A SINGULARIDADE DO PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL
Coleção Ignacio Rangel, v.2
A SINGULARIDADE DO PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL Coleção Ignacio Rangel
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GOVERNADOR DO ESTADO DO MARANHÃO Jackson Lago SECRETÁRIO DE ESTADO DO PLANEJAMENTO E ORÇAMENTO Abdelaziz Aboud Santos INSTITUTO MARANHENSE DE ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS E CARTOGRÁFICOS PRESIDENTE Raimundo Nonato Palhano Silva DIRETOR DE ESTUDOS E PESQUISAS Hiroshi Matsumoto DIRETOR DE ESTUDOS AMBIENTAIS E GEOPROCESSAMENTO José Raimundo Silva SUPERVISOR ADMINISTRATIVO-FINANCEIRO Tetsuo Tsuji CHEFE DA ASSESSORIA JURÍDICA João Batista Ericeira CHEFE DE GABINETE Jhonatan U. P. Sousa ORGANIZAÇÃO DA COLEÇÃO IGNACIO RANGEL Raimundo Nonato Palhano Silva Jhonatan U. P. Sousa DIGITAÇÃO Arisson Ribeiro de Macedo Mayra Diuene Oliveira Soares REVISÃO Josélia Morais de Sousa NORMALIZAÇÃO Virginia Bittencourt Tavares Conceição Neves
A Singularidade do Pensamento de Ignacio Rangel/ Raimundo Nonato Palhano Silva (org.), Jhonatan Uelson Pereira Sousa (org.). – São Luís: IMESC, 2008.
110 p. : il. (Coleção Ignacio Rangel, v.2) ISBN 978-85-61929-01-5 1. Ciências Sociais – Coleção. I. Silva, Raimundo Nonato Palhano, org. II. Sousa, Jhonatan U. P., org. III. Título. IV. Série.
CDU 3 (08).
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RAIMUNDO PALHANO
JHONATAN U. P. SOUSA
(Organizadores)
A SINGULARIDADE DO PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL
Coleção Ignacio Rangel, v.2
São Luís IMESC
2008
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INSTITUTO MARANHENSE DE ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS E CARTOGRÁFICOS CONSELHO EDITORIAL Raimundo Nonato Palhano Silva Presidente Francisca Zubicueta Hiroshi Matsumoto Jane Karina Silva Mendonça Jhonatan U. P. Sousa João Batista Ericeira José Ribamar Trovão José Rossini Campos do Couto Corrêa Josiel Ribeiro Ferreira Madian de Jesus Frazão Pereira Rosemary Paiva Marques Teixeira Tetsuo Tsuji
Presidência do IMESC Av. Jerônimo de Albuquerque, S/N – Edifício Clodomir Milet – 6º andar - CALHAU São Luís-MA | CEP 65074-220 (98) 3218 2176 (98) 3218 2394 (Fax) Diretorias de Pesquisa/Coordenadoria de Informação e Documentação Av. Senador Vitorino Freire, S/N – Edifício Jonas Soares – 4º andar – AREINHA São Luís-MA | CEP 65030-015 (98) 3221-2353 (98) 3221-2504 www.imesc.ma.gov.br www.seplan.ma.gov.br www.ma.gov.br
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APRESENTAÇÃO
A Coleção Ignacio Rangel, ora retomada pelo Instituto Maranhense de Estudos
Socioeconômicos e Cartográficos-IMESC, inscreve-se como mais uma contribuição voltada para a
ampliação dos conhecimentos sobre a realidade maranhense na perspectiva do revigoramento do
planejamento do desenvolvimento sustentável do Estado.
Ao reeditar obras de autores contemporâneos cujo pensamento ainda não se esvaiu e
a atualidade se faz pungente, sob a luz das questões do tempo presente, o IMESC contribui
significativamente para se repensar e reinventar o Maranhão, sob outras bases, mais democráticas e
inclusivas.
Analisando o Maranhão entre o antigo e o novo, Ignacio Rangel, põe um desafio que,
pelo resgate de seu pensamento singular, se tornou algo presente – “pensar grande”. Isto pode ser
compreendido pela utilização dos instrumentais de planejamento para uma atuação no médio e
longo prazo, superando os imediatismos e as descontinuidades, características históricas da
administração pública maranhense.
Este volume da Coleção Ignacio Rangel ao associar os trabalhos de Raimundo
Palhano, Ignacio de Mourão Rangel e Rossini Corrêa trazem à tona outros olhares sobre a realidade
maranhense, distantes das explicações consagradas e em busca da construção de leituras alternativas
e originais.
No atual planejamento público o conhecimento é tido como valor estratégico,
elemento vital para sua consecução e fiador da sua sustentabilidade futura, imperativo categórico de
um Maranhão mais Democrático e Solidário para todos os maranhenses.
Abdelaziz Aboud Santos
Secretário de Estado do Planejamento e Orçamento
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Coleção Ignacio Rangel A SINGULARIDADE DO PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL
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PREFÁCIO
O RETORNO DE IGNACIO RANGEL Ladrilhador da História Ao organizarmos este segundo volume da Coleção Ignacio Rangel, iniciada por “Um
fio de prosa autobiográfica com Ignacio Rangel”1, retomamos após dezessete anos esse projeto.
Cada texto compilado nesta retomada nos despertou aquele sentimento que só a
música pôde expressar com cristalina transparência – “voltar os dezessete anos depois de viver um
século é como decifrar signos sem se saber competente... isso é o que eu sinto neste instante fértil”2.
Buscamos construir essa competência para prestar a homenagem e a consideração
devidas a este retorno de Ignacio Rangel.
A riqueza desse momento está em justamente rompermos com a nossa, tão presente,
cultura da descontinuidade e da efemeridade das iniciativas, e justamente pelas mãos dos
idealizadores daquele projeto, que mesmo não podendo voltar até lá, me propiciaram aqui reiniciar
o já começado.
Não conheci Ignacio Rangel. Quando partiu deste mundo, incompletos dez anos
tinha. Portanto, o que dele sei me vem, como é característico do mister do ladrilhador da História,
pelos olhares e dizeres dos contemporâneos seus, e do muito que escreveu e escreveram sobre ele e
sua obra.
O que representa para o Maranhão a inspiração de um pensamento como o
rangeliano? Quais os impactos de sua publicação numa conjuntura de mudança tão importante para
o futuro do Maranhão?
A leitura compassada dos trabalhos aqui arrolados poderá revelar a força infinita e
fecunda das idéias rangelianas, e quem sabe, responder a essas perguntas ou pelo menos, fornecer
indicativos para elas.
É certo, como o poeta há muito afirmou, que em sendo seus versos belos, eles não o
poderiam ser, e ficar por imprimir “por que as raízes podem estar debaixo da terra, mas as flores
florescem ao ar livre e à vista. Tem que ser assim por força. Nada o pode impedir”3.
1 Entrevista organizada por Rossini Correa, Raimundo Palhano, Maureli Costa e Pedro Braga, com Ignacio Rangel, admiradores e introdutores de sua obra no Maranhão, integrantes do Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais-IPES, publicada na forma de livro, como volume um da Coleção Ignacio Rangel. 2 SOSA, Mercedes. Volver A Los 17. 3 PESSOA. Fernando (Alberto Caeiro). Se eu morrer de novo.
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Mesmo os anos de indiferença a este pensador-ação, a “conspiração do silêncio”
como ele denominava, não se manteve. A força de suas próprias idéias tem como lugar de
excelência o espaço e o debate públicos.
Assim a idéia que floresceu nesta retomada foi publicar os artigos de Rangel
veiculados na revista FIPES, quando de suas frutíferas passagens pelo Instituto de Pesquisas
Econômicas e Sociais-IPES no Maranhão, do qual o Instituto Maranhense de Estudos
Socioeconômicos e Cartográficos-IMESC é herdeiro espiritual.
Os artigos identificados foram: 1. Maranhão: antigo e novo; 2. Fogo, blindagem e
conjuntura e 3. Tecnologia e Custo de Produção, todos de 1989.
No trabalho “Maranhão: antigo e novo”, Rangel faz uma análise histórica do papel
desempenhado pelo Maranhão no passado e as expectativas no futuro, que via ligadas
umbilicalmente às ferrovias e ao Porto do Itaqui, destacando os fatores de localização e a
importância fundamental dos meios de transporte no aproveitamento destes.
Sonhava com uma ligação ferroviária unindo Carajás-Itaqui a Callao no Peru e a
conclusão da ferrovia Norte-Sul. Profeticamente disse “ora somente, pensando GRANDE, podemos
formar juízo sobre as perspectivas que estão abertas para o nosso Maranhão”, ensinando que mais
do que cantar glórias passadas, devemos é buscá-las no presente, construí-las no agora e por diante.
Ao analisar a história das guerras em “Fogo, blindagem e conjuntura” aponta que
nem sempre as melhores estratégias podem ser repetidas quando os tempos outros são e a
tecnologia avança, enfatiza a importância de atentarmos para a grandeza do Brasil e buscarmos
patrioticamente preservá-la e ampliá-la, algo desafiador num período tão crítico ao nacionalismo, ao
civismo, vistos como mal-arranjados simulacros de falsa consciência dos militares de 1964 pelos
“esclarecidos” de hoje, paradoxalmente efusivos com o verde-amarelo da bandeira brasileira nos
campos de futebol.
Por último, o autor nos relembra em “Tecnologia e Custo da Produção” a
importância do crescimiento hacia adentro, eco de sua formação cepalina, isto é, o
desenvolvimento endógeno, sustentável, sem o qual não é possível nos integrarmos ao mundo
global ou sequer competir nos setores que formos melhores.
O planejamento é redescoberto com acuidade como valimento para nossa inserção
internacional soberana no concerto das nações, operação que deve ser planificada, mas nunca
baseada no “desmantelamento dos instrumentos fundamentais do planejamento”.
Coleção Ignacio Rangel A SINGULARIDADE DO PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL
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Razão e emoção
Ladeando os trabalhos do mestre Rangel, outros quatro sobre ele são postos, três de
autoria do economista Raimundo Palhano e um do sociólogo Rossini Corrêa. Os do primeiro foram:
1. Sobre o Pensamento Econômico do ISEB e a singularidade de Ignacio Rangel; 2. Notas sobre a
bibliografia intelectual de Ignacio Rangel, publicados na revista FIPES; e 3. Ignacio Rangel: um
decifrador do Brasil, palestra proferida por ocasião do lançamento das Obras Reunidas de Ignacio
Rangel no Maranhão. O do segundo é intitulado “Eu e Ele: minhas memórias de Ignacio Rangel”.
Nos textos tal como o próprio Raimundo Palhano afirmou, verdadeiro
“transbordamento” se avoluma e inunda o leitor, dando conta das várias dimensões, ou melhor, dos
vários Rangéis que habitam Ignacio: o personagem, o intelectual, o decifrador e o ídolo, ele
apresenta um pensador original e humano cuja obra não foi esquecida por seus discípulos,
admiradores, amigos, familiares, num esforço conjunto de devotamento e permanente
rememoração.
Na franja tênue entre a razão e a emoção, a poesia e a prosa, para alguns
inconciliáveis, mas para nós não, situamos a produção de Raimundo Palhano sobre o pensamento
rangeliano.
O texto de Rossini Corrêa expressa através da rememoração a figura humana de
Ignacio Rangel na convivência pessoal e profissional. Ele nos revela inconfidências dos momentos
de trabalho e descontração, como as invejas veladas e os elogios rasgados ao “Mestre dos Mestres”.
O mais interessante desse texto é o desvelar de uma faceta poética em Ignacio
Rangel, que recita de memória poemas inteiros de João de Deus e Gregório de Mattos.
Ficará patente ao leitor que este livro é muito mais “sobre” do que “de” Ignacio
Rangel, se cartesianamente dividirmos o que ele escreveu do que dele escreveram, pois nos escritos
e na vida profissional dos seus admiradores existe muito mais “de”.
Realismo e esperança
Ao ler a entrevista que Rangel concedeu4, chamou-me atenção duas passagens que
coloco ao lado de síntese de esparsos textos que encontrei5.
4 Me refiro a RANGEL, Ignacio. Um fio de prosa autobiográfica com Ignacio Rangel. Entrevistado por Rossini Corrêa, Maureli Costa, et. al. São Luís: SIOGE, 1991, v.1 (Coleção Ignacio Rangel, 1). 5 BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. A volta por cima de Ignacio Rangel. Primeira Leitura nº 43, setembro 2005: 90-93; SANTOS, Milton. O Pensamento de Ignacio Rangel. Conferência apresentada no Seminário Ignacio Rangel e a Conjuntura Econômica no dia 10 de novembro de 1997 no anfiteatro de Geografia da Universidade de São Paulo;
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Na primeira ele afirma que muitas vezes trabalhou até virar a noite, participando da
resolução dos mais diferentes problemas, com marchas e contramarchas, na presença dos
interessados que acontecia, segundo ele, serem centenas. Hoje, podemos dizer que foram milhões.
Ele afirma que constituíam equipe com absoluta confiança entre si, quando um saía o outro
continuava o trabalho que este havia deixado sobre a mesa.
O serviço público carece muito de um espírito de trabalho e dedicação assim, o
Brasil e em especial o Maranhão, se ressentem disso.
Na segunda passagem da referida entrevista ele se auto-definiu como um trabalhador,
não por cangas ideológicas, mas por que “o trabalho era tremendo, de, às vezes, se sair de casa pela
manhã da segunda-feira e voltar no final do sábado”.
Ele não diz isso como que para se auto-promover, mas por sua convicção patriótica
de serviço público e do relevo e projeção que seu trabalho possuía.
Da síntese aferimos que Rangel foi um dos mais notáveis economistas brasileiros,
com uma inteligência penetrante e uma poderosa imaginação, heterodoxo e extraordinário, não foi
um desses muitos epígonos que repetem um mestre qualquer, mas um criador que se arriscava, um
homem de ação, preocupado com a distribuição de renda, capaz de pensar por conta própria,
nitidamente autodidata. Sua percepção do novo e o sentimento de reconhecer o que está brotando no
mundo, no país, na sociedade exprimindo em palavras, demonstram seu apego ao trabalho
intelectual, sua busca por caminhos e sua realização prática, enfim, alguém que podemos dizer que
pensou antes.
Num homem só, tantas coisas, tanto vulto, e ainda é capaz de dizer “vejo o mundo
como o Brasil, com o realismo e a esperança dos meus ideais de juventude. Acredito no futuro. Ele
será, na verdade, melhor do que o passado”. Desse realismo é que precisamos para construir outro
Maranhão, melhor do que está hoje, sem ufanismos ou covardia, com pensamento e ação, com valor
e atrevimento.
Deixo testemunho pessoal que após concluir esse volume e olhando em retrospecto,
percebi que ao conviver com Raimundo Palhano e mais recentemente, com Rossini Corrêa, entre
muitas dessas tardes que viraram noite, conheci Ignacio Rangel.
BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Prefácio. O Pensamento de Ignacio Rangel. São Paulo: Editora 34, 1998; PEDRÃO, Fernando Cardoso. Ignacio Rangel. ESTUDOS AVANÇADOS 15 (41), 2001.
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Pensamento rangeliano
Pondo marcas no caminho, ou percebendo linhas indiciárias do pensamento
rangeliano, dispostas e traçadas nos textos aqui coligidos, observamos eixos relevantes para atual
conjuntura maranhense.
De início a importância do planejamento no encaminhamento de soluções e no
enfrentamento dos desafios recorrentes da realidade histórica. O planejamento para Rangel está
vinculado inseparavelmente à identificação dos problemas ao lado da proposição de respostas aos
mesmos, assim sendo, não basta apenas pensar antes de agir, significado singular do planejamento,
mas agir depois de pensar.
Outro eixo é o do desenvolvimento. No pensamento rangeliano ele está como algo
intrínseco, não ocorre de fora para dentro, mas de dentro para fora, isto é, somente com a elevação
de nossas próprias condições e capacidades é que poderemos nos direcionar rumo à superação do
subdesenvolvimento.
Um terceiro eixo é a tecnologia. Não faz sentido ter tecnologia de ponta se ela não
está articulada a estratégia global de desenvolvimento. É preciso inovar e inovar é preciso, o que
implica no conhecimento aprofundado de nossas necessidades e do que desejamos ser. Para tanto,
temos que realizar um trabalho de inclusão digital e pari passu desenvolvermos nossa própria
tecnologia, adequada às especificidades do local, sem perder de vista o global.
Como quarto eixo – a infra-estrutura. Fica patente que os fatores de localização
privilegiados do Maranhão, advindos do Porto do Itaqui e maximizados com a integração produtiva
que será propiciada pela conclusão da Ferrovia Norte-Sul são imprescindíveis em qualquer
planejamento do desenvolvimento estadual. Agora a mera existência deles per si, sem
investimentos permanentes em modernização e ampliação, os tornarão eternas potencialidades sem
concretude para o Estado.
Vale ressaltar ainda num quinto eixo, que os grandes empreendimentos não
resolverão todas as necessidades de empregabilidade e prosperidade do Maranhão, caso não
venham acompanhados da dinamização dos pequenos e médios empreendimentos, que agreguem
valor às matérias-primas, dinamizando as economias locais.
Construindo a permanência
O IMESC ao retomar essa coletânea não pretende apenas lançar mais um livro no
mundo editorial ou fazer louvações póstumas a figura eminente de Ignacio Rangel, mas pavimenta
A SINGULARIDADE DO PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL Coleção Ignacio Rangel
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o caminho para o mais ousado – a criação da Cátedra Ignacio Rangel, com vistas à construção da
permanência e ao florescimento de novas idéias sobre o planejamento e o desenvolvimento.
Objetivamente se constituirá, a partir dessa Cátedra, amplo programa de estudos e
pesquisas materializado no resgate, à luz da contemporaneidade, dos trabalhos produzidos pela
profícua mão rangeliana, ao mesmo tempo, incentivará o produzir do pensamento inovador e
criativo, expandindo os horizontes de pesquisa e formando novos pesquisadores, atentos à realidade
maranhense.
Para essa empreitada o IMESC convidou o pesquisador José Rossini Campos do
Couto Corrêa para coordenar a Cátedra Ignacio Rangel, com vistas à articulação de equipes de
estudo e pesquisa e a obtenção de financiamentos para os projetos.
Sem dúvida, no dizer rangeliano, avançamos, avançamos e avançamos. Ao assentar
as bases da permanência e da institucionalização da pesquisa aplicada ao desenvolvimento por meio
da criação dessa Cátedra, semeamos a edificação de conhecimentos inovadores e úteis ao
planejamento público maranhense, cuja aula inaugural está nas páginas deste livro.
São Luís, 20 de agosto de 2008
Jhonatan Uelson Pereira Sousa Historiador. Assessor do IMESC/SEPLAN
Coleção Ignacio Rangel A SINGULARIDADE DO PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL
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SUMÁRIO
IGNACIO RANGEL: UM DECIFRADOR DO BRASIL............................... 10
Raimundo Nonato Palhano Silva
SOBRE O PENSAMENTO ECONÔMICO DO ISEB E A SINGULARIDADE DE IGNACIO RANGEL ................................................. 18
Raimundo Nonato Palhano Silva
NOTAS SOBRE A BIBLIOGRAFIA INTELECTUAL DE IGNACIO RANGEL .................................................................................... 38
Raimundo Nonato Palhano Silva
MARANHÃO: ANTIGO E NOVO ................................................................... 48
Ignacio de Mourão Rangel
FOGO, BLINDAGEM E CONJUNTURA ....................................................... 54
Ignacio de Mourão Rangel
TECNOLOGIA E CUSTO DE PRODUÇÃO .................................................. 65
Ignacio de Mourão Rangel
EU E ELE: MINHAS MEMÓRIAS DE IGNACIO RANGEL ...................... 70
José Rossini Campos do Couto Corrêa
PERFIL DE IGNACIO RANGEL .................................................................... 95
A SINGULARIDADE DO PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL Coleção Ignacio Rangel
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Coleção Ignacio Rangel A SINGULARIDADE DO PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL
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IGNACIO RANGEL: UM DECIFRADOR DO BRASIL
Raimundo Nonato Palhano Silva
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IGNACIO RANGEL: UM DECIFRADOR DO BRASIL6
Raimundo Nonato Palhano Silva*
1 INTRODUÇÃO
Aqui nos encontramos, neste lugar privilegiado, para atender ao honroso convite de
amigos generosos do Conselho Regional de Economia do Maranhão, presidido por Dilma Pinheiro,
da Academia Maranhense de Letras, liderada por Jomar Moraes e da Universidade Federal do
Maranhão, sob o reitorado de Fernando Ramos.
Neste lugar em que nos encontramos agora, privilégio imerecido, poderiam estar
Rossini Corrêa, Pedro Braga dos Santos Filho, Maureli Costa, jovens intelectuais como nós que,
com menos de trinta anos, se apaixonaram por Rangel e se propuseram, a partir de inícios dos anos
1980, a difundir a obra rangeliana e torná-la conhecida na terra natal do seu autor.
Poderiam estar aqui também José Augusto dos Reis, João Evangelista da Costa
Filho, Hiroshi Matsumoto, Alberto Arcangeli, Benjamin Mesquita, Jomar Moraes, Benedito Buzar,
Carlos Gaspar, Joaquim Itapary, Roberto Gurgel Rocha, Cursino Moreira, e outros estudiosos
coetâneos; ou integrantes do antigo Grupo de Reflexão Ignacio Rangel sobre o Desenvolvimento,
como Tetsuo Tsuji, Flávia Mochel, Niomar Viegas, Raimundo Arruda, Sebastião Moreira Duarte,
Luis Augusto Mochel, Haymir Hossoé, Emanoel Gomes de Moura, entre tantos outros rangelianos
que formavam o NIRDEC, hoje relançado por seus idealizadores.
Nesta noite, inspirados pelo brilho da lua, nos propomos, embora conhecedores das
nossas limitações, a realçar o significado e a importância do lançamento, entre nós, os conterrâneos
de Rangel, de suas “Obras Reunidas”, editadas e organizadas por César Benjamin, em alentados
dois volumes, primorosamente editados pela Contraponto, exemplo de editora comprometida com o
desenvolvimento e com a cultura brasileira, com o apoio do BNDES, sob a presidência de Carlos
Lessa, no contexto de uma coleção voltada ao resgate da memória do ciclo desenvolvimentista no
Brasil.
“Obras Reunidas” estas que muito devem também ao trabalho silencioso e esmerado
de Ludmila Rangel Ribeiro, filha e herdeira do legado rangeliano, que nos honra com sua presença,
e que, durante seis anos, mobilizando recursos tangíveis e intangíveis, ajudou a tecer, com mãos
delicadas de artista, os fios de ouro que criaram a obra-prima.
6 Discurso proferido por ocasião do lançamento do livro “Obras Reunidas” de Ignacio Rangel no Maranhão, em evento do Conselho Regional de Economia, no dia 22 de junho de 2005. * Economista. Ex-presidente do Conselho Regional de Economia.
A SINGULARIDADE DO PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL Coleção Ignacio Rangel
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Não nos cabe, nesta oportunidade, a missão quase impossível de examinar a
contribuição de Ignacio Rangel ao pensamento econômico brasileiro, o que já o fizemos,
modestamente, por força das evidências lacunares e incompletudes temáticas, no trabalho intitulado
“Notas sobre a Biografia Intelectual de Ignacio Rangel”, publicado pela Revista FIPES, edição de
jul/dez de 1989. Ademais, na Introdução do Volume 1 das “Obras Reunidas”, os leitores
encontrarão o ensaio de Márcio Henrique Monteiro de Castro, economista do BNDES, denominado
“Nosso Mestre Ignacio Rangel”, que inventaria e analisa, de modo primoroso e didático, o conjunto
da obra rangeliana e sua contribuição ao pensamento econômico brasileiro, fato que nos exime de
novamente incorrer no desatino de tentar fazer o impossível.
2 O PERSONAGEM
Iniciando o exercício a que nos propusemos convém recordar a figura preciosa de
Ignacio Rangel, o mais criativo e ousado dos gigantes que edificaram os alicerces das ciências
econômicas em nosso país.
Ignacio de Mourão Rangel nasceu a 20 de fevereiro de 1914, em Mirador, no
Maranhão e faleceu em 04 de março de 1994, no Rio de Janeiro, combatendo a política econômica
do governo Collor, para ele uma verdadeira apostasia.
De forma autodidata estudou, com rigor, história e economia. Cursou direito na
antiga Faculdade de São Luís. No imediato pós-guerra radicou-se no Rio de Janeiro, onde
permaneceu até o final de sua vida. Atuou inicialmente como jornalista, tendo sido secretário da
United Press e como tradutor e, posteriormente, como jurista, historiador e, principalmente, como
economista.
Foi um homem sólido de caráter, ideário, idoneidade e convicções políticas e
filosóficas. Não apenas no discurso bem construído, mas na ação prática cotidiana. O espírito de
luta que herdou dos familiares fez com que, aos 16 anos, participasse da “Revolução de 30” e aos
21 da tentativa de tomada do poder pela Aliança Nacional Libertadora-ANL. Foi um dos
organizadores da luta dos trabalhadores rurais espoliados do Alto Sertão maranhense e piauiense
contra o poder do latifúndio. Derrotado em 1935, passou os dez anos seguintes entre presídios no
Rio de Janeiro, onde foi “reitor” de uma universidade popular formada por presidiários, e São Luís,
onde viveu sob intensa vigilância e com direitos de ir e vir cerceados.
A partir dos anos 50 esteve presente, lúcida e ativamente, nas instituições e nas
trincheiras de luta pelo desenvolvimento nacional. Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico-BNDE, hoje BNDES, Comissão Econômica para a América Latina-CEPAL, Instituto
Coleção Ignacio Rangel A SINGULARIDADE DO PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL
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Superior de Estudos Brasileiros-ISEB, Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política-
IBESP, Assessorias de Vargas e Goulart, Plano de Metas de Juscelino, Clube dos Economistas,
Conselho Regional de Economia do Rio de Janeiro, Instituto de Economistas do Rio de Janeiro-
IERJ e por último na Academia Maranhense de Letras, instituições estas onde atuou e realizou
inúmeros trabalhos, conferências e ministrou cursos, além das várias exposições que fez a convite
de universidades e instituições educacionais do país, tendo sido ainda colaborador permanente das
principais revistas e publicações especializadas em economia, como a Revista de Economia
Política, sendo um dos seus patronos, e dos maiores jornais do país, em especial a Folha de São
Paulo.
