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A TRADIÇÃO WERTHEANA DAS DORES DE AMOR ROMÂNTICAS Rosana Cristina Zanelatto Santos*

RESUMO: Este ensaio tem por objetivo pensar três chaves interpretativas caras aos estudos românticos – Natureza, Amor e Morte – considerando uma percepção metodológica na qual se associam as análises filosófica e literária.

ABSTRACT: The aim of this essay is the reflection about three propositions of romantical studies – Nature, Love, and Death – based on a methodologic orientation of work which associates the filosifical and the same time the literary analysis. PALAVRAS-CHAVE: Romantismo; Literatura Comparada; Análise Literária.

KEYWORDS: Romantism; Comparative Literature; Literary Analysis. Um dos apelos românticos mais eloqüentes diz respeito à procura da Natureza não mais como o locus amoenus árcade, porém como o lugar onde o poeta expande seus estados d’alma, numa relação que parte de dentro para fora. Lembremo-nos de que, no Arcadismo, havia um movimento que partia do exterior para o interior: a Natureza bucólica, carregada de uma paz quase infinita, “tomava conta” do ser do poeta e espraiava-se pelos textos.

Outro desses apelos românticos, e talvez o mais forte deles, é a idealização do Amor, num movimento paradoxal: ora de exacerbada exaltação, ora da mais (pro) funda lamentação. No entanto, há um agente a unir esse aparente paradoxo: o ser que provoca ambos os estados, a mulher, ora alvo de uma contemplação mística, ora objeto do qual emana uma sensualidade diabólica.

O desequilíbrio na postura do romântico, que ama a exuberância da natureza, a criatividade do gênio, mas se entrega de caso pensado à morte, [às agruras e aos

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arroubos do amor], que se fecha egoisticamente em si e que ao mesmo tempo se entusiasma como a Pátria, com o destino de seu povo, que é infantil em seu impulso sentimental e que valoriza também os ímpetos varonis, evidencia que se deixa guiar pelas razões do coração (GOMES, 1992, p. 23).

Por mais que tentemos demarcar as fronteiras do Romantismo sua “maleabilidade” (cf. VOLOBUEF, 1999, p. 15), sua capacidade de adaptação, permitiu-lhe que se adequasse às cores locais, isto é, às condições e circunstâncias estéticas, históricas e culturais dos lugares onde se manifestou. Numa analogia (um tanto rasteira), poderíamos dizer que em face da literatura/ da arte romântica estar historicamente identificada com a burguesia e com posturas caras a esta classe, como liberdade, igualdade e capacidade do homem se fazer a si mesmo (uma tradução capenga do self made man), seus padrões estéticos são relativos, baseados fundamentalmente em ações individuais, ao contrário, por exemplo, dos padrões clássicos, intrinsecamente ligados à aristocracia e a uma certa imutabilidade dos estamentos sociais, portanto, com posturas absolutas.i

Voltemos, pois, aos dois apelos românticos inicialmente referidos: a procura da Natureza e a idealização do Amor. A Natureza ganha vida, novas cores, numa extensão do ser poético / romântico e de seus estados d’alma. Vejamos a descrição “natural” da brasileira Iracema:

Além, muito além, daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema. Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira. O favo da jati não era doce como seu sorriso nem baunilha rescendia no bosque como seu hálito perfumado. Mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo, da grande nação tabajara. O pé grácil e nu, mal roçando, alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas (ALENCAR, 1997, p. 20-21).

No romance de Alencar, os elementos que identificam a índia Iracema recebem, comparativamente, as cores locais, sem esconder, porém, uma chave medievalizante retomada pelo Romantismo, qual seja: a configuração possível da mulher como “virgem vestal” e que ao dar as boas-vindas ao estrangeiro (no caso de Iracema, o português Martim), ao se abrir (e por abrir-se, entenda-se também a entrega amorosa / sexual) para o estranho, sela um destino, a um só tempo, marcado pela conciliação e pela destruição: “Bem-vindo seja o

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estrangeiro aos campos dos tabajaras, senhores das aldeias, e à cabana de Araquém, pai de Iracema” (ALENCAR, 1997, p. 21). A identificação entre Iracema e a Natureza circundante, ambas virgens e dóceis, como a esperar que alguém as domine, é flagrante.

