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Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção

Matheus da Silva Bernardes

A relação natureza e graça

na obra “Dass neue Menschen werden”

do Padre José Kentenich

São Paulo

2008

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Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção

Matheus da Silva Bernardes

A relação natureza e graça

na obra “Dass neue Menschen werden”

do Padre José Kentenich

Dissertação apresentada à Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, como exigência parcial para obtenção do grau de Mestre em Teologia Dogmática, sob a orientação do Prof. Dr. Antonio Manzatto.

São Paulo

2008

3

No mês em que o Servo de Deus,

o Pe. José Kentenich, foi chamado à “Urheimat”,

dedico-lhe esta dissertação e todo o trabalho que significou.

Também a Paul Vautier, apaixonado por Kentenich,

e a todos os demais irmãos de Sião.

A meus pais e minha irmã, em gratidão por seu apoio

nesta aventura da vocação sacerdotal.

A todo o Povo de Schoenstatt em gratidão por sua fidelidade

à Aliança de Amor com Maria Santíssima.

4

Sumário

Introdução ................................................................................................................................... 8

I. Primeiro capítulo: a obra “Dass neue Menschen werden” .................................................... 12

1. Método .................................................................................................................................. 12

2. Autor e obra .......................................................................................................................... 14

2.1. O autor ...................................................................................................................... 16

2.2. A obra e seu contexto ............................................................................................... 21

2.2.1. O contexto amplo da obra ............................................................................. 22

2.2.2. O contexto imediato da obra ......................................................................... 24

2.2.2.1. O curso pedagógico Dass neue Menschen werden ........................... 26

2.3. Os temas centrais da obra “Dass neue Menschen werden” ..................................... 29

2.3.1. Os quatro pilares da educação religiosa ....................................................... 30

2.3.1.1 Primeiro pilar: a vivência religiosa (das religiöse Erlebnis) ............. 30

2.3.1.2. Segundo pilar: a comunidade (die Gemeinschaft) ............................ 32

2.3.1.3. Terceiro pilar: um pensar claro (ein klares Denken) ........................ 35

2.3.1.4. Quarto pilar: a transmissão de valores (die Wertvermittlung) .......... 37

2.3.2. A vivência Heimat (lar) ................................................................................ 39

2.3.2.1. Dimensões da Heimat ....................................................................... 41

2.3.2.2. Três definições da Heimat utilizadas na obra Dass neue Menschen

werden ........................................................................................................... 42

3. Hermenêutica da obra Dass neue Menschen werden ........................................................... 44

3.1. A leitura da obra Dass neue Menschen werden realizada por um teólogo ............... 45

5

II. Segundo capítulo: a relação natureza e graça ...................................................................... 47

1. Introdução ............................................................................................................................. 47

2. A relação natureza e graça de Agostinho de Hipona a Tomás de Aquino ........................... 48

2.1. Natureza e graça no pensamento de Agostinho de Hipona ...................................... 49

2.2. A reflexão teológica durante a Primeira Escolástica ................................................ 52

2.3. Tomás de Aquino e o desejo natural de ver a Deus.................................................. 56

2.3.1. A natureza do ser humano considerado “em si” ........................................... 57

2.3.2. O desejo natural de ver a Deus ..................................................................... 59

2.3.3. Um desejo natural realizado por um dom sobrenatural ................................ 60

2.4. Duns Scoto: o desejo natural de Deus mantido ........................................................ 63

3. A relação natureza e graça a partir do século XIV ............................................................... 67

3.1. A hipótese da natura pura ........................................................................................ 67

3.2. Caetano de Vio e a dupla finalidade do ser humano ................................................ 69

3.2.1. A rejeição do desejo natural de ver a Deus .................................................. 71

3.2.2. Natureza “absoluta” e natureza elevada à beatitude ..................................... 72

3.3. Os desvios da Teologia pós-tridentina: Miguel Baio e Cornélio Jansênio ............... 76

3.3.1. Miguel Baio: os direitos do ser humano em sua criação .............................. 76

3.3.2. A bula Ex omnibus afflictionibus ................................................................. 79

3.3.3. Cornélio Jansênio e a impotência da natureza sem a graça .......................... 80

3.4. A reação dos autores católicos ................................................................................. 81

4. A renovação católica: a relação natureza e graça no século XX .......................................... 86

4.1. Os primeiros intentos de renovação: a Teologia da graça nos séculos XVII - XIX . 86

4.2. Resgate do conceito “natura” a partir da graça e o ponto de identidade no

pensamento de Joseph Marechal ..................................................................................... 87

4.3. Uma trabalhosa mutação na Teologia ...................................................................... 89

6

4.3.1. O desejo natural de ver a Deus segundo Henri De Lubac ............................ 91

4.3.2. A teologia transcendental de Karl Rahner .................................................... 93

4.3.3. Natureza e graça na Teologia de Hans Urs von Balthasar ........................... 95

4.3.4. Juan Alfaro: a Antropologia Teológica iluminada pela Cristologia ............. 96

5. Balanço final ......................................................................................................................... 99

III. A relação natureza e graça na obra “Dass neue Menschen werden” ................................ 101

1. Método ................................................................................................................................ 101

2. Uma aproximação crítica à obra Dass neue Menschen werden ......................................... 102

2.1. A Piedade Mariana e a vivência da Heimat ............................................................ 103

2.2. A relação natureza e graça a partir do pensamento do Pe. José Kentenich ............ 107

2.3. Limitações e caminhos propostos ........................................................................... 109

2.3.1. As limitações do texto e da linguagem ....................................................... 109

2.3.2. Caminhos propostos ................................................................................... 111

2.3.2.1. A Psicologia integrada ao discurso teológico ................................. 111

3. Repensar a relação natureza e graça a partir do Concílio Vaticano II ................................ 114

3.1. O desafio da singularidade e originalidade do ser humano e sua vocação filial em e

com Jesus Cristo ............................................................................................................ 114

3.2. A mediação eclesial ................................................................................................ 120

Conclusão ............................................................................................................................... 122

Referências bibliográficas ...................................................................................................... 126

1. Obras da tradição da Igreja ................................................................................................. 126

2. Obras de teólogos ............................................................................................................... 127

7

3. Obras do Pe. José Kentenich .............................................................................................. 128

4. Obras sobre a vida e pensamento do Pe. José Kentenich ................................................... 129

5. Literatura secundária .......................................................................................................... 130

8

Introdução

A relação natureza e graça tem sido objeto de estudo de muitos teólogos ao longo da

história1. Os primeiros esforços de sistematizar essa relação já podem ser encontrados nos

escritos de Agostinho de Hipona. De seu pensamento já se desprende a distinção fundamental

que será trabalhada e aprofundada posteriormente: por uma parte Deus criou o ser humano,

mas, por outra, o gerou para que fosse seu filho.

A distinção mencionada será objeto da investigação teológica da Idade Média,

especialmente dos autores da baixa e alta escolástica. Devem se citar, especialmente, os

estudos de Tomás de Aquino que se esforçou para elaborar uma nova síntese sobre a relação

natureza e graça. Para compreender exatamente o pensamento do Mestre Angélico é

necessário ter presente a acentuação que faz do fim último do ser humano: a visão de Deus. O

autor escolástico chega inclusive a falar de um desejo natural de ver Deus, desejo que só é

realizado por um dom sobrenatural.

Esta afirmação do Aquinate conduziu a vários erros na reta compreensão da relação

natureza e graça. A partir de uma compreensão limitada do pensamento tomista, muitos

teólogos, merece destaque aqui Caetano de Vio, deixaram de lado o fim último e único do ser

humano, para postular uma dupla finalidade para sua existência: uma natural e uma

sobrenatural. A partir daí, a graça passou a ser compreendida unilateralmente, isto é, desde

sua perspectiva sobrenatural, um dom que é posto sobre a natureza. O passo seguinte foi a

postulação da hipótese de natura pura.

1 Cf. SESBOÜÈ, B., LADARIA, L., et al., História dos Dogmas: O homem e sua salvação, 1ª Edição, São Paulo: Ed. Loyola, 2003, p. 314-343.

9

As posições mais extremas com relação ao sobrenatural são encontradas no

pensamento teológico de M. Baio e C. Jansênio. M. Baio postulava que a perfeição do ser

humano, antes da queda do pecado original, lhe era devida por natureza. Essa compreensão

naturaliza o dom sobrenatural. A graça de Cristo é vista somente por uma perspectiva moral:

o ser humano é restituído em sua perfeição anterior ao pecado, não sendo, contudo, elevado.

C. Jansênio chega ao extremo de afirmar que a natureza sem a graça é absolutamente

impotente.

A Teologia neo-escolástica, especialmente o pensamento de M. J. Scheeben, ressalta

uma nova acentuação da relação entre natureza e graça, partindo de uma nova compreensão

do pensamento escolástico-tomista: a graça não destrói, mas pressupõe, aperfeiçoa e eleva a

natureza (gratia non destruit, sed praesupponit, perficit et elevans naturam). Essa

compreensão de dois simultâneos (mas não dois concorrentes) será uma nova possibilidade

para entender a relação natureza e graça2.

O debate continua durante o século XX, especialmente no pensamento de H. De

Lubac, apoiado, sobretudo, no pensamento filosófico de J. Marechal e seu ponto de

identidade. O autor da Nouvelle Theologie questionará a hipótese da natura pura, afirmando

que a compreensão de uma natureza pura e uma graça sobrenatural põe para o ser humano

duas finalidades existenciais, estas paralelas e justapostas. Afirmar-se-á novamente o desejo

natural de ver Deus, tese que será profundamente criticada pelos teólogos da época e,

inclusive, pelo Magistério Eclesial (cf. Humani generis).

2 Cf. MEIS, A., Antropología Teológica: acercamientos a la paradoja del hombre, 2ª Edição, Santiago do Chile: Ed. Universidad Católica de Chile, 1997, p. 412-415.

10

Por outro lado, também tentando elaborar uma nova síntese, K. Rahner partirá do

mesmo ponto de partida do autor francês: o ser humano existente e não aquele que seria

possível. O autor alemão postulará um existencial sobrenatural do ser humano, que nasce de

sua vocação gratuita à comunhão com Deus. Trata-se de um existencial, ou seja, de um dado

que sem pertencer de modo algum à natureza com tal, afeta-a de modo original, intrínseco e

necessário em sua existência. Finalmente, se encontra o pensamento de H. Urs von Balthasar

que tenta harmonizar as posturas de K. Rahner e de H. de Lubac3 e a tendência dos teólogos

pós-conciliares, entre eles destacando-se o espanhol J. Alfaro, que trabalha a Antropologia

Teológica a partir da Cristologia4.

Junto a esses esforços teológicos para compreender melhor a relação natureza e graça,

encontram-se também esforços pastorais e pedagógicos que ajudam a expressão plena dessa

relação na vida do fiel cristão. Entre esses esforços, pode-se citar a figura do Pe. José

Kentenich, fundador da Obra Internacional de Schoenstatt. A leitura de suas obras inspira a

reflexão sobre a relação entre natureza e graça, ou como ele comumente chamava a “relação

harmônica e orgânica entre natureza e graça”5. Uma obra que merece especial destaque, neste

sentido, é Dass neue Menschen werden6.

Ler a obra, analisar seu contexto literário e histórico e deixar-se inspirar por seus

conteúdos centrais é a tarefa proposta nesta dissertação. Não se deseja, porém, realizar

simplesmente uma apresentação do que foi tratado pelo Pe. José Kentenich na citada obra,

3 Ibidem, p. 433. 4 Cf. LADARIA, L., Teología del pecado original y de la gracia in: Sapientia Fidei (Tomo I), 3ª Edição, Madrid: BAC, 2001, p. 16-18. 5 Cf. KING, H., SCHMIEDL, J., et al., Schönstatt Lexikon – Fakten, Ideen, Leben, 1ª Edição, Vallendar am Rhein: Patris Verlag, 1996, p. 269-272. 6 KENTENICH, J., Dass neue Menschen werden, eine pädagogische Religionspsychologie, 1ª Edição, Vallendar am Rhein: Schönstatt Verlag, 1971.

11

que é fruto da transcrição das conferências do curso pedagógico ditado por ele em 1951. Ao

ler a obra, o teólogo sistemático se pergunta pelo desenvolvimento histórico da problemática

teológica da relação natureza e graça.

A aproximação crítica à obra permite ao leitor vislumbrar os caminhos propostos pelo

pensamento do autor, sem deixar de reconhecer os limites de sua obra e de seu pensamento,

sempre marcado por seu contexto histórico imediato. Esse mesmo reconhecimento e a

abordagem psicológica do autor permitem a re-situação da problemática teológica da relação

natureza e graça no período pós-conciliar e a necessidade da transformação de algumas

expressões clássicas da Teologia católica.

A integração da Psicologia no discurso teológico sistemático é uma urgência para a

atualidade. Já não se deve considerar o gênero humano abstrato em sua relação com Deus,

mas deve-se ter presente que todo ser humano, em sua singularidade e originalidade, é

chamado a viver na graça de Deus. Nessa mesma direção, se encontra a intuição do teólogo

alemão W. Kasper, que propõe a troca da máxima escolástica “graça supõe natureza” (gratia

supponit naturam) por uma nova: “graça supõe pessoa” (gratia supponit personam)7.

7 Cf. KASPER, W., Natur-Gnade-Kultur. Zur Bedeutung der modernen Säkularisierung. Theologische Quartalschrift, Tübingen, v. 170 n. 2, p. 81-97, 1990.

12

I. Primeiro capítulo: a obra “Dass neue Menschen werden”

1. Método

À primeira vista, muitos leitores podem supor que a aproximação à obra Dass neue

Menschen werden deveria ser a partir uma perspectiva teológica. Sem dúvida, a obra conduz à

reflexão teológica, no entanto, a primeira aproximação à mesma será a partir da perspectiva

literária.

Uma obra literária não se interessa por Teologia, é uma obra gratuita, aliás, quanto

mais gratuita a obra, mais universal será o alcance da mesma. A obra literária é compromisso

com a beleza e não com a verdade; ocupa-se com uma apresentação bela e com o

ordenamento estético das palavras. A reflexão teológica nasce de essa perspectiva gratuita e

bela que a Literatura faz do ser humano, porque ao apresentá-lo, também apresenta Deus.

A matéria prima da Literatura é a palavra escrita. Deve-se um grande respeito,

portanto, a essa palavra, respeitando também o idioma na qual ela foi originalmente expressa.

A palavra escrita tem, em si mesma, capacidade de comunicação entre autor e leitor,

personagem desconhecido que aparecerá somente no futuro quando tomar obra literária em

suas mãos e lê-la. O autor, por outro lado, é o primeiro personagem de uma obra literária: a

obra nasce de sua imaginação, de sua reflexão; ele pode autorizar-se à invenção de

neologismos, quebrar as regras gramaticais do idioma, ou mesmo distanciar-se da realidade,

em nome da beleza da obra.

13

A base do trabalho literário de um autor é sua cultura, não compreendida

simplesmente como expressão, mas como cosmovisão8, como seu horizonte de sentido e

significação. A comunicação, por sua vez, se dará quando o imaginário do autor, a

especificidade da obra e o imaginário do leitor entrarem em contato.

O imaginário do autor, ou mundo do autor, como o chama P. Ricoeur, é praticamente

livre; praticamente porque o autor ainda se vê limitado, como todo ser humano, ao seu

idioma, à sua cultura, à sua cosmovisão. A referência primária da obra literária, como já se

mencionou, será o autor e seu imaginário. Contudo, o que se lê não é a imaginação do autor,

mas, sim, o texto que nasce de sua imaginação; todo texto literário possui uma objetividade

até então inexistente.

A norma de interpretação, seguindo a reflexão proposta, não é, logo, o autor e sua

imaginação, mas o próprio texto. O texto afirma algo específico, o que já é chamado de

especificidade da obra ou mundo da obra, segundo o pensamento de P. Ricoeur.

O terceiro elemento do processo de comunicação é a imaginação do leitor ou o mundo

de leitor, segundo o filósofo francês. O leitor re-elabora o texto a partir de suas perspectivas

mais originais; ele acrescenta à obra literária sua interpretação. Mesmo que se parta da

intenção e imaginação do autor, que se respeite a objetividade do texto, a atribuição de

significado da obra será dada pelo leitor9.

8 Cf. MANZATTO, A., Teologia e literatura, 1ª Edição, São Paulo: Edições Loyola, 1994, p. 78-80. 9 Cf. RICOEUR, P., Temps et récit II. La configuration dans le récit de fiction, 1ª Edição, Paris: Editeur Seutil, 1969, p. 228.

14

Esta conclusão permite que se faça Teologia a partir de uma obra literária, que se faça

Teologia a partir da Literatura. E também é esta conclusão que estimula aproximar-se à obra

Dass neue Menschen werden a partir de uma perspectiva literária. Antes de procurar

elementos teológicos na obra, ler-se-á a mesma como Literatura. Em seguida, será realizada a

apresentação do seu autor, assim como a apresentação da obra em seu contexto e em seus

conteúdos.

Finalmente, P. Ricoeur afirma que o símbolo dá que pensar, logo, em um terceiro

momento, a obra será abordada como um símbolo – este dá que pensar ao leitor hoje. A

presente abordagem literária da obra Dass neue Menschen werden respeita, em primeiro

lugar, seu idioma, uma vez que a leitura será realizada em Alemão; por outro lado, permite

que a obra se universalize, se abra, pois a leitura da mesma não responde a critérios

estabelecidos de antemão; porém, permite, ao leitor pensar, imaginar, criar10.

2. Autor e obra

Durante o século XX, a Igreja passou por diversas transformações que marcaram seu

peregrinar terreno. Depois de alguns séculos de estagnação tanto na Teologia, quanto na

Espiritualidade, o Catolicismo foi impulsionado a buscar o diálogo com a sociedade moderna,

especialmente com as correntes filosóficas, culturais e técnico-científicas da modernidade.

Esse processo não foi fácil e encontrou bastante resistência, como se pode observar na

10 Cf. MANZATTO, A., Op. cit., p. 63-65.

15

desconfiança que certas tendências teológicas e espirituais geraram dentro da Hierarquia

católica11.

Uma das melhores expressões para esse processo de renovação é a “abertura das

janelas”, como muitas vezes se falou antes da convocação do Concílio Vaticano II. Sem

sombra de dúvidas, era necessário que ar novo, “ar do tempo” entrasse na Igreja, não

simplesmente para que seu espaço vital ficasse mais arejado, mas, sobretudo, para que esse ar

das mudanças do tempo trouxesse o que lhe era próprio para dentro da Igreja: uma nova visão

do ser humano no mundo e, conseqüentemente, a nova interpretação da relação com Deus.

Como já se mencionou, dentro desse grande contexto de mudanças, encontra-se o

Concílio Vaticano II e o pensamento de diversos teólogos que se esforçaram para

compreender melhor a nova situação existencial, na qual a Igreja se encontrava. Entretanto, há

de se mencionar movimentos anteriores ao Concílio: o Movimento Litúrgico alemão, o

Movimento Bíblico e o Movimento Patrístico das Escolas de Teologia12. Ainda que tenham

sido movimentos de caráter marcadamente intelectual, não se restringiram somente às salas de

aula e bibliotecas, mas se difundiram entre os fiéis, trazendo-lhes a necessidade de voltar às

fontes próprias do cristianismo.

A mudança de perspectiva, isto é o diálogo com o mundo moderno, foi muitas vezes

influenciada pelo Protestantismo e trouxe um novo dinamismo para o Catolicismo. Não

obstante, as mudanças sócio-políticas vividas, sobretudo, pelo continente europeu, até então o

11 Esta desconfiança ante as novas tendências teológicas e espirituais pode ser verificada na publicação da Carta Encíclica Humani generis. Nela, Pio XII manifesta sua reserva com respeito à elaboração de certos teólogos, especialmente aqueles da Nouvelle Theologie francesa. Cf. DE LUBAC, H., Lê mystére du surnaturel, 1ª Edição, Paris: Ed. Aubier, 1965, p. 92-93. 12 Cf. LABOA, J. M., Historia de la Iglesia IV: Época Contemporánea in: Sapientia Fidei (Tomo XXVII), 1ª Edição, Madrid: BAC, 2002, p. 261.262 e 335-336.

16

baluarte católico, também influenciaram a caminhada da Igreja. Deve-se mencionar

especialmente, neste contexto, as duas Guerras Mundiais (1914-1918 e 1939-1945), que não

mudaram simplesmente o traçado conhecido das fronteiras das nações, sobretudo, porém,

significaram uma nova situação vital para o ser humano da primeira metade do século XX e,

conseqüentemente, uma nova forma que se desenvolveu para o relacionamento com Deus.

Exatamente nesse grande contexto de mudanças, tanto ad intra como ad extra, que se

encontram muitos dos fundadores de Comunidades Religiosas e Movimentos Eclesiais do

século XX. Entre eles está a pessoa do Pe. José Kentenich, fundador da Obra de Schoenstatt e

autor de diversas obras literárias, entre elas a obra Dass neue Menschen werden.

2.1. O autor

José Kentenich13 nasceu no dia 16 de novembro de 1885, na pequena cidade de

Gymnich, nas proximidades de Colônia/ Alemanha. Cresceu junto de seus avós maternos, já

que sua mãe, Catarina Kentenich, não era casada e trabalhava como governanta de uma

família abastada na cidade de Colônia. Seu pai, Matthias Köp, também permaneceu solteiro e

nunca estabeleceu vínculo matrimonial com a mãe do autor.

Em 1894, por falta de condições de seguir mantendo-o na casa de seus pais, a mãe de

José Kentenich decide levá-lo ao Orfanato St. Vincenz-Waisenhaus em Oberhausen, no vale

do rio Ruhr. Ao ingressar na casa, um fato quase irrelevante marcará profundamente a vida do

autor: sua mãe retira, de seu pescoço, a medalha, que recebera em ocasião de sua primeira

13 Sobre a vida e obra do Pe. José Kentenich, há diversos livros publicados em vários idiomas. Merece destaque o trabalho de E. Monnerjahn, primeiro postulador do processo de beatificação do Fundador de Schoenstatt. Cf. MONNERJAHN, E., Pe. José Kentenich, Uma vida pela Igreja, 2ª Edição, São Paulo: Ed. Inst. Sec. Padres de Schoenstatt, 2004.

17

comunhão, e coloca-a no pescoço de uma imagem de Nossa Senhora do Rosário,

consagrando-lhe seu filho. Esse fato, estar consagrado a Nossa Senhora, marcará

profundamente a psique do menino José Kentenich e, de certa forma, condicionará todo o seu

atuar futuro.

Depois de concluir o ensino básico, ingressa no internato dos Padres Palotinos em

Ehrenbreitstein, Coblença, pois já expressava o desejo de ser sacerdote. Em 1904, inicia o

Noviciado na comunidade dos Padres Palotinos em Limburgo, permanecendo ali até 1906.

Exatamente ao iniciar seu Noviciado, como ele mesmo testemunhará anos mais tarde14, vive

uma crise existencial profunda, marcada por lutas interiores, solidão espiritual e fortes

dúvidas de fé, motivadas, sobretudo, por uma busca unilateral da verdade.

É ordenado sacerdote no dia 08 de julho de 1910. Após concluir seus estudos é

nomeado professor de Latim e Alemão no Seminário Menor dos Padres Palotinos em

Ehrenbreitstein, Coblença, e, posteriormente, em Schoenstatt, Vallendar. Em 1912, é

nomeado diretor espiritual dos seminaristas menores15. Nas férias de Natal de 1912/1913,

funda com os seminaristas mais comprometidos uma Associação Missionária, que

posteriormente, em 19 de abril de 1914, converter-se-á em uma Congregação Mariana16.

Ao retornar das férias de verão de 1914, apresenta aos seminaristas “sua secreta idéia

predileta”, transformar a capelinha do pátio do Seminário, a qual tinha sido liberada pelo

Superior Provincial para o uso da Congregação Mariana de Schoenstatt, em um lugar de

14 Cf. KENTENICH, J., Zur Studie Gründer und Gründung, Manuskript Deutsch/ Spanisch, Vallendar am Rhein, 1998, p. 8. 15 Cf. KENTENICH, J., Documentos de Schoenstatt, 1ª Edição, Santa Maria: Instituto Secular Irmãs de Maria de Schoenstatt, 1974, p. 15. 16 Ibidem, ps. 31-38.

18

peregrinação mariano17. Não se tratava simplesmente de uma idéia piedosa, mas, sim, um

desafio pedagógico captado pelo Pe. José Kentenich, uma vez que os seminaristas se

encontravam muitas vezes em situações conflitantes e toda a Europa já se via mergulhada nas

sombras da Guerra.

Os lugares de peregrinação marianos eram bastante comuns na Alemanha e estavam,

na maioria das vezes, associados a acontecimentos extraordinários e a uma imagem de graças

de Nossa Senhora. Em Schoenstatt, contudo, não houve um acontecimento extraordinário,

nem existia imagem ou peregrinação, somente o programa pedagógico de um neo-sacerdote

para um grupo de seminaristas. Essa é justamente a estratégia usada pelo autor para apresentar

sua “secreta idéia predileta”, pois ela não dependia única e exclusivamente da manifestação

extraordinária de Deus, mas, também, da livre acolhida que o ser humano faz da iniciativa

divina. Assim, surge o Santuário de Schoenstatt e todo o Movimento que em torno a ele

cresceu e ainda cresce.

Essa novidade pedagógica, acolher conscientemente no dia-a-dia a iniciativa divina

manifestada em um lugar de peregrinação mariano, faz com que a incipiente Obra de

Schoenstatt se expanda rapidamente nos países de língua alemã. O Pe. José Kentenich se

torna um grande pregador de retiros para sacerdotes e leigos, especialmente aqueles

vinculados à educação, e dita diversos retiros espirituais e cursos pedagógicos entre os anos

20 e 40. Por meio desses cursos, ele consegue elaborar e também colocar à disposição de

círculos amplos a espiritualidade nascida em Schoenstatt. Já em 1926, funda o primeiro

Instituto Secular da Obra de Schoenstatt, as Irmãs de Maria de Schoenstatt, Instituto esse que

teve um rápido e contínuo crescimento nas décadas posteriores.

17 Ibidem, p. 47-50.

19

Com a ascensão de A. Hitler ao poder supremo alemão, em 1933, o Nazismo se

instaura no centro do continente europeu. Como todas as ditaduras européias do século XX,

sejam elas de direita ou de esquerda, o Nazismo também era um regime ateu e, mais ainda,

lutava contra as idéias religiosas. Justamente nesse contexto, inicia-se a perseguição aos

líderes católicos alemães, entre eles o Pe. José Kentenich. O fundador da Obra de Schoenstatt

será preso pela Gestapo, Polícia Secreta Alemã, no dia 20 de setembro de 1941, e será levado

à prisão na cidade de Coblença. Posteriormente, será enviado para o Campo de Concentração

de Dachau, onde permanecerá até 20 de maio de 1945.

Terminada a guerra, recebe da Santa Sé um passaporte diplomático e realiza viagens

pelo mundo para sentir como estava a fundação das Comunidades de Schoenstatt,

especialmente das Irmãs de Maria, quem foram enviadas em missão, já em 1935, à África do

Sul e, em 1936, aos países do Cone Sul da América – Argentina, Chile e Brasil – e para

constatar como crescia o Movimento Apostólico de Schoenstatt. Em 1947, visita por primeira

vez o Brasil, será a primeira de dez visitas.

