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Universidade Federal de Minas Gerais
Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas
Programa de Ps-Graduao em Filosofia
Ana Marta Lobosque
A vontade livre em Nietzsche
Belo Horizonte
FAFICH/UFMG
2010
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Ana Marta Lobosque
A vontade livre em Nietzsche
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao emFilosofia da Universidade de Minas Gerais, comoparte dos requisitos para a obteno do ttulo deDoutor em Filosofia
Linha de pesquisa: Histria da Filosofia
Orientador: Professor Oswaldo Giacoia Jr -UNICAMP
Co-orientador: Professor Rodrigo Duarte - UFMG
Belo Horizonte
FAFICH/UFMG
2010
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FICHA CATALOGFICA
100 Lobosque, Ana MartaL799v A vontade livre em Nietzsche [manuscrito] / Ana Marta Lobosque Oliveira.
2010 2010.
306 f.
Orientador: Oswaldo Giacoia Jr.
Tese (doutorado) Universidade Federal de Minas Gerais,
Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas.
.
1. Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-1900. 2. Filosofia Teses.3. Filosofia Histria Teses. 4. Livre arbtrio e determinismo Teses. I.Giacoia Jnior, Oswaldo, 1954- II. Universidade Federal de MinasGerais.Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas. III. Ttulo
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Tese intitulada A vontade livre em Nietzsche, de autoria da doutoranda
Ana Marta Lobosque, examinada pela banca constituda pelos seguintes
professores:
Professor Dr Oswaldo Giacoia Jr - UNICAMP Orientador
Professor Dr Rodrigo Antnio de Paiva Duarte - UFMG- Co-orientador
Professor Dr Fernando Eduardo de Barros Rey Puente - UFMG
Professor Dr Olmpio Jos Pimenta Neto - UFOP
Professor Dr Rogrio Antnio Lopes - UFMG
Professor Dr Miguel Angel de Barranechea - UNIRIO
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Agradecimentos
Agradeo ao meu orientador, Professor Oswaldo Giacoia Jr, pelo generoso acolhimento.
Aos Professores Rogrio Lopes e Olmpio Pimenta, e aos demais colegas do Grupo de
Estudos de Nietzsche da UFMG, pela frtil interlocuo.
A Ram Mandil, pela delicadeza da escuta.
Aos companheiros do movimento antimanicomial, pelas questes sempre vivas.
Aos colegas da Escola de Sade Pblica de Minas Gerais, pelo apoio.
Aos meus familiares e amigos, pelo carinho e solidariedade.
A Clelinha, pela presena amorosa. A Duda, pelo calor da companhia.
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....a maioria dos filsofos e eruditos...imagina toda
necessidade como aflio, como penoso ter-de-
seguir e ser-coagido, e o pensar mesmo tm como
algo lento, hesitante, quase uma fadiga ... _ mas no
como algo leve, divino e intimamente aparentado
dana e exuberncia! Pensar e levar a srio...
para eles isso o mesmo. Os artistas talvez tenham
um faro mais sutil nesse ponto: eles, que sabem
muito bem que justamente quando nada mais
realizaram de arbitrrio, e sim tudo necessrio,
atinge o apogeu sua sensao de liberdade, sutileza e
pleno poder, de colocar, dispor e modelar
criativamente _ em suma, que s ento necessidade e
livre arbtrio se tornam unidos neles (ABM, 213).
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Resumo
A tese sustenta que Nietzsche, por um lado, realiza uma severa crtica da doutrina daliberdade da vontade na tradio filosfica, e, por outro, apresenta uma concepo
prpria de vontade livre. Considerando o contexto mais amplo da crtica vontade de
verdade e da investigao genealgica da moral empreendida pelo filsofo,
examinaremos as passagens de sua obra que criticam especificamente esse conceito,
remetendo-nos a alguns dos autores que o constituem ao longo da histria da filosofia,
quais sejam, Plato, Aristteles, Santo Agostinho, Kant e Schopenhauer. A seguir,
investiga-se at que ponto Nietzsche interroga e promove a possibilidade de dar umanova acepo vontade livre.
Palavras-chave: filosofia; histria da filosofia; liberdade da vontade, vontade livre, livre
arbtrio
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Abstract
The thesis contends that Nietzsche, on the one hand, severely criticizes the doctrine
of freedom of will in the philosophical tradition, and, on the other hand, presents his
own conception of free will. In light of the broader context of the criticism to the actual
will and of the genealogical investigation of moral made by this philosopher, we will
examine the passages of his work which specifically criticize this concept, while
making reference to some authors during the course of the history of philosophy,
namely, Plato, Aristotle, Saint Augustine, Kant and Schopenhauer. Next, we will
investigate to what extent Nietzsche questions and promotes the possibility of giving a
new meaning to free will.
Key-words: philosophy; history of philosophy; free will, freedom of will
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Rsume
La thse soutient que Nietzsche, dans un premier temps, ralise une svre critique
quant la doctrine de la libert de la volont dans la tradition philosophique, puis, dansun second temps, prsente une conception propre de volont libre. En considrant le
contexte le plus ample de la critique de volont de vrit et d'investigation gnalogique
de la moral entreprise par le philosophe, nous y examinerons les passages de son oeuvre
qui critiquent particulirement ce concept, pour cela nous nous rfrerons certains des
auteurs qui l'ont constitu au cours de l'histoire de la philosophie, tels que : Platon,
Aristote, Saint Augustin, Kant et Schopenhauer. Par la suite, nous tudierons jusqu'
quel point Nietzsche interroge et promeut la possibilit de donner un nouveau sens auconcept de volont libre.
Mots-cls:philosophie, l'histoire de la philosophie, volont libre, libert de la volont
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Abreviaturas
Obras de Nietzsche:
A = Aurora
ABM = Alm do bem e do mal
AC = O anticristo
AS = O andarilho e sua sombra
CE I = Primeira considerao extempornea _ David Strauss, o apstolo e o escritor
CE II = Segunda considerao extempornea _Da utilidade e dos inconvenientes da histriapara a vida
CE III = Terceira considerao extempornea _ Schopenhauer como educador
CE IV = Quarta considerao extempornea _ Wagner em Bayreuth
CI = Crepsculo dos dolos
CW = O caso Wagner
EH = Ecce homo
FTG = A filosofia na poca trgica dos gregos
GC = A gaia cincia
GM = Genealogia da moral
HDH = Humano, demasiadamente humano
HDH II= Humano, demasiadamente humano II
OSD = Opinies e sentenas diversas
NT = O nascimento da tragdia
Z = Assim falava Zaratustra
Outras obras:
CRPr = Crtica da razo prtica, de Kant
FMC = Fundamentao da metafsica dos costumes, de Kant
G = Grgias, de Plato
LA = O livre arbtrio, de Santo Agostinho
ELA = Ensaio sobre o livre arbtrio, de Schopenhauer
EN = tica a Nicmaco, de Aristteles
MRV = O mundo como vontade e representao, de Schopenhauer
R = A repblica, de Plato
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Sumrio
Introduop.14
Parte I: Alguns marcos da doutrina da liberdade da vontade: Plato,
Aristteles, Agostinho, Kant e Schopenhauer p.27
Captulo 1: Plato e Aristteles: uma tica anterior vontade p.31
1.1 A ao moral entre os antigos gregos p.31
1.2 Plato: conduta moral e discurso verdadeiro p.35
1.2.1 Saber e justia emA Repblica p.37
1.2.2 Ordem das coisas e ordem do discurso no Grgias p.40
1.2.3 Castigo e recompensa p.421.2.4 Ningum erra de propsito? p.45
1.3 A fundamentao da responsabilidade em Aristteles p.47
1.3.1 Algumas questes datica a Nicmaco p.47
1.3.2 A prefigurao da vontade em Aristteles p.56
Captulo 2: A vontade a partir do cristianismo p.60
2.1 A vontade em Santo Agostinho p.60
2.1.1 Alguns precursores da filosofia da vontade p.60
2.1.2 A discusso de OLivre arbtrio p.622.1.2.1 A vontade culpvel como causa do mal p.63
2.1.2.2 Deus, o bem e a verdade imutvel p.65
2.1.2.3 Necessidade e liberdade p.71
2.1.2.4 O pecado original p.74
2.1.3 A filosofia de Agostinho na histria da vontade p.76
2.2 A autonomia da vontade em Kant p.79
2.2.1 De Agostinho a Kant: a formalizao do conceito de vontade p.79
2.2.2 A filosofia prtica kantiana: alguns aspectos p.81
2.2.2.1 A universalidade da lei moral p.83
2.2.2.2 A autonomia da vontade e a liberdade p.85
2.2.2.3 A causalidade pela liberdade: mundo sensvel x mundo inteligvel p.87
2.2.2.4 Os postulados da razo prtica p.90
2.3 A vontade em Schopenhauer p.92
2.3.1 O conhecimento desinteressado p.92
2.3.2 A liberdade inteligvel p.95
2.3.3 A auto-negao da vontade p.99
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2.4 Aps Schopenhauer: uma crtica positivista liberdade da vontade p.102
Parte II: Vontade de verdade como determinao da moral p.105
Captulo 3: Da sabedoria trgica filosofia histrica p.108
3.1 Nietzsche e o sculo da cincia p.108
3.2 O percurso do jovem Nietzsche: uma primeira verso da tarefa p.111
3.3 Considerao terica x considerao trgica do mundo. p.114
3. 3.1 O otimismo da lgica p.114
3. 3.2 O nascimento da tragdia: uma forma singular p.118
3.4 O tema do conhecimento em outras obras da juventude p.121
3.5 Novas reflexes sobre o conhecimento p.124
3.5.1 Uma nova dieta p.124
3.5.2 Cinciax metafsica p.1263.6 O conhecimento como paixo p.129
Captulo 4: Por uma gaia cincia p.133
4.1 Somente enquanto criadores p.133
4.2 Crticas finalidade p.136
4.3 A selvagem sabedoria: vontade de verdade como vontade de poder p.140
4.4 Ainda devotos p.142
4.5 Texto e interpretaes p.144
4.6 Vontade de verdade e ideal asctico p.1504.7 Feminina p.154
Parte III: A concepo nietzscheana de vontade livre p.156
Captulo 5: A crtica doutrina da liberdade da vontade p.160
5.1 Primeiras crticas liberdade da vontade p.160
5.1.1 Alguns aspectos da investigao moral em Humano, demasiadamente
humano p.160
5.1.2 As referncias crticas doutrina da liberdade da vontade p.1635.2 Novas formulaes crticas liberdade da vontade p.170
5.2.1 O jogo dos impulsos p.170
5.2.2 As sedues da linguagem p.172
5.2.3 A crtica vontade una e causal p.177
5.3 ltimas crticas liberdade da vontade p.180
Captulo 6: Culpa e castigo p184
6.1 Danar acorrentado p.184
6.2 Origem e finalidadex vontade de poder p.187
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6.3 A experincia humana da dor: em busca de um sentido p.190
6.4 O direito e a justia: um instvel equilbrio p.195
6.5 O castigo p.200
6.6 Culpa e m conscincia p.205
6.7 Um outro ideal? p.209
Captulo 7: O homem da vontade livre p.212
7.1 A vontade livre como caracterstica do homem nietzschiano p.212
7.2 Desvios de si, retornos a si p.216
7.3 Nietzsche face ao homem de Schopenhauer p.221
7.4 Primeira formulao do esprito livre p.225
7.4.1 Os atributos do esprito livre p.225
8.4.2 A filosofia trgica como empreendimento artstico p.2738.5 O eterno retorno em Assim falava Zaratustra p.276
8.5.1 Perturbaes de Zaratustra p.277
8.5.2 O cativeiro da vontade p.279
8.5.3 O enunciado do eterno retorno p.282
8.5.4 Rodeios de Zaratustra p.284
8.5.5 De volta solido p.285
8.5.6 Enfim, a prova p.286
8.6 O eterno retorno na filosofia trgica: um lugar parte p.289
Consideraes finais p.294
Referncias bibliogrficas p.302
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Introduo
A crtica liberdade da vontadexo homem da vontade livre
Ao abordar a concepo de vontade livre em Nietzsche, uma aparente ambivalncia
se destaca.
