Download pdf - Acerca de Storytelling

Transcript

J. D. Sunwolf, PhD Departamento de Comunicaes, Universidade Santa Clara. E-mail: [email protected]

Na frica Ocidental, quando uma pessoa da aldeia adoece, o curandeiro pergunta-lhe: Quando foi a ltima vez que voc cantou? Quando foi a ltima vez que voc danou? Quando foi a ltima vez que voc contou uma histria?. Cox1

Agora, s vezes Deus cansa de deixar as pessoas felizes e sempre mistura um pouco de azar com a boa sorte, como a chuva com o sol. A rainha sentiu-se mal, mas nem os doutos mdicos nem os curandeiros podiam fazer qualquer coisa por ela. Donkeyskin, de uma lenda popular oral

HOmO nArrAns: HISTRIAS DA MENTE E DA ALMAEntre o povo, que sabe dessas coisas, diz-se que o primeiro contador de histrias, noite, se aproximou dos deuses e ficou ouvindo-os falar enquanto dormiam assim, todos os contos que o contador colecionou continham o flego dos deuses. Seres humanos so criaturas que contam histrias. De fato, estes foram descritos por MacIntyre2 como animais que contam histrias. As pessoas tm necessidade de possuir smbolos que as ajudem a entender e a interpretar o mundo. Fisher3, um estudioso que colocou os sistemas de narrativa em primeiro plano para a compreenso da comunicao, sugeriu que o ser humano pode ser mais bem entendido como homo narrans, pois organizamos nossas experincias em histrias que tm tramas, personagens centrais e seqncias de ao que

artigo internacional* O ato de contar hist rias. [N.E.] 1. COx, A. A journey down the healing path through story (Uma viagem pelo caminho curativo da hist ria). Diving in the Moon, 1, 1023, 2000. 2. MacINTyRE, A. After virtue: a study in moral theory (Aps a virtude: um estudo em teoria moral). 2. ed. Notre Dame: Uni ver sity of Notre Dame Press, Paris, 1981. 3. FISHER, W. R. The narra tive paradigm: in

Era uma vez, para a alma: uma reviso dos efeitos do storytelling* nas tradies religiosas

305

comunicao

& educao

Ano

X

Nmero

3

set/dez 2005

the beginning. journal of Commu nication, 35(4), 7489, 1985. Id. Human communication as narra tion: toward a philosophy of reason, value, and ac tion (Comunicao huma na como narrao: para uma filosofia da razo, valor e ao). Columbia: Press University of South Carolina, 1987. 4. FISHER, W. R. The narra tive, op. cit. 5. SARBIN, T. R. Narrative psychology: the storied nature of human conduct (Psicologia narrativa: a natureza da conduta hu mana contada). New york: Praeger, 1986. 6. SUNWOLF, J. D. The pedagogical and per suasive effects of Native American lesson stories, African dilemma tales, and Sufi wisdom tales (Os efei tos pedaggicos e persua sivos de histrias morali zantes americanas nativas, contos de dilema africanos e contos de sabedoria Sufi). Howard journal of Communications, 10, 4771, 1999. 7. Id. Grief tales: the the rapeutic power of folk tales to heal bereavement and loss. (Contos de tris teza: o poder teraputico de contos folclricos para curar luto e perda). Diving in the Moon, Honoring Story, Facilitating Healing, 4, 3642, 2003. 8. CAMPBELL, A. F., sj. The storytellers role: reported story and biblical text (O papel do contador de histrias: histria contada e texto bblico). The Catholic Biblical Quarterly, v. 64, 427441, 2002. 9. NIDITH, S. Oral world and written word: ancient israelite literature (Mundo oral e palavra escrita: literatura israelita antiga). Louisville, Westminster: John knox Press, 1996. 10. CANDA, E. R. Spiri tuality, religious diversity, and social work practice

trazem lies implcitas e explcitas. Se, como argumentou Fisher, as pessoas buscam instintivamente uma lgica narrativa, e todos os seres humanos so em essncia contadores de histrias, ento compartilh-las uma ferramenta poderosa para ajudar a conferir sentido a valores espirituais, dividir essas crenas com outros e, assim, entender profundamente suas prprias mentes e almas. As histrias esto entre nossas unidades mais bsicas de comunicao. Somos socializados atravs da narratividade, embora possamos ser educados por meio da racionalidade 4. O papel das histrias, sob uma perspectiva social, foi analisado em campos to diversos como psicologia, sociolingstica, cincias polticas, histria, antropologia, direito e comunicaes. Os seres humanos pensam, percebem, imaginam e fazem escolhas morais de acordo com as estruturas narrativas5. Ainda que os efeitos de compartilhar narrativas visando transmisso de cultura entre crianas em ambientes educacionais e entre aqueles que esto doentes tenham sido bem documentados, pouca ateno acadmica direciona-se questo de como ouvir narrativas afeta os membros de tradies e comunidades espirituais. Os prprios contadores de histrias, entretanto, h muito tempo reconhecem o poder de as narrativas transportarem os ouvintes do momento da dor a um e todos viveram felizes para sempre6, com poderosos relatos provocando intensos flashes de introspeco para os ouvintes com necessidades, fsicas ou espirituais. Desespero, trauma, doenas e luto criam florestas amedrontantes de dor, com trilhas desconhecidas; em tal contexto, ouvir histrias, para aqueles que sofrem, pode significar novos caminhos para sair da escurido7. Os contos orais vieram antes dos textos escritos em todas as tradies religiosas. H muito reconhecido na espiritualidade judeo-crist, por exemplo, que os prprios textos sagrados originaram-se de histrias orais que traziam no apenas proezas, mas tambm os ensinamentos tradicionais8, uma vez que as narrativas maiores (o Pentateuco ou as histrias deuteronmicas, isto , aquelas dos cinco primeiros livros do Antigo Testamento atribudos a Moiss: Gnesis, xodo, Levtico, Nmeros e Deuteronmio) careciam da estrutura enxuta das histrias orais do dia-a-dia, a partir da qual esses picos foram compostos. Um histrico maior sobre as tradies orais e escritas, e o efeito da ausncia de aptido literria geral, fornecido por Nidith9. Para iniciar a discusso, sero esclarecidos trs termos: espiritualidade, f e religio. O termo espiritualidade tem diversos significados, muitas vezes utilizados erroneamente, como sinnimos de religio ou, pejorativamente, como sinnimos de religies no-tradicionais e no-institucionalizadas (experincias da Nova Era, por exemplo). Aqui, utilizaremos vrias definies teis de praticantes externos s organizaes religiosas. Canda10 define espiritualidade como a busca humana pelo significado pessoal e pelos relacionamentos mutuamente recompensadores entre pessoas, o ambiente no-humano e, para alguns, Deus. J Bullis11 a conceitualiza como os sentimentos e experincias internas de proximidade com