Seguindo o caminho das fundações católicas, o Pe. José Kentenich tinha o intuito de

colocar as idéias surgidas em Schoenstatt em contato com a autoridade eclesiástica, não

apenas para que fossem conhecidas, mas, sobretudo, aprovadas. Em 1948, a Diocese de

Trévis/ Alemanha realiza uma visitação canônica à Comunidade das Irmãs de Maria de

Schoenstatt, primeiro Instituto Secular alemão, e, nesse contexto, o Pe. José Kentenich tinha

pedido que se formasse uma comissão de estudos para que fossem analisadas as idéias

próprias de Schoenstatt.

20

O então Bispo Auxiliar de Trévis, Bernhard Stein, realiza essa visitação e emite um

relatório dando seu parecer. Em um primeiro momento, ele afirma que não há problemas de

fundo teológico e doutrinal na condução da Comunidade das Irmãs de Maria e,

conseqüentemente, de toda a Obra de Schoenstatt. Os problemas são, sobretudo, de ordem

pedagógica, especialmente aqueles relacionados à vinculação entre as Irmãs e o Diretor

Espiritual do Instituto, ou seja, o próprio Pe. José Kentenich. O Bispo Auxiliar vê o risco de

massificação e também o perigo de que o vínculo que surge com o fundador possa

desembocar em graves situações de repressão pessoal e coação da liberdade.

A esse relatório responde o Pe. José Kentenich com uma longa carta escrita, no Chile,

na Argentina e no Brasil. Nessa carta, o fundador de Schoenstatt afirma que justamente o

problema apontado pelo Visitador é sua contribuição mais própria e original para a Pedagogia

da Religião: o vínculo pessoal. O caso chegou rapidamente a Roma, não passando pela

Sagrada Congregação para os Religiosos, mas chegando direto ao Santo Ofício.

Em 1951, foi declarada uma visitação apostólica a Schoenstatt levada a cabo por

Sebastian Tromp, sj, teólogo holandês e assessor do Cardeal Alfredo Ottaviani, prefeito do

Santo Ofício. O resultado da segunda visitação foi a destituição do Pe. José Kentenich de

todos os seus cargos relacionados com a Obra de Schoenstatt, especialmente seu cargo de

Diretor Espiritual das Irmãs de Maria de Schoenstatt, e o seu envio a Milwaukee/ WI, Estados

Unidos, onde permaneceu por mais de 13 anos.

Não se acreditava que o fundador poderia voltar a Schoenstatt. Entretanto, já em um

contexto bastante mais aberto e de diálogo, marcado, sobretudo, pelo Concílio Vaticano II, o

Pe. José Kentenich é chamado a Roma no dia 13 de setembro de 1965. Em sua estada na

21

Cidade Eterna, teve a oportunidade de conversar com vários membros da Hierarquia católica;

inclusive, pôde ter uma audiência com o Papa Paulo VI. Já não tendo mais proibições de

manter contatos com os membros da Obra de Schoenstatt, o fundador regressa à Alemanha,

no dia 24 de dezembro de 1965. Em seus últimos anos de vida, dita vários cursos de retiro e

também alguns cursos de formação para sacerdotes. No dia 15 de setembro de 1965, falece

após a celebração da Eucaristia, em Schoenstatt. Seu processo de beatificação foi aberto

solenemente no dia 10 de fevereiro de 1975, pelo agora Bispo Titular de Trévis, Bernhard

Stein18.

2.2. A obra e seu contexto

Como já se mencionou, o trabalho do Pe. José Kentenich pode ser caracterizado como

uma atividade pedagógica, cuja meta principal é o crescimento de um ser humano

profundamente vinculado a Deus e, ao mesmo tempo, profundamente vinculado às suas raízes

humanas. Como fundador de seis Institutos Seculares e de um Movimento Apostólico, é de se

esperar que tenha não simplesmente ditado muitas conferências e cursos, como também tenha

produzido diversos escritos.

A obra literária que nasce de sua práxis pastoral-pedagógico é bastante ampla. Muito

já se publicou e ainda há muito para ser revisado e publicado, sendo a grande maioria ainda

no idioma original do autor, o Alemão19. Dentre os diversos escritos mencionados, encontra-

se uma variedade grande de gêneros literários. Entre os mais importantes, podem ser citados:

os cursos pedagógicos, os retiros espirituais, os cursos de formação para consagrados e

sacerdotes, as cartas e algumas reflexões escritas de punho e letra pelo autor, nas quais o autor

18 Cf. KING, H., SCHMIEDL, et. al., Op. cit., p. 191-196. 19 Cf. VAUTIER, P., Kurze Einleitung in die Texte P. Kentenichs, Manuskript, Münster/ West., 1983, p. 5-10.

22

tinha a oportunidade de esclarecer e aprofundar algum aspecto especial da espiritualidade de

Schoenstatt.

Como foi indicado, somente alguns desses escritos são de punho e letra do autor. Na

sua maioria, são anotações e gravações de suas conferências e cursos, que posteriormente

foram transcritos e publicados como livros ou brochuras.

2.2.1. O contexto amplo da obra

Entre os cursos pedagógicos ditados pelo Pe. José Kentenich encontra-se a obra Dass

neue Menschen werden, curso ditado em 1951 para um grupo de educadores (professoras,

agentes de pastoral, sacerdotes). O gênero literário de Dass neue Menschen werden pertence

ao mesmo dos demais cursos pedagógicos ditados pelo autor.

O período durante o qual o Pe. José Kentenich mais ministrou cursos pedagógicos, vai

de 1924 a 1938, que coincide com a ascensão de A. Hitler ao poder alemão e antes do início

da II Guerra Mundial. Pelas próprias dificuldades que o catolicismo encontrou nesse período,

mas especialmente pelas dificuldades que o ser humano encontrava ante um governo ditatorial

e massificador, entende-se que o trabalho de um fundador católico tenha se intensificado.

Atualmente, se designam esses cursos como cursos pedagógicos. No entanto, na época

em que foram ditados, tornaram-se conhecidos como cursos para diretores espirituais

(Seelenführerkurse). Os cursos ditados no período são:

1924 – 1º Curso para diretores espirituais: Direção espiritual em peral (Seelenführung

allgemein);

1925 – 2º Curso para diretores espirituais: Paternidade (Väterlichkeit);

23

1926 – 3º Curso para diretores espirituais: Psicologia juvenil (Jugendpsychologie);

1927 – 4º Curso para diretores espirituais: Mística (Mystik);

1928 – 5º Curso para diretores espirituais: Problemática sexual (Sexualproblem);

1929 – 6º Curso para diretores espirituais: Pergunta social (Soziale Frage);

1930 – Curso para diretores espirituais: Pergunta social – repetição (Sozial Frage –

Wiederholung);

1931 – 7º Curso para diretores espirituais: Princípios gerais de uma ascética juvenil

moderna (Allgemeine Prinzipienlehre einer modernen Jugendaszese);

1932 – 8º Curso para diretores espirituais: Princípios especiais de uma ascética juvenil

moderna (Spezielle Prinzipienlehre einer modernen Jugendaszese);

1933 – 9º Curso para diretores espirituais: Pedagogia matrimonial mariana

(Marianische Ehepädagogik);

1934 – Curso para diretores espirituais: Educação mariana (Marianische Erziehung);

1938 – 10º Curso para diretores espirituais: Princípios gerais de uma pastoral atual

(Allgemeine Prinzipienlehre einer neuzeitlichen Seelsorge).

No período do pós-Guerra este tipo de curso adquiriu o nome, que os caracteriza hoje:

cursos pedagógicos. Pertencem ao período pós-Guerra os seguintes cursos:

1950 – Curso pedagógico: Fundamentos de uma pedagogia atual para o educador

católico (Grundriss einer neuzeitlichen Pädagogik für den katholischen Erzieher);

1951 – Curso pedagógico: Que se faça o homem novo (Dass neue Menschen werden).

O fundador de Schoenstatt tinha pensado que esses cursos deveriam ser apresentados,

primeiramente, a sacerdotes e religiosos. Com o tempo, todavia, foram ganhando um público

mais amplo: professores, agentes de pastoral, líderes católicos, todos relacionados, de alguma

24

forma, à educação católica, uma vez que os temas desenvolvidos pelo autor estavam

diretamente relacionados à Pedagogia religiosa.

Não há de se esperar que os cursos sejam uma apresentação sistemática de uma nova

proposta pedagógica. A mesma está presente, contudo, apresentada de uma forma não

sistemática. A origem dos textos, como já se mencionou anteriormente, é a transcrição de

conferências ditadas pelo autor. A linguagem, portanto, é coloquial e, muitas vezes, a linha

temática sofre mudanças de perspectiva, sem maiores explicações. Estas, à primeira vista,

parecem ser aleatórias; entretanto, respondem a questionamentos apresentados pelos

participantes ao autor durante o andamento do curso.

Embora não tenha tido a preocupação de, em um só curso, apresentar um sistema

pedagógico completo, em todos os cursos citados o autor pôde elaborar aspectos de sua teoria

pedagógica, sobretudo, suas dimensões mais relevantes: a teoria psicológica dos vínculos, em

base a uma visão orgânica da realidade em contraposição a uma visão mecanicista e a

Pedagogia do Ideal20.

2.2.2. O contexto imediato da obra

A II Guerra Mundial significou um grande corte na vida da Europa e de todo o mundo.

A Obra de Schoenstatt, que até a guerra tinha como foco central de expansão os países de

idioma alemão (especialmente Alemanha e Suíça), também se viu profundamente marcada

por esse corte. Ao contrário de outros, Schoenstatt foi um dos poucos movimentos eclesiais

20 Ibidem, p. 40.

25

alemães que não sucumbiu durante o tempo do Nazismo, vivenciando, inclusive, um grande

crescimento interior provocado pela perseguição e até pela prisão de seu fundador.

Contudo, como o próprio fundador indicou, a possibilidade de sobrevivência veio

unida a uma mudança radical de estratégia. A partir de 1935, a Obra de Schoenstatt deixou de

lado suas aparências externas para buscar um maior crescimento na profundidade de vida

interior. A consciência de que se tratava de uma obra divina e não simplesmente humana foi

ganhando força durante esse período.

Para o Pe. José Kentenich, esses anos são a confirmação divina de que ele possuía a

tarefa de impulsionar toda a Obra de Schoenstatt ao redor do mundo e, uma vez vencidas as

dificuldades impostas pela Guerra, retomar uma estratégia pedagógica agressiva para a

formação de círculo de lideranças para a Igreja e a sociedade.

O desastre ocorrido na Alemanha é visto pelo fundador como uma oportunidade: tudo

estava em ruínas, portanto era a oportunidade de edificar uma nova ordem social cristã. A

dignidade humana foi profundamente desprezada pelo Nazismo, daí o esforço por uma nova

Antropologia cristã e a apresentação da imagem católica do ser humano (das katholische

Menschenbild). A ditadura tinha reinado e a liberdade tinha sido reprimida, portanto a

necessidade de anunciar “um ser humano livre”. Todo esse empenho não poderia prosperar,

na visão do Pe. José Kentenich, sem a ajuda da devoção mariana.

26

Considerando o reconhecimento canônico do Instituto Secular das Irmãs de Maria de

Schoenstatt em 194721, o fundador viu a possibilidade de uma aproximação à autoridade

eclesiástica e um possível reconhecimento de todo o sistema espiritual-pedagógico de

Schoenstatt. Todavia, em 1949 surge a disputa com o Bispado de Trévis, como já se

mencionou, o que conduziu à visitação apostólica e também ao envio do fundador a

Milwaukee/ WI, Estados Unidos. O impulso, que surgiu com a vitória interior da perseguição

e das misérias da Guerra, foi freado e a Obra de Schoenstatt volta a uma situação clandestina,

já não por força da autoridade política, mas sim por força da autoridade eclesiástica.

Antes de ser enviado aos Estados Unidos, o autor ainda tem a possibilidade de

retomar, em duas ocasiões, os cursos para diretores espirituais, agora chamados de cursos

pedagógicos: em 1950, dita o curso pedagógico Grundriss einer neuzeitlichen Pädagogik für

den katholische Erzieher e, em 1951, dita o curso pedagógico Dass neue Menschen werden –

eine pädagogische Religionspsychologie.

2.2.2.1. O curso pedagógico Dass neue Menschen werden

Esse curso pedagógico é tido por alguns estudiosos de Kentenich como um dos textos

centrais para a compreensão de seu sistema pedagógico22. No entanto, não pode ser encarado

simplesmente como um texto de fácil acesso e compreensão imediata.

21 Cf. MONNERJAHN, E., Op. cit., p. 179. 22 Os estudiosos do pensamento do Pe. José Kentenich destacam, juntamente com Dass neue Menschen werden, os seguintes cursos pedagógicos: Ethos und Ideal in der Erziehung, Wege zur Persönlichkeitsbildung, 1. Edição, Vallendar am Rhein: Schönstatt Verlag, 1972; Educación Mariana para el hombre de hoy, 1ª Edição, Buenos Aires: Ed. Patris, 1990; Grundriss einer neuzeitlichen Pädagogik für den katholische Erzieher, 1. Edição, Vallendar am Rhein: Schönstatt Verlag, 1971.

27

A publicação alemã do texto traz o seguinte título: Dass neue Menschen werden, eine

pädagogische Religionspsychologie23. Pode-se notar, pelo próprio título, que o curso se

orienta aos fundamentos psicológicos de uma Pedagogia de cunho religioso. É o texto que

melhor apresenta os princípios psicológicos do autor e, portanto, que melhor fundamenta seu

sistema pedagógico.

Trata-se, conforme apresenta o autor, de princípios claramente orientados por sua

própria experiência. Por meio de quatro pilares da educação (capacidade de vivência,

comunidade, pensar claro e transmissão de valores em uma vinculação equilibrada com um

modelo) e da categoria Heimat (lar), que nesse texto é amplamente trabalhada, o conceito

organismo de vinculações (Bindungsorganismus) é apresentado de uma forma

pormenorizada24.

Logo no começo do curso, o autor realiza uma análise do tempo em moldes similares à

análise realizada em cursos anteriores. Em seguida, o autor apresenta a vida de Teresa de

Lisieux como um exemplo do cultivo da capacidade de vivências. A contextualização desse

exemplo é realizada na análise do enfraquecimento da psique do ser humano moderno.

Seguem-se novamente textos sobre as vivências maternas e paternas, como já se havia

trabalhado com o exemplo da carmelita de Lisieux. Os próximos temas abordados são

reflexões sobre os caminhos de cura para as doenças da alma: renovação da vida familiar,

vivências posteriores (Nacherlebnisse), vivências por contraste (Gegenerlebnisse), vivências

23 Ainda que a publicação alemã tenha sido elaborada a partir de uma transcrição do curso pedagógico, há outras transcrições do mesmo curso pedagógico que são conservadas como manuscritos. Cf. NIEHAUS, M., A systematic study of Fr. Joseph Kentenich’s Pädagogische Tagung 1951, Dissertação (Mestrado em Teologia) Marquette University, Milwaukee, 2003, p. 14 -16. 24 Cf. VAUTIER, P., Op. cit., p. 84-85.

28

por complementação (Ergänzungserlebnisse) e o caminho mariano, todos eles sustentados

pelos quatro pilares da educação.

As reflexões sobre a Heimat (lar) já estavam presentes nos textos do autor desde os

anos trinta25; contudo seu relacionamento com o organismo de vinculações

(Bindungsorganismus) é a novidade desse curso pedagógico. Além do mais, um elemento

central para o sistema pedagógico de Schoenstatt é trabalhado no curso: o amor à Heimat é a

forma fundamental de um amor a si mesmo sadio, natural e orgânico26. E ainda, no discurso

sobre a Heimat, há formulações importantes sobre a piedade popular.

Ao concluir o curso, o autor trabalha novamente a devoção mariana. As perspectivas

aqui trabalhadas são a compreensão mariana da doutrina tomista das causas segundas e o

significado presente e futuro da devoção mariana, sobretudo, dentro da piedade popular e da

formação da fé do povo, temas que já tinham sido tratados em outros cursos pedagógicos.

Muitas vezes o texto parece não seguir um fio condutor coerente. Contudo, o método

desenvolvido pelo autor durante o curso se caracteriza pelo contato próximo com o interesse

de seus ouvintes, cujos problemas tanto vitais como profissionais eram captados por ele e

respondidos a partir de sua própria fé e experiência pedagógica. Daí não se pode dizer que o

texto responda a um esquema de lógica linear, no qual um tópico é tratado por vez. O

esquema do autor caracteriza-se mais por uma lógica espiral. Primeiro, o autor esclarece

alguns termos, descrevendo a realidade ontológica por ele apresentada. Em segundo lugar,

esses termos são contrastados com a realidade analisada. Em terceiro lugar, o autor sugere

25 Cf. KENTENICH, J., Schönstatt, meine Heimat, Manuskript, Vallendar am Rhein: 1998. 26 Heimatliebe ist die Grundform einer gesunden, naturhaften, organischen Selbstliebe. KENTENICH, J., Dass neue Menschen werden, Op. cit., p. 200.

29

alguns passos práticos que se conectam com o quarto e último momento que inclui uma

consideração mariana. Assim, o texto pode ser organizado tematicamente da seguinte forma:

os quatro pilares da educação (vivência religiosa, comunidade, apoio em um pensar claro e

transmissão de valores) e Heimat (lar)27.

2.3. Os temas centrais da obra “Dass neue Menschen werden”

A obra Dass neue Menschen werden é considerada um dos textos centrais para a

compreensão do sistema pedagógico de Schoenstatt, como já se mencionou. Esse sistema

pedagógico surgiu a partir da observação da vida e das necessidades espirituais de pessoas

concretas que estavam em contato com o Pe. José Kentenich, sendo espiritualmente

acompanhadas por ele ou simplesmente estando em uma posição de colaborador de sua

fundação.

Essa observação da vida e também os intentos realizados pelo autor de chegar a

respostas para inquietações a ele apresentadas o conduziram à formulação de conceitos, que,

por sua vez, serviram de base para sua práxis pastoral-pedagógica. Entre os conceitos

formulados pelo autor, encontram-se aqueles que receberam um destaque especial na obra

estudada. Evidentemente, que ao citar os temas centrais de Dass neue Menschen werden, é

necessário fazer referências a outros conceitos do sistema pedagógico de Schoenstatt.

27 Cf. NIEHAUS, M., Op. cit., p. 16.

30

2.3.1. Os quatro pilares da educação religiosa

2.3.1.1 Primeiro pilar: a vivência religiosa (das religiöse Erlebnis)

Segundo o pensamento do Pe. José Kentenich, como apresenta M. E. Frömbgen28, a

vivência nasce do interesse individual e interno que alguém possui em relação a um processo

atual do acontecer histórico, sendo que, na maior parte das vezes, não pode ser claramente

reconhecido desde sua objetividade, pois aflora a partir de estratos inconscientes e

subconscientes. Portanto, esse interesse somente pode ser deduzido a partir de algumas

formas de comportamento (linguagem corporal, ações externas, descrições) e símbolos.

Trata-se, portanto, de um conteúdo relativamente completo do que se experimentou na

realidade, tendo partes de densidade e qualidade especialmente caracterizadas que, como tais,

estão disponíveis para a memória, ora conscientes, ora inconscientes. Além do mais, por uma

vivência, o indivíduo é conduzido à percepção de sua totalidade: em primeiro lugar, tendo sua

interioridade captada, como já foi mencionado, e, em segundo lugar, tendo suas ações

vinculadas ao exterior tocadas pelo processo vivencial (intuição, percepção, juízo,

sentimentos, vinculação local e pessoal). Essas ações interiores e exteriores se associam com

lembranças vitais anteriores e, pelo fundamento de vivências anteriores, são, qualitativa e

quantitativamente, alteradas.

O autor concede em suas obras, sobretudo na obra Dass neue Menschen werden29,

especial importância à vivência religiosa e também às vivências prévias do mundo religioso

(família, pai, mãe, comunidade, lar), como ele assim as denomina. Essa consideração possui

grande relevância para sua Pedagogia, assim como para sua compreensão da Psicologia

28 Cf. KING, H., SCHMIEDL, et. al., Op. cit., p. 71-72. 29 Cf. KENTENICH, J., Dass neue Menschen werden, Op. cit., p. 36-69

31

religiosa do ser humano. Deduz-se que a essência da vivência religiosa é a captação e

elaboração das verdades religiosas a partir do núcleo vital-afetivo da pessoa (Gemüt).

Desde tal compreensão, alguns princípios da vivência religiosa podem ser expostos:

- a vivência tem uma função totalizadora e integradora; essa função depende do

conhecimento da verdade religiosa, de uma correspondente entrega espiritual da vontade a

essa verdade e de uma compreensão e penetração desta mesma verdade no núcleo vital-

afetivo da pessoa;

- a vivência religiosa toca o mais profundo da alma humana com seu poder criativo e

seu potencial afetivo;

- a vivência religiosa supõe vivências prévias correspondentes no plano natural; essas

vivências prévias podem condicionar a vivência religiosa em si e possuem especial

significado psicológico, seja no sentido de um estímulo positivo ou de um peso negativo, para

a transferência da vivência do plano natural para o plano religioso. Nesse sentido, se

compreende porque a vivência é mais operativa que instruções racionais da fé, uma vez que

toca o núcleo vital-afetivo do ser humano, despertando suas forças inconscientes e

subconscientes.

O crescimento pessoal na fé, dado pela instrução racional, o consentimento da vontade

e a vida que nasce da própria fé, se torna dependente de vivências prévias, que podem ser

transferidas do plano natural ao plano religioso.

32

No contexto da Psicologia da fé, deve-se considerar mais, segundo o autor, a

capacidade ou incapacidade de vivência, a dimensão de profundidade ou superficialidade da

vivência do que a expressão intelectual, afetiva e vital da própria vivência. Nesse sentido,

como conclui sua apresentação sobre o primeiro pilar da educação católica, a piedade mariana

possui um grande potencial para o desenvolvimento da capacidade de vivências do ser

humano.

Insiste-se que o vínculo mariano desperta os estratos afetivos mais profundos do fiel,

elevando-o às demais dimensões da fé cristã. Assim como em diversas de suas obras, o Pe.

José Kentenich apresenta uma devoção mariana esclarecida em Dass neue Menschen werden,

isto é, uma devoção mariana profunda que capta o afeto humano, porém que, ao mesmo

tempo, está intimamente vinculada à pessoa de Jesus Cristo e também à Igreja.

2.3.1.2. Segundo pilar: a comunidade (die Gemeinschaft)

O autor, na obra estudada, apresenta como base da educação religiosa o vínculo

profundo à comunidade30. Ele encara a comunidade claramente como um processo de vida.

Nesse sentido, podem-se distinguir duas dinâmicas: a primeira que parte dos sujeitos que

constituem a comunidade e os conduz aos princípios objetivos (normas, regras) que

organizam a vida comunitária; e o segundo, o caminho inverso, que parte do aspecto objetivo

da comunidade chegando aos indivíduos e grupos que a constituem. Ambas dinâmicas se

implicam mutuamente, são necessárias e devem ser, em seu devido momento, observadas.

30 Ibidem, p. 111-126.

33

Um primeiro momento na configuração de uma comunidade é dado pela relação

existente entre compromisso do membro da comunidade (dependência da comunidade) e

autonomia do sujeito (liberdade, responsabilidade própria e iniciativa). Em sua compreensão

de comunidade, o Pe. José Kentenich quer acentuar ambos os aspectos, tanto que em seus

escritos muitas vezes se encontra a seguinte formulação: comunidade perfeita tendo como

base personalidades perfeitas (Vollkommene Gemeinschaft aufgrund vollkommener

Persönlichkeiten)31.

O ser humano referido pelo autor, nesse contexto, é aquele autônomo (selbtständig) e

capaz de agir por si mesmo (selbsttätig), cujo vínculo com a comunidade também terá tais

características. Essa relação dá significado à tolerância, ao sentido para a originalidade de

cada membro, assim como para as diversas capacidades que cada um traz para a comunidade.

Contudo, a comunidade não deve ser compreendida como uma justaposição de indivíduos; ela

é mais que a soma de seus indivíduos. A comunidade é um espaço que acolhe e oferece

segurança existencial, amparo (Geborgenheit) para seus membros, ao mesmo tempo em que

impõe exigências. O indivíduo não deve se perguntar constantemente o que a comunidade lhe

pode oferecer, mas sim o que ele pode oferecer à comunidade.

Um segundo momento na configuração da comunidade está relacionado à sua ética.

Aqui, o autor remarca constantemente dois valores centrais em sua proposta pastoral-

pedagógica: amor e responsabilidade. Tanto comunidade como personalidade são movidas

pela lei fundamental do amor.

31 Cf. KING, H., SCHMIEDL, et. al., Op. cit., p. 273-280.

34

A comunidade, ou a nova comunidade, como prefere designá-la o autor, é um ser no

outro, com o outro e para o outro misterioso, profundo e cheio de amor (ein geheimnisreich

tiefes, liebendes Ineinander, Miteinander und Füreinander). Essa concepção é contraposta a

um simplório e mecânico ser ao lado do outro (Nebeneinandersein). Muitas vezes, o Pe.

Kentenich usa a mesma tríade para designar o amor; logo, sua compreensão de comunidade é

também amor. O “ser no, com e para o outro” pode se constituir em uma relação esponsal,

paterno-filial, materno-filial, fraterna e de amizade.

Ainda dentro da ética da comunidade, se encontra um quarto aspecto na concepção de

comunidade do autor: a responsabilidade (die Verantwortung). Trata-se da criação de um

novo senso de responsabilidade que o indivíduo deve desenvolver. Essa responsabilidade está

intimamente ligada aos conceitos de autonomia (Sebstständigkeit) e da capacidade de agir por

si mesmo (Sebsttätigkeit), o que tira o peso das regras e do controle. Nesse sentido, o membro

da comunidade tem prontidão e capacidade para assumir responsabilidades, ainda que as

conseqüências das mesmas sejam muito elevadas, e também de atuar de acordo com a

responsabilidade assumida. O membro da comunidade deve ser reconhecido por sua

responsabilidade na hora do trabalho, da reflexão e das decisões tomadas.

Para o Pe. José Kentenich, como o indica H. King32, amor e responsabilidade sempre

estão vinculados em um contexto comunitário. Constituem os aspectos centrais da estrutura

ética de uma comunidade. Os demais aspectos (normas, leis, organização interna e externa)

são orientados e ordenados de acordo com esses dois aspectos centrais.

32 Cf. KING, H., Joseph Kentenich – Ein Durchblick in Texten: In Gemeinschaft seelisch verbunden (III. Band), 1ª Edição, Vallendar am Rhein: Patris Verlag , 2002, p. 217.

35

A devoção mariana recebe novamente um destaque especial dentro da reflexão do

autor. Ao considerar a importância do vínculo comunitário, como o segundo pilar da

educação, o Pe. José Kentenich insiste mais uma vez no vínculo mariano. Seu ponto de

partida é a importância afetiva que Maria tem na vida do fiel e a referência inconsciente feita

pelo mesmo à sua vivência da família natural: Deus é pai e Maria (e a Igreja) é mãe.