Um verdadeiro doador de sangue e alma pela causa de uma pátria chamada Brasil,
para que se desenvolvesse pelo bem do seu povo e para isso trabalhou e lutou tenazmente, sempre
fiel aos seus princípios e valores, em favor de uma nova humanidade, não cedendo aos fascínios do
poder e muito menos às conveniências oportunistas, no que teve de contrariar verdades professadas
tanto pelo pensamento de direita, como pelos ideólogos da esquerda nacional, de onde era
originário, o que lhe rendeu domicílios coactos e sofridos isolamentos nos círculos intelectuais
tradicionais.
3 O INTELECTUAL
Rangel tem lugar garantido no pantheon onde figuram os grandes pensadores da
formação social brasileira. Um seleto grupo do qual participam intelectuais como Caio Prado Jr.,
Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e Celso Furtado. Seu livro “A Inflação Brasileira”, um
clássico do pensamento econômico, está cotado pela CBL como um dos 50 livros brasileiros do
século XX.
No texto introdutório de Márcio de Castro é enfatizado algo que singulariza a
produção intelectual de Ignacio Rangel: foi um exemplo raro de teórico não-acadêmico. Todas as
suas questões teóricas foram condicionadas pela busca de soluções aos problemas que afligiam o
país, sobretudo os econômicos, sociais e políticos. Um criativo produtor de idéias, nascidas da
combinação do prático com a busca de soluções adequadas às necessidades nacionais.
Não fez carreira acadêmica nem como docente, nem como pesquisador. Foi o maior
dos economistas sendo formado em direito e um dos maiores intérpretes do Brasil sem ter atuado no
meio universitário. Respeitava as questões que a academia pautava, muito embora preferisse dar
seus próprios mergulhos, profundos, nos problemas do desenvolvimento brasileiro.
A SINGULARIDADE DO PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL Coleção Ignacio Rangel
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A independência intelectual, somada à coragem política, bem como o fato de não ter
sido um acadêmico profissional, dificultaram a difusão de sua obra, sobretudo por não ter tido a
convivência permanente de alunos e seguidores que se encarregassem de difundi-la
sistematicamente, o que acabou impondo-lhe uma angustiante solidão intelectual, que o próprio
Rangel denominava de “conspiração do silêncio”.
Embora tenha estudado com rigor as teorias de autores clássicos da literatura
econômica, como Smith, Marx, Engels, Keynes, Luxemburg, Kalecki, Hilferding, Harrod,
Robinson, Schumpeter, Kondratieff, Juglar, Kitchin, tendo inclusive se valido de muitos deles na
estruturação de suas teses sobre a Dualidade, quando falava sobre as grandes influências intelectuais
de sua vida, via de regra referia-se aos mestres do seu tempo de Maranhão, a começar pelo próprio
pai, José Lucas Mourão Rangel, seguindo-se Antonio Lopes da Cunha, com quem aprendeu direito,
materialismo dialético e filosofia e a quem chamava respeitosamente de mestre; Arimatéia Cisne,
com quem aprendeu latim, além de outros notáveis, como João Vasconcelos Martins e Caio
Carvalho, diretor-presidente e chefe do escritório da firma Martins, Irmãos & Cia., para ele sua
primeira e grande escola de aprendizagem da ciência econômica.
4 O DECIFRADOR
Apesar de ter construído um dos mais complexos e sofisticados sistemas explicativos
do desenvolvimento da formação social brasileira, presente na Teoria da Dualidade Básica, o fio de
Ariadne de sua obra, como costumava dizer, Rangel jamais confundiu a ciência econômica com os
fundamentos do equilíbrio neoclássico, ou com as matemáticas ou com a econometria, como tem
sido a lamentável tendência da atualidade, a causa maior do empobrecimento do pensamento
econômico brasileiro, refletido na decadência de suas escolas e faculdades de economia.
Fábio Comparato, o grande jurista brasileiro, afirmou recentemente que a economia
não pode ser vista como uma ciência exata. “A economia, como a política e o direito é uma
sabedoria de decisões, ...é a sabedoria de tomar decisões”. Na economia, portanto, o essencial é
saber quais devem ser os objetivos das decisões tomadas. Muito antes de Comparato, Rangel já
havia chegado a essa constatação ao preferir ir fundo na resolução dos enigmas da formação social
brasileira e não se contentar em apenas formular explicações meramente acadêmicas, incapazes de
darem conta da resolução dos problemas desafiadores e recorrentes.
Passou a vida inteira procurando traduzir as especificidades da formação social
brasileira e do seu desenvolvimento. Recusou de imediato a condição de transformar-se em mais
um adaptador de teorias importadas, comum na intelectualidade dos anos 50 e 60 e até mesmo ainda
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hoje. As teses em voga, tanto da direita como da esquerda, a seu juízo, precisavam ser revistas
criticamente. Por isso teve que assumir posições fortes no debate intelectual e político da época, a
ponto de sua contribuição representar um novo olhar e uma nova interpretação sobre o Brasil e sua
história.
Segundo Rangel, a dinâmica histórica brasileira não será compreendida se for
pensada como os casos clássicos da história econômica dos países desenvolvidos. Os processos
internos da formação brasileira, sejam econômicos, sociais e políticos, dependem das relações que
se estabelecem com os centros dinâmicos da economia internacional. Foi a partir dessas
constatações que criou leis sociológicas e econômicas para a interpretação do Brasil, sintetizadas
em cinco grandes temáticas: a dualidade básica, a dinâmica capitalista, a inflação brasileira, a
questão agrária e o papel do Estado. Leis e princípios estes que tinham na Tese da Dualidade o
ponto de referência central, o princípio organizador de suas idéias, consideradas, sem nenhum
exagero, um modo de produção sofisticado e complexo. O desenvolvimento capitalista criou uma
enorme periferia onde o Brasil se encontra ainda. Para decifrar o país, seus problemas e crises, não
basta examinar o desenvolvimento econômico como se observa o comportamento dos modos de
produção clássicos. É fundamental antes de tudo que se decifre a dinâmica e as especificidades da
periferia e de suas relações com os países centrais do capitalismo.
Do início dos anos 50 até meados dos anos 90 do século anterior, quando vem a
falecer, Ignacio Rangel foi quem melhor explicou os fundamentos da formação social e do
desenvolvimento econômico do Brasil. A despeito da conspiração do silêncio e dos impactos
produzidos pelo processo de globalização econômica e financeira, suas teorias continuam
plenamente válidas e assim permanecerão por muito tempo, pois não se trata de uma contribuição
datada e localizada e sim de uma obra que agrega valores imensuráveis ao pensamento humano.
5 O SENTIDO DAS OBRAS REUNIDAS
As “Obras Reunidas” estão divididas em dois volumes. O Volume 1 reúne a tese que
o autor defendeu na CEPAL, livros e monografias, ao todo oito títulos essenciais de sua produção
intelectual. O Volume 2 compreende coletâneas de artigos elaborados entre 1955 e 1987, além de
artigos avulsos que vão de 1962 a 1992, portanto até os dois anos que antecederam a sua morte.
Apesar do hercúleo esforço de César Benjamin, Márcio de Castro e Ludmila em reunir a obra
completa de Rangel, com certeza uma nova garimpagem ainda encontrará textos e contribuições do
autor espalhadas por esse imenso país sob guarda de seus amigos e admiradores.
A SINGULARIDADE DO PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL Coleção Ignacio Rangel
22
Na verdade, o mérito maior dos organizadores destas obras reside no fato de terem
recolhido e juntado tesouros que se encontravam dispersos e que faziam uma falta enorme ao
patrimônio cultural da nação, em especial à sua ciência econômica.
Trata-se de um tesouro que precisa ser descoberto pelas escolas de economia,
sociologia, política, geografia e história deste país. Sobretudo pelos seus estudantes, para quem
Rangel tinha uma verdadeira predileção, pois acreditava que seriam eles os fecundadores das
sementes de um novo Brasil.
O ciclo eterno da concentração de riquezas e produção de desigualdades, destacado
por Cristovam Buarque a partir da carta de Caminha, que escreveu que “nesta terra em se plantando
tudo dá e se esqueceu de dizer que dá tudo, mas para poucos”, precisa, mais do que nunca, ser
rompido, sem o que continuaremos adiando a solução definitiva das crises econômicas e políticas.
Temos plena convicção de que as “Obras Reunidas” de Rangel iluminarão o enfrentamento desses
problemas e contribuirão para a eleição de novas políticas econômicas que promovam o
desenvolvimento nacional sustentável, baseado na geração de empregos, na ética e na justiça social.
Nós, os pioneiros dos anos 80 no Maranhão, sonhamos e lutamos muito pela reunião
e publicação do legado intelectual de Ignacio Rangel. É impossível traduzir a alegria que sentimos
ao ver esse objetivo alcançado agora.
6 O ÍDOLO
Falar sobre Ignacio Rangel para nós é um transbordamento. É como se fosse uma
declaração de amor: do filho que se orgulha do pai que lhe enche os olhos; do discípulo que se
entrega de corpo e alma ao deleite dos ensinamentos do mestre.
Convivemos próximos a Rangel por pouco mais de dez anos, justamente os últimos
de sua vida magistral. Nunca sentimos nele a menor pretensão de ter discípulos. Tentávamos de
todos os modos que ele nos aceitasse como tais, sem o menor sucesso. Era, ao contrário, um
pregoeiro destemido e sério, um anunciador corajoso, um decifrador de enigmas, que teve o Brasil
como maior desafio. Partia sempre da idéia de que os seus interlocutores podiam acompanhar o seu
raciocínio e suas explicações a respeito de como superar os problemas do país. E aí ele nos levava,
em expedições fantásticas, à convicção de que o mundo tinha saída, a pátria tinha futuro promissor
e que a humanidade viria a ser plenamente evoluída e feliz. A maior de todas as suas utopias: a
certeza de que todos os povos da Terra caminhariam para uma comunidade única – para “Um
Mundo Só”.
Coleção Ignacio Rangel A SINGULARIDADE DO PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL
23
Rangel não morreu. Está vivo e pulsa nas páginas destas “Obras” que lançamos hoje.
Está mais belo do que nunca porque está entre nós por mãos femininas, como as de Ludmila e Ana
Rangel, as de Dilma e de muitas outras que aqui se encontram. Não será surpresa para nós, se, ao
chegarmos em nossos lares, o Velho, de beijos e abraços com Aliete, José Lucas e Alberto,
observados por Solon Sylvio, Paulo de Jesus, Evandro Lucas, Celso Augusto, José Aldo e Dirceu
Carmelo nos mandar, como presentes por esta festa, uma bússola, um compasso, um relógio e uma
reguinha de calcular, os mesmos que dera de presente para os filhos José Lucas e Ludmila quando
fazia o curso da CEPAL no Chile. Será, sem nenhuma dúvida, mais um convite desse bravo
“sobrevivente da dignidade, nestes tempos de canalhice organizada”, como diria Rossini Corrêa,
para não desistirmos de decifrar e reinventar o Brasil.
A SINGULARIDADE DO PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL Coleção Ignacio Rangel
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SOBRE O PENSAMENTO ECONÔMICO DO ISEB E A SINGULARIDADE DE IGNACIO RANGEL Raimundo Nonato Palhano Silva
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SOBRE O PENSAMENTO ECONÔMICO DO ISEB E A SINGULARIDADE DE IGNACIO RANGEL7
Raimundo Nonato Palhano Silva*
Resumo Segundo o autor, a contribuição do pensamento Isebiano não foi ainda devidamente avaliada como proposta para o desenvolvimento brasileiro, elaborado em período específico da nossa história. Procura, por outro lado, ressaltar a contribuição teórica de Ignacio Rangel, contrapondo-se às formulações do ISEB.
1 PRELIMINARES
Este trabalho procura ser o menos preconceituoso possível em relação ao ISEB. Para
nós não é fundamental a questão de ser ou não isebiano, uma espécie de identificação apriorística
presente em várias análises sobre aquele Instituto. Somos daqueles que acham necessário ampliar o
campo epistemológico a respeito de sua contribuição histórica, intelectual e do seu papel como
centro de irradiação cultural. Não estamos subestimando a produção acadêmica sobre o ISEB,
realmente relevante e inovadora. Acreditamos mesmo que o seu peso é tão grande e marcante o
talento de seus elaboradores que chegaram a se transformar, involuntariamente, em fatores de
inibição à emergência de novas vertentes de análise. É preciso reverter esse processo, apontando
para outros campos epistemológicos e assim minimizar a influência das explicações consagradas,
muitas vezes esquematizações grosseiras de concepções analíticas erigidas originalmente com toda
propriedade possível. Há, pois, uma espécie de compulsão no sentido de diminuir no sentido as
bases do pensamento isebiano, principalmente quando o identificam como mera ideologia (no
sentido de falsa consciência), dificultando a compreensão de muitas de suas categorias básicas,
como nacionalismo e desenvolvimentismo.
É no interior dessa problemática que procuramos o diálogo com o pensamento de
Ignacio Rangel, porque se mostra didático como a prova de que as atuais tendências reducionistas
não são inteiramente verossímeis. Com efeito, a produção rangeliana é de um ineditismo marcante
(em função do contexto histórico de onde emergiu), fato que põem por terra tais tendências.
Convém deixar claro, no entanto, que não é com a pretensão de dar conta dessas questões que
elaboramos este texto. Não possuímos uma contraproposta para ampliar o campo epistemológico
sobre o ISEB e os isebianos históricos. É um desafio muito árduo para nós. Aqui é possível
7 Publicado originalmente com o título “Sobre o Pensamento Econômico do ISEB e a Simplicidade de Ignacio Rangel” na Revista FIPES, São Luís, v.3, n.2, jul./dez. 1988. * Economista do IPES.
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encontrar antes de tudo, um conjunto de reflexões sobre o pensamento econômico do ISEB, e a
singularidade de Ignacio Rangel, como é retratado do título. Não há assim, pretensão de
grandiloqüência. Há apenas uma espécie de desconfiança em relação a certas verdades sobre o
isebianismo e o desenvolvimentismo, levando-nos a adotar algumas posturas críticas em relação às
mesmas. O que foi possível, sobretudo, pelo estimulante diálogo com o pensamento de Rangel, em
obras como “A Inflação Brasileira”, e de trabalhos como “Recursos Ociosos na Economia
Nacional”, este último recebendo aqui tratamento interpretativo especial.
2 A ECONOMIA POLÍTICA DO ISEB
O Instituto Superior de Estudos Brasileiros não completou dez anos de vida. Criado
em 1955, por Café Filho, foi extinto em 1964, por ato de Ranieri Mazzili. Suas origens, no entanto
são mais recuadas, pois procedem do Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política
(IBESP), nascido do antigo grupo Itatiaia, que se reuniu a partir de 1953 para assessorar o Estado
Brasileiro sobre o desafio de um moderno Estado Capitalista. Vincula-se a um período bem
característico da evolução recente da sociedade brasileira: a fase desenvolvimentista, ligada a uma
crença quase febril na modernização e na redenção do país pela via industrial. Sua função básica
seria a de funcionar como intérprete e condutor das transformações que estavam ocorrendo no país.
Com efeito, os anos 50 foram palcos de um conjunto de modificações na economia
brasileira ao ponto de caracterizarem uma nova forma de acumulação capitalista. São provas dessas
modificações estruturais, a elevação da participação no setor industrial e a conseqüente queda da
elevação no setor agrícola no PIB, quando se inicia a reversão de um quadro que tinha nas
atividades primárias a principal fonte de renda nacional. Nota-se o paulatino aumento da produção
agrícola voltada ao exterior. Decorrente dessa situação observa-se aumentos significativos nas
rendas geradas internamente e da produção para o mercado interno, sem declinar o nível das
importações, principalmente de matérias-primas e equipamentos básicos, necessários à expansão
industrial. Esse novo reordenamento econômico baseado na industrialização procurava resolver
aquilo que era considerado o obstáculo principal, apontado nos diagnósticos da Comissão Mista
Brasil-EUA e Grupo Misto BNDE-CEPAL, que era a vulnerabilidade da economia nacional às
flutuações e determinações do comércio externo, o que provocava a crescente degradação dos seus
termos de intercâmbio. Isto era atribuído à própria estrutura produtiva nacional, até então
centralizada na agricultura, considerada, por aqueles diagnósticos, incapaz de realizar o surto
modernizador-desenvolvimentista, pela própria natureza do sistema econômico mundial, tarefa esta,
como se sabe, atribuída exclusivamente ao setor industrial. É, enfim, diante dessa problemática que
Coleção Ignacio Rangel A SINGULARIDADE DO PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL
29
se inicia a implantação de um novo modelo de acumulação, estabelecendo-se os mecanismos de
uma nova divisão internacional do trabalho, onde o principal objetivo era integrar a economia para
fortalecer o mercado interno. Com efeito, duas outras instâncias terão a participação decisiva na
efetivação do modelo: o Estado nacional, ampliado e fortalecido, e o capital estrangeiro, “fonte
complementar de poupança”, considerados por muitos como indispensáveis para viabilizar o
desenvolvimento capitalista do Brasil.
Como é sabido, o ISEB não possuía uma única postura metodológica sobre a
condição do desenvolvimento brasileiro frente às condições materiais e situacionais da época, já um
pouco sintetizadas acima. Acolhia entre os seus membros simpatizantes das duas posições já
tradicionais no debate econômico da época, envolvendo nacionalistas e liberais, inaugurado nos
anos 40, através das célebres polêmicas entre Roberto Simonsen (nacionalista) e Eugênio Gudin
(liberal). Do mesmo modo, vamos encontrar no seu interior, posturas identificadas com
praticamente todas as grandes correntes de pensamento econômico brasileiro, predominantes ao
longo de seu período de existência.
Uma dessas correntes, seguramente a mais significativa, era a chamada
desenvolvimentista nacionalista, que teve no ISEB um dos seus sustentáculos principais. Para os
seus adeptos, sejam aqueles da área privada, como o CNI e a FIESP; sejam da área estatal, como
BNDE, CEPAL, Assessoria econômica de Vargas, etc. (envolvendo nomes como Celso Furtado,
Rômulo de Almeida, Américo de Oliveira, Ewaldo Lima, etc.) o desenvolvimento ocorreria com a
industrialização e a planificação, contando com a participação de empreendimentos estatais. Seus
diagnósticos da realidade eram fortemente influenciados pelas teses cepalinas, envolvendo a
preferência pelo desenvolvimento “para dentro”, a partir de uma visão estruturalista dos problemas.
Interpretavam a evolução econômica com base no processo de substituição de importações e
responsabilizavam os desequilíbrios estruturais como causadores dos problemas econômicos
recorrentes, aliados à ausência de planejamento, fatores estes a serem corrigidos a longo prazo.
Filiavam-se a uma certa orientação teórica, baseava-se no pós-keynesianismo, em Prebish,
caracterizado pelo forte tom eclético de suas análises.
Em outro pólo de interpretação, vamos encontrar a corrente desenvolvimentista não-
nacionalista, e lá tomando assento também algumas expressões do pensamento isebiano. Suas
interpretações da realidade eram baseadas principalmente no diagnóstico da Comissão Mista Brasil-
EUA e BNDE, envolvendo personagens como Roberto Campos, Lucas Lopes, e Glycon de Paiva.
Embora adotando a mesma orientação teórica da corrente anterior (pós-keynesianismo e ecletismo),
divergem do seu enfoque nacionalista. Defendiam a participação intensiva do capital estrangeiro,
associado ao capital nacional, com participação moderada do planejamento estatal. Tinham uma
A SINGULARIDADE DO PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL Coleção Ignacio Rangel
30
compreensão dicotômica da realidade, onde existiriam setores problemáticos (pontos de
estrangulamento) e setores favoráveis (pontos de crescimento). Acreditavam numa certa tendência
ao desequilíbrio, por razão desta dicotomia, a qual se perpetuava por erros de política econômica.
Também na terceira grande corrente de pensamento vamos encontrar ilustres
isebianos, como Nelson Werneck Sodré. Esta era a corrente socialista, que além do ISEB, contava
adeptos como o PCB, Caio Prado Jr., A. Passos Guimarães e Aristóteles Moura. Seu projeto
econômico fundamental era garantir a viabilização do desenvolvimento capitalista como meio de
passagem ao socialismo, um pouco em cima das teses leninianas, por força da orientação teórica
que adotava concentrada no materialismo histórico. Defendiam a planificação da industrialização
em bases estritamente nacionais. Ao lado de uma reforma agrária geral, pois trabalhavam com a
tese do anti-feudalismo ou anti-imperialismo. Admitiam, assim, que o desenvolvimento das forças
produtivas no Brasil era obstaculizado pelo monopólio da terra (latifundiarismo) e pelo
imperialismo.
A despeito da polimorfia, o pensamento isebiano consegue guardar em alguns
pontos-chaves de sua construção, momentos de unidade e de identificação. Um dos exemplos disso
está na questão central de suas análises, aquela que contrapõe as categorias Nação e Antinação.
Independentemente das eventuais vinculações teóricas e doutrinárias dos seus membros, esse
momento de convergência ocorre quando aquelas duas categorias estão presentes nas distintas
formulações/conceituações isebianas. Todas essas formulações são unânimes em admitir que o
desenvolvimento capitalista representa o meio de superação daquela contradição básica. Pois o
antinacional simboliza o atraso, o subdesenvolvimento, o arcaico; e o nacional confunde-se com o
avanço das forças capitalistas e suas conseqüências, como o industrial, o moderno e o urbano. Eis
porque a categoria fundamental é a nação que deve enfrentar e vencer a antinação. É o nacional-
desenvolvimento versus o antinacional-subdesenvolvimento; ou a indústria versus a agricultura.
Ou, como dizia Paim: a passagem da economia natural fechada, para a economia de mercado,
aberta. É, enfim, esse traço dual que informa o nacional-desenvolvimentismo isebiano e que
perpassa o discurso da quase totalidade de seus membros (muito embora cada qual dê a ele
tratamento eventualmente diferenciado), fazendo emergir, dentre outras coisas, a visão bipolarizada
da sociedade brasileira, a existência de setores dinâmicos e estáticos, produtivos e improdutivos. Eis
porque o Nacionalismo e o Desenvolvimentismo isebiano guardam íntima relação com o
estabelecimento de um sistema capitalista mais avançado no Brasil, ainda que nos anos 50, o
desenvolvimentismo (entendido como intervenção do Estado para viabilizar industrialização)
recebesse críticas das correntes liberais, aquelas que defendiam “a vocação agrária” do Brasil, e,
portanto, não viam com simpatia o intervencionismo. Na verdade, tanto uma quanto outra não eram
Coleção Ignacio Rangel A SINGULARIDADE DO PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL
31
anticapitalistas, muito embora o nacional-desenvolvimentismo estivesse filiado ao keynesianismo e,
portanto fosse contrário ao liberalismo neoclássico, aquele que defendia o não-intervencionismo,
por acreditar que o funcionamento normal da economia capitalista dava-se no nível de grande
emprego. Eis porque, em termos de filiação teórica, o pensamento isebiano tem muito a ver com os
economistas da escola da concorrência imperfeita, aquela que afetou os alicerces da abordagem do
equilíbrio neoclássico, através de figuras como Kalecki, Keynes, Schumpeter e Myrdal, todos eles,
a rigor, discípulos de outras influências como Sraffa, J. Robinson e Chamberlim. Além, de
evidentemente, de outras influências mais próximas, ligadas às novas teorias do desenvolvimento e
do subdesenvolvimento econômico, como André Gunder Franker (que introduziu no Brasil o
pensamento de Sweezy, Baran e Magdoff) e Raul Prebish, este último de enorme influência, pelo
seu papel relevante na estruturação da CEPAL.
Se fosse possível sintetizar a economia política do ISEB, o que consideramos muito
difícil poderíamos dizer que suas formulações de política econômica e de análise da realidade
brasileira, conduzem à adoção de uma espécie de capitalismo social democrata, assentado em bases
nacionais, onde o desenvolvimento se faria “para dentro”(conforme a tese cepalina), como forma de
luta contra os segmentos ligados ao setor primário exportador (associados ao “imperialismo
comercial”) que no Brasil eram identificados com os setores arcaicos da classe dominante. A
entidade demiúrgica criada por estas formulações era o Estado Nacional (conforme a influência
Keynesiana do “Estado Providência”), o qual deveria funcionar como ordenador de toda atividade
econômica, de cuja ação todos seriam beneficiados, com o que tornavam secundária a luta de
classes (que se daria apenas nos estágios mais avançados do desenvolvimento). Jaguaribe, por
exemplo, afirmava que no máximo haveria luta no interior de cada classe, envolvendo os segmentos
estáticos versus os dinâmicos. Até mesmo os “radicais” (como Werneck e Rangel) sustentavam que
a contradição entre capital e trabalho no Brasil era secundária, podendo se manifestar apenas
quando o país atingisse um estágio mais desenvolvido de suas forças produtivas.
3 A CEPAL COMO INSPIRAÇÃO
Não é novidade para ninguém a importância da CEPAL como uma das matrizes
fundamentais do pensamento brasileiro, muito embora ainda persistam nas análises vigentes uma
certa subestimação dessa influência. De certa maneira, atitude semelhante atinge também o ISEB, a
despeito da larga penetração de uma e de outra instituição no pensamento social nacional. Surgida
em fins dos anos 40, espelhada nos esboços de seu principal idealizador, Raul Prebish, a CEPAL,
emerge como instância questionadora do processo de expansão capitalista da América do Sul,
A SINGULARIDADE DO PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL Coleção Ignacio Rangel
32
centrando suas baterias críticas contra a divisão internacional do trabalho então vigente (que se
apoiava em certas premissas da teoria clássica e neoclássica do comércio exterior), cuja dinâmica
estaria reservando um destino inexoravelmente subdesenvolvido para os países daquele continente.
Longe de propiciar vantagens bilaterais, o comércio internacional, baseado no comércio cambial,
não estariam possibilitando os frutos tão cobiçados da lei das vantagens comparativas, como
especialização e processo técnico. Era o inverso que estava acontecendo: os mecanismos desse
comércio estavam cada vez mais deteriorando os termos de intercâmbio do comércio latino-
americano. A prova mais contundente da justeza do diagnóstico cepalino era a situação em que
continuavam se mantendo os países do continente: permaneciam meros exportadores de produtos
primários e matérias-primas, sem obterem do centro do sistema capitalista as tão esperadas
transferências da produtividade (presentes nas formulações clássicas e mesmo o oposto do que se
dava: o centro é que capturava os ganhos de produtividade da periferia). Daí a conclusão nada
animadora da CEPAL; os países latino-americanos não passavam de simples marionetes dos
mercados consumidores do núcleo capitalista.