Por um lado, sua obra empreende uma severa crtica desse conceito tal como
formulado na tradio filosfica. Tal crtica decisiva para o projeto nietzscheano de
uma genealogia da moralidade, tanto pela recusa da idia de uma ordenao tica douniverso na qual viria fundar-se a moral, como pelo desmascaramento da noo de
vontade livre ou livre arbtrio, que visa fundamentar a responsabilizao, logo a culpa,
como uma operao da moral, particularmente da moral crist1.
Por outro lado, o ideal do homem livre e responsvel ocupa um importante lugar na
filosofia de Nietzsche. Podemos v-lo em suas menes aos espritos livres, de
Humano, demasiadamente humano Gaia cincia, ao alm-do-homem deZaratustra,
aos filsofos do futuro deAlm do bem e do mal, ao homem capaz de prometer daGenealogia. Nietzsche sempre associa a todos eles uma vontade poderosa, uma vontade
livre que se auto-determina, por determinar os valores que a regem; da mesma forma,
sublinha a amplido de sua responsabilidade.
A vontade que fende rochas, inalterada e sempre igual a si mesma, o que h de
invulnervel em Zaratustra. Um excesso de livre arbtrio, a disposio para grandes
responsabilidades e a amplido da vontade (ABM, 44) so atributos dos filsofos do
futuro em Alm do bem e do mal. Na Genealogia da moral, o fruto mais maduro da
rvore plantada pela moralidade de costume o homem da vontade prpria, duradoura
e independente... no qual se torna instinto dominante o conhecimento do privilgio da
responsabilidade (GM, II, 2).
Ainda, Nietzsche inclui-se a si mesmo nessa linhagem, como mostra o frequente uso
do pronome ns, ou mesmo eu, anteposto s diferentes figuras do seu ideal. A
1 Neste trabalho, utilizaremos como sinnimos as expresses liberdade da vontade, vontade livre e livrearbtrio.
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vontade livre e a responsabilidade, segundo a auto-determinao de uma lei, no s so
afirmadas com relao a elas, como so questes que se colocam para Nietzsche, no
cumprimento da tarefa que julga encontrar em sua filosofia.
Por conseguinte, as menes feitas pelo filsofo ao homem da vontade livre, assimcomo aquelas ao cultivo de si e sua prpria tarefa, apontam para alguns elementos que
nos permitem repensar esse conceito sob uma outra perspectiva, na qual se apresenta
no sem contradies e dificuldades, mas nem por isso tendo importncia menor.
Considerando o contexto mais amplo da investigao genealgica da moral
empreendida por Nietzsche, examinaremos as passagens de sua obra que criticam
especificamente esse conceito, remetendo-nos a alguns dos autores que o constituem ao
longo da histria da filosofia, quais sejam, Plato, Aristteles, Santo Agostinho, Kant e
Schopenhauer. Pretende-se, igualmente, pesquisar como, e at que ponto, o filsofo
interroga, e por vezes promove, a possibilidade de dar uma nova acepo vontade
livre.
A vontade como doadora de sentido
Investigando a crtica nietzschiana liberdade da vontade, procuraremos tambm
explicitar sua concepo de uma vontade livre enquanto doadora de sentido.
A concepo de vontade livre em Nietzsche parece-nos relacionar-se constante
busca, em sua filosofia, de criao de um sentido para o homem. O filsofo repudia as
formas de pensamento para as quais as coisas devem continuar sendo tal como so para
tornar-se o que devem ser: denuncia enfaticamente o conformismo inerente nas
interpretaes do mundo que tornam intil ou absurda a ao humana. Portanto, acriao ativa de um sentido, relacionada quela de novos valores, permeia toda sua obra.
Podemos v-lo claramente desde o incio: quer se trate do otimismo fcil do filisteu
que tudo deseja adaptar satisfao plcida de sua prpria estreiteza, na Primeira
Extempornea, quer da existncia irnica que leva o homem histrico a eximir-se de
qualquer ao, na Segunda, o filsofo denuncia as diferentes formas de passividade e
conformismo, definindo o valor do conhecimento conforme propicie ou no um agir
transformador; na Quarta, louva Wagner por no extrair da histria e da filosofia os
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efeitos sedativos que fazem desistir da ao.Na nova inflexo de seu pensamento em
Humano, demasiadamente humano, a concepo de ao ou empreendimento modifica-
se em relao etapa anterior, desvinculando-se de uma vertente militante de
transformao social atravs da arte; agora, a prpria cincia, aplicada investigao
dos fenmenos morais, chamada a oferecer critrios para um desenvolvimento
consciente da humanidade, assim como a propiciar as grandes construes humanas
antes fundadas pela metafsica. H de modificar-se ainda quando, apontando a
incapacidade da cincia para oferecer uma meta, uma paixo, uma vontade prprias da
grande f (GM III, 23), convoca uma vontade capaz de expressar um ideal contrrio ao
ideal asctico.
A afirmao de uma lei que o indivduo deve dar a si mesmo, erigindo um ideal quelhe seja prprio, se faz presente desde o incio da obra de Nietzsche, em oposio a
qualquer pretensa validade geral da lei moral. Atravs de termos diversos, utilizados de
forma mais ou menos equivalente _ conquista de si, posse de si, amor de si, cultivo de
si, cuidado de si _ o filsofo sustenta uma singular forma de auto-domnio, ascese, auto-
disciplina, pelo exerccio de uma vontade livre e doadora de sentido.
Apesar de sua rejeio a toda concepo finalstica, Nietzsche no aceita a entrega ao
acaso bruto, que excluiria qualquer possibilidade de um sentido a criar. Nas palavras de
Zaratustra, apenas a vontade pode redimir o homem do absurdo do acaso. Trata-se de
ensinar ao homem o futuro do homem como sua vontade, dependente de uma vontade
humana...para pr fim a este pavoroso domnio do acaso e do absurdo que at hoje se
chamou histria (ABM, 203). Contudo, isso se deve fazer sem o recurso a propsitos
previamente estabelecidos na essncia das coisas, que necessitam ser salvas de sua
escravido finalidade, sem permanecer, todavia, aprisionadas na mecnica
absurdidade de todo acontecer (GM, II, 12). Nem teleologia metafsica, nemdeterminismo mecanicista: para no incorrer nem em uma nem em outra dessas visadas,
Nietzsche far intervir o amor fati e o pensamento do eterno retorno. A afirmao
suprema de todas as coisas no implica, todavia, numa posio passiva ou resignada
diante delas, como nos mostra o carter essencialmente combativo da obra nietzscheana.
Deve exercer-se aqui a vontade livre qual Nietzsche se refere, no sem colocar-nos
uma srie de problemas e questes: muitas das dificuldades e dos riscos que se
entrecruzam em seu pensamento e em sua prpria vida no seriam inerentes difciltentativa de sustentar esta afirmao?
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Linhas gerais do desenvolvimento do trabalho
Para situar a importncia e o peso da doutrina da liberdade da vontade na tradio
filosfica, examinaremos, na primeira parte do trabalho, alguns escritos dos autores
acima mencionados, abordando, em Plato, uma reflexo tica que prescinde doconceito de vontade, e, em Aristteles, novas questes que prefiguram a necessidade do
conceito; veremos a seguir seu nascimento em Agostinho, sob a gide do pensamento
cristo, sua formalizao em Kant, e o desenvolvimento prprio que lhe d
Schopenhauer.
No primeiro captulo, trataremos da reflexo tica anterior ao conceito de vontade.
Em Plato, a liberdade de escolha se realiza na vida moral atravs da vida intelectual: a
virtude ou excelncia de cada coisa consiste em determinar-se conforme ordem que
lhe prpria, reproduzindo em si mesma a racionalidade de uma ordem universal.
Assim, a escolha moral deriva da cognio; aponta-se uma lei a ser conhecida pela
razo, enquanto ordem, necessidade e hierarquia de um mundo inteligvel, que o mundo
sensvel imita e obedece. Em Aristteles, a ao humana no pode ser objeto de
conhecimento no mesmo sentido em que o um fenmeno csmico ou um
procedimento tcnico: a forma universal da lei nem sempre permite considerar
adequadamente os casos particulares, cabendo ao raciocnio moral uma regularidade
diferente e menor do que aquela do conhecimento terico. Na ausncia de um conceito
de vontade, e prefigurando-o, todavia, a tica a Nicmano busca fundamentar a
responsabilidade moral atravs da distino entre o voluntrio e o involuntrio, da
introduo da noo deproaresis, ou deliberao, e de desejo raciocinativo, que no
s desejo, nem s razo.
Ser a partir do cristianismo, contudo, que se elabora o conceito de vontade. No
segundo captulo, indicaremos em Santo Agostinho um importante marco da suaformulao, segundo a qual o mal se origina da vontade culpvel. Pertence vontade a
escolha entre os bens que h de amar: quando escolhe os bens temporais, o homem no
faz uso de sua vontade livre para o fim pelo qual ela lhe foi concedida. O movimento de
averso aos bens eternos do qual procede o pecado no oriundo de Deus nem natural
ao homem: sendo voluntrio, est posto sob o seu poder, justificando-se assim o castigo.