Desse modo, a contemplação do espetáculo da Natureza não só é forma de se educar o gênio [...] e de captar a poesia espontânea [...], mas é também o meio de o homem integrar-se na suprema potência, que é o ‘eterno Criador’ e sentir dentro de si a ‘bem aventurança’ (GOMES, 1992, p. 42).

Martim partilhará essa “bem-aventurança” ao possuir Iracema e ganhar a confiança dos tabajaras. O que em aparência seria a conciliação de índios e europeus, redundando mesmo no nascimento do sujeito fruto dessa união étnica, ou seja, Moacir, filho de Iracema e de Martim, transforma-se em destruição: a dizimação dos tabajaras, o abandono do índio pelo europeu depois do desbravamento / do desvirginamento e a morte da bela silvícola, como uma espécie de redenção de seus pecados. O espetáculo da destruição toma de assalto todas as estruturas narrativas e o que se vê é o ocaso, contemplado no seio morto de Iracema.

Passemos à exaltação do Amor. Nos textos românticos os acontecimentos parecem existir e subsistir como mero pretexto para mostrar as paixões que emanam do coração, revelando aquilo que se oculta clandestinamente no interior do ser humano. Desvendam também as facetas do bem e do mal que há em cada homem. Ao pretender penetrar na alma humana, o romântico quer desnudar o ser e expor o que ele esconde no seu íntimo. Segundo Madame de Stäel,

Observar o coração humano é mostrar a cada passo a influência da moral sobre o destino: há um único segredo na vida, que o bem ou o mal que se faz; este segredo esconde-se sob mil formas enganadoras: alguém sofre por um longo período sem merecer, ou prospera durante muito tempo por meios condenáveis, mas de repente a sorte decide-se, a palavra-chave do seu enigma revela-se, essa palavra que a consciência já tinha pronunciado muito antes de o destino a ter repetido (apud GOMES, 1992, p. 64).

Parece óbvio que subjaz aos textos românticos uma função moralizante, capaz de trazer à tona as verdades ocultas, sejam elas boas, ou más. Para tanto, o romântico explora a intimidade e as

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fraquezas humanas. E qual é a maior dessas fraquezas, aquela que abre os flancos ao inimigo? A paixão amorosa. Como não nos lembrarmos, por exemplo, de Amor de Perdição, a narrativa do amor impossível entre Simão e Teresa (e também do amor de Mariana por Simão), um sentimento superior, porém, condenado por preconceitos sociais e familiares, brotado do fundo do coração dos envolvidos e levando os protagonistas ao desvario (e à morte)?

Simão Botelho amava. Aí está uma palavra única, explicando o que parecia absurda reforma aos dezessete anos. Amava Simão uma sua vizinha, menina de quinze anos, rica herdeira, regularmente bonita e bem nascida. Da janela do seu quarto é que ele a vira a primeira vez, para amá-la sempre. Não ficara ela incólume da ferida que fizera no coração do vizinho: amou-o também, e com mais seriedade que a usual nos seus anos. [...] Na véspera da sua ida para Coimbra, estava Simão Botelho despedindo-se da suspirosa menina, quando subitamente ela foi arrancada da janela. O alucinado moço ouviu gemidos daquela voz que, um momento antes, soluçava comovida por lágrimas de saudade. Ferveu-lhe o sangue na cabeça; contorceu-se no seu quarto como o tigre contra as grades inflexíveis da jaula. Teve tentações de se matar, na impotência de socorrê-la (CASTELO BRANCO, 1988, p. 26).

A paixão e a exacerbação marcam todas as relações humanas descritas pelos românticos, com ênfase nas amorosas. O Amor é força que reina absoluta, maculando de forma indelével os corações, mesmo que sejam recém-saídos da adolescência – e o de Teresa, parece que nem isso o é. Toda espécie de argumentos racionais ou racionalizados não são capazes de demover os impulsos passionais.

Não é demais que nos lembremos do prefixo páthos, elemento constitutivo da expressão “paixão”: “-pato- elem. comp., do gr. páthos ‘doença’ ‘paixão, sentimento’, que se documenta em vocs. introduzidos na linguagem científica internacional, a partir do séc. XIX” (CUNHA, 2000, p. 587).