O outro lado do diagnóstico cepalino como se sabe vai atribuir o
subdesenvolvimento de seus países membros a causas totalmente endógenas. E a causa principal
seria a própria estrutura interna desses países, caracterizados pela existência de setores atrasados e
anacrônicos que impediam o desenvolvimento equilibrado de suas economias. O setor onde estas
características estavam mais presentes era o primário, apontado unanimemente como a causa
interna principal do subdesenvolvimento. Síntese do diagnóstico cepalino: subdesenvolvimento
gera subdesenvolvimento, fortemente inspirado nas teses de Nukse, Myrdall, dentre outros.
A proposta da CEPAL para romper com este círculo vicioso também é de todo muito
conhecida: incrementar o desenvolvimento industrial, promover a reforma agrária, melhorar a
alocação interna de recursos produtivos e impedir, de maneira eficiente, a evasão de produtividade
(por força da eliminação dos mecanismos deteriorativos dos termos de intercâmbio). A síntese
desse projeto é adoção de um modelo de desenvolvimento capitalista voltado “para dentro”, uma
vez que o modelo tradicional “voltado para fora”, não dera os resultados esperados. É uma proposta
nacionalista (porque visa o desenvolvimento do mercado interno) e de certo modo, contrária,
também, ao imperialismo (a rigor, ao imperialismo comercial e financeiro; que se nutria do modelo
agroexportador). O sonho cepalino era a efetivação de economias latinoameriacanas autônomas e
sólidas, com incrementos constantes de renda e consumo, atingindo a uma posição realmente
importantíssima: promover o desenvolvimento e, quando necessário, proceder o planejamento das
mudanças de rumo.
Coleção Ignacio Rangel A SINGULARIDADE DO PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL
33
Não resta dúvida que este é um pensamento reformista e de que as suas propostas
não visam revolucionar as estruturas do pensamento econômico. É como diz Octávio Rodriguez, “o
pensamento da CEPAL altera, mas não supera os marcos da economia convencional”. Contudo, não
se pode negar que, para os anos 40 e 50, davam àquela instituição uma feição progressista. Mas não
é nossa intenção neste tópico discutir seus acertos e desacertos. Quisemos apenas lembrar alguns
pontos de identificação entre as formulações do pensamento econômico isebiano e da CEPAL.
4 E RANGEL, ONDE FICA?
Ignacio de Mourão Rangel foi, simultaneamente, cepalino e isebiano. À primeira
vista, é de se supor, deveria ter um pensamento o mais próximo possível das teses centrais do
desenvolvimento. Mas tal não é novidade. Ele sem medo de errar é o menos típico dentre todos os
formuladores do pensamento econômico isebiano. Ombreado aos mais representativos do
pensamento econômico brasileiro, como Furtado, Gudin, etc. Rangel destaca-se, principalmente,
pelas singularidades de suas análises e concepções, podendo francamente constituir-se em uma
corrente independente, em relação às demais, para não dizer que chegara mesmo a esboçar um novo
campo epistemológico para a interpretação da economia e da realidade nacionais.
A vinculação teórica de Rangel expressa certo hibridismo, envolvendo Smith e uma
curiosa fusão de Keynes e Marx. Desses cruzamentos, aqui e ali, é possível encontrar, em suas
formulações, uma espécie de convivência pacífica entre concepções da economia política burguesa
e importações do materialismo histórico. Defende, como bom isebiano, que era, a industrialização
planificada e decididamente apoiada pelas ações estatais. Reúne um fascínio enorme pelo
planejamento econômico, como veremos no tópico seguinte. Sua tese central para explicar o
subdesenvolvimento é da “Dualidade Básica”, que está quase sempre presente em todas suas
exposições. Como Furtado, interpreta o processo de crescimento da economia brasileira com base
nas formulações do modelo de substituição de importações.
Igualando-se a Furtado, segundo alguns analistas, como um dos pioneiros na
elaboração de sistemas conceituais abrangentes, complexos e globais, capazes de expressar a
evolução e realidade da economia brasileira, Rangel detém-se, essencialmente, na interpretação das
relações entre agricultura e indústria, teorizando a respeito de um sistema capitalista especial (o
brasileiro), gestado monopolista e oligopolista, respectivamente. É justamente em sua obra mais
completa e representativa, “A Inflação Brasileira”, publicada primeiramente em 1963, que ele vai
desenvolver essas idéias, já transparentes em outras obras iniciais, como a “A Dualidade Básica da
Economia Brasileira” (ISEB, 1958); “Introdução ao Estudo do Desenvolvimento Econômico
A SINGULARIDADE DO PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL Coleção Ignacio Rangel
34
Brasileiro” (ISEB, 1960) e “Questão Agrária Brasileira” (Companhia de Desenvolvimento
Econômico de Pernambuco, 1962).
Analisando a configuração do capitalismo brasileiro da época, Rangel aponta como
um dos seus problemas básicos a existência de um processo de industrialização (moderno), sem que
tenham modificados as estruturas tradicionais do setor agropecuário. Isto porque, em uma situação
como esta, forma-se um grande exército industrial de reserva, o que estimula altas taxas de
exploração da força de trabalho no processo de acumulação capitalista. E mais, a tendência de
capitalização (modernização) da agricultura liberaria mais mão-de-obra para os centros urbanos
industrializados. Assim, segundo sua análise, a contradição fundamental do capitalismo brasileiro
residia entre as enormes possibilidades de incremento dos investimentos (em função das vantagens
decorrentes da exploração da força de trabalho, o que asseguraria maiores taxas de lucros) e a
conseqüente insuficiência de demanda da população, uma vez que a massa salarial tendia para
baixo, em função das taxas de exploração elevadas (para ele o “fundo social de consumo” era
constituído, principalmente pelas massas de salários).
Com efeito, o centro das contradições estava no sistema de comercialização de
produtos agrícolas, justamente por ser o segmento controlado por monopsônios e oligopsônios.
Assim, o capital comercial adquiria a produção agrícola a preços aviltantes e repassava a preços
escorchantes. Com isso, elevavam-se os preços dos produtos agrícolas, comprometendo maiores
faixas da renda com alimentação, em detrimento do consumo de industrializados. Por seu turno, os
baixos preços pagos aos produtores agrícolas pelos intermediários que controlavam o capital
comercial, estimulavam a queda na produção do setor primário e a conseqüente diminuição na
oferta de alimentos e matérias-primas, o que implicaria, a curtos e médios prazos, na existência de
capacidade ociosa do setor industrial (devido, logicamente, à redução do consumo dos assalariados
e o custo elevado de matérias-primas oriundas do setor agrícola). A rigor, seria esse o processo
detonador da inflação brasileira: a elevação do nível de preços decorreria fundamentalmente da
necessidade de cobrir custos fixos elevados, em função de integração entre os setores primários e
secundários. O seu método explicativo partia do pressuposto de que a intermediação elevava os
preços agrícolas, e de outro, que o “latifúndio feudal” incrementa o exército industrial de reserva
(igualmente a modernização agrícola), implicando em taxas incrementais de exploração, o que
implicava na diminuição da demanda. Essa insuficiência (“crônica”) de demanda, por outro lado,
gerava a maiores graus de capacidade ociosa, implicando em preços elevados e, assim, até nutrir
aspiral inflacionária.
Estas formulações sobre o capitalismo brasileiro eram inteiramente inéditas em
relação às demais então existentes. Os estruturalistas (dentre eles, Furtado), tinham, por exemplo,
Coleção Ignacio Rangel A SINGULARIDADE DO PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL
35
um outro padrão explicativo para o problema. Trabalhando com as teses estruturalistas, um pouco
ao estilo cepalino, diziam que a causa principal era a inelasticidade da oferta de produtos agrícolas,
pois achavam que a agricultura tinha “deficiências estruturais” que inviabilizavam o atendimento
das demandas globais do setor industrial. Ou seja, achavam que a zona rural não teria condições
intrínsecas de produzir alimentos e matérias-primas baratos, por força de seu próprio atraso. Rangel,
como estamos vendo, discordava desse ponto de vista, chegando a dizer que, caso fossem
eliminadas as cadeias de intermediação, não mais haveriam problemas de inelasticidade de ofertas
de produtos primários para o setor industrial do Brasil.
Outra singularidade do pensamento rangeliano pode ser encontrada nas suas
formulações sobre a inflação brasileira. Afirmava categoricamente que era justamente a inflação a
grande mantenedora do ritmo das atividades industriais da época, na medida em que se constituía
no principal estímulo às imobilizações de capital (aquisição de construções, terrenos, bens duráveis,
etc.), além de incentivo a novos investimentos por força das elevadíssimas taxas de exploração,
ainda que fosse diminuto o mercado consumidor. Isto porque os efeitos corrosivos da inflação numa
situação como a brasileira, onde as taxas de juros eram baixas, obrigava as classes mais abastadas a
metamorfosearem o seu dinheiro em bens materiais. A despeito dessa situação um tanto insólita
(inflação elevada, como fator de estímulo ao investimento total da poupança), Rangel reafirmava,
contudo, que a sua existência não solucionava o problema crônico da deficiência de demanda, a
qual poderia até se agravar, face aos esperados incrementos na capacidade produtiva.
É no interior dessa problemática que Rangel defendia para o Brasil a implantação de
um mercado de capitais, na medida em que reconhecia no capital financeiro os próximos passos a
serem dados pelo capitalismo nacional, o que, confirma, outra vez, a antevisão de sua análise, pelo
rumo, nessa direção, que tomará a economia brasileira anos mais adiante. A sua proposta de
reestruturação do sistema financeiro guardava íntima relação com as suas teses subconsumistas de
explicação dos problemas econômicos nacionais (porquanto entendia que a crise capitalista
brasileira era de realização), pois achava que só um novo mercado de capitais disponíveis em
função da ociosidade industrial, significava uma alternativa real ao desenvolvimento, na medida em
que funcionaria como instrumento de identificação de novas opções para as inversões produtivas,
podendo gerar mais emprego, mais renda e, logicamente, mais consumo/demanda. Nessa ocasião
chegou a propor a instituição de correção monetária (inexistente ainda) como forma de estímulo à
ampliação daquele sistema financeiro, uma vez que o baixo nível da taxa de juros não atraía alguns
investimentos de prazo fixo.
Como dissemos no começo, não é nosso objetivo tratar de acertos e desacertos. Em
Rangel é natural que ambos estejam presentes. O que nos move é a intenção de refletir sobre a
A SINGULARIDADE DO PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL Coleção Ignacio Rangel
36
possibilidade de encontrar-se novos ângulos sobre o isebianismo, que não os já delimitados em
concepções uniformizantes e simplificadoras. Eis porque, no essencial o desenvolvimento
rangeliano, por encerrar especificidades, fatalmente colide com muitas das explicações gerais sobre
“o desenvolvimento do ISEB”, além, evidentemente, das eventuais dessemelhanças com outras
correntes de relação às análises do PCB, e de Werneck Sodré, que responsabilizavam a estrutura
agrária semifeudal como impeditivo ao desenvolvimento das forças produtivas capitalistas no
Brasil; ou as de Caio Prado Jr., que atribuía as condições econômicas do Brasil à sua situação
semicolonial e à exploração do imperialismo.
4.1 Uma Análise Mais Pormenorizada: as formulações sobre ociosidade e economia
Com efeito, se resolvêssemos admitir que são plenamente satisfatórias as atuais
análises que buscam sistematizar e estruturar o pensamento desenvolvimentista isebiano como
sendo uma categoria unitária, poderíamos dizer que o pensamento rangeliano, ora pode ser, sem ser,
isebiano quando desenvolvemos, a seguir, algumas considerações sobre seu trabalho “Recursos
Ociosos na Economia Nacional-ROEN”, publicado em 1960, pelo ISEB. É uma obra em que
transparece as concepções de Rangel sobre o desenvolvimento capitalista, suas causas e fatores
impeditivos. É, na verdade, um pequeno (embora proficiente) esboço acerca da realidade e
perspectiva do capitalismo brasileiro, da sua relação com a sociedade e, sobretudo, um enfoque
sobre o papel do Estado Nacional como planejador do processo de transformação das estruturas
econômicas e sociais, teses estas que estão reunidas e aprofundadas em suas posteriores obras,
principalmente em “A Inflação Brasileira”.
Logo no início de ROEN, Rangel deixa antever a sua vinculação metodológica aos
princípios do materialismo histórico e a sua inclinação socialista ao admitir que a sociedade humana
se dirige para uma comunidade única, para um “mundo só”, na sua maneira de dizer. Mas não é
sobre essa questão que a obra se preocupa, obviamente. Seu núcleo temático é o desenvolvimento, e
mais ainda, um caso específico de desenvolvimento - o Brasileiro. Homem de sua época, não deixa
a menor dúvida que o Brasil só se constituiria como nação soberana se permanecesse desenvolvido.
Segundo seu ponto de vista, o nascimento de uma nação é produto do avanço das forças produtivas
e da técnica. É por esta razão que os anos 50 apresentava-se-lhe como o momento em que o país
perdia a sua condição de “nação criança” para transformar-se em nação. É ele quem diz: “o sinal
mais importante do nascimento de uma nação, nesta segunda metade do século XX, é afirmação
categórica da exigência do desenvolvimento” (p.10). É evidente que aqui ele não está falando em
desenvolvimento em geral; trata-se, obviamente, do desenvolvimento capitalista. Contudo há uma
Coleção Ignacio Rangel A SINGULARIDADE DO PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL
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particularidade na sua formulação, que marca outra vez uma diferença em relação às formulações
reducionistas sobre o desenvolvimento. Rangel, sintonizado com seu método da análise, entende o
desenvolvimento capitalista como transição e não como uma etapa final. Deixa bem claro que o
progresso das forças produtivas gera a nação, mas que esse mesmo avanço levará à “comunidade
única”. Para que se chegue ao futuro cidadão do universo, afirmava ele, há a passagem transitória
para cidadão de uma pátria (leia-se nação).
Em ROEN, Rangel não consegue disfarçar o seu ecletismo teórico-metodológico,
quando se utiliza de categorias analíticas que demonstram igualmente a sua vinculação aos
enfoques schumpeterianos e smithianos, comprováveis ao longo do texto, pela recorrência constante
ao papel da técnica e do mercado. No tópico sobre “A Nação e a Técnica” é possível obter
comprovação disso. Começa por afirmar, retomando questão anterior, que duas eram as tarefas
básicas impostas ao Brasil pela história: construir sua soberania (através do desenvolvimento
econômico) e assegurar a sua unidade. A efetivação dessa última tarefa dependia do
desenvolvimento do mercado interno, a ser conseguido pelo avanço da técnica no país, através da
qual se daria a superação do atraso existente. Sedimenta essas suas observações, sobre o avanço
inexorável da tecnologia e da técnica e seu papel como fator de unificação dos mercados nacionais,
mirando-se no próprio exemplo mundial, quando extrai dessa realidade provas de que a técnica não
só os havia unificado, como já estava mesmo ultrapassando seus próprios limites. Seria justamente
esta pressão externa que obrigaria o Brasil a se unir, asseverava o nosso autor. Na verdade a crença
na unidade como integração do mercado nacional, para viabilizar o desenvolvimento, tem suas
raízes em concepções smithianas, segundo as quais a unificação do espaço econômico alargaria os
níveis da divisão social do trabalho, decorrência direta do progresso tecnológico. Mais adiante,
tratando do relacionamento entre soberania e unidade nacionais, deixa claro que a primeira não
pode constituir em frente a segunda, o que ocorreria sempre que a soberania viesse a limitar a
expansão do comércio externo isto não significava, todavia, que Rangel estivesse defendendo o
livre jogo das forças de mercado, mas achava que nem por isso esse desenvolvimento levasse,
fatalmente, à internacionalização dos fatores produtivos. Dá um exemplo ilustrativo a respeito dessa
questão, destacando o caso da indústria siderúrgica nacional, localizada em um país com enormes
reservas de minério de ferro, mas grandemente necessitado de carvão mineral de boa qualidade. Sob
o império dessas determinações, a siderurgia brasileira estaria permanentemente vulnerável e sem
possibilidades de expansão. Somente com o desenvolvimento tecnológico essa situação poderia ser
contornada, através do desenvolvimento de sucedâneos para o coque (como gases combustíveis, gás
xisto ou eletro-siderurgia, por exemplo). Conclui afirmando que nesse caso, como em outros
A SINGULARIDADE DO PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL Coleção Ignacio Rangel
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semelhantes, a própria técnica impediria a internacionalização de fatores, e simultaneamente,
permitiria a criação de uma indústria à base de recursos naturais.
Prosseguindo suas análises, chama a atenção para o que denomina “o moderno
problema da unidade”, que seria o risco da integração do mercado nacional vir a reforçar, em vez de
eliminar, as disparidades inter-regionais. Jocosamente faz menção à fábula de La Fontaine, quando
diz que a brusca aproximação econômica poderia converter-se na “associação de panela de barro
com a panela de ferro”. Seu receio era o de que o processo integrativo fizesse prevalecer apenas às
forças centrífugas o que levaria os parques fabris e produtivos das várias regiões a se satelitizarem.
A solução para esse problema é cristalina em Rangel: dotar o Estado de um planejamento eficiente e
racional, capaz de reverter àquela perspectiva. Ouçamo-lo: “...o preço da unidade é o fortalecimento
do poder central, para torná-lo capaz de certos fluxos econômicos, de modo a possibilitar a
coexistência das regiões marginalizadas com as vanguardas e também a gradual liquidação do
atraso daqueles” (p.14). Assim para o pensamento rangeliano, o planejamento estatal não só
bloquearia as forças centrífugas como deveria reverter a situação de atraso das áreas mais débeis do
país. Pode-se dizer que até aqui não há muita novidade se considerarmos que essas questões já
faziam parte das análises da época. Na verdade o “moderno problema da unidade” está na crítica
feita por Rangel ao prosseguimento do processo de industrialização no Sudeste através de indústrias
de base, e a sua conseqüente integração ao mercado mundial, sem que o mercado nacional
efetivamente já estivesse unificado. Ou seja, via com muita apreensão a tendência à centralização
que se prenunciava na economia brasileira.
Este diagnóstico da situação é que transforma o planejamento, no pensamento de
Rangel, no principal fator de unidade e de soberania, conforme aparecem em mais um tópico de seu
trabalho. Sua visão do planejamento, portanto, não é tecnocrática. Entendo-o, obviamente como
fator de ordenamento do desenvolvimento, em que não se realizem apenas interesses de uma classe
ou de um setor econômico. Como para ele a atuação do Estado deveria ser impessoal e
desinteressada, pelo menos naquele estágio da economia brasileira, o planejamento deveria atender
ao interesse de todas as classes. A justificativa que encontra para esta postura é extraída da crença
de que o planejamento só daria certo em nações solitárias. Para ele apenas as nações bem
constituídas planejam bem, porque os seus membros não se colocam antagônicos entre si. Afirmava
ele que “não há planejamento sem transferências não compensadas de renda” (p.17).
Isto posto, Rangel retoma a questão do planejamento e unidade, criticando a posição
das correntes cosmopolitas, que achavam inexorável a eliminação das barreiras regionais durante o
processo de integração do mercado nacional. Segundo ele, a verdadeira unidade não deveria
eliminar as especificidades de todas as regiões integradas, porque não era para centralizar, mas para
Coleção Ignacio Rangel A SINGULARIDADE DO PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL
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expandir e diversificar, que ela deveria existir. É desse modo que entendia também a integração
com outras economias: a verdadeira integração consolida, ao invés de eliminar, as barreiras
nacionais. É ele quem afirma: “devemos subordinar o intercâmbio com o exterior aos interesses
necessariamente autarcizantes de sua construção interna” (p.21). Isto porque acreditava que só os
Estados soberanos poderiam programar seu intercâmbio com o exterior. Estas colocações não
significam, contudo, que Rangel defenda a “autarcização” das economias nacionais. Admitia
claramente no seu texto que as “autarcias econômicas” desaparecerão com a planificação do
desenvolvimento e que estas são produto de uma fase em que impera a desordem econômica.
Assim, a consolidação das barreiras não significava “autarcização”, mas consolidação das
soberanias nacionais, que se daria no momento da consolidação do comércio internacional.
Para destacar a relevância de suas formulações, Rangel chegava a afirmar que o
verdadeiro progressismo no Brasil não se mede em termos de direita e esquerda, mas, sobretudo,
pela adesão ou repúdio às idéias de unidade, soberania e planejamento (conforme, evidentemente,
os seus conceitos para cada uma delas). O exemplo que encontra para provar sua tese é aquele em
que demonstra a possibilidade de existirem no Brasil, radicais retrógrados e conservadores
progressistas ao ponto de indicar nesse fato um dos paradoxos da dualidade básica da economia
brasileira. Conclui dizendo que, na história do Brasil, tem havido sempre mais fusão de classe, do
que contradição, ou mesmo, alianças de classes.
Feitas essas considerações, Rangel parte para os comentários sobre um dos itens
básicos de seu trabalho, que é o da interpretação da ociosidade na economia nacional, temática esta
presente na totalidade de sua produção intelectual, e que está mais explicitada e aprofundada em “A
Inflação Brasileira”. Com efeito, seus argumentos iniciais são contra a falta de criatividade e de
espírito empreendedor da indústria nacional. Não poupa os empresários, taxando-os de preferirem
as opções de menor esforço, ligados ao “leilão de fatores” do comércio internacional e não a
investigação abalizada da capacidade ociosa nacional. Por este motivo é que a importação
apresentava-se como panacéia para tudo o que se mostrava escasso no Brasil. Segundo ele, só
depois demonstrada a existência de mercado garantido, em função de importação efetivada
anteriormente, é que o empresário brasileiro se dispunha a examinar a possibilidade de produzir
internamente. E isto ocorreria, justamente pelo fato do empresariado industrial ter uma economia
voltada enormemente ao comércio externo. Este seria um procedimento inteiramente condenável,
segundo a análise rangeliana, pois, além de agravar os problemas de ociosidade, poderia contribuir
para a tendência de incrementos maiores na pauta de importações. Chegavam mesmo a afirmar que,
nos momentos de contração às importações, provocados por eventuais crises de pagamentos, o
empresariado não saberia encontrar novas alternativas de inversão, ao ponto de renunciar ao próprio
A SINGULARIDADE DO PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL Coleção Ignacio Rangel
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investimento, o que inibiria o desenvolvimento global da economia. Para ele, o empresário nacional
enfrentava um grave desafio: teria que fazer uma escolha que não recaísse ou no capital estrangeiro,
ou a compressão do consumo, ou na renúncia ao desenvolvimento.
A proposta de Rangel, para vencer esse dilema, era a ênfase na utilização da
capacidade ociosa da economia, porque só assim seria possível incrementar a disponibilidade total
de bens e serviços, portanto aumentar o nível do investimento para assegurar a aceleração do
desenvolvimento econômico, prescindindo-se, assim, do capital estrangeiro, sem que ocorresse a
compressão do consumo. Assim é na unificação do mercado interno que encontrava a fórmula para
a eliminação da capacidade ociosa da indústria, cuja utilização, a seu ver, era a via preferencial para
unir a Sociedade e o Governo, pois, segundo ele, “os trabalhadores desejam trabalhar e os homens
de indústria desejam ver suas instalações plenamente utilizadas” (p.38). Não negará, mais adiante,
que o uso integral da capacidade produtiva existente seria também uma aspiração plena do
pensamento nacionalista, “porque a capacidade ociosa é nacional e seu uso habilitará o Brasil a
desenvolver-se com os próprios meios, o que, aliás, não quer dizer que se limite a eles recusando-se
a receber recursos que sejam oferecidos em condições razoáveis.” (p.38).
No item reservado aos modos da utilização da capacidade ociosa, Rangel é taxativo:
“Se uma economia não utiliza plenamente seus recursos produtivos, se deixa no limbo da mera
possibilidade um produto adicional, para o qual estão cumpridas as condições prévias materiais ou
técnicas, renuncia a um adicional de riqueza que poderia, além de melhorar seus padrões de
consumo, aumentar o que é mais importante ainda, o volume de seus investimentos, dos quais
depende, em grande parte, a ulterior expansão do produto nacional, isto é, do desenvolvimento” (p.
41).
Sobre os investimentos, ele chamava atenção para a necessidade de maiores
inversões nos setores produtivos de bens de produção, considerados de maior poder germinativo e
com maiores chances de integração intersetorial. Nesse sentido, chegou a formular uma proposta
um tanto incomum, que era a adoção de um verdadeiro processo de conversão de certas atividades
produtivas industriais em outras. Acreditava nesta possibilidade pelo próprio estágio das economias
subdesenvolvidas, onde não seriam bem nítidas as fronteiras que separam as indústrias de bens de
produção e as de bens de consumo (“ao menos esta característica do subdesenvolvimento pode ser
posta a serviço do desenvolvimento...”) (p.43). Apontava, assim, para a possibilidade de mudança
na estrutura de oferta da economia brasileira, que tanto poderia obter bens de produção, pelo
emprego de indústria de bens de consumo, como obter bens de consumo em indústrias de bens de
produção. Aparece claro aqui a sua defesa de uma espécie de revolução tecnológica tupiniquim.
Coleção Ignacio Rangel A SINGULARIDADE DO PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL
41
Fica-nos evidente, enfim, que em ROEN, Ignacio Rangel desenvolve o esboço de um
modelo analítico capaz de explicar o desenvolvimento presente e futuro do capitalismo brasileiro. É
um projeto nacionalista e fortemente apoiado no planejamento estatal, onde o fator dinâmico é o
desenvolvimento do mercado interno, liderado pela industrialização. Embora não fale claramente,
desenvolve um diagnóstico segundo o qual os setores atrasados, (o primário principalmente) e a
ociosidade industrial, representam os pontos de estrangulamentos básicos. A rigor, ambos seriam
afastados pela introdução da técnica, que, guiada pela luz do planejamento, levaria o país a uma
situação de desenvolvimento seguro e equilibrado, lacunar, se assim quisermos proceder para
análise do texto de Rangel, está a omissão sobre a natureza de muitos dos problemas levantados,
como o da ociosidade. Mas aí estaríamos cometendo uma impropriedade: o seu trabalho foi
elaborado com essa pretensão.