Muito depois, quando a cincia moderna j ter elaborado a noo de leis da
natureza, extraindo suas consequncias no plano do conhecimento cientfico, Kant irafirmar a determinao da vontade por uma lei moral, que no se distingue de uma lei
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natural quanto forma. Designando a vontade como razo prtica, pretende para ela
uma racionalidade prpria, cujo rigor de verdade, todavia, em nada inferior quele da
razo terica; a lei moral universal dada pela vontade a si mesma, no exerccio de sua
autonomia, segundo uma causalidade pela liberdade prpria ao noumenon.
Schopenhauer, embora dando ao intelecto uma funo instrumental em relao ao
querer, concebe, a ttulo de exceo, uma forma pura de conhecimento, intuitivo e no
abstrato, que dela se liberta, numa auto-negao da vontade acessvel a raros homens,
como os artistas, os gnios e os santos. Desatrelando a liberdade inteligvel da lei moral
kantiana, desloca o seu acento do mbito do operare, onde no se pode encontr-la,
dado o rigoroso determinismo em que se insere toda ao, para aquele do essere, onde
se encontra como fundamento da responsabilidade moral.
A segunda e a terceira partes do trabalho abordaro a filosofia de Nietzsche, quanto
aos aspectos relacionados ao nosso tema.
Dada a estreita ligao apreendida pelo filsofo entre a vontade de verdade e a
moral, com repercusses importantes em sua crtica liberdade da vontade,
abordaremos este aspecto na segunda parte. Nietzsche questiona a concepo de uma
ordem racional da natureza, dotada de propsitos e finalidades, pela qual se identifica o
bom ao verdadeiro, numa fundamentao da moral que conduz responsabilizao
daquele que a transgride. Contrariamente, afirma a ausncia de leis, propsitos e
finalidades no universo _ e tambm de qualquer relao intrnseca entre uma suposta
ordem universal e a constituio racional do nosso intelecto.
Segundo o filsofo, o discurso verdadeiro, em sua suposta objetividade, constri-se
em ltima anlise a partir de valoraes morais, envolvendo jogos de fora e
reconfiguraes de poder. A fundamentao da moral, da qual ocupou-se sempre a
filosofia, no passa da forma erudita da f na moral dominante, que busca autorizar-se
pelo estabelecimento de seus laos com a verdade. Contudo, o verdadeiro e o falso no
so critrios neutros e isentos a partir do qual se possa avaliar os valores morais; a
prpria identificao do verdadeiro ao bem j representa uma operao da prpria
moral.
No terceiro captulo deste trabalho, veremos como Nietzsche se afasta de sua
concepo inicial de sabedoria trgica para aproximar-se do que ento denomina como
filosofia cientfica ou histrica. Para tal, sero examinadas suas reflexes em O
Nascimento da tragdia e nas obras da juventude, segundo as quais a considerao
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terica do mundo ou o sentido histrico do homem moderno produzem efeitos
esterilizantes para a cultura, cuja vitalidade requer as foras supra-histricas da religio
e da arte. A seguir, acompanharemos as novas posies expressas pela primeira vez em
Humano, demasiadamente humano: a cincia, opondo-se metafsica e tendo a dvida
por aliada, deve oferecer critrios para o progresso do homem. Entrementes, em toda
sua obra, a partirde Verdade e mentira no sentido extra-moral, Nietzsche faz ver que
coisas, substncia, identidade, durao, so apenas categorias do nosso
aparelho cognitivo, produzidas num dado momento de sua evoluo: no s no
corresponde a elas nada de real em si, como no so, tampouco, propriedades
necessrias e universais da razo humana.
No quarto captulo, veremos como Nietzsche, dando continuidade a essaproblematizao na Gaia cincia, apresenta o conferir nome e valor como constitutivos
do que chamamos de realidade, ressaltando de forma crescente o carter
necessariamente ficcional do conhecimento. A introduo da doutrina da vontade de
poder, emAssim falava Zaratustra, mostra a ancoragem de toda vontade de verdade em
valores; na Genealogia da moral, a vontade de verdade prpria nossa cultura
remetida a valoraes inerentes ao ideal asctico.
Na terceira parte, trataremos especificamente da posio nietzscheana relativa
vontade livre, estreitamente relacionada s questes examinadas at agora. Essa posio
consiste, a nosso ver, numa crtica radical doutrina da liberdade da vontade tal como
se constitui na tradio filosfica, por um lado; por outro, na afirmao de uma vontade
livre e criadora, que se pretende desvinculada dessa tradio.
No quinto captulo, abordaremos essa crtica, tal como se expressa a partir de
Humano, demasiadamente humano. Ali, o filsofo atribui ao conhecimento cientfico a
valiosa contribuio que nos permite o acesso doutrina da total irresponsabilidade,
restituindo ao devir a inocncia maculada pela interpretao culpabilizante que dele
fazemos. Nos escritos subseqentes, a problematizao da liberdade da vontade ser
situada no mbito daquela que se faz s noes da soberania da conscincia e do sujeito
como unidade ltima e irredutvel da qual a vontade uma faculdade una e causal _
noes que nos so inculcadas, segundo Nietzsche, pelas sedues da linguagem.
No sexto captulo, examinaremos a genealogia do castigo e da culpa, na qual, pelaconsiderao da doutrina do livre enquanto produto da moral do ressentimento, ganha
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relevo maior a crtica que lhe faz Nietzsche. Ser tambm abordada a concepo
nietzscheana segundo a qual encontra-se um elemento tirnico e arbitrrio em toda
ordem social, e, por conseguinte, tambm nas mais elevadas produes humanas.
Procuraremos mostrar, por outro lado, como sustenta Nietzsche a ideia de umavontade livre.
Essa afirmao esbarra em dificuldades, ao procurar re-significar certos termos e
expresses fortemente marcados pela tradio filosfica. Embora refutando a dualidade
entre mundo sensvel e inteligvel, o filsofo usa num outro sentido o termo ideal,
sobrecarregado por ela; repudiando o pessimismo romntico de sua juventude, preserva
todavia a palavra pessimismo, acrescentando-lhe o adjetivo dionisaco ou trgico; ao
buscar a criao de sentidos e a transvalorao dos valores, retoma a expresso vontade
livre, cujas razes metafsico-psicolgicas vem justamente denunciar.
Enfrentando tais dificuldades, quanto mais avana Nietzsche na crtica doutrina da
liberdade da vontade, tanto mais a vontade livre e forte, capaz de criar valores, torna-se
atributo comum e essencial s figuras do esprito livre, do alm-do-homem, do filsofo
do futuro, do indivduo soberano, como veremos no stimo captulo. No se trata da
vontade como causalidade livre, tal como se consolida no mbito da tradicionaloposio liberdade x necessidade, e sim daquela que , pelo contrrio, resultante de uma
certa ordem ou arranjo da vida pulsional sob a qual a conscincia no tem qualquer
controle ou poder. Por outro lado, a desagregao da vontade, refletindo uma anarquia
instintiva igualmente rebelde ao domnio consciente, diagnosticada como a doena
moderna.
A essa doena vincula-se o pessimismo romntico, que Nietzsche pretende ter
superado rumo a um pessimismo trgico atravs da doutrina do eterno retorno, comoveremos no oitavo captulo. A equivalncia entre querer, criar e estabelecer valores
manifesta a concepo nietzschiana da vontade livre: redentora do acaso, aquela que
deve aprender a querer para trs a fim de libertar-se de todo ressentimento. O
pensamento do eterno retorno, portanto, visa superar a antiga oposio entre
necessidade e liberdade: a vontade livre , paradoxalmente, aquela que quer tudo aquilo
que , foi e ser.
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Nietzsche e a elaborao de sua obra
Para levar adiante a investigao proposta, segundo as linhas acima delineadas,
preciso levar em conta certas caractersticas prprias elaborao da obra nietzscheana.
A elaborao e a exposio da filosofia de Nietzsche se fazem de formasingularmente alheia s exigncias acadmicas. Chamam a ateno as raras menes s
fontes a partir das quais desenvolve esta ou aquela ideia; a passagem de um tema a outro
de forma aparentemente aleatria; a vasta gama de questes abordadas, por vezes to
dspares entre si, e sob ngulos to diversos; as contradies consigo mesmo em alguns
trechos, as repeties em outros. Certas passagens, em O Nascimento da tragdia e na
Genealogia da moral, por exemplo, chegam a parecer muito simplesmente inventadas:
ainda que a pesquisa ulterior possa encontrar suas fontes, Nietzsche no apenas no nosinforma a partir de quais dados ou elementos as formulou, como tambm desenvolve
suas idias a partir delas como se sua procedncia estivesse firmemente estabelecida aos
seus prprios olhos e aos do leitor. Ao referir-se aos grandes filsofos, no explicita at
que ponto conhece suas obras: se este conhecimento por vezes se evidencia no prprio
comentrio nietzschiano, e tambm comprovado pelas pesquisas, como o caso de
Schopenhauer e Plato, temos tambm o curioso exemplo de Kant, autor que Nietzsche
menciona, comenta e critica com extrema desenvoltura, embora no se saiba ainda se, eat que ponto, o leu em primeira mo.
Guardando relao com essa liberdade tomada por Nietzsche diante das regras da
produo acadmica, a trajetria de sua vida, como se sabe, afasta-o cada vez mais de
qualquer vnculo institucional. O afastamento de Wagner e de Schopenhauer, cujas
idias o acompanharam em suas primeiras incurses filosficas, seguido por dez anos
de vida errante, durante os quais elabora suas obras mais importantes, at a nova e
radical ruptura representada por seu colapso mental. Em todo esse perodo, seu trabalho
filosfico desobriga-se de prestar contas a qualquer instncia institucional, realizando-se
ao longo de uma vida de crescente isolamento e profunda solido, sem ptria, profisso,
ou outras formas de identidade socialmente reconhecidas. Esse afastamento, descrito
por ele como um retorno a si, h de culminar tanto na produo de uma obra
inegavelmente prpria, quanto no fora de si da experincia da loucura.
Curiosamente, essa obra que se enquadra to pouco em critrios institucionalmente
reconhecidos vem sendo objeto de inmeras pesquisas, que se debruam sobre abiografia do autor, estudam minuciosamente suas anotaes, pesquisam suas leituras e
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interesses filosficos e cientficos, examinam a origem de seus principais conceitos,
dentro da mais acurada tradio acadmica. Esse esquadrinhamento leva em conta no
s a obra publicada, ou os textos destinados publicao, mas tambm o profuso
material dos fragmentos pstumos.