2.3.1.3. Terceiro pilar: um pensar claro (ein klares Denken)

O terceiro pilar posto pelo autor para a educação religiosa é o apoio em um pensar

claro33. Para sua correta compreensão, deve-se, entretanto, fazer uma ressalva. Pode-se intuir

que ao falar de apoio em um pensar claro, o autor esteja exclusivamente se referindo a um ato

intelectual; contudo, o apoio em um pensar claro busca a consistência da existência humana,

estabelece relações entre reflexão e vida.

A razão não aparece fora do processo de crescimento, mas integrada ao mesmo.

Dentro de um processo educativo, se acentua primeiramente a dimensão afetiva (vivências e

vínculo a uma comunidade); no entanto, a razão não deve, nem pode ser deixada de lado. Não

se trata de colocar razão e afetos em contraposição, mas, sim, em tensão. A maestria da

educação, como indica o autor, consiste em equilibrar a tensão razão-afeto.

A fundamentação dessa afirmação é dupla: por um lado está o sujeito da educação (o

educando) e por outro, o objeto da educação (a religião cristã). O sujeito da educação,

compreendido na perspectiva antropológico-tomista, participa da atividade espiritual do

Criador, por ser, ele mesmo, espírito. Essa participação exige que o ser humano encontre

33 Cf. KENTENICH, J., Dass neue Menschen werden, Op. cit., p. 127-137.

36

apoio espiritual na verdade, em um pensar claro, assim como encontra apoio afetivo em uma

outra pessoa.

O objeto da educação também exige apoio em um pensar claro. A religião cristã

forma, configura a vida do educando; ela procura propiciar, ao sujeito da educação,

referências de conduta para sua vida diária e familiar. Nesse sentido, pode se afirmar que a

religião tem um caráter normativo que estimula o ser humano em sua conduta ordinária. No

entanto, o Cristianismo não possui somente um caráter normativo, ele também é auto-

normativo por ser a portador da revelação divina. Sabe-se que a revelação divina é a auto-

manifestação de Deus ao ser humano; desse processo emerge a profissão de fé, verdade sobre

a qual o Cristianismo se constitui. Sendo assim, a religião cristã não somente manifesta um

pensar claro, mas ela também necessita desse pensar claro, dessa verdade para se constituir

como tal.

O apoio em um pensar claro, como apresenta E. Frömbgen, segue um método: a

associação verbo-verdade-valor (Wort-Wahrheit-Wert): o verbo deve estar como expressão da

verdade. O valor deve, ao mesmo tempo, ser identificado a partir da verdade, tanto o valor

objetivo como o subjetivo34.

Metodologicamente, deve-se ter presente:

- o verbo tornar-se-á um complexo predominante de verdades;

- o complexo predominante de verdades tornar-se-á um complexo predominante de

valores;

34 Das Wort muss als Ausdruck einer Wahrheit dastehen. Aus der Wahrheit muss gleichzeitig der Wert herausgearbeitet werden, sowohl der objektive als auch subjetive Wert. KING, H., SCHMIEDL, et. al., Op. cit., p. 169-174.

37

- o complexo predominante de valores não deve apenas tornar-se predominante desde

a perspectiva objetiva, mas, sobretudo, desde a perspectiva subjetiva.

Paralelo ao conhecimento intelectual de valores (dado pelo verbo e pela verdade),

devem-se criar o impulso e a motivação subjetiva para os mesmos, abrindo o educando à

recepção e à realização do valor. Esse processo é facilitado, quando junto ao “aprendizado por

conhecimento”, se dá o “aprendizado por modelos”, não somente no sentido de citar modelos

como uma espécie de indicação, mas, sobretudo, no esforço por identificar o processo de

integração de valores na vida do modelo e realizar esse mesmo processo, originalmente, na

vida do educando. Com essa reflexão, o autor dá cabida ao quarto e último pilar da educação

religiosa: a transmissão de valores.

2.3.1.4. Quarto pilar: a transmissão de valores (die

Wertvermittlung)

Seguindo sua apresentação35, o Pe. José Kentenich se detém na transmissão de valores

proporcionada pela convivência com modelos, com casos pré-claros. Educação equivale a

comunicação de valores, de vida; portanto, a educação não toca somente alguns aspectos da

vida do educando, mas sua personalidade completa. O educador possui, dentro deste processo

descrito, uma especial relevância, pois o educando possui nele uma referência viva, e uma

especial exigência, uma vez que o educando formará parte de seu séqüito.

O seguimento é inevitável dentro do processo descrito: o educando seguirá seu

educador porque encontra nele um modelo vivo, um caso pré-claro dos valores que o

35 Cf. KENTENICH, J., Dass neue Menschen werden, Op. cit., p. 138-148.

38

estimulam a crescer. O próprio Pe. José Kentenich se questiona se essa acentuação do

seguimento estimula ou inibe o educando.

A resposta apresentada está no próprio conceito de educação: servir

desinteressadamente a originalidade alheia (Selbstlos fremder Eigenart dienen). Os valores

que o educando encontra no educador estimulam seu crescimento, favorecem sua educação. O

educador, portanto, se coloca a serviço do educando, não procura anular sua originalidade,

mas está a seu serviço.

Contempla-se um momento de identificação, quase absoluta, entre o educando e o

educador, aquele não é capaz de distinguir o que é propriamente seu e o que a esse pertence.

Não se deve, contudo, acentuar rapidamente a distinção entre educando e educador; essa

surgirá espontaneamente uma vez que o educando experimente a decepção com seu educador.

A decepção (Enttäuschung) permite que ao educando distinguir-se de seu educador;

entretanto, não há separação, pois percebe, ao mesmo tempo, que captou originalmente uma

série de valores de seu educador.

Ao descrever esse processo, ressalta-se a importância da relação educador-educando

dentro da educação, a identificação entre ambos e sua distinção, proporcionada pela decepção.

O educador não aparece simplesmente como aquele que induz o educando ao conhecimento

de valores, é, todavia, aquele que encarna os valores transmitidos e se torna um modelo para o

educando. Sua tarefa deve ser constantemente acompanhada de um esclarecimento sobre o

seu papel dentro do processo educacional, pois está a serviço da originalidade do outro.

39

Ademais, o educador se esforça por captar os valores almejados pelo educando e

torná-los próprios, de tal forma que ele seja um modelo não somente de seus próprios valores,

mas também daqueles valores que o educando quer encarnar. Nesse sentido, como é indicada

na obra, a tarefa de educador se torna muito exigente, porém fundamental porque não

havendo a transmissão viva de valores, estes nunca chegam ao núcleo vital-afetivo da pessoa

do educando36.

Finalmente, o vínculo mariano é novamente apresentado como primeira realização da

transmissão de valores. Insiste-se na importância afetiva do vínculo mariano e sua

potencialidade criativa sobre a alma humana. Maria é um modelo encarnado da redenção, dos

valores da redenção; portanto, ao contemplá-la, o educando se sente estimulado a captar

valores da redenção segundo sua própria originalidade.

2.3.2. A vivência Heimat (lar)

Esse conceito Heimat (lar)37 é usado pelo autor para denotar lugares, círculos pessoais,

assim como ideais, onde o ser humano se sente abrigado e também onde ele pode vivenciar o

amparo (Geborgenheit) que Deus lhe oferece. Portanto, segundo o Pe. José Kentenich,

Heimat é o conceito fundamental para os vínculos locais, pessoais e espirituais do ser

humano.

36 Cf. RÍOS, F., La experiencia religiosa en Dass neue Menschen werden de José Kentenich, Dissertação (Mestrado em Teologia) Pontifícia Universidade Católica do Chile, 2003, p. 89-95. 37 Comumente, se traduz ao Português Heimat como lar. No entanto, o vocábulo português não abarca todo o significo do vocábulo alemão. A voz Heimat do Deutsches Wörterbuch define Heimat como o lugar onde se sente em casa; lugar de nascimento e moradia; pátria (der Ort, an dem man zu Hause ist; Geburts-, Wohnort; Vaterland). Por esta razão, tomar-se-á a opção de manter o vocábulo em Alemão, idioma original da obra, para não restringir o significado do mesmo. Cf. WAHRIG, G., Deutsches Wörterbuch, 2ª Edição, Berlim: Lexikon-Verlag, 1977, p. 1738.

40

Esse conceito foi desenvolvido pelo autor durante em alusão a L. Bopp38 e J.

Westermayr39. O contexto no qual o conceito é elaborado é a primeira metade do século XX,

quando a força da industrialização fez com que sistemas sociais de referência, como o

povoado (Dorfgemeinschaft), perdessem seu sentido, dando espaço para o crescimento dos

centros urbanos industrializados. Esses sistemas sociais de referência carregavam consigo,

também, a importância da religiosidade. Por isso, muitas pessoas, como indica o autor,

perderam sua segurança religiosa ou já nem mais se perguntavam pela possibilidade de uma

relação religiosa.

A perda do lar, assim como a análise da situação na qual o ser humano se encontrava

fora de suas raízes, são temas comuns nos escritos do autor e entendidos como o grande

desafio pedagógico da cultura de seu tempo:

A falta de lar é falta de caráter, falta de moral, falta de alma, falta de religião. Por isso, mais uma vez: nós devemos considerar o problema do lar como problema central da cultura atual; devemos considerar a tarefa de oferecer lar como o central de todo nosso trabalho pedagógico.40

Entretanto, o autor não aponta a solução para esse problema em uma simples

restauração dos sistemas sociais de referência, mas sim na aproximação da pessoa ao

organismo de vinculações (Bindungsorganismus): quanto mais o ser humano, por sua própria

decisão, se vincula a lugares, pessoas e idéias, e neles também a Deus mesmo, mais ele

vivenciará sua Heimat próprio e cativo.

38 Cf. BOPP, L., Christlicher Edelmut zur Ungeborgenheit, Buch der liturgische Opfer- und Gefahrenweihe, 1ª Edição, Freiburg i. Br: Herder, 1937. 39 Cf. WESTERMAYR, J., Wege zu Kind und Volk – Beiträge zurPsychologie der katholischen Religionspädagogik und Seelsorge, 3ª Edição, Regensburg: Gregorius Verlag, 1948. 40 Heimatlosigkeit ist Charakterlosigkeit, ist Sittenlosigkeit, ist Seelenlosigkeit, ist Religionslosigkeit! Deswegen noch einmal: Wir müssen das Heimatproblem als das Kernproblem, das Zentralproblem der heutigen Kultur, Beheimatung als das Kernstück unserer ganzen pädagogischen Tätigkeit auffasen. KENTENICH, J., Dass neue Menschen werden , Op. cit., p. 174-175.

41

2.3.2.1. Dimensões da Heimat

O autor distingue um elemento físico, um elemento psíquico, um elemento espiritual

(geistig) e um elemento sobrenatural-religioso na vivência da Heimat. O elemento ou

momento físico é vivenciado em circunstâncias, nas quais uma pessoa experimenta o

sentimento de amparo (Geborgenheit) por seu contato com um determinado lugar, com um

ambiente de confiança e também com pessoas.

Compreende o autor o elemento psíquico da vivência Heimat como os vínculos

afetivos que nascem das circunstâncias indicadas anteriormente. Esses vínculos afetivos

brotam da memória de vivências tidas em determinados lugares e com determinadas pessoas.

Como elemento espiritual (geistig), se apresenta o mundo de idéias, pensamentos e valores ao

qual uma pessoa se vincula e ali vivencia a Heimat. Determinados lugares e ambientes, assim

como pessoas podem ser importantes para a lembrança desse mundo espiritual. O elemento

sobrenatural-religioso é o amparo definitivo que o ser humano encontra em Deus. Essa

vivência da Heimat eterna é designada por ele como lar original (Urheimat) ou lar perfeito

(vollkommene Heimat).

O Pe. José Kentenich indica uma ordem a esses quatro elementos da vivência da

Heimat: as circunstâncias reais, que representam o elemento ou momento físico da vivência,

devem ser expressão, meio e seguro dos elementos psíquico, espiritual e sobrenatural-

religioso. O lugar concreto, o ambiente concreto é um símbolo das idéias, dos pensamentos da

vivência espiritual (geistig) da Heimat e também funciona como memória da mesma.

Completando a reflexão, o vínculo a pessoas constitui uma forma especial de vivenciar a

presença e o amor de Deus e, ao mesmo tempo, de encontrar Heimat n’Ele.

42

Por trás dessa ordem se encontra a doutrina tomista das causas segundas. Como o

autor afirma, somente em Deus o ser humano pode encontrar o amparo (Geborgenheit) que

busca e necessita. A Urheimat é mediada por causas segundas criadas, pelas quais também se

vivencia e se encontra Heimat (beheimatet zu werden). É igualmente válido afirmar que na

medida em que o ser humano encontra e vivencia a Heimat, mediante o vínculo com lugares,

ambientes e pessoas, pode elevar seu espírito à Heimat espiritual (geistig) e, ao mesmo tempo,

encontrar a Urheimat em Deus mesmo. Essa última afirmação possui especial valor

pedagógico, uma vez que, ao conduzir uma pessoa à vivência profunda do elemento físico da

Heimat, já se conduz à vivência dos demais elementos, especialmente do elemento

sobrenatural-religioso, meta do sistema pedagógico de Schoenstatt41.

2.3.2.2. Três definições da Heimat utilizadas na obra Dass neue

Menschen werden

O Pe. José Kentenich usa três definições da Heimat na obra Dass neue Menschen

werden: uma popular, uma filosófica e uma teológica.

Desde uma perspectiva popular, lar e família possuem o mesmo significado. Aí onde pai e mãe e irmãos estão, aí está o lar. 42

Como é remarcado, trata-se de uma definição popular; contudo, deve ser seriamente

considerada. A vivência da família e do lar constitui a base de muitas outras vivências para o

ser humano. Indica-se o processo que o marca profundamente: a busca da sua própria

identidade por meio daqueles com os quais compartilha seu dia-a-dia. Em determinado

momento da trajetória de vida, a pessoa rechaça tudo o que viveu. No entanto, percebe que

41 Cf. KING, H., SCHMIEDL, et. al., Op. cit., p. 153-155. 42 Volkstümlich gesehen, Heimat ist gleichbedeutend mit der Familie. Wo Vater und Mutter und Geschwister sind, da ist Heimat. KENTENICH, J., Dass neue Menschen werden, Op. cit., p. 169.

43

para chegar a ser o que realmente está chamada a ser, deve re-identificar-se com o mais básico

e fundamental que possui, isto é, sua vivência familiar e de lar. Ao mesmo tempo, nessa

vivência o ser humano percebe que é um ser relacional, isto é, que existe somente na medida

em que está posto em relação ao outro. Na experiência da alteridade, reconhece sua própria

identidade.

A segunda definição é tomada de L. Bopp:

Lar é a parte de nosso espaço vital físico, psicológico e espiritual onde recebemos e oferecemos abrigo; junto a isto, também é símbolo para o abrigo em Deus. 43

O Pe. José Kentenich e L. Bopp44 assumem esta definição como filosófica. Um outro

aspecto da dinâmica existencial do ser humano é posto em evidência nessa definição: a

dinâmica dar-receber amparo (Geborgenheit). Além do mais, Heimat é definido como espaço

vital, um âmbito onde a vida nasce e cresce por meio da oferta de amparo. Ao usar este termo,

o autor dá um passo rumo ao elemento espiritual da vivência da Heimat, pois vai além do fato

de se sentir seguro fisicamente. O desafio pedagógico, contudo, permanece. Pode-se entender

que o elemento ou momento físico da vivência da Heimat possa constituir um empecilho para

vivenciá-la espiritualmente (geistig); entretanto, como já se explicou, o elemento físico

constitui expressão, meio e seguro dos demais elementos da vivência.

A definição descrita como teológica afirma:

43 Heimat ist jener Teil unseres physisch-seelisch-geistigen Lebensraumes, in dem wir Geborgenheit empfangen und bieten, der aber auch gleichzeitig uns als Symbol gilt für die Geborgenheit in Gott. KENTENICH, J., Dass neue Menschen werden, Op. cit., p. 174-175. 44 BOPP, L., Op. cit., p. 221.

44

Lar é o lugar no qual Deus nos envia desde a eternidade a esta temporalidade; é também o lugar desde o qual nós nos dirigimos à eternidade desde esta temporalidade.45

A dupla temporalidade e eternidade é apreciada pelo autor como uma tensão; não se

trata simplesmente de eternidade justaposta à temporalidade, mas, sim, de eternidade e

temporalidade, ambas se compenetrando e se exigindo mutuamente a partir da existência

humana. O ser humano é compreendido como ser temporal que possui uma vocação eterna. A

vivência da Heimat permite que, na temporalidade, se experimente a eternidade e também

que, a partir da temporalidade, o ser humano possa se elevar à sua vocação eterna.

3. Hermenêutica da obra Dass neue Menschen werden

Retomando o método de investigação proposto e já tendo apresentado o autor, a obra,

seu contextos e conteúdos centrais, contempla-se Dass neue Menschen werden como um

símbolo. O símbolo dá que pensar46, o símbolo permite e exige interpretação.

Contudo, como o leitor pode perceber, o símbolo não possui somente um significado.

Nesse sentido, a intenção original é salvaguardada: não se quer atribuir somente uma forma de

ler, um significado a Dass neue Menschen werden, mas a partir da leitura da obra pensar,

imaginar.

Esse processo somente é possível quando o leitor se afasta do significado real da obra

e a contempla como um símbolo. Certo distanciamento é necessário para que o leitor conheça

45 Heimat ist der Ort, an den der liebe Gott uns aus der Ewigkeit in diese Zeitlichkeit entlassen; ist aber auch der Ort, von dem aus wir aus dieser Zeitlichkeit geistig in die Ewigkeit zurückkehren. KENTENICH, J., Dass neue Menschen werden, p, 179. 46 Cf. MANZATTO, A., Op. cit., p. 37.

45

a obra; não se trata, porém, de um distanciamento total, uma vez que não conduz à separação.

Nesse ponto, P. Ricoeur se aproxima de H. J. Gadamer, que indicava que para conhecer algo é

necessário entrar em uma corrente da tradição do pensamento; surge a proximidade entre o

sujeito e o objeto conhecido; o significado nasce dentro de uma tradição de pensamento47.

Ao realizar esse processo, entretanto, surge espontaneamente uma pergunta: qual é a

melhor interpretação da obra Dass neue Menschen werden? A resposta é aquela interpretação,

aquela atribuição de significado que explica mais completamente a mesma.

3.1. A leitura da obra Dass neue Menschen werden realizada por

um teólogo

A reflexão teológica não é a preocupação central da obra, como já foi indicado. O

autor, o Pe. José Kentenich, se esforçou em apresentar um esquema pedagógico

fundamentado psicologicamente, cujo fim é a educação religiosa do ser humano

contemporâneo a seu tempo. A partir dessa apresentação, o autor também apresenta uma

imagem própria de ser humano: o ser humano é um ser vinculado do ninho48. Esse “ninho” do

ser humano pertence, simultaneamente, à ordem natural e à ordem da graça. Por isso, sempre

que o autor se preocupa em apresentar um elemento de seu sistema pedagógico, considera o

ser humano como um ser natural, mas também como um ser agraciado.

Esta apresentação da relação natureza e graça por parte do Pe. José Kentenich, faz com

que o leitor teólogo de Dass neue Menschen werden se interesse pelo tema e procure saber

mais sobre o mesmo. Portanto, realizar-se-á no capítulo dois, desta dissertação, um estudo

47 Ibidem, p. 35. 48 Der Mensch ist ein nestgebundenes Wesen. KENTENICH, J., Dass neue Menschen werden, Op. cit., p. 185.

46

histórico-dogmático sobre a relação natureza e graça. Pode parecer que o mesmo não tenha

uma relação direta com a obra estudada. Contudo, como já se especificou, uma obra literária,

“um símbolo dá que pensar”, e o primeiro a ser pensado a partir dessa obra literária é a

problemática teológica em torno à relação natureza e graça.

É necessário, porém, estabelecer os limites da obra e também do pensamento do autor.

Há de se contemplar a importância de duas categorias para a elaboração da obra: a Piedade

Mariana e a vivência Heimat. A análise literária destas duas categorias permite a afirmação da

necessidade da integração da Psicologia no discurso teológico sistemático. De alguma forma,

essa integração se torna possível graças aos avanços feitos pela Teologia pós-conciliar,

especialmente no que se refere à problemática estudada.

Nesse sentido, o Concílio Vaticano II e os teólogos contemporâneos indicam a

superação da linguagem natural-sobrenatural e se centram muito mais na vida do ser humano

agraciado e sua relação com Jesus Cristo. Essa constatação exige que a problemática da

relação natureza e graça seja re-situada e re-pensada.

47

II. Segundo capítulo: a relação natureza e graça

1. Introdução

É conveniente iniciar esta reflexão afirmando que o estudo da relação entre natureza e

graça, ou entre o natural e o “sobrenatural” é um tema complexo, que toca diretamente a

própria constituição do ser humano e sua condição de “ser no mundo”49. Duas razões podem

ser citadas para indicar que se trata de um tema complexo: primeira, porque a relação natureza

e graça não se refere somente à teologização do fato de o ser humano ter sido criado à

imagem e semelhança de Deus, mas sim à problemática teológica do pecado e da justificação

e da graça; segunda, porque o estudo de natureza e graça, que teve sua origem na Alta

Escolástica, permanece como um dos grandes problemas doutrinais, o que pode ser visto,

sobretudo, na reflexão teológica do século XX.

Na Igreja dos primeiros séculos, o problema do ser humano é tratado a partir de sua

relação com o Mistério de Cristo. A própria concepção “ser criado à imagem e semelhança de

Deus” surge a partir da economia da salvação, especialmente da Encarnação da segunda

Pessoa da Santíssima Trindade e da conseqüente divinização de todo gênero humano.

Contudo, com o passar dos séculos o ser humano passou a ser considerado em si mesmo,

deixando em um segundo plano sua relação com Deus e com Cristo. Ainda mais, a relação

com Cristo passou a ser interpretada a partir do pecado, do qual Cristo redime, e da graça, que

Ele concede.

49 Cf. GS 22.

48

A inserção do ser humano no Mistério de Cristo é um dom, uma graça, no sentido

mais estrito da palavra. Porém, ao mesmo tempo, ao entrar em Cristo, o ser humano penetra

no mais profundo de sua própria constituição. Compreender melhor a relação entre a condição

criatural do ser humano e a perfeição recebida pela Redenção de Cristo, a relação entre o dom

que Deus concedeu à sua própria existência e dom ainda maior de sua vocação divina ao

longo da história da Teologia, é o que se exporá nas páginas seguintes.

2. A relação natureza e graça de Agostinho de Hipona a Tomás de

Aquino

Esse problema não foi objeto da reflexão dos teólogos dos primeiros séculos do

cristianismo50. Contudo, verifica-se no pensamento de alguns Padres a tensão entre a

constituição do ser humano e o caráter gratuito e transcendente da perfeição para a qual é

chamado. Para Irineu de Lião, por exemplo, o ser humano não é perfeito enquanto não recebe

o dom do Espírito. O autor do século II não se pergunta sobre o que o ser humano poderia

fazer sem Cristo, porque é justamente o Filho de Deus encarnado o ponto de partida de sua

reflexão teológica.

O ser humano é um ser criado por Deus, que também lhe dá a plenitude de seus dons.

Assim a condição de criatura e o fato de ser destinatário dos dons divinos produzem uma

tensão: o destino do ser humano é a configuração a Cristo, o que se tornou possível porque o

Filho assumiu a condição humana. O ser humano não tem, para os primeiros autores cristãos,

outra finalidade; sua condição é puro dom divino sobre a qual não se tem nenhum direito, pois

não corresponde à “natureza” humana.

50 Cf. SESBOÜÈ, B., LADARIA, L., et al., Op. cit., p. 314-316.

49

Isto também é afirmado por Clemente de Alexandria, ao distinguir a filiação de Jesus,

que lhe corresponde por “natureza”, e a do ser humano, fundamentada na livre vontade de

Deus. Diz o Padre implicitamente que esse dom não corresponde à pessoa humana por

“natureza”.

Orígenes de Alexandria conhece uma distinção semelhante: Jesus é Filho por natureza

e não por adoção. Fala-se, nos primeiros séculos cristãos, da natureza do ser humano e do que

a ultrapassa. A primeira é a condição concreta na qual ele se encontra como criatura; o

“sobrenatural” ou, mais exatamente “o superceleste” ou o “supercósmico” é a visão de Deus,

à qual ele é chamado, e o divino em geral.

2.1. Natureza e graça no pensamento de Agostinho de Hipona

No contexto da controvérsia pelagiana51, se encontra o pensamento de Agostinho de

Hipona sobre a graça. Pelágio se mostra claramente como anti-ariano e defende fortemente a

divindade de Jesus Cristo. Por outro lado, também é anti-maniqueísta, afirmando que o ser

humano foi criado à imagem e semelhança de Deus e é bom. Ser imagem de Deus, para esse

autor latino, implica que o ser humano deve ser justo, santo e veraz como Deus mesmo é.

Portanto, ele possui (posse) justiça, santidade e verdade o que permite que ele, por si mesmo,

conquiste a semelhança de Deus (esse).

Esse posse se caracteriza como liberdade; somente sendo livre o ser humano pode se

assemelhar a Deus. Essa mesma liberdade é a própria natureza do ser humano e, ao mesmo

51 Cf. MEIS, A., Op. cit. , p. 333-336.

50

tempo, dom que Deus lhe dá, isto é, trata-se de uma graça. O pecado, entendido como um ato

isolado, não toca a liberdade humana. O pecado de Adão é simplesmente um mau exemplo,

que orienta o ser humano para o mal. Deus contrapõe esse exemplo com a lei

veterotestamentária e, com o fracasso da mesma, aparece Jesus Cristo, exemplo de ser

humano verdadeiro.

Pelágio naturaliza o dom de Deus, não visualiza a diferença entre o dom da criação e o

dom da redenção. Já o bispo de Hipona52 reconhece um duplo plano na relação com Deus:

aquele que corresponde à sua condição de criatura, em virtude do qual é seu servo, e aquele

que corresponde à filiação pela graça:

Reconhecendo, portanto, a nossa condição (embora já sejamos filhos pela graça, somos servos enquanto criaturas, porque todo o criado serve a Deus).53

Por um lado, Deus criou o ser humano, mas, por outro, o gerou para que fosse seu

filho. Há dois aspectos da obra de Deus na pessoa humana: o primeiro corresponde à

“natureza”, o segundo à “graça”. Mas a natureza humana e o dom de Deus não se opõem. Há

entre eles, em sua grande diferença, uma íntima harmonia:

Sendo assim, para essa natureza, criada com superioridade tão clara que, mesmo sendo mutável, com unir-se ao bem incomutável, a Deus supremo, logra a felicidade e não se vê livre de sua indigência, se não é feliz e para sê-lo não lhe basta senão Deus, é vício não unir-se a Deus..54

É conhecida a afirmação do primeiro parágrafo das Confissões: “Tu o incitas para que

sinta prazer em louvar-te, fizeste-nos para ti e inquieto está o nosso coração, enquanto não

52 Cf. SESBOÜÈ, B., LADARIA, L., et. al., Op. cit., p. 314-316. 53 AGOSTINHO DE HIPONA, Comentários aos Salmos 122,5, 1ª Edição, São Paulo: Ed. Paulus, 1998, p. 599. 54 AGOSTINHO DE HIPONA, A cidade de Deus XII,1,3, 1ª Edição, São Paulo, Ed. das Américas, 1964, p. 154.