5 À GUISA DE REFLEXÃO FINAL
Ninguém duvida que o desenvolvimento é a mola mestre do pensamento
isebiano.Isto é uma coisa. A outra (geralmente esquecida) é que não existe no interior do ISEB
apenas uma concepção de desenvolvimento que torna a tarefa de construir uma formulação unitária
de desenvolvimento algo extremamente complexo, pois, se, de um lado, simplifica o problema, de
outro, pode inibir o avanço do próprio campo epistemológico a seu respeito. Sem contar os riscos
do paroxismo, quando fontes não legítimas recorrem àquelas sínteses e esboçam análises apressadas
que, invariavelmente, tratam a produção isebiana sem a menor competência. A nosso ver uma das
causas desse tipo de situação, reside numa espécie de transposição abusiva de certas análises sobre
o ISEB (em geral análises relevantes, por estarem legitimadas em fontes eruditas), produzidas para
dar conta de aspectos específicos da realidade social (como análises de discursos, sob perspectivas
filosóficas e ideológicas) e que, de uma hora para outra, são utilizadas para explicar outros aspectos
dessa mesma realidade. Até mesmo no seio dessas análises é possível encontrar situações ambíguas.
As análises eruditas de Caio Navarro de Toledo sobre a ideologia desenvolvimentista do ISEB, por
exemplo, não contemplam a matéria econômica de per si, muito embora qualquer discurso sobre o
desenvolvimentismo ( inclusive o seu, curiosamente) tenha que passar por ali.
Assim, as análises em voga que supõem já estar construída a unidade do pensamento
desenvolvimentista, a nosso ver, não se sustentam integralmente. Uma das provas para demonstrar
sua fragilidade pode ser obtida pela comparação entre o desenvolvimentismo constante no discurso
dos isebianos e dos planos governamentais de fins dos anos 50, começo dos anos 60. Os primeiros
são mais rigorosos, racionais e equilibrados; os segundos são ufanísticos e em geral, ideológicos.
A SINGULARIDADE DO PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL Coleção Ignacio Rangel
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Admitir que o discurso desenvolvimentista dos planos governamentais é o mesmo que o dos
isebianos que tratam, por exemplo, da matéria econômica, é na melhor das hipóteses um ato de
injustiça para com o ISEB, enquanto órgão produtor de cultura especializada.
É preciso olhar o isebianismo sem preconceito. Não é nenhuma heresia admitir-se,
por exemplo, que as suas propostas e análises da realidade nacional, devidamente reduzidas ao seu
contexto histórico, são mais progressistas do que muitos pensam. Não queremos, evidentemente,
transformar o criticismo de seus analistas em apologia. Tomemos apenas as generalizações que não
são capazes de precisar com exatidão o lugar de onde estão falando. O debate travado em fins da
década de 70, entre Lamounier e seus colegas paulistas, analistas do ISEB, é ilustrativo a esse
respeito. Entre outras coisas ele discordava de algumas formulações contidas no livro de Navarro
(“ISEB: Fábrica de Ideologias”), por exemplo por adotarem como questão básica a crítica de que o
ISEB, fazia mistificação ideológica, no que escamotiava a luta de classes, não sobrepondo-a à
contradição nação-antinação, que ocupava o núcleo do sistema analítico isebiano. Segundo
Lamounier, este também não seria o verdadeiro caminho para esclarecer a questão, pois achava que
Navarro partia de um ponto de vista simplista: tudo que dissesse respeito às classes seria
verdadeiro; seria crítica da ideologia. Acredita que, além dessas preocupações, o mais essencial
seria aprender o significado e o alcance daquelas ambigüidades. O que sua crítica procura
demonstrar é a inexistência de contextualização apropriada; a inexistência de certa “relação entre o
texto e o contexto “, crítica esta que lança não só ao trabalho de Navarro, mas também a alguns
outros da escola paulista.
Não devemos esquecer que, para os anos 50, nacionalismo e desenvolvimentismo
não são meras categorias analíticas, como muitos estudos parecem indicar. Não são simples
mistificações da realidade, engendradas por “intelectuais a serviço da burguesia das classes
dominantes”. Eram também, acima de tudo, aspirações nacionais produzidas pela ação de um
momento histórico particular, que afetava o Brasil e a América Latina em geral. Representava (o
nacionalismo e o desenvolvimentismo) também – com o que concorda o próprio Lamounier -
consciência dos problemas nacionais, continentais e mundiais. Era por isso mesmo, consciência das
desigualdades.
Afinal, nem só de ilusão vivem os homens!
Coleção Ignacio Rangel A SINGULARIDADE DO PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL
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BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
CARDOSO, Miriam Limoeiro. Ideologia do Desenvolvimento do Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. (Estudos Brasileiros, v.14). CHAUÍ, Marilena. Seminários. São Paulo: Brasiliense, 1984. CHAUÍ, Marilena, FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Ideologia e mobilização popular. Rio de Janeiro: CEDEC/Paz e Terra, 1978. FURTADO, Celso. A Questão Nordeste. Rio de Janeiro: ISEB, 1960. JAGUARIBE, Hélio. O nacionalismo na atualidade brasileira. Rio de Janeiro: ISEB, 1958. LAMOUNIER, Bolívar. O ISEB: notas à margem de um debate. São Paulo: Discurso n. 9 (Ciências Humanas), 1979. MANTEGA, Guido. A economia política brasileira. Rio de Janeiro: Poli/Vozes, 1984. PAIM, Gilberto. Industrialização e economia natural. Rio de Janeiro: ISEB, 1957. (Textos Brasileiros de Economia, v.1) RANGEL, Ignacio. A inflação brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1984. ________. Recursos ociosos na economia nacional. Rio de Janeiro: ISEB, 1960. RODRIGUEZ, Octávio. Teoria do desenvolvimento da CEPAL. Rio de Janeiro: Forense, 1981. TOLEDO, Caio Navarro de. ISEB: fábrica de ideologias. São Paulo: Ática, 1982. (Ensaios, 28).
Resumé
D’aprés l’auter contribuition de la pensée “isebiano” n’a pás ancore até bien apréciee, comme proposition pour le développment brésilien , d’autre côte relever la contribuition théorique de Ignacio Rangel , en l’oppsamt aux formulations du ISEB et ses points de conexions aveccette institutions.
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NOTAS SOBRE A BIBLIOGRAFIA INTELECTUAL DE IGNACIO RANGEL
Raimundo Nonato Palhano Silva
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NOTAS SOBRE A BIBLIOGRAFIA INTELECTUAL DE IGNACIO RANGEL8
Raimundo Nonato Palhano Silva *
Resumo Neste artigo o autor procura mostrar a versatilidade da personalidade de Ignacio Rangel, também ressaltando a contribuição por ele dada ao pensamento econômico brasileiro no decorrer do século XX.
O título deste texto é pretensioso. O mais apropriado seria denominá-lo “notas
incompletas”. Isto porque, tanto em extensão quanto em conteúdo, ainda não dispomos de um
dimensionamento completo da obra de Ignacio Rangel, no sentido do resgate pleno do seu valor
histórico para a cultura brasileira e para o pensamento econômico latino-americano. Na verdade,
este é um texto sucinto que se propõe, sobretudo, a tentar uma apresentação de sua bibliografia mais
conhecida e, se conseguir, focalizar um pouco da singularidade que cerca a vida desse maranhense
tão ilustre.
1 A BIBLIOGRAFIA
Tomando por base a bibliografia organizada por Gilberto de Carvalho e Fernando
Pinto, de “Literatura Econômica”, correspondente ao período 1955-1985, ampliada e atualizada
pelo autor deste texto, através de levantamentos em outras fontes, são estes os livros e principais
textos avulsos de Rangel: [1] “A Dualidade Básica da Economia Brasileira”, elaborada em 1953,
apresentada à Assessoria Econômica da Presidência da República e publicada em 1957, no Rio,
pelo ISEB; [2] “El Desarollo Economico en Brasil”, de 1954, monografia de conclusão de curso na
CEPAL; [3] “Introdução ao Estudo de Desenvolvimento Econômico Brasileiro”, conferências
pronunciadas em 1955, no IBESP, e publicadas em 1957 pela Livraria Progresso de Salvador-BA;
[4] “Desenvolvimento e Projeto”, de 1957, trabalho decorrente de sua passagem pelo Departamento
Econômico do BNDE; [5] “Elementos de Economia do projetamento”, cuja primeira edição é de
1959, produto de curso ministrado na Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade da Bahia,
obra pela qual Rangel reserva grande apreço, tendo merecido edição recente da Editora Bienal, de
São Paulo; [6] “Visão do Desenvolvimento e da Economia Brasileira: Programa e Política – O
8 Artigo publicado originalmente na Revista FIPES, São Luís, v.4, n.2,/v.6, n.2, jul./dez. 1989. Trabalho apresentado no VIII Encontro de Entidades de Economistas do Nordeste- ENE, em homenagem a Ignacio Rangel, como comemoração dos 40 anos de regulamentação da profissão de Economista, no Brasil. * Professor do Departamento de Economia da Universidade Federal do Maranhão-UFMA.
A SINGULARIDADE DO PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL Coleção Ignacio Rangel
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Programa de Metas Econômicas do Governo”, de 1959, publicada no Rio pelo BNDE; [7]
“Recursos Ociosos na Economia Nacional” decorrência de aula inaugural proferida, em 1960, no
ISEB; [8] “Apontamento para o Segundo Plano de Metas”, de 1961, publicado pelo CONDEPE,
Recife-PE; [9] “A Questão Agrária Brasileira” de 1961, fruto das análises e reflexões desenvolvidas
em grupo de trabalho pela Presidência da República, visando apontar soluções ao problema agrário
brasileiro, publicado pelo Conselho de Desenvolvimento da Presidência da República, no Rio de
Janeiro-RJ; [10] “A Inflação Brasileira”, originalmente de 1963, editado pelo Tempo Brasileiro,
reeditado posteriormente pela Zahar, Brasiliense e Bienal, estando próximo da 10ª edição, sendo o
trabalho mais divulgado de Rangel e hoje um clássico do pensamento econômico brasileiro; [11]
“Recursos Ociosos e Política Econômica” de 1979, publicada pela HUCITEC, São Paulo,
compreendendo uma reedição revista dos trabalhos “Recursos Ociosos na Economia Nacional”, e
“Apontamentos para o Segundo Programas de Metas”, atualmente na 3ª edição; [12] “Ciclo,
Tecnologia e Crescimento”, de 1982, reunião de artigos, conferências e textos produzidos entre
1969-1982, publicação pela Civilização, Rio (RJ); [13] “Economia: Milagre e Anti-Milagre”, de
1985, integrante da coleção Os Anos de Autoritarismo? da Zahar Editora, Rio de Janeiro-RJ,
abordando a economia brasileira durante o regime militar; [14] “Economia Brasileira
Contemporânea”, de 1987, reunindo textos selecionados, publicados em jornais e revistas de
circulação nacional, período de 1983 a 1987, publicado pela Editora Bienal.
Ainda na bibliografia organizada pelos autores a que nos referimos anteriormente,
está arrolada, como contribuição intelectual de Rangel: [29] trabalhos publicados em periódicos de
renome, no campo da Economia e das Ciências Sociais, tais como Digesto Econômico, Cadernos do
Nosso Tempo, Desenvolvimento e Conjuntura, Revista do BNDE, Revista da Civilização
Brasileira, Estudos CEBRAP, Revista Agrária, Ensaios FEE e Revista de Economia Política, [7]
trabalhos de fôlego, como contribuição em coletâneas organizadas por entidades culturais e
científicas como o ISEB, a UFMG, a Editora dos Encontros com A Civilização Brasileira e o
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico; Além de [3] teses sobre o
pensamento de Ignacio Rangel, elaboradas por Manoel Francisco Pereira (EASP/FGV/SP), Paulo
Davidoff (UNICAMP) e Ricardo Bielchowsky, em cuja tese de doutorado, defendida na
Universidade de Leicester, Inglaterra, figuram capítulos sobre a contribuição de Rangel.
Recentemente tivemos conhecimento de mais dois trabalhos acadêmicos: a dissertação de F.J.C. de
Carvalho (IFCH/UNICAMP) e o texto de Mauricio Tiommo Tolmasquim, estes sobre os ciclos na
obra de Rangel, elaborado para o curso de Teoria e História das Crises, de R. Boyer, na École de
Hautes Estudes et Histoire em Scienses Sociales, de Paris.
Coleção Ignacio Rangel A SINGULARIDADE DO PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL
49
Ultimamente tornou-se colaborador assíduo dos principais jornais brasileiros, entre
os quais a Folha de São Paulo e o Jornal de Brasília, onde tem veiculado sua produção. Segundo
nossos dados, só na Folha, entre 1983 e 1990, Rangel publicou 247 artigos, a saber: 1983 (25
artigos); 1984 (24 artigos), 1985 (83 artigos); 1986 (26 artigos); 1987 (32 artigos); 1988 (15
artigos); 1989 (39 artigos); 1990 (23 artigos), perfazendo, no período uma média de quase 3 artigos
novos por mês. Não menos volumosa é sua contribuição, nos últimos 10 anos, a jornais e revistas
especializadas em economia, tanto de projeção nacional quanto regional e estadual. São artigos,
ensaios, entrevistas, veiculados pela grande imprensa e periódicos dos grandes centros do sul e de
outras regiões brasileiras. Adicionem-se a isto as crescentes solicitações a Rangel, provenientes das
mais variadas instituições sociais e culturais do país, e até de universidades estrangeiras,
interessadas em ouvir suas conferências, palestras e depoimentos.
A despeito de suas proporções consideráveis, ainda é vasta a bibliografia de Rangel
que permanece inédita ou desconhecida. São pareceres, relatórios técnicos, estudos e projetos,
referentes a questões econômicas dos anos 50 e 60, período em que desempenhou funções decisivas
na burocracia governamental e militou nas instituições estratégicas, na formulação de idéias sobre o
desenvolvimento do Brasil.
2 O SENTIDO DA OBRA
Na verdade, a obra de Ignacio Rangel, em sua extensividade e profundidade, ainda
não foi inteiramente trabalhada. Isto longe de desmerecer, atribui às interpretações passadas e
presentes um extraordinário mérito: justamente o de terem evidenciado a necessidade do
preenchimento de várias lacunas. O que constitui sem dúvida, um novo desafio à capacidade das
novas gerações de economistas brasileiros.
Isto posto, e em termos gerais, podemos dizer, seguindo o ponto de vista de
Bielchowsky, em seu trabalho citado, que o “princípio organizador” do pensamento de Rangel é a
sua tese da dualidade. Trata-se de engenhosa construção analítica que articula contribuições do
materialismo histórico marxista, de Smith, de Keynes, da teoria dos ciclos e das crises de
Kondratieff e Jaglar à formação econômica brasileira, no intuito de entender sua dinâmica e
especificidades, a partir da conjugação de dois pólos definidores: um “interno” (atrasado) e outro
“externo” (capitalista).
Quando redigiu, originalmente, em 1953, o autor da tese da dualidade tinha 39 anos.
Em 1957, com alguns retoques, foi publicada pela primeira vez. Inscreve-se como uma resposta
A SINGULARIDADE DO PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL Coleção Ignacio Rangel
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penetrante de Rangel ao tema focal colocado à sua geração: clarificar o significado da questão
agrária para o desenvolvimento do país e a maneira em que se daria a revolução brasileira, no
sentido da superação do capitalismo. Em 1981, mais seguro da validade de suas premissas Rangel
publica na REP 1 (4), out./dez., o artigo “A História da Dualidade Brasileira”, o qual, com
extraordinária clareza, desenvolve, aproximadamente as articulações entre a dinâmica da dualidade
e os princípios teóricos de Kondratieff. O resultado último desse esforço intelectual foi a construção
de uma verdadeira teoria do desenvolvimento brasileiro, algo inédito no tempo em que foi esboçada
e, ainda hoje, extremamente raro nos quadros da produção acadêmica sobre economia, no Brasil.
Para efeitos analíticos, são classificados em cinco as grandes teses de Rangel,
expressões de suas interpretações sobre a economia brasileira, a teoria econômica e o
desenvolvimento econômico, social, político, classificação esta construída por estudiosos atuais do
seu pensamento, como Monteiro de Castro et Belshowsky, Mantega, Davidoff Cruz, Tolmasquim,
entre os principais: [1] Tese da Dualidade Básica, que conjuga e sistematiza as leis gerais da
formação histórica (em Marx), à estrutura e funcionamento da economia brasileira; [2] Tese da
Dinâmica Capitalista, que articula as teorias dos ciclos, das crises e a questão tecnológica ao
movimento da economia brasileira e mundial; [3] Tese da Inflação Brasileira, contida em seu
famoso livro do mesmo nome, transformada, pela sua densidade analítica, nível de formulação e
grau de universalidade em uma verdadeira teoria da Inflação, feito inigualável na história do
pensamento econômico brasileiro; [4] Tese da Questão Agrária, que interpreta os determinantes da
crise agrária brasileira e suas conseqüências para o desenvolvimento do capitalismo no Brasil; [5]
Tese sobre a Intervenção do Estado e Planejamento, que analisa o valor do planejamento do setor
público como fator de equilíbrio econômico global e de redução de ociosidades setoriais na
economia, campo este o qual se vale para demonstrar o significado positivo de um vigoroso sistema
financeiro, mobilizador de recursos ociosos para os setores produtivos, com ênfase nos
investimentos em serviços de utilidade pública e infra-estrutura.
Rangel, inquestionavelmente, é o maior dos pioneiros, dentre os que estudaram a
economia brasileira a partir de seu relacionamento com a teoria dos ciclos, apoiados em
Kondratieff. Por anos a fio vem refletindo sobre o comportamento do Kondratieff nos vários países
e suas articulações com os avanços tecnológicos, de onde extraí fundamentos metodológicos para
suas teses sobre o Brasil, o desenvolvimento e o subdesenvolvimento econômico. Foi desse esforço
que resultou a construção de outro de seus marcos teóricos centrais, o da “dialética da ociosidade”,
centrada no que denomina “exoneidade” do Kondratieff brasileiro. Mecanismo este que fez de
Rangel produtor de um conceito original de subdesenvolvimento, com o qual se definia o
Coleção Ignacio Rangel A SINGULARIDADE DO PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL
51
desenvolvimento de um país relacionando-o a outro. É de Rangel a tese de que o “atraso de um país
é relativo a um estágio superior do seu próprio desenvolvimento”.
Castro et Bielchowsky afirmam, textualmente: ... “Ignacio Rangel se tornou, ao
longo dos últimos 30 anos, o mais original analista do desenvolvimento econômico brasileiro”. Seus
intérpretes não hesitam em afirmar que ele materializa um dos poucos, bem poucos, economistas
brasileiros que conseguiram produzir um sistema teórico e conceitual abrangente, complexo e
articulado sobre a evolução e a realidade da economia brasileira. Pela envergadura do seu poder
criador, passou a ser reconhecido como uma das vertentes fundamentais na constituição de uma
moderna economia política neste país. Mantega identifica em sua obra um dos alicerces do
pensamento econômico no Brasil, de quilate semelhante ao de Celso Furtado, Gudim ou Conceição
Tavares.
3 O AUTOR
IGNACIO DE MOURÃO RANGEL nasceu a 20 de fevereiro de 1914, em Mirador
(MA). Nos anos 30 faz breves incursões nas faculdades de Medicina, no Rio de Janeiro e
Agronomia, na capital do Maranhão. Cursou Direito na Faculdade de São Luís. De forma
autodidata, estuda, com rigor, História e Economia. No pós-guerra radica-se no Rio de Janeiro,
atuando, inicialmente como jornalista (foi secretário da United Press) e tradutor e, posteriormente
como jurista, historiador e, principalmente, como economista. Em 1954, um ano após seu ingresso
no BNDE, participa em Santiago, Chile, dos primeiros cursos de formação de técnico em
desenvolvimento econômico, organizado pela Comissão Econômica para a América Latina-
CEPAL. De meados dos anos 60 ministra cursos em várias faculdades e Universidades do país.
Nessa época torna-se colaborador regular e conferencista em cursos e seminários sobre economia,
promovidos pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiros-ISEB, pelo Instituto Brasileiro de
Economia, Sociologia e Política-IBESP e pelo Clube de Economistas. Mais recentemente vem
militando no Conselho Regional de Economia do Rio de Janeiro, do qual foi presidente no início
dos anos 80, e no Instituto de Economistas do Rio de Janeiro-IERJ, onde ocupou a função de
membro consultivo.
Quem se aproxima de sua obra cedo começa a perceber que em Ignacio coabitam
vários Rangéis.
Há o Rangel intérprete da economia brasileira. Seu lado mais conhecido. Dono de
uma obra monumental, original e inovadora. Um dos formuladores do modelo de substituição de
importações na economia brasileira. Tolmasquim (op. cit.) afirma, convictamente, que o motivo
A SINGULARIDADE DO PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL Coleção Ignacio Rangel
52
pelo qual Rangel tem influenciado várias gerações de economistas se deve ao fato dele ter sabido
analisar a realidade cotidiana da economia brasileira.
Há o Rangel pensador. O criador original. O pioneiro. Aquele que vai fundo no seu
trabalho intelectual. Que, de repente, se dá conta que produziu uma maneira nova de se posicionar
no debate. A forma peculiar com a qual trabalha a realidade brasileira, atribui-lhe a classificação de
“pensador independente”. São evidências desta faceta: a tese da dualidade, a teoria da inflação, os
princípios relacionados à política de privatização de serviços de utilidade pública, as análises sobre
reserva de mercado, as propostas pioneiras à época, referentes à instituição de um sistema de
correção monetária e de estruturação de um sistema financeiro e de um mercado de capitais para o
desenvolvimento do Brasil, ou as demonstrações acerca da importância estratégica do comércio
exterior para a economia brasileira
Há o Rangel erudito. Sua face reconhecida, mas pouco destacada. Em seus textos é
fácil encontrar não só um analista profundo, mas, igualmente, um escritor refinado, dono de um
estilo invejável. Suas análises, quase sempre, vêm recheadas de erudição histórica, fina ironia, ricas
metáforas, que, em conjunto imprimem a seu trabalho uma atraente e fecunda expressão literária.
Há o Rangel militante. Tanto aquele que optou pela militância intelectual como uma
forma de atuação, como o militante político, autêntico e destemido. Aqui também sua biografia é
expressiva. Com apenas 16 anos, participou, em São Luís, do movimento de 8 de outubro de 1930.
Em meados daquela década integrou a ANL. Como conseqüência do levante de 1935, pegou dois
anos de prisão e, em seguida, 8 anos de “domicílio coacto”, de domicilio forçado em São Luís,
proibido portanto de atravessar os Mosquitos e de outros direitos fundamentais, como o de tornar
público o seu pensamento. Igualmente notável sua militância na burocracia e planejamento
governamentais. Atuou e ajudou a construir instituições básicas ao desenvolvimento brasileiro do
pós-Segunda Guerra entre elas, a Assessoria Econômica de Vargas e Kubitschek, tendo participado
das formulações de criação da ELETROBRÁS e PETROBRÁS; o Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico-BNDE, onde chefiou o Departamento Econômico e participou da
execução do plano de metas de Kubitschek, funcionando como assessor junto ao Ministério de
Viação e Obras Públicas e ao Conselho de Desenvolvimento da Presidência, onde coordenou
trabalhos e estudos sobre a economia nacional e chefiou a equipe técnica, além do assessoramento a
Presidência da República, a vários ministérios e governos estaduais. Fora do setor público, sua
militância foi também relevante no ISEB, onde chefiou o Departamento de Economia; no clube dos
economistas e em centros universitários. Não resta dúvida que do início dos anos 1950 a 1965,
Rangel ocupou posição privilegiada nos principais centros de decisão econômica do Brasil. Ele
próprio escreveu deixando evidente sua peculiar modéstia, na introdução de seu livro “Economia:
Coleção Ignacio Rangel A SINGULARIDADE DO PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL
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Milagre e Anti-Milagre”: “Fui testemunha atenta de fatos importantes de nossa história por pura
sorte minha”.
Há ainda o Rangel missionário. O Rangel conselheiro. O Rangel profeta. Neste
particular, aliás, ele tem se caracterizado como um analista que houve sempre bem como
antecipador dos desdobramentos históricos da economia brasileira. Já de algum tempo, centrado em
suas fases sobre privatização de serviços públicos, vem se transformando em uma espécie de
pregador solitário, na qualidade de detentor de uma proposta alternativa para enfrentar a crise e
fazer crescer a economia, voz que muitos escutam ou querem ouvir, mas que ainda não tiveram
coragem ou não puderam assimilar.
Há ainda um Rangel muito especial, do qual Ignacio Rangel se orgulha muito. O
Rangel funcionário público. Aquele que tem a consciência e verdadeira noção do que significa ser
um servidor público. O homem íntegro que não foi seduzido pelas alturas, preferindo semear na
planície. O cidadão que soube dizer sim, quando era para dizer e disse não, quando foi preciso.
Instado pelo então presidente Goulart, no dia em que completava seus 50 anos, de vida, a escolher
entre os cargos de Ministro Extraordinário da Moeda e do Crédito, a SUMOC, hoje Banco Central,
Rangel, honrado e agradecido, recusou o convite, demonstrando ao Presidente que seria mais útil ao
país continuando como servidor público, temeroso do poder imobilizador da lata burocracia e, como
ele mesmo confessaria, da crise que cercava o Governo Goulart naquele momento.