306

Era uma vez, para a alma J. D. Sunwolf

um poder superior [...] como o relacionamento da pessoa humana com algo ou algum que a transcende, sugerindo que a espiritualidade um estado de conscincia focado divinamente, mas alterado. Ao discutir a necessidade essencial de aplicar a espiritualidade a um trabalho social compassivo, Angell, Dennis e Dumain12 argumentam que esta se resume em uma busca ou necessidade intrnseca da humanidade, e tecida na resposta da pessoa sua prpria percepo de Deus. A espiritualidade concebida aqui, de modo amplo, como uma busca dinmica e contnua no ntimo das pessoas pelo significado de sua relao particular com um poder divino superior. Como a f o tema central das histrias contadas nas tradies espirituais, torna-se til analisar seu significado geral. Dentro da tradio judeo-crist, a Carta aos Hebreus declara que f ter certeza daquilo que esperamos e daquilo que no vemos (11,1). As pessoas passam a acreditar na provvel ocorrncia ou existncia de eventos13. Dos trs termos, religio parece ser o mais fcil de definir, pois, de modo geral, aceita-se que ela se manifesta em uma associao daqueles que compartilham valores e crenas. H uma argumentao geral, tanto dentro quanto fora de certas entidades religiosas, de que religio um grupo de fiis que, dentro de uma organizao ou instituio, aceita um conjunto comum de crenas, prticas e rituais relacionados aos interesses espirituais e s questes ticas14. Como resultado, a espiritualidade constitui uma prtica e um sistema de crena menos doutrinais, ritualizados e, talvez, menos tangveis. Aqui, uma interseo oferecida para enquadrar a discusso acerca de histrias; d-se ateno ao uso de relatos orais com vistas a gerar a f nas instituies religiosas. Minha posio a de que as pessoas precisam de espiritualidade para dar sentido ao mundo, guiar suas escolhas sobre o que crer ou rejeitar, determinar o que valorizar e sinalizar opes comportamentais. As religies oferecem estrutura, apoio e alicerces especficos para a necessidade espiritual. Storytelling uma ferramenta vital para satisfazer essas necessidades e metas. Histrias orais, de fato, podem ser um recurso mpar para alimentar o esprito, pois produzem impacto emocional. Um conto poderoso sempre fundamentado, no na trama, mas na emoo, que a oralidade da narrativa destaca. A emoo, por sua vez, o local exclusivo de morada da alma. O modo pelo qual a emoo de um conto comunicada, porm, torna-se mais difcil de compreender. A investigao da trama emocional de uma histria envolve prestar ateno sua essncia. Harold Scheub, professor de humanidades e de lngua e literatura africana Evje-Bacom da Universidade de Wisconsin, em Madison, colecionou contos orais ao caminhar mais de seis mil milhas15 pela frica do Sul, Suazilndia, Zimbbue e Lesoto. Ele era motivado pela pergunta: Qual a essncia da histria?. Como o contador de histrias transmite significado? Aprendeu isso por meio de Nongenile Masithathu Zenani, uma mulher que, dentre esses contadores de histrias, admitiu que freqentemente se via em uma batalha entre a tradio e as tendncias sociais contemporneas. Ela ex-

(Espiritualidade, diversida de religiosa e prtica de assistncia social). Social Casework, 69(4), 238247, 1988. 11. BULLIS, R. k. Spiri tua lity in social work practice (Espiritualidade em prtica de assistncia social). Washington, DC: Taylor & Francis, 1996. 12. ANGELL, G. B.; DEN NIS, B. G.; DUMAIN, L. E. Spirituality, resilience, and narrative: coping with parental death (Espiritua lidade, resilincia e narra tiva: lidando com morte parental). Families in So ciety, 79, 615630, 1998. 13. Ibid. 14. Ibid. kRIPPNER, S.; WELSH, P. Spiritual dimen sions of healing (Dimenses espirituais da cura). New york: Irvington Publishers, 1996. 15. Equivalente a 9.655,8 quilmetros.

307

comunicao

& educao

Ano

X

Nmero

3

set/dez 2005

plicou como entendia a parte mais profunda da histria: Contar histrias uma juno sensorial de imagens e idias, um processo de recriar o passado nos termos do presente16.