51

repousa em ti” 55. O ser humano, finito por natureza, atinge sua plenitude só no Infinito. A

tensão entre sua natureza e seu destino em Deus encontra-se, assim, claramente expressado.

Agostinho, de outro modo, parece ter uma real concepção da natureza como

exatamente distinta do dom da graça. Assim, ele observa que poder ter a fé e a caridade é algo

próprio da natureza humana, mas tê-las de fato é próprio da graça dos fiéis. A possibilidade é

para todos os seres humanos, a realidade dessa fé distingue o fiel do infiel. A pessoa humana

recebeu de Deus os bens naturais, a estrutura de seu ser, a vida, os sentidos, o espírito. Esses

bens, mesmo enfraquecidos, permanecem, depois do pecado, quando o ser humano perdeu a

graça56.

Essa distinção é importante. Agostinho reconhece, então, certo quadro da natureza que

está integrado na história concreta marcada pelo dom inicial da graça de Deus e pelo pecado

humano. Distingue os dons que o ser humano recebe em decorrência da criação e os que Deus

lhe outorga por uma gratuidade superior. Mesmo que no texto seguinte ele fale dos anjos, a

afirmação pode ser transposta para o ser humano, sem ser forçada:

E que era seu autor senão Aquele que os criara com vontade boa, ou seja, com o amor casto que os une a Ele, criando-lhes a natureza e conferindo-lhes ao mesmo tempo a graça?.57

Parece que Agostinho não refletiu, diretamente, sobre uma ordem natural hipotética,

diferente da ordem da graça em que o ser humano se encontra atualmente. Nessa situação

concreta, ele é, todavia, um ser paradoxal; somente em Deus pode chegar à plenitude de seus

55 AGOSTINHO DE HIPONA, Confissões I,1,1, 10ª Edição, São Paulo: Ed. Paulus, 1984, p. 15. 56 Cf. AGOSTINHO DE HIPONA, De natura et gratia (Natureza e graça) in: A Graça I, 1ª Edição, São Paulo: Ed. Paulus, 1999, p. 114. 57 AGOSTINHO DE HIPONA, A cidade de Deus XII,9,2, Op. cit., p. 166.

52

desejos, mas não os pode procurar sem Deus. Somente se Deus descer em sua direção, é que

ele o poderá alcançar:

Eu desço, porque não pode vir até mim.58

2.2. A reflexão teológica durante a Primeira Escolástica

A distinção entre bens “naturais”, que correspondem ao homem em razão de sua

criação e não se perdem pelo pecado, e, de outro modo, a “graça”, a amizade com Deus que o

pecado destruiu, irá se manter com diferentes nuanças e dará lugar às distinções ulteriores

entre a natureza e a graça59. Refletir-se-á de modo cada vez mais explícito sobre as duas

ordens de “gratuidade”, que são a criação – sobre a qual é evidente que o ser humano não tem

direito algum – e a amizade com Deus, presente divino a que a criatura humana jamais pode

aspirar.

Tal distinção encontrará apoio na Epístola de Tiago: “Todo dom valioso (datum

optimum) e toda dádiva perfeita (donum perfectum) descem do alto” (Tg 1,17). Essa

passagem, citada pelo Pseudo-Dionísio, foi utilizada por seus discípulos e comentadores para

distinguir as duas categorias dos dons recebidos pela pessoa humana: o “dom valioso” se

refere à criação, aos bens que são dados a toda criatura; a “dádiva perfeita” aplica-se à graça

divina. Trata-se de dois modos de participar da bondade de Deus conferida aos seres

humanos. Hugo de São Vítor comentará igualmente que a criatura racional, além de ser a

única feita à imagem e semelhança do Criador, recebeu dons e dádivas.

58 AGOSTINHO DE HIPONA, Comentários aos Salmos 121,5, Op. cit., p. 579. 59 Cf. SESBOÜÈ, B., LADARIA, L., et. al., Op. cit., p. 316-319.

53

O mesmo autor observa que o que Deus deu a menos à alma em sua criação ao uni-la

ao corpo, dará a ela por graça na glorificação futura. Deus quis, desde a origem, levar à

consumação de seu fim a natureza do ser humano e esse fim da natureza se refere ao próprio

Deus. Compreende a dignidade da criatura humana desde sua capacidade de acolher o Bem

Supremo. Tal é o dom prometido, a recompensa da fidelidade da pessoa humana, e não os

bens terrestres que receberam Adão e Eva desde o primeiro instante.

São de dois tipos os bens que Deus destina ao ser humano: os exteriores e os

interiores, os que correspondem a ele neste mundo e os que lhe foram prometidos como

recompensa. Distinguem-se, por conseguinte, sem aspirar à nitidez das épocas posteriores, os

dons que recebe pela graça e os que lhe vêm da natureza, ou seja, de sua condição de criatura.

Essa condição, já gratuita em si mesma, jamais se satisfaz, senão com o bem supremo.

Mas os bens dessa natureza e os afetos ordenados por ela não levam ainda a Deus, não levam

“para além da natureza”. São as virtudes que Deus lhe dá com sua graça reparadora, que

conduzem à remuneração “para além da natureza” (supra naturam).

Na primeira metade do século XII, já se propõe uma síntese bastante clara: há uma

dupla ordem de gratuidade, mas Deus é a única finalidade da criatura humana. O que o ser

humano faz por natureza não o leva a Deus, mas somente as virtudes que Deus infunde nele.

Anselmo de Cantuária, alguns anos antes, estava certo de que a finalidade pela qual

Deus criara as criaturas racionais era fazê-las fruir de si mesmo. O autor insinua igualmente a

distinção entre os dons naturais e os dons gratuitos: os filhos devem ser restituídos

gratuitamente ao estado de justiça que os pais perderam? De novo, a questão da natureza e da

54

graça cristalizou-se em torno da questão do estado original e dos bens perdidos pelo pecado.

Foi assim que se desenvolveu gradualmente a doutrina do “sobrenatural”.

As idéias de Pedro Lombardo coincidem com as de Hugo de São Vítor, às vezes com

grande precisão. O ser humano, no primeiro instante da criação, recebeu duas “graças”: a da

criação em si e a da ajuda espiritual para obter a vida eterna, que não se pode alcançar

somente com a primeira. A distinção a que já se fez menção entre o dom valioso e a dádiva

perfeita de Tg 1,17 encontra-se assim também em Pedro Lombardo. A situação do ser

humano decaído dá ocasião para refletir sobre os dois planos da gratuidade. Segundo Lc

10,30, a pessoa humana que caiu nas mãos dos ladrões foi ferido e roubado:

Ferido nos bens naturais, de que não foi privado, porque a reparação não podia se processar de outro modo; roubado nos bens gratuitos, que pela graça foram acrescentados aos bens naturais. Esses dons são os dons valiosos e as dádivas perfeitas, dos quais alguns, ou seja, os naturais, foram corrompidos pelo pecado, como a habilidade, a memória, o intelecto; os outros, ou seja, os gratuitos, foram tirados. Mesmo que os bens naturais sejam por graça, pertencem à graça geral de Deus. Faz-se com freqüência essa distinção, pois a palavra graça se refere à espécie, não ao gênero60.

Há, pois, dois níveis de gratuidade e de graça. O primeiro é geral e se aplica a tudo o

que é dado gratuitamente e sem mérito. É evidente que a criação é gratuita e que o ser humano

não tem nenhum direito sobre os bens naturais que Deus lhe dá. Mas existe um segundo nível

específico, ao qual corresponde mais propriamente o nome da graça: a capacidade de fazer o

bem que leva diretamente ao fim da existência humana, ou seja, à vida eterna.

A reflexão sobre esses dois tipos de dons já era desenvolvida entre esses grandes

autores do século XII. Em Hugo de São Vítor, a expressão supra naturam designava o que

60 PEDRO LOMBARDO, Sententiarum II,25,7 (ou 8) 1ª Edição, Grottaferrata: Ed. Quaracchi, 1971, p. 465.

55

ultrapassa a natureza humana. Mesmo que a primeira escolástica tenha discutido sobre a

ordem segundo a qual os dons foram concedidos ao ser humano, ela jamais duvidou da sua

vocação fundamental à vida divina. A finalidade da natureza humana é elevada acima de si

mesma. É por isso que somente o dom especial da graça, no sentido estrito do termo, lhe

permite atingir esse fim. O ser humano não pode achar satisfação de seus desejos senão em

Deus.

Boaventura resumiu com clareza as idéias de seus predecessores:

O primeiro princípio criador, em sua soberana benevolência, fez o espírito racional capaz da beatitude eterna. O princípio reparador restaurou para a salvação essa capacidade que se tornara caduca pelo pecado. Ora, a beatitude eterna consiste na posse do soberano Bem. Esse Bem é Deus mesmo, Bem infinitamente superior ao mais eminente serviço humano. Nenhum homem é digno de se aproximar desse Bem soberano, que transcende todos os limites da natureza, a menos que Deus, em sua condescendência, o eleve acima dele mesmo.61

Que o único fim do ser humano seja Deus é claro desde o Comentário sobre as

Sentenças62. O fim último de toda operação racional é a beatitude perfeita, e a alma foi feita

para participar da beatitude, que é o único Bem supremo. A alma foi feita capaz de Deus, pois

foi feita à sua imagem e semelhança. Parece que Boaventura não fala de outro fim do ser

humano. A propósito do estado original e da situação do ser humano após o pecado, encontra-

se também a distinção habitual entre o que corresponde à natureza e o que corresponde à

graça. E, assim como o princípio criador, dá a vida à natureza, o princípio reparador deve dar

vida ao espírito no ser gratuito. À natureza se opõe, pois, a gratuidade que Deus presenteou

desde o primeiro instante e que foi entregue à humanidade pela obra de Jesus Cristo.

61 BOAVENTURA, Breviloquium 5,1,3; vol. 5, p. 29-30, apud SESBOÜÈ, B., LADARIA, L., et. al., Op. cit., p. 318. 62 Cf. BOAVENTURA, Commentarium Sententiarum Petri Lombardi II, d.19, a.1, q.1, 1ª Edição, Grottaferrata: Ed. Quaracchi, 1971, p. 460.

56

2.3. Tomás de Aquino e o desejo natural de ver a Deus

Nas obras de Tomás de Aquino, as idéias acima apresentadas, dispersas em seus

predecessores, encontraram uma mais ampla sistematização63. O autor conhecia a distinção

entre as perfeições que são “devidas” à natureza e as que são completamente gratuitas, ou

seja, que não são devidas nem à natureza nem ao mérito. São os dons sobrenaturais, a “graça”,

que ultrapassa a ordem da natureza:

Deve-se dizer que a graça, sendo dada gratuitamente, exclui a razão de devido. Algo pode ser entendido como devido de duas maneiras. Primeiro, por causa de um mérito, o que se refere às pessoas que realizam obras meritórias, segundo a Carta aos Romanos: “O salário é dado a quem faz uma obra como uma dívida e não como uma graça” (Rm 4,4). Depois, algo é devido pela condição da natureza, por exemplo, se dizemos que é um direito para o homem ter a razao e tudo o que pertence à natureza humana (…) Os dons naturais não são devidos no primeiro sentido, mas no segundo. Os dons sobrenaturais de nenhum modo são devidos. Eis porque a eles cabe de modo especial o nome de graça .64

Às perfeições que correspondem ao ser humano por sua natureza acrescentam-se

outras que são obra unicamente da graça divina, somente do favor de Deus. Entre essas

últimas, conta-se, em primeiro lugar, a graça santificante, a imortalidade, a integridade. É

claro que os dons naturais são, também eles, gratuitos, pois Deus criou livremente tudo o que

existe. Não se trata de uma exigência que, a respeito deles, se pudesse exercer sob o ponto de

vista jurídico, mas de uma coerência “ontológica”, tendo em vista que a ausência deles

significaria uma autêntica privação.

63 Cf. SESBOÜÈ, B., LADARIA, L., et. al., Op. cit., p. 319-324. 64 TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica Ia-IIae, q.111, a.1, ad 2, 1ª Edição, São Paulo: Ed. Loyola, 2005, p. 876-877.

57

Deus pode criar ou não criar, mas está determinado a criar, deve dotar as coisas com as

perfeições próprias da natureza delas. A razão que apresenta Tomás de Aquino para explicar

essa exigência é muito interessante: a criatura deve se submeter a Deus, para que nela se

cumpra a ordem divina, segundo a qual tal natureza deva ter tais condições e propriedades, a

fim de que, agindo de determinada maneira, ela obtenha fins determinados.

A relação estabelecida aqui entre a natureza e seu fim será um ponto importante para a

discussão posterior: a uma natureza concreta corresponde uma finalidade determinada no

desígnio de Deus. É evidente que o ser humano continua a ser considerado segundo a

perspectiva teológica da salvação que Deus lhe oferece. Não sendo assim, não haveria sentido

falar de bens sobrenaturais e da graça não devida. E, ainda mais, quando Deus “deve” dar de

alguma forma a cada natureza as coisas que lhe são próprias, Ele o faz porque deve ser fiel

não às coisas, mas, antes, a si mesmo, à sua vontade, segundo a qual as coisas devem ter sido

criadas.

2.3.1. A natureza do ser humano considerado “em si”

Porém, sem tirar o valor do que se considerou anteriormente, pode-se observar ao

mesmo tempo uma tendência, ainda insipiente, de determinar o que corresponderia ao ser

humano “em si”, de estabelecer o que é a natureza humana à qual se juntam outros bens que a

superam. Essa tendência já é insinuada por alguns autores anteriores a Tomás de Aquino.

Ele também apregoa a distinção entre os bens que o ser humano perde e aqueles que

permanecem após o pecado. A integridade substancial dos princípios da natureza permanece,

58

mesmo ao perder a justiça original65. Quando Adão foi criado, desde o primeiro instante, Deus

o fez doando-lhe a graça santificante; contudo, não seria um absurdo pensar que Deus o tenha

criado somente com os bens naturais. A doação da graça santificante é algo que depende da

livre vontade de Deus. Tomás não afirma que Deus poderia ter criado o ser humano sem o

“elevar” à ordem sobrenatural, porém, ao insistir sobre o caráter de esse dom não ser devido,

faz pensar que a decisão de criar o ser humano não acarretasse necessariamente a

comunicação das perfeições de ordem sobrenatural.

Se o ser humano fosse criado, desde o primeiro instante, mortal e sujeito à

concupiscência, nada seria destruído da natureza, pois os dons da integridade e da

imortalidade provêm da graça e não são conseqüências da criação como tal.

Chegar tal ponto de reflexão, isto é, que há uma dupla ordem de gratuidade no ser

humano, é, sem sombra de dúvidas um grande progresso. Com ela, toma-se consciência da

gratuidade radical do dom de Deus em Cristo e da visão beatífica, à qual o ser humano está

destinado e à qual é chamado, como conseqüência. Igualmente, se explicita melhor algo que

sempre esteve na consciência cristã e que já tinha sido insinuado pelos teólogos anteriores.

A ordem sobrenatural pode ser compreendida como alguma coisa que “é

acrescentada” ao que o ser humano poderia ser e é na ordem natural, com a natureza humana

não corrompida e no estado de corrupção não total, na qual ela se encontra após o pecado.

Tais conseqüências chegarão bem mais longe do que as próprias afirmações de Tomás de

Aquino, gerando uma longa discussão que se prolongará até o século XX.

65 Cf. TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica Ia-IIae, q.75, a.1, Op. cit. p. 344.

59

2.3.2. O desejo natural de ver a Deus

Tomás de Aquino, em muitos de seus escritos, afirma que o ser humano está tomado

por um desejo natural de ver a Deus face a face – ponto que toca numa questão importante

para as épocas posteriores – e diz que a perfeita beatitude só se atinge nessa visão. Na Suma

contra os gentios, já aparece esta doutrina: a última beatitude do ser humano não consiste

senão na contemplação de Deus66. O Doutor Angélico explica antes a razão desse fato: todas

as criaturas, inclusive as que não são dotadas de intelecto, estão ordenadas a Deus como a seu

fim último. Todas chegam a esse fim, pois participam de certo modo de sua semelhança. As

criaturas racionais atingem esse fim de um modo especial, ou seja, por sua própria operação,

tendo um entendimento de Deus.

Portanto, se compreende que Deus é o fim da criatura racional. Tal finalidade, própria

da natureza intelectual, suscita o desejo natural de ver a Deus. E como, segundo Tomás de

Aquino, é impossível que o desejo natural seja vão, segue-se que deve ser possível que as

substâncias intelectuais cheguem a Deus pela inteligência. Somente nessa visão repousa o

desejo natural da substância intelectual67.

Doutrina semelhante é encontrada na Suma teológica; ali, afirma-se que a beatitude

última do ser humano consiste na mais alta operação que é a operação intelectual. Se o

intelecto criado não pode jamais ver a essência de Deus, se conclui que: ou jamais alcançará a

beatitude ou sua beatitude consistirá em um fim distinto a Deus, o que é contrário à fé68.

66 Cf. TOMÁS DE AQUINO, Suma contra os gentios, III,37, 1ª Edição, Porto Alegre: Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul, 1996, p. 435. 67 Cf. TOMÁS DE AQUINO, Suma contra os gentios, III,50-51, Op. cit., p. 462-465. 68 Cf. TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica Ia q.12, a.1, Op. cit., p. 161.

60

Só Deus pode dar ao ser humano a beatitude última, visto que Ele é, para si mesmo,

essa plena beatitude, pois repousa somente em si. Qualquer conhecimento de um efeito criado

conduz necessariamente o intelecto a procurar mais até conhecer o próprio Deus, até conhecer

a causa primeira.

Por isso, ainda não é perfeitamente bem-aventurado, pois, para a perfeita bem-aventurança requer-se que o intelecto atinja a essência mesma da primeira causa. Assim sendo, será a sua perfeição na união com Deus como seu objeto e só nisto consiste a bem-aventurança do homem, como acima foi dito.69

O intelecto humano é, portanto, capaz desse conhecimento direto de Deus, da visão de

Deus. E não somente é capaz de ter essa visão, mas a deseja como a única que lhe pode dar a

plena beatitude. Somente Deus é a verdade por essência, e somente sua contemplação torna o

ser humano perfeitamente feliz.

2.3.3. Um desejo natural realizado por um dom sobrenatural

Entretanto, esse desejo de ver a Deus tem uma característica muito especial: não pode

ser atingido pelas forças naturais do ser humano. Sem dúvida, existe aqui um paradoxo. O ser

humano deseja algo que só pode obter com a ajuda da graça. Já na Suma contra os gentios é

claramente dito que a visão de Deus pela essência divina corresponde somente à natureza

divina. Qualquer outra substância intelectual não pode chegar a esse conhecimento se o

próprio Deus não a conduz a si70.

A Suma teológica, por sua parte, insiste ainda mais sobre o mesmo tema. Somente

porque Deus se une por sua graça ao intelecto criado, é que este pode vê-lo em sua essência. É

69 TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica Ia-IIae, q.3, a.8., Op. cit., p. 78. 70 Cf. TOMÁS DE AQUINO, Suma contra os gentios, III,52, Op. cit., p. 466-467.

61

a mesma essência de Deus que se torna a forma inteligível do intelecto, quando este vê a Deus

em sua essência. É preciso, pois, que alguma disposição sobrenatural se junte à inteligência,

para que ela seja elevada a uma tão alta sublimidade, pois o conhecimento acontece quando o

objeto conhecido está no conhecedor. Será que isso significa uma fraqueza ou uma

imperfeição da natureza humana, que não pode, por si só, chegar ao que deseja? O Aquinate

afirmará que é justamente o contrário.

A finalidade de todas as criaturas, como já se mencionou, é o próprio Deus. Ora,

somente a natureza racional pode chegar plenamente a esse fim e conseguir o Bem perfeito,

ainda que tenha necessidade do auxílio divino para isso. A natureza racional está, pois, numa

condição superior e mais digna do que as demais criaturas, as irracionais, que não podem, de

modo algum, chegar a esse bem perfeito.

Deve-se dizer que é de mais nobre condição a natureza que pode conseguir o bem perfeito, embora precise de auxílio exterior para tal, do que a natureza que não pode conseguir o bem perfeito, mas que consegue algum bem imperfeito, embora para tal não necessite auxílio exterior.71

Por conseguinte, o ser humano só atinge sua plenitude em Deus, mas essa plenitude é

um dom que ele recebe pela graça. Somente a Deus, não à criatura, corresponde naturalmente

a beatitude perfeita. A condição paradoxal do ser humano se manifesta também pelo fato de

que essa visão de Deus é, de um lado, superior à natureza da alma racional, pois esta não a

pode alcançar por suas próprias forças, mas, de outro, é conforme à sua natureza, porque a

alma é capaz de ver a Deus, uma vez que foi criada à sua imagem e semelhança.

71 TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica IaIIae, q.5, a.5, ad.2, Op. cit., p. 105.

62

A visão de Deus que o ser humano deseja e que constitui sua plenitude vai mais longe

do que aquilo que ele pode explicitar sob a forma de um desejo claro. Não se trata, portanto,

de um fato que o ser humano conheça com exatidão o que o espera nem de que seja capaz de

desejar com precisão o que Deus lhe dará. A partir desse ponto de vista, a natureza humana

não pode se comparar à das demais criaturas, como já se afirmou.

Ora, a vida eterna é um bem que excede a proporção da natureza criada. Pois, excede o seu conhecimento e desejo, segundo a Primeira Carta aos Coríntios: “Nem o olho viu, nem o ouvido ouviu, e nem entrou no coração…” (1Cor 2,9).72

E, ainda que todos os seres humanos desejem a beatitude, não podem conhecer em que

ela consiste e por essa razão eles não desejam, conscientemente, a visão de Deus. As forças

naturais não são suficientes para obter o bem supremo, nem para conhecê-lo ou desejá-lo.

Significariam esses textos que é preciso negar o desejo natural, tão claramente expresso? O

contexto de algumas dessas passagens trata da fé, o único meio pelo qual se pode ter acesso

ao conhecimento do fim último do ser humano, já que este o transcende.

O ser humano não pode atingir esse fim por suas próprias forças, pois ele vai muito

além do que pode ser pensado ou desejado. Se, de uma parte, o desejo de Deus se encontra

enraizado no mais profundo do ser humano, de tal modo que não pode haver para ele outro

fim definitivo a não ser a visão de Deus, de outra, sua obtenção ultrapassa as todas as forças

humanas. Se Tomás de Aquino fala às vezes de um “fim natural”, ele se refere ao

conhecimento de Deus e à beatitude que se pode adquirir durante a vida terrena. A tensão

entre o que se pode chamar de “imanência” e “transcendência” do sobrenatural explica as

formulações do Doutor Angélico, cuja harmonização nem sempre é fácil. Porém, o mais

72 TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica IaIIae, q.114, a.2, ad.2, Op. cit., p. 923.

63

central em seu pensamento sobre a relação natureza e graça é que esta supõe àquela; ambas as

realidades não se encontram em oposição.

2.4. Duns Scoto: o desejo natural de Deus mantido

Duns Scoto também imaginou o ser humano orientado para Deus como para seu fim

natural73. Contudo, esse fim não se obtém naturalmente, mas sim sobrenaturalmente. Mesmo

que o ser humano não o possa alcançar valendo-se do que é simplesmente natural, ele o

recebe de modo extremamente natural, pois esse fim é aquilo para o que tende

intrinsecamente a natureza humana.

Com efeito, o ser humano tende para a visão de Deus não por um ato de sua vontade

nem somente depois de ter conhecido esse fim, mas porque a natureza tende à sua perfeição,

como a pedra é atraída para a terra pela força da gravidade. É, pois, a inclinação da natureza

inteira para a sua perfeição. Trata-se de uma “tendência passiva”, diferente das tendências

ativas nas quais a potência se orienta livremente para o que é desejado.

Uma vez que na visão de Deus se encontra a perfeição suprema da natureza racional,

essa deve desejá-la necessariamente. Tal desejo não depende da liberdade ou da capacidade

de eleição do ser humano. É um desejo universal, pois se identifica com a natureza intelectual

do ser criado. É por isso que mesmo pecadores condenados o manteriam, pois permanece

neles a natureza humana. E, uma vez que a suprema inclinação da natureza está voltada para

sua perfeição, o desejo que visa a alcançá-lo é o mais intenso possível. Mas esse desejo não

73 Cf. SESBOÜÈ, B., LADARIA, L., et. al., Op. cit., p. 324-326.

64

inclui a tendência de atingir o bem desejado com as forças naturais nem a capacidade de se

pôr em movimento em direção a ele.

O ser humano deseja essa visão divina como alguma coisa que deve receber pela ação

do próprio Deus. É desejada como um dom. A essência divina não está naturalmente presente

como objeto senão a Deus, não ao ser humano nem a nenhum intelecto criado. Novamente, se

vislumbra o paradoxo que já foi observado no pensamento de Tomás de Aquino: de uma

parte, a suprema inclinação da natureza para a visão de Deus, de outra, a impossibilidade de

alcançá-la.

Sobre essa “potência passiva” não age, portanto, um princípio ativo que lhe

correspondesse por natureza, mas um princípio ativo sobrenatural, o próprio Deus, visto que

Ele age “sobrenaturalmente”, ou seja, não mais no quadro de sua obra criadora ou segundo

sua providência ordinária. Deus age de maneira sobrenatural, na ordem da gratuidade, quando

não realiza simplesmente o que pertence à natureza ou que dela decorra segundo “exigências

ontológicas”.

Já no plano natural, Deus deve dar à alma humana as perfeições que lhe

correspondem. Se Ele não é, em sentido estrito, “devedor” de ninguém, “devendo” apenas sua

bondade, Ele passa a sê-lo também de suas criaturas, por causa de sua liberalidade, uma vez

que lhes concede o que exige a natureza delas. Distingue-se dessa obra primeira o que Deus

realiza por puro amor, sem nenhum tipo de exigência por parte da criatura. O dom da graça

divina é assim totalmente não-devido, gratuito, ainda que responda ao mais profundo desejo

do ser humano.

65

Fica assim consolidada a distinção entre as perfeições do ser humano que, ao lhe

serem totalmente dadas, de algum modo lhe correspondem, e o apelo à visão de Deus, diante

da qual o ser humano não pode apresentar exigência alguma. As duas ordens de bens, que

correspondem às duas ordens de gratuidade dos dons divinos, são dadas no que é o ser

concreto do ser humano.

Esse desejo da visão divina, tão profundamente enraizado na natureza humana, não

pode ser realmente conhecido em sua existência, somente pela revelação. Apenas e tão

somente pela revelação, se sabe que a visão de Deus é possível à criatura racional e, portanto,

ao ser humano. Uma vez conhecido, pela revelação, que é esse o fim do ser humano, pode-se

deduzir a existência desse desejo, ao passo que a natureza deve sempre se inclinar para sua

própria perfeição. Assim, a alma tem, em relação à visão beatífica, o mesmo desejo natural

que a respeito das perfeições naturais, embora essa visão seja estritamente sobrenatural.