O que vulgarmente se chama “Amor romântico” refere-se, pois, ao páthos, à paixão, estado sentimental doentio, cujo imperativo absoluto leva heróis e heroínas a entregarem-se à languidez dos desvarios, às noites de delírios, aos estados mórbidos, o que lhes congestionará a vida e, no mais das vezes, ceifará essa mesma vida, numa receita trágica: “o melhor remédio para vida é a morte”. Eis a alucinada Mariana diante do espetáculo do cadáver de Simão Botelho sendo atirado ao mar:

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Mariana estava, no entanto, encostada ao flanco da nau, e parecia estupidamente encarar aqueles empuxões que o marujo dava ao cadáver, para segurar a pedra na cintura. Dois homens ergueram o morto ao alto sobre a amurada. Deram-lhe o balanço para o arremessarem longe. E, antes que o baque do cadáver se fizesse ouvir na água, todos viram, e ninguém já pôde segurar Mariana, que se atirara ao mar. [...] Salvá-la!... Viram-na, um momento, bracejar, não para resistir à morte, mas para abraçar-se ao cadáver de Simão, que uma onda lhe atirou aos braços. O comandante olhou para o sítio donde Mariana se atirara, e viu, enleado no cordame, o avental, e à flor da água, um rolo de papéis que os marujos recolheram na lancha. Eram, como sabem, a correspondência de Simão e Teresa (CASTELO BRANCO, 1988, p. 118).

Os leitores hão de pensar: mas nisso tudo, onde entra o Werther? A publicação, em 1774, de Os sofrimentos do jovem Werther, romance epistolar de Johann Wolfgang Goethe, contribuiu decisivamente para a divulgação do que ficou conhecido como o “mal do século”, o Weltschmerz, misto de melancolia e de pessimismo, de exacerbação amorosa e de expansão incondicional dos estados de espírito para a Natureza, e de entusiasmo pela morte, posturas que marcaram os escritos românticos.

Falemos um pouco sobre o autor do Werther. Goethe nasceu em Frankfurt no ano de 1749 e faleceu em 1832. No Brasil, Goethe é incluído entre os autores românticos alemães. Na Alemanha, no entanto, sua obra é dividida, didaticamente, nas seguintes fases: os versos da adolescência; as obras pré-românticas (entre elas, o Werther), permeadas pelos preceitos do movimento Sturm und Drang; a fase da maturidade, de cunho iluminista (como o Urfaust); e as produções que o aproximam de um Romantismo já afrancesado (o Faust).ii

Werther foi composto de fevereiro a abril de 1774 e publicado no mesmo ano. A edição que atualmente circula pelo mundo é aquela publicada em 1787, revista e escolhida pelo próprio Goethe para compor suas obras completas. Quanto à descoberta e ao entusiasmo dos românticos pelo Werther, isto só se deu na década de 1830.

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O enredo do Werther é relativamente simples: Werther, o protagonista da história, escreve cartas a seu amigo Wilhelm, narrando os sentimentos, as sensações e as impressões que têm sobre a vida que leva. Ao conhecer Lotte / Carlotaiii e por ela se apaixonar, tudo no jovem se exacerba, passando à condição de infeliz enamorado que inicialmente se afasta da bem-amada, para depois reencontrá-la, desta feita casada, o que o leva a um desenlace trágico.

Partamos do nome do jovem apaixonado, Werther. Em alemão o adjetivo wert significa “digno, merecedor, prezado, estimado”; há também o substantivo masculino Wert, que significa “mérito, valor”.iv Quanto à expressão werter, refere-se ao superlativo, ou seja, “o mais estimado, o mais prezado”. Werther terá essa condição junto a Carlota, mas também será ele próprio “o mais”: apaixonado, enlouquecido, miserável, tudo graças à sua paixão. Atentemos, pois, que o exagero romântico já se faz presente no prenome do protagonista, Werther, “o mais” importante na sua relação com o mundo que o cerca.

Duas tendências antagônicas moverão Werther: a necessidade / a busca de evasão do mundo dos homens junto à Natureza, para uma pretensa fusão com o infinito; e a busca do apaziguamento nos braços de uma mulher aparentemente simples e prática, diferente dele próprio.v

Werther é o moço estudado, de origem burguesa, que vai ao interior da Alemanha como uma espécie de assessor de um embaixador, e que conhece a jovem Carlota, filha do bailio (antigo magistrado provincial alemão) da pequena cidade onde se estabelece. Após a morte da mãe, Carlota torna-se a responsável pelos cuidados da casa, do velho pai e dos irmãos menores. Ela é inicialmente assim descrita: “[...] uma jovem de estatura média, que trajava um vestido branco simples, adornado de fitas cor-de-rosa nas mangas e no corpete” (GOETHE, 2000, p. 25). Mais adiante, porém, Werther esboçará impressões sobre a jovem, frutos da contundência de sua percepção e do enleio criado pelo cenário natural:

Durante a conversa, como me encantavam os seus olhos negros! Como sentia toda a minha alma atraída por aqueles lábios cheios de vida, aquelas faces viçosas e vivazes! Tu [Wilhelm], que me conheces, bem podes imaginar como eu, absorto no sentido do que ela dizia, muitas vezes nem ouvia as palavras com que se expressava! [...] Estava tão imerso em sonhos, em meio ao crepúsculo que tudo envolvia, que

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mal prestei atenção aos sons da música, provenientes do salão iluminado (GOETHE, 2000, p. 28).

Contudo, o que poderia ser o início de um grande e bem sucedido amor, tem um obstáculo: o noivo de Carlota, Alberto. Configura-se, então, uma espécie de triângulo amoroso: Carlota (o vértice, que ora pende para Werther, por seu amor ao belo, ao mundo subjetivo, ora por Alberto, por razões de ordem prática), Werther (o mais sonhador, o mais apaixonado dos homens, inapto para o convívio com o mundo prático) e Alberto (ativo, consciente de suas obrigações para com o mundo objetivo).

O convívio de Werther com o universo de Carlota e com o ambiente provinciano será narrado por meio de cartas ao amigo Wilhelm, como já observamos. Mas por que a eleição da forma epistolar para extravasar “os sofrimentos do jovem Werther”? A carta, como gênero do discurso, presta-se tanto ao romance, à novela, quanto às formas do lírico, não havendo melindres aparentes na intercalação da primeira e da terceira pessoas: Werther expõe tanto suas impressões e sensações com relação a Carlota, como descreve cenas nas quais a jovem aparece no contacto familiar,no cotidiano com o pai e irmãos. A epístola também propicia o mesclar dos tempos – passado, presente e futuro – pois não importa o afastamento temporal. Nas cartas de Werther o que conta é o afastamento geográfico, uma vez que Wilhelm está distante. Essa distância cria a tensão necessária para que no decorrer da narrativa, o destinatário torne-se uma espécie de confessor a quem o missivista tenta prever as reações diante do narrado e que pode, ao mesmo tempo, desculpar os possíveis mal-entendidos (mais do que justificáveis em uma carta...).

8 de agosto Podes acreditar, meu caro Wilhelm, que não me referia a ti, quando chamei de insuportáveis as pessoas que exigem de nós resignação ante um destino irreversível. Não imaginava, realmente, que fosses da mesma opinião. E, no fundo, tens razão. Apenas uma observação, meu amigo: as coisas, neste mundo, raramente se resumem no esquema do preto-e-branco, nas alternativas claramente definidas. Os sentimentos e as maneiras de agir são tão variáveis quanto as gradações entre um nariz aquilino e um nariz chato (GOETHE, 2000, p. 54).

Mesmo quando há uma breve interrupção das cartas (já no Segundo Livro), de 6 a 12 de dezembro, entra em cena o editor das cartas de

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Werther, que se dirige ao leitor, explicando-lhe o motivo dessa lacuna e como optou por preenchê-la:

Do editor ao leitor Como desejaria que acerca dos últimos dias tão singulares do nosso amigo ainda dispuséssemos de documentos suficientes, firmados pelo seu próprio punho, de modo que eu não me visse obrigado a interromper, com este relato, a série de cartas que ele nos deixou. Tive o cuidado de recolher informes precisos daquelas pessoas que podiam ter conhecimento pleno de sua história: ela é simples, e à exceção de um ou outro pormenor, todos os depoimentos coincidem. Apenas os diversos traços de caráter das personagens suscitaram algumas diferenças de opinião e divergências no julgamento (GOETHE, 2000, p. 124).