4 NOTAS FINAIS
Mesmo sendo verdade que ‘“santo de casa” não faz milagre, Rangel em relação ao
Maranhão, vem, aos poucos, quebrando esse adágio. Com efeito, desde o início dos anos 80, um
grupo de economistas e de outras áreas das ciências sociais, vinculados ao IPES, e ao Departamento
de Economia da UFMA (DECON), vêm divulgando a obra de Ignacio Rangel no Estado. Em 1989,
houve um primeiro coroamento daquela iniciativa. Rangel passou a ter seu nome em salas do IPES
e DECON/UFMA, emprestando-o também aos concludentes do curso de Especialização em
Economia do Setor Público. Foi agraciado com o título de “Economista do Ano” pelo Conselho de
Economia do Maranhão e houve uma grande cobertura dos “média” nessa sua passagem por São
Luís. A partir daí tornou-se colaborador regular da revista FIPES, do IPES. No DECON/UFMA
existe um projeto visando a implantação de um grupo de estudos sobre desenvolvimento econômico
que leva seu nome, tendo como um dos seus objetivos preservar a documentação e a memória
intelectual do autor da “Inflação Brasileira”. Além disso, está em andamento a assinatura de um
convênio tripartite, envolvendo UFMA, IPES e SIOGE que se propõe a desenvolver uma linha
A SINGULARIDADE DO PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL Coleção Ignacio Rangel
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editorial, denominada “Coleção Ignacio Rangel”, cujo sentido é o de difundir, através de livros, a
produção e a obra do economista maranhense. Os frutos daquele trabalho de divulgação apareceram
ainda mais nítidos em 1994: no início deste ano seu nome é lançado à uma vaga na Academia
Maranhense de Letras, por iniciativa de intelectuais e literatos da terra e o Governo do Maranhão,
através da Secretaria de Cultura, evidencia seu interesse em conceder-lhe uma comenda, pelo valor
de sua contribuição cultural ao Brasil e ao Maranhão.
Finalmente o dia de hoje.
Por feliz e oportuna iniciativa do Conselho Federal de Economia, o Dr. Ignacio de
Mourão Rangel vem de ser um dos homenageados desta noite ao lado de outros ilustres
Economistas Brasileiros, no momento em que se comemoram os 40 anos da Lei 1.411, de
13.08.1951, que regulamentou a profissão do economista no Brasil.
Oportuna, sim, porque Rangel simboliza o lado positivo da atuação dos economistas
neste país. Impresso em seu caráter de homem probo e no seu papel de intelectual e militante. Feliz,
sim, porque Rangel é um otimista. Crê no país e em seu povo. Sua marca é o nascimento e o
humanismo. Sua visão do desenvolvimento do Brasil combina, magistralmente, modernização e
democracia, desenvolvimento econômico e justiça social.
Em sua última visita a São Luís, falando a um grupo de admiradores, entre modesto e
orgulhoso, ouvi-lo dizer satisfeito... “Parece que, enfim, minha voz faz eco”!
Faz, fez e continuará fazendo, professor Ignacio de Mourão Rangel!
Falta dizer algo antes de concluir. O homem sobre o qual balbuciamos essas palavras
não construiu sua estrada sozinho. Não enfrentou solitariamente as “voltas que o mundo dá”. Ao
seu lado, como bálsamo e esteio, esteve Aliette Martins Rangel de quem obteve a paz e a
inspiração, que fez de sua obra orgulho e glória do pensamento econômico brasileiro.
Aplausos companheiros.
Aplausos que eles, verdadeiramente, os merecem!
Sumary
In this article, the author tries to show the versatility of the personality of Ignacio Rangel, also giving evidence his contribution to the Brazilian economic thinring in the passing of century twentieth.
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MARANHÃO: ANTIGO E NOVO Ignacio de Mourão Rangel
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MARANHÃO: ANTIGO E NOVO9 Ignacio de Mourão Rangel*
Resumo Uma breve análise da trajetória histórica do Maranhão, desde os tempos do império, quando se constituía numa das suas mais ricas províncias, passando por suas atividades de decadência/ prosperidade/decadência até as novas perspectivas de tornar-se um grande Parque Industrial concentrado na siderurgia e metalurgia em geral.
O Maranhão foi como é sabido, uma das províncias mais ricas do Império. Quase
isolado do resto do Brasil, enquanto o principal meio de transporte foi o navio à vela, dado que a
conjugação da Corrente do Brasil com o alíseo fazia com que o caminho mais curto de São Luis a
Fortaleza passasse pelo mar dos Sargaços e Lisboa, vivia também uma conjuntura econômico-social
sui generis. Pensava mais com a cabeça de Coimbra e de Paris, do que do Rio de Janeiro. Não por
acaso, era a Atenas Brasileira.
O navio a vapor viria romper esse isolamento, já que podia vencer a corrente
oceânica e o vento, ambos correndo na direção geral Leste-Sudeste a Norte-Noroeste.
Mas restava outro fato, capaz de singularizar a conjuntura maranhense no contexto
nacional. Com efeito, não se havia cumprido no Maranhão, como também em Mato Grosso – a
condição nulle terre sans seigneur. Por outras palavras, persistia a possibilidade de que a abolição
da escravidão representasse não um passo à frente, mas um passo atrás. Não a passagem ao
feudalismo, um modo superior de produção, mas o retrocesso à tarde e à cubata, isto é, ao
comunismo primitivo.
Quando chegou a 13 de maio, já o vizinho Ceará havia, de fato, abolido a escravidão
por uma série de posturas municipais. Claro está que isso nem sempre significava a liberdade para
os escravos, os quais eram, não raro, contrabandeados para o Sul e, inclusive, para o Maranhão.
Mas significava que a economia cearense, ou melhor, o lado interno do pólo interno da dualidade
havia passado ao feudalismo, um modo mais avançado de produção.
O Maranhão, como Mato Grosso – estava na transição entre o Nordeste Oriental uma
área de virtual monopólio da terra pela classe dos fazendeiros, e a Amazônia, que era terra de
ninguém. Assim, libertados os cativos, estes usaram sua liberdade, como era natural que o fizessem,
voltando à cubata – uma forma legalizada de quilombo, como aglomerados que chegaram aos
nossos dias – ou tornaram ao nomadismo copiado dos índios. (Nossa Universidade está a dever-nos
9 Artigo publicado originalmente na Revista FIPES, São Luís, v. 4, n. 1, jan./jun. 1989. * Economista. Assessor dos governos Vargas e Kubitschek. Um dos fundadores do BNDES. Economista renomado do Instituto Superior de Estudos Brasileiros-ISEB em fins dos anos 50, começo dos anos 60; Um dos formuladores do pensamento econômico brasileiro contemporâneo. Autor do clássico A Inflação Brasileira.
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um estudo da importância da mão-de-obra indígena, na composição da mão-de-obra escrava, no
Maranhão).
Assim, enquanto ao Sul-especialmente no Sudeste - a Abolição representava um
formidável passo à frente, o Maranhão passou a ser a “Terra do já Teve”. Especialmente a Guiana
Maranhense, isto é, a área ocidental do Estado, entrou a caminhar, a passos largos, para a pré-
história. Burgos ricos, como Alcântara, Turiaçu e, suponho Engenho Central, etc., entraram em
decadência.
É certo que, concomitantemente com o virtual colapso da Agricultura, na esteira da
Abolição assistíamos a um desenvolvimento singular da indústria da transformação, especialmente
em São Luís. Assim, segundo o Prof. Jerônimo de Viveiros – meu ilustre mestre de história – com
16 fábricas, o Maranhão era o segundo parque industrial brasileiro, aí por 1895. Seguindo-se a
Minas Gerais, com 37 fábricas e acima da capital Federal e ao Estado do Rio de Janeiro, da Bahia e
de São Paulo que, nessa ordem tinham 15, 14, 12 e 10 fábricas, somente.
Era o apagar das luzes de um período brilhante de nossa história. Somente por
meados dos anos 60, demográfica e economicamente o peso de nossa velha província, no corpo do
Brasil, voltaria a começar a crescer. Demograficamente, somente em 1960, voltaríamos aos três por
cento que tínhamos em 1890 – imediatamente após a Abolição.
Entrementes, o Maranhão foi a “Terra do já Teve”. Além das fábricas de fiação e
tecelagem, inclusive de lã, meias e cânhamo, tínhamos tido até fábricas de fósforos e pregos, raros
no Brasil de então. A epopéia rodoviária, quebrando nosso isolamento dourado, que faria com que
toda área servida pela rica rede potamográfica, pela ferrovia São Luís-Teresina, pela importante
frota de barcos à vela gravitasse em torno do empório da Praia Grande, o surto rodoviário viria
subverter esse estado de coisas.
Com efeito, o que restava do nosso orgulhoso parque industrial da passagem do
século - que não se mordenizara – quebrou-se como a panela de barro em choque com a panela de
ferro da fábula ao entrar em competição aberta com a nóvel indústria sulista e, inclusive, com a
indústria do Nordeste oriental.
A seca de 1958, no Nordeste, deu um golpe fatal nesse parque industrial. Os
caminhões que vinham buscar o arroz do Mearim, além de flagelados nordestinos, traziam os
produtos industriais competitivos com os supridos por nossas fábricas sobreviventes. O taboado
lançado sobre a ponte ferroviária entre Teresina e a velha Flores foi o golpe de graça.
Mas o surto agrícola, nas cinzas da velha mata, compensou com sobras essa perda.
Era outro processo que se abria. Queimada a mata uma vez, não tendo mais de onde tirar madeira
para a cerca e para queimar, o lavrador maranhense o declarava “terra cansada”. O migrante do
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59
Nordeste oriental, muito mais gregário, não raro emitia outro parecer. Vi roçados nordestinos,
fileiras de mamona, mas protegida, toda a área por uma única cerca, o que implicava numa colossal
economia de material.
Fui encontrar em Bacabal nada menos que um projeto de declará-lo “município
agrícola”. Uma cerca única, envolvendo todo o município, e protegendo suas lavouras contra os
bois dos municípios pecuaristas vizinhos, não estava fora de cogitações.
Essa utopia, que eu o saiba não teve seguimento e, ao que ouvi, em minha recente
passagem por São Luís, Bacabal é hoje um município pecuarista. Primeiro o maranhense expelido
pelo nordestino oriental, depois, este último expelido pelo boi.
Aí por princípios dos anos 60, conversando sobre esse processo – na primeira fase,
quando entrava o nordestino e saía o maranhense – com o então Governador de Goiás, Mauro
Borges dele ouvi o reverso da medalha, isto é, que havia em seu Estado, nada menos que 53
prefeitos maranhenses. O surgimento do Estado do Tocantins, em nossos dias, não deve ser
estranho a esse processo.
Na seqüência natural deste, estavam implícitos dois movimentos de “fronteiras”: a)
os investidos contra a mata amazônica, com seus hoje notórios desastrados efeitos ecológicos; b) a
escalada dos chapadões e dos cerrados, o que implicava na introdução de uma agricultura de novo
tipo-tecnologicamente apoiada nas novéis indústrias mecânicas e químicas e na ciência agronômica
e, sociologicamente, sob, o comando do novo capitalismo agrícola brasileiro, que está tomando o
lugar do velho latifúndio feudal.
Parece-me claro que a penetração do capitalismo no campo – efeito socioeconômico
das escaladas dos cerrados e das chapadas, não poderá deixar de contagiar-se à catinga nordestina.
Um pouco mais demoradamente, porque ao contrário do cerrado, que estava desocupado, a caatinga
não está. Mas o campo de batalha dessa nova investida bandeirante, que é a penetração do
capitalismo no campo, são as áreas problemas do país.
Os vastos campos da Baixada Maranhense, abrindo a porta a uma promissora
agricultura irrigada, com água dos rios que formam o Golfão, parece-me igualmente estar na ordem
natural das coisas, como área de eleição para o emergente capitalismo agrícola brasileiro.
Mas, para encerrar essas notas, não poderíamos deixar de lado as perspectivas da
nova indústria maranhense de transformação. O Porto do Itaqui, ao emergir como porta aberta para
Europa e América do Norte, tinha que ser o ponto de apoio para a alavancagem do processo todo.
Lembro-me de que, sendo Presidente da República, Jânio Quadros, eu, atendendo a
uma ordem do chefe do governo, encaminhei-lhe parecer onde sugeria a continuação da então BR-
24, que começava na Paraíba e, havendo cruzado o Piauí, penetrara no Maranhão, na direção geral
A SINGULARIDADE DO PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL Coleção Ignacio Rangel
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da Amazônia. Lembro-me de que dizia aquela estrada somente devia parar – se parasse – na
fronteira do Peru, e recomendava que os engenheiros incumbidos da locação da estrada estivessem
de olhos bem abertos no cruzamento do divisor de águas entre o Tocantins e o Xingu. Sabemos,
hoje, que a estrada não parará na fronteira do Peru e que Callao é seu término natural. Por outro
lado, no divisor de águas entre o Tocantins e o Xingu está, nada menos, que Carajás.
Hoje, atrevo-me a pensar numa ferrovia projetando a Carajás-Itaqui para o Oeste, na
direção geral de Callao, o que faria de Itaqui a porta do Peru para Europa e América do Norte e de
Callao nossa porta natural para o Pacífico.
As conseqüências desse esboço ciclópico para o Maranhão – naturalmente
complementado pela conclusão da ferrovia Norte-Sul (a Estrada Tocantina, neste primeiro trecho já
lançado) não podem ser exageradas. Como meio de transporte – excluído o duto, onde couber – a
ferrovia emergiu como o mais eficiente meio de transporte de cargas pesadas. Não é por acidente
que o Japão no processo de transportar suas cargas para a Europa, esteja preferindo, aos tradicionais
caminhos marítimos por Boa Esperança e pelo canal de Panamá, as ferrovias canadense e
transiberiana, apesar dos transbordos – em Vancouver e Terra Nova, e em Vladivostok,
respectivamente.
É claro que teremos que vencer dois formidáveis obstáculos, a saber, a Floresta
Amazônica, com seus grandes rios e os Andes – aqueles e estes perpendiculares ao sentido da
marcha – mas não creio que esses obstáculos sejam maiores que o “permafrost” agravado pelos
cimos da Sibéria oriental, que não impediram o lançamento da BAMUR. Ora, somente pensando
GRANDE, podemos formar juízo sobre as perspectivas que estão abertas para o nosso Maranhão.
Minha recente viagem ao Maranhão - maio/89 - persuadiu-me de que a retomada
pelo nosso Estado do seu antigo lugar de grande centro industrial já começou. Com uma
peculiaridade: que, em vez de indústria leve, é indústria pesada o que teremos, centrada na
siderurgia e na metalurgia em geral. Embora geograficamente situado no Pará, é o Porto de Itaqui
que alavanca o projeto de Carajás, apenas começando, até por que não tardaremos a “redescobrir” o
antracite do Xingu, isto é, do Rio Fresco. Ora, por perto da Ponta da Madeira é que esse antracite se
encontrará com nossas hulhas pobres, de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul. Há muito que
sabemos que, combinadas, com antracite, essas hulhas pobres forneceriam um coque perfeito. (A
menos que, levado a termo o projeto ferroviário Norte-Sul, a localização lógica do grande projeto
siderúrgico se desloque para o entroncamento ferroviário Norte-Sul com Carajás, tanto mais quanto,
para Açailândia, poderá confluir o gás natural amazônico).
Mas São Luís será sempre a localização privilegiada para a indústria que converterá
os lingotes de Açailândia em produtos finais.
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Os exclusivismos regionalistas brasileiros – inclusive os Paulistas e Nordestinos –
estão morrendo. Eles refletem imperativos geopolíticos exemplificados aqui com o casamento da
corrente do Brasil com o alíseo, e imperativos geo-econômicos, herdados do antigo latifúndio
feudal. O Brasil unifica-se, cada vez mais energicamente e, nessas condições o que importa
decisivamente são os fatores de localização.
Os quais nos apontam uma posição de elite, no vigoroso organismo em que se
converteu o Brasil.
Résume Une bréve analyse de la trajetoire historique du Maranhão, depuis lês temps de l´empire, quand celuí-ci se constituait une des ses plus riches provinces, em passant par ses activites de decadence/prosperité /decadence jusqu ´aux nouvelles perspectives de devenir um grand parc industriel concentré em Sidérurgie et Metalllurgie général.
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FOGO, BLINDAGEM E CONJUNTURA
Ignacio de Mourão Rangel
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FOGO, BLINDAGEM E CONJUNTURA10
Ignacio de Mourão Rangel*
Resumo O economista tem muito o que aprender com a história das guerras. Ao contrário de grandes exércitos, na guerra como na economia , as táticas inteligentes são as mais recomendáveis. Na leitura das várias guerras da humanidade o economista pode extrair exemplos negativos: a percepção da situação econômica atual do Brasil permite esta reflexão.
A Primeira Guerra Mundial teve início sob a inspiração de experiência da guerra de
1870, franco-prussiana: clara perspectiva de predominância de blindagem, contra fogo,
prenunciando guerra de movimento. Essas ilusões não tardaram a dissipar-se, porque, entre uma
guerra e outra, a tecnologia, dotando a infantaria de armamento leve, mas muito eficiente – como o
fuzil de repetição e a metralhadora Maxim – mudou o caráter do conflito. Os esquadrões de
cavalaria, responsáveis pelo choque e, portanto, pela imposição da guerra de movimento,
revelaram-se inanes, ante o poder de fogo da infantaria, e, como vem acontecendo, ao longo da
história, sempre que o escudo e a couraça se revelam ineficazes, o homem os substitui pela terra – a
Mãe Terra – cavando um buraco restabelecendo o equilíbrio, mas ao custo da imobilização dos
exércitos convertendo a guerra de movimento em guerra de posição.
A história antiga registra duas batalhas que se tornaram antológicas: Arbelas (33 a.c.)
ganha por Alexandre, contra Dario III, da Pérsia; e Canas (216 a.c.), ganha por Aníbal, contra o
cônsul romano Paulo Emilio. Em Arbelas, contra multidões asiáticas incontáveis, Alexandre
colocou a falange macedônica, culminação da arte militar helênica, provavelmente aprendida por
Felipe, de Epaminondas. A falange era constituída por um quadrilátero de combatentes, escalonados
em profundidade, com uma primeira fila protegida por grandes escudos e armada ofensivamente
apenas com a espada, mas apoiada por outras filas de combatentes armados de lanças de diferentes
comprimentos. Era uma verdadeira fortaleza, com a propriedade de poder mover-se.
Esse dispositivo buscava, de caso pensado, deixar-se cercar pelo inimigo, mas de tal
forma que esse cerco saia mal para o exército sitiante, não para o sitiado. Em nossos tempos, a
falange macedônica teve seu equivalente consumado nas “panzerdivisionen” nazistas.
Ainda na antiguidade, travou-se, na Itália outra batalha que passou também à história
como modelar. Refiro-me a Canas. Paulo Emilio, dispondo de um exército formalmente muito
melhor e mais homogêneo que o de Aníbal, havendo observado que o exército deste havia tomado
posição, em campo, com as tropas de elite púnicas ao centro e tropas mais leves, como os arqueiros
10 Artigo originalmente publicado na Revista FIPES, São Luís, v. 4, n. 2/ v. 6, n. 2, jul./dez./1989. * Economista. Autor do clássico “A Inflação Brasileira”.
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e fundibulários baleares, de pouca confiança, nas alas, decidiu jogar a sorte da batalha com um só
golpe, inspirado, em última instância, no exemplo de Alexandre, em Arbelas.
Ora, o expediente por muito brilhante que parecesse, saiu mal aos romanos, porque
Aníbal, já com as tropas romanas em movimento, ordenou a inversão do próprio dispositivo.
Enquanto os romanos avançavam contra o centro cartaginês, as tropas púnicas de elite passaram a
postar-se nas alas, enquanto as tropas auxiliares de Aníbal iam postar-se ao centro leve, o qual teve
que bater-se em retirada, formando um saco, que as alas de elite cartaginesas fecharam. O resto se
sabe: naquela multidão assim cercada, não se perdia, nem flexa, nem pedra de fundo, nem,
naturalmente, lança. Mais de setenta mil romanos trucidados pelo esforço e valor dos púnicos
guerreiros, seis alqueires de areia de mortos cavaleiros, certeza arrecadou, nos versos do nosso
grande Bilac.
Assim, duas batalhas travadas com a mesma inspiração, levaram a resultados
diametralmente opostos. Em Arbelas, o exército cercado aniquilou o exército sitiante, ao passo que
em Canas – 115 anos – a tecnologia da guerra havia mudado, sem que disso se apercebesse o
general romano que passou à história como exemplo de imbecilidade, por ter feito, a mesma coisa
que dera a Alexandre o merecido conceito de genialidade.
Assim, também no período entre a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, o quadro
da tecnologia inverteu-se. O tanque, desenvolvido no estágio final da Primeira Guerra Mundial,
reduziu drasticamente a eficácia das armas básicas responsáveis pelo “fogo”. O fuzil de repetição e
a metralhadora nada podiam contra a blindagem do tanque, sendo mister resistir a este com
artilharia leve, em campo aberto , exposta ao fogo aéreo , sem o “escudo” tradicional da “Mãe
Terra”. Estavam criadas as premissas para que a guerra de posição se convertesse em guerra de
movimento, sob a forma de “blitzkrieg”, axiada nas “panzerdivisionen” – que prometiam batalhas
fulminantes, do tipo Arbelas.
Já não era mais assim no final do conflito. A batalha de Stalingrado pôs em evidência
a nova promessa de hegemonia do fogo sobre a blindagem. Como em Canas, o exército defensor
deixou que se praticasse em suas linhas um bolsão, convertido em saco, no qual o exército de Von
Paulus teria a mesma sorte das legiões de Paulo Emilio. O retorno à guerra de posição estava na
ordem natural das coisas, se bem que não de imediato: talvez na Terceira Guerra Mundial,
plausivelmente em nossos dias. Não há como não pensar nessa possibilidade, observando as guerras
experimentais movidas pelo imperialismo contra o socialismo, “by proxy”, isto é, por interpostas
pessoas.
Com efeito, como os nazistas depois de Stalingrado, o imperialismo, com os Estados
Unidos à frente, persiste em mover guerra nos termos consagrados na fase de abertura do último
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grande conflito. Em Kursk a maior batalha da história, os nazistas persistiram em seu sonho de
obter a decisão através de uma operação clássica de guerra de movimento, como Alexandre em
Arbelas. O exército soviético suspendera sua ofensiva, depois de Stalingrado, numa posição que
tudo fazia interpretar como uma Stalingrado às avessas, isto é, com os russos metidos num saco, ao
qual faltava apenas amarrar a boca.
Sabemos, agora, porém, que os nazistas não haviam aprendido a lição, ou ao
contrário, que os soviéticos a haviam aprendido muito bem. Com efeito, em vez de, - como os
nazistas em Stalingrado – confiarem a defesa das alas a tropas de segunda linha (italianas e
romenas) os soviéticos entregaram-nas a suas tropas de elite, com defesas escalonadas em
profundidade, que os nazistas não lograram romper, não obstante o terrível preço pago na tentativa.
O cerco, e o conseqüente aniquilamento do exército inimigo, não se consumaram. Paradoxalmente,
seguiu-se uma guerra de movimento, até Berlim, explicável menos pelo poder da blindagem
soviética, do que pela persistência nazista em retomar a ofensiva, quando tudo sugeria a passagem à
guerra de posições.
Ora, como seria de esperar-se, a história não parou aí. O meio século que está por
concluir-se, entre o fim do terceiro e o fim do quarto Kondratievs – perdão, eu estava falando entre
a segunda e a terceira guerras mundiais, mas no fundo, é a mesma coisa – esse meio século,
dizíamos, trouxe muito plausivelmente nova revolução na arte da guerra. Em conseqüência, uma
“blitz”, como a batalha que resultou na tomada da linha Marginot – que os pósteros estudarão como
clássica ao lado de Arbelas e Canas – muito implausivelmente se poderá repetir, nas condições
presentes. O restabelecimento da hegemonia do fogo sobre a blindagem, especialmente a partir das
defesas de Leningrado e Moscou, e consolidada em Stalingrado e Kursk, não fez senão estruturar-
se, de então para cá.
Para isso, muito contribuíram os interesses do “combinado industrial militar”
expressão consagrada por Eisenhower especialmente nos Estados Unidos. Compreende-se que a
indústria moderna esteja sempre a buscar modelos acabados, que justifiquem a produção em série.
Ora, isso introduz no esquema uma perigosa tendência arcaizante, porque tais modelos acabados
somente podem ser buscados, no caso da indústria bélica, nas batalhas passadas; na espécie, as
batalhas típicas do último conflito mundial. Ora, como vimos essas batalhas, mesmo depois de
Kursk, pelo paradoxo que deu à contra-ofensiva soviética a aparência de uma “blitz” às avessas -
isto é simples aprendizagem, pelos russos, da lição dos mestres prussianos – suscitou tendência a,
no futuro, jogar na hipótese da supremacia da blindagem sobre o figo. O que nos levaria, no campo
de batalha, a buscar Arbelas e não Canas.
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Numa época em que um simples soldado de infantaria pode levar em seu ombro – e,
consequentemente, escondê-lo consigo, numa trincheira, ou num simples buraco, encontrado ao
acaso – um armamento capaz de destruir o tanque mais possante, jogar na hipótese de uma ‘blitz’ é,
no mínimo, uma temeridade. Quando não uma tolice, como aquela que, na batalha de Canas, contra
Aníbal deu ao cônsul Paulo Emilio inspirada, embora na genialidade de Alexandre – não tem
faltado citadores e êmulos, inclusive em nossos dias, como o noticiário nos está mostrando, todos os
dias, nessas escaramuças preparatórias de Terceira Guerra Mundial, inclusive a presente “Guerra do
Golfo”.
Acontece que as guerras não se ganham pelas estatísticas de cadáveres. Os norte-
americanos, ao que se sabe, mataram quase cem camponeses vietnamitas para cada soldado que
perderam, mas, como todos devem estar lembrados, foram eles os perdedores, os vencidos. Nem se
ganham, tampouco, pela quantidade e refinamento dos equipamentos. Esse refinamento somente
pode vir com o tempo, isto é, traz consigo a probabilidade de encarnar certa medida de arcaização.
Por isso as batalhas da história são ganhas, geralmente, por equipamentos inovadores, que não
tiveram tempo, ainda para refinar-se e, por isso, são simples e toscos. Na Coréia, no Vietnã e outros
lugares tem sido assim, para variar.
Todas as guerras contemporâneas – subseqüentes à Segunda Grande Guerra – são
preparativas da terceira, que talvez não aconteça nunca, mas que, do ponto de vista da arte da
guerra, é como se já tivesse acontecido, porque tudo se faz em sua intenção. Mesmo quando
travadas por interpostas pessoas, são guerras entre o imperialismo e o socialismo, o primeiro
visivelmente empenhado no revivescimento do fascismo. A apostasia de Gorbatchov e demais
“perestróicos”, não basta para alterar o quadro histórico básico. O Pentágono e, apesar dos
gorbatchovos, o Estado-Maior Soviético, fazem as jogadas decisivas desse imenso tabuleiro de
xadrez. Cabe-nos estudar os corolários econômicos desse fogo vital.
