63
AHMAD, Nemer da Silva. Psicografia: o Novo Olhar da Justiça. 1 ed. São Paulo: Aliança, 2008, p. 25. 64
KARDEC. Allan. O Livro dos Médiuns. Trad. Guillon Ribeiro. 71. ed. Rio de janeiro: Federação Espírita Brasileira, 2003, p. 221. 65
IMBASSAHY, Carlos. O Espiritismo à Luz dos Fatos: resposta às objeções formuladas à parte científica do Espiritismo. 4. ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 1989, p. 280.
38
O presidente da Federação Espírita de Goiás, Weimar Muniz de Oliveira, entende
que psicografia é um dom mediúnico pelo qual o médium recebe, por via intuitiva ou
mecânica, a mensagem de autoria espiritual. 66
Portanto, vê-se que a psicografia nada mais seria do que a manifestação dos
Espíritos, que se comunicam através de médiuns por meio de documentos escritos por estes.
Kardec explica que espíritos são as almas que povoam o Espaço, ou seja, são as almas dos
homens despojadas do invólucro corpóreo.67
Por sua vez, médium é todo aquele sente, num
grau qualquer, a influência dos Espíritos. 68
A psicografia pode ocorrer de forma direta e indireta. Assim descreve Allan
Kardec:
Para se comunicarem pela escrita, os Espíritos empregam, como intermediários,
certas pessoas, dotadas da faculdade de escrever sob a influência da força oculta que
as dirige e que obedecem a um poder evidentemente fora de seu controle, já que não
podem parar nem prosseguir à vontade e, no mais das vezes, não têm consciência do
que escrevem. Sua mão é agitada por um movimento involuntário, quase febril;
toma o lápis, malgrado seu, e o deixam do mesmo modo; nem a vontade, nem o
desejo podem fazê-la prosseguir, caso não o deva fazer. É a psicografia direta.
A escrita é obtida também pela só imposição das mãos sobre um objeto disposto de
modo conveniente e munido de um lápis ou qualquer outro instrumento apropriado a
escrever. Geralmente, os objetos mais empregados são as pranchetas ou as cestas,
dispostas convenientemente para esse efeito. A força oculta que age sobre a pessoa
transmite-se ao objeto, que se torna, assim, um apêndice da mão, imprimindo-lhe o
movimento necessário para traçar os caracteres. É a psicografia indireta. 69
Feita a distinção, convém salientar que se dará enfoque especificamente à
psicografia direta, cuja manifestação ocorre pela intervenção de um médium consciente ou
inconscientemente, em conjunto com o chamado “espírito desencarnado”.
66
OLIVEIRA, Weimar Muniz. Provas Judiciais Psicografadas. Rio de Janeiro: Saraiva, 2001, p. 153. 67
KARDEC, Allan. Op. cit, p. 22. 68
Ibidem, p. 234. 69
KARDEC, Allan. Revista Espírita: Jornal de Estudos Psicológicos - 1858. Trad. Evandro Noleto Bezerra. Disponível em: < http://www.febnet.org.br/ba/file/Downlivros/revistaespirita/Revista1858.pdf>. Acesso em: 14.10.2014, p. 31-32.
39
3.2. A Mediunidade e as Espécies de Médiuns.
Quanto ao tema da mediunidade, assim ensina Allan Kardec:
Todo aquele que sente, num grau qualquer, a influência dos Espíritos é, por esse
fato, médium. Essa faculdade é inerente ao homem; não constitui, portanto, um
privilégio exclusivo. (...) Pode, pois, dizer-se que todos são, mais ou menos,
médiuns. 70
A mediunidade, para a Doutrina Espírita, é conceituada como a capacidade
humana de comunicação entre os homens e os espíritos. Seria uma característica inerente ao
ser humano, podendo ser manifestada em maior ou menor grau, a depender do avanço moral e
espiritual do indivíduo. Deverá haver, portanto, uma simbiose, uma compatibilidade
mediúnica entre o Espírito comunicante e o médium que transmitirá a mensagem.
Ademais, a depender da forma como a mediunidade se manifesta, o Espiritismo
distingue diversas espécies de médiuns. Para o presente trabalho, interessa a definição dos
médiuns escreventes ou psicógrafos, aqueles que possuem a faculdade de escrever por si
mesmos sob a influência dos Espíritos.
Acerca da manifestação dos Espíritos pela escrita, aduz Allan Kardec:
De todos os meios de comunicação, a escrita manual é o mais simples, mais cômodo
e, sobretudo, mais completo. Para ele devem tender todos os esforços, porquanto
permite se estabeleçam, com os Espíritos, relações tão continuadas e regulares,
como as que existem entre nós. Com tanto mais afinco deve ser empregado, quanto é
por ele que os Espíritos revelam melhor sua natureza e o grau do seu
aperfeiçoamento, ou da sua inferioridade. Pela facilidade que encontram em
exprimir-se por esse meio, eles nos revelam seus mais íntimos pensamentos e nos
facultam julgá-los e apreciar-lhes o valor. Para o médium, a faculdade de escrever é,
além disso, a mais suscetível de desenvolver-se pelo exercício. 71
Adiante, a Doutrina Espírita subdivide essa espécie de médium em mecânicos,
intuitivos, semimecânicos e inspirados.
70
KARDEC, Allan. Op. cit., p. 234. 71
Ibidem, p. 255.
40
3.2.1. Médiuns Mecânicos
O psicógrafo mecânico é aquele que, para escrever a mensagem enviada pelo
Espírito, depende totalmente deste, não tendo consciência daquilo que está escrevendo. Assim
conceitua Kardec:
Quando o espírito age diretamente sobre a mão, dá a esta um impulso
completamente independente da vontade. Ela se move sem interrupção e malgrado o
médium, enquanto o Espírito tiver algo a dizer. E pára quando ele termina. O que
caracteriza o fenômeno nestas circunstâncias é que o médium não tem a menor
consciência do que escreve. Neste caso, a inconsciência absoluta constitui os que se
chamam médiuns passivos ou mecânicos.72
Portanto, o médium psicógrafo mecânico transmite a mensagem do Espírito sem
ter consciência do que faz. O Espírito comunicante age com total independência.
3.2.2. Médiuns Intuitivos
Por sua vez, define-se como médium intuitivo aquele que age com consciência do
que está escrevendo, operando de modo a interpretar a mensagem ditada. Nesse caso,
portanto, o movimento é voluntário e facultativo.