ESTRUTURAS DE HISTRIASHistria 1. uma narrativa, seja verdadeira ou fictcia. 2. um jeito de saber e lembrar informaes; uma forma ou padro no qual informaes podem ser organizadas e experincias, preservadas. 3. uma ordem antiga e natural da mente. 4. fragmentos isolados e desconexos da experincia humana ligados em um todo significativo.

16. SCHEUB, H. Story (Histria). Madison, W1: University of Wisconsin Press, 1998. 17. CAVANAUGH, B. More sowers seeds: second planting (Mais sementes do semeador: segunda plantao). New york: Pau list Press, 1992. 18. SMITH, P., apud SCHEUB, H. Story, op. cit. 19. SCHUETZ, J. Story telling and preaching: a case study of Aimee Sem ple McPherson (Contando histrias e orando: estudo de caso de Aimee Semple McPherson). Religious Communication Today, 9, 2836, 1986.

Embora a definio acima de histria seja, de fato, minha prpria mescla de vrias perspectivas teis, ela nos convida a atentar para as estruturas das histrias. Ainda que acadmicos tenham prestado ateno limitada s suas estruturas dentro das tradies espirituais, algumas descobertas apareceram. Quando se pergunta ao padre Brian Cavanaugh onde ele encontra todas suas histrias, ele sempre responde com simplicidade Como que voc no as percebe?17. Contos, para aqueles que os contam, esto em todos os lugares, em diversas formas. Homilias, isto , pregaes em estilo familiar feitas na tradio crist, geralmente incluem relatos recontados a partir do Antigo ou Novo Testamentos; narrativas autobiogrficas sobre sua prpria converso, compromissos ou sobre seus ministrios; e histrias de outros integrantes da congregao. Nossa distino inicial entre espiritualidade e religio til aqui, pois os contadores de histrias h muito reconhecem que no necessrio compartilhar de uma religio para que uma pessoa seja profundamente tocada por seus contos: No me considero uma pessoa muito religiosa, mas o Antigo Testamento realmente me atrai bem mais do que o Novo e sempre me pareceu que aqueles meus amigos alemes de minha infncia haviam sado diretamente do Antigo Testamento. O campo, os rebanhos, a vida patriarcal, as viagens lentas, a f simples das pessoas e a influncia da Bblia em seu cotidiano, tudo isso teve um forte impacto sobre mim e essa impresso nunca se apagou18. Essas histrias tm um apelo muito grande em virtude de seus temas e personagens. Os temas so bastante abrangentes e incluem arrependimento, perdo, ressurreio e necessidade de justia social19. Alm disso, as prprias estruturas das histrias envolvem aspectos temticos (isto , o certo e o errado, o sofrimento, a amizade com Deus e com os outros, a imortalidade e o papel da Igreja). Dentro das tradies judeo-crists, at mesmo histrias familiares so contadas denominacionalmente, ou seja, de modo diferente (um rabino contar uma histria sobre Moiss, Deus, ou sobre a sara ardente de maneira diversa de um bispo anglicano, por exemplo). A repetio do tema cria uma

308

Era uma vez, para a alma J. D. Sunwolf

estrutura que tem poder de persuaso. As idias ou conjuntos de imagens lingsticas recorrentes nos contos contrastam com os temas. Em vez de enfatizar um ponto moral, as idias so padres significativos de imagens que elevam o apelo narrativo, misturando-se de tal forma que as imagens se sucedem at que, enfim, elas conduzem o ouvinte ao significado da histria. O mesmo pode ocorrer com os personagens. A distino judaica entre halakah e haggadah ajuda a jogar luz no formato distinto de histria. Halakah uma reflexo ponderada sobre a lei religiosa, de natureza abstrata. J haggadah o caminho da metfora e das figuras20. Faa uma pergunta a um rabino, e voc ouvir uma histria. Os evangelhos, da Bblia, so de natureza hagdica. O linguajar utilizado no storytelling dentro de contextos religiosos geralmente deriva da linguagem coloquial, ou das palavras que as pessoas empregam em sua vida diria. Os contadores de histrias freqentemente falam eu ou ns para dar sentido ao conto e aproxim-lo das pessoas. Eles salpicam palavras vvidas em toda a narrativa a fim de retratar detalhes cnicos. Schuetz21 descreve como fazer sermes envolve dramatizao e interpretao de papis na tentativa de persuadir a audincia tanto pelo contedo quanto pelo estilo. Nas histrias, ambos os aspectos verbais e no-verbais da comunicao esto presentes e so utilizados. As fbulas so narrativas curtas que dependem quase exclusivamente do uso de animais como personagens. Como resultado, focam nossa ateno no comportamento e nos dilemas universais da vida em vez de em determinadas pessoas. Revisadas e adotadas pela cultura que foi exposta a elas, as fbulas apareceram amplamente na literatura, em geral com um imperativo moral explcita ou implicitamente revelado no final do conto. Embora no gostasse de moralizaes, Martin Luther King22 as empregou em seus sermes e ensinamentos, pois pensava que elas continham sabedoria em um formato conciso e simples. Certa vez escreveu: Depois da Bblia, os escritos de Cato e de Esopo so os melhores; melhores do que todas as opinies dos filsofos e juristas23. Como um conto de sabedoria, a fbula relaciona-se ao provrbio, embora possa ter uma trama maior; alguns se referem a ela como provrbios estendidos. Uma fbula, por exemplo, mostra como pessoas vs e gananciosas acabam sofrendo as conseqncias de suas escolhas tolas; demonstra tambm que crianas que mentem freqentemente acabam sendo ignoradas e devoradas. J as parbolas, outra forma de estrutura de histrias, vm sendo usadas como recurso popular a fim de contar histrias espirituais. William Bausch24, um padre da diocese de Treton, Nova Jrsei, um defensor do uso do storytelling pelos pregadores em todo o mundo. Ele enfatiza que as parbolas contm sabedoria, e cita Mateus 13,34: Jesus disse s multides todas essas coisas em parbolas; sem uma parbola, ele nada dizia a elas. Bausch situa o dilema do contar histrias e da espiritualidade bem no mago dos efeitos de mdia, citando a preocupao de George Gebner, do