Levantadas algumas hipóteses sobre a eleição do gênero romance epistolarvi por Goethe, voltemos à história. Inapto para o convívio social, a Natureza será o lugar ideal para Werther, inicialmente, sentir-se bem:

10 de maio Uma serenidade maravilhosa inundou toda a minha alma, semelhante às doces manhãs primaveris com as quais me delicio de todo coração. Estou só e entrego-me à alegria de estar vivendo nesta região, ideal para almas iguais à minha. [...] Quando ao meu redor, os vapores emanam do belo vale, o sol a pino pousa sobre a escuridão indevassável da minha floresta, e apenas alguns raios solitários se insinuam no centro deste santuário; quando, à beira do riacho veloz, deitado na grama alta, descubro rente ao chão a existência de mil plantinhas diferentes; quando sinto mais perto do meu coração o fervilhar do pequeno universo por entre as hastes, as inumeráveis e indecifráveis formas das minhoquinhas e dos pequenos insetos, quando sinto a presença do Todo-Poderoso, que nos criou à Sua imagem, [...] (GOETHE, 2000, p. 9-10).

O que vemos é uma descrição próxima do locus amoenus, fuga da azáfama criada pelo homem. No entanto, Werther sente-se bem com esse contacto quando sua “alma” vai bem, quando as coisas se encaminham segundo seus desejos. Quando o pessimismo, a melancolia e a revolta lhe assaltam o espírito, a Natureza também se transforma:

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12 de dezembro [...] Ontem à noite não consegui ficar em casa. O degelo começou de repente, eu tinha ouvido dizer que o rio havia transbordado, que o volume de água dos regatos crescera, inundando o meu querido vale a partir de Wahlheim. Eram mais de onze horas da noite, e eu corri até o local. Foi um espetáculo terrível ver do alto do rochedo, à luz do luar, aquele turbilhão de águas revoltas cobrindo os campos, as pradarias, as sebes e tudo mais, e o extenso vale transformado num mar tempestuoso, em meio aos uivos do vento! E quando a lua reapareceu, detendo-se sobre uma nuvem negra, e as águas se revolviam e rugiam diante de mim, cobertas de reflexos pavorosos e deslumbrantes – neste momento percorreu-me um tremor e, ao mesmo tempo, um desejo intenso. Ah, com os braços abertos diante do abismo, todo meu ser anelava as suas profundezas, e perdi-me na volúpia da idéia de precipitar naquele torvelinho meus tormentos e meus sofrimentos, de ser arrastado como uma onda! Oh! (GOETHE, 2000, p. 132).

Percebe-se que o verdadeiro cenário do Werther não o espaço natural ou o citadino, mas sim a alma do jovem apaixonado. É lá que gravitam as demais personagens, cujas reações são percebidas por Werther sempre em relação a si próprio. Os estados d’alma ditam as regras para a percepção do mundo em redor.

O desregramento emocional do jovem Werther manifesta-se na defesa da exacerbação amorosa. Num diálogo travado entre Werther e Alberto, o noivo de Carlota, reproduzido (sempre segundo a ótica do missivista, não nos esqueçamos disso) na carta de 12 de agosto, duas posturas se põem: a do primeiro, defendendo suas ações inesperadas e livres, rejeitando a ordem cotidiana e prática da vida, e a do noivo, racional, equilibrado, crítico do homem que se deixa levar pelas paixões. Eis o diálogo:

‘Não sei por que as pessoas’ gritei [Werther], ‘quando falam de alguma coisa, logo precisam dizer: ‘isto é insensato, aquilo é inteligente, isto é bom, aquilo é mau!’ O que representam todas essas palavras? Elas ajudam a desvendar as razões ocultas de uma determinada ação? Vocês, que são tão rápidos no julgamento, podem determinar, com absoluta certeza, por que o ato aconteceu, por que era inevitável? Se assim fosse, não pronunciariam sentenças de maneira tão precipitada.’ ‘Hás de concordar comigo’, disse Alberto, ‘que certas ações são imorais, quaisquer que sejam os seus motivos.’ Dei de ombros e concordei. Mas prossegui: ‘No entanto, meu caro, também aqui há algumas exceções. É verdade que o roubo é imoral: mas o homem que se torna ladrão

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para salvar a si próprio e à família de morrer de fome, este homem merece compaixão ou castigo? Quem lançará a primeira pedra no esposo que, tomado de fúria justa, matar a esposa infiel e seu infame sedutor? Na jovem que, num momento de paixão, entrega-se aos prazeres irresistíveis do amor? Nossas próprias leis, essas pedantes desalmadas, deixam-se comover e abstêm-se do castigo.’ ‘Os casos que mencionas são algo completamente diferente’, replicou Alberto, ‘porque um homem que se deixa arrebatar por suas paixões perde a capacidade de refletir, e é considerado um ébrio ou um louco’ (GOETHE, 2000, p. 58).