Acerca do tema, assevera Kardec:
O papel do médium mecânico é o de uma máquina; o médium intuitivo age como o
faria um intérprete. Este, de fato, para transmitir o pensamento, precisa compreendê-
lo, apropriar-se dele, de certo modo, para traduzi-lo fielmente e, no entanto, esse
pensamento não é seu, apenas lhe atravessa o cérebro. Tal precisamente o papel do
médium intuitivo. 73
Há dificuldade de o intuitivo admitir que possui este tipo de mediunidade, em
razão do fato de ter consciência de suas ações. Contudo, para Kardec, é possível reconhecer
que o pensamento é sugerido por não ser uma ideia antes preconcebida. 74
72
KARDEC, Allan. Op. cit., p. 256. 73
Ibidem, p. 257-258. 74
Ibidem, p. 257.
41
3.2.3. Médiuns Semimecânicos
Este se encontra no meio termo dos médiuns mecânicos e dos intuitivos. Os
psicógrafos semimecânicos têm consciência do que estão escrevendo, assim como os
intuitivos. No entanto, o movimento de suas mãos é involuntário, como ocorre com os
médiuns mecânicos.
No médium puramente mecânico, o movimento da mão independe da vontade; no
médium intuitivo, o movimento é voluntário e facultativo. O médium semimecânico
participa de ambos esses gêneros. Sente que à sua mão uma impulsão é dada, mau
grado seu, mas, ao mesmo tempo, tem consciência do que escreve, à medida que as
palavras se formam. No primeiro o pensamento vem depois do ato da escrita; no
segundo, precede-o; no terceiro, acompanha-o. Estes últimos médiuns são os mais
numerosos. 75
3.2.4. Médiuns Inspirados
O médium inspirado é todo aquele que, tanto no estado normal, como no de
êxtase, recebe, pelo pensamento, comunicações estranhas às suas ideias preconcebidas.76
É considerado um subtipo de médium intuitivo. Esse tipo de psicógrafo
caracteriza-se pela espontaneidade, em que a manifestação dos Espíritos o influenciam em
atividades corriqueiras, sendo difícil diferenciar tais manifestações de ideias preconcebidas.
Esse tipo de médium justifica a tese de que todos os homens são dotados de
mediunidade.
3.2.5. Médiuns de Pressentimento
Considerado uma variação do médium inspirado, o médium de pressentimento é
aquele que tem uma intuição vaga das coisas futuras. 77
Os pensamentos procedentes deste
tipo de manifestação mediúnica é o que se conhece vulgarmente por premonição.
75
KARDEC, Allan. Op. cit., p. 258. 76
Ibidem, p. 258. 77
Ibidem, p. 261.
42
3.2.6. Médiuns Especiais
A Doutrina Espírita prevê ainda uma categoria de médiuns dotados de
característica diferenciada, tendo em vista que esses tipos de psicógrafos manifestam-se de
uma forma absolutamente diversa suas capacidades usuais. É o caso dos médiuns polígrafos,
iletrados e os poliglotas.
No primeiro caso, o médium expressa o pensamento do Espírito que lhe
influencia alterando a escrita de forma a reproduzir a letra do comunicante. Os iletrados, por
sua vez, são os analfabetos que, mesmo não sabendo ler nem escrever, conseguem
psicografar, embora com bastante dificuldade.
Por fim, os médiuns poliglotas são aqueles que possuem a capacidade de
psicografar em diversos idiomas, ainda que desconhecidos pelo psicógrafo. Como exemplo,
pode-se citar o renomado médium Divaldo Pereira Franco, que já psicografou documentos em
alemão, espanhol, italiano, inglês invertido, entre outros.
3.3. O aspecto científico da psicografia
Apresentadas as básicas acepções acerca da psicografia, da mediunidade como
instrumento do qual decorre a escrita psicográfica, bem como dos tipos de médiuns e a forma
como manifestam os pensamentos das chamadas “almas desencarnadas”, busca-se agora uma
análise acerca do viés científico da psicografia.
Estudiosos do Espiritismo, bem como juristas em consonância com os
entendimentos propostos pela doutrina espírita, justificam a inserção dos documentos
psicografados na ciência do Direito provando a sua natureza científica. Tal demonstração se
dá, em primeiro lugar, apresentando um histórico do fenômeno mediúnico e como foram
estudados pelas mais diversas áreas da ciência; em seguida, pela utilização da perícia
grafotécnica como meio de comprovação desta cientificidade.
3.3.1. Breve histórico
A psicografia, como já mencionado, decorre do fenômeno da mediunidade, sendo
a forma como os médiuns transmitem os pensamentos que recebem dos Espíritos. Observe-se,
43
contudo, que a mediunidade não é uma criação do Espiritismo na ocasião em que foi
decodificado por Allan Kardec, em 1857. Edvaldo Kulcheski assim esclarece:
Certas pessoas consideram, sem razão, a mediunidade um fenômeno peculiar aos
tempos atuais, outras acreditam ter sido inventada pelo Espiritismo. A
fenomenologia mediúnica, entretanto, é de todos os tempos e de todos os países e
religiões, pois desde as idades mais remotas existiram relações entre a humanidade
terrena e o mundo dos Espíritos. 78
Por sua vez, Kardec elucida:
O dom da mediunidade é tão antigo quanto o mundo. Os profetas eram médiuns. Os
mistérios de Elêusis se fundavam na mediunidade. Os Caldeus, os Assírios tinham
médiuns. Sócrates era dirigido por um Espírito que lhe inspirava os admiráveis
princípios da sua filosofia; ele lhe ouvia a voz. Todos os povos tiveram seus
médiuns e as inspirações de Joana d’Arc não eram mais do que vozes de Espíritos
benfazejos que a dirigiam. 79
Adiante, pesquisadores relatam que o fenômeno mediúnico já ocorria na Grécia
Antiga, onde havia a figura dos pítons, que proferiam oráculos, evocando espíritos para
comunicação com os vivos.
Na Idade Média, o mundo espírita reverencia Joana D’Arc que, após muito tempo
ouvindo vozes ordenando sua ida à França para salvá-la da guerra que então ocorria, seguiria
ao seu país e contribuiria com a expulsão dos estrangeiros de sua pátria.
Na Idade Moderna, tem-se a figura do então renomado pedagogo francês
Hippolyte León Denizard Rivail que, ao se deparar com uma série fenômenos paranormais,
decidiu estudá-los a fundo e, como consequência, conheceu o vasto mundo dos Espíritos,
passando a escrever inúmeros livros com as “revelações” que lhes eram transmitidas. Rivail,
então, adotou o codinome de Allan Kardec e codificou o que hoje se conhece como a
Doutrina Espírita, com suas bases científicas, filosóficas e religiosas.