20. WHITE, W. R. Stories for telling: a treasury for Christian storytellers (Histrias por contar: um tesouro para contadores de histrias cristos). Min neapolis, MN: Augsburg Publishing House, 1986. p. 17. 21. SCHUETZ, J. Oscar Ro mero: archbishop of the people (Oscar Romero: arcebispo do povo). Re ligious Communication Today, 7, 1926, 1984. 22. Martin Luther king (Ju nior) foi pastor evanglico e ativista poltica america no. Nasceu em Atlanta, em 15 de janeiro de 1929. Pertencente Igreja Ba tista, tornouse um dos mais importantes lderes ativis tas pelos direitos cvicos e do movimento negro nos Estados Unidos e no mundo, atravs de uma campanha de no violncia e de amor para com o prximo. Recebeu o Prmio Nobel da Paz em 1964. Foi assassinado em Memphis, Alabama, em 4 de abril de 1968, por um homem branco. Disponvel em: , acesso em 16 de julho de 2005, s 18h43. 23. WHITE, W. R. Stories for telling, op. cit., p. 21. 24. BAUSCH, W. J. A world of stories for prea chers and teachers (Um mundo de histrias para

309

comunicao

& educao

Ano

X

Nmero

3

set/dez 2005

Centro Annenberg para Estudos de Mdia na Universidade da Pensilvnia, o qual observou que, pela primeira vez na histria, os principais contos que as crianas aprendem no vm de seus familiares, mas das empresas globais de mdia com fins lucrativos25. Buscando corrigir esse desequilbrio, Bausch colecionou mais de 350 contos, para pregadores e professores, destinados a julgar, provocar e estimular a imaginao espiritual; a seleo deles dependeu, em parte, da estrutura de suas narrativas (curtas, mas profundas). Nada da recente proliferao de histrias bonitinhas, j que Bausch argumenta que estas perpetuam a superficialidade da mdia (bolinhos literrios, cheios de acar mas pouco nutritivos)26. William White27, um pastor luterano de Michigan, elaborou um guia para o uso de histrias em igrejas. Ele apontava h algumas dcadas que a revoluo da comunicao trazida pelo advento da televiso, alteraria dramaticamente as expectativas dos fiis para com seus pregadores. Chega de leituras no plpito; as pessoas nos bancos da igreja agora esperam contato visual, bem como intelectual, em uma linguagem vvida, concreta e clara. Alm disso, a televiso, aberta ou a cabo, agora d mais opes espirituais s pessoas: o pastor em casa, o padre disposio, ou um dos muitos rostos sorridentes (com a orquestra completa e um coral vestido a carter) no aparelho de televiso, todos os domingos pela manh batalhas de histrias, de certo modo, pois a televiso um meio que conta histrias. White argumenta que a televiso transformou a leitura de um sermo de uma pequena infrao em um crime doloso. Os novos meios podem nos forar a prestar ainda mais ateno, mas o storytelling sempre foi tanto um instrumento de f quanto uma poderosa ferramenta de comunicao.

EFEITOS DE OUVIR HISTRIASHouve uma vez um mercador cuja mulher estava doente e, ento, quando ela sentiu a morte se aproximar, pediu nica filha que se aproximasse de seu leito. Urgentemente, com uma voz cheia de amor, ela disse a sua filha, Seja devota e boa, e Deus sempre cuidar de voc. E para sempre olharei para voc do cu, e assim voc nunca ficar sem mim. Ento, fechou os olhos e morreu. A filha visitava o tmulo de sua me todos os dias e chorava amargamente. Aschenputtelpastores e professores). Mystic, CT: TwentyThird Publications, 1999. 25. Ibid., p. 1. 26. Ibid., p. 2. 27. WHITE, W. R. Stories for telling, op. cit., p. 15.

(Uma verso antiga de um conto do tipo Cinderela, adaptada pelo autor a partir de muitas fontes. Originalmente, um conto folclrico coletado na Alemanha por Jacob e Wilhelm Grimm, os irmos Grimm.)

As palavras mgicas Era uma vez..., que muitas vezes iniciam um conto folclrico ou de fadas tradicional, induzem um transe relaxante, familiar e