Deve-se ainda considerar a problemtica histria da edio das obras de Nietzsche,
desde as deformaes que sua irm imps ao texto, at o estabelecimento da edio
crtica de Colli e Montinari, passando por diversas vicissitudes. H tambm as
diferentes apropriaes ideolgicas de seu pensamento, que o situam como um pilar do
nazismo, numa extremidade, ou como um filsofo da suspeita reivindicado pela
extrema-esquerda, numa outra. Enfim, so inmeras as questes suscitadas pelo
estabelecimento do texto nietzschiano e pelas interpretaes diversas, e mesmo opostas,que este texto suscita.
Como o prprio Nietzsche diz de si um tanto ironicamente, tambm ele foi um
erudito. Seria difcil supor que este destacado aluno da Escola de Schulpforta, estudioso
da Antiguidade greco-romana, depois estudante de filologia cujos trabalhos
impressionavam seu exigente professor Ritschl, convocado para professor na
Universidade de Basilia sem necessitar cumprir o requisito do doutorado _ seria difcil,
repetimos, supor que no conhecesse nem soubesse aplicar corretamente as regras
acadmicas; esta seria uma exigncia mais fcil de cumprir do que outras, bem mais
severas, que imps a si mesmo. Tampouco parece plausvel que Nietzsche, ao
abandonar certos cnones de redao e pesquisa, visasse a liberdade de um pensamento
sem amarras, cuja impossibilidade ele prprio reconhece, ao afirmar que tudo o que nos
parece livre nasce de uma longa e exigente coero.
O abandono desse tipo de trabalho teria sido uma escolha claramente consciente de
Nietzsche? Diferentemente, pode-se pensar que este caminho foi tomado por
imposies do prprio pensamento, tal como experimentado por ele. Aqui, no nos
referimos ao pensamento de Nietzsche, no sentido de que o autor guardaria uma
relao de propriedade ou domnio com aquilo que pensa; e sim a uma forma de
exerccio do pensamento que atravs dele vem luz, exigindo, para seu surgimento,
uma forma peculiar de trabalho e expresso.
Segundo Nietzsche, no filsofo absolutamente nada impessoal (ABM, 6).Contudo, em que sentido entender aqui o pessoal? Por exemplo, no que concerne
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questo da autoria: Nietzsche considera certas descobertas filosficas como
autenticamente suas. O seu refere-se a quem? Ao Nietzsche sujeito consciente de si,
que julga encontrar-se em relao de pertinncia ou posse do seu prprio pensamento,
como algo que emana do seu Eu, conferindo-lhe mrito e direito a reconhecimento? Ou
a um Nietzsche constitudo enquanto combinao singular, ao mesmo tempo casual e
necessria, de clulas, instintos, histrias, experincias, gostos, etc, inacessveis
enquanto tais conscincia de si? De onde provm a reivindicao da singularidade?
Do Nietzsche que necessariamente a deforma, quando apresenta-se a si mesmo como
autor dessa ou daquela descoberta, ou do nico Nietzsche de fato singular, portanto
apto a descobrir algo novo, que no se encontra disposio do primeiro, e
necessariamente lhe escapa? Um pensamento no vem quando eu quero, mas quando
ele quer, diz Nietzsche (ABM, 17); falseamos a realidade ao supor o sujeito eu como
condio do predicado penso, ao considerar, segundo o hbito gramatical, que pensar
uma atividade, e toda atividade requer um agente. Somos convidados, pois, difcil
operao de conceber esta singularidade pessoal que se expressa numa filosofia,
devendo apresentar-se, entretanto, de forma totalmente independente do Eu.
Um outro trao caracterstico da elaborao nietzscheana, relacionado ao anterior,
consiste na forma pela qual concebe e emprega a linguagem. a metafsica dalinguagem, identificada por Nietzsche razo, que nos faz ver em toda parte agentes e
atos, supondo o Eu como substncia e a vontade como causa, e assim possibilitando a
culpabilizao do homem que caracteriza a moral do ressentimento. As categorias
mesmas de unidade, identidade, durao, substncia, causa, ser, so erros resultantes de
um preconceito da razo que tem a linguagem como advogada. Mais ainda, a direo
inconsciente das mesmas funes gramaticais leva os sistemas filosficos
linguisticamente aparentados entre si a interpretar o mundo de maneira semelhante,
excluindo outras possibilidades de interpretao. No seria muito diferente o filosofar
no mbito lingustico ural-altaico, onde se desenvolve mais precariamente a noo de
sujeito? _ pergunta-se Nietzsche (ABM, 20).
A condio de homem do conhecimento, tal como a vive o filsofo, leva-o a buscar e
transmitir algo de nico e singular, numa intransigente exigncia de originalidade. Ora,
o singular, o nico, o prprio, o particular, o incomparvel com qualquer outra coisa
justamente aquilo que, em sua prpria concepo, a linguagem no pode transmitir. Oque h de singular no indivduo no coincide nunca com a conscincia que tem de si, ou
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seja, com o seu Eu: a conscincia, atravs da linguagem, necessita transformar em
comum, logo comunicvel, tudo aquilo que no o . Se a conscincia se desenvolve
apenas sob a presso da necessidade de comunicao, como uma rede de ligao entre
as pessoas a desenvolver-se lado a lado com a linguagem, tudo aquilo que se torna
consciente perde seu carter incomparavelmente individual e singular, para traduzir-se
numa perspectiva gregria que o empobrece. Assim, o pensamento consciente, tendo a
linguagem como forma obrigatria, nada poderia transmitir de raro, elevado, invulgar
(GC, 354).
Essa desfigurao do nico , segundo o filsofo, um erro necessrio ao
desenvolvimento da razo. No se trata, pois, de corrigi-lo. Como ento, transmitir a
experincia estritamente singular do pensamento, se a linguagem necessariamente atrai? Essa questo parece-nos tanto mais significativa dadas as menes feitas por
Nietzsche a vivncias de estados psquicos elevados e raros que afetam intensamente o
corpo _ veja-se, por exemplo, como Zaratustra tomado por pesadelos e prostraes em
seu embate com o pensamento do eterno retorno. Tais vivncias, ao mesmo tempo em
que desafiam qualquer traduo, impelem incessantemente sua busca.
Nietzsche busca persuadir-nos, justamente atravs da linguagem, de que no se deve
tom-la ao p da letra; ou, noutras palavras, quer acautelar-nos, atravs dela prpria,
contra o seu temvel poder de persuaso. No se pode acreditar nela, ensina-nos, sem
incorporar tambm uma srie de crenas errneas que traz consigo. Contudo,
acrescentamos, tampouco se pode atribuir-lhe a capacidade de explicar-nos clara e
objetivamente em que consistiriam os erros que transmite, visando elimin-los dessa
maneira. Pode-se, talvez, exibindo a sua tessitura, fazer aparecer tanto as leis que a
constituem quanto as burlas possveis para contorn-las, quando nos probem avanar
em certos territrios; as estereotipias que nela insistem, e as metforas que as subjugam;finalmente, pode-se verificar seu estilhaamento pelo desafio radical feito aos seus
limites. Algo dessa ordem, a nosso ver, se passa na obra de Nietzsche: uma tentativa de
driblar a linguagem atravs de sua prpria fora, para fazer aparecer, em sua
enunciao, aquilo que no pode ser dito como enunciado.
Nietzsche e sua tarefa
A relao vital mantida por Nietzsche com aquilo a que denomina sua tarefaexpressa-se tanto na forma pela qual ordena em torno dela a prpria vida, como pelas
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referncias que lhe faz ao longo de sua obra . Essa ligao com a prpria tarefa e a
concepo que dela se faz parecem-nos de grande importncia enquanto afirmao da
vontade, relacionando-se sempre a algo da ordem de um retorno a si e de um cultivo
de si.
No Prlogo de Humano, demasiadamente humano, Nietzsche define a grande
liberao que acredita ter realizado a partir desse livro como algo que se inicia por
primeira erupo de vontade e fora de auto-determinao, uma vontade de livre
vontade. No Prlogo de Humano, demasiadamente humano II, refere-se ao encontro
do caminho para si mesmo como sendo o encontro de sua tarefa. Que ele se inclua,
desde o incio de sua obra, entre os espritos mais seletos, devendo portanto cumprir
as exigncias a estes colocadas; que trate da transformao do esprito livre tomandocomo exemplo e paradigma a sua prpria transformao; que atribua a si mesmo uma
tarefa de extrema responsabilidade; que tenha, enfim, experimentado consigo mesmo a
prpria filosofia _ estes so aspectos a ser considerados no tratamento filosfico que d
tanto negao da liberdade da vontade como afirmao da vontade livre.
EmAurora, a ideia de realizao essencial assim descrita por Nietzsche: Tudo
o que se faz, fazer na tranquila f de que beneficiar de algum modo aquilo que em ns
est vindo a ser!...Nada sabemos de como sucede, aguardamos e procuramos estar
prontos. Ao mesmo tempo, um puro e purificador sentimento de profunda
irresponsabilidade nos domina, quase como o de um espectador diante da cortina
fechada _ aquilo cresce, aquilo vem luz: no temos como determinar nem seu valor,
nem sua hora...Seja o aguardado um pensamento, um ato _ com toda realizao
essencial no temos outro vnculo seno o da gravidez, e deveramos lanar ao vento a
presunosa conversa de querer e fazer (A, 552).
No final de sua obra, Nietzsche descreve a prpria tarefa como uma atividadeinconsciente, que no se faz a partir de uma meta previamente conhecida. um trabalho
que se exerce sobre si mesmo e sobre a prpria vida, um amor de si, um cultivo de
si no sentido de tornar-se aquilo que se . Contudo, para que algum se torne o que ,
o pressuposto de que no suspeite sequer remotamente o que . A idia
organizadora cresce na profundeza, enquanto a conscincia, identificada superfcie,
est limpa de grandes imperativos: a ideia domina e ordena, preparando tudo aquilo que
se faz necessrio tarefa, antes de revelar qualquer coisa sobre a tarefa mesma, ou seja,sobre fim, meta, sentido (EH,Por que sou to inteligente, 9).
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Essas passagens, dentre outras, ressaltam a dimenso da espera, da entrega, da
aposta, no que concerne tarefa, como afirmao da vontade. No se trata de uma
experincia passiva: a atividade intensa, porm se d numa esfera sobre a qual o Eu
no exerce qualquer domnio. A vontade no vontade de algo, nem obedece razo.
Sua determinao no diz respeito a um objeto visado, e sim consiste nessa escolha de
um caminho que no se sabe at onde leva; recusando-se a idia de inteno, a meta e o
sentido s podem revelar-se depois.