Importante ressaltar, ainda acerca dos estudos realizados por Allan Kardec, que
somente após aprofundadas experiências é que foi possível a “descoberta” dos Espíritos e,
78
KULCHESKI, Edvaldo. Curso mediunidade sem preconceitos. Disponível em: < http://bvespirita.com/Curso%20Mediunidade%20Sem%20Preconceitos%20(Edvaldo%20Kulcheski).pdf>. Acesso em: 15 de out. de 2014. 79
KARDEC, Allan. Op. cit., p. 544.
44
consequentemente, o alcance às suas lições de filosofia, cristandade, dentre outros
ensinamentos religiosos.
Ainda na Idade Moderna, o professor Miguel Reale Júnior 80
cita a figura de
Cesare Lombroso. Inigualável cientista, o pai da Antropologia Criminal inicialmente negava-
se aceitar os fenômenos mediúnicos. Entretanto, após debruçar-se sobre tais fenômenos e sem
abandonar sua formação científica, comprovou que a mediunidade é ciência e não fruto de
crenças, tendo escrito uma de suas mais importantes obras, Hipnotismo e Mediunidade.
Adiante, mencionam-se ainda a figura de estudiosos que desenvolveram trabalhos
relacionados à comprovação da veracidade dos fenômenos mediúnicos, tais como Camile
Flamarion, Paul Gabier, Charles Richet e, ainda, William Crookes.
No Brasil, destacam-se Divaldo Pereira Franco, psicógrafo baiano que já publicou
mais de 250 livros em diversos idiomas e, principalmente, Chico Xavier, médium que
publicou mais de 451 livros, além de ter psicografado 15 mil cartas consoladoras.
Ressalte-se que as obras de ambos os médiuns acima chamam atenção não apenas
pela quantidade de publicações, mas, sobretudo no caso de Chico Xavier, pela diversidade
literária, tendo escrito poesias, romances, textos filosóficos, ainda que sem ter concluído sua
vida escolar.
Conclui-se, a partir desse breve relato do histórico do fenômeno mediúnico e,
paralelamente, da psicografia, que a mediunidade não é propriamente um termo criado pela
Doutrina Espírita. Ademais, vê-se que, além de presente em toda história da humanidade, foi
estudada por diversos cientistas, sendo comprovado não ser apenas um elemento de cunho
eminente religioso, mas também que pode ser estudada pela ciência.
Saliente-se que somente a partir da experiência científica dos fatos mediúnicos foi
possível se deparar com seu cunho filosófico e religioso, pois somente com a crença de que
não se tratava de mera alucinação permitiu-se uma melhor compreensão das mensagens
recebidas.
3.3.2. A perícia grafotécnica e a psicografia
Demonstrado um breve relato a respeito da ocorrência da mediunidade durante a
história da humanidade, adentra-se no assunto relacionado à perícia grafotécnica, considerado
80
REALE JÚNIOR, Miguel. Razão e religião. Disponível em: <http://arquivoetc.blogspot.com.br/2009/01/razo-e-religio-miguel-reale-jnior.html>. Acesso em: 25 out. 2014.
45
o principal meio para a análise da autenticidade da psicografia e a comprovação de sua
licitude.
Considerada uma ciência forense, a grafoscopia se presta a identificar a autoria de
determinado documento, reconhecendo o responsável pelo escrito, o que se faz por
comparação de letras. 81
É o exame que busca certificar, admitindo como certo, por
comparação, que a letra, inserida em determinado escrito, pertence à pessoa investigada. 82
Quanto ao tema em apreço, merece destaque o trabalho do prestigiado professor
Carlos Augusto Perandréa, perito judiciário em documentoscopia há cinco décadas e que
realizou aprofundado trabalho de averiguação da autenticidade de diversas mensagens
psicografadas, desvinculado de qualquer religião, com atenção especial para as escritas pelo
médium Francisco Cândido Xavier. Como resultado desse trabalho, publicou o livro “A
Psicografia à Luz da Grafoscopia”, obra de grande valia para a comprovação do aspecto
científico da psicografia.
O professor assim define a grafoscopia:
É um conjunto de conhecimentos norteadores dos exames gráficos, que verifica as
causas feradoras e modificadoras da escrita, através da metodologia apropriada, para
a determinação de autenticidade gráfica e da autoria gráfica. 83
Perandréa realizou exame grafoscópico em cerca de 400 (quatrocentas)
mensagens psicografas por Chico Xavier, comprovando sua autenticidade quando comparada
com as letras das pessoas enquanto vivas. Dessas mensagens, cerca de 99,5% foram
confirmas por outros peritos, corroborando sua confiabilidade e veracidade.
Destarte, alguns pontos devem ser observados a respeito dos exames
grafotécnicos. Qualquer elemento escrito apresenta uma diversidade de informações que
devem ser atentamente investigadas. Deve ser considerada também a mutabilidade da escrita,
tendo em vista que depende de diversos fatores e varia de pessoa para pessoa.
Outrossim, é fundamental notar as diversas causas modificativas da escrita.
Causas internas, como o uso de álcool ou drogas, e mesmo causas externas – o calor, o tipo de
papel – devem ser levados em consideração na ocasião do exame da escrita. Assim, o perito,
81
TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Op. cit., p. 422. 82
NUCCI, Guilherme de Souza.Op. cit., p. 524. 83
PERANDRÉA, Carlos Augusto. A Psicografia à Luz da Grafoscopia. São Paulo: Editora Jornalística Fé, 1991, p. 80.
46
ao realizar a análise grafoscópica, deverá levar em conta todos esses fenômenos que podem
deformar a grafia. 84
Um dos casos mais importantes em que Perandréa trabalhou como perito de cartas
deste gênero foi o realizado com as mensagens psicografadas por Chico Xavier, no ano de
1978, e que foram atribuídas à Ilda Mascaro Saulo, italiana, falecida em Roma, no ano
anterior.
Na ocasião, o especialista analisou a caligrafia de um bilhete que o médium
escrevera em italiano, língua que não conhecia. Após dedicada apreciação, em que confrontou
o referido bilhete com outro documento escrito pela mesma autora quando vida, constatou que
a mensagem teria sido escrita pelo espírito de Ilda. Assim atestou o laudo:
A mensagem psicografa por Francisco Cândido Xavier, em 22 de julho de 1978,
atribuída a Ilda Mascaro Saulo, contém em “número” e “qualidade”, consideráveis e
irrefutáveis características de gênese gráfica suficientes para a revelação e
identificação de Ilda Mascaro Saulo como autora da mensagem. 85
Ressalte-se, porém, que não é toda espécie de psicografia que pode ser submetida
à perícia grafotécnica. Como já descrito em tópicos anteriores, a manifestação mediúnica pela
escrita pode se dar de diversas maneiras. Cumpre à grafoscopia a análise das escritas
realizadas por médiuns mecânicos ou semimecânicos, em virtude de sua natureza, sendo o
médium, ainda que conscientemente, guiado por um Espírito que lhe influencia.