Existe, pois, no ser humano um desejo inato da visão da essência divina. Todavia, a

natureza racional criada, que deseja esses bens sobrenaturais, não os pode alcançar por sua

atividade natural. É necessária uma intervenção sobrenatural de Deus, conhecida somente pela

revelação divina. Nesta vida, o ser humano não conhece, sem a revelação, o fim de seu desejo

inato.

Parece que Duns Scoto não se pôs explicitamente a questão de saber se Deus poderia

ter criado a natureza humana somente com as perfeições da natureza, sem a elevação

sobrenatural. Ele considerou com mais clareza a hipótese daquele que teria morrido na pura

condição “natural” e que não chegaria, então, à visão de Deus. Há, contudo, uma grande

diferença entre essa questão e a de um ser humano privado da visão beatífica por causa do

66

pecado. Considerando o pecado, a privação é uma pena; na outra hipótese, ela deriva

simplesmente das condições da natureza. Afirma Duns Scoto que, de fato, nenhum ser

humano jamais estará na condição que corresponda a essa hipotética “natureza” humana. Mas

aproxima-se dessa situação a das crianças mortas sem batismo e que – segundo a lógica dessa

doutrina – se encontram no “limbo”. Elas conhecem sua essência humana e podem atingir a

beatitude natural, sabendo que Deus é primeiro ser.

São numerosos os pontos de coincidência entre Duns Scoto e Tomás de Aquino. Não

há, por conseguinte, motivo para espanto se, nesse ponto, a coincidência entre os teólogos das

escolas dominicana e franciscana tenha fundamentalmente continuado ao longo dos séculos

XIV e XV. A existência do desejo inato de ver a Deus foi opinião comum de todas as escolas

teológicas dessa época.

Diferenças de nuanças podem ser observadas: Duns Scoto e a escola franciscana

insistem sobre o que o desejo tem de inato, como algo identificado com a natureza racional e,

portanto, anterior a todo conhecimento. Os teólogos dominicanos (seguidores de Tomás de

Aquino), com algumas exceções, e os agostinianos consideram a inquietude na qual se

encontra a alma humana por não conhecer imediatamente a Deus. Naturalmente, essa

inquietude pode ser vista como expressão do desejo inato.

Ainda permanece o desafio de harmonizar as duas tendências teológicas da Idade

Média: o desejo natural de ver a Deus e o fato de esse desejo ser algo não devido. Parece, à

primeira vista, que, se alguma coisa é “natural”, deve responder a uma exigência. J. Alfaro é

da opinião que, no período considerado, não se pôs em questão a possibilidade de todo o

gênero humano ter sido criado sem a elevação sobrenatural à visão de Deus. Considera-se

67

somente a hipótese de tal ser humano em particular, para negar que, de fato, tal caso tenha

ocorrido ou aconteça; depois, considera-se o caso especial das crianças mortas sem batismo

que vão para o limbo74.

Porém, enquanto se pensa na hipótese de todo o gênero humano não destinado à visão de Deus […], a dificuldade na frustração total do desejo natural de ver a Deus não aparece com destaque e, conseqüentemente, não se considera em que tal desejo, para não existir em vão, parece exigir que o ser humano esteja necessariamente destinado à visão de Deus.75

3. A relação natureza e graça a partir do século XIV

3.1. A hipótese da “natura pura”

Não foi fácil manter o equilíbrio dos grandes autores da escolástica. Quando se

começa a especular sobre o que corresponderia à natureza em si mesma, abre-se um caminho

em que o dom da graça é considerado uma adjunção a um ser que seria consistente nos limites

de sua natureza. A ordenação à visão de Deus deixa de fazer parte da definição do ser

humano. Por isso, não é de estranhar que, nos séculos XIV e XV, a afirmação do desejo

natural de ver a Deus deixe de ser unânime.

Apontam-se habitualmente dois opositores a essa tese: Tomás Anglicus, representante

da escola dominicana (tomista), no início do século XIV, e Dionísio de Chartreux, no século

74 Há muito se discutia sobre o status quaestionis do limbo. A teoria sobre um estado definitivo para aqueles que morreram antes de alcançar a graça a batismal, especialmente as crianças, se fez presente na história da Teologia durante muitos séculos. Em 19 de abril de 2007, a Comissão Teológica Internacional, a pedido da Santa Sé, pôs fim à discussão. A declaração vaticana rechaça a existência do limbo e acentua a salvação universal e escatológica conquistada por Jesus Cristo. Cf. CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, The hope of salvation for infants who die without being baptised. Disponível em: http://www.vatican.va/roman_curia/ congregations/cfaith/cti_documents/rc_con_cfaith_doc_20070419_un-baptised-infants_en.html. Acessado em: 12 de setembro de 2008, 11:12:35. 75 ALFARO, J., Lo Natural y lo sobrenatural, 1ª Edição, Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1952, p. 405-406.

68

seguinte. Mais importante que o número de autores é o raciocínio de fundo. Para Tomás

Anglicus, existe no mundo a ordem natural e a ordem sobrenatural. Ora, a primeira é anterior

à segunda, não necessariamente conforme a cronologia, mas porque a ordem sobrenatural

pressupõe a existência da ordem natural. Pode-se, com o pensamento, suprimir a ordem

sobrenatural e, mesmo assim, a ordem natural continuaria íntegra em todas as suas perfeições.

Se o desejo natural de ver a Deus é natural, o efeito então é absurdo: a ordem natural

poderia existir sem a sobrenatural e, por conseqüência, existiria o desejo natural, que teria

como objeto alguma coisa absolutamente impossível. Por conseguinte, o desejo natural de ver

a Deus não existe.

Dessa argumentação, parece seguir-se que Tomás Anglicus considera a hipótese de a

existência do ser humano como algo possível apenas na ordem natural. Um outro argumento

de Tomás Anglicus contra o desejo natural de ver a Deus é que não se pode desejar

naturalmente o que não se pode alcançar por natureza. Há um desejo natural de beatitude que

tem Deus como objeto, mas esse autor não determina qual conhecimento de Deus é desejado.

Fica assim excluída a hipótese de se considerar a visão beatífica. Tomás Anglicus é quase o

único a sustentar essa posição. E não exerceu praticamente influência na escola dominicana

(tomista), durante o século XIV, nem no seguinte76.

Para Dionísio de Chartreux, a existência do desejo natural de ver a Deus continua

incompreensível. Uma perfeição sobrenatural vai além da condição da natureza. Se a natureza

intelectual desejasse naturalmente o fim sobrenatural, isso significaria que se pode satisfazer o

desejo por causas naturais. Para o autor do século XV, a cada natureza corresponde um fim

76 Ibidem, p. 210-215 e 221-222.

69

próprio, segundo sua perfeição essencial. Somente do intelecto incriado é próprio contemplar

em sua essência a luz infinita, que é Deus.

Em contraposição, corresponde às inteligências criadas o conhecimento de Deus

segundo sua própria natureza. Não pode haver senão um apetite natural do que está ao alcance

das forças naturais. Além disso, decorre desse princípio que, se o desejo natural de ver a Deus

fosse natural, ele seria devido ao ser humano segundo a ordem natural das coisas; ao intelecto

criado corresponderia então a visão de Deus segundo sua essência, o que é evidentemente

falso.

Outro argumento alegado é o seguinte: se esse apetite natural existisse, a razão poderia

conhecê-lo e saber que a essência divina é visível. É por isso que se deve afirmar que a

criatura racional não deseja naturalmente a visão imediata de Deus, mas se contenta com a

posse de Deus, que lhe permitem as forças de sua natureza. Nessa ordem, ele teria um

conhecimento “perfeito”, que satisfaria seus desejos e preencheria sua capacidade natural.

Em alguns autores do século XV, amplia-se cada vez mais a via que considera

possível a existência de um ser humano criado na simples condição natural, comportando uma

beatitude adequada a essa condição na outra vida. Porém, a tese, comum a todas as escolas, do

desejo natural da visão de Deus substancialmente ainda se mantém. Essa doutrina será negada

por Caetano de Vio, nos primeiros anos do século XVI.

3.2. Caetano de Vio e a dupla finalidade do ser humano

Caetano de Vio, autor católico do século XVI, baseia-se no fato, reconhecido por

todos, de que Deus quis se comunicar de duas maneiras aos seres criados e contingentes: em

70

primeiro lugar, ao criá-los e, em segundo lugar, ao dar à criatura racional a possibilidade de

chegar à visão divina77. Para isso, Ele concede à criatura a possibilidade da fruição perfeita,

dando-lhe, por graça, o que ela não podia obter por natureza. Deriva daí uma dupla ordem

entre os seres criados, de fato existentes: a ordem da natureza e a da graça. Se pertence à

primeira ordem o que convém às diferentes substâncias criadas, pertence à segunda a caridade

e a visão de Deus.

A ordem natural equivale ao “devido” à criatura, nos termos que já se conhece; a

ordem sobrenatural, ao que nas criaturas está acima do que se lhe deve. Nesse sentido,

“sobrenatural” equivale a “gratuito”. Caetano de Vio segue nesse ponto a doutrina de Tomás

de Aquino. Também ele explica, como seu predecessor, em que sentido se pode dizer que

Deus “deve” alguma coisa às criaturas: a propósito delas, Deus é devedor de sua sabedoria e

de sua vontade. Contudo a graça, dada gratuitamente por hipótese, faz que o ser humano

participe do próprio Deus e da natureza divina.

Para compreender o que é a graça, é preciso referi-la à natureza divina: concretamente,

a graça faz que os seres humanos, criados à imagem e semelhança de Deus, sejam também

irmãos de Jesus Cristo, que é o Filho de Deus por natureza. Igualmente, a luz da glória (lumen

gloriae), que dá a possibilidade de ver a Deus na vida eterna, é também de ordem divina.

Tanto a graça como a luz da glória ultrapassam a capacidade da natureza criada e são

“sobrenaturais”, no sentido estrito.

77 Cf. SESBOÜÈ, B., LADARIA, L., et. al., Op. cit., p. 328-331.

71

3.2.1. A rejeição do desejo natural de ver a Deus

O fim último do ser humano, a visão de Deus, é, portanto, sobrenatural. Por essa

razão, ela não pode ser conhecida naturalmente, ainda que se pudesse conhecer perfeitamente

a natureza humana. Na natureza não se dá um desejo do sobrenatural; não há desejo da visão

de Deus, porque o apetite natural não pode ir além do que é capaz atingir naturalmente78.

Na natureza humana existe, sim, a capacidade de receber as perfeições sobrenaturais,

mas essa capacidade, que é somente passiva, não é acompanhada de nenhum desejo a respeito

delas. Caetano de Vio discute especialmente as teses de Duns Scoto que falam do desejo

natural de ver a Deus. Porém, ele, de fato, se opõe também de fato a numerosos textos de

Tomás de Aquino79.

Uma vez que as perfeições sobrenaturais, segundo Caetano de Vio, são de uma ordem

superior à natureza, essa mesma natureza não pode ter em relação a elas a inclinação que tem

em relação às perfeições de ordem natural. Ou, então, à inclinação natural deve corresponder

a capacidade ativa de alcançar o que é desejado. Se há, em alguma criatura, potência de algo

sobrenatural, supõe-se que se conheça a existência dessa realidade sobrenatural. Igualmente, a

inclinação, se é natural, deve poder ser naturalmente conhecida. Se essa inclinação existisse, a

revelação não seria necessária para o conhecimento dessas realidades sobrenaturais; caso

contrário, a potência natural seria vã.

Uma inclinação natural que não possa ser realizada pelas forças naturais se torna, para

Caetano de Vio, uma contradição. Senão, a dimensão sobrenatural do objeto do desejo tornar-

78 Cf. ALFARO, J., Lo Natural y lo sobrenatural, Op. cit., p. 286-292. 79 Cf. TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica Ia-IIae qq. 109-114, Op. cit., p. 841-938. Idem, Suma contra os gentios III, 142-160 Op. cit., p. 650-681.

72

se-ia um compromisso. Assim, o ser humano deseja somente o conhecimento de Deus que

pode alcançar com suas forças naturais. Essa posse e esse conhecimento são suficientes para

satisfazer seu desejo de beatitude, sem que lhe seja necessário chegar à visão perfeita. É claro,

de outro modo, que a plena beatitude se encontra conforme tal visão, mas nada faz desejá-la.

Existe, portanto, no ser humano, apenas um “poder obediencial”, ou seja, uma

capacidade de receber o dom de Deus. Essa capacidade não significa apenas a ausência da

impossibilidade de receber esse dom, mas também uma capacidade positiva de elevação

sobrenatural. A alma humana, em virtude de sua intelectualidade, é capaz da visão divina,

ainda que de modo confuso. Essa visão pode até, de certo modo, ser chamada “natural”. Há,

pois, certa conaturalidade positiva, mas que não é comparável à relação entre o desejo das

perfeições naturais e essas mesmas perfeições. A simples capacidade de receber, não

acompanhada do desejo em relação ao bem sobrenatural, não deve ser necessariamente

satisfeita.

3.2.2. Natureza “absoluta” e natureza elevada à beatitude

Para conciliar sua própria teoria com os textos de seu mestre Tomás de Aquino, os

quais afirmam o desejo natural de ver a Deus, Caetano de Vio introduz uma distinção que,

mais tarde, terá grandes conseqüências. A criatura racional pode ser considerada com base em

dois pontos de vista: segundo o que ela é em si mesma, absolutamente, e segundo sua

ordenação à beatitude. O ser humano, em si mesmo, não deseja naturalmente a visão de Deus.

Contudo, conforme o segundo ponto de vista, ele deseja naturalmente a visão, uma vez

conhecida pela revelação a graça e a glória. Essas últimas têm como causa Deus mesmo, tal

qual é em si mesmo e não somente como agente ou criador universal. Daí, a conclusão:

73

Mesmo se no homem tomado absolutamente não se encontra o desejo natural desse tipo, [esse desejo] é, apesar de tudo, natural no homem ordenado pela divina providência a essa pátria.80

Note-se o passo dado por Caetano de Vio com essa definição: há uma distinção do ser

humano considerado em si mesmo, uma outra do ser humano que pode ser chamado de

“histórico”, o único que de fato existiu ordenado por Deus à visão beatífica. A definição do

ser humano como ser intelectual, animal racional, com uma natureza e perfeições próprias,

refere-se ao primeiro ponto de vista. A definição do ser humano dada de maneira absoluta, ou

seja, isolada de todo contexto, abarca ao mesmo tempo o ser que existe e o que teria podido

existir e faz abstração da finalidade concreta que Deus deu ao ser humano que criou.

Caetano de Vio dá um passo considerável no problema já levantado nas obras de

Tomás de Aquino. O Doutor Angélico distinguia as perfeições “devidas” à natureza das

gratuitas. Porém, essa distinção se observava no único ser humano existente, que não tinha

por finalidade senão a visão de Deus. Ele considerava somente por exceção o caso do ser

humano que existe apenas com os dons da natureza.

Parece que, a partir de então, essa exceção de Tomás de Aquino é considerada o ponto

de partida. Caetano de Vio fala do ser humano segundo sua natureza, ao fazer abstração do

fim que Deus lhe deu. Acrescenta que não é esse ser humano em si que Tomás de Aquino

considera, porque, como teólogo, deve tratar todas as coisas segundo a revelação de Deus.

Essa distinção, como pode ser visto, é introduzida por Caetano de Vio e não pelo Aquinate.

80 CAETANO DE VIO, Comentário sobre a Suma Teológica IaIIae, q.3, a.8 apud SESBOÜÈ, B., LADARIA, L., et. al., Op. cit., p. 330. Cf. ALFARO, J., Lo Natural y lo sobrenatural, Op. cit., p. 151s.

74

O desejo genérico da beatitude “natural” implica o conhecimento de Deus, que se pode

obter pelas forças naturais. Essa beatitude é “perfeita” em sua ordem e, segundo a opinião de

Caetano de Vio, vai além desta vida, pois ele diz expressamente que é a beatitude da “alma

separada”. Entre o fim último do ser humano elevado à ordem sobrenatural e o fim natural,

existe, para Caetano de Vio, um grande paralelo que demonstra que o fim natural do ser

humano é concebido como um estado definitivo do próprio ser humano.

Dadas as numerosas afirmações de Caetano de Vio, sobre a possibilidade de Deus não

elevar a natureza humana à ordem sobrenatural, pode-se deduzir que, para ele, o estado de

natura pura (mesmo que ele não utilize ainda esta terminologia) é uma possibilidade real. O

autor até teceu considerações sobre a situação e as possibilidades do ser humano nesse estado.

Começa a se desenhar aqui uma doutrina que terá mais tarde amplas repercussões.

Estudar-se-á o que o ser humano pode fazer, sem a graça, sua capacidade de operar o

bem que lhe corresponderia e a possibilidade de cumprir a lei natural. Caetano de Vio

concede também à ordem natural um estatuto e uma consistência próprios. Ele observa até

que a graça aperfeiçoa a natureza conforme aquilo que ela é em si mesma (per modum

naturae), segundo seus princípios naturais.

A exemplo de alguns raros predecessores, Caetano de Vio, pois, abandonou a doutrina

medieval clássica do desejo natural de ver a Deus. Com isso, o teólogo abriu o caminho para a

introdução da doutrina dos dois fins do ser humano, um natural e outro sobrenatural. O

segundo é o que, de fato, foi-lhe dado, o primeiro é o que apenas poderia ter-lhe sido dado.

Para descrever o que poderia ser esse fim, ele recorre a um paralelo e deprecia o que a

revelação diz da visão de Deus, que constitui o destino sobrenatural de todo gênero humano.

75

Com a introdução, mais ou menos consciente, dessa dupla finalidade, o caminho está

igualmente aberto à consideração explícita da possibilidade da natura pura, ou seja, da

existência do ser humano sem a elevação à ordem sobrenatural. Mais ainda, a intenção de

descrever o que seria o ser humano nessa situação correspondente à sua natureza começa a se

manifestar.

Sem dúvida, a gratuidade da ordem sobrenatural e dom da graça ficam plenamente

salvaguardados nessa concepção, uma vez que põe em relevo um dom de Deus acrescentado a

uma ordem natural que tem sentido em si mesma. Porém, de outro aspecto, é grande o perigo

de fazer dessa ordem sobrenatural uma adjunção sem interesse para o ser humano e uma

justaposição a uma natureza, já tão perfeita em si mesma que mal se vê a razão de a elevar à

vocação sobrenatural.

Compreende-se, assim, como pôde se desenvolver assim a idéia da natura pura, da

finalidade e do destino naturais do ser humano. A tendência à negação do desejo natural de

ver a Deus acentua-se, então, mesmo que essa posição não desapareça completamente nos

séculos XVI e XVII. A posição extrema de M. Baio, à qual é preciso dar alguma atenção,

contribuirá para reforçar a tendência de Caetano de Vio.

76

3.3. Os desvios da Teologia pós-tridentina: Miguel Baio e Cornélio

Jansênio

Posições extremas sobre o sobrenatural, que serão logo julgadas heterodoxas, não

deram apenas lugar a condenações81. Bem ou mal, determinam também em larga escala o

desenvolvimento teológico. Não há nada de estranho, pois, que certo agostinismo, extraído na

época pós-tridentina do contexto do pensamento do bispo de Hipona, tenha marcado bastante

a reflexão católica sobre o tema do sobrenatural.

3.3.1. Miguel Baio: os direitos do ser humano em sua criação

A disputa começou com M. Baio, que partiu sua reflexão com a integridade e a retidão

de que o ser humano gozava no paraíso antes do pecado original. Essa retidão consiste na

presença do Espírito Santo e na ausência da concupiscência. Não se poderia explicar a criação

do ser humano sem o dom do Espírito, pois este é, segundo Agostinho, a vida da alma, como

a alma é a vida do corpo.

A tal condição de inocência original de Adão não foi alguma coisa concedida

graciosamente por Deus além do dom da criação, mas o que correspondia à condição natural

devida ao ser humano. O fato de o mal se encontrar agora no ser humano mostra que o estado

atual de concupiscência significa a carência de um bem devido. Deus não podia, por

conseguinte, tê-lo criado assim.

As noções de natural e de sobrenatural, como M. Baio as compreende, ajudam a

explicar sua posição. O natural é o que pertence à integridade de uma coisa, seja porque ela

81 Cf. SESBOÜÈ, B., LADARIA, L., et. al., Op. cit., p. 331-334.

77

não pode existir isenta de mal. Sem a integridade, o ser humano poderia ter existido, mas ele

não poderia estar isento do mal; por isso, essa integridade lhe era natural e “devida”. Segundo

outro sentido da palavra “natural”, a integridade de que gozava o primeiro ser humano

correspondia à sua natureza, pois a própria natureza vinha de seu nascimento.

Se Adão não tivesse pecado, observa o autor, a questão do sobrenatural não seria

posta:

Se Adão e sua posteridade continuassem como no início em que foram criados e tivessem prestado um culto a Deus com a mesma facilidade com que cultivavam os campos, quem faria agora conjecturas para saber se uma coisa não era natural, ou seja, concedida pela geração e pelo nascimento, e outra sobrenatural, ou seja, não devida à nossa natureza e generosamente juntada à nossa integridade para seu ornato pela generosidade do Criador?82

Foi, portanto, o pecado de Adão que criou o problema dessas duas ordens. Com a

perda da justiça pelo pecado e a reparação por Cristo põe-se o problema do que o ser humano

perdeu, do que ele conservou e do que Cristo lhe concede. Como, de fato, a justiça que

entrega Cristo de novo deriva do curso normal dos acontecimentos, Deus a concedeu segundo

seu bel-prazer, e, nesse sentido, ela é sobrenatural.

A justiça original era “natural”, como já se sabe, pois ela pertencia à integridade do

primeiro estado. É natural tudo o que foi concedido a Adão. Não se pode falar de

“sobrenatural” senão depois da vinda de Cristo. Porém, a função de Cristo, em sua ligação

com o “sobrenatural”, é, em M. Baio, muito limitada. Cristo é um simples “reparador”. O ser

82 Baiana, t.1, p. 60-61 apud DE LUBAC, H., Augustinisme et Théologie Moderne, 1a Edição, Lyon: Ed. Montaigne, 1965, p. 48.

78

humano tem necessidade agora de sua graça para fazer atos moralmente bons. Cristo reconduz

o ser humano à sua integridade original, mas não mais alto.

Se, em uma hipótese absurda, o ser humano realizasse atos bons sem a graça de Cristo,

Ele mesmo seria supérfluo. A novidade de Cristo não é reconhecida, tampouco a ligação

intrínseca entre a pessoa de Jesus e a salvação. Cristo não dá a filiação divina, não transforma

interiormente o ser humano e não o “eleva”. Ele apenas o “cura”, trata as feridas do pecado e

o faz retornar ao estado original. Numa aparente fidelidade às fórmulas de Agostinho de

Hipona, M. Baio se afastou profundamente do espírito de seu mestre.

H. de Lubac, fazendo uma apreciação perspicaz sobre a postura de M. Baio, afirma

que ao negar, pelo menos aparentemente, a gratuidade do sobrenatural negando a natura pura,

o autor pós-tridentino fez na realidade muito mais: ele esvaziou o “sobrenatural” de seu

conteúdo. Reduziu o conteúdo ao que se afasta da ordem normal dos acontecimentos, sem

defini-lo pelos conteúdos que significa: o apelo do ser humano à visão de Deus, à real

transformação interna e à divinização que permite ao ser humano, renovado pelo Espírito

Santo, obedecer aos mandamentos de Deus.

A obediência a Deus é, para M. Baio, independente da renovação interior, estritamente

“sobrenatural”, do ser humano – não vai além da justiça da lei. Assim, as obras boas são

dignas de mérito, independentemente do estado da pessoa que as realiza, perante Deus.

79

3.3.2. A bula Ex omnibus afflictionibus

Uma série de proposições de Baio foi condenada pelo Papa Pio V na bula Ex omnibus

afflictionibus, de 1º de outubro de 1567. Seguem-se algumas proposições que tocam mais

diretamente a questão do sobrenatural.

A exaltação e elevação da natureza humana à participação da natureza divina era devida à integridade do estado primitivo e deve, pois, ser chamada de natural e não de sobrenatural83.

Essa proposição não é textualmente de M. Baio. Os termos latinos empregados

(exaltatio e sublimatio) não correspondem a seu vocabulário, que rejeita precisamente a idéia

de exaltação. Trata-se, antes, de uma “tradução” de sua teologia nas categorias mais comuns

da época. Textual, todavia, é a seguinte proposição:

A integridade da primeira criação não foi uma exaltação não devida à natureza humana, mas sua condição natural.84

Coerentes com essa proposição são as seguintes:

Deus não teria podido, na origem, criar o ser humano tal qual ele nasce agora.85 A imortalidade do primeiro ser humano não era um benefício da graça, mas sua condição natural.86

Segundo M. Baio, Deus deve tudo ao ser humano. Compreende-se por que H. de

Lubac pôde escrever:

O pelagianismo perfeito seria o orgulhoso que não quer dever nada a ninguém. O baianista perfeito seria, antes, o litigante chicaneiro que apregoa sempre miséria,

83 DH 1921. 84 DH 1926. 85 DH 1955. 86 DH 1978.

80

reclamando o que se lhe deve. Baio é um Pelágio que se faz pedinchão. Pelágio, a ascese pura. Baio, o juridicismo puro. Um e outro, cada qual em sua ordem e à sua maneira, um naturalismo puro87.

3.3.3. Cornélio Jansênio e a impotência da natureza sem a graça

A posição de C. Jansênio sobre a questão tratada parece ser oposta à de M. Baio. Se

este exaltava a natureza, C. Jansênio exalta a graça, a ponto de a natureza humana ficar quase

aniquilada. H. de Lubac caracterizou assim as posições opostas dessas duas figuras que a

história uniu por suas pretensões de voltar a Agostinho, ainda que, a rigor, eles falsifiquem

profundamente o pensamento do doutor de Hipona:

Os dois, por certos traços, homens do Antigo Testamento – in novo, no autem de novo testamento. Baio, todavia, parece ter conservado, sobretudo, o espírito dos fariseus que, estabelecendo entre o homem e Deus uma espécie de convenção jurídica, viviam com ele num processo contínuo, pondo toda a esperança dele em obter no julgamento uma sentença de justificação; Jansênio pareceria ter herdado mais um outro caráter do judaísmo carnal, que foi também o de Maomé: a mesquinhez exaltada daquele que acredita ser o eleito do Senhor. O primeiro tendia a suprimir, de fato, a idéia da graça; já o segundo não a exagera, de certa forma, ao concebê-la como uma manifestação de poder tanto mais adorável quanto mais parecia arbitrária e tirânica? Enfim, se um e outro tendem igualmente a anular a união entre Deus e o homem, na qual consiste essencialmente o Mistério de Cristo, não é verdade que um eleva o homem em face de Deus na reivindicação de seus direitos, ao passo que o outro o aniquila?88

Na base do sistema de C. Jansênio, está o mesmo erro de M. Baio: o estado original da

criatura racional se identifica com o estado de Adão, anterior a seu pecado. Há uma oposição

entre a graça do estado original (adiutorium sine qua non) e a graça do estado da natureza

caída (adiutorium quo). Há um grande otimismo ao contemplar a justiça devida ao estado

original do ser humano, porém esse otimismo se converte em um profundo pessimismo, ao se

87 DE LUBAC, H., Augustinisme et Théologie Moderne, Op. cit., p. 20. 88 Ibidem, p. 50-51.

81

afirmar que a graça tem que atuar sobre as ruínas da natureza caída. O pecado deixa uma

marca tão forte no pecador que chega a corromper sua natureza.