Contudo, no singular relato autobiogrfico representado porEcce Homo, onde se
entrelaam to estreitamente a vida e a obra de Nietzsche, uma desmesura se expressa
tanto na auto-exaltao feita por ele da prpria obra, quanto na imensido da
responsabilidade que se atribui, atribuindo prpria tarefa um alcance-histrico-universal.
Embora afirme sustentar com leveza esta responsabilidade, como se fosse um jogo,
Nietzsche vive nesse ano de 1988 uma etapa febril de produo dos seus ltimos
escritos, que incluem o Caso Wagner, Nietzsche contra Wagner, o Anticristo, o
Crepsculo dos dolos e o prprio Ecce homo. Todos eles possuem um tom exaltado,
uma virulncia, uma obstinada repetio de afirmaes j feitas em obras anteriores, que
adquirem uma intensidade e mesmo um excesso bem caractersticos no ltimo texto,
antecedendo bem de perto a irrupo do colapso mental de Nietzsche, em janeiro de
1889.
EmEcce homo, fazendo certas afirmaes que espantam ou mesmo chocam o leitor,
o filsofo no nos parece buscar calculadamente estes efeitos, usando da proteo de
uma das muitas mscaras s quais ele prprio admite recorrer. Podemos perguntar-nos,
pelo contrrio, se no incorre no risco de colar a mscara pele, que acaba por rasgar-
se, afinal. A fico do Eu, to agudamente denunciada por Nietzsche, parece agora
apoderar-se do seu texto.
A linguagem contorna, atravessa, interroga, provoca limites que enfim se quebram _
at dissolver-se enfim no sem-sentido que desde o incio a solapava. Chegando, em
certas passagens de Ecce homo, muito perto do delrio, o verbo se rasga, enfim: dos
bilhetes da loucura, um ltimo aceno, distante e incompreensvel, nos interpela ainda.
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Parte I
Alguns marcos da doutrina da liberdade da vontade: Plato,
Aristteles, Agostinho, Kant e Schopenhauer
Para compreender os fundamentos e o alcance da crtica de Nietzsche doutrina da
liberdade da vontade, este trabalho se remete a cinco filsofos que nos situam na sua
evoluo: Plato, Aristteles, Santo Agostinho, Kant e Schopenhauer. Da sua obra,destacamos alguns textos como foco de nossa anlise: A Repblica e o Grgias, de
Plato; a tica a Nicmaco, de Aristteles; O Livre arbtrio, de Santo Agostinho; a
Fundamentao da Metafsica dos costumes e a Crtica da Razo Prtica, de Kant; O
Mundo como vontade e representao e o Ensaio sobre o livre arbtrio, de
Schopenhauer.
No pretendemos abordar as inmeras questes e controvrsias suscitadas, seja pela
obra desses filsofos como um todo, seja pela interpretao daqueles seus escritos aquiconsiderados. No tampouco nosso objetivo empreender uma histria do conceito de
vontade livre, trabalho j realizado alhures. No poderamos, ademais, reconstituir os
passos da elaborao filosfica realizados entre cada um desses autores. Busca-se aqui,
atravs da leitura cuidadosa dos textos elencados, todos eles de inegvel importncia na
tradio filosfica em geral e na reflexo sobre a ao humana em particular, destacar
os aspectos que nos conduzem doutrina da liberdade da vontade, fundamentando a
responsabilidade moral do homem.
Cumpre ressaltar que este um trabalho prvio ao cumprimento da tarefa a que se
prope a tese, qual seja, o exame da concepo nietzscheana de vontade livre.
Nietzsche se refere com grande frequncia a trs dos autores aqui abordados, quais
sejam, Plato, Kant e Schopenhauer, aos quais contrape explicitamente construes da
sua prpria filosofia. Diferentemente, so poucas as referncias a Aristteles na obra
publicada _ as principais delas, alis, relativas s concepes da Potica sobre a
tragdia, e no tica. Santo Agostinho, por sua vez, praticamente no mencionado
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por ele. Contudo, nessa primeira parte, procuramos examinar textos e autores em si
mesmos, levando em conta no as posies nietzscheanas a seu respeito, e sim a sua
importncia na constituio da doutrina da liberdade da vontade, contra a qual se
insurgir Nietzsche.
O conceito de vontade, ausente no pensamento dos antigos gregos, criado e
consolidado pela filosofia a partir do cristianismo. Uma importante contribuio que
nos traz o exame dos textos citados consiste em verificar como esse conceito,
inicialmente ausente da reflexo moral, torna-se posteriormente necessrio para a
fundamentao da responsabilidade e a justificao do castigo.
Entre os antigos gregos, antes da filosofia socrtico-platnica, encontra-se uma
concepo racionalista da ao humana, segundo a qual a perda da liberdade de escolha
ocorre quando se age sob a influncia do erro2. A ao se explica pela interao entre
foras racionais e irracionais, sem necessidade da mediao de uma vontade da qual
dependeria diretamente, constituindo o objeto do julgamento da conduta. Tal concepo
relaciona-se correspondncia precocemente buscada pelos gregos entre a mente
humana e o cosmos, ambos dotados da mesma ordem racional.
Plato, atravs da distino entre mundo sensvel e inteligvel, encontra no segundo aordem e a perfeio imutveis que oferecem referncias estveis para a conduta
humana. EmARepblica, a simetria que faz corresponder as trs partes da alma s trs
classes da cidade e aos trs tipos de constituies reproduz uma hierarquia na ordem do
ser que deve sustentar a cidade ideal; o bem supremo define o valor das regras que a
regem, conferindo existncia ao mundo, e dando ao intelecto a razo que lhe permite
conhec-lo. No Grgias, a ordem do ser, referncia para a justia, deve refletir-se no
discurso verdadeiro. A responsabilidade e o castigo, benfico para aquele que o recebe,
fundamentam-se na justia fundada por uma ordem universal, cujo desconhecimento
leva ao erro3. Nessa tica, que refere essencialmente a virtude ao conhecimento correto,
2 essa a interpretao dos comentadores com os quais trabalhamos, como Dihle, Vet, Reale, dentreoutros.3A propsito de A Repblica e do Grgias, como de outros escritos aos quais nos referimos nesta
primeira parte do trabalho, a interpretao pode ser matizada e complementada por outros escritos domesmo autor, ou por leituras diferentes de outros comentadores, tendo em vista o conjunto da obra. Paraos nossos fins, entretanto, basta-nos situar concepes que podem ser encontradas em cada um dos textosconsiderados.
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e o vcio ignorncia, no h lugar para o conceito de vontade.
A fundamentao da responsabilidade do homem o esforo empreendido por
Aristteles na tica a Nicmaco, levando em considerao vrios aspectos ainda no
abordados na reflexo filosfica anterior. A compulso sob a qual uma ao pode serrealizada e a ignorncia de certas circunstncias que lhes so particulares por parte do
agente so examinadas enquanto fatores que matizam a responsabilidade. A distino
entre o voluntrio e o involuntrio mostra-se insuficiente para a atribuio de louvor ou
censura ao, tornando-se necessrio o conceito de deliberao _ a proaresis _ que
deve anteceder a escolha. A distino entre conhecimento terico e inteligncia prtica
permite romper com a identificao anterior entre o conhecimento da verdade e a ao
correta.
Dessa forma, a tica a Nicmaco prefigura o nascimento do conceito de vontade,
que permanece todavia ausente dos textos antigos. A vontade, inerente a um
conhecimento moral previamente adquirido, que precede a percepo intelectual do alvo
da ao, distinguindo-se tanto do instinto quanto da escolha intelectual do seu objeto,
surgir no pensamento cristo.
A partir de uma concepo j presente no Antigo Testamento e secundada por Paulo,segundo a qual a virtude reside na obedincia vontade divina, por um ato de f que
independe do conhecimento, Agostinho aporta uma contribuio decisiva para o
conceito de vontade. O mal, pertencendo ao no ser, inexiste na criao divina; apenas a
m vontade do homem, a partir do pecado original, o introduz no universo, perturbando
uma harmonia que o castigo, como sinal de justia, vem restabelecer. Entretanto, se
voluntrio, e portanto culpvel, o movimento pelo qual a vontade se afasta de Deus, ela
no tem como retornar por si mesma ao caminho correto, podendo faz-lo apenas por
Sua graa.
Em Kant, encontra-se a formalizao mais rigorosa do conceito de vontade. A
concepo de uma vontade autnoma, livremente submetida lei moral, enquanto
forma de uma legislao universal, desatrela a determinao da vontade por qualquer
objeto que lhe seja exterior, seja sensvel, seja racional. O imperativo categrico, vlido
para todos de idntica maneira, enuncia racionalmente a regra das aes humanas.
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Em Schopenhauer, a vontade, em seu empuxo cego e irracional, j no se identifica
com a razo prtica; contudo, mantm-se a distino kantiana entre carter sensvel e
inteligvel, de tal modo que a liberdade, ausente no mbito do agir, pode ser resgatada
naquele do ser, justificando assim responsabilizao e castigo. A aniquilao da
vontade, tornada possvel pela compaixo, torna-se a nica sada tica possvel para o
homem.
A crtica nietzschiana doutrina da liberdade da vontade, endereando-se
diretamente ou no a estes autores, nos remete a todos eles, pelo papel que tiveram na
construo do conceito.
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Captulo 1
Plato e Aristteles: uma tica anterior vontade
Neste captulo, aps um breve esboo da concepo do ato moral anterior filosofia
socrtico-platnica, abordaremos alguns aspectos da reflexo tica em Plato, que
prescinde da categoria da vontade, e em Aristteles, que a prefigura.
1.1 A ao moral entre os antigos gregos
A categoria da vontade, tal como a entendemos hoje, assim como nossas noes de
livre escolha, responsabilidade e inteno, no tem lugar na antiguidade grega. Esse
conceito, que denota volio, independentemente de sua origem na cognio ou na
emoo, no encontra no vocabulrio dos antigos gregos nenhuma palavra que lhe
corresponda, sustenta Dihle (1982). Vernant (1999), indicando na acepo moderna de
vontade a ideia do sujeito humano como centro de deciso e causa produtora de todos os
atos que dele emanam, faz ver que no podemos atribuir retrospectivamente aos gregos
esta noo. A vontade, diz Vet (2005), uma noo que os fundadores da filosofia
antiga ignoram, s recebendo posio central num pensamento determinado pela
religio crist.