Logo, conclui-se que a possibilidade de realização dos referidos exames
grafotécnicos em documentos psicografados, objetivando-se atestar a sua autenticidade, bem
como identificar sua autoria, e, além disso, cumprir com sua finalidade de forma eficiente,
reveste a psicografia de cientificidade, abrindo-lhe caminho para sua utilização na ciência do
Direito.
84
PERANDRÉA, Carlos Augusto. Op. cit., p. 27. 85
Ibidem, p. 56.
47
4. A PSICOGRAFIA NO PROCESSO PENAL
Apresentadas as considerações pertinentes a respeito da psicografia, parte-se para
a análise acerca de sua possível utilização no processo penal, com ênfase no procedimento
especial do Tribunal do Júri, que será devidamente apreciado em tópico específico.
Raras foram as vezes em que um documento psicografado foi levado a juízo como
meio de prova, sobretudo na área criminal. Consequentemente, o tema é pouco abordado pela
doutrina, sendo tratado com alto grau de superficialidade e, em decorrência disso, muitos
estudiosos se posicionam de forma contrária a aceitação desse tipo de fenômeno pela falta de
um conhecimento aprofundado sobre a temática.
Logo, fundamental para o perfeito entendimento do presente trabalho a
demonstração dos posicionamentos contrários à licitude psicografia para, em seguida, expor
os argumentos favoráveis à admissibilidade do referido meio de prova e, a partir deste ponto,
constatar sua legitimidade como prova penal.
4.1. Posicionamentos controvertidos quanto à admissibilidade da psicografia como
prova no processo penal
O principal posicionamento contrário à admissibilidade da psicografia como meio
probatório é a alegativa de que tal documento fere o princípio da laicidade estatal, previsto no
art. 5º, inciso VI, da Constituição Federal, sendo, portanto, uma prova ilícita, por desrespeitar
uma norma constitucional.
O texto constitucional, no artigo acima referido, dispõe:
É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre
exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de
culto e a suas liturgias. 86
Nessa toada, elucida o mestre Nucci:
A psicografia é um fenômeno particular da religião espírita kardecista, significando
a transmissão de mensagens escritas, ditadas por espíritos, aos seres humanos,
denominados médiuns. Cuida-se, por evidente, de um desdobramento natural da fé e
86
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Op. cit.
48
da crença daqueles que exercem as funções de médiuns, como também dos que
acolhem tais mensagens como verdadeiras e se sentem em plena comunicação com o
mundo dos desencarnados. Não temos dúvida em afirmar tratar-se de direito humano
fundamental o respeito a essa crença e a tal atividade, consequência de uma das
formas em que o espiritismo é exercitado. Aliás, como outras religiões também
possuem variados modos de se expressar, postulados e dogmas transmitidos a seus
seguidores e todos os fiéis, igualmente, merecem o respeito e a tutela do Estado.
Entretanto, ingressamos no campo do Direito, que possui regras próprias e técnicas,
buscando viabilizar o correto funcionamento do Estado Democrático de Direito
laico. 87
O argumento acima explicitado pressupõe que a psicografia é um elemento de
cunho restritivamente religioso, um dogma da religião Espírita. Entretanto, conforme já
explanado anteriormente, percebe-se a fragilidade desta justificativa, pois não há menção ao
caráter científico do fenômeno.
A análise acerca da admissibilidade da psicografia como meio de prova baseia-se
em critérios racionais, tanto pelas experiências históricas em que se objetivou a comprovação
da natureza científica da mediunidade, como pelo exame pericial, na citada perícia
grafotécnica.
Ademais, em recente caso de aceitação de psicografia em juízo, na ocasião do
julgamento de recurso de apelação, a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul, por seu Desembargador-Relator Manuel José Martinez Lucas, entendeu que a
elaboração do referido documento e sua utilização como prova encontra amparo no próprio
texto constitucional, como se vê:
[...] fazem-se necessárias algumas considerações em torno da questão da carta
psicografada [...] e que foi utilizada pela defesa em plenário de julgamento, a qual
mereceu as maiores críticas do assistente, assim como da Dra. Procuradora de
Justiça, que sustenta, inclusive, sua ilicitude como meio de prova.
A matéria, naturalmente, é interessante, pitoresca e polêmica, mesmo porque refoge
ao usual no quotidiano forense, ainda que não seja inédita, e envolve uma provável
comunicação com o mundo dos mortos, com reflexos numa decisão judicial.
Desde logo, consigno que não vejo ilicitude no documento psicografado e,
consequentemente (destaquei), em sua utilização como meio de prova, não obstante
o entendimento contrário do sempre respeitado Prof. Guilherme de Souza Nucci, em
87
NUCCI, Guilherme de Souza. Op. cit., 2014, p.111-112
49
artigo transcrito integralmente no parecer da douta representante do Ministério
Público.
Na realidade, o art. 5º, VI, da Constituição Federal dispõe que “é inviolável a
liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos
religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas
liturgias”.
A fé espírita, que se baseia, além de outros princípios e dogmas, na comunicação
entre o mundo terreno e o mundo dos espíritos desencarnados, na linguagem
daqueles que a professam, é tão respeitável quanto qualquer outra e se enquadra,
como todas as demais crenças, na liberdade religiosa contemplada naquele
dispositivo constitucional.
Só por isso, tenho que a elaboração de uma carta supostamente ditada por um
espírito e grafada por um médium não fere qualquer preceito legal. Pelo contrário,
encontra plena guarida na própria Carta Magna, não se podendo incluí-la entre as
provas obtidas por meios ilícitos de que trata o art. 5º, LVI, da mesma Lei Maior.
É evidente que a verdade da origem e do conteúdo de uma carta psicografada será
apreciada de acordo com a convicção religiosa ou mesmo científica de cada um.
Mas jamais tal documento, com a vênia dos que pensam diferentemente, poderá ser
tachado de ilegal ou de ilegítimo. 88
Logo, resta evidente que a mera alegação de que se trata de uma crença religiosa e
que, por conta disso, se torna impossibilitada a sua aceitação como prova em juízo, ante a
laicidade estatal, deve ser afastada, haja vista que a psicografia não está atrelada
exclusivamente à doutrina espírita, assim como a nenhum outro seguimento religioso, além de
que tal entendimento desconsidera a natureza científica da psicografia.