310

Era uma vez, para a alma J. D. Sunwolf

leve. De fato, comumente diz-se que se mantm uma audincia enfeitiada ao descrever o estado em que as pessoas ficam quando ouvem um relato bem contado e psiclogos j afirmaram que performances de contadores de histrias contm muitas das condies necessrias para induzir transes28. Um psicoterapeuta, tambm contador de histrias, descreveu tais transes como um estado de conscincia voltado para dentro da pessoa, de tal forma que os olhos dos ouvintes podem estar no contador de histrias, porm suas conscincias esto voltadas para dentro delas mesmas29 . Benson30 descreve a Resposta Relaxante, relacionando dados mdicos ocidentais com prticas religiosas orientais. Quando os ouvintes encontram-se relaxados, esto abertos para uma reteno mais ativa daquilo que est sendo dito, ficam menos defensivos e os processos internos de seus prprios corpos maravilhosos comeam a curar (a presso arterial cai, as dores diminuem, a respirao torna-se levemente rtmica, os batimentos cardacos diminuem e encerra-se a produo dos hormnios do estresse). O transe de ouvir histrias foi identificado pela primeira vez por Stallings31, que tinha interesse na biofisiologia de adultos durante a narrao de histrias. O efeito do transe foi estudado posteriormente por Sturm32. Adultos ouvintes muitas vezes reconheciam ter percepo de seus prprios estados profundamente alterados de conscincia e at mesmo uma sensao de experimentar a histria de fico como realidade, identificando-se com os personagens, tramas ou papis (No estava mais sentado em uma tenda ouvindo algum contar uma histria. Eu estava naquela mata, vi aqueles animais)33. Contos folclricos e de fadas so acompanhados por indues familiares para dar boas-vindas ao transe curador: Era uma noite escura e chuvosa... Era uma vez, em uma terra muito distante... Na poca em que a mgica ainda existia, havia um rei... Era uma vez... O conto falado, em si, d continuidade ao transe, e no apenas reproduz o conto literrio: repeties, ritmos de voz, silncios, sussurros, todos conduzem a um relaxamento ainda mais profundo. Rooks34 argumenta que, quando nosso mundo est cheio de pesar e dor, enxergar a ns mesmos claramente impossvel, j que um nevoeiro cerca nossas mentes. Como as histrias tm a habilidade de nos surpreender, elas penetram em nossa alma, sem a necessidade de aceitao ou conscincia imediata. Entretanto, Rooks destaca o efeito de ouvir uma histria quando estamos sofrendo: a histria no nos julga. Uma boa narrativa aquela que podemos aceitar ou rejeitar e, paradoxalmente, tal liberdade torna mais provvel a aceitao. Daniel Taylor, um professor de ingls de Bethel College, em Minnesota, escreve que as pessoas hoje esto confusas sobre quem so, por que esto aqui e o que devem fazer dvidas que tradicionalmente foram mais bem respondidas por

28. SUNWOLF, J. D.; FREy, L R.; kERNEN, L. R. Storyprescriptions: hea ling effects of storytelling and storylistening in the practice of medicine (Efei tos curativos da narrao e audio de histrias na prtica de medicina). In: HARTER, L. M.; JAPP, P. M.; BECK, C. S. (Eds.). Constructing our health: the implications of narra tive for enacting illness and wellness (As implica es das narrativas por contar e falar de doenas). Mahwah, NJ: Lawrence Erlbaum. No prelo. 29. MARTIN, S. Altered states (Estados alterados). Storytelling Magazine, 5, 2023, 1993. 30. BENSON, H. The rela xation response (A res posta de relaxamento). New york: Avon, 1975. 31. STALLINGS, F. The web of silence: the story listening trance (A teia de silncio: o transe de ouvir histrias). National Story telling journal, 5,619, 1988. 32. STURM, B. W. The story listening trance experience (A experincia do transe ao ouvir hist ria). journal of American Folklore, 113, 287304, 2000. 33. Ibid., p. 290. 34. ROOkS, D. Spinning gold out of straw: how stories heal (Separando ouro de palha: como hist rias curam). St. Augustine, FL: Salt Run Press, 2001.

311

comunicao

& educao

Ano

X

Nmero

3

set/dez 2005

35. TAyLOR, D. The he aling power of stories: creating yourself through the stories of your Iife (O poder curativo de hist rias: criando pelas histrias de sua vida). New york: Doubleday, 1996. 36. TAyLOR, S. E. et al. Storytelling and coping with stressful events (Con tando histrias e lidando com eventos estressantes). journal of Applied Social Pychology, 23, 703733, 1993. 37. Ibid. 38. WHITE, W. R. Stories for telling, op. cit., p. 16.

histrias35. Em um sentido muito real, Taylor argumenta que o ato de contar histrias ajuda as pessoas a perceber que so personagens de uma histria maior e que elas a compartilham com um mundo de outros personagens. Ajud-las a notar seus papis em uma histria mais ampla tira-as do foco estreito em si mesmas, estimulando-as gentilmente a se concentrar em suas comunidades e nas histrias tecidas e compartilhadas que as cercam. No apenas o contar histrias, mas tambm ouvi-las parece ter importantes efeitos, documentados por acadmicos interessados nos resultados comunicativos do storytelling. Taylor, Aspinwall, Giuliano, Dakof e Reardon36 conduziram trs estudos para explorar os benefcios e as limitaes das histrias de superao. Curiosamente, pacientes de cncer reportaram que narraes positivas sobre outros pacientes ajudavam mais do que as negativas, ainda que fosse mais comum as pessoas contarem-lhes as negativas (dois teros eram sobre pacientes que haviam morrido ou reagido mal ao cncer). A origem de um relato pode influenciar a maneira pela qual o ouvinte o entende. Taylor e seus colegas postularam que as histrias mais efetivas podem derivar de outras semelhantes ou de especialistas. Quando os pesquisadores manipularam a valncia (positivo ou negativo) e a origem das histrias contadas a estudantes de faculdades prestes a fazer suas provas bimestrais, aquelas com finais positivos e as contadas por especialistas foram consideradas de forma mais satisfatria do que as negativas e aquelas contadas por no-especialistas37. No terceiro estudo, trs grupos de estudantes ouviram histrias sobre como outros colegas se ajustaram mal faculdade, sobre nveis mdios de ajuste, ou de grande sucesso; havia duas outras condies: de histrias informativas, contendo dados relevantes de como se poderia melhorar o ajuste vida na faculdade, ou de histria no-informativa. As histrias negativas fizeram os alunos sentirem-se com sorte em comparao a outros, enquanto as positivas foram entendidas como se oferecessem um modelo melhor e uma sensao de esperana. Isso sugere que contar histrias dentro de comunidades espirituais pode ter efeitos poderosos para ajudar seus membros a lidarem com eventos dolorosos e desafios. A histria evoca uma resposta mais poderosa de f do que doutrinas e conceitos.38