Para Adão, a graça era simplesmente um instrumento da liberdade. Para o ser humano,

em estado de natureza caída, é um poder avassalador de Deus que, inclusive, o determina

psicologicamente. Apesar de tais afirmações, a doutrina de C. Jansênio não afeta tanto a

questão do sobrenatural como a de M. Baio. Tampouco lhe dizem respeito diretamente às

condições mais importantes do jansenismo89.

3.4. A reação dos autores católicos

A oposição às doutrinas de M. Baio levou de fato a teologia católica a tornar rígida a

distinção entre a ordem natural e a ordem sobrenatural, na linha já traçada por Caetano de

Vio, antes de explodir a polêmica com M. Baio90. Desse ponto de vista, a crise baianista criou

uma situação nova, ao impor aos teólogos, mas em sentido inverso, sua abordagem do

problema. Para melhor sublinhar que os dons da graça e da integridade concedidos a Adão

antes do pecado não eram devidos à natureza humana, a teologia será tentada a projetar, num

real possível, o que não era até então senão uma análise estrutural da relação do ser humano

com Deus. Propagou-se a hipótese da possibilidade da criação do ser humano em natura pura,

cuja existência teria uma consistência própria e um sentido.

A distinção tornou-se, então, separação concreta. Como essa natureza deve ser perfeita

e completa em sua ordem, cada vez com mais nitidez se lhe recusa o desejo natural de ver a

Deus. Francisco Suárez, por exemplo, assim se expressa:

89 Cf. MEIS, A., Op. cit., p. 406s. 90 Cf. SESBOÜÈ, B., LADARIA, L., et. al., Op. cit., p. 335-338.

82

Deve-se dizer que no homem não existe desejo inato de ver a Deus, claramente e como ele é em si mesmo, e, por conseguinte, tampouco existe [o desejo inato] da beatitude sobrenatural […]. O desejo inato se fundamenta na potência natural; mas no homem não existe a potência natural à beatitude sobrenatural; tampouco existe o desejo inato.91

É claro, de outro modo, que o ser humano pode desejar a beatitude sobrenatural, com a

ajuda da graça. Em outras palavras, o ser humano, que sabe, por revelação, que a beatitude

sobrenatural é, de fato, seu fim, não pode satisfazer seus desejos sem ela. F. Suárez tampouco

exclui que seja dado um desejo natural imperfeito, condicionado, à beatitude sobrenatural.

O autor espanhol observa, apesar de tudo, que, no estado de natura pura, mesmo que o

ser humano pudesse ter algum desejo condicionado dessa visão de Deus, não ficaria inquieto

– sob a condição de se comportar com prudência – ficaria contente com sua sorte natural,

porque saberia que seu desejo é o de uma coisa muito distante de sua natureza. Por isso, não é

necessário que o desejo inato se dirija para a realidade em torno da qual gira esse desejo

imperfeito, como acontece com outras veleidades de coisas possíveis.

Assim, vê-se transformada a distinção das duas ordens, o que serviu, sem dúvida

alguma para salvaguardar e para explicar a gratuidade da ordem sobrenatural. Deve-se

considerar também o amplo quadro cultural em que se situa essa atitude: o mundo da

Renascença, com a descoberta do humanismo e o surgimento de uma ordem profana que

reivindica certa autonomia diante da revelação divina e da Igreja.

91 SUÁREZ, F., La fin ultime de l’homme, Disp. XVI,2,6,10 in: Oeuvres complètes, 1ª Edição, Paris: Ed. Vivès, 1856, p. 152-153.

83

Porém, essa tendência, que começou a ser dominante a partir do século XVI, não foi

uniforme nem nesse século nem no início do século seguinte. A escola Scotoista manteve a

tese do “desejo natural” defendida por seu mestre, contra a qual reagira Caetano de Vio,

esquecido de que, sobre esse ponto, Duns Scoto coincidia substancialmente com Tomás de

Aquino. João de Rada já observava, com perspicácia e ironia, que os discípulos de Santo

Tomás, para não parecer que estão de acordo com Scoto, acrescentam muitas vezes, ao seu

pensamento, uma opinião que lhe é estranha.

Mas os Scotoistas não eram os únicos. H. de Lubac falou do “tomismo conservador”

do século XVI. Francisco de Vitória já criticava as doutrinas de Caetano de Vio. Seu discípulo

Domingos de Soto seguiu também a doutrina tradicional do desejo natural de ver a Deus

como inerente à natureza humana. Para ele é igualmente claro que é necessária a revelação

para conhecer esse desejo e que o ser humano, somente com suas forças, não o pode

satisfazer. Observa ele, explicitamente, que muitos tomam esse fato incontestável para negar o

desejo natural. Contudo, é preciso distinguir entre a causa e o efeito do apetite.

O desejo da visão divina é natural, não porque o ser humano o possa alcançar por suas

próprias forças, mas porque a natureza o pôs nele. Uma vez que é desejado pelo apetite

natural, esse fim pode ser chamado, nesse sentido, de natural. Essa linguagem se aproxima

bastante da de Duns Scoto.

Francisco de Toledo seguiu uma linha semelhante, fundamentando-se em Tomás de

Aquino e Duns Scoto. Como a visão de Deus não pode ser obtida pelas forças da natureza, ele

recusa chamá-la de fim “natural”. Tampouco ela é devida à natureza do ser humano e não

pode ser conhecida sem a revelação. Mas, apesar de tudo, a natural humana leva ao amor e à

84

visão de Deus. Entretanto, Francisco de Toledo não chega à dissociação dos fins, ainda que

deixe espaço à natureza e à ordem natural.

Encontram-se igualmente reflexos dessa doutrina tradicional nas obras de Roberto

Belarmino. A nova situação criada leva-o, sem dúvida, a um esforço para precisar a distinção

entre o natural e o sobrenatural. Assim, o corpo e a alma, as faculdades sensitivas e

intelectivas, são naturais ao ser humano. Uma vez que a “natureza” designa o constitutivo do

ser humano, esse termo se opõe ao “sobrenatural”, mas não é utilizado em outras acepções,

por exemplo, para descrever aquilo de que o ser humano dispõe em virtude de seu

nascimento.

R. Belarmino quer evitar mal-entendidos e confusões com a doutrina de M. Baio. No

sobrenatural, pode-se distinguir o sobrenatural “por si” (per se) e “por acidente” (per

accidens). Na primeira consideração, encontra-se diante do que não pode, de modo algum, ser

produzido pela natureza: a graça santificante, as virtudes infusas. Sobrenatural per accidens

diz respeito ao que não ultrapassa as forças da natureza em si mesma, mas no modo de

execução: por exemplo, as curas que Cristo fez. É claro que o problema teológico

fundamental se põe no primeiro plano, não no segundo. O sobrenatural é o que tem em Deus

sua razão e sua causa, o natural é o que tem sua razão e sua causa na natureza das coisas.

O ser humano não pode, pois, produzir por si mesmo os atos sobrenaturais. Não pode

alcançar por si mesmo a visão de Deus. Porém, isso não quer dizer que ele não a deseje. A

visão de Deus é chamada de fim natural do ser humano, não porque ele possa naturalmente

chegar a ela, mas porque a natureza é capaz da visão de Deus e porque o ser humano deseja

essa visão.

85

R. Belarmino dá dois exemplos: uma pedra tende naturalmente a cair na terra, mas,

enquanto está no alto de um telhado, não pode deslocar os obstáculos que a impedem de cair;

a alma separada deseja a união com o corpo, mas ela não pode chegar a isso naturalmente.

Como espírito, o ser humano tem, ao mesmo tempo, a capacidade de ver a Deus e, também,

esse desejo. Reconhece-se o pensamento de Tomás de Aquino quando R. Belarmino observa

que não é indigno da natureza humana o fato de ter Deus criado o ser humano com um fim

superior à sua natureza, mas ao contrário: o ponto mais alto de sua dignidade é ter sido criado

para um fim mais sublime que aquele que pode alcançar somente com as forças de sua

natureza.

R. Belarmino admite, todavia, que não haveria nada de absurdo se Deus não destinasse

o ser humano a essa visão divina. Ele poderia, de fato, tê-lo criado com um fim proporcional à

sua natureza, que seria o de procurar a verdade pelo raciocínio. R. Belarmino utiliza uma

comparação que lhe vem de Aristóteles, por intermédio de Tomás de Aquino: os olhos do

morcego têm a capacidade natural de ver o sol, mas Deus o fez somente para ver uma luz bem

mais fraca92.

O desejo natural da visão de Deus pode, pois, ser combinado com a possibilidade da

natura pura. H. de Lubac julga que R. Belarmino foi o primeiro a formular a hipótese da

natura pura, mesmo que não tenha levado adiante essa idéia. R. Belarmino afirma, algures,

que o homem chega a seu fim quando vê a Deus tal como é. Essa é a conseqüência de sua

condição de imagem de Deus, a qual não pode chegar à sua plenitude se não tem a mais

perfeita semelhança com o modelo.

92 Cf. DE LUBAC, H., Augustinisme et Théologie Moderne, Op. cit., p. 186.

86

4. A renovação católica: a relação natureza e graça no século XX

4.1. Os primeiros intentos de renovação: a Teologia da graça nos

séculos XVII - XIX

Com as discussões que surgiram a partir do agostinismo exagerado dos séculos XVI e

XVII, alguns pontos doutrinais importantes foram esclarecidos93. O que se mostrou mais claro

foi que certos caminhos de restauração se mostraram completamente inviáveis, por não darem

suficiente atenção às mudanças históricas.

Tais circunstâncias históricas obrigaram um grande desenvolvimento da Teologia da

graça, que produziu, durante os séculos XVI e XVII, resultados notáveis. Contudo, as

discussões entre as distintas escolas teológicas não deram lugar a uma grande criatividade,

especialmente a partir da segunda metade do século XVII. Os teólogos que se distanciaram

dessas discussões não tiveram grande repercussão no conjunto teológico, porém, prepararam o

caminho para a futura renovação.

No século XVII, se destaca a figura de Dionísio Petavius que, com o retorno aos

Padres gregos, especialmente Cirilo de Alexandria, quer recuperar o papel primordial da

presença de Deus na alma (gratia increata) ante a primazia comumente outorgada à graça

(gratia creata). O teólogo discute também a teoria das “apropriações”, para afirmar que, na

relação do ser humano com Deus, as pessoas da Santíssima Trindade têm uma função

“própria”.

93 Cf. MEIS, A., Op. cit., p. 412s.

87

Algumas dessas intuições serão recolhidas pelo grande teólogo do século XIX, o

alemão Mathias Joseph Scheeben, maior expoente da assim chamada Neo-escolástica. Ele

também reivindica a centralidade da presença de Deus no ser humano e sua prioridade com

respeito à graça (gratia creata). Esta, sem ser uma noção supérflua, deve ser considerada

como secundária. Considera, igualmente, que a Trindade, como tal, em unidade e em

distinção das Pessoas Divinas, atua na renovação interior do ser humano pela graça.

É interessante também destacar sua visão sobre o problema do “sobrenatural”, como

elevação do ser humano a uma perfeição que não pode chegar por si mesmo. Contudo, o autor

alemão não se esquece de que no desígnio de Deus existe uma unidade fundamental entre a

ordem da natureza e a ordem da graça.

A nova compreensão dada à máxima tomista gratia non destruit, sed praesupponit,

perficit et elevat naturam (a graça não destrói, mas pressupõe, aperfeiçoa e eleva a natureza)

permite a superação dos esquemas de M. Baio e C. Jansênio durante o século XIX. Natureza e

graça já não são compreendidas como duas realidades que se contrapõem, mas como duas

realidades que se compenetram (pericórese)94.

4.2. Resgate do conceito “natura” a partir da graça e o ponto de

identidade no pensamento de Joseph Marechal

Como já se mencionou, a discussão sobre a relação natureza e graça foi uma das mais

delicadas e debatidas pela Teologia do século XX. A tentativa de precisar a distinção entre a

94 Cf. SCHEEBEN, M., As maravilhas da graça divina, 1ª Edição, Petrópolis: Ed. Vozes, 1952, p. 25-31.

88

presença do ser humano no mundo e a auto-comunicação de Deus a ele, a partir da ordem da

criação e da redenção, chega à sua grande crise quando o conceito “natura” abandona seu

fundamento teológico-metafísico95.

Nesse contexto, se encontra Joseph Marechal, filósofo franco-belga do início do

século XX, quem também contribui para o pensamento teológico posterior. Pode-se dizer que

é um “fundador” de uma escola, por conhecer e exigir uma relação positiva entre Tomás de

Aquino e o idealismo alemão. Sua base de pensamento é I. Kant, o que lhe permite introduzir

uma metodologia concisa e uma sistemática firme dentro do pensamento tomista.

O espírito finito se constitui a partir da identidade inalcançável do intelecto arquétipo

divino. Dessa forma, o autor belga concebe este espírito como um dinamismo que, a partir de

seu ser mais profundo, se dirige rumo ao Absoluto. Esse pensamento lhe conduz a

compartilhar seu interesse entre a mística e a metafísica.

O sentimento da presença é uma experiência da totalidade, da qual procede todo

pensar conceitual e que na alta mística se desdobra como uma situação do ser que é

inalcançável somente com o esforço do intelecto e prolonga o momento inicial. Esse “ponto

de identidade” inalcançável à natureza e dado somente por graça, onde o Absoluto se faz

presente imediatamente ao espírito, é objeto não só da mística, mas também da metafísica.

A metafísica é a ciência do Absoluto, que é possível somente na medida em que esse

Absoluto exista, ou seja, Deus. A atividade transcendental é expressão de uma unidade

objetiva do Absoluto, que desce ao encontro das essências limitadas e finitas. Pensar a

95 Cf. MEIS, A.,Op. cit., p. 415s.

89

metafísica ao contrário, segundo J. Marechal, é impossível, pois esta seria uma metafísica

indutiva, que ascende desde os sentidos rumo ao espiritual e procura conclusões lógicas sobre

o Absoluto.

Para J. Marechal, este “ponto de identidade”, a partir do qual se começa a pensar, não

é um alcançar o Absoluto, mas sim se deixar alcançar por ele. O autor francês tenta, além do

mais, interpretar todo o espírito humano como ordenamento a esse ponto. Por conseguinte, é

preciso construir o espírito humano além da abstração e da intuição, capacidades nas quais

razão e vontade constituem uma unidade que, em vista a uma intuição não alcançável por

própria força, está construída de tal forma que deve tender a ela com toda a sua natureza e

possuir como natureza a intuição relativa do Absoluto.

A Teologia se ocupará do problema posto por J. Marechal, como se pode verificar no

pensamento dos teólogos do século XX e sua a compreensão do desiderium naturale visionis.

4.3. Uma trabalhosa mutação na Teologia

Finalmente, a hipótese de uma criação do ser humano no estado de natura pura

acabou por se impor na Teologia católica96. A gratuidade da ordem sobrenatural foi garantida

pela doutrina das duas ordens: a hipótese da natura pura e a negação do desejo natural de ver

a Deus. Essa reflexão deixava grande espaço ao meio “natural” do ser humano, que é

atualmente conhecido como autonomia da realidade temporal, o imenso campo das atividades

em que a revelação cristã não tem incidência direta. Reconhece-se a necessidade de se abrir às

exigências universais da razão.

96 Cf. SESBOÜÈ, B., LADARIA, L., et al., Op. cit., p. 339-343.

90

Contudo, essa posição traz consigo o perigo de fazer de Deus e da vocação

sobrenatural algo extrínseco ao ser humano, algo de que se pode abstrair e que não é

necessária para ele. O termo “excedente”, até certo ponto injurioso no assunto, pôde ser

empregado. A distância que se verifica em relação à primeira tradição cristã é enorme.

Os aspectos positivos e negativos se misturam inevitavelmente nessa história.

Compreende-se, porém, que a renovação dos estudos bíblicos e da história da tradição,

ocorrida na primeira metade do século XX, tenha provocado a insatisfação em relação às teses

que prevaleciam no decurso dos últimos séculos. A redescoberta de uma visão mais unitária

nas obras dos Padres da Igreja e da tese de Tomás de Aquino, referente ao desejo natural de

ver a Deus, provocarão uma mudança de perspectivas. De estudos simplesmente históricos, no

início, passou-se, depois, inevitavelmente, a novos ensaios sistemáticos.

Com a tese do desejo natural de ver a Deus proposta novamente, o problema da

gratuidade da ordem sobrenatural e da vocação à visão beatífica tornou-se objeto de vivo

debate. A publicação, em 1946, do famoso livro de H. de Lubac, Surnaturel. Études

historiques97, suscitou numerosas discussões. Os debates provocaram uma intervenção de Pio

XII, na encíclica Humani generis, de 1950:

Outros deformam a verdadeira noção da gratuidade da ordem sobrenatural, ao pretenderem que Deus não possa criar seres dotados de inteligência, sem os ordenar e os chamar à visão beatífica.98

97 DE LUBAC, H., Surnaturel. Études historiques, Op. cit., p. 339. 98 DH 3891.

91

Com esse ponto de referência, a Teologia católica deixou essa questão em sono

profundo nos anos seguintes. Vários grandes nomes da Teologia do momento intervirão no

debate: H. de Lubac, K. Rahner, H. Urs von Balthasar, J. Alfaro, entre outros.

4.3.1. O desejo natural de ver a Deus segundo Henri De Lubac

Para o autor da Nouvelle Theologie, a teoria da natura pura se refere a uma ordem

possível das coisas, a partir da qual se desdobram natureza e sobrenatural em duas finalidades

paralelas e justapostas. Entretanto, ela não justifica a ordem atual e é insuficiente para

explicar a gratuidade aqui e agora do dom de Deus e da visão beatífica.

A finalidade pela qual Deus criou o ser humano é parte essencial de seu ser e não

alguma coisa que possa ser mudada arbitrariamente.

O verdadeiro problema […] se põe para o ser cuja finalidade já é sobrenatural, e é esse o nosso caso. […] Resta, pois, demonstrar como para esse mesmo ser não há realmente ‘exigência’ de tal fim, no sentido em que essa palavra com razão causa escândalo.99

O apelo à visão de Deus é constitutivo do seu ser, como o é o fato de ter sido criado. O

duplo dom de Deus e a dupla gratuidade, que H. de Lubac afirma claramente, encontram sua

unidade no ser concreto de cada um.

Para resolver o problema, H. de Lubac propõe uma reviravolta na problemática. Ele se

opõe à imagem ingênua de um presente dado a alguém já existente, o que subentende a

representação de um Deus que, primeiro, deu o ser e, depois, imprimiu sobre ele uma

99 DE LUBAC, H., Lê mystère du surnaturel, Op. cit., p. 92-93.

92

finalidade sobrenatural. O problema é insolúvel, se se vai do natural para o sobrenatural;

torna-se compreensível, contudo, se se vai do sobrenatural à natureza.

Não é o sobrenatural que se explica pela natureza, ao menos como postulado por ela; é a natureza que se explica, aos olhos da fé, pelo sobrenatural, como solicitado por ele.100

É o desígnio original que tem Deus de atrair o ser humano ao sobrenatural que

determina a certeza de sua natureza. De acordo com essa visão, a dupla gratuidade do

sobrenatural e da criação fica respeitada.

Todavia, permanece um mistério: o do desejo natural de ver a Deus. A natureza é um

ser espiritual, ou seja, ela não é simplesmente natureza no sentido em que esse conceito se

verifica para os seres do cosmo. O paradoxo do ser humano é de ser, ao mesmo tempo,

natureza e espírito:

A criatura espiritual tem uma relação direta com Deus que lhe vem de sua origem. E isso muda tudo. Daí haver nela essa espécie de bamboleio, essa misteriosa claudicação, que não é a do pecado, mas, mais radicalmente, a de um animal que é espírito, de uma criatura que, estranhamente, atinge Deus.101

Em 1965, H. de Lubac justifica sua posição em relação às críticas que lhe foram feitas

e expressa assim sua concordância com a Humani generis:

Sem nada negar dogmaticamente das possibilidades que nos escapam, sem recusar uma hipótese abstrata que pode ser um bom meio de nos representar ao vivo uma realidade certa, não seria “mais simples e mais razoável”, na elaboração de uma doutrina teológica, não procurar sair do real que conhecemos? […] Haveria a necessidade de demonstrar de modo inteligível como Deus jamais pode ser coagido,

100 Ibidem, p. 105. 101 Ibidem, p. 107.

93

por exigência alguma, a se dar ele mesmo ao ser saído de sua mãos, como se depreende do mais elementar, do mais fundamental e mais constante no ensinamento cristão, lembrado recentemente na encíclica Humani generis, de Pio XII.102

O autor sustenta, pois, a legitimidade e a verdade da fórmula de Pio XII; mas ele

considera-a expressão de uma “hipótese abstrata” e, com igual firmeza, rejeita sempre fazer

dela a referência de uma reflexão teológica sobre a gratuidade do sobrenatural. Essa tensão

interior a seu pensamento tinha certamente alguma coisa a ver com as objeções que lhe

tinham sido feitas.

4.3.2. A teologia transcendental de Karl Rahner

Igualmente para K. Rahner, o ponto de partida da Teologia deve ser o ser humano

realmente existente, não o possível. Ora, tudo o que o ser humano experimenta em si mesmo

não equivale à sua natura pura, porque, de fato, ela não “existe” em estado puro. O ser

humano se encontra na ordem da graça e essa ordem não pode deixar de ter influência sobre o

modo de ele compreender a si mesmo, ainda que não tenha disso uma consciência refletida.

No ser humano realmente existente, a ordenação para Deus e a capacidade de recebê-

lo constituem o centro de seu ser. Porém, ao mesmo tempo, essa capacidade deve se

caracterizar como um dom não-devido, sobre o qual, como criatura, ele não tem direito

algum. O conceito de natura pura, como distinto da essência concreta do ser humano, é um

Restbegriff (conceito residual)103, ou seja, aquilo que restará se se retira mentalmente de seu

ser o que significa a ordenação a Deus.

102 Ibidem, p. 75-76. 103 Cf. MEIS, A., Op. cit., p. 417s.

94

Esse conceito é necessário para salvaguardar a gratuidade do apelo à graça. Contudo,

jamais se pode determinar seus conteúdos, porque o ser humano, em sua maneira de se

experimentar e de se compreender, não pode eliminar o que, de fato, constitui o mais

profundo dele mesmo, a ordenação a Deus.

K. Rahner mantém a distinção de base entre a natureza tomada como tal e a vocação

gratuita ao sobrenatural que o afeta concretamente. Ele chama essa vocação, em uma

linguagem de tipo heideggeriano, de “existencial sobrenatural”. É um existencial, ou seja, um

dado que, sem pertencer de modo algum à natureza como tal, afeta-a de modo original,

intrínseco e necessário em sua existência. Por exemplo, o fato de ser “histórico” é para o ser

humano um existencial. Porém, o existencial em questão aqui é sobrenatural: é o fato do

desígnio gratuito de Deus a respeito do ser humano. No plano propriamente natural, K.

Rahner só reconhece no ser humano uma abertura, uma “potência obediencial”.

O teólogo alemão junta-se às principais preocupações de H. de Lubac em seus

cuidados de evitar todo dualismo entre natureza e sobrenatural – com isso, sua solução é

realmente diferente. Onde seu confrade francês dá destaque ao desejo natural de ver a Deus,

K. Rahner fala de um existencial sobrenatural. E os dois de modo algum chegam a um acordo.

Pois, para H. de Lubac, o existencial sobrenatural é uma “suposição inútil” que só faz

deslocar o problema e chega sutilmente a uma concepção próxima da de Caetano de Vio e da

tardia escolástica. Não se pode constatar senão esse contencioso que marca duas

aproximações possíveis do paradoxo do ser humano em sua relação com Deus.

K. Rahner respeita em todos os sentidos a noção de gratuidade; ele se apega mais à

unidade concreta da existência do ser humano, remetendo a noção de natura pura à análise

95

abstrata dos conceitos. H. de Lubac quer dar mais destaque à consistência paradoxal da

natureza espiritual do ser humano104.

4.3.3. Natureza e graça na Teologia de Hans Urs von Balthasar

Mantendo praticamente a mesma postura de K. Rahner, está a figura de H. Urs von

Balthasar. Contudo, seu caminho foi distinto: chegou a conclusões similares com respeito à

relação natureza e graça, ao se confrontar com o pensamento de K. Barth. A partir de uma

análise cristocêntrica, o teólogo suíço se pergunta novamente pelo problema do sobrenatural,

uma vez que a teologia católica parece estar bloqueada na noção de natureza. Em

contrapartida, o pensamento de H. Urs von Balthasar não coincide totalmente com K. Barth,

porque este chegou a sustentar a negatividade do conceito natureza para a compreensão do

cristianismo105.

O ser humano foi criado para a visão e a possessão de Deus; não há outro fim para sua

existência. Ele sabe de seu não-ser-absoluto, se compreende, em sua razão e liberdade, como

imagem do Absoluto e possui uma ordenação essencial criatural a esse mesmo Absoluto. Em

seu excessus de Deus já está o seu regressus, uma vez que a ordenação da criatura ao Criador

requer o fato de a mesma criatura ter sido posta no mundo e a auto-comunicação livre de

Deus. Sendo assim, o ser humano não se auto-realiza somente em sua liberdade finita, mas

descobre o chamado essencial que Deus lhe faz para se abrir à sua auto-comunicação.

Tal chamado essencial, que é muito mais que o simples fato de ser protótipo ou

imagem do Criador, permanece como um selo que marca definitivamente a estrutura humana.

104 Cf. RAHNER, K., Escritos de Teología (Tomo I), 3ª Edição, Madrid: Ed. Taurus, 1967, p. 325s. 105 Cf. MEIS, A.,Op. cit., p. 433s.

96

Esse chamado pode ser conhecido como “existencial sobrenatural”, mesmo que H. Urs von

Balthasar não chegue a ampliar mais o seu conteúdo; o conceito é compreendido como um

convite que está além da ordenação natural do ser humano.

Se tal convite à liberdade infinita está incluído na estrutura concreta da liberdade

finita, se entende mais profundamente porque a não atenção a essa chamada no pecado

significa o fechamento da criatura à ação do Criador. Portanto, somente o próprio Criador, a

partir de uma iniciativa salvífica, voltará a abrir a criatura. Ante Deus, a conversão não se

realiza partindo de uma reflexão natural sobre a figura bondosa e amorosa de Deus, mas, sim,

de uma fé viva em um Deus que se auto-comunica gratuitamente. A conversão é fruto do

poder efetivo da graça.

4.3.4. Juan Alfaro: a Antropologia Teológica iluminada pela

Cristologia

A preocupação de J. Alfaro106, ao tratar tal questão, é mostrar a transcendência e a

imanência da graça partindo da natureza do ser humano como “espírito finito”107. É mérito do

teólogo espanhol ter posto a discussão desse problema em um contexto cristológico. O

problema da gratuidade da graça deve ser tratado desde a gratuidade e transcendência da

Encarnação e, ao mesmo tempo, a imanência da graça será percebida desde a luz da auto-

comunicação de Deus ao ser humano, que possui sua maior expressão na própria Encarnação.