Aliado a isso, como exposto, a afirmação de que o Estado é laico deve ser
entendida como o fato de o Estado não possuir uma religião oficial. Todavia, a própria Carta
Magna protege a liberdade de crença e o livre exercício religioso. Destarte, insistindo-se,
ainda, na predominância do caráter religioso da psicografia, o referido princípio da liberdade
de culto abre possibilidade para sua utilização como prova.
Outra questão levantada por juristas defensores da impossibilidade da aceitação da
psicografia como prova judicial é o argumento de que o aludido documento afronta o
princípio do contraditório, pois, em razão da natureza da mensagem, não haveria como
contrapor tal prova.
88
BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Acórdão de nº 70016184012. Relator Manuel José Martinez Lucas. 11 de novembro de 2009. Disponível em : < http://www.tjrs.jus.br/busca/?tb=proc> Acesso em: 20 out 2014.
50
Entretanto, os estudiosos favoráveis à aceitabilidade da carta psicografada
entendem que a sua apresentação em juízo não ofende o contraditório nem a ampla defesa. O
mestre Renato Marcão, membro do Ministério Público de São Paulo, posiciona-se no sentido
de que, quando da produção da carta, não é possível se estabelecer o contraditório. Todavia, a
prova estaria assim exposta ao princípio no momento de sua apresentação em juízo. 89
Ademais, havendo reconhecimento da autenticidade da prova psicografada por
meio de exame grafotécnico, o conteúdo trazido na mensagem pode ser contestado,
confrontando-o com outras provas e evidências já sustentados na instrução probatória. Logo,
não fere os princípios do contraditório e da ampla defesa.
4.2. A carta psicografada como meio de prova
Como já observado anteriormente, a carta psicografada não pode ser considerada
um meio de prova proibido ante a sua natureza, pois deve se dar prevalência ao seu caráter
científico, de forma que tal documento não confronta a laicidade estatal, tampouco os
princípios do contraditório e da ampla defesa. Cumpre, desta feita, examinar o seu
reconhecimento como meio de prova lícito e legítimo, em consonância com o ordenamento
jurídico pátrio.
Quando do estudo da Teoria Geral das Provas, viu-se que meios de prova são os
recursos de percepção da verdade e formação do convencimento do magistrado. 90
São todos
os recursos, diretos ou indiretos, utilizados para alcançar a verdade dos fatos no processo.
Observou-se, ainda, que o direito processual penal brasileiro adota o sistema
exemplificativo de produção de provas, com amparo nos princípios da liberdade probatória,
bem como no da busca da verdade real. Assim, apesar de a legislação processual penal elencar
um rol de meios probatórios, permite-se a produção de provas além das especificadas em lei.
O Código de Processo Civil, em seu artigo 332, aduz quanto à liberdade
probatória: “todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não
especificados neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a
ação ou a defesa”.
89
MARCÃO, Renato. Psicografia e prova penal. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n 1289, 11 jan 2007. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/9380/psicografia-e-prova-penal> Acesso em: 15 de out. 2014. 90
TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Op. cit., p. 391.
51
Por sua vez, viu-se, por conseguinte, que a liberdade probatória não é absoluta,
sendo limitada pelo princípio constitucional da vedação da prova obtida por meio ilícito, com
guarida no art. 5º, inciso LVI, da Constituição Federal. O termo lícito, nesse caso, possui dois
sentidos: o proibido por lei e, por outro lado, o contrário à moral, aos bons costumes e aos
princípios gerais do direito.
Logo, conclui-se que a carta psicografada pode ser considerada um meio de prova
lícito. Apesar de não previsto em lei, o documento psicografado não fere princípios
constitucionais, nem é obtido mediante violação a direito material ou processual. Pode ser
classifica, portanto, como uma prova inominada, ou atípica.
Entretanto, em razão de sua própria natureza, a psicografia deve ser analisada
como uma prova documental. O artigo 232 do Código de Processo Penal, em seu caput,
esclarece que se consideram documentos quaisquer escritos, instrumentos ou papéis, públicos
ou particulares. A psicografia seria, desta maneira, enquadrada como documento particular.
Acerca dos documentos particulares, Fernando Capez elucida:
Como os documentos privados não têm a mesma eficácia dos públicos, sua
autenticidade, quando reclamada ou contestada, exigirá prova, que é admitida seja
feita por todos os meios de direito. Prova a autenticidade, fala-se em documento
autenticado. 91
Nesse sentido, o documento particular, quando contestada sua autenticidade,
deverá se submeter a exame pericial, a teor do artigo 235 do Código de Processo Penal. Desta
forma, o documento se sujeitará ao exame grafotécnico, conforme já abordado anteriormente.
Assim, deduz-se que a psicografia pode ser admitida como meio de prova no
processo penal, como documento particular, devendo submeter-se à perícia grafoscópica para
comprovação de sua autenticidade.
Desta forma, não há nenhuma vedação, seja legal ou moral, para a utilização da
psicografia em juízo como instrumento probatório. Aliado a isso, o magistrado, amparado no
princípio do livre convencimento motivado, tem liberdade para valorar as provas de acordo
com seu convencimento.
Apresentadas, assim, as principais características da carta psicografada, seu viés
científico e, amparado neste aspecto, comprovada sua legitimidade dentro da esfera
91
CAPEZ, Fernando. Op. cit., p. 457.
52
processual, será dado enfoque à sua utilização no procedimento especial do Tribunal do Júri,
objeto do presente trabalho.
4.3. A psicografia no Tribunal do Júri
No Brasil, a maior incidência de aplicação de cartas psicografadas como meio de
prova no processo penal se deu em processos de competência do Tribunal do Júri. Portanto,
para um melhor exame acerca do tema em tela, necessário se faz uma breve explicação sobre
as características e organização do Júri e seu histórico no Brasil.
4.3.1. Breves considerações sobre a instituição do Tribunal do Júri no Brasil
O Júri foi implantado no Brasil em 1822, com a finalidade de julgar os delitos de
abuso da liberdade de imprensa. Com a Constituição de 1824, o Júri foi incluído no capítulo
referente ao Poder Judiciário, sendo ainda prevista a possibilidade de o Tribunal julgar causas
cíveis e criminais.