RX: REMDIO PARA A ALMA, PLULAS ESPIRITUAISH muito, muito tempo atrs, um homem conhecido como Baal Shem Tov foi ao lugar mais secreto da floresta. Conta-se que, nesse local secreto, ele acendeu uma fogueira sagrada, recitou uma prece antiga e pronunciou um nome sagrado. Naquele momento, a Esperana ficou mais forte no mundo. Mas acontece que, na gerao seguinte, seu sucessor sabia apenas onde ficava o lugar, como acender a fogueira e conhecia a prece. Ainda assim, isso era suficiente para preservar a Esperana. Cada gerao dali por diante perdeu mais uma das fagulhas do conhecimento

312

Era uma vez, para a alma J. D. Sunwolf

at que, por fim, nada sobrou, exceto a histria. Mas contar a histria ainda era suficiente. Doug Lipman39, adaptado de um conto oral

Quando a esperana o remdio de que se precisa para um esprito ferido, histrias so a receita certa. Um mtodo prescritivo de cont-las ilumina o poder de narrar cara a cara para alimentar ou curar as mentes e as almas de vrias maneiras. Contar e ouvir histrias no contexto das tradies espirituais pode agir de diversas maneiras dinmicas. Um modelo funcional de histrias oferecido na Figura 1, que sugere que os contos narrados e ouvidos dentro de vrios contextos espirituais podem funcionar como (a) uma maneira de conectar diferentes pessoas (narrativas relacionais), (b) um modo de aprender (narrativas pedaggicas), (c) uma forma de criar (narrativas heursticas), ou (d) um jeito de lembrar (narrativas histricas), ou (e) um meio de visualizar o futuro (narrativas visionrias). Esse modelo convida-nos a reconhecer ainda mais a natureza permevel dessas categorias, j que qualquer histria contada pode prover vrias funes sobrepostas a um ou mais ouvintes ou contadores. Um mtodo comunicativo funcional para pensar sobre o papel do contar histrias em relacionamentos foi sugerido pela primeira vez por Sunwolf e Frey40. Estes descreveram como o modo interpessoal de contar histrias, cara a cara, ajuda os contadores e suas audincias a construir o prprio eu (Quem sou eu?); a tecer a comunidade (Quem somos ns?); a ordenar experincias; a representar a realidade; a achar o sentido de eventos vividos; a compartilhar o conhecimento; ou a influenciar valores, crenas e aes uns dos outros. Este artigo utilizar as categorias desse modelo de histria funcional como um sistema para apresentar o conhecimento que examina os efeitos da narrativa oral, incluindo o conhecimento da perspectiva de vrias tradies espirituais.

Ponte: uma maneira de conectar

Sementes: um modo de aprender

Visionrio: um meio de visualizar o futuro

39. LIPMAN, D. The soul of hope: an oral perfor mance (A esperana da alma: um desempenho oral). Schenectedy, New york, 1996. Comunicao pessoal. 40. SUNWOLF, J. D.; FREy, L. R. Storytelling: the po wer of narrative commu nication and interpretation (Contar histrias: poder de comunicao narra tiva e interpretao). In: ROBINSON, W. P.; GILES, H. (Eds.). The new han dbook of language and social psychology (O novo manual de linguagem e psicologia social). London: Wiley, 2001. p. 119135.

HistriaFerramenta: uma forma de criar

lbum de recordaes: um jeito de lembrar

Figura 1. Modelo de cinco funes de histrias orais para contadores e ouvintes. Nota: As linhas pontilhadas entre os tipos de histria simbolizam a natureza permevel de cada tipo (misturando um com o outro e cruzando os limites). Modelo expandido e adaptado de Sunwolf, Frey e Karnen (no prelo).

313

comunicao

& educao

Ano

X

Nmero

3

set/dez 2005

Ponte de histrias: uma maneira de conectarAssim como uma ponte, uma histria representa um paradoxo valioso. Qualquer conto pode unir ou separar as pessoas. As histrias tm a capacidade paradoxal de ferir e curar. Todos ns sentimos, em nossas vidas pessoais e profissionais, o impacto das narrativas que ferem: fofocas, difamao ou rumores distorcidos causam efeitos devastadores na sade emocional e fsica das vtimas do lado escuro do contar histrias. Na tradio judaica, os antigos rabinos cunharam um termo para descrever o poder das histrias negativas, lashon hara, que significa falar com uma lngua m. Limites foram impostos no sentido de quais histrias poderiam ser repetidas, pois se pensava que o prprio ato de cont-las daria peso s suas palavras41. Esse poder danificador contrabalanado com o poder de cura de algumas delas. Meade42, terapeuta que treina outros terapeutas no uso de histrias de cura, acredita que novos significados so criados cada vez que uma histria contada, tanto para os ouvintes quanto para os contadores. As pessoas sempre contam histrias sobre si mesmas, fazendo poderosas pontes de partilha com os outros. Witherell, Tran e Othus43 sugerem que a narrao oral permite que a audincia se engaje em um surto de empatia que a liga a relacionamentos mais amplos, os quais constroem pontes que atravessam as culturas. Scheibe44 descobriu que, para algumas pessoas, as histrias que construram para suas vidas (e que compartilham com outros) de fato parecem terminar antes de suas vidas biolgicas. Aqueles que no conseguem enxergar mais histria em suas vidas deixam de viver por completo.