106 Cf. LADARIA, L., Op. cit., p. 16-18. 107 Cf. ALFARO, J., Trascendencia e inmanencia de lo sobrenatural. Gregorianum, Roma, v. XXXVIII, p. 5-50, 1959.

97

A plenitude da graça será dada ao ser humano na visão de Deus; por isso, é necessário

compreender como essa plenitude da graça é, ao mesmo tempo, transcendente e imanente ao

ser humano. Esta visão significa, que a divinização do ser humano, pertence à ordem da

Encarnação; portanto, é preciso afirmar sua transcedência com respeito da ordem criatural108.

Por outro lado, contudo, deve-se considerar também a imanência da visão. Não é um bem

acidental para o ser humano, mas, sim, o único que pode lhe dar sua perfeição definitiva.

Com efeito, a visão de Deus, uma vez que se sabe por revelação que é possível, deve

ser considerada a suma perfeição do ser intelectual criado. A partir dessa possibilidade, deve-

se deduzir a existência no ser humano de um aspecto ontológico que o faça “capaz” de chegar

a ela109. Mesmo que seja necessário manter a gratuidade da Encarnação e da visão, é preciso

descobrir uma inteligibilidade no ser humano, paralela ao chamado que recebeu de poder ver

a Deus. A noção de “criatura intelectual” ou seu equivalente, “espírito finito”, abre este

núcleo inteligível do ser humano, como criatura de Deus.

A análise do conceito de “criatura intelectual” mostra como, em sua transcendência, a

visão de Deus é a única plenitude de sentido do ser humano. Existe no “espírito finito” um

paradoxo, uma tensão, entre a condição espiritual, que indica a abertura ilimitada do ser, e a

limitação da própria criatura, criatura essa que não pode, por si mesma, superar a tensão entre

o ato e a potência, pois está sempre submetida à lei do progresso. Por isso, não poderia nunca

alcançar mais que um conhecimento mediato de Deus, por meio da analogia; esse

conhecimento seria sempre imperfeito, nunca seria plenamente satisfatório: de fato, sempre

permaneceria a interrogante de como Deus é em si mesmo.

108 Ibidem, p. 9. 109 Ibidem, p. 15-19.

98

A essência divina só pode ser conhecida por intuição. Com este conhecimento, o

entendimento criado adquire a imobilidade perfeita e a plena satisfação. Porém, tal

conhecimento é possível somente por graça, pois, para chegar a Deus mesmo, não bastam as

forças naturais110.

Algo semelhante pode-se dizer da liberdade humana: todos os bens que o ser humano

pode conhecer não determinam absolutamente sua vontade, tampouco Deus, em quanto

conhecido só mediatamente. Só com a visão de Deus, a liberdade alcança aquilo além do qual

não se pode desejar outra coisa: Deus como Bem Supremo.

Na orientação do espírito finito ao Absoluto, descobre J. Alfaro o ponto de inserção da

visão de Deus no ser criatural do ser humano, de forma que essa plenitude, sem deixar de ser

transcendente, é imanente ao próprio ser humano. Em sua condição de espírito, ele possui a

abertura à plenitude na visão de Deus111. No ser humano, há realmente uma ordenação e um

desejo da visão de Deus, mas esse apetite inato tem características singulares, porque o ser

humano não pode satisfazê-lo por suas próprias forças. Isto não é contraditório com a noção

de “apetite”, pois, para se falar de apetite, basta que o apetecido aperfeiçoe aquele que o

alcança (ou seja: a visão de Deus aperfeiçoa o ser humano).

O desejo é, portanto, condicionado quanto a seu fim, incondicionado, todavia, quanto

ao que é normativo da atividade do espírito. Por isso, se o ser humano não estivesse chamado

à visão de Deus, esse desejo continuaria movendo-o para alcançar um conhecimento sempre

110 Ibidem, p. 19s. 111 Cf. ALFARO, J., El problema teológico de la trascendencia e inmanencia de la gracia in: Cristología y Antropología. Temas teológicos actuales, 1ª Edição, Madrid: BAC, 1973, p. 314.

99

maior para se aproximar sempre mais de Deus. Entretanto, não alcançaria nunca a satisfação

plena, não superaria a possibilidade de aperfeiçoar-se ilimitada, que é própria do ser criatural

e espiritual. Logo, o ser humano, no estado de natura pura é pensável. Contudo, nessa

situação, seria um ser aparentemente antinômico, ordenado à visão de Deus, mas

impossibilitado de alcançá-la.

De um lado, só existe uma finalidade para o espírito finito: a visão de Deus. Não há

duas finalidades para o ser humano112. De outro lado, ainda sem alcançar esta única finalidade

última, o ser humano sem a graça teria suficiente razão de ser. Viveria em um progresso

indefinido ante Deus que, ao não aproximá-lo da visão, seria um autêntico crescimento com

respeito a seu ponto de partida e às etapas precedentes. Surgiria, assim, uma determinada

“felicidade natural” que é fundamento da possibilidade da natura pura. Mostrando, assim, a

inteligibilidade dessa última, aparece o caráter gratuito que para o ser humano tem a plena

felicidade na visão de Deus.

5. Balanço final

Tanto a apresentação histórica feita, como a análise da problemática teológica em

torno à relação natureza e graça permitem ver a complexidade e dificuldade do tema. Chama a

atenção o fato de que, com alguma exceção, nos anos quando a discussão sobre o

“sobrenatural” foi mais acirrada, não se tenha posto em destaque que o fundamento da

gratuidade da elevação do ser humano à comunhão com Deus é a gratuidade da própria

112 Ibidem, p. 316, 324 e 338.

100

Encarnação, como se pôde notar posteriormente na obras Der Begriff der Natur113 de H. Urs

von Balthasar e El problema teológico114 de J. Alfaro.

Toda reflexão teológica sobre a graça deve partir, portanto, da consideração que não

há outra graça que o próprio Jesus Cristo, enviado do Pai, e dom de seu Espírito Santo, que

faz, dos seres humanos, filhos e filhas de Deus. Por outro lado, é preciso ter presente o dado

neotestamentário da criação do mundo em e para Cristo. A Encarnação não é somente o

máximo ato de amor de Deus e, portanto, gratuito por excelência; a Encarnação é também o

fundamento de tudo que existe. Essa afirmação vale especialmente para o ser humano.

Cristo é o Primogênito de toda criação, Ele também é o Primogênito dos mortos. O ser

humano existe para poder ser imagem do Filho morto e ressuscitado, perfeitamente

configurado com Ele, segundo sua semelhança, filhos n’Ele e com Ele. É decisivo na

constituição do ser humano, desde um ponto de vista teológico, o convite de Deus à

comunhão com Ele; o convite a participar na relação que, no seio mesmo do amor intra-

trinitário, une o Filho com o Pai. A única “definição” teológica original e primária do ser

humano é aquela que parte do desígnio de Deus sobre ele; qualquer outra “definição” será,

desde um ponto de vista teológico, secundária e não pode ser tomada como ponto de partida

para a reflexão sobre o problema do “sobrenatural”. Não há uma noção do ser humano prévia

à vontade divina expressada já no ato criador.

113 BALTHASAR, H. U. v., Der Begriff der Natur in der Theologie. Zeitschrift für Theologie und Kirche, Tübingen, n. 75, 1953. 114 ALFARO, J., El problema teológico de la trascendencia e inmanencia de la gracia in: Cristología y Antropología. Temas teológicos actuales, Op. cit.

101

III. A relação natureza e graça na obra “Dass neue Menschen

werden”

1. Método

Como se afirmou na conclusão do capítulo I desta presente dissertação, a obra “Dass

neue Menschen werden” do Pe. José Kentenich dá que pensar115. O teólogo que se ocupa com

a leitura da mesma pode seguir diversas linhas de pensamento; a primeira linha apresentada,

seguindo a proposta da dissertação, foi um estudo histórico-dogmático sobre a relação

natureza e graça.

Neste terceiro capítulo, realizar-se-á uma aproximação crítica à obra Dass neue

Menschen werden. A obra, como já se mencionou, não é de cunho teológico; trata-se da

transcrição de um curso pedagógico realizado pelo Pe. José Kentenich, em 1951. Não

obstante, é possível pensar teologicamente a partir do texto; à base do texto, está a visão

antropológica do Pe. José Kentenich e, portanto, também sua visão teológica.

A modo de conclusão deste capítulo, expor-se-á o pensamento pós-conciliar re-

situando, assim, a problemática teológica da relação natureza e graça. Dois grandes desafios

trabalhados pelos documentos conciliares, especialmente pela constituição dogmática sobre a

Igreja Lumen gentium e a constituição pastoral sobre a Igreja no mundo Gaudium et spes, são

a compreensão da singularidade e originalidade do ser humano no mundo, iluminados pela

Encarnação do Filho de Deus e seu Mistério Pascal e a mediação eclesial.

115 Cf. MANZATTO, A., Op. cit., p. 37.

102

2. Uma aproximação crítica à obra Dass neue Menschen werden

Ao ditar o curso pedagógico Dass neue Menschen werden, como posteriormente se

tornou conhecido, o Pe. José Kentenich apresentou vários aspectos de seu esquema

pedagógico e também sua fundamentação psicológica. Não realizou, entretanto, essa

apresentação de uma forma sistemática; esforçava-se por captar a perspectiva de seu público e

apresentava as idéias centrais de curso de acordo com o interesse dos ouvintes.

Por essa razão e também pelo fato de a obra Dass neue Menschen werden ser fruto da

transcrição das conferências do curso pedagógico mencionado, é necessário ter presente que a

mesma é limitada. Não era intenção do autor resolver questões sistemáticas; sua intenção era

apresentar os elementos de uma Pedagogia religiosa.

Contudo, como já se mencionou várias vezes ao longo desta dissertação, a leitura da

obra dá que pensar. Tal tarefa capta especialmente o interesse do teólogo, já que é possível

identificar, nas conferências do curso pedagógico, uma ampla base antropológico-teológica.

Essa base, mesmo com suas limitações, permite ao teólogo elaborar sua reflexão sobre a

problemática teológica da relação natureza e graça.

O autor se ocupa extensamente com duas vivências que possuem uma ampla base

natural e, ao mesmo tempo, são convites abertos para a integração de toda a vida humana no

mundo da graça: a Piedade Mariana e a vivência da Heimat (lar). Em todo capítulo da obra

Dass neue Menschen werden, se esforça por apresentar uma consideração mariana que

exemplifica, muitas vezes de forma simplória, o tema exposto com a Piedade Mariana. E ao

concluir a obra, o autor realiza uma ampla consideração sobre a Heimat (lar) e sua relação

com o organismo de vinculações (Bindungsorganismus).

103

2.1. A Piedade Mariana e a vivência da Heimat

As considerações marianas na conclusão de todas as conferências do curso pedagógico

Dass neue Menschen werden não se devem simplesmente à piedade do autor e de seus

ouvintes, mas revela a intenção de apresentar uma educação religiosa que toca as camadas

mais profundas do ser humano, isto é, sua vida consciente, subconsciente e inconsciente.

A Piedade Mariana, dentro do pensamento do Pe. José Kentenich, não possui somente

perspectivas teológicas, engloba também perspectivas psicológicas que devem ser destacadas.

Toda psique humana se desenvolve a partir uma necessidade profunda: encontrar um ponto de

referência para o desenvolvimento da pessoa e da personalidade. O primeiro ponto de

referência que o ser humano encontra é a relação materno-filial. A vivência materno-filial

lança raízes profundas na pisque humana; que nasce como primeira vivência da infância,

provavelmente a mais marcante e condicionante de toda a existência116.

As respostas para impotência e limitação humanas são encontradas no amparo e na

segurança maternos. Esse amparo (Geborgenheit), assegurado completamente no ventre

materno e posteriormente no cuidado maternal, é a possibilidade para o desenvolvimento

sadio da pessoa humana. Se esse amparo se encontra limitado, especialmente pelo descuido

maternal, a pessoa também se vê limitada e condicionada em sua liberdade117.

116 Cf. VAUTIER, P., Maria die Erzieherin in: Schönstatt-Studien (Tomo III), 1ª Edição, Vallendar am Rhein: Patris Verlag, 1981, p. 191-198. 117 Cf. VAUTIER, P., Maria die Erzieherin Op. cit., p. 196-198. Cf. também BAUMGARTNER, I., Pastoralpsychologie, 1ª Edição, Düsseldorf: Patmos Verlag, 1990, p. 167-172 e 488-498.

104

Pelo vínculo mariano, o ser humano encontra respostas às necessidades básicas de sua

existência. Deve-se ressaltar, portanto, a necessidade de uma Mariologia esclarecida, isto é,

uma Mariologia que está constantemente referida à Cristologia, à Eclesiologia e à

Antropologia. Ademais, também se reconhece na Piedade Mariana a resposta à necessidade

humana de um ponto de referência.

O vínculo à pessoa de Maria não deve ser encarado somente como uma possibilidade

de realização para o ser humano religioso; é, também, uma possibilidade de cura da psique

humana, pois possui seu ponto de referência na vivência mais profunda que todo ser humano

tem, como já se mencionou anteriormente.

Caso a capacidade de vivência religiosa do ser humano se encontre limitada e

condicionada, o vínculo mariano surge como uma possibilidade de abertura e ampliação da

capacidade religiosa do ser humano. Ao se referir à vivência materno-filial, especialmente ao

se referir à necessidade de amor que todo ser humano possui, o vínculo mariano aparece como

uma possibilidade de realização afetiva do ato religioso (este não se vê limitado a uma decisão

intelectual e volitiva). Contudo, o educador católico deve cuidar para que o vínculo mariano

não desemboque no sentimentalismo religioso.

Contra tal tentação, o educador católico responde com uma Mariologia esclarecida,

como já se indicou, mas também insiste na necessidade de um oferecimento da natureza à

vida da graça de Deus. Ele sempre tem presente a theologia crucis, na qual toda a pessoa

humana, por amor a Maria (em primeiro lugar, mas também por amor a Deus, em uma visão

105

orgânica), é capaz de se oferecer a Deus. Essa oferta não anula a pessoa, pelo contrário a

conduz à sua plena realização (theologia ressurrectionis) 118.

Além do mais, o projeto humano se vê plenamente realizado em Maria; nela as

diversas esferas da vida humana estão harmônica e organicamente integradas. Essa integração

é fruto da graça de Deus119. O vínculo mariano almejado pela educação religiosa não se

estanca na reflexão sobre a importância da pessoa e da missão histórico-salvífica de Maria; o

vínculo que se deseja é o afetivo, carregado de sentimentos e que busca, ao mesmo tempo, o

esclarecimento dos mesmos.

Esclarecer os sentimentos é uma tarefa árdua, porém necessária para o

desenvolvimento da pessoa ao longo de sua existência histórica. O vínculo mariano, por ter

seu ponto de referência na relação materno-filial, trata de esclarecer os sentimentos não

elaborados que nasceram dessa relação. Contudo, os sentimentos não elaborados, que

nasceram da relação materno-filial, não se referem única e exclusivamente a essa relação. Por

limitações, a relação materno-filial pode também gerar sentimentos não esclarecidos nas

relações paterno-filial e fraterna120.

O educador católico, como trabalha o autor, se esforça pelo vínculo mariano porque

nele vê a possibilidade da re-integração do educando dentro do organismo de vinculações

(Bindungsorganismus). A percepção dessa realidade se dá também graças à vivência da

Heimat (lar), como o autor também destaca na obra Dass neue Menschen werden.

118 Cf. VAUTIER, P., Maria die Erzieherin, Op. cit., p. 67-68. 119 Cf. BOFF, C., Mariologia Social, 1ª Edição, São Paulo: Ed. Paulus, 2006, p. 508-509. 120 Cf. VAUTIER, P., Maria die Erzieherin, Op. cit., p. 191-196.

106

Quando o ser humano vivencia a Heimat, confronta-se com o seu sentido de pertencer

a um organismo de vinculações (vínculos locais, pessoais e espirituais). Em uma formulação

mais arriscada, pode-se inclusive afirmar que essa vivência é constitutiva da existência

humana no mundo121. Ao saber-se dentro de um organismo de vinculações, o ser humano tem

a possibilidade de integrar seus diversos estratos, partindo daqueles mais básicos de sua

existência, como seu corpo e sua necessidade de estabelecer relações com outros seres

humanos, chegando até o amadurecimento de sua liberdade e a percepção de sua originalidade

pessoal. Nessa vivência, o ser humano se torna humano, se humaniza.

A vivência do “eu” é possibilitada pela presença do “tu” – sem este é praticamente

inviável a percepção da originalidade da pessoa humana. O “eu” estabelece relações com o

“tu”, o que os abre ao “ele”, formando, assim, uma espiral de relacionamentos e não somente

um ciclo fechado. Esse processo pode ser identificado com uma dinâmica de alteridade-

identidade; na percepção da alteridade, percebe-se a própria identidade122.

Ademais, na Heimat, o ser humano se experimenta solidário, membro de uma

comunidade solidária, pois é no outro, com o outro e para o outro. Estes termos caracterizam a

compreensão de comunidade do autor. Para que essa comunidade se constitua e se mantenha

com o decorrer dos anos, é necessário que as relações humanas nasçam desde o interior, desde

a alma123, superando, assim, o simplório e mecânico ser ao lado do outro.

A solidariedade da Heimat nasce da ação da pessoa humana. A pessoa é o conceito

mais completo que se tem do ser humano, porque além das estruturas do ser transcendental e

121 Cf. KING, H., SCHMIEDL, et. al., Op. cit., p. 153-155. 122 Ibidem, p. 34-38. 123 Ibidem, p. 370-372.

107

categorial, refere-se também ao ser em ato e ao ato do ser. Ao mesmo tempo em que a pessoa

se constitui, pela cerração ontológica, ser livre, consciente e racional, a pessoa também se

realiza em suas relações. A plenitude de seu ser se comunica pelas relações inter-pessoais,

acolhendo e oferecendo, recebendo e dando124. Portanto, a pessoa humana se desenvolve em

um processo histórico de relações, em um organismo de vinculações solidário.

Nesse sentido, a categoria mais importante para a compreensão da Heimat é a do

processo de vida (Lebensvorgang)125. Não se trata de uma realidade estática e dada, externa e

tangente ao ser humano; trata-se de uma realidade dinâmica que o toca em seu interior, em

sua alma e impregna todos os demais estratos de seu ser e sua existência.

2.2. A relação natureza e graça a partir do pensamento do Pe. José

Kentenich

“Natural e sobrenatural”, como indica P. Vautier, é um dos temas sistemáticos

presentes já nos primeiros cursos pedagógicos e retiros ditados pelo Pe. José Kentenich126.

Sua base de reflexão é a Apologética do começo do século XX, seguindo especialmente A.

Rademacher e A. M. Weiss. Tais autores pertencem à escola de M. J. Scheeben, quem assume

a tradição dos Padres da Igreja, assim como as reflexões escolásticas e neo-escolásticas sobre

o tema natural e sobrenatural.

A intenção de M. J. Scheeben é clara: quer se contrapor ao acento racionalista dado ao

tema pela Teologia iluminista, propondo a vinculação orgânica de natureza e graça. Propõe

124 Cf. LOBATO, A., El pensamiento de Santo Tomás de Aquino para el hombre de hoy (Tomo I), 1ª Edição, EDICEP: Valencia, 1994, p. 339. 125 Cf. KENTENICH, J., Dass neue Menschen werden, Op. cit., p. 165. 126 Cf. KING, H., SCHMIEDL, et. al., Op. cit., p. 269-272.

108

uma nova compreensão da máxima tomista gratia non destruit, sed praesupponit, perficit et

elevans naturam (a graça não destrói, mas pressupõe, eleva e aperfeiçoa a natureza) para a

superação dos esquemas de M. Baio e C. Jansênio. Natureza e graça são compreendidas como

realidades que se comprenetram. Justamente nessa acentuação, se encontra o pensamento do

Pe. José Kentenich: a vinculação harmônica e orgânica entre natureza e graça.

O autor abandona a especulação teológica e se pergunta pela aplicação prática da

teoria, especialmente dentro do contexto do desenvolvimento de sua pedagogia cristã. Ele se

interessa pela relação concreta entre vivências palpáveis (natureza) e vivências religiosas

(graça). Como se mencionou, desde muito cedo, a relação harmônica e orgânica entre

natureza e graça emerge como um princípio orientador da Pedagogia de Schoenstatt. Depois

de ter passado pela experiência da II Guerra Mundial e do Campo de Concentração, o

Fundador de Schoenstatt acentua essa relação desde a perspectiva do oferecimento da

natureza à graça. A perspectiva deixa de ser exclusivamente sistemática e passa a ser bíblico-

cristológica.

Podem-se identificar quatro propriedades do discurso sobre a relação harmônica e

orgânica entre natureza e graça nas obras do Pe. José Kentenich, entre elas a obra Dass neue

Menschen werden: original, relacional, eficaz e unitiva. Nos anos 20, o autor assume essas

propriedades do pensamento de A. M. Weiss, no entanto, apesar da limitação da linguagem,

nota-se claramente o abandono da “Teologia dos andares” da Neo-escolástica e uma

aproximação à Nouvelle Theologie.

O autor, com a ajuda destas quatro propriedades, acentua a situação natural-

sobrenatural do ser humano no mundo, deixando de lado, portanto, o conceito de natura pura.

109

Por outro lado, a relativa autonomia da natureza em relação à graça é assegurada; é consciente

o esforço em suas obras para não cair no naturalismo, nem na anulação da natureza. A relação

harmônica e orgânica com a graça não suprime a natureza, pelo contrário a eleva à sua

perfeição corporal, anímica (seelisch) e espiritual (geistig).

Em toda a exposição anterior, há um risco eminente: a busca de harmonização

constante entre a ordem natural e a ordem sobrenatural, não contemplando a possibilidade de

tensões e rupturas. A perspectiva do autor é pedagógica, como já se indicou, portanto não se

deve buscar simplesmente uma harmonização ingênua entre as duas ordens apresentadas.

Aqui emerge a necessidade da integração da theologia crucis, que integra o oferecimento da

natureza à graça127.

2.3. Limitações e caminhos propostos

2.3.1. As limitações do texto e da linguagem

Dass neue Menschen werden não é um manual de Teologia, portanto, não se deve

esperar uma formulação sistemática que abra caminho para a resolução da problemática

teológica da relação natureza e graça. O interesse do autor é pedagógico: trata de apresentar, a

seus ouvintes, (e, posteriormente, a seus leitores) fundamentos para a práxis da educação

religiosa.

O contexto histórico imediato do autor constitui uma limitação para a obra. Não se

devem inserir categorias pós-conciliares ao texto, mesmo que a intuição do autor parece ser

127 Cf. VAUTIER, P., MENGEDODT, K.H., BIRKENMAIER, R., Causa Secunda, Manuskript, Freiburg i. Br., 1979, p. 7-20.

110

acertada e responder a questionamentos atuais. Não é possível reduzir o pensamento do Pe.

José Kentenich ao pensamento pós-conciliar; seus contextos são distintos.

Nesse sentido, não há de se esperar a vinculação entre Antropologia Teológica e

Cristologia presente no Concílio Vaticano II e no pensamento de autores contemporâneos. A

Cristologia sim é uma preocupação do Pe. José Kentenich, porém não está presente na obra

Dass neue Menschen werden. Apesar de se preocupar com o oferecimento da natureza à

graça, de sua entrega ao sobrenatural abandonando a base teológica tradicional, que tratava de

reduzir o comum dos seres humanos à natureza humana, o autor não chegou à superação da

linguagem da “Teologia dos andares”, tanto que em seus escritos usa comumente as

expressões “natural e sobrenatural” (natürlich und übernatürlich).

Contudo, o seu interesse pela pessoa humana concreta o afasta do pensamento pré-

conciliar. Seu interesse pedagógico está focado nas vivências naturais, especialmente aquelas

ocorridas na infância, uma vez que essas formam base sobre a qual se constrói a capacidade

de vivência religiosa humana. O autor se ocupa com a natureza concreta, isto é, com a pessoa

humana que tem à sua frente e que quer empreender um caminho pedagógico que a conduza à

sua plena realização, à plena realização de seu ideal128. A apresentação desse processo pode

parecer um tanto simplória na obra Dass neue Menschen werden. É possível, porém,

compreender a intenção do autor, sendo presente em outras obras suas, especialmente nos

cursos pedagógicos ditados por ele em anos anteriores129.

128 Cf. KING, H., SCHMIEDL, et. al., Op. cit., p. 169- 174. 129 Cf. KENTENICH, J., Ethos und Ideal in der Erziehung, Op. cit., p. 26s.

111

2.3.2. Caminhos propostos

Até este ponto, deu-se a seguinte argumentação: a apresentação da obra Dass neue

Menschen werden e seu autor onde se acentuou os temas centrais da obra (os quatro pilares da

educação e a vivência Heimat), o estudo histórico-dogmático da problemática da relação

natureza e graça remarcando o pensamento tomista e também os desafios que surgiram a

partir do mesmo e as soluções encontradas pelos teólogos do século XX (especialmente H. De

Lubac, K. Rahner, H. Urs von Balthasar e J. Alfaro) e a aproximação crítica à obra. Com esta

reflexão, constatou-se que há limites no pensamento do Pe. José Kentenich e também na obra

Dass neue Menschen werden com respeito à relação natureza e graça, especialmente limites

de linguagem (por exemplo, o autor não supera a linguagem da Teologia dos “dois andares”).

Uma tarefa, entretanto, ainda está por ser realizada: vislumbrar os caminhos propostos

para a resolução da problemática teológica da relação natureza e graça a partir da obra Dass

neue Menschen werden. Não se trata de afirmar o que está presente ou não na citada obra, mas

sim de propor novos caminhos que conduzam à integração da realidade natural na realidade

da graça cuja finalidade é não cair na tentação de contemplar a graça como um anexo à

natureza e nem esta como norma sobre a qual aquela pode se manifestar.

2.3.2.1. A Psicologia integrada ao discurso teológico

A Pedagogia marca toda a vida do Pe. José Kentenich, tanto que sua práxis se tornou

conhecida como “educação a serviço da graça”130. Tal educação exige fundamentação

psicológica, pois, sem a mesma, torna-se impossível propor um esquema de educação para o

ser humano. O discurso pedagógico, por mais simples que seja, exige a consideração do ser

130 Cf. FERNÁNDEZ, J., Erziehung im Dienste der Gnade. Regnum, Vallendar am Rhein, n. 4, 1970.

112

humano em sua singularidade e originalidade. Em Dass neue Menschen werden, esse esforço

pode ser identificado ao longo de toda a obra; ressalta-se o intento do autor em apresentar a

Piedade Mariana em uma perspectiva psicológica, assim como as reflexões em torno à

vivência Heimat e os vínculos anímicos que ali surgem.

Entenda-se por Psicologia a doutrina de toda a vida da alma humana; a partir dessa

formulação, vários temas podem ser contemplados: leis de desenvolvimento, forças anímicas

(instintos), estrutura da personalidade, tipos de personalidade, relacionamento humano

(vínculos). Junto a eles, encontra-se também o questionamento pela Psicologia da graça.

Graça não é um conceito contrário à Psicologia, como comumente se pode concluir; a

vivência cristã repercute na vida psíquica e vice-versa131.