Atualmente, a Constituição Federal de 1988 disciplina a instituição do Tribunal
Popular no capítulo referente aos Direitos e Garantias Fundamentais, em seu art. 5º, inciso
XXXVIII. O texto maior assegura ainda como princípios básicos: a plenitude do direito de
defesa, o sigilo das votações, a soberania dos veredictos e a competência mínima para
julgamento dos crimes dolosos contra a vida.
O professor Fernando Capez assim afirma quanto à finalidade do Tribunal do Júri:
Sua finalidade é ampliar o direito de defesa dos réus, funcionando como uma
garantia individual dos acusados pela prática de crimes dolosos contra a vida e
permitir que, em lugar do juiz togado, preso a regras jurídicas, sejam julgados pelos
seus pares. 92
Ademais, ressalte-se que nossa Lei Maior inseriu o Júri como um direito e
garantia individual, não podendo, desta forma, ser suprimido nem por emenda constitucional,
constituindo verdadeira cláusula pétrea. 93
92
CAPEZ, Fernando. Op. cit., p. 648 93
Ibidem, p. 649
53
A Constituição de 1988 reafirmou o júri popular como órgão do Poder Judiciário,
embora lhe seja reconhecida a sua especialidade. Assim é o entendimento de Guilherme de
Souza Nucci:
Trata-se de um órgão especial do Poder Judiciário, que assegura a participação
popular direta nas suas decisões de caráter jurisdicional. Cuida-se de uma instituição
de apelo cívico, demonstrativa da importância e da democracia na vida em
sociedade. 94
O Tribunal do Júri caracteriza-se por ser um órgão heterogêneo, composto por um
juiz-presidente e por vinte e cinco jurados, dos quais sete compõem o Conselho de Sentença.
É também um órgão horizontal, não havendo hierarquia entre as funções do juiz-presidente e
os jurados.
Os jurados serão selecionados dentre cidadãos, maiores de 18 anos de notória
idoneidade, a teor do art. 436 do Código de Processo Penal. Na fase de preparação da sessão
plenária, o juiz-presidente sorteará 25 (vinte e cinco) jurados entre os alistados e, destes, 7
(sete) formarão o Conselho de Sentença, ante o disposto no art. 447 da lei processual penal.
Diante disso, importante ressaltar que o procedimento do Júri é bifásico. A
primeira fase se denomina o judicium accusationis, onde é promovida uma instrução prévia,
predominantemente oral, correspondente ao exame da admissibilidade do envio ou não para o
julgamento plenário da segunda fase. 95
A fase seguinte denomina-se judicium causae, sendo uma fase concentrada e
também oral, e é nesta fase que se dará o julgamento de mérito da causa pelos jurados.96
Assim, cumpre destacar a função dos jurados dentro deste procedimento, qual seja, o de
decidir única e exclusivamente quanto ao mérito da causa.
Feitas as breves considerações acerca da origem do Júri e uma síntese quanto à
sua organização, cabe adentrar nas questões relevantes para a compreensão da admissibilidade
do documento psicografado neste procedimento especial.
O principal elemento característico do Tribunal do Júri que o torna um campo de
atuação cabível à aceitação da psicografia como meio de prova é a prevalência do sistema da
íntima convicção para valoração probatória.
94
NUCCI, Guilherme de Souza. Tribunal do Júri. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 45 95
LIMA, Marcellus Polastri. Op. cit., p. 871. 96
LIMA, Marcellus Polastri. Loc. cit.
54
Abordado no capítulo que trata da Teoria Geral das Provas, em suma, o sistema da
íntima convicção consiste na desnecessidade de fundamentação legal do julgador, que poderá
avaliar tanto a admissibilidade das provas quanto a sua valoração de acordo com seus
conhecimentos pessoais, não se restringindo à norma legal.
O sistema da íntima convicção no Brasil aplica-se exclusivamente no Tribunal do
Júri, encontrando suporte nas prerrogativas constitucionais que regulam o procedimento. Tais
prerrogativas estão previstas inciso XXXVIII do art. 5º da Constituição Federal e serão
analisados a seguir.
4.3.2. Princípios constitucionais do Tribunal do Júri
Os princípios constitucionais explícitos que norteiam o procedimento do Júri no
Brasil são o da plenitude de defesa, do sigilo das votações, da soberania dos veredictos e o da
competência para o julgamento de crimes dolosos contra a vida. Tais princípios consistem em
garantias asseguradas pela Constituição.
4.3.2.1. Plenitude de defesa
Considerando o fato de já estarem presentes no processo penal os princípios da
ampla defesa e do contraditório, vê-se que a plenitude da defesa trata-se de uma garantia
específica do júri. Nucci assim leciona:
A ampla defesa é a possibilidade de o réu defender-se de modo irrestrito, sem sofrer
limitações indevidas, quer pela parte contrária, quer pelo Estado-Juiz, enquanto a
plenitude de defesa quer significar o exercício efetivo de uma defesa irretocável,
sem qualquer arranhão, calcado na perfeição. 97
Destarte, a plenitude da defesa é mais ampla que a ampla defesa, não precisando
restringir-se a uma atuação exclusivamente técnica, podendo também servir-se de
argumentação extrajurídica, invocando razões de ordem social, emocional ou mesmo de
política criminal. 98
97
NUCCI, Guilherme de Souza. Júri: princípios constitucionais. São Paulo: Juarez de Oliveira Ed., p. 35. apud LIMA, Marcellus Polastri. Op. cit., p. 869 98
CAPEZ, Fernando. Op. cit., p. 649
55
Vê-se, pois, que ao se assegurar ao acusado uma defesa plena, ultrapassando os
limites meramente técnicos, permite-se ao réu usar uma série de argumentos, instrumentos e
meios probatórios que considerar suficientes na busca de sua absolvição, não havendo
impedimentos para a utilização de uma carta psicografada como prova.
Seguindo-se, uma vez apresentado o documento psicografado, fica a cargo do
jurado apreciá-lo, quando do momento do julgamento do mérito, valendo-se de sua íntima
convicção e seu livre convencimento.
4.3.2.2. Sigilo das Votações
O sigilo das votações é uma garantia à liberdade de convicção dos jurados. Por
este princípio, a votação ocorre em sala especial e os jurados respondem aos quesitos
formulados de forma secreta, fundamentando no seu livre convencimento.
Trata-se de uma exceção ao princípio da publicidade das decisões do Poder
Judiciário, previsto no art. 93, inciso IX da Constituição, a fim de se evitar que os jurados
sejam intimidados e sofram influência externa, declinando da posição assumida quando do
julgamento.