41. STONE, R. The hea ling art of storytelling: a sacred journey of personal discovery (A arte curativa da narrao: uma viagem sagrada da descoberta pessoal). New york: Hype rion, 1996. 42. MEADE, E. H. Tell it by heart: women and the healing power of a story (Fale de cor: as mulheres e o poder curativo de uma histria). Chicago: Open Court, 1995. 43. WITHRELL, C. S.; TRAN, H. T.; OTHUS, J. Narrative landscapes and the moral imagination: taking the story to heart (Paisagens narrativas e a imaginao moral: levan do a histria ao corao). In: McEWAN, H.; EGAN, k. (Eds.). Narrative in teaching, learning, and research (Ensino, apren dizagem e pesquisa com narrativa). New york: Tea chers College Press, 1995. p. 3949. 44. SCHEIBE, k. E. Self narratives and adventure (Autonarrativas e aventu ra). In: SARBIN, T. R. (Ed.). Narrative psychology: the storied nature of human conduct (Psicologia narra tiva: a natureza da conduta humana contada). New york: Praeger, 1986

sementes de histrias: um modo de aprenderEra uma vez uma criana que ganhou um presente diferente. Bagd inteira comemorou o nascimento do filho do sulto e presentes caros foram comprados por todos os nobres, sacerdotes e sbios. Um jovem sbio foi convidado para ir s comemoraes, mas foi de mos vazias. Ele curvou-se diante do sulto, falando em baixo tom: Hoje o jovem prncipe recebeu muitos tesouros preciosos, caros alm da imaginao. Aqui est meu humilde presente: no momento em que ele tiver idade suficiente para ouvir, e at que se torne adulto, virei ao palcio todos os dias e contarei histrias para ele. O jovem sbio manteve sua palavra e um dia o prncipe tornou-se sulto. Ele ficou famoso por sua sabedoria. At hoje, uma inscrio em um pergaminho em Bagd diz apenas: Foi por causa da semente plantada pelos contos.

As histrias respondem tanto s perguntas por que? quanto s por que no?, permitindo que os ouvintes aprendam atravs delas. Os estudos sobre os processos mediante os quais o contar histrias facilita o aprendizado lanam luz, j no incio, em como seu uso dentro das tradies religiosas , freqente-

314

Era uma vez, para a alma J. D. Sunwolf

mente, o de pedagogia. Livo e Rietz45 argumentam que na narrativa oral nos apresentada uma verdade sobre quem somos e mesmo sobre por que somos quem somos, pois o conto apropria-se do comum e associa-o existncia humana, revelando a importncia do trivial. De fato, estudiosos h muito concordam que sistemas de histrias ajudam-nos a organizar as experincias e a aprender a partir delas; Polkinghorne46 argumenta que uma histria torna um evento individual compreensvel ao identificar o todo com o qual um nico evento contribui. Como este um dos principais objetivos das religies organizadas (Por que coisas ruins acontecem com pessoas boas?), histrias so valiosas para ajudar as pessoas a aprenderem a partir dos acontecimentos em suas vidas. Wanner47 descobriu que o processo de compartilhar narrativas orais valoriza uma determinada lgica do saber: enquanto a linguagem escrita pode apresentar lgica dedutiva ou indutiva, a linguagem falada apresenta uma viso mais dinmica. Por exemplo, a anlise lingstica de Gee48 sobre o tempo de partilha de histrias de uma criana afro-americana de sete anos, na fase escolar de mostrar e contar, evidncia de que ela pode compreender suas experincias atravs de um estilo oral de fala que difere do estilo culto do professor. Muitas tradies religiosas utilizam ensinar histrias para influenciar escolhas morais. Os judeus chassdicos* utilizavam a histria como principal meio para instruir suas crianas a elucidarem o significado do Antigo Testamento49 . Narrativas apareceram em muitas formas nos primeiros sermes e na literatura devocional crist, falando sobre as vidas de santos, modelos da vida religiosa correta, fbulas, das quais os pregadores retiravam elementos de moralidade e at ilustraes para rememorar, oralmente, a vida de Jesus50. Storytelling um modo de persuaso religiosa que floresceu na Idade Mdia e foi a ferramenta bsica dos evangelistas nos Estados Unidos, no sculo XX. Kaufman51 oferece uma descrio antropolgica completa da literatura de sabedoria, inclusive das fbulas, aplogos, parbolas, contos religiosos, anedotas, contos de moral, piadas e provrbios. Todos esses tipos de histrias derivam de um gnero que continha um propsito comunicacional duplo (conhecido no espanhol como instruir deleitando, ou seja entreter, mas, ao mesmo tempo, ensinar). As histrias tm o poder de ensinar moralidade, evitando o formato de palestra, que desagradvel para os ouvintes. O arcebispo dom Oscar Romero foi influente, em parte, por causa de sua habilidade em escrever histrias nas quais personagens maus perdiam a luta contra os bons52. Anteriormente, argumentei que os efeitos persuasivos de histrias orais ao transportar aprendizados profundos para os ouvintes podem derivar de (a) pensamentos autogerados pelo ouvinte enquanto escuta o conto, (b) da percepo cognitiva ativa do ouvinte durante a narrativa do conto, (c) da modelagem de comportamentos e valores apropriados (ou caros) na trama do conto e/ou (d) da introduo de eventos ou conseqncias que provocam deliberao consciente53. O papel do storytelling na tradio espiritual de muitos povos nativos norteamericanos inclua a crena de que uma histria bem contada seria lembrada