A fundamentação psicológica, portanto, aparece como uma exigência e uma

possibilidade para o discurso teológico sistemático, especialmente o discurso antropológico-

teológico. A exigência nasce pelo fato de que já não é possível elaborar um discurso sobre o

ser humano e sua relação com Deus em abstrato; o discurso teológico sistemático tem o

desafio de integrar em sua reflexão o ser humano concreto: singular e original, único em

corpo e alma132, sujeito ativo de sua história, membro da sociedade humana, herdeiro de sua

cultura.

Um discurso teológico com base psicológica pretende personalizar o convite à graça e

não simplesmente elaborar um esquema teórico sobre a relação da mesma com a natureza

humana. Ademais, resgata-se a gratuidade desse dom pelo fato de que o encontro entre o ser

131 Cf. VAUTIER, P., Maria die Erzieherin, Op. cit., p. 191-192. 132 Cf. GS 14.

113

humano concreto e Aquele que o convida a participar de sua vida não se dá em função de uma

natureza determinada, mas sim em uma história de vida, em um espaço de livre decisão.

Esse encontro histórico é marcado pelas relações humanas e os correspondentes afetos

que as mesmas produzem. Nesse sentido, a integração da Psicologia, isto é, a contemplação

de ser humano em sua singularidade e originalidade pessoal e histórica, aparece também

como uma possibilidade para o discurso teológico sistemático, porque pretende pôr como base

de reflexão também os afetos humanos e não somente a razão e a vontade.

Aqui, se entende a necessidade que o discurso teológico também tenha presente a

dimensão social do ser humano, não somente para fundamentar estruturas sociais nascidas ao

longo da história da Igreja, mas, sobretudo, para contemplar a mediação social da graça. A

graça não atua somente sobre o indivíduo isolado; ela pressupõe, aperfeiçoa e eleva o ser

humano inserido em um organismo de vinculações.

Integrar a Psicologia é um desafio para a reflexão antropológico-teológica atual,

contudo a Teologia pós-conciliar já indicou o caminho a ser trilhado. A constante referência à

Cristologia que deve ser feita pela Antropologia Teológica aparece como uma resposta a esse

desafio, porque a graça passa a ser compreendida não como um objeto de natureza espiritual,

mas, sim, como comunhão com Deus na pessoa do Filho encarnado. Neste sentido, o próprio

Jesus Cristo é o rosto da graça que vem ao encontro dos seres humanos ao longo de toda a

história e em todas as épocas e culturas, encontro possibilitado graças à mediação eclesial.

114

3. Repensar a relação natureza e graça a partir do Concílio

Vaticano II

Segundo K. Rahner, a relação natureza e graça deve ser repensada em termos

totalmente inversos àqueles propostos pela Teologia da natura pura. Essa nova forma de

encarar a problemática é contrária à tendência reducionista e extrinsista da citada Teologia,

cuja tendência é confinar a graça fora da natureza e concebê-la como uma espécie de exceção

com respeito à natureza. A natureza, por sua vez, é vista como norma, como regra geral que

supostamente está aberta à exceção da graça. O teólogo alemão afirma a necessidade de

remarcar a interioridade da graça com respeito à natureza e, portanto, seu caráter universal.

A natureza efetiva não é nunca uma natura pura, mas, sim, uma natureza na ordem da

graça, uma natureza sempre em contato com a graça salvífica de Deus. Seguindo a já exposta

tese do “existencial sobrenatural”, o teólogo alemão afirma que a ordem da graça é um a

priori transcendental da atual ordem histórica do ser humano o que implica que a graça está

coerentemente implicada e operante em toda existência humana concreta, antes mesmo da

tomada de consciência e tematização da problemática133.

3.1. O desafio da singularidade e originalidade do ser humano e

sua vocação filial em e com Jesus Cristo

O ponto de questão na doutrina sobre a relação natureza e graça, como indica W.

Kasper134, é o contexto referencial da cultura e a inculturação. O autor alemão afirma que

quanto maior a semelhança, maior deve ser a dessemelhança, isto é, na medida em que o

133 Cf. MEIS, A., Op. cit., p. 417s. 134 Cf. KASPER, W., Op. cit., p. 81-97.

115

mundo mantém uma realidade relativa, o ser humano é interiormente livre. A graça aparece

como comunhão pessoal com Deus; presume-se, portanto, a pessoa humana como base da

decisão livre de fé. Propõe-se, a partir da reflexão, que a formulação mais precisa do corolário

escolástico graça supõe natureza (gratia supponit naturam) seja graça supõe pessoa (gratia

supponit personam).

A pessoa tende, por essência, ao reconhecimento e à aceitação amorosa. O amor nunca

pode ser exigido, somente presenteado; ele une e dá a liberdade. Essa afirmação integra

positivamente o humanismo moderno, preservando-o, ao mesmo tempo, de sua auto-

destruição. A referência última para o pensamento de W. Kasper sobre a relação natureza e

graça é, novamente, a pessoa de Jesus Cristo; logo, a Antropologia é compreendida a partir da

Cristologia, o mesmo ponto de partida adotado por outros autores atuais, como, por exemplo,

o teólogo espanhol J. Alfaro135.

A Teologia contemporânea abandona a auto-crítica da Teologia da natura pura, como

também evita o entendimento da graça como uma indicação concreta e vinculante: a graça é

contemplada a partir da pessoa de Jesus Cristo. O sentido profundo dessa nova visão está em

uma inversão de perspectiva: se partir da disputa pelagiana, a Teologia intentaria compreender

o mistério da graça exclusivamente a partir do ser humano; se partir da condição pecaminosa

do ser humano (Teologia agostiniana), da sua natureza (Teologia escolástica) e, sobretudo, do

dom do Espírito Santo (Teologia pós-conciliar), a compreensão da graça está inserida dentro

da Pneumatologia, e, por conseguinte, em última análise, inserida dentro da pré-destinação de

todo o gênero humano em Cristo Jesus136.

135 Cf. ALFARO, J., El problema teológico de la trascendencia e inmanencia de la gracia, Op. cit., p. 314. 136 Cf. MEIS, A., Op. cit., p. 417s.

116

A nova Antropologia Teológica não apresenta problemas para assumir o giro

antropocêntrico que caracteriza a cultura moderna e pós-moderna em seu viés progressivo e

liberal. Jesus Cristo, em sua singularidade e originalidade, é concebido pela fé, não pela

cultura. A singularidade e a originalidade do Salvador são princípio e medida para a

compreensão do ser humano, não sua natureza. Para que tal afirmação seja verdadeira, surge a

necessidade de uma re-elaboração cristológica, especialmente desde a perspectiva de Jesus

Cristo como único Mediador entre o ser humano e Deus, cujo significado é diverso a um

intermediário ontológico-cósmico ou puramente funcional.

Efetivamente, a singularidade e a originalidade de Cristo, que caracteriza Jesus de

Nazaré ante Deus e os seres humanos, não devem formar um ciclo hermenêutico fechado, isto

é, sua singularidade e originalidade referidas exclusivamente a si mesmo. Ele é princípio real

de toda história humana. Delas, procede toda a humanidade e, mais ainda, toda singularidade

e originalidade de todo ser humano, porque, por um lado, Jesus Cristo é o Criador de todos e

imagem mais perfeita de todo ser humano e, por outro lado, o destino de todo gênero humano

é a comunhão e a configuração com Ele. Dito sucintamente, o ser humano é definido por

Jesus Cristo, porém esse o transcende no sentido de que nada que é comum a todos os seres

humanos, isto é a natureza humana, resume quem foi e é o Filho de Deus encarnado.

Nessa perspectiva, o que explica o ser humano é o mais próprio de Jesus Cristo: sua

referência imediata a Deus (concepção bíblico-dogmática do Filho de Deus). Trata-se da

afirmação da transcendência e da irredutibilidade absolutas e não somente relativas respeito a

toda atuação humana, fora da pessoa de Jesus Cristo. Por isso, a Antropologia Teológica se

reestrutura sobre Cristo, como já se mencionou, o “absoluto singular”. Seu centro não é a

117

natureza humana, considerada em sua essência, mas, sim, o Filho de Deus encarnado

considerado em sua singularidade.

É verdade que atualmente ainda se pensa o ser humano, primeiramente, como

existente, para posteriormente pensá-lo como agraciado por Deus, assim como se pensa

primeiramente o mundo como criação de Deus, para em seguida se pensar na Encarnação.

Contudo, é necessário se esforçar para corrigir tais representações. A criação não tem outro

sentido se não possibilitar a vinda de Jesus Cristo e a comunicação da vida divina à criatura

capaz de recebê-la. O ser humano está pensado, pois, para receber a filiação divina. Essa é a

sua “natureza” singular e original mais profunda, segundo a disposição do Criador.

À essência concreta do ser humano no mundo pertence esta chamada à comunhão com

Deus e não se conhece um ser humano que não seja interiormente afetado por essa condição.

Não existe outro ser humano, a não ser aquele que é chamado em Cristo Jesus, à filiação

divina; portanto, pode-se dizer que não há outra finalidade para toda existência concreta

humana. Se essa finalidade se frustra, o ser humano inteiro também se frustra, sem a

possibilidade de apelar a uma finalidade natural complementária.

O dom do amor divino é sempre gratuito e o ser humano não possui nenhum direito

sobre ele, do contrário não seria dom amoroso. A plenitude humana da filiação divina em

Jesus, ainda que o ser humano esteja destinado a ela, somente pode ser recebida como graça,

como dom. Essa situação é ainda mais radical se se tem em consideração que o ser humano

foi e ainda é infiel a Deus, por conta do pecado.

118

O ser humano é criatura de Deus, porém esta condição é insuficiente para expressar

todas as dimensões da relação que o une a Deus. A partir de tal perspectiva, é possível

compreender a natureza humana como equivalente à sua condição criatural, à relação com o

Criador, que é própria de toda criatura. Entretanto, todo o ser do ser humano, inclusive em sua

dimensão criatural, está interiormente ordenado e aberto à filiação divina na participação da

filiação de Jesus Cristo.

Por conseguinte, pode se pensar que o termo “supracriatural” seja mais conveniente

que o tradicional “sobrenatural”, como indica L. F. Ladaria137. Não se trata de uma simples

substituição de termos, como indica o teólogo espanhol; trata-se de uma tentativa para se

aproximar teologicamente do conceito de natureza, privilegiando o aspecto da relação com

Deus. Em resumo, se intenta especificar os diferentes aspectos da relação do ser humano com

Deus, único caminho possível para iluminar o mistério de seu ser.

É justamente essa relação que define quem o ser humano é, muito mais que a situação

na qual se encontra hipoteticamente com respeito à sua natureza. Com esse modo de proceder,

é possível corrigir representações do ser humano e sua natureza que trazem dificuldades para

o estudo teológico, como já se mencionou. Além do mais, pelo fato de se tratar de um

relativo, a noção de criatura, que é formal, expressa a relação com Deus, mas não está referida

a conteúdos materiais concretos. Portanto, se evita uma tarefa praticamente impossível: a

definição do ser “humano natural”, pois faltam pontos de referência para fazê-lo.

O ser humano, como criatura de Deus, não esgota, nessa sua condição, a relação que

possui com Deus. É uma criatura e, ao mesmo tempo, muito mais que isso: é criatura chamada

137 Cf. LADARIA, L., Op. cit., p. 22-30.

119

à amizade e à filiação, sujeito especial da predileção divina. É uma criatura chamada a

participar na vida de Deus mesmo.

Ainda é necessário fazer uma nota sobre a racionalidade do ser humano. Se a

existência da criatura é condição de possibilidade para a auto-comunicação de Deus, deve se

acrescentar que essa criatura possui certas características para poder ser destinatária desse

dom. O ser humano é dotado de racionalidade exatamente porque está chamado à comunhão

com Deus. Contudo, se a condição criatural não implica exigência de auto-doação de Deus,

tampouco a racionalidade, que é somente uma adjetivação que qualifica certas criaturas, mas

que em nenhum momento permite que elas superem às demais.

Portanto, Deus poderia ter criado seres racionais sem destiná-los à comunhão com Ele

e à visão beatífica, como indicou a encíclica Humani generis138. A racionalidade não implica

a condição “supracriatural” de quem a possui, mas sim ao contrário. Na criatura racional não

pode existir nenhuma exigência da Encarnação do Filho de Deus, mesmo que os seres

humanos não existam mais que para serem conformados com a imagem de Jesus Cristo morto

e ressuscitado.

Essa é justamente a proposta da Teologia pós-conciliar inspirada, sobretudo, no

documento Gaudium et Spes. A Constituição Pastoral não põe limites precisos entre a ordem

da Criação e a ordem da Redenção, a Igreja e o mundo, de modo que o esquema dos “dois

andares” fica ultrapassado; já não se vê a relação natureza e graça desde a perspectiva de

anteposição, onde se acentua a autonomia de ambas139.

138 Cf. DH 3891. 139 Cf. GS 36.

120

O texto conciliar ainda abre a perspectiva rahneriana individualista e põe a Igreja no

centro de sua reflexão. A comunidade aparece como mediação indispensável para que todos

os seres humanos alcance sua consumação escatológica, a comunhão e a configuração com

Jesus Cristo. Por outro lado, a Igreja mesma aparece mediada pelas concretizações do mundo

em um dinâmico processo de comunicação.

3.2. A mediação eclesial

A nova perspectiva apontada pelo Concílio Vaticano II implica na consideração do ser

humano como um ente social, um ser capax societatis que se realiza plenamente em um

projeto de comunhão e solidariedade. A plena realização da vida humana somente é possível

com a ajuda da graça. O ser humano singular e original, por conseguinte, se encontra ante o

paradoxo de sua existência: almejar a graça (desiderium naturalis), porém a impossibilidade

de alcançá-la por suas próprias forças (potentia obediencialis).

A busca de uma sociedade solidária e justa é dom da graça, mas, ao mesmo tempo, é a

base sobre a qual se constrói a comunhão plena dos seres humanos entre si e com Deus. A

Igreja, sacramento de comunhão140 e comunhão no Corpo de Cristo, se constitui sobre a base

de relações solidárias entre os seres humanos. Ela surge no horizonte como realização plena

do projeto humano; oferece a todos um sentido pleno de existência em Jesus Cristo, mas ao

tempo se reconhece frágil e limitada, é santa e pecadora.

140 Cf. LG 01.

121

A partir dessa consideração mais sociológica do ser humano, pode-se afirmar que o

ponto de partida para um novo discurso sobre a graça não está na sociedade política, mas, sim,

no relacionamento pessoal, na comunicação e na amizade. A pessoa é concreta, portadora de

história, membro de uma sociedade, pertencente a um contexto cultural concreto, não

simplesmente uma concretização da abstrata natureza humana. Essa pessoa concreta se

relaciona com outra tão concreta quanto e se realiza dentro deste relacionamento.

Jesus Cristo, como já se mencionou, aparece novamente como o referente de toda a

vida humana. Ele também é uma pessoa concreta que realiza sua existência em solidariedade

e comunhão com Deus e os demais seres humanos. A graça supõe, portanto, a pessoa humana

singular e original (gratia supponit personam), que se realiza dentro de uma sociedade em

comunhão e solidária: a Igreja, o eixo de todo o gênero humano e sua realização mais plena,

porque propõe e oferece a todos sentido existencial na pessoa de Jesus Cristo141.

141 Cf. MEIS, A., Op. cit., p. 417s.

122

Conclusão

A obra Dass neue Menschen werden do Pe. José Kentenich não pode ser considerada

um texto teológico. Trata-se da transcrição de um curso pedagógico ditado pelo fundador do

Movimento Apostólico de Schoenstatt, em 1951. Sua leitura, entretanto, permite o

reconhecimento da base teológica do autor, o que conduz à reflexão teológica.

Detendo-se nos temas centrais da obra, os quatro pilares da educação religiosa e a

vivência Heimat, ressalta-se a relação natureza e graça. O autor não supera, entretanto, a

linguagem dos “dois andares”; ele conserva os termos da Teologia Escolástica e Neo-

escolástica, especialmente a máxima tomista: a graça não destrói, mas pressupõe, aperfeiçoa e

eleva a natureza (gratia non destruit, sed praesupponit, perficit et elevat naturam).

Por outro lado, verifica-se uma grande complexidade e dificuldade para a formulação

exata da problemática teológica da relação natureza e graça. Tal complexidade e dificuldade

nascem do fato de que a problemática não está presente, explicitamente, na revelação

neotestamentária. A busca de termos precisos, que expressem a relação natureza e graça, Deus

e ser humano, torna-se uma constante ao longo da história da Teologia ocidental.

Propositalmente, os Padres conciliares evitaram os termos natureza e graça nos textos do

Concílio Vaticano II142. Esta tendência não significou o abandono da reflexão em torno à

relação natureza e graça, mas, sim, a necessidade de uma reformulação para a mesma.

Chama a atenção o fato de que, com algumas exceções, nos anos quando a discussão

se tornou mais acirrada, não se tenha destacado que o fundamento da gratuidade da elevação

142 Cf. GS 36. Cf. também MEIS, A., Op. cit., p. 417s.

123

do ser humano à comunhão com Deus é a gratuidade da própria Encarnação. Não há graça

maior que Jesus Cristo, em sua entrega de amor por todos os seres humanos. Considerando a

perspectiva antropológica, a graça será somente a conseqüência que o ato de entrega de Cristo

tem para cada ser humano, em sua singularidade e originalidade.

Seguindo a revelação bíblica, especialmente a revelação neotestamentária, a única

definição teológica original e primária do ser humano é a que parte do desígnio salvífico de

Deus para com ele. Qualquer outra definição será secundária e não pode ser tomada como

ponto de partida para a reflexão teológica. Tal afirmação vale especialmente para todas as

tentativas de definir o descrever a natureza do ser humano, isto é, o que o ser humano é en se

ou seria à margem da Encarnação.

Tais noções prescindem de um elemento decisivo a respeito do ser humano existente:

sua vocação divina; portanto, devem ser abandonadas pelo discurso teológico. O ser humano

é, antes de tudo, o que Deus, com seu amor eficaz e criador, quis que fosse e quer que seja.

Não há noção distinta do ser humano àquela expressa pela revelação divina. Já os Padres da

Igreja não o definiam filosoficamente, mas sim a partir da história da salvação143.

Para que formulações mais precisas sejam alcançadas, é necessário seguir a senda

indicada pela Constituição Pastoral Gaudium et Spes144. Em sua singularidade e originalidade,

o ser humano é chamado à filiação divina, em e com Jesus Cristo. Novamente, o discurso

teológico mantém e reafirma como referência primeira o Filho encarnado de Deus e sua vida,

causa única da comunhão entre o ser humano e Deus. Entretanto, a força da Encarnação não é

143 Cf. LADARIA, L., Op. cit., p. 26. 144 Cf. GS 22.

124

apenas um pré-suposto intelectual, mas uma realidade presente na vida e na história de cada

pessoa humana. Dessa afirmação, nasce a necessidade de se repensar o discurso teológico

sistemático a partir de categorias concretas.

Formulações teológicas genéricas não têm mais cabida na cultura pós-moderna. Está o

desafio de buscar termos precisos que descrevam a relação do ser humano concreto com

Deus. O discurso teológico se encontra, portanto, ante a tarefa de relacionar um ser humano,

que é sujeito ativo de sua história, membro da sociedade humana, herdeiro de sua cultura,

com seu Criador, Salvador e Santificador.

Ademais, o ser humano não está isolado no mundo, mas se encontra dentro de um

organismo de vinculações (Bindungsorganismus) que permite seu crescimento e

desenvolvimento. Logo, além de considerar o ser humano em sua singularidade e

originalidade, é necessário considerá-lo em suas relações humanas. A Constituição Dogmática

Lumen Gentium145, afirma a necessidade de se considerar o ser humano dentro de uma

comunidade de salvação. A relação entre o ser humano e Deus acontece dentro de uma

comunidade, acontece dentro da Igreja.

Contemplando a Igreja como mediadora da graça, não se deve partir simplesmente da

realidade externa da comunidade, mas sim da tensão existente entre indivíduo e comunidade.

Muito mais que ser uma trava para o desenvolvimento, esta tensão é fonte de amadurecimento

para esta como para aquele; os vínculos psíquicos entre indivíduo e comunidade se tornam

caminhos de comunhão e atualização da graça da Encarnação. No organismo de vinculações,

145 Cf. LG 01.

125

a pessoa humana se realiza, porque em seu vínculo íntimo com a comunidade, se encontra

com o desígnio salvífico de Deus, possibilidade primeira de compreensão do ser humano.

A presente dissertação, enfocada na Teologia conciliar e pós-conciliar, afirma a

necessidade de se percorrer um caminho proposto pela reflexão nascida da leitura da obra

Dass neue Menschen werden. Em sua intuição pedagógica, o Pe. José Kentenich destaca a

necessidade da consideração da pessoa humana. Tal destaque, ainda que limitado em sua

formulação, indica uma possibilidade para a Teologia sistemática: a integração da Psicologia

em seu discurso.

Esta última conclusão pode parecer insuficiente, se se considera a extensão do estudo

histórico-dogmático realizado e também todas as considerações sobre a obra do autor.

Contudo, por primeira vez, o estudo da citada obra conduziu a uma proposta de reformulação

para a relação natureza e graça e, portanto, para o posicionamento do ser humano ante Deus.

Mais uma vez, deve-se destacar, como caminhos pastorais-pedagógicos privilegiados, a

Piedade Mariana e a vivência Heimat, pois, em ambos, se ressalta a dimensão afetiva e o

vínculo pessoal.

Não é intenção encontrar uma reformulação definitiva para a problemática teológica

da relação natureza e graça. Tão pouco, pretende-se chegar à forma definitiva de um discurso

teológico-sistemático que inclua categorias psicológicas. Tais trabalhos ainda estão por serem

realizados. Não obstante, o caminho proposto segue a trilha deixada pelo Concílio Vaticano II

e reformulada pelo teólogo alemão W. Kasper: graça supõe pessoa (gratia supponit

personam).

126

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- MANZATTO, A., Teologia e literatura, 1ª Edição, São Paulo: Edições Loyola, 1994.

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- MEIS, A., Antropología Teológica: acercamientos a la paradoja del hombre, 2ª Edição,

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- RAHNER, K., Escritos de Teología, (Tomo I), 3ª Edição, Madrid: Ed. Taurus, 1967.

- RAHNER, K., O homem e a graça, 1ª Edição, São Paulo: Ed. Paulinas, 1970.

- RAHNER, K., Curso fundamental da fé – introdução ao conceito de cristianismo, 1ª

Edição, São Paulo: Ed. Paulinas, 1989.

- RUIZ DE LA PEÑA, J., O dom de Deus – Antropologia teológica, 1ª Edição, Petrópolis:

Ed. Vozes, 1997.

- SCHEEBEN, M., Natur und Gnade, 2ª Edição, München: Kösel & Pustet, 1935.

- SCHEEBEN, M., As maravilhas da graça divina, 1ª Edição, Petrópolis: Ed. Vozes, 1952.

- SESBOÜÈ, B., LADARIA, L., et. al., História dos Dogmas: o homem e sua salvação (Tomo

II), 1ª Edição, São Paulo: Ed. Loyola, 2003.

- SUÁREZ, F., La fin ultime de l’homme in: Oeuvres complètes, 1ª Edição, Paris: Ed. Vivès,

1856.

3. Obras do Pe. José Kentenich:

- KENTENICH, J., Pädagogische Tagung 1951 (Dass neue Menschen werden), Manuskript,

Vallendar am Rhein, 1951.

- KENTENICH, J., Dass neue Menschen werden, eine pädagogische Religionspsychologie, 1ª

Edição, Vallendar am Rhein: Schönstatt Verlag,1971.

- KENTENICH, J., Ethos und Ideal in der Erziehung, Wege zur Persönlichkeitsbildung, 1ª

Edição, Vallendar am Rhein: Schönstatt Verlag, 1972.

- KENTENICH, J., Documentos de Schoenstatt, 1ª Edição, Santa Maria: Instituto Secular

Irmãs de Maria de Schoenstatt, 1974.

- KENTENICH, J., Kindsein vor Gott, 1ª Edição, Vallendar am Rhein: Patris Verlag, 1979.

129

- KENTENICH, J., Educación mariana para el hombre de hoy, 1ª Edição, Buenos Aires:

Editorial Patris, 1990.

- KENTENICH, J., Zur Studie Gründer und Gründung, Manuskript Deutsch/ Spanisch,

Vallendar am Rhein, 1998.

- KENTENICH, J., Schönstatt, meine Heimat, Manuskript, Vallendar am Rhein: 1998.

4. Obras sobre a vida e pensamento do Pe. José Kentenich:

- FERNÁNDEZ, J., Erziehung im Dienste der Gnade. Regnum Heft 4, Vallendar am Rhein,

1970.

- KING, H., Joseph Kentenich, Ein Durchblick in Texten: In Freiheit ganz Mensch sein

(Tomo I), 1ª Edição, Vallendar am Rhein: Patris Verlag, 1998.

- KING, H., Joseph Kentenich, Ein Durchblick in Texten: In Gemeinschaft seelisch verbunden

(Tomo III), 1ª Edição, Vallendar am Rhein: Patris Verlag, 2002.

- KING, H.; SCHMIDEL, J. et al. Schönstatt Lexikon – Fakten, Ideen, Leben, 1ª Edição,

Vallendar am Rhein: Patris Verlag, 1996.

- MONNERJAHN, E., Pe. José Kentenich – Uma vida pela Igreja, 2ª Edição , São Paulo:

Instituto Secular Padres de Schoenstatt, 2004.

- NIEHAUS, M., A systematic study of Fr. Joseph Kentenich’s Pädadogische Tagung 1951,

Dissertação (Mestrado em Teologia), Marquette University, 2003.

- RÍOS, F., La experiencia religiosa en “Dass neue Menschen werden” de José Kentenich,

Dissertação (Mestrado em Teologia) Pontifícia Universidade Católica do Chile, 2003.

- SANNA, I., Lineamenti di Antropologia Teologica in P. Joseph Kentenich in Estratto da

Lateraum anno XLIX n.2, Roma, 1983.

- VAUTIER, P., Kurze Einleitung in die Texte P. Kentenichs, Manuskript, Münster/

West.,1983.

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- VAUTIER, P., Maria die Erzieherin in: Schönstatt-Studien (Tomo III), 1ª Edição, Vallendar

am Rhein: Patris Verlag, 1981.

- VAUTIER, P., MENGEDODT, K.H., BIRKENMAIER, R., Causa Secunda, Manuskript,

Freiburg i. Br., 1979.

5. Literatura secundária:

- BOPP, L., Christlicher Edelmut zur Ungeborgenheit, Buch der liturgischen Ofper- und

Gefahrenweihe, 1ª Edição, Freiburg i. Br.: Herder, 1937.

- LOBATO, A., El pensamiento de Santo Tomás de Aquino para el hombre de hoy (Tomo I),

1ª Edição, EDICEP: Valencia, 1994.

- RICOEUR, P., Temps et récit II. La configuration dans le récit de fiction, 1ª Edição, Paris:

Editeur Seutil, 1969.

- WAHRIG, G., Deutsches Wörterbuch, 2ª Edição, Berlim: Lexikon-Verlag, 1977.

- WESTERMAYR, J., Wege zu Kind und Volk – Beiträge zur Psychologie der katholischen

Religionspädagogik und Seelsorge, 3. Edição, Regensburg: Gregorius Verlag,1948.

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