4.3.2.3. Soberania dos Veredictos
A soberania dos veredictos implica na impossibilidade de o tribunal técnico
modificar a decisão dos jurados pelo mérito. 99
Esse princípio, no entanto, pode ter sua
aplicabilidade mitigada, sendo possível a reforma da decisão em casos específicos.
Em primeiro caso, havendo apelação de decisão do Júri pelo mérito, o Tribunal
pode anular o julgamento, remetendo o acusado a novo júri, caso entenda que a decisão foi
manifestamente contrária à prova dos autos.
A outra possibilidade é o caso da revisão criminal, situação em que o réu,
condenado definitivamente poderá ser absolvido pelo tribunal revisor, caso a decisão do Júri
tenha sido arbitrária. Aqui, diferente do julgamento de apelação citado no parágrafo anterior,
poderá ocorrer a mudança da decisão do mérito.
99
CAPEZ, Fernando. Op. cit., p. 650.
56
4.3.2.4. Competência para julgamento de crimes dolosos contra a vida
Por meio deste princípio, a Constituição assegura a competência mínima do Júri
para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. Não há empecilho, contudo, para que o
legislador infraconstitucional a amplie para outros crimes.
São os delitos dolosos contra a vida o homicídio, o infanticídio, o auxílio ou
instigação ao suicídio e o aborto.
Ademais, havendo concurso de crimes doloso contra a vida com outro que seja de
outro rito, prevalecerá sempre a competência do Tribunal do Júri.
Logo, conforme o explicitado, embora a utilização de uma carta psicografada
como prova não se restrinja aos processos de competência do Tribunal do Júri, este
procedimento, em virtude de suas prerrogativas constitucionais expostas, sobretudo os
princípios da plenitude de defesa, do sigilo das votações e da soberania dos veredictos, torna-
se o campo mais propício para admissibilidade da aludida prova.
No júri, os jurados possuem poder ilimitado para decidir, não havendo
necessidade de se vincularem a qualquer critério legal. Vigora o sistema da íntima convicção,
garantindo-se aos jurados liberdade para apreciarem o mérito da causa utilizando-se de
conhecimentos particulares, mesmo não possuindo prova nos autos.
Dito isto, resta analisar a aplicação da prova psicografada no processo penal, em
especial no rito do Júri, abordando-se os casos concretos e suas respectivas decisões judiciais.
4.3.3. Análise dos principais casos de aceitação da psicografia como prova no Tribunal do
Júri
Raros foram os casos em que as cartas psicografadas foram apresentadas para
serem juntadas aos autos como meio de prova. No âmbito criminal, a grande maioria se deu
perante o Tribunal de Júri.
Considerado o primeiro e um dos principais casos de utilização como psicografia
no processo penal ocorreu em Goiânia/GO, no ano de 1976. Na ocasião, investigava-se o
assassinato do jovem Maurício Garcez Henrique, tendo sido o seu amigo, José Divino Nunes,
então com 18 anos, indiciado pelo Ministério Público como incurso no crime de homicídio
doloso.
57
Na época, os pais da vítima tomaram conhecimento da possibilidade de entrar em
contato com seu filho por intermédio da psicografia e, na busca de consolo, visitaram o
médium Francisco Cândido Xavier. Após alguns dias, o médium recebeu uma mensagem que
dizia ser de Maurício Henrique, e transmitiu aos familiares da vítima. Após dois anos, a
família recebeu outra carta do médium, do mesmo remetente.
As cartas, além das mensagens de conforto, traziam também detalhes e
peculiaridades do possível acidente que teria provocado a morte da vítima, afirmando que o
então denunciado não tinha culpa do acontecido, não havendo, assim, crime. A psicografia foi
levada a juízo. Com base nas demais provas produzidas nos autos, na ocasião da primeira fase
do júri, o magistrado Dr. Orimar de Bastos prolatou sentença de improcedência da denúncia e
absolveu o acusado.
Após, o Ministério Público interpôs recurso ao Tribunal de Justiça do Estado de
Goiás, que reformou a decisão, mandando José Divino a julgamento perante júri popular. A
decisão do júri, então foi pela absolvição do réu, por seis votos a um. Houve recurso de
apelação por parte da promotoria, porém, o Tribunal negou provimento à apelação e
confirmou, por unanimidade, a decisão do júri popular, absolvendo o acusado.
Destarte, cumpre salientar que no caso em tela, o juiz de primeiro grau, ao
reconhecer a psicografia como prova jurídica, o fez pelas demais provas que coadunaram os
relatos trazidos na mensagem, formando o convencimento do juiz. Até mesmo por isso não
houve necessidade de realização de exame grafotécnico, pois o entendimento do magistrado já
estava sedimentado.
Por fim, o caso mais recente de utilização da psicografia no processo penal,
ocorrendo também no âmbito do Tribunal do Júri, já foi citado no tópico 4.1., e trata-se do
caso Iara Marques Barcelos, acusada de ser a mandante do assassinato do tabelião Ercy da
Silva Cardoso, morto em 2003, em Viamão/RS, tendo sido denunciada pela prática de crime
de homicídio qualificado, de acordo com ao art. 121, §2º, incisos I e IV do Código Penal.
Em 2005, já tendo sido a acusada pronunciada pelo crime descrito na denúncia,
foi psicografada uma carta pelo médium Jorge José Santa Maria, da Sociedade Beneficente
Espírita Amor e Luz, tendo sido a autoria do texto atribuída à vítima. Em seu teor, a
mensagem mediúnica relatava que Iara Barcelos era inocente, não tendo participado da
conduta delituosa.
Em julgamento perante o júri popular, o Conselho de Sentença absolveu a ré por
cinco votos a dois. Houve interposição de apelação pelo Ministério Público e, após tórrida
58
batalha judicial, prevalece no momento a recente decisão do recurso de apelação nº
70016184012, julgada em 11 de novembro de 2009, em que foi mantida a decisão do Tribunal
do Júri. Em seguida, sucessivos recursos foram interpostos, encontrando-se os autos
pendentes de julgamento.
Logo, ressalte-se o entendimento prevalecente quando do julgamento do recurso
de apelação nº 700161840012, no qual a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul, pelo seu Desembargador-Relator Manuel José Martinez Lucas, expressou-se
no sentido de não haver ilicitude na utilização do documento psicografado como meio de
prova, não podendo ser tachado de ilegal ou ilegítimo, haja vista que encontra pela guarida na
própria Constituição. 100
Conclui-se, assim, que a prova psicografada, em virtude de sua natureza, não pode
ser considerada ilícita. Como visto sua aquisição não viola nenhuma regra material ou
processual. Desta maneira, não ofende o princípio da inadmissibilidade da prova ilícita,
disposto no art. 5º, inciso LVI da Lei Maior.