Ambos os contendores dispõem de recursos enormes, mas ao contrário do
Pentágono, o Estado-Maior Soviético, ao que parece, não é tolhido por nenhum complexo industrial
militar. Assim, a decisão do que produzir em série – sem o que não se ganha hoje, nem as batalhas
econômicas nem, a fortiori, as estratégias podem ser deixadas para a enésima hora. Como foi no
processo da preparação soviética na última Grande Guerra. Ninguém, nesse Estado Maior, está
interessado em produzir montanhas de armamento reluzentes, novíssimos, mas, de fato, árcadios,
porque “resolvem” problemas pretéritos, não problemas vindouros ou, sequer correntes.
Na Guerra da Coréia, por exemplo, para fazer frente ao B-25 considerado imbatível,
os soviéticos deram aos coreanos, não bombardeiros ainda modernos, mas o modesto MIG-15, um
pequeno avião, barato (porque produzido em série), que fora concebido ao tempo em que a URSS
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não tinha, ainda nem a bomba atômica, nem a bomba de hidrogênio, para a finalidade específica de
interceptar os bombardeiros imperialistas capazes de levar bombas nucleares à retaguarda socialista
profunda. Ora, a missão estratégica desse aparelho, o MIG-15, estava cumprida quando, pouco
antes da Guerra da Coréia, surgiram as armas nucleares soviéticas, transferindo o confronto para o
campo da “mútua dissuasão”. Como, no anterior conflito mundial, havia ou quase, acontecido com
as armas químicas e biológicas, que não foram usadas precisamente porque os dois lados delas
dispunham.
Para fazer frente aos blindados norte-americanos – reedição “modernizada”,
“refinada” dos blindados alemães – os coreanos receberam, não tanques “ainda mais modernos”,
uma versão tosca de armamento anti-tanque, surgido no estágio final da segunda grande guerra. Ao
que noticiou a imprensa, tratava-se de um foguete, já provado antes, com peculiaridade de poder
dividir-se em partes de algumas dezenas de quilos, que as mulheres camponesas podiam transportar
em seus ombros, para entregá-las às mulheres das aldeias próximas, o que conferia a esse
equipamento uma tremenda mobilidade – Todos devem estar lembrados que as divisões de
McArthur, depois de chegarem, em “blitz” ao Rio Yalú, na fronteira com a Sibéria, tiveram que
bater em retirada, para as posições de partida, no paralelo 38, de onde não mais se moveram.
Exemplos assim podem ser citados para as outras “guerras preparatórias” do terceiro
conflito macro-bélico.
A conclusão a tirar de todas as “guerras experimentais” promovidas pelo
imperialismo, é que este está excelentemente preparado para ganhar... A Segunda Grande Guerra.
Mas é apanhado de surpresa, quando se trata de partir para a terceira. É pouco provável que “A
Guerra do Golfo” seja diferente. Para vencê-la, seria mister ocupar o Iraque e, como disse o nosso
Brigadeiro Piva, isso não seria fácil. Como foi na Coréia, no Vietnã, no Camboja, no Afeganistão,
nem mesmo na minúscula Nicarágua, que o imperialismo norte-americano conhecia bem, pois já
invadira três vezes, no passado século-e-meio.
Essas guerras experimentais – destinadas a comprovar o óbvio, isto é, que a Segunda
Guerra Mundial não se pode repetir, questão dirimível por simples exercício de lógica dialética, sem
necessidade do massacre de milhões de pobres populares terceiro-mundistas – ou talvez, por causa
do seu refinamento de fabricação. O complexo industrial-militar do imperialismo surge, assim,
como um gigantesco produtor de sucata. Uma sucata “moderna”, “refinada”, “reluzente”, mas
sucata em todo caso, porque somente serviria para resolver problemas irremissivelmente peremptos.
E, eventualmente, para matar gente. Não para aniquilar exércitos, como às vezes é
mister, para ganhar guerras. Mas para assassinar populações civis e destruir instalações residenciais,
serviços públicos e monumentos, que não podem, evidentemente, proteger-se por detrás do escudo
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tradicional da “Mãe Terra”. Ou na medida em que não possam, porque às vezes o podem, como está
sendo, aparentemente, o caso do Iraque, na presente guerra, entre contendores fora de qualquer
proporcionalidade.
Ora, é tempo de que nós, os economistas, comecemos a tirar nossos próprios
corolários dessa evolução da arte da guerra. Os homens e mulheres que, atualmente, no Brasil,
falam em nome da ciência econômica, nos concílios do estado, são jovens e, por isso estão
atravessando sua primeira fase “b”do ciclo de Kondratiev, ou ciclo longo: o 4º. Os homens de
minha geração, que estão beirando os oitenta, estão vivendo a sua segunda fase “b”, porque
atravessam, já em idade de razão a do 3º Kondratiev, carregado de significado, não apenas no
campo econômico, como no político e no estratégico
A Primeira Guerra Mundial foi um incidente da fase “a”, ou próspera do 3º
Kondratiev. Nos primeiros anos do decênio de 20, a humanidade ingressou, simultaneamente, ou
quase, na paz e na fase recessiva do Ciclo Longo. A Grande Depressão Mundial foi um incidente
dessa fase recessiva e, com essa depressão, tivemos a emergência do fascismo, o qual levou à
Segunda Guerra Mundial, no decênio final da dita fase recessiva.
O armamentismo e a própria guerra, pelo menos ao primeiro exame, muito tiveram
que ver com a virada do Ciclo Longo – passagem da fase “b”do 3º à fase “a” do 4º. Ou a recíproca é
que foi verdadeira, isto é, a virada do ciclo é que foi a causa eficiente do armamentismo e da guerra.
Foi nas condições da fase “b” do ciclo que a Ciência Econômica se viu reconstituída, num esforço
ligado ao nome de Keynes, e nos primeiros planos capitalistas sérios: o New Deal, nos Estados
Unidos, e o Plano Quadrienal, do Dr. Von Schacth, o mago das finanças de Hitler, na Alemanha
nazista.
Com a paz tivemos, de quebra, a mais explosiva fase de crescimento econômico de
que há notícia. Tomando por base a produção industrial do ano de 1948, como 100, a mesma para o
mundo capitalista havia chegado a 410 – ou 5,8% ao ano – ao fim da fase “a” do 4º Kondratiev, em
1973, quando se abriu a fase “b” do mesmo Ciclo Longo. O índice para a América do Norte passou
a 305, ou 4,6% ao ano, nos cinco lustros da fase “a”, 550, ou 7,0% ao ano, para o Mercado Comum
Europeu; 449, ou 6,2% ao ano, para a América Latina; 3074 (mais de trinta vezes) ou 14,6% ao ano,
para o Japão; 1244 (mais de doze vezes) ou 10,6 % ao ano para a União Soviética. O Brasil teve
um desempenho nada desprezível, alcançando o índice de 872 (mais de oito vezes) ou cerca de 9%
ao ano, muito mais, portanto, que América Latina (inclusive Brasil) e, ainda mais, que o resto da
América Latina (exclusive o Brasil).
Em 1973, abriu-se, pontualmente a fase “b” do 4º Kondratiev. Com efeito, nos
quinze anos subseqüentes (1973-88), para comparação com os dados supra, a taxa média de
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crescimento do mundo capitalista passou a 2,1% ao ano; o crescimento industrial da América do
Norte, passou de 2,2 %. O Mercado Comum Europeu, a 1,5% ao ano; o do Japão, a 3,4% do ano; o
da União Soviética, caiu a 4,6% ao ano; o do Brasil, a 3,3%. Em média, naturalmente, porque no
lustro intermédio, os valores caíram a níveis negativos.
Há meio século, isto é, na fase do Ciclo Longo simétrica com esta que estamos
vivendo, o fascismo havia completado sua evolução e parecia fadado ao domínio do planeta.
Somente a União Soviética parecia capaz de alguma resistência discretamente eficaz, mas não eram
todos os que jogavam nessa hipótese. Afinal, a Europa e a Ásia haviam sido convertidos em quintal
do Eixo, oferecendo a este uma massa sem precedente de recursos econômicos e estratégicos.
Passando o conflito, aberta a fase próspera do novo ciclo longo, esses temores foram
esquecidos. E Jorge Dimitrov, tornado famoso por sua luta judiciário-política em torno do problema
do incêndio do Reichstag, teve necessidade de toda sua eloqüência para contestar os que
consideravam o fascismo como um capítulo encerrado da história. “Uma nova vaga fascista,
comparada com a qual a que a humanidade acaba de viver não passará de um ensaio, está em
gestação”, disse ele aproximadamente. E acrescentava que essa nova onda chegará à Europa
cruzando o Atlântico.
Ora, não há como pensar nisso, quando vemos essa coalizão de 28 países, incluindo
virtualmente todo o primeiro mundo – o centro dinâmico da economia capitalista mundial – e
contando com o apoio de grande parte do segundo mundo, isto é, do antigo mundo socialista,
formar-se para o fim específico de aniquilar um pequeno país terceiro-mundista, o Iraque. Dar-se-á
que os prenúncios de Dimitrov estejam em via de cumprir-se?
Com efeito, do ponto de vista econômico, a similitude com a época em que a
humanidade ingressou na Segunda Guerra Mundial, promovida pelo Eixo Alemanha, Itália, e Japão
de nossa época é flagrante. Mas também, como não lembrar –
relativizando os ditos prenúncios de Dimitrov – o pensamento de Marx, segundo o qual a história
dificilmente se repete, ou melhor, quando parece repetir-se é para apresentar-nos como farsa o que,
da primeira vez, foi tragédia.
Estamos, de fato, assistindo a uma aparente repetição da fase histórica de há meio
século, a saber: uma crise econômica profunda, uma guerra mundial aparentemente em marcha, e
um renascimento do fascismo. Apenas, a conjuntura de há meio século – por muito trágica que
tenha sido – esteve carregada de grandezas. Para começar, os generais nazistas deixaram-nos
modelos antológicos de feitos estratégicos, antes de tropeçarem nos desastres de Stalingrado e
Kursk, e, por outro lado no que toca a nossa ciência econômica, deram-nos um modelo de
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planejamento, calcado num Keynesianismo “avant la lettre” que, por exemplo, deu emprego a
cerca de sete milhões de desempregados que Hitler encontrou na Alemanha, ao subir ao poder.
Esta reedição do fascismo não tem dessas grandezas. Suas aventuras militares
lembram muito mais Paulo Emilio do que Alexandre ou Aníbal. Só para exemplificar, o general
Giap, comandante do exército vietnamita que, contra toda expectativa derrotou um exército norte-
americano, supostamente invencível, interpelado sobre as razões inesperadas da sua vitória,
respondeu que aquele fora um fato complexo, difícil de explicar, mais que, para o dito desfecho,
muito havia contribuído a incompetência dos generais norte-americanos. Ora, não há como pensar
nisso, agora nos chegam, do “Golfo”, notícias de que o exército iraquiano não foi batido e venceu as
sublevações das minorias apoiados pelos Estados Unidos e aliados.
O Brasil, como naquele tempo, está fazendo eco ao surto fascista mundial. Com a
mesma diferença, porém, isto é, nossa experiência “collorida” de fascismo, não tem nenhuma
grandeza, o que não se pode dizer do seu modelo de a meio século, sob o comando de Getúlio
Vargas e uma plêiade de homens da melhor qualidade política, entre os quais devemos recordar
outro Collor – Lindolfo – que inovou pesadamente em nossas instituições, promovendo um direito
trabalhista que, embora formalmente inspirado na Carta Del Lavoro, de Mussolini, e calcado nas
instituições medievais, vale dizer, corporativas, deu um tremendo impulso ao processo de nossa
industrialização.
Naquele tempo, nós, os homens de esquerda, que queríamos a industrialização do
Brasil – vale dizer, a construção do capitalismo industrial aqui –, estávamos convencidos de que
isso seria uma radical reforma agrária, como na França de 1789, nos Estados Unidos do século
passado e na União Soviética nossa contemporânea. Somente mais tarde, alguns dentre nós
aperceberíamos de que os caminhos da história são mais tortuosos do que parece à primeira vista, o
que nos levaria à teoria da dualidade da economia brasileira, segundo a qual o capitalismo industrial
brasileiro podia e devia desenvolver-se em aliança e sob a hegemonia do latifúndio feudal. Isto é,
num enquadramento francamente corporativo.
Muito mais tarde, chamado por Getúlio Vargas para trabalhar em sua assessoria
econômica, sob o comando imediato de Rômulo Almeida e J. Soares Pereira, respondendo a minha
ponderação de que não me considerava getulista e que minha oposição a ele me havia rendido mais
de dois anos de prisão, além dos oito anos de domicílio coacto em São Luís – não no Maranhão – o
presidente disse, num gesto que me ficou como exemplo de sua grandeza, que havia estudado
cuidadosamente o meu currículo e que estava disposto a correr o risco. Em suma, que me sentisse
em sua assessoria como se estivesse em minha própria casa. – Do que jamais me arrependi, nem,
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estou certo, dei razão, ao chefe do Estado para arrepender-se de sua decisão que, francamente
parecera temerária, ao primeiro exame.
Com efeito, eu fora getulista por um breve momento. Quando da Revolução de 30,
com escassos 16 anos, procurando corroborar a ação de meu pai, prócer aliancista maranhense, fiz-
me conspirador e soldado voluntário. – Getúlio, consequentemente, como chefe da revolução, havia
sido meu comandante, fazendo jus a toda minha lealdade.
Conto estas coisas, para marcar a diferença entre o nosso “fascismo” estado-novista e
o atual. Para meu conhecimento, somente dois países, o Brasil e a União Soviética, emergiram da
fase recessiva do 3º Kondratiev. Com efeito entre 1938 e 1979 – pré-guerra imediato à abertura do
nosso “decênio perdido” – a produção industrial soviética, batendo todos os recordes, cresceu 26,5
vezes; a do mundo capitalista, 6,9 vezes; a do Japão, o mais próspero dos países capitalistas, 13,8
vezes. Entrementes a produção industrial brasileira cresceu, no mesmo período 23,9 vezes.
É esta formidável potência, que estivemos construindo, partindo das condições de
uma economia mundial deprimida, que temos o dever de preservar. Coisa incompatível com um
programa como o “collorido”, que aí temos, que arbitrariamente coloca a inflação no centro de toda
a nossa problemática, e como o epi-fenômeno que é. E que pretende combater esse epi-fenômeno
pela via do agravamento de sua causação profunda, isto é, da recessão e do desemprego.
Sumary
The economist has a lot to learn with the history of wars. On the contrary of big armys, in war as in economy the intelligent can find (extract) negative examples. The perception of todays economic situation of Brazil consents this kind of reconsideration.
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TECNOLOGIA E CUSTO DE PRODUÇÃO
Ignacio de Moura Rangel
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Coleção Ignacio Rangel A SINGULARIDADE DO PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL
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TECNOLOGIA E CUSTO DE PRODUÇÃO11
Ignacio de Moura Rangel*
Resumo Segundo o autor, a iniciativa brasileira deve continuar a ser objeto de proteção oficial, enquanto não dispor de condições para enfrentar a concorrência de indústrias tecnologicamente mais avançadas.
Quando me despedi de Mrs. Silveira – aí por 1940, em São Luís – dela ouvi este
julgamento, sobre meu desempenho, no curso de inglês, sob sua batuta:
– Vários dos meus ex-alunos, a começar por Rui Costa Fernandes, despediram-se de mim sabendo
inglês mais do que tu. Mas nunca encontrei ninguém, que aprendesse mais depressa do que tu –.
Devo acrescentar que a querida mestra – inglesa, mas viúva de um comerciante português, radicada
em São Luís, não me lembro em que condições embora cobrasse mensalidade dos meus irmãos,
jamais cobrou um níquel pelas aulas que me dava. A exemplo do que faziam outros mestres
maranhenses dos anos 30, inclusive Antonio Lopes e Arimatéia Cisne: o primeiro ensinando-me
filosofia, e o segundo, latim.
Outros mestres assim, eu os tive – inclusive João Vasconcelos Martins e Caio
Carvalho, diretor-presidente e chefe do escritório, da firma Martins e Cia. Creio que a mais
importante empresa maranhense da época –. Talvez por estas e outras, fiz-me um economista fora
de série. Embora muitos dos meus colegas soubessem mais economia do que eu, nada sabiam de
Direito e, sobretudo, nunca haviam visto uma fábrica brasileira por dentro – coisa que João Martins
e Caio Carvalho me facultaram ver.
Imagine-se que, naquele tempo, houvéssemos tentado colocar a “modernidade” –
como hoje dizemo-no centro de nossa problemática. – Minha resposta é clara: em vez de
convertermos o Brasil numa das economias mais prósperas do planeta, haveríamos deixado que,
como em muitos outros países, a depressão criasse raízes, para ficar.
Mas não fizemos isso. Minha experiência, ao lado de João Vasconcelos Martins, na
firma Martins, Irmãos e Cia., preparou-me para entender o que, no período, se estava fazendo em
todo o país: ao instituirmos o que hoje malsinamos tanto como “reserva de mercado”, estávamos
empreendendo o que depois Raul Prebisch, secretário geral da CEPAL, batizaria como
“crescimiento hacia adentro”, sob a forma de industrialização substitutiva de importações.
11 Publicado originalmente na Revista FIPES, São Luís, v.4, n2,/v.6, n.2, jul./dez. 1989 * Economista. Autor do clássico “A Inflação Brasileira”.
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Mais tarde – sob o comando da Getúlio Vargas, que fez de mim o relator do sistema
de leis ordenado em torno da futura Eletrobrás – outros ângulos da mesma problemática me seriam
revelados. Com efeito, com uma receita pública cuja origem era afinal, a renda gerada pelos
investimentos privados, que não teriam acontecido se, nos quadros da reserva de mercado, não
houvéssemos criado condições de investimento, mesmo sem acesso ao que hoje chamamos de
tecnologia de ponta, com essa receita pública financiamos os investimentos do setor público –
inclusive captando recursos, dentro e fora do país, sem outra garantia senão o aval do tesouro.
Ao primeiro exame, isso me pareceu impraticável, e usando da prerrogativa que me
havia sido dada pelo próprio Presidente da República – quando me disse: Dr. Rangel, não preciso
de aduladores, mas de homens que, como sei ser o seu caso, tenham a coragem de dizer-me que
estou errado – usando dessa prerrogativa, opus-me ao esquema da Eletrobrás.
– Como assim, companheiros? Vamos criar empresas públicas concessionárias de
serviços públicos? Empresas assim somente podem oferecer a hipoteca dos seus bens ao próprio
Estado, o que constituiria um absurdo, visto como, sendo elas próprias parte do Estado, teríamos
este oferecendo a hipoteca dos seus bens a si mesmo –. Isto conflitava com tudo o que me havia
ensinado o meu mestre de direito civil, Araújo Costa, na velha escola da Rua do Sol, esquina com a
travessa do teatro.
Entretanto, eu já sabia, também – coisa aprendida na velha fábrica do Largo do
Santiago – que o setor privado podia ser induzido a investir, e que esses investimentos – como
depois aprendera Keynes – engendrariam uma renda nacional e, por essa via, uma receita estatal
que, diretamente, ou pelo seu comprometimento com o aval do Tesouro, possibilitariam coisas
ainda impensáveis, então, a exemplo de Tucuruí, da Hidroelétrica do Vale do São Francisco e
Itaipu.
A equipe conhecia esse mecanismo, até por que eu próprio lhe havia explicado. Isso
significava que, pelo menos durante algum tempo, a eletrificação – e, de um modo geral, a
implantação de um Departamento moderno, supridor de bens e serviços de produção que não
interessavam ainda ao setor privado – podia fazer-se, com recursos do tesouro ou levantados com o
aval deste. Não foi por acaso que, nos três decênios 1956-86, nossa produção de eletricidade
cresceu 12,5 vezes, isto é, mais do que o dobro da média mundial, muito mais que a dos Estados
Unidos e dos próprios vanguardeiros do desenvolvimento, na época, como a União Soviética.
Ora, nada disso teria sido possível se a receita fiscal não tivesse sido aumentada, no
período, por investimentos privados sem acesso à tecnologia de ponta. Noutros termos, sem que o
parque industrial não estivesse sendo renovado – e até expandido, com o apoio das humildes
oficinas de manutenção das velhas fábricas e usinas. Sem isso, a receita pública com a qual o
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Tesouro estava financiando a implantação do setor estatal da economia, estaria surgindo ex nihilo,
isto é, do nada.
Parece predominar, hoje, a tendência a exigir que nossas indústrias e serviços possam
competir com as empresas mais avançadas dos países desenvolvidos. Ora, por certo as condições
hoje vigentes não são mais as dos anos trinta e quarenta. Entretanto, sob certo ponto de vista, as
condições persistem, a saber: hoje, como então, atravessamos uma crise, em cuja medula vamos
encontrar um grupo de atividades dotadas de excesso de capacidade, contrabalanceado por outro,
sem capacidade produtiva à altura da demanda solvente do país.
Naquele tempo, a crise foi superada pela criação de condições institucionais para a
promoção de investimentos neste segundo grupo de atividades, mas teria sido pura ilusão esperar
que, para isso, a tecnologia ao alcance dessas atividades fosse para assegurar competitividade com
as empresas congêneres de ponta, dos países mais avançados do mundo. O instituto da reserva de
mercado deu ao problema outra solução.
Com efeito, se um fator de produção está desempregado, o custo social do seu
emprego numa atividade nova será nulo. Noutros termos, a renda nacional poderá crescer, mesmo
que, para a empresa, o custo de produção, nas condições do emprego desse fator congênere, seja
superior nas empresas de ponta dos países mais avançados. O instituto da reserva de mercado foi a
solução para o problema da promoção do crescimento do produto social, não obstante o atraso
tecnológico.
Naquele tempo, as reservas retardatárias, no Brasil, eram as integrantes da chamada
indústria leve – suprida de bens não duráveis de consumo. Hoje, esse grupo de empresas é
constituído pelas supridoras dos grandes serviços de utilidade pública – Mas a solução do problema
continua a ser, no fundamental, a mesma, isto é, a criação de condições institucionais que
preservem as novas empresas de uma competição ruinosa com as empresas de ponta dos países
mais avançados.
A reserva de mercado continua a ser o instituto fundamental para assegurar proteção
contra uma competição ruinosa para nossas empresas. – Inclusive quando seja mister promover
maior integração de nossa economia, com o resto da economia mundial.
Como venho insistindo, a reserva de mercado – como uma chave – tanto pode fechar
as portas, como abri-las. Nossa reintegração na economia mundial deve resultar de uma operação
planificada. Nunca do desmantelamento dos instrumentos fundamentais de planejamento, entre os
quais vamos encontrar a reserva de mercado.
A SINGULARIDADE DO PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL Coleção Ignacio Rangel
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Sumary
Accordingto the author the Brazilian industry must continue to be an object of oficial protection, while, it does not diaposeat conditions to face the competition of the indsties more advanced in technology.
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EU E ELE: MINHAS MEMÓRIASDE IGNACIO RANGEL José Rossini Campos do Couto Corrêa
A SINGULARIDADE DO PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL Coleção Ignacio Rangel
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EU E ELE: MINHAS MEMÓRIAS DE IGNACIO RANGEL12
José Rossini Campos do Couto Corrêa*
I
Já havia começado a festa de cores e de luzes do alvorecer brasiliense. A móvel
manhã quente e derretida, varava as persianas do pequeno apartamento, avisando-me o horário dos
inflexíveis compromissos burocráticos. Acordar acordei, pois, mesmo estando em Pasárgada, não
sou amigo do Rei, sabendo novamente ser a República, por fora, bela viola; por dentro, pão
bolorento.
Não só acordei, como me pus de pé. Tanto quanto possível, rítmico, comecei a
marcha diária contra o relógio: pasta, escova, dentes; creme, lâmina, barba. Uma pausa: liguei a
televisão para ouvir, mais do que ver, o jornal político, não recordo se na Globo ou na Manchete,
coisa, aliás, desimportante, desde que os homens entrevistados nos dois canais são os mesmos, com
a sua linguagem trêfega, falando sobre o permanente baile de máscaras nacional - e de máscaras
feias – com uma desenvoltura de tríduo momesco.
Mais depressa, prossegui, disputando com o ponteiro dos segundos: água, sabonete,
toalha; cueca, calça, camisa. Quase pronto e pensando no trânsito, dispensei a fatia de pão e esqueci
o café quentinho. Estava de saída, a chave girando na porta, quando escutei o alarido do telefone.
Voltei para atendê-lo, carregando comigo, e sentindo-o mais pesado neste dia 27 de
janeiro de 1988, às fatais 7 horas e quarenta e cinco minutos, um morto querido – meu tio, a
completar seis anos do dia em que foi, tragicamente, esmagado em desastre automobilístico – cujo
nome aqui escrevo com saudade: Wilson do Couto Corrêa. Mal toquei o aparelho, aquela voz
inconfundível, trazendo o seu cortejo de surpresas, disparou:
– “Alô, Rossini, como vais? Quem está falando é Rangel. Eu estou aqui em Brasília...”
– Rangel!? Que surpresa agradável! – disse-lhe – esquecendo o habitual
Professor...
12 Texto inédito elaborado no trajeto Brasília-Recife, dias 13 de junho de 1988, 29 de outubro de 1991 e 25 de novembro de 1992, gentilmente cedido pelo autor para esse volume. * Vice-Reitor da American World University – AWU/USA. Vice-Presidente da Associação Brasileira de Advogados-ABA. Membro da Academia Brasiliense de Letras, da Academia Brasileira de Ciências Teológicas e do Instituto Ibero-Americano de Direito Publico.
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– “Vim” – ele continuou - “fazer uma conferência em um colóquio promovido pela Federação das Associações Comerciais do Brasil. Volto hoje mesmo, de tarde, às 15h.
– Sempre a trabalho – retruquei – invocando o nosso deus comum e
perguntando pelas novidades. – “Tu já tens o meu livro novo? Eu trouxe um para ti, que está comigo, aqui
no Hotel” – ...No Hotel Nacional? Não, ainda não tenho. Muito obrigado! Quais são as
novas? – “As novidades são muitas. A bem da verdade, algumas tristes. Perdi o meu
genro domingo... – Perdeu? Que pena... – “...E tive que parar um pouco e ficar, junto com Aliette, dando assistência
para a minha filha Liudmila...” – Que pena, Professor! – “Porém, no mais, tudo bem. Vai-se levando... Tenho trabalhado muito, em
companhia de uma moça formada em Direito e extraordinariamente dotada de competência, no BNDES.”