É esse desregramento que influenciará os românticos na construção de suas personagens (lembremo-nos novamente de Simão Botelho, capaz de cometer o assassínio na defesa de seu amor / paixão). O próprio Goethe, em conversação com o crítico literário Johann Peter Eckermann, seu assistente na organização das obras completas, reavaliou essa postura dos primeiros românticos, o que é extensível a si próprio no que se refere ao Werther (cf. GOMES, 1992, p. 124). Goethe foi capaz de ser o leitor de si mesmo, como sugere Novalis em seus escritos sobre literatura:

O verdadeiro leitor tem de ser o autor amplificado. É a instância superior, que recebe a causa já preliminarmente elaborada da instância inferior. O sentimento, por intermédio do qual o autor separou os materiais de seu escrito, separa novamente, por ocasião da leitura, o que é rude e o que é formado no livro – e se o leitor elaborasse o livro segundo sua idéia, um segundo leitor apuraria mais ainda, e assim, pelo fato de a massa elaborada encontrar sempre de novo em recipientes frescamente ativos, a massa se torna por fim componente essencial – membro do espírito eficaz (2001, p. 103).

Sabendo que a edição do Werther que circula entre nós é a de 1787, portanto, passada pelo crivo do leitor Goethe, que a deu a público pela primeira vez em 1774, percebemos que não é somente a dor, o sofrimento de um amor falhado o que leva Werther ao suicídio. Concorrem para isso: as péssimas relações do jovem com seu superior, considerado por ele um tolo:

O embaixador causa-me muitos aborrecimentos, como eu havia previsto. Ele é o tolo mais pontilhoso que se possa imaginar; anda de passinho em passinho, e é complicado como uma solteirona; é um homem que jamais está satisfeito consigo mesmo, e a quem, por isso, nunca ninguém poderá contentar. É do meu feitio escrever os meus trabalhos de uma só penada, e não modificar uma vírgula. Ele, porém, é capaz de me devolver um

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memorando, dizendo: ‘Está bom, mas reveja-o, porque sempre será possível encontrar uma palavra melhor, uma partícula mais precisa.’ Aí tenho vontade de explodir (GOETHE, 2000, p. 81).

E a atitude aparentemente desdenhosa de uma sociedade aristocrata:

O conde de C... me estima e mostra consideração especial por mim. [...] Acontece que ontem fui almoçar na casa dele, justamente no dia em que lá, à noite, se reúnem os senhores e as damas da nobreza. Não tinha pensado nisso e, da mesma forma, jamais me havia ocorrido que nós, os subalternos, estamos excluídos de tais reuniões. Muito bem. Almocei com o conde, [...] Aí chega a excelentíssima senhora de S... com o esposo e a filha, uma boboca de peito chato e cintura fininha, comprimida pelo espartilho. Ao passarem por mim, lançam-me um olhar altivo, de desprezo, e como detesto de coração toda essa gente “fina” da nobreza quis despedir-me, esperando apenas que o conde se livrasse do palavreado estúpido que o cercava (GOETHE, 2000, p. 90).

O suicídio de Werther parece-nos o efeito de uma série de causas levadas ao extremo pela exaltação do jovem, ou seja, o suicídio é o resultado da inadequação do ser no mundo. É encarado não somente como forma de libertação, mas sobretudo como a expressão da paixão em sua tensão máxima, rompendo as fronteiras entre vida e morte. Novamente nos vem à mente Simão Botelho atirando-se nas águas do oceano. Matava-se ele tão-somente por um amor impossível? Essa busca pela morte foi o ideal estético e existencial de grande parte dos românticos. Por quê?

Para Novalis, considerado um dos fundadores do Romantismo alemão,

A morte é uma vitória sobre si – que, como toda auto-superação, proporciona uma existência nova, mais leve e fácil (2001, p. 41) Vida é o começo da morte. A vida é em vista da morte. A morte é término e começo ao mesmo tempo – separação e mais estreita autovinculação ao mesmo tempo. Através da morte a redução se perfaz (2001, p. 43).