Partindo-se do pressuposto de que se trata de um meio probatório possível, a
psicografia, embora à primeira vista possa ser classificada como prova inominada,
entendemos que, analogicamente, conforme demonstrado, pode ser especificada como um
documento particular. Em decorrência disso, a comprovação de sua autenticidade se dá com a
realização da perícia grafotécnica que, como analisado, é o meio mais adequado para a
demonstração da veracidade e da certificação do aspecto científico do documento.
Uma vez evidenciada a sua licitude, a apreciação e valoração da prova
psicografada fica a cargo do magistrado que, com amparo no princípio do livre
convencimento motivado, tem liberdade para analisar a prova de acordo com sua consciência,
mas devendo respeitar os princípios norteadores do processo penal.
No caso do Tribunal do Júri, a avaliação dos meios probatórios que compõem o
processo e o posterior exame do mérito é de competência dos jurados. Estes, por sua vez, são
livres para apreciar os fatos em virtude de vigorar, neste procedimento, o sistema da íntima
convicção, complementado pelas prerrogativas constitucionais informadoras deste rito
especial.
Observa-se, portanto, que o procedimento do júri popular, em razão dos motivos
acima explanados, torna-se o meio mais adequado para a aplicabilidade da psicografia como
instrumento probatório.
100
BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Op. cit.
59
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O processo penal brasileiro, ao ter como princípios norteadores a busca pela
verdade real e a liberdade probatória, abre margem para a admissibilidade de uma infinidade
de provas, ainda que não previstas em lei, desde que moralmente legítimos e que não ofendam
o ordenamento jurídico, em respeito ao princípio constitucional da vedação das provas obtidas
por meios ilícitos e suas derivadas.
Nesse sentido, nosso ordenamento adota o sistema exemplificativo, não havendo
hierarquia de provas, de forma que tanto as provas previstas no Código de Processo Penal
como as não especificadas em lei, chamadas inominadas, podem ser utilizadas na instrução
probatória. É com base nesse entendimento que se vislumbra a possibilidade de aceitação da
psicografia como meio de prova.
Ante o explicitado, a psicografia e o fenômeno da mediunidade, do qual aquela
decorre, possuem inúmeras evidências de manifestação na história da humanidade. Assim,
não é uma crença restrita à religião espírita. Ademais, renomados cientistas de diversas épocas
comprovaram o caráter científico da mediunidade, a exemplo de Cesare Lombroso.
No mesmo sentido, evidenciou-se o aspecto científico da psicografia com base na
perícia grafotécnica realizada em documentos psicografados pelo médium Chico Xavier e que
foram estudados a fundo pelo renomado professor Carlos Augusto Perandréa. Após anos
realizando exames nas mensagens psicografados por Xavier, Perandréa concluiu que todas
eram autênticas, comprovando a cientificidade dos documentos psicografados, sobretudo
quando realizados por médiuns mecânicos e semimecânicos que, como visto, são aqueles que
recebem forte influência do espírito comunicantes, realizando movimentos involuntários no
momento da escrita.
Partindo-se dessas definições, buscou-se confrontar as teses defensivas com os
argumentos contrários à aceitação da psicografia no direito, sobretudo os que diziam tratar-se
de ofensa à laicidade estatal e afronta ao contraditório. No primeiro caso, demonstrado o viés
científico da psicografia, desvinculando-a de seu caráter religioso, observou-se que sua
aplicação como prova não ofende a laicidade do Estado. Além disso, verificou-se que o
próprio texto constitucional garante a liberdade de crença e de culto religioso, de forma que a
elaboração de uma carta psicografada não fere qualquer preceito legal, encontrando guarida
na própria Lei constitucional. Tal entendimento foi o prolatado pela 1ª Câmara Criminal do
TJRS, no mais recente caso de admissão da psicografia como prova.
60
Quanto ao argumento de ofensa ao contraditório, este restou prejudicado pelo fato
de a carta poder ser contestada no momento que é levada a juízo. Aliado a isso, embora não
possa ser contraditado no momento de sua feitura, o documento pode ser submetido à perícia
grafotécnica, bem como seu conteúdo pode ser confrontado com as demais provas levantadas
nos autos.
Logo, concluiu-se que a psicografia não pode ser tachada como prova ilegal, pois
sua obtenção não fere normas materiais nem processuais. Não encontra, ainda, vedação legal
e, assim, não sofre a limitação do art. 5º, inciso LVI da Constituição.
Admitida como prova, a apreciação da psicografia fica a cargo do magistrado ou
do júri popular. No caso do primeiro, este tem a liberdade pra analisar a prova em virtude do
princípio da persuasão racional, o livre convencimento motivado. No caso dos jurados, a
liberdade para valorar a prova psicografada é ainda mais ampla, pelo motivo de o Tribunal do
Júri ser regido pelo sistema da íntima convicção, onde o julgador tem pleno arbítrio para
analisar a lide até mesmo com seus conhecimentos particulares, ainda que não tenha prova
nos autos.
Aliado a isso, o Tribunal do Júri possui como prerrogativas constitucionalmente
previstas a plenitude da defesa, que garante uma defesa ainda mais abrangente ao réu,
podendo utilizar-se de meios além dos meramente técnicos, servindo-se, ainda, de argumentos
extrajurídicos; o sigilo das votações, onde se garante aos jurados segurança para votarem sem
influência externa e sem o temor de represálias ou corrupções; e a soberania dos veredictos,
que assegura às decisões dos jurados caráter definitivo, não podendo ser alterado de qualquer
maneira pelo Tribunal.
Por fim, conforme se auferiu da análise dos casos mais emblemáticos em que se
presenciou a utilização de carta psicografada, ainda não se pode atribuir a tais documentos
status de prova absoluta. Deve-se, portanto, ser examinado em harmonia com os outros meios
probatórios presentes nos autos.
Concluímos, portanto, que o procedimento do Tribunal do Júri respalda a
possibilidade de aceitação das cartas psicografadas, não havendo entrave para sua utilização,
ante os motivos exposto. Entretanto, mais importante do que tal constatação é a visualização
da relevância deste tema para a atualidade e, consequentemente, o interesse no
aprofundamento do estudo da matéria, de grande contribuição para o alcance da finalidade do
processo judicial, sobretudo no âmbito criminal, qual seja, a realização da justiça.
61
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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2008.
ALEXY, Robert.Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008.
ARANHA CAMARGO, Adalberto José Q. T. de. Da Prova no Processo Penal. 7ª Ed. rev. e
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