– O senhor está envolvido em algum projeto específico? Se está, que projeto é
este? – “É um trabalho de proposta de retificação do setor público no Brasil. Mal eu
digo de que velho decreto eu preciso, e ela, prontamente, o encontra”. – Sei, é uma espécie de banco legal. Prestes a responder com eficácia de
quando é e onde está a legislação de que o senhor necessita. – “É isto mesmo. É uma grande alegria para mim, saber que eu estou velho,
mas não estou largado. Vi este pessoal todo entrar no Banco. Muitos foram meus estagiários, que eu ajudei a formar, e hoje há gente ocupando altos postos, cargos de direção etc.”
– Que bom, Professor! É uma dimensão gratificante deste balanço de
trajetória. Mas a que horas o senhor vai estar no Hotel Nacional, nosso ponto de encontro de sempre, aqui em Brasília?
– “Creio que na metade do dia, quando vence a diária. É que eu vou viajar ás
15h e não tem sentido pagar outra...Então, eu deixo o Hotel.”
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– Claro. Olhe, eu vou para o serviço agora. Como não suspeitava que o senhor fosse estar aqui, não sei se vai ser possível a minha passagem no Hotel Nacional neste horário. De qualquer maneira, contudo, eu vou ao seu encontro no...
– “... No aeroporto? Bem, que lamentável, pois eu pensei que nós
pudéssemos, quem sabe, nos encontrar e ...” – ...Almoçar juntos? – “Sim. É isto mesmo!” – Pois bem: eu vou a seu encontro, de qualquer jeito, no Hotel Nacional, e
almoçamos juntos. – “Até mais, então, Rossini. Um abraço para ti.” – Até mais, Professor. Um grande abraço para o senhor. – “Ah, tem uma coisa: conheci o Jesus Gomes. Eu gostava muito dele, que
era um burguês diferente do burguês brasileiro, ao qual não basta desgostar do comunismo, pois ele tem de ser é anticomunista. E Jesus não era nenhuma coisa nem outra. Ele realmente merece uma pesquisa.”
– Sem dúvida... – “Vai trabalhar.” – Vou. Até mais.
Fui trabalhar e cheguei ao Ministério da Cultura e comecei a desatar os nós do
cotidiano. Do Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas de Natureza Cultural, onde experimentei a
ventura de dirigir uma excelente equipe de trabalho no setor público, telefonei para uma convidada
minha, transferindo o nosso almoço para ensejo mais propício. Ela, gentil, compreendeu.
Em seguida, passei pela Secretaria Geral do MinC, comandada pelo maranhense
ilustre Joaquim Itapary e, rapidamente, conversei com Flávia Gomes de Galiza, neta de Jesus
Norberto Gomes, comunicando-lhe o juízo do grande economista brasileiro sobre a nossa proposta
de pesquisa, em torno das idéias sociais e políticas do seu avô.
Fascinada com o que Ignacio Rangel dissera a respeito de Jesus Gomes, Flávia
Galiza, boa amiga e parceira compenetrada de pesquisa, ficou vibrando. Tanto quanto, ou até mais
do que eu, ela estava interessada em resgatar a figura do industrial maranhense, preso em novembro
de 1935, na chamada Intentona Comunista.
Daí que logo houve a concordância com a minha proposta de almoçarmos os três:
Mestre Rangel, Flávia Galiza e eu. Decidida a documentar o encontro, a terceira convidada solicitou
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ao motorista da Secretaria Geral do MinC – e assim foi feito – que passasse em sua residência e
trouxesse a providencial máquina fotográfica.
No horário combinado para a saída, recebi saudável e repentino telefonema de minha
prima Sônia Corrêa, também dos quadros superiores do MinC, com a gentil convocação de que
almoçássemos juntos. Aplaquei-lhe os justos reclames, explicando que a motivação do
surpreendente almoço era Ignacio Rangel. Chamei-a. Aceito o convite, a pequena comitiva partiu.
No breve trajeto entre o Setor Bancário Norte e o Setor Hoteleiro Sul, realizei uma
dissertação sobre Ignacio Rangel, a economia, a política e a história do Brasil. Necessitado de um
paradigma, fui objetivo: trata-se de um economista mais original e, no mínimo, da mesma dimensão
do Ministro da Cultura, Celso Furtado.
Chegamos. Realizava-se ainda o colóquio, no auditório do Hotel Nacional. À beira
da piscina, o aguardamos. Sem demora, o evento foi encerrado. Fui buscá-lo à entrada do auditório,
de onde marchamos para a beira da piscina. No intervalo, foi inevitável a conversa sobre o seu
genro morto, neto de Demétrio Ribeiro, que integrou o primeiro Ministério da República, e os
cuidados dispensados à sua filha Liudmila e ao seu neto, em companhia de Dona Aliette. Vi olhos
marejados...
Feitas as apresentações e mal chegando a se acomodar à mesa, Ignacio Rangel
sugeriu, premido pelo horário, que fôssemos almoçar no aeroporto, onde evitaria contratempos,
como o de perder avião. Descida a sua pequena bagagem e fechada a conta no Hotel Nacional, em
animada conversa, logo tomamos a direção desejada.
Eu o provoquei, no caminho, sobre a sua produtiva atitude intelectual, com a alegria
de haver recebido, autografado, o livro Economia Brasileira Contemporânea. E o velho Rangel,
reagindo bem, discorreu a respeito de projetos de livros, reunindo textos esparsos e inéditos, e
confessou, em contrapartida, a necessidade de trabalhar em marcha mais vagarosa.
Fora o primeiro a entregar os originais – reportava-se a seu livro Economia: Milagre
e Anti-Milagre – para a coleção “Brasil: Os Anos do Autoritarismo”, editada por Jorge Zahar. A
marcha batida deste, e de outros afazeres literários, provocou grave crise cardíaca no Mestre dos
Mestres. Objeto de cirurgia cardíaca em São Paulo, o médico recomendou ao economista
maranhense prudência, em substituição à afoiteza que lhe é característica, uma vez desafiado pelo
trabalho criativo.
Provoquei o autor de Dualidade Básica da Economia Brasileira, a propósito da
necessidade da reedição da obra, tornada um clássico das ciências humanas no país. Passando
recibo ao meu desafio, com vivaz prosápia, o pensador da formação econômica brasileira foi
definitivo:
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– “Não admito trocar uma vírgula daquele livro.” – Entendo. Mas o senhor pode reeditá-lo, o que é uma necessidade, com uma
introdução atualizadora. – “Esta é uma boa idéia. Rossini, o diabo é que eu tenho projetos mais
urgentes.” – A redação de sua autobiografia, por exemplo? Quando o senhor vai abrir o
seu baú de ossos? – “Talvez. Tenho dúvidas se se justifica a concentração de esforços, agora,
em uma autobiografia. O testamento vai ficando para depois...”
Chegamos. Conseguido um lugar no estacionamento, logo rumamos em direção ao
restaurante do aeroporto. Ao chegarmos no amplo ambiente, deparamos, ao centro, com Isabel e
Epitácio Cafeteira, a Primeira Dama e o Governador do Estado do Maranhão. Trocamos apenas
olhares, sobre a pouca discrição de áulicos e de ajudantes de ordens. Afinal, somos maranhenses
desobrigados da reverência e agradecidos pelo silêncio do transitório magistrado estadual.
Sentamos. Ignacio Rangel, à frente de Flávia Galiza, começou a recordar passagens
de Jesus Gomes, a sua ligação com os comunistas, a prisão política em 1935, o propalado ateísmo,
caracteres da mentalidade empresarial e todo um mundo de coisas interessantes à história das idéias
no Brasil. A facúndia do visitante, que não é habitual, determinou a decida de um facho de luz sobre
o nosso encontro.
Tempo houve, ainda, para o velho Rangel declarar que aquele almoço salvara a sua
vinda a Brasília, em razão da brevidade com que cada expositor fora forçado a discorrer no
colóquio, referente à crise nacional. Depois de considerar que não participaria mais de simpósios,
onde a possibilidade de argumentar não contasse com o tempo favorável, declinou nomes,
endereços e telefones de pessoas presas com Jesus Gomes em 1935, as quais, tanto quanto ele,
seriam depoentes abalizados a seu respeito. E confirmou, enfim, que muitos intelectuais de sua
geração maranhense – Franklin de Oliveira à frente - saíram do Maranhão para a aventura do Brasil,
com a ajuda material de Jesus Gomes.
Chegada a sobremesa, o viajante, voltando-se para mim, mergulhou em um mundo
de lembranças. A começar pela fresca recordação das solenidades comemorativas do centenário de
nascimento de seu pai, o Juiz e Professor Mourão Rangel. Os festejos transcorreram entre São Luís
e Imperatriz, sem o esquecimento do Rio de Janeiro, desaguando na divulgação do seu opúsculo,
intitulado Dr. Mourão Rangel, que constituiu uma memória de família das mais interessantes para
a reconstituição histórica da vida social e das idéias jurídicas e políticas no Brasil.
A SINGULARIDADE DO PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL Coleção Ignacio Rangel
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O principal evento em Imperatriz, foi a inauguração do retrato do Juiz e Professor no
Grupo Escolar Mourão Rangel. Neste, em época pretérita, funcionou uma escola particular, fundada
por Mourão Rangel, o velho, que nela, em companhia de sua esposa, educava os seus e os filhos de
terceiros, em um serviço público para a vitória do direito à educação sobre os privilégios da
barbárie. A despeito da nova e moderna construção, Ignacio Rangel identificou a localidade, logo
acusando a lembrança em seu discurso.
Como um sopro, regressou à memória ignaciana o dia 7 de setembro de 1922,
episódio de há muito esmaecido. Aos oito anos, no Dia da Pátria, de acordo com ensinamento de
véspera, feito por sua mãe, o menino declamou longo poema – um hino ao trabalho – na solenidade
municipal. A rememória não ficou subordinada ao sucesso, estendendo-se a texto poético, de plano
reconstruído e de declamado, verso por verso.
Tomado por violenta emoção, concluída a sua palavra, o filho varão do
homenageado foi conduzido às pressas para um hospital, pois não passava bem. Chegando ao Rio
de Janeiro, relatou os acontecimentos ao escritor Antônio de Oliveira, o qual garantiu ser de autoria
do poeta português João de Deus, o hino ao trabalho declamado pelo menino Rangel, no longínquo
7 de setembro de 1922. A. de O. é lusófilo. Como se não bastasse, o velho Rangel, com a
metralhadora da memória ligada, começou a declamar João de Deus:
“MISÉRIA
Era já noite cerrada, Diz o filho: "Oh minha mãe,
Debaixo d'aquella arcada Passava-se a noite bem!"
A cega, que todo o dia Tinha levado a anadar, A taes palavras do guia
Sentiu-se reanimar.
Mas saltam dois cães de gado, Que eram como dois leões: Tinha-os à porta o morgado Para o guardar dos ladrões.
Tornam os pobres à estrada, E aonde haviam de ir dar?
Ao palácio da tapada Onde el-rei ia caçar.
À ceguinha meia morta
Torna o filho: "Oh minha mãe,
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Ali no vão de uma porta Passava-se a noite bem!"
- Se os cães deixarem... (diz ella,
A triste n'um riso amargo), Com effeito a sentinela:
- "Quem vem lá?... Passe de largo!"
Então ceguinha e filhinho, Vendo a sua esperança vã, Deitaram-se no caminho Até romper a manhã!...”
“BOAS NOITES
Estava uma lavadeira a lavar numa ribeira
Quando chega um caçador: - Boas tardes, lavadeira! - Boas tardes, caçador!
- Sumiu-se a perdigueira Ali naquela ladeira;
Não me fazeis o favor De me dizer se a brejeira
Passou aqui a ribeira? - Olhai que, dessa maneira,
Até um dia, senhor, Perdereis a caçadeira,
Que ainda é perda maior. - Que importa, lavadeira! Aqui na minha algibeira Trago dobrado valor... Assim eu fora senhor De levar a vida inteira Só a ver o meu amor
Lavar roupa na ribeira! - Talvez que fosse melhor...
Ver coser a costureira! Vir de ladeira em ladeira Apanhar esta canseira,
E tudo só por amor De ver uma lavadeira
Lavar roupa na ribeira... É escusado, senhor!
- Boas noites... lavadeira! - Boas noites... caçador!”
A SINGULARIDADE DO PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL Coleção Ignacio Rangel
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“A ENJEITADINHA
— De que choras tu, anjinho? "Tenho fome e tenho frio!" — E só por este caminho
Como a ave que caiu Ainda implume do ninho!...
A tua mãe já não vive?
"Nunca a vi em minha vida; Andei sempre assim perdida,
E mãe por certo não tive!" — És mais feliz do que eu, Que tive mãe e... morreu!”
Provoquei Ignacio Rangel, cobrando detalhes do texto do poema. Ele, não se fazendo
de rogado, declamou verso a verso a extensa peça literária, por suposto, de João de Deus, provando
que a havia recomposto de um fôlego e fixado para sempre, como se tivesse acabado de lê-la.
Estava vagando no ar a chamada para a ponte aérea Brasília-Rio de Janeiro.
Divididas democraticamente as despesas, partimos em direção ao setor de embarque.
Conseguimos ainda, a caminho, parar, no intuito da feitura da reportagem fotográfica do nosso
encontro. Depois, foram passos rápidos, abraços, beijos e despedidas. Ignacio Rangel desceu a
rampa de embarque, deixando em todos, com a sua passagem, o doce vestígio de uma presença,
para sempre, repleta de inefável encantamento.
II
O mês era o de junho ou de julho, a cidade, o Recife, e 1991, o ano. Em um
restaurante da Avenida Boa Viagem, entre outros, eu aguardava Francisco Sales Gaudêncio e
Manoel Marcos Maciel Formiga, os quais, retidos em Itamaracá, tardaram, mas chegaram.
Almoçamos sem que Roberto Viana, Secretário de Governo, aparecesse, pois este só despontaria
em meados da tarde, antecedendo em poucos minutos o escritor e historiador Armando Souto
Maior.
Inteligente, porém, fugaz, o nosso encontro ficou prejudicado pela urgência de
Marcos Formiga em chegar ao Aeroporto dos Guararapes, de onde viajaria com destino a Brasília.
Foi possível, entretanto, por sobre jogos de espírito e reflexões substantivas, a passagem do fio de
espada pelo lamento da frustração do título de cidadania, que Brejo de Areia prometera a Armando
Souto Maior, mas suspendera, em seguida, em virtude de pequenas refregas políticas municipais.
Coleção Ignacio Rangel A SINGULARIDADE DO PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL
91
Só? Não. Roberto Viana foi explícito, ao recusar a oferta de Sales Gaudêncio e de
Marcos Formiga, para que fosse painelista privilegiado no seminário “Teoria e Política no
Pensamento de Celso Furtado”, em processo de organização pelos dois, em consórcio do Governo
da Paraíba com o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.
Motivei Viana sutilmente, sob a observação de que a desimportância por ele atribuída à economia
de Celso Furtado, era, à sua maneira, valiosa, podendo, ao ser comunicada, tonificar e entusiasmar
os debates no colóquio.
– “Desde que seja colocada de forma respeitosa” – ponderaram os dois paraibanos - . E acrescentaram: “Não queremos um seminário tedioso, feito de pura louvação de Celso Furtado”.
– “Eu não escondo o temor” – argumentou o convidado – “de ser muito
contundente. Sobretudo com Arraes como coordenador do painel.”
Sales e Formiga foram afirmativos:
“Com Miguel ou sem Miguel, você não pode deixar de participar. É o lançamento do seu nome no Brasil.”
Eu já havia conversado com Marcos Formiga, cobrando a feitura do convite a
Ignacio Rangel, por seu relevo pessoal, relacionamento com o homenageado e forte presença no
contexto dos dois primeiros desempenhos de Celso Furtado: o da fantasia organizada e o da fantasia
desfeita. Responde-me Formiga de que não agendara o nome do economista maranhense, de sua
admiração, motivado por informes advindos de Cristovam Buarque, de que a velhice o alcançara, de
forma irremediável e comprometedora. Rebatendo-as, demonstrei serem malévolas, ressalvadas a
fonte, as infundadas notícias, levando Formiga telefone e endereços anotados, bem como o
compromisso de convidar para o evento o lúcido e vigoroso Rangel.
Assim foi feito. Sucede que o seminário ficou de ser realizado em João Pessoa, em 8
e 9 de agosto, e o painelista maranhense, de texto concluído, chegou a pensar em remetê-lo por via
postal, considerando a ausência da chegada da passagem aérea e da confirmação da reserva do
hotel, quase que à antevéspera do simpósio. Soube do imbróglio por meio da competente socióloga
Maureli Costa, sua amiga e biógrafa no Maranhão e testemunha do seu relativo desapontamento
flagrado em contacto telefônico.
Comuniquei-me, de imediato, com Sales, em João Pessoa, e esse, com Formiga, em
Brasília, e a demanda foi resolvida. Manifestava Rangel interesse em reencontrar-me, trazendo do
Rio de Janeiro o meu endereço de residência e também o telefone do trabalho, e antecipando, em
contrapartida, o telefone do seu sobrinho, em cujo domicílio ficaria no Recife, ao regressar de João
A SINGULARIDADE DO PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL Coleção Ignacio Rangel
92
Pessoa. Fiz-lhe chegar ao conhecimento que estaria na capital paraibana, por intermédio da zelosa
fonte que, desde o Maranhão, garantira a sua presença ali...
Viajei na madrugada do dia 8 de agosto. Ao desembarcar, em companhia de
Armando Mendes e de Milton Santos, logo identifiquei no aeroporto Sales e Formiga, à procura de
Aspásia Camargo. Constatada a ausência da entrevistadora de José Américo, que chegaria em vôo
matinal, partimos em vagaroso e confortável ônibus, para o Tambaú Tropical Hotel. Ao chegarmos
em Tambaú, Sales e Formiga, bêbados de cansaço, avisaram que, às 8h da manhã, no Espaço
Cultural José Lins do Rego, começaria a solenidade oficial.
Ficou combinado que a saída do ônibus seria, sem mínimo retardo possível, às
7h30min. Como ninguém queria perder a abertura do seminário, a solução foi dormirmos.
Antecipando-se ao horário combinado, Sales, da portaria, contatou painelistas, homenageado e
convidados, pedindo a todos brevidade no café, pois o Governador Ronaldo da Cunha Lima seria de
uma pontualidade britânica, quanto ao cumprimento do cronograma. O motivo da rigidez era
Ulysses Guimarães, a quem o poeta Cunha Lima acompanharia a Campina Grande, onde uma
agenda numerosa deveria ser satisfeita.
Encontrei na portaria Sales Gaudêncio, Milton Santos e Fernando Cardoso Pedrão.
Estávamos nos primeiros momentos da conversa quando, elegante, cadenciado e de pasta executiva
à mão, sorrindo, apareceu no corredor Ignacio Rangel. Foi fraterno e afetuoso o nosso reencontro.
Mal terminamos o abraço, Pedrão e Santos, em uníssono, festejaram-no:
– “Chegou o Mestre dos Mestres!”
Fomos descendo a rampa do Tambaú Tropical Hotel em direção ao ônibus. À luz do
dia, o grupo foi ganhando corpo: Celso Furtado, Rosa Freire D’Aguiar, Hélio Jaguaribe, Paulo
Bonavides e Armando Mendes. Ao conjunto viriam a juntar-se ainda, entre outros, Armando Souto
Maior, Clóvis Cavalcanti, Luciano Coutinho, Aspásia Camargo e Maria da Conceição Tavares. O
também paraibano Paulo Bonavides, próximo à sua esposa, exultou com a chegada do
homenageado – um lorde inglês vagando nos trópicos - buscando confraternizar:
– “Celso, parabéns!”
A resposta foi glacial. Virando-se levemente, o paraibano Celso Furtado, cujos
setent’anos recebiam tardia, mas bela homenagem de sua terra natal, perguntou:
– “Pedrão onde você está?”.
E Pedrão, retraído:
Coleção Ignacio Rangel A SINGULARIDADE DO PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL
93
– “Eu estou na Universidade da minha terra, a Bahia, como coordenador do Mestrado em Economia”.
– “Bom”...
Quase metediço, Milton Santos, figura sempre simpática, convocou o economista
baiano para uma resposta mais enfática:
– “Diga assim, conterrâneo, com ar no peito e muito orgulho: eu estou na Universidade!”.
Santos sentenciou:
E Pedrão, nada expansivo:
– “E dá para ter orgulho...?” – “Um dia melhora, rapaz!”
Sorrindo em face da tragédia, para esconder, decerto, a tristeza, entramos no ônibus e
partimos. Sentado em poltrona contígua à minha, como ficaríamos, aliás, todo o seminário, o velho
Rangel foi conversando. Avisou–me que tivera problema de saúde, que não os cardíacos, estando
em processo de recuperação de um acidente cerebral sofrido em São Paulo. Explicou-me ainda que,
evitando viajar só, por causa dos problemas de saúde, trouxera consigo Dona Aliette Martins
Rangel, sua esposa, a qual tinha todo um programa de família a cumprir, substituindo-o nas visitas
aos parentes Souzas, Guedelhas, Mourões e Rangéis da Paraíba.
Desembarcamos. A caminho do teatro do seminário, que estava repleto, Pedrão
juntou-se a nós e, galhofeiro, passou a mão sobre o ombro do pensador maranhense, comentando
para mim:
– “Este homem é perigoso e engana a muita gente com essa voz mansa. Já agitou muito: como agitou! Quando passava na Bahia era para não deixar nada, não deixar ninguém em pé: criticava todo mundo!”
E o Mestre dos Mestres:
– “E tu continuas o mesmo de sempre, combinando capoeira, retórica baiana e dialética de Hegel.”
Gargalhamos...
A solenidade começou pontualmente. O homenageado foi introduzido no recinto sob
aplausos e a cerimônia transcorreu com grande relevo. O Governador Ronaldo Cunha Lima e o
Secretário de Governo Gleryston Holanda de Lucena, casado, este, com uma sobrinha de José
A SINGULARIDADE DO PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL Coleção Ignacio Rangel
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Américo de Almeida, retiraram-se, cumprimentando-me da passagem. Marcos Formiga discursou
na abertura, assim como Sales Gaudêncio, emocionado, o faria no encerramento do colóquio
antológico, vivido em estilo elogiável, sem ser suntuoso, como sequer São Paulo realiza no
momento de crise nacional.
Quinta-feira, 8; sexta-feira, 9: dois dias de um agosto inscrito em definitivo na
cultura paraibana. Estudantes, professores, intelectuais, painelistas e homenageado desfilaram as
suas dúvidas, inquietações, problemas e dificuldades, valendo-se o evento da riqueza dos
testemunhos de Celso Furtado. Surgiu a idéia da criação, à maneira isebiana, do Instituto Superior
de Estudos Paraibanos – ISEP – a ser dirigido, segundo convite do Governador Cunha Lima, pelo
notável economista paraibano. Admitida a aceitação, o Governador formulou qualquer coisa como:
– “Eu era sabedor de que esta excelsa figura não se furtaria, sem nenhuma intenção de trocadilho.”
A participação de Ignacio Rangel, elevada e corajosa, foi constituída por um
confronto do seu, com o pensamento de Celso Furtado, na década de 50. A audição da platéia ficou
um pouco prejudicada, em razão do microfone utilizado para a leitura do texto ser de lapela.
Contudo, a dicção ignaciana, não chegando a ter a ressonância cavernosa da voz de Miguel Arraes,
não foi elemento impeditivo dos aplausos que recebeu.
Tomado por um constante espírito crítico, a postura do velho Rangel foi de
insatisfação com a precária síntese conseguida, ponderando:
– “Rossini, eu estou preocupado. Como as pessoas estão pensando mal o Brasil! E gente de responsabilidade! Vou solicitar quinze minutos a Arraes, para desfazer estes equívocos e virar a mesa”.
E foi. O mito negou três vezes ao Mestre o tempo requisitado. Formiga explicou ao
velho populista que, a qualquer instante, o Governador Cunha Lima chegaria, trazendo consigo o
Deputado Ulysses Guimarães, para a solenidade de encerramento do seminário, determinando a
recusa da concessão da palavra a Ignacio Rangel. Lamentando a frustração do seu propósito,
sentando-se de novo junto a mim, o sábio maranhense deixou escapar a frase.
– “Afinal, quem é que é, Rossini, este Ulysses Guimarães de quem eles tanto falam!?”
Findo o painel, coordenado mais por Formiga do que pelo mito, Arraes dirigiu-se a
Rangel, a quem auxiliei a levantar-se, e o festejou, entre sorrisos, abraçando-o:
– “Salve, grande Mestre!”
Coleção Ignacio Rangel A SINGULARIDADE DO PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL
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Concluído o simpósio, houve a ruidosa entrega de certificados, com estudantes
querendo que o economista maranhense autografasse os pequenos atestados de participação ali
recebidos. O pedido foi aceito, sob a estudantil condição de que os requisitantes também assinassem
o certificado do mestre brasileiro. Partimos para o Tambaú Tropical Hotel, onde recusei, cansado do
seleto encontro no Palácio do Governo na noite passada, convite para jantar. Fiquei plantado à
beira da churrascaria, degustando uma boa conversa com Manoel Marcos Maciel Formiga e com
Guido Gaioso Castelo Branco.
Armando Souto Maior, com o estilo inteligente e cortante de sempre, apareceu em
companhia da esposa e amigas, em busca de um lugar para jantar. Não obtendo sucesso, deixou
conosco uma pérola:
– “Esta Maria da Conceição Tavares é doutora na arte de repetir as coisas mais batidas, como se fossem novidades.”
Fiquei, de minha parte, recordando o sorriso de plena satisfação de Hélio Jaguaribe,
quando, no jantar palaciano oferecido pelo casal Cunha Lima, Sales Gaudêncio mo apresentou
como um seu constante leitor. Falei-lhe, em abono do testemunho salesiano, do seu conceito de
colonial-fascismo e da utilização que dele fizera, ao longo da gesta da resistência democrática à
ditadura militar. O velho Jaguararibe confidenciou ao pequeno grupo que o cercava, que a sua
morte civil chegou a ser decretada pelos coloniais-fascistas, em demonstração perversa de que o seu
conceito era uma realidade.