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Por que “a redução se perfaz”? Porque a morte, criam os românticos, era o caminho para o regresso a si mesmo, ao bem-estar interior, à harmonia perdida, enfim, à recuperação da integridade física e moral, uma vez que a vida material é fragmentada e exposta às paixões. Logo, era necessário transcender uma realidade que é adversa e perversa para com o ser humano. Há, enfim, por detrás dos arroubos e das dores românticas, sejam elas de perscrutação junto à Natureza, sejam marcadas pelo páthos, uma motivação filosófica construída como teia estético-lingüística e que, normalmente, enreda o leitor na sua seiva mais aparente e viscosa: o mal de Amor.

Fechemos estas falas com um comentário de Paul Valéry acerca de uma análise sobre o seu poema Cemitério marinho e que é válida para este exercício analítico:

As diversas observações precedentes podem dar uma idéia das reflexões de um autor na presença de um comentário sobre sua obra. Ele vê nela aquilo que ela deveria ser e aquilo que poderia ter sido, bem mais do que aquilo que ela é. O que pode haver então de mais interessante para ele do que o resultado de um exame escrupuloso e as impressões de um olhar estranho? Não é em mim que se compõe a unidade real de minha obra. Eu escrevi uma ‘partitura’ – mas só posso escutá-la quando executada pela alma e pelo espírito de outra pessoa (1999, p. 168).

* UFMS – Campus de Campo Grande. Docente do Curso de Graduação em Letras do Depto. de Letras, do Programa de Pós-Graduação em Letras (Mestrado) do CPTL/UFMS e do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens do CCHS/UFMS.

REFERÊNCIAS

ABDALA JR, Benjamin; CAMPEDELLI, Samira Youssef. Romantismo (1836-1881) – Os gritos da independência. In: _____. Tempos da literatura brasileira. 3. ed. São Paulo: Ática, 1990. p. 67-128. (Série Fundamentos). ALENCAR, José de. Iracema. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997. (Biblioteca Folha; 3). CASTELO BRANCO, Camilo. Amor de perdição. 11. ed. São Paulo: Ática, 1988.

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CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa. 2. ed. 13. imp. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. GOETHE, J. W. Os sofrimentos do jovem Werther. Tradução Marion Fleischer. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. (Clássicos). GOMES, Álvaro Cardoso; VECHI, Carlos Alberto. A estética romântica: textos doutrinários. São Paulo: Atlas, 1992. IRMEN, Friedrich. Langenscheidts Taschenwörterbuch der Portugiesischen und Deutschen Sprache. 7. ed. Berlin et al: Langenscheidt, 1988. NOVALIS. Pólen – Fragmentos, diálogos, monólogo. Tradução, apresentação e notas Rubens Rodrigues Torres Filho. 2. ed. São Paulo: Iluminuras, 2001. VALÉRY, Paul. Acerca do Cemitério Marinho. In: _____. Variedades. Tradução Maiza Martins de Siqueira. São Paulo: Iluminuras, 1999. p. 161-168. VOLOBUEF, Karin. Frestas e arestas. A prosa de ficção no Romantismo na Alemanha e no Brasil. São Paulo: Editora da UNESP, 1999. i Esta comparação foi estabelecida com base nas considerações de ABDALA JUNIOR e CAMPEDELLI sobre o Romantismo. Cf. ABDALA JUNIOR, Benjamin; CAMPEDELLI, Samira Youssef. Romantismo (1836-1881) – Os gritos da independência. In: _______. Tempos da literatura brasileira. 3. ed. São Paulo: Ática, 1990. p. 67-128. (Série Fundamentos). ii As fases assim delimitadas o foram graças à leitura de VOLOBUEF. Cf. VOLOBUEF, Karin. Frestas e arestas. A prosa de ficção do Romantismo na Alemanha e no Brasil. São Paulo: Editora da UNESP, 1999. p. 11. iii Na tradução por nós utilizada (de Marion Fleischer, professora de Literatura Alemã na USP), o nome Lotte é transcrito como Carlota. iv Cf.IRMEN, Friedrich. Langenscheidts Taschenwörterbuch der Portugiesischen und Deutschen Sprache. 7. ed. Berlin et al: Langenscheidt, 1988. v Esta leitura nos foi sugerida pelo prefácio à edição do Werther da Martins Fontes. O referido prefácio é de autoria de Joseph-François Angelloz, com tradução de Marion Fleischer. vi Aqui vale uma referência aos fragmentos de Novalis, especificamente o de número 54, onde se lê: “A verdadeira carta é, por sua natureza, poética” (2001, p. 67. Grifo do autor).


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