Para situar a histria do conceito de vontade, Dihle ressalta a distino entre as
cosmologias grega e judaica. A primeira encontra uma ordem racional na mente humana
e no universo, que se deve conhecer para agir em conformidade com ela. Na segunda,
Deus faz o que quer; criando a partir do nada, apenas por Sua benevolncia que
estabelece leis. Assim, no Antigo Testamento, a obedincia, pressuposio da sabedoria,
no deriva da cognio; no se trata de concordar intelectualmente com as intenes de
Jav, alis inacessveis aos homens, e sim de valorizar o ato de aceitao, dele fazendo
depender os padres de conduta moral.4 Conhecimento e sabedoria pressupem um ato
4Certamente, observa Dihle (1982), j em Sfocles e Herdoto encontra-se a ideia de um limite imposto
pelos deuses ao homem, que deve estar atento para a prpria ignorncia e imperfeio; contudo, enquanto
ali o homem nunca sabe exatamente o que deve fazer, no Antigo Testamento as ordens de Jav so claras,ainda que possam parecer inexplicveis. Tambm na tragdia grega se manifestava a inescrutabilidadedos desgnios divinos; a desobedincia a eles, porm, decorria de uma cegueira intelectual, enquanto na
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inicial de obedincia, que no pode ser atribudo especificamente ao intelecto ou a
emoo, no qual Dihle encontra alguns elementos do conceito de vontade
posteriormente elaborado na filosofia crist. Enquanto os gregos no dispem de uma
palavra para este conceito, j no Antigo Testamento, embora no se encontre uma
terminologia fixa, algumas palavras, em certo contexto, significariam claramente uma
vontade livre: o homem tido como capaz de dirigir e formar a prpria vontade,
reagindo responsavelmente vontade de Deus.
Diferentemente, a busca de uma legalidade na natureza que deve orientar a conduta
humana uma importante e antiga caracterstica do pensamento grego. Segundo Jaeger
(2001), um elemento essencial deste pensamento consiste na apreenso de uma lei
intrnseca s coisas mesmas, dela fazendo derivar as normas para a vida individual esocial. Para os gregos, observa Dihle, todas as coisas transcorrem segundo regras
eternas, que o homem pode conhecer enquanto portador da mesma razo que ordena o
universo.
Esse racionalismo, ainda segundo Dihle, manifesta-se tambm nas mais remotas
explicaes da ao humana entre os gregos. J em Homero, muito antes da distino
entre corpo e alma, decisiva uma primeira distino, aquela entre foras racionais e
irracionais. O impulso para a ao pode ser guiado pelo intelecto, ou mobilizado
espontaneamente; neste ltimo caso, porm, a ao trar maus resultados se o intelecto
no intervir a tempo, fazendo valer os padres morais vigentes. O comportamento
humano explica-se, pois, pela distino entre foras racionais e irracionais e a interao
entre elas. A ao deriva do intelecto ou da emoo, no havendo necessidade de uma
vontade da qual dependeria diretamente, qual seria fundamentalmente referido todo
juzo de uma conduta. Trata-se, segundo o autor, de uma tica essencialmente
intelectualista5.tradio judaica no importa se a inteno humana vem da emoo ou da razo, e sim se est ou no deacordo com a vontade divina.
5 A concepo da tica intelectualista dos gregos, sustentada por Dihle (1982), matizada em outrasinterpretaes. Mondolfo (1953) cita autores que discordam da contraposio absoluta entre oobjetivismo grego e o subjetivismo cristo, situando do lado do primeiro o intelectualismo, do lado dosegundo o voluntarismo. Para esse autor, Joel e Farrington encontram um certo subjetivismo j nafilosofia pr-socrtica. Segundo Hegel, Scrates faria um convite interioridade, ao situar,contrariamente moralidade anterior, a medida do justo e do tico na conscincia moral. Tambm Jaegerdestaca a distino entre o humano objetivo, enquanto sociedade e leis, e o humano subjetivo, enquantoeu interior, que se introduz com Scrates e os sofistas. Mandolfo cita ainda Brhier, para o qual no h
mudana de orientao filosfica introduzida pelo cristianismo nascente, sendo freqentes no mundogrego antigo a necessidade de vida interior, a conscincia do pecado e a prtica do exame de conscincia.Por outro lado, observa Mondolfo, quando se caracterizam os moralistas antigos pela reduo da norma
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Entre os gregos, certas ideias ou aes inexplicveis dos homens so remetidas
interveno divina na conduta humana. A principal forma de interveno divina a ate,
provocando no homem uma loucura parcial e temporria, a harmatia, que o leva a agir
erroneamente Segundo Dodds (1988), trata-se de um erro inexplicvel que afeta a
compreenso do agente. Dihle faz ver que, em Homero, mesmo quando a motivao da
ao muda pela interveno dos deuses, esta tem por objeto os atos de cognio e
deliberao.
A atribuio da origem do erro a uma potncia externa no pretende significar, ao
menos inicialmente, um castigo por uma culpa: na Ilada, a ate que perturba a
compreenso de Agamenon no o pune por algum ato culpvel anterior. Entretanto, ele
no isento da responsabilidade pelas faltas cometidas sob o imprio da ate. Dodds citacomo exemplo suas palavras ao referir-se ao agravo feito a Ulisses: No fui eu que
causei este ato, mas Zeus, o destino, as Ernias colocaram uma ate selvagem na minha
compreenso. Contudo, embora alegando no ter sido ele prprio a causa de sua ao,
nem por isso deixa de oferecer reparaes ao adversrio.
Ainda segundo Dodds, com a crescente moralizao da cultura grega, a atepassaa
ser interpretada como castigo ou instrumento da ira divina, resultando da justa
indignao dos deuses diante da arrogncia dos homens. As Ernias, outrora os agentes
pessoais atravs dos quais se realizaria a moira ou destino como o quinho de algum,
entendido como o que tem de ser, como obrigao ou necessidade, tornam-se, a partir
de squilo, agentes da vingana e do castigo. A concepo orfista de uma alma imortal
que se reencarna sucessivas vezes explica mais satisfatoriamente a justia divina: no h
uma alma inocente, os sofrimentos humanos so auto-impostos.
O valor tico da justia, na leitura de Jaeger (2001), cresce ao longo da civilizao
grega, ao mesmo tempo em que aumenta a nfase sobre a responsabilidade do homem.
Certamente, os deuses eram aliados ou adversrios imprevisveis, cujas aes no
derivavam de uma regra justa, e sim de seu prprio capricho, como faz Atenas ao
enlouquecer jax. Contudo, observa Dihle, os gregos buscam precocemente uma
tica conformidade com a natureza universal, no se deve esquecer que a mesma ideia apresenta-se emvrias formas na filosofia moderna: em sistemas materialistas, como Hobbes, pantestas, como Spinoza,espiritualistas, como Leibniz, ou evolucionistas, como Spencer; mesmo nas doutrinas religiosas efilosficas da predestinao, como em Santo Agostinho, pode-se reconhecer uma submisso do sujeito
tico e de seu arbtrio a um poder transcendente.
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regularidade e uma confiabilidade da regra divina sobre o mundo, como se v quando
Homero explica as peripcias da guerra de Troia como resultantes do plano de Zeus.
Hesodo, no final do sculo VIII, foi o primeiro a fazer de Zeus um deus que regulava o
mundo conforme a justia. Esse princpio de regulao cresce em valor na Jnia do
sculo VI, com o surgimento do Estado jurdico, ao qual se liga intimamente, por sua
vez, o nascimento da filosofia. Slon, como Hesodo, concebe claramente a idia de
uma legalidade intrnseca ordem social, justamente na poca em que os filsofos
jnicos comeam a buscar uma lei estvel do devir eterno da natureza. Os poetas lricos
enfatizam a noo de limite, ou justa medida, considerada por Reale (1994) como a
conotao mais peculiar do esprito grego. Por conseguinte, observa Dihle, quando a
filosofia volta-se para os problemas morais e sociais no sculo V, procura encontrar
padres de conduta moral que sejam to confiveis quanto as regras da ordem csmica
Entrementes, a nfase na responsabilidade do homem apresenta-se na Odissia,
observa Jaeger, quando Zeus censura os mortais por atriburem aos deuses todos os
males dos quais eles prprios so os autores. Mais tarde, Slon, atribuindo culpa dos
homens boa parte daquilo que os heris homricos colocavam ainda na mo dos deuses,
traz como idia poltica fundamental o problema da participao do homem em seu
prprio destino. Em Anaximandro, desenvolve-se a ideia de uma legalidade intrnsecada natureza, no no sentido moderno de lei natural, mas enquanto justificao da ordem
do mundo: o conceito de causa, atia, fundamental para este novo pensamento, coincide
originariamente com o de culpa, representando, assim como os conceitos de cosmos e
dike, uma transposio da ordem jurdica para o acontecer natural.
Do ponto de vista jurdico, enquanto a estrita solidariedade familiar entre os antigos
gregos favorecia a admisso da culpa herdada, o crescimento dos direitos individuais
leva a lei a reconhecer que o homem s responsvel por seus prprios atos. J nosculo V, o culpado, ou harmaton, torna-se o adikon, ou seja, aquele que, de forma
deliberada e sem coao cometeu um delito. No marco da elaborao de um novo
pensamento jurdico, a tragdia tica, segundo Vernant (1999), revelaria a inquietao
suscitada pela condio do homem enquanto agente, atravs do conflito das novas idias
com uma tradio religiosa e moral da qual j se distinguem, sem todavia se destacarem
completamente dela. Contudo, mesmo no drama tico, sustenta Dihle, em que a anlise
psicolgica encontra-se altamente desenvolvida, prevalece esta explicao do
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comportamento humano em termos de interao entre foras racionais e irracionais, que
podem reforar-se ou invalidar-se mutuamente, sem lugar para o conceito de vontade.
As tragdias de Eurpides, em suas relaes com o movimento sofista, expressariam
uma nova etapa desse percurso, refletindo as novas inquietaes de sua poca. Aharmonia entre as leis csmicas e as leis morais parece desfazer-se, abalando a crena
na justia. A crise da aristocracia e dos valores tradicionais, o enfraquecimento da
coeso da cidade e da disciplina social, as viagens que possibilitam as comparaes
entre diferentes povos e suas leis contribuem para a introduo do relativismo na
reflexo moral. Os critrios morais representados pelos costumes j no so suficientes
para orientar a ao; aquilo que parecia eternamente vlido j no o . A norma jurdica,
convencional e arbitrria, ope-se lei da natureza.
Esse relativismo se manifesta em Protgoras, ao considerar o homem como medida
de todas as coisas, negando valores morais absolutos. Para Grgias, no h verdade
absoluta a ser encontrada, de modo que a palavra pode prescindir do verdadeiro para
exercer seu poder de persuaso. A problematizao feita pelos sofistas, ao contrapor lei
humana e lei natural, assume feies at mesmo opostas, observa Reale _ por exemplo
em Hpias, que defende a igualdade dos homens, e Clicles, que sustenta o direito dos
mais fortes. Na ausncia de uma referncia estvel para a conduta moral, a palavra
adquire um poder ilimitado, pois duas idias contrrias podem encontrar argumentos
igualmente fortes.