No sábado pela manhã, findo o café, comecei a providenciar o regresso. A minha
expectativa era, como sói acontecer, que fosse possível chegar ao Recife vindo, ou com o carro da
Casa Civil ou com o carro da Fundação Casa de José Américo. O excesso de demanda prejudicou a
pretensão esboçada, levando a que eu aguardasse em vão, automóvel oficial pernambucano nunca
chegado, cuja tarefa consistia em transportar o velho Rangel e a sua esposa à cidade maurícia.
A solução encontrada foi a de fretarmos um táxi, e descermos juntos para o Recife.
Tratou-se de uma viagem maravilhosa. O motorista, atencioso, parou, permitindo ao interessante
casal descansar um pouco, matar a sede e tomar café. Rangel e eu fomos os mais silenciosos, pois
as mulheres falaram a contentos, Dona Aliette, particularmente, a qual estava com o brilho da verve
feliz e diligente.
Apontei, entre léguas de cana de açúcar, o burgo de Goiana aos Rangéis, dizendo-
lhes que era o berço da gente de Manuel Corrêa de Andrade. E, mais à frente, indiquei a entrada de
Itamaracá e discorri sobre o significado de Igarassu. Ignacio, que me declamara em João Pessoa
vigoroso fragmento de um dos poemas de amor, de sua lavra, ditado pelas musas da juventude,
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entusiasmando-se, resgatou versos de Gregório de Mattos, de ácida critica aos poderes de uma certa
Igaraçu:
“Se trata a Deus por tu, e chamam a El-Rei por vós
como chamaremos nós ao Juiz de Igaraçú?
Tu, e vós, e vós, e tu”.
E logo em seguida, para não perder o fio da meada, prestigiando a lira gregoriana e
recordando que o poeta nascera em Salvador, mas terminara a vida no Recife, Ignacio Rangel,
revelando a sua íntima conexão com a poesia, declamou com voz de cristal resoluto, vencendo o
cansaço do tempo, ao resgatar o sentido crítico do canto contraposto à corrupção reinante no
aparelho judicial do Estado:
“Senhor Doutor: muito bem-vinda seja A essa mofina, e mísera cidade Sua justiça agora, e eqüidade,
E Letras, com que a todos causam inveja.
Seja muito bem-vindo: porque veja O maior desbarate, e iniqüidade,
Que se tem feito em uma, e outra idade Desde que há tribunais, e quem os reja.
Que há de suceder nestas Montanhas
Com um Ministro em Leis tão pouco visto, Como previsto em trampas, e maranhas?
É Ministro do império, mero, e misto, Tão Pilatos no corpo, e nas entranhas,
Que solta um Barrabás, e prende um Cristo”.
Desfilaram na conversa figuras como Domar Campos, Guerreiro Ramos, Ewaldo
Corrêa Lima e Jesus Soares Pereira, sem o esquecimento de Rômulo Almeida. Perguntei a Dona
Aliette, e o fiz sem reticências, qual fora o relacionamento do casal com os maranhenses da década
de 30, cujo cenário de carreira predileto foi o Rio de Janeiro.
A resposta foi objetiva. Nunca tiveram relacionamento com o poeta, novelista e
jornalista Odylo Costa, filho; consideravam-se amigos fraternos do ensaísta Antônio de Oliveira;
mantinham relacionamento cordial com o crítico Oswaldino Marques; tinham afinidades eletivas
profundas com o ensaísta Franklin de Oliveira; apostavam na quente simpatia humana do poeta
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Manoel Caetano Bandeira de Melo; sempre condenaram as mágicas estatísticas de Jessé Montello,
flagradas por Ignacio Rangel desde o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico-BNDE,
onde o habilidoso matemático não ficou; que, finalmente, ela, em particular, nunca gostara da figura
do fecundo escritor Josué Montello.
Por quê? Dona Aliette, que mencionou a recente polêmica travada entre Oswaldino
Marques e Josué Montello, nos jornais de Brasília, preferiu colocar à mesa episódio imediato, no
qual a sua filha, encontrando o romancista maranhense em uma festa, foi apresentada a Josué
Montello, que, sabendo-a filha de Ignacio Rangel, no ato, disparou:
– “Minha filha, se o seu Pai não tivesse se metido com esse negócio das esquerdas, ele poderia ter sido muita coisa neste país.”
Confessou-me Dona Aliette:
– “Não gostei.”
Dona Aliette, segura de si, garantiu-me que, da competência e da probidade do seu
marido, de boa-fé, ninguém duvidava no Brasil. Sequer os adversários ideológicos. Sentenciou
ainda que sua obra, de fôlego e duradoura, não precisa do amparo artificial e sempre transitório dos
espaços de poder, para sobreviver. Tomando a palavra, Ignacio Rangel relatou-me que remeteu
carta ao Presidente José Sarney, explicando umas coisas e sugerindo outras tantas, para a economia
do seu quatriênio administrativo, sem que recebesse resposta. Perguntou –me se eu sabia a razão da
tamanha desatenção. Disse-lhe que não. Ele prometeu publicar o documento. Palavras ao vento, eu
redefini o curso da conversa.
Chegamos ao Recife. À noite, fui buscá-los no Engenho do Meio, onde o casal estava
hospedado com um sobrinho, para que, juntos, tomássemos café em minha residência na Praia do
Setúbal. Roberto Viana esteve presente. Esse amigo fraterno felicitou Ignacio Rangel, afirmando
que o estudara em Oxford, sob elogio dos seus mestres, louvando-o pela densa originalidade do seu
pensamento. Daí a pouco, o Secretário de Governo de Joaquim Francisco de Freitas Cavalcanti
confessou, sem rebuços, que, estivera ausente, poupando o seminário de um possível espetáculo
nada construtivo, com um confronto estéril com Maria da Conceição Tavares, a qual, em Londres,
lançara um sapato no rosto de um estudante, seu amigo, que dela ousara discordar.
Os Rangéis testemunharam a favor da boa figura humana existente na economista
portuguesa. Em seguida, o prato servido foi Celso Furtado, a quem Roberto Viana considerou
melhor escritor do que economista. O velho Rangel, cauteloso, mas sincero, admitiu que muito do
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atribuído por ele à rubrica celsiana, em termos de construção original, procede do pensamento de
Raúl Prebisch, economista da Argentina, muito prestigiado no ciclo cepalino. O mérito cerebral do
ensaísta paraibano foi, de toda maneira, resguardado.
Comentei com o pensador maranhense que Hélio Jaguaribe, em Alternativas do
Brasil, utilizou o seu esquema sobre as quatro dualidades, sonegando, entretanto, a referência
original. O economista foi lacônico:
– “Isto costuma acontecer...”
Terminado o café com muita prosa, quase madrugada, fui deixá-los, conversando da
Praia do Setúbal ao Engenho do Meio. Antes de partirem com destino a São Luís, os Rangéis,
movidos a cortesia, ligaram para agradecer, sem necessidade. Mantivemos posteriores contatos
telefônicos, com os dois já no Maranhão, no qual lhes passei endereços e tudo mais, de José Márcio
Rego, editor da Bienal.
Soube que o casal ilustre esteve com Anna Raphaela, minha filha, que entregou rosas
em nome do Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais, para a Dona Aliette. E mais: que Phaela a
nada faltou, do programa lítero-recreativo cumprido pelo homenageado Ignacio Rangel. De onde
Anna Raphaela ter protestado contra a decisão do pensador maranhense, comunicada à Academia
Maranhense de Letras, de escrever a sua autobiografia (o testamento pelo qual muito pelejei):
– “Não é uma boa idéia, vovô Rangel. Se tu fores escrever um livro contando a tua vida, desde ratinho até agora, vai ficar deste tamanhão. E um livrão grande assim ninguém vai ler”.
Disse-me Ignacio Rangel: estive com Anna Raphaela, tua filha, aqui em São Luís.
Ela está maravilhosa e é a inteligência em pessoa. Aliette e eu ficamos impressionados com a
extraordinária capacidade dela, que conversa como gente grande. Parabéns!
Fiquei prosa. Muito prosa. Prosa e verso, lembrando da menina que, com menos de
um ano e meio, cantava toda a música “Carinhoso”, de Pixinguinha (Alfredo da Rocha Viana) e de
João de Barro (Carlos Alberto Ferreira Braga):
“Meu coração, não sei por que Bate feliz quando te vê
E os meus olhos ficam sorrindo E pelas ruas vão te seguindo
Mas mesmo assim Foges de mim
Ah se tu soubesses como sou tão carinhosa
E o muito, muito que te quero
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E como é sincero o meu amor Eu sei que tu não fugirias mais de mim
Vem, vem, vem, vem
Vem sentir o calor dos lábios meus a procura dos teus Vem matar essa paixão que me devora o coração
E só assim então serei feliz Bem feliz
Ah se tu soubesses como sou tão carinhosa
E o muito, muito que te quero E como é sincero o meu amor
Eu sei que tu não fugirias mais de mim
Vem, vem, vem, vem Vem sentir o calor dos lábios meus a procura dos teus
Vem matar essa paixão que me devora o coração E só assim então serei feliz
Bem feliz”
Articulado com o economista e professor Carlos Osório, trouxe Ignacio Rangel ao
Recife, convidado pela Secretaria de Planejamento do Estado de Pernambuco, para proferir a
palestra “Privatização no Brasil: avaliação e perspectivas.” Consciente do conteúdo polêmico da
onda liberal em ascensão no mundo, Mestre Rangel, defensor de distinta privatização para a
realidade brasileira, observou-me:
– “Arranjaste-me um tema difícil. Não podia ser mais complicado!”
Fui buscá-lo no Aeroporto das Guararapes, onde estavam familiares, com destaque
para dois sobrinhos engenheiros, filhos de Sólon Sylvio e de Evandro Lucas de Mourão Rangel,
respectivamente. E também Carlos Osório. O velho Mestre dispensou o hotel, e, seguindo
recomendações de Dona Aliette, que, por exceção, o deixou viajar sozinho, ficou hospedado
comigo;
Conversamos à vontade. Percorrendo as livrarias, trocamos idéias, conferimos quem
tinha o quê, em matéria de bibliofilia, e, não satisfeitos, fomos à Livraria Brandão, conhecida como
o sebo mais careiro do mundo, onde adquirimos alguns volumes, inclusive o seu A Questão
Agrária, publicado aqui no Recife, nos antigos tempos do Instituto de Planejamento de
Pernambuco-CONDEPE, com o qual lhe presenteei.
A conferência, realizada na sede da Secretaria de Planejamento, situada no Bairro do
Recife, foi um sucesso. Concorrido e qualificado público o aguardava no recinto, enquanto Mestre
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Rangel respondia a perguntas para programa de rádio e a entrevista para a televisão, posando para
fotógrafos dos jornais recifenses.
A explanação da temática foi meridiana, facilitada pelo concurso de duplos
microfones, os quais tornaram audível aquela voz desgastada pela vida irrequieta e pelos problemas
de saúde dela decorrentes. Antecipando-a, houve emocionada saudação de Carlos Osório,
substitutiva da placa e do diploma que o atual Instituto de Planejamento de Pernambuco-
CONDEPE, não pôde conceder–lhe, por não ser da tradição do organismo homenagem desta
natureza.
Saber, lição de vida e humildade não faltaram à aula magna do conferencista,
aplaudida ao final, sobretudo quando revelou que, findo o Governo Juscelino Kubitschek, o
construtor de Brasília o convidou para um almoço reservado, indagando-lhe, em seguida, frente à
crise econômica enfrentada por Jânio Quadros:
– “Doutor Ignacio Rangel, onde foi que nós erramos? Diga –me!”
E puseram-se os dois a discutir e rediscutir a economia brasileira.
Crítico da privatização patrocinada pelo Governo Fernando Collor, todavia, defensor
do recurso em si mesmo, com diversa óptica, Mestre Rangel não aprofundou a sua discordância,
como gostaria, muito embora eu o deixasse à vontade, por minha causa. Sabendo-me Assessor
Especial do Governador Joaquim Francisco de Freitas Cavalcante, e havendo tomado conhecimento
de processo pernambucano de privatização, similar ao do Governo Federal, mas temendo, de
maneira generosa, por minha posição, ficou com algumas reservas mentais, só depois, em círculo
restrito, confessadas.
Retruquei-o, ponderando ser do conhecimento do Senhor Governador a minha
fidelidade às causas do humanismo, da democracia e do progresso social, não devendo ambos, ele e
eu, explicações menores ao entorno conservador do bloco de poder pernambucano.
À noite fomos em companhia de um grupo seleto para um restaurante de massas. Na
tratoria, chopes e uísques antecederam os pratos principais. Mestre Rangel, livre da cuidadosa
vigilância de Dona Aliette, navegou em céu de brigadeiro, comendo de tudo um pouco. Na saída, os
seus sobrinhos recomendaram-no a mim:
– “Todo cuidado é pouco, Rossini. Ele é o patrimônio da nossa família.”
E assim foi feito. Nada obstante, na manhã seguinte, bastante cedo, o grande
economista estava lívido, e, com a palidez da angústia, prontamente sugeriu:
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– “Vamos telefonar para Carlos Osório. Considero melhor cancelar o compromisso de logo mais na Universidade Federal de Pernambuco-UFPE, pois o meu estado de saúde não me permitiu dormir e não me deixará trocar idéias”.
Convidei-o para uma caminhada quase à beira do mar de Nossa Senhora da Piedade.
Quando do retorno, a aerofogia estava vencida. Ao término do café, havendo chegado a boa figura
humana que é Carlos Osório, dialogamos um pouco, quase um vintém de prosa, e rumamos para o
Departamento de Economia da Universidade Federal de Pernambuco-UFPE, onde a elite do
professorado aguardava o economista maranhense.
Foi uma manhã iluminada. Ignacio Rangel revelou a razão por que ficou conhecido
como o Mestre dos Mestres. Do quadro teórico à formação social, e, nesta, da estrutura à
conjuntura, o pensador maranhense, com o fio de espada da dialética, esclareceu fundamentos e
circunstâncias, limites e possibilidades, desvãos e perspectivas. E sustentou o debate: respondeu a
inquéritos e alimentou polêmicas. De tudo, ficou a sensação de que ali houve uma festa do espírito.
Quando quase todos já tinham partido, escutei-o mergulhado nas águas profundas do
passado, a revelar a conexão íntima do homem com o mistério. Estava Ignacio Rangel em Barra do
Corda, em 1º de janeiro de 1930, com o pai e seu irmão caçula, nascido em 14 de abril de 1928. Era
Dirceu Carmelo de Mourão Rangel, portanto, infante ainda, voltando do banho de rio e chegando
em casa para o descanso comum. Fechada a porta da frente, não perceberam os dois que o menino
escapuliu pela saída dos fundos, ao encontro repentino do rio e da morte. O retorno do restante da
família foi para o sepultamento de Dirceu Carmelo, a criança desventurada. E ficaram ambos, o pai
e ele, carregando na alma o mortal sentimento de culpa. O pai, retirando dele o peso do cadáver,
chamando para si a responsabilidade pela tragédia; e ele, desculpando o pai e sentindo-se, ainda ali,
o responsável pela frustração de todo um projeto existencial. Vi-o lívido e compreendi o sentido
trágico da vida, pois um morto, já volátil, nunca pára de pesar e constitui uma dor eterna.
Desde Barra do Corda que o Juiz de Direito Mourão Rangel lutara, segundo o seu
filho, a favor da Revolução de 30, pregando-a em campanha jornalística e defendendo-a de armas
em punho, como comandante de um destacamento cívico favorável à sua vigorosa sustentação. A
chegada do 3 de outubro, porém, significou a surpreendente colocação, naquele vendaval de
estremecimentos, do magistrado revolucionário em disponibilidade. Estudante de Medicina no Rio
de Janeiro, Ignacio Rangel retornou a São Luís, retirando da família o gravame de ter de sustentá-lo
na antiga Capital Federal. Em viagem de navio para o Maranhão, recebeu proposta de uma rica
senhora, sua conterrânea, muito direta e objetiva:
– “Case-se com a minha filha e diga-me onde quer concluir os estudos de Medicina, se em Paris; em Londres ou em Nova York.”
A SINGULARIDADE DO PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL Coleção Ignacio Rangel
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Resistindo ao pai, que desejava vê-lo matriculado na Faculdade de Direito do
Maranhão, o jovem Rangel foi estudar Agronomia, em tentativa de curso improvisada no
Maranhão. Nada obstante, o jurista Mourão Rangel o admoestou:
– “Tu criticas os professores da Faculdade de Direito, com o seu saber velho e desatualizado. Não poderás negar, porém, que estes mestres conhecem em profundidade a fundo a sua ciência. Quanto aos professores da Faculdade de Agronomia, logo vais descobrir que conheces mais Agronomia do que eles têm para te ensinar.”
Realizado o vaticínio paterno, o jovem Rangel foi para a Faculdade de Direito,
começada no Maranhão - para alegria de Dr. Mourão Rangel, bem como de sua esposa Maria do
Carmo - concluída no Rio de Janeiro, entre faltas e segundas chamadas, sob a determinação de sua
esposa, Dona Aliette Martins Rangel, que é mais do que a sombra protetora, por ser presença
explícita em sua laboriosa vida de economista original, com desenvolvidos senso de lógica jurídica
e gosto pela Filosofia do Direito.
Na antiga Capital Federal, de que o velho Rangel tornar-se-ia ainda Cidadão
Honorário – o bacharel noviço, que aos quinze anos passava a limpo, em máquina de escrever, as
sentenças do pai magistrado, aprendendo pavloveanamente a fumar datilografando, a datilografar
fumando, não experimentou nenhuma dedicação exclusiva às atividades jurídicas. Não se fizera o
médico do seu desejo primeiro e não fora o engenheiro do sonho materno básico. O interesse
agronômico, fruto de acidente de percurso, passara, como passariam, de resto, o cigarro e a máquina
de escrever. Por recomendação médica, escrita, só à mão.
A tradução e a política estavam no caminho profissional do jovem Rangel, que
preparava o seu terremoto clandestino, aplicando-se em Economia e buscando conhecer, histórica e
sociologicamente, o Brasil. Militante do Partido Comunista do Brasil-PCB, à força pessoal,
exigente e discrepante de pensar com as próprias idéias, por reclamar, primeiro, tê-las e segundo,
manejá-las, Ignacio Rangel apresentou tese sobre a questão agrária, em congresso de sua
agremiação política, despertando a atenção de Luiz Carlos Prestes, que solicitou ao polêmico
camarada:
– “Professor Ignacio Rangel, não deixe este congresso sem conversar comigo, pois tenho particular interesse em debater as idéias ora apresentadas”.
Aceita a sedutora provocação, esbarrando no círculo de ferro de Diógenes de Arruda
Câmara e sequazes, os quais cercavam o Cavaleiro da Esperança, isolando-o de todos, o pensador
Coleção Ignacio Rangel A SINGULARIDADE DO PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL
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maranhense procurou seguidamente, sempre em vão, Luiz Carlos Prestes. Até que escutou a
negativa raivosa e autoritária do pernambucano Arruda Câmara:
– “Camarada Rangel, para as nossas necessidades teóricas, o Comandante Prestes nos basta!”
Ignacio Rangel, defendendo o direito de pensar, rompeu com o Partido Comunista do
Brasil-PCB. E partiu, sem que tivesse acesso a Luiz Carlos Prestes, o qual tinha manifestado
indisfarçável interesse em conhecer os fundamentos da tese crítica sobre a questão agrária
brasileira, construída sob a perspectiva singular do jovem militante, que argüira os dois grandes
equívocos de 1935. Eram: um, internacional, da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas-URSS,
de que se estava em perante a crise geral do capitalismo, a qual o sepultaria, eterna e
definitivamente, para a história; e o outro, nacional, de que o processo de industrialização brasileira
só seria possível, se e somente, se aqui houvesse, como produto acabado, uma reforma agrária que o
sustentasse.
Na semana seguinte ao seu rompimento com o Partido Comunista do Brasil-PCB, em
evidente sinal de que os seus caminhos políticos tinham vigilantes seguidores, recebeu Ignacio
Rangel o convite para integrar a Assessoria Econômica do Presidente da República, Marechal
Eurico Gaspar Dutra. Convite feito, convite aceito? Não. Convite recusado. Defendendo-se pela
razão e pelo equilíbrio, o economista em ascensão não foi presa fácil do chamamento técnico do
bloco de poder estabelecido, que poderia querê-lo como troféu da Guerra Fria, já desembarcada no
Brasil, e sequer permitiu que o segmento político que o abrigara pudesse tê-lo como um agente
trêfego, mudando de visão de mundo a troco de tudo e a troco de nada. Depois de muita
ponderação, a Assessoria Econômica do Presidente da República foi aceita, já vigente a segunda
Era Vargas, distanciada das práticas policialescas do Estado Novo, reinantes desde 10 de novembro
de 1937. Frente a frente, argumentou o Presidente Vargas:
– “Dr. Rangel, eu conheço o seu curriculum. Eu preciso de homens que tenham coragem de dizer que eu estou errado”.
Este universo, chamado Ignacio de Mourão Rangel, é o homem em estado de
ebulição. Avançar, avançar e avançar são os seus três propósitos na vida. Esteve aqui ainda
agorinha, folheando com prazer o seu texto da década de 50, para o encontro de Garanhuns, e
plantando confidências no chão de nosso convívio:
– “Quem, a meu ver, não avançou nada, foi Hélio Jaguaribe”.
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Estava aqui e viajou para São Luís do Maranhão, onde o aguardava a solenidade de
posse na Academia Maranhense de Letras, em sucessão ao historiador teatral e defensor do
patrimônio histórico e artístico brasileiro, José Jansen. Despachei o seguinte telegrama para o
acadêmico Ignacio Rangel:
– “Afazeres extraordinários relacionados viagem, Governador a Portugal, impedem-me comparecer grande festa inteligência maranhense. Em espírito, estou presente na sua posse Casa Antônio Lobo, justíssimo reconhecimento a quem projetou o Maranhão no Brasil. Seu de sempre, JOSÉ ROSSINI CAMPOS DO COUTO CORRÊA”.
Uma semana passada, estávamos juntos, Ignacio Rangel, Maureli Costa, Pedro
Braga, Raimundo Palhano e eu, lançando no Maranhão, no auditório do Serviço da Imprensa e
Obras Gráficas do Estado - SIOGE, o livro Um Fio de Prosa Autobiográfica com Ignacio
Rangel, ensejo em que aquela pesquisadora e socióloga autografou a pioneira e premiada
monografia, intitulada A Marcha dos Revoltosos (Passagem da Coluna Prestes pelo Maranhão),
bafejada pelas citações de Anita Leocádia Prestes, em ensaio também laureado, de revisão histórica
do significado da Coluna Prestes para o Brasil.
Despedimos-nos. Por ora são cartas, telefonemas, projetos e saudades de Ignacio
Rangel, que será para sempre uma presença pulsante e ardente na lembrança dos que tiveram, como
eu, o privilégio do seu confiante convívio, ora breve e fragmentariamente retratado, sob o clarão
que irradia: relâmpago, vulcão, fogueira, aurora, luz do sol ao meio dia, ao som do mar e sob o céu
profundo. Sempre fulgurante. Sempre esplendente. Ponto.
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PERFIL DE IGNACIO RANGEL
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PERFIL DE IGNACIO RANGEL
Ignacio Rangel no Maranhão, quando da entrevista para o volume 1 da coleção criada em sua homenagem
Ignacio de Mourão Rangel nasceu a 20 de fevereiro de 1914, em Mirador, no
Maranhão e faleceu em 04 de março de 1994, no Rio de Janeiro.
Nos anos 30 faz breves incursões nas faculdades de Medicina, no Rio de Janeiro e
Agronomia, na capital do Maranhão. Cursou Direito na Faculdade de São Luís, concluído no Rio de
Janeiro. De forma autodidata, estuda, com rigor, História e Economia. Participa em Santiago, Chile,
dos primeiros cursos de formação de técnico em desenvolvimento econômico, organizado pela
Comissão Econômica para a América Latina-CEPAL. Desde meados dos anos 60 ministrou cursos
em várias faculdades e Universidades do país.
Atuou no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico-BNDE, hoje BNDES, na
Comissão Econômica para a América Latina-CEPAL, no Instituto Superior de Estudos Brasileiros-
ISEB, no Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política-IBESP, nas Assessorias de Vargas
e Goulart, no Plano de Metas de Juscelino, no Clube dos Economistas, no Conselho Regional de
Economia do Rio de Janeiro, no Instituto de Economistas do Rio de Janeiro-IERJ e por último na
Academia Maranhense de Letras.
Foi colaborador regular do jornal Folha de São Paulo, dentre outros.
Entre suas principais publicações estão: A Dualidade Básica da Economia Brasileira
(ISEB, 1957); El Desarollo Economico en Brasil (CEPAL, 1954); Introdução ao Estudo de
Desenvolvimento Econômico Brasileiro (Livraria Progresso de Salvador-BA,1957);
Desenvolvimento e Projeto (BNDE, 1957); Elementos de Economia do projetamento (UFBA,
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1959); Visão do Desenvolvimento e da Economia Brasileira: Programa e Política – O Programa de
Metas Econômicas do Governo (BNDE, 1959); Recursos Ociosos na Economia Nacional (ISEB,
1960); Apontamento para o Segundo Plano de Metas (CONDEPE, 1961); A Questão Agrária
Brasileira (Conselho de Desenvolvimento da Presidência da República, 1961); A Inflação
Brasileira (Tempo Brasileiro, 1963); Recursos Ociosos e Política Econômica (HICITEC, 1979);
Ciclo, Tecnologia e Crescimento (Civilização, 1982); Economia: Milagre e Anti-Milagre (Zahar,
1985); Economia Brasileira Contemporânea (Editora Bienal, 1987).
Possui trabalhos publicados em periódicos como Digesto Econômico, Cadernos do
Nosso Tempo, Desenvolvimento e Conjuntura, Revista do BNDE, Revista da Civilização Brasileira,
Estudos CEBRAP, Revista Agrária, Ensaios FEE e Revista de Economia Política, e contribuição
em coletâneas organizadas pelo ISEB, a UFMG, a Editora dos Encontros com a Civilização
Brasileira e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
Recentemente a Editora Contraponto publicou Obras Reunidas de Ignacio Rangel
em dois volumes, coligindo boa parte da sua produção intelectual, cuja proficuidade de trabalhos
esparsos e ainda inéditos já demanda um terceiro volume.
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