Esse poder da palavra enquanto capaz de afirmar coisas opostas acaba por esvazi-la,
porquanto nenhum fundamento garante a sua verdade. O antigo conceito de direito
perde sua autoridade moral. A simples obedincia lei torna-se insuficiente, tornando-
se necessria uma nova fundamentao da moralidade, empreendida pela filosofia
socrtico-platnica.
1.2 Plato: conduta moral e discurso verdadeiro
Pretende-se abordar aqui dois aspectos do pensamento platnico, em sua reflexo
sobre a justia. Um deles diz respeito equao que identifica conhecimento e virtude,
segundo a qual a conduta justa deve orientar-se pela mesma razo da ordem universalque se reflete e reproduz na razo humana. O outro concerne importncia teraputica
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atribuda ao castigo, reforada pela noo de imortalidade da alma e de uma vida aps a
morte do corpo. Inicialmente, contudo, vejamos a relao, no pensamento platnico,
entre conduta moral e discurso verdadeiro.
Ao problematizar a universalidade da lei, os sofistas o fizeram solapando a palavraem sua capacidade de trazer inequivocamente luz o verdadeiro. Assim, a nova
filosofia exige um resgate da linguagem que venha salv-la da ambigidade e do vazio:
sendo nica e incontroversa, a verdade deve poder expressar-se atravs do discurso
correto.6
J na Apologia, se os saberes questionados por Scrates so falsos, porque no
conseguem apresentar seus prprios fundamentos, sendo instintivos ou espontneos, e
no racionais. Exigindo que o saber se prove sob a forma de uma argumentao
claramente expressa, Scrates ironiza os artifcios dos discursos tpicos do tribunal,
capazes de convencer seus ouvintes das maiores falcias, privilegiando a forma simples
do discurso como a mais adequada para expressar a verdade.
Enquanto a dialtica busca definir as regras do discurso verdadeiro, que favorecem
as aquisies da inteligncia, o corpo, sobretudo noFdon, apontado como obstculo
neste caminho: buscando a satisfao, ainda quando no coincide com o bem, sucumbefacilmente ao engano. Formula-se ali pela primeira vez a distino entre duas classes de
realidade _ uma visvel e outra invisvel _ da qual correlata a distino corpo e alma.
Da primeira, fazem parte as ideias imateriais s quais temos acesso pela inteligncia,
como aquelas da igualdade, da beleza, da bondade; da segunda, as coisas percebidas
pelos sentidos, como homens, cavalos, roupas, etc, que se modificam incessantemente.
A inteligibilidade, a simplicidade, a identidade consigo mesmo, so as caractersticas do
mundo inteligvel. A imortalidade da alma, afirmada logo a seguir, relaciona-se
estreitamente ao estabelecimento da distino entre as duas espcies de realidade
(Fdon, 78-79).
Uma caracterstica essencial do verdadeiro a sua imutabilidade, que impede o
engano. As ideias no so simples pensamentos ou representaes, mas entidades ou
substncias: representam o verdadeiro ser, a essncia e o modelo das coisas. Como
existem em si e por si, o belo e o verdadeiro no o so apenas relativamente a um
6
A legalidade do universo, orientadora da conduta, que deve agora ser estabelecida atravs de umaracionalidade mais rigorosa, exige para tal, segundo Chatelt (1965), um discurso integralmente
justificado.
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sujeito particular, mas para todos; tampouco so arrastadas pelo devir, que enfeia o
belo, e sim imutveis7.
A relao dessa diviso entre sensvel e o inteligvel relaciona-se no s com a
possibilidade de conhecer uma ordem verdadeira do universo, da qual participa a alma
imortal, mas tambm visa estabelecer sua relao com o bem. Ainda no Fdon, a
contradio de Anaxgoras criticada: dizendo ser o esprito a causa de todos os seres,
substitui todavia sua ao pelo ter, a gua, o ar, enfim por uma causalidade mecnica e
material, no explicando, conforme esperara Scrates, a causa e a necessidade das
coisas segundo o melhor, numa ordem estabelecida pela inteligncia (Fdon, 97).8A
virtude, portanto, nessa perspectiva, significa no apenas a forma racional de conduta,
mas um reconhecimento do significado final do universo.9
Examinaremos a seguir, em A Repblica e no Grgias, a concepo de uma
legalidade natural e de uma justia determinadas pelo bem como referncia para a ao
humana, e a necessidade de estabelecer os critrios de um discurso verdadeiro para ter
acesso a ela.
1.2.1. Saber e justia emA Repblica
EmA Repblica, segundo Trasmaco, a justia a convenincia dos mais fortes; a
lei, longe de seguir um modelo natural, construda segundo os interesses de quem
governa, possuindo, portanto, a fora de faz-la valer. Logo, o que o mais fraco receia
no o mal que seria representado pela prtica da injustia, mas os riscos de sofrer os
seus efeitos (R, 343). Mais adiante, Glauco e Adimanto dizem que os homens, ao
consentir num acordo mtuo, constituindo as leis, fazem-no pelo temor de sofrer a
injustia, e no pelo respeito prescrio de uma ordem natural que no a admitiria;
segundo o exemplo do anel de Giges, a certeza da impunidade autoriza a ao injusta.
(R, 359-360). A conduta determinada apenas por preocupaes e riscos relativos aos
interesses humanos, no legitimados por nenhuma referncia a uma ordem superior que
7Com a descoberta do supra-sensvel, diz Reale (1990), Plato busca a justificao ltima da tica num
conhecimento do ser e do cosmos.8Nesta crtica ao mecanicismo da filosofia da natureza, incluindo Anaxgoras, que aparentemente teria
rompido com ele, sem todavia escapar aos seus impasses, Scrates, segundo Reale, busca uma articulaoestrutural entre inteligncia e bem.9O problema do conhecimento, diz Cornford (1977), principalmente o problema de conhecer o que a
virtude, de forma tal que o conhecimento soberano do bem e do mal deve ter por objeto critrios quesejam universal e absolutamente vlidos.
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os transcenda. Diferentemente, Scrates sustenta a ideia de uma legalidade natural que a
cidade justa deve imitar e fazer valer.
Tal ideia se manifesta muito especialmente na noo de funo. Um dos principais
argumentos com os quais Scrates combate a concepo contingente da lei aquele
segundo o qual cada coisa tem funo que lhe prpria, entendendo por tal aquilo que
ela executa melhor do que qualquer outra, pela virtude que a caracteriza (R, 352-353). A
ideia de que cada coisa tem uma funo que lhe prpria e para a qual foi feita, cuja
realizao representa a sua virtude, ser estruturante da definio socrtica da justia.
Na associao entre os homens da qual nasce a cidade, cada um faz uma parte diferente
conforme sua natureza. A afirmao de que o governo a funo prpria da alma (R,
353) j antecipa o paralelo entre governo da alma e governo da cidade, em torno do qual
se desenvolve o livro. Assim como cada coisa tem uma funo, cada cidado tem seu
ofcio, representando as trs classes que compem a cidade: os governantes, os
guardies e os artfices. A essas trs classes, correspondem as trs partes da alma _ a
racional, a irascvel e a concupiscente; segundo estas, ordenam-se as diferentes
constituies. A simetria da construo deA Repblica, em que as categorias sociais da
cidade, as partes da alma e as constituies encontram-se em analogia umas com as
outras, traduz a ideia de um cosmos tambm pautado pela harmonia e pela ordem, que a
vida individual e social do homem deve imitar.
Admite-se a concepo de uma alma dividida e contraditria consigo mesma,
portanto palco de conflitos; contudo, deve-se buscar manter a alma, assim como a
cidade, segundo a ordem que lhe naturalmente prpria. Enquanto a sabedoria a
virtude do governante, a coragem a do guardio, e a temperana o acordo quanto ao
governo do melhor sobre o pior, o homem justo aquele que rene harmoniosamente os
trs elementos em si mesmo, assim como os termos baixo, alto e intermdio numa
proporo musical (R, 443). Ao estabelecer que cada um deve ocupar uma nica funo,enquanto a mais adequada sua natureza, sem cuidar das funes dos demais, j se
havia estabelecido o que a justia: a posse do que pertence a cada um, e a execuo
do que lhe compete (R, 433 ) _ acarretando, portanto, uma responsabilidade e um dever.
Quando, ao longo do dilogo, Scrates aponta a necessidade de que os reis sejam
filsofos, surge a questo de verificar quais so os verdadeiros filsofos, distinguindo-
os dos falsos. Aos primeiros destina-se a cincia, que tem o ser como objeto; os
segundos so amigos da opinio, cujo objeto participa do ser e do no ser (R, 480). Da,a longa e difcil educao que se exige para o rei-filsofo. A msica e a ginstica,
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suficientes para os guerreiros, no lhes bastam; tais atividades no so como a cincia,
que leva a alma do mutvel ao imutvel. Ressurge aqui a diviso entre o mundo visvel
e inteligvel, agora comportando subdivises. O mundo visvel inclui os seres vivos,
plantas e artefatos, objetos da f; e tambm sombras, reflexos, imagens, objetos da
suposio. No mundo inteligvel, o raciocnio que vai das hipteses concluso, usando
os objetos como imagens, como o caso da geometria, concerne ao entendimento;
aquele que vai das hipteses ao princpio, sem servir-se de dados sensveis, diz respeito
inteligncia, constituindo a dialtica, a mais alta operao do pensamento (R, 509-
511). Assim, a realidade mesma do objeto que se estuda torna-se tanto maior quanto
mais se avana nessa gradao; ao mesmo tempo, quanto mais real o objeto em si
mesmo, mais se torna passvel de ser conhecido, e maior a racionalidade do
conhecimento exigido. No cume, encontra-se a suprema ideia do bem, que est acima e
alm da essncia: no s confere valor s virtudes e existncia aos objetos, como
tambm ao intelecto a possibilidade de conhec-los (R, 509).
A prolongada educao dos filsofos-governantes comea por conhecimentos
tcnicos, ou cientficos, na acepo moderna da palavra. Estes no devem, porm, ser
buscados por suas aplicaes prticas, e sim pelas interrogaes tericas que propiciam.
O exame dos nmeros, mostrando a mesma coisa ao mesmo tempo como unidade ecomo ilimitada em sua multiplicidade, apresenta uma contradio que leva a alma a
indagar-se quanto unidade em si; o estudo da geometria necessrio por tratar daquilo
que existe sempre; o da astronomia, porque os astros servem de exemplo para o estudo
do invisvel, e assim por diante. Esse trabalho ingente constitui apenas, porm, o
preldio da ria; esta a dialtica, definida como a apreenso da essncia de cada coisa
apenas pela razo, at chegar ideia do bem, chegando assim ao limite do inteligvel (R,
525-532). A concepo do filsofo-legislador fundamenta-se, portanto, em sua
capacidade de olhar para a verdade absoluta, tomando-a sempre como ponto de
referncia, e contemplando-a com o maior rigor possvel, para s ento promulgar leis
aqui na terra sobre o belo, o justo, o bom. Assim, aprimora-se a concepo
intelectualista da virtude, que faz da inteligncia a condio ltima da moralidade,
atravs da qual se realiza o mais alto grau de inteligibilidade que comporta a nossa
natureza.10
1.2.2 Ordem das coisas e ordem do discurso no Grgias
10Trata-se, segundo Robin (1947), de saber ou ignorar a relao que liga sua atividade a um ideal
transcendente de perfeio.
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A distino do discurso falso e do discurso enganador um tema especialmente
presente na discusso sobre a justia ao longo do Grgias, onde a noo de uma ordem
natural que regula a justa conduta encontra, igualmente, importante lugar.
A retrica, admite quase ingenuamente Grgias no incio do dilogo, a mais beladas artes, porque ensina a produzir a persuaso nas almas, tornando os homens capazes
de dominar os outros (G, 453). Scrates, entretanto, distingue dois tipos de persuaso:
aquela que produz crenas, verdadeiras ou no, e aquela que produz conhecimentos,
necessariamente verdadeiros. O retrico produz apenas crenas: quando persuade o
tribunal e a assembleia, a multido enfim, quanto ao justo e o injusto, ele no sabe, e na
verdade no quer nem precisa saber nada sobre o que diz, encontrando-se a esse respeito
na mesma situao de seus ouvintes (G, 454-457).
A retrica, portanto, no Grgias, no considerada por Scrates uma arte, mas
apenas um savoir-faire, para produzir prazer e satisfao. As artes produzem um bem
estar verdadeiro, relacionado ao que bom, diferindo das prticas de lisonja e adulao,
que produzem um bem estar aparente, ligado ao que apenas agradvel. As primeiras
esto relacionadas a um conhecimento verdadeiro; as segundas dependem da simples
conjetura, carecendo de razo e no tendo noo dos seus meios e causas. Enquanto o
julgamento do corpo no permite distingui-las, assemelhando-se criana que prefere
um cozinheiro a um mdico, a alma pode faz-lo, encontrando na razo das coisas a sua
prpria razo (G, 463-465).
Clicles prope distinguir entre o que belo por natureza e o que belo segundo a
lei, afirmando que natureza e lei muitas vezes se opem. Apenas segundo a lei, feita
pelos fracos e numerosos em defesa dos seus interesses, feio cometer injustia; para a
natureza, o feio consiste em sofr-la, pela incapacidade de defender-se a si mesmo e a
seus amigos. Enquanto os fracos contentam-se em ter tanto quanto os outros, e portanto
consideram injusto que alguns tenham mais, os fortes seguem a justia da natureza, que
lhes ordena o domnio sobre os fracos; convm-lhes a felicidade, que consiste no gozo
de todos os bens e a satisfao de todos os apetites (G, 483-484).
Nos diversos argumentos que Scrates contrape aos de Clicles, destacaremos
aquele que situa a ordem como referncia para a justia, ou seja, como forma de tornar
melhor a obra que se faz. Tal referncia j atua no prprio discurso: quando o homem
visa o bem naquilo que diz, no fala ao acaso, mas sim fixando seus olhos sobre um
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objetivo preciso. Tambm o pintor e o arquiteto, em suas obras, propem-se a uma
ordem ao colocar cada coisa em seu lugar, ajustando-as entre si para obter um certo
arranjo (G, 503-504). No caso do corpo, o estado que resulta desta ordem a boa sade.
Quanto alma, as formas pela qual realiza a ordem que lhe prpria representam o que
se chama de legtimo, ou de lei; dos homens que a respeitam, se diz que tm uma
conduta ordenada, nisso consistindo a justia e a temperana (G, 504). Portanto,
divergindo da posio de Clicles segundo a qual lei e natureza se opem, numa relao
de poder em que ora vence a natureza, favorecendo os fortes, ora vence a lei como
reao a ela, protegendo os fracos, a legalidade a que se refere Scrates diz respeito
ordem intrnseca s coisas mesmas, ordem que se encontra tanto no bom discurso como
na boa casa, no bom barco, na boa alma, representando a lei e justificando a obedincia
que lhe devemos11.
Ora, esta ideia de uma legalidade intrnseca ao cosmos, que pode assegurar-nos o
acesso ao verdadeiro e sua identificao com o bem, necessita, para transmitir-se, de um
discurso racional, diferente daquele que nos dita a simples opinio. A necessidade de
constru-lo corresponde prpria ideia da ordem que ele deve refletir.
Quanto forma de faz-lo, Scrates nos ensina: no os discursos longos e artificiais,
que seduzem pelo efeito das belas frases, hipnotizando os ouvintes; e sim as perguntas erespostas empreendidas metodicamente, de tal forma que um dos interlocutores aceite
como verdadeiro o que sustenta o outro se no se mostra capaz de estabelecer o
contrrio. Contudo, observamos, ao longo da acirrada discusso do Grgias, apesar de
todos os argumentos usados por Scrates, no parece ao leitor que seus oponentes saiam
realmente convencidos. Segundo Polos, Grgias admitiu que o orador deve conhecer e
ensinar o justo e o injusto apenas por acanhamento, no ousando confessar o contrrio
(G, 461); para Clicles, Polos cometeu erro semelhante ao admitir que a injustia feia,
cedendo assim ao temor de perder a considerao dos homens (G, 482). Polos e
sobretudo Clicles algumas vezes se recusam a continuar, s o fazendo s instncias dos
demais, e de forma propositalmente zombeteira. Parece-lhes inconcebvel o que diz
Scrates, por irrefutveis que sejam seus argumentos: embora no convenha a Clicles
11Assim, a ordem que d seu nome ao cosmos do mesmo tipo daquela que d sua estrutura ao trabalhodo arteso e do artista; no se trata de uma realidade que duplica outra, e sim que sua fonte, observaSchuhl (1954). No Timeu, segundo o mesmo autor, a defesa de uma idia cara aospitagricos, qual seja, a
de que a natureza construda sobre uma armadura matemtica que compete ao sbio reencontrar, veioinspirar os mestres clssicos da cincia moderna, sobre os quais exerceu grande influncia, como o casode Galileu.
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sustentar o cinismo de suas opinies, isto no o impede de mant-las. Ou seja,
observamos, nem sempre o discurso capaz de transmitir de forma convincente para
todos a ordem que deveria refletir.12
Por outro lado, se o discurso mais rigoroso no convence necessariamente quanto verdade do ser que deve transmitir, ele pode talvez cri-la, fazendo-a valer como tal. A
cidade descrita naRepblica no se encontra em parte alguma da terra; embora possa ter
no cu o seu modelo para que a imitemos, por hora, admite Scrates, est fundada
unicamente em palavras. De qualquer forma, nada importa que a cidade exista em
algum lugar, ou venha a existir, porquanto por suas normas e pelas de mais nenhuma
outra, que ele [o homem de entendimento] pautar a sua conduta (R, 592). A fundao
em palavras, destarte, parece um alicerce suficientemente forte para fazer existir algo deessencial: a oferta de normas imutveis que devem pautam o comportamento humano.
1.2.3 Castigo e recompensa
Cabe destacar, a propsito da concepo platnica de justia, o lugar conferido ao
castigo. Considerado benfico ou teraputico para aquele que o sofre justamente, ele se
justifica no apenas nessa vida, mas tambm naquela que aguarda a alma aps a mortedo corpo.
Enquanto o mito do anel de Giges, naRepblica, quer mostrar que o homem injusto
mais feliz, desde que permanea impune, e Polos, no Grgias, afirma que ele s ser
infeliz se for castigado, Scrates sustenta, pelo contrrio, que ser menos infeliz se o for
(G, 472-4). Sendo justo sofrer pena em virtude de uma falta, age justamente aquele que
pune, e sofre tambm justamente quem a recebe. O homem punido com razo da aufere
vantagem, pois sua alma liberta-se da injustia. Assim como a medicina livra o corpo dadoena, embora de maneira dolorosa, tambm o castigo livra a alma atravs da dor. No
h infelicidade maior do que aquela trazida pela injustia para a alma daquele que a
comete: eis por qu o tirano Arquilau, longe de ser o mais feliz dos homens por sua
impunidade aps os crimes cometidos, como pretendem os interlocutores de Scrates,
seria antes o mais infeliz deles (G, 476-79).
12
Como assinala Chatlet (1974), o discurso integralmente justificado deve corresponder a umaorganizao das essncias, de tal forma que no seja apenas uma ordem de razes, mas tambm umaordem do ser.
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Deve-se sublinhar ainda o lugar ocupado pela imortalidade da alma e as punies e
recompensas recebidas na vida aps a morte na fundamentao da exigncia de uma
vida virtuosa. Esse lugar varia em diferentes dilogos, adquirindo importncia
crescente. Podemos v-lo claramente na trilogia relativa condenao de Scrates, na
Apologia; sua aceitao da sentena, no Crton; e sua morte, no Fdon. AApologia
mostra-nos Scrates diante do tribunal, apresentando como pauta de sua conduta o
seguimento das ordens divinas. No Crton, justifica sua aceitao da sentena pela
obedincia s leis da cidade. Apenas no Fdon, porm que se encerra com o
cumprimento da pena de morte, apresenta-se um Scrates cujo destemor diante da morte
explica-se por sua convico quanto imortalidade da alma.
Scrates afirma sua crena numa vida depois da morte, conforme reza a tradio.Contudo, a essa crena, busca somar uma demonstrao racional, atravs das provas da
imortalidade da alma. No se pretende recapitul-las aqui. Basta lembrar que tal
imortalidade afirmada, no Fdon, aps o estabelecimento da distino entre as duas
classes de realidade, a invisvel e a invisvel. A importncia do cuidado da alma
encontra aqui justificao por sua pertinncia realidade imutvel, qual se relaciona
sua essncia imortal. EmA Repblica, a imortalidade da alma reafirmada, e mais uma
vez empreendida a sua demonstrao. Ao faz-lo, Scrates considera j estabelecidoque a justia em si mesma a coisa melhor para a alma,