45. LIVO, N.; RIETZ, S. Story telling: process and practice (Contar histrias: processo e prtica). Littleton, CO: Libra ries Unlimited, 1986. 46. POLkINGHORNE, D. E. Narrative knowing and the human sciences (Narra tiva do conhecimento e as cincias humanas). Albany, Ny: State University of New york Press, 1988. 47. WANNER, S. y. On with the story: adolescents learning through narrative (Com a histria: adolescen tes que aprendem atravs da narrativa). Portsmouth, NH: Boynton/Cook, 1994. 48. GEE, J. P. The narra tivization of experience in the oral style (A narrati vizao de experincia no estilo oral). journal of Edu cation, 167, 935, 1985. * Relativos corrente mstica moderna, inspirada na Cabala. (N.E.) 49. MINTZ, J. R. The le gends of Hasidism: an introduction to Hasidic cul ture and oral tradition in the New World (As lendas de Chassidismo: uma introdu o para cultura chassdica e tradio oral no Novo Mundo). Chicago: University of Chicago Press, 1968. 50. SCHUETZ, J. Oscar Romero: archbishop of, op. cit. GERHARDSON, B. Memory and manuscript: oral tradition and written transmission in rabbinic Ju daism and early Christianity (Memria e ma nuscrito: tradio oral e transmis so escrita no Judasmo rabnico e no cristianismo primitivo). Trad. E. J. Shar pe. Copenhagen: Ejnar Munksgaard, 1961. 51. kAUFMANN, W. O. The anthropology of wis dom literature (A antro pologia da literatura da sabedoria). Westport, CT: Bergin & Garvey, 1996. 52. SCHUETZ, J. Oscar Ro mero: archbishop of, op. cit. Id. Storytelling and pre aching: a case, op. cit. 53. SUNWOLF, J. D. The pedagogical and persua sive effects..., op. cit.

315

comunicao

& educao

Ano

X

Nmero

3

set/dez 2005

54. BRUCHAC, J. Roots of survival: native american storytelling and the sacred (Razes da sobrevivncia: narrao americana nativa e o sagrado). Golden, CO: Fulcrum, 1996. 55. FRIEDLANDER, S. Talks on Sufism: When you hear hoofbeats think of a zebra (Conversas em Sufi: quando ouvir um tropel, pense em uma zebra). Costa Mesa, CA: Mazda, 1992. 56. BASCOM, W. R. Afri can dilemma tales (Contos de dilema africanos). Paris: Mouton, 1975. 57. MILLER, A L. Spiritual accomplishment by mis di rec tion: some Upya folktales from East Asia (Realizao espiritual atra vs de instrues erradas: alguns contos folclricos de Upya da sia Orien tal). History of Religions, 40, 82108, 2000. 58. FREy, R. The world of the Crow Indians: as drif twood lodges (O mundo dos ndios Corvo: como chals de madeira flutuan te). Norman: University of Oklahoma Press, 1987.

por mais tempo pela audincia do que dizer voc deve! ou voc no deve!54 . Os contos da sabedoria sufista, originrios do Oriente Mdio, reconhecem o poder das histrias orais para enfatizar pontos de ensinamento sem ordenar a resistncia mental que o raciocnio lgico mais afiado aparenta deflagrar55 . J contos de dilemas africanos trazem ensinamentos morais profundos, muitas vezes negociados e renegociados dentro das prprias comunidades que os contam. Tais contos funcionam como uma parte integral do treinamento moral e tico em muitas sociedades africanas; eles terminam com uma pergunta, que deve ser respondida pelos ouvintes56 . Os contos folclricos dos Upya, do leste asitico, propem ensinamentos espirituais atravs da tcnica de instrues erradas. Miller57 conclui que h uma conexo intricada entre as estratgias narrativas dos contadores de histrias e as mensagens religiosas e morais. A estrutura desses contos folclricos fundamenta-se em um ser super-humano central que aparece para trazer melhorias espirituais ou morais a algum. H, portanto, uma interveno sobrenatural nos assuntos humanos. Os contos so baseados em sabedoria transcendental (praj), isto , o conhecimento claro da realidade, como ela verdadeiramente , que deve incluir a introspeco para o estado espiritual da pessoa na qual o poder sobrenatural deve operar. As aes so conduzidas pela compaixo, com o intuito de ajudar outras pessoas e que vem diretamente de sentir o sofrimento delas como se sente o prprio pesar, de forma que as deidades so altamente empticas. Um exemplo do poder de ensinamento desses contos folclricos a famosa parbola da Casa em Chamas, recontada por Miller, e resumida aqui:O personagem central um pai benevolente, que tem muitos filhos. O pai volta para casa e descobre que ela est em chamas; mas, seus muitos filhos esto to envolvidos com brincadeiras que ignoram seus gritos para que saiam da casa. Assim, decide contar uma mentira. Ele diz que trouxe vrios brinquedos novos para eles brincarem, e que esto l fora. Ouvindo isso, todas as crianas correm para fora, mas no h brinquedos novos.

Nessa tradio de instrues erradas, insiste-se que no h, na verdade, nenhuma mentira. O que ocorre que se trabalha com uma sabedoria transcendental misteriosa.

Ferramentas de histrias: uma forma de criarHistrias podem funcionar como receitas para o pensamento futuro sobre comportamentos e resultados. Em comunidades religiosas, a justia social e a mudana so os principais objetivos, alm da busca pela iluminao pessoal. Frey58, estudando contos orais de tradies espirituais dos nativos americanos, argumenta que as prprias palavras s vezes so produtivas. Muitas tradies espirituais acreditam que narrar um conto tem o poder de trazer o evento ao presente. Assim, os contos so perigosos e sagrados. Em especial, alguns povos

316

Era uma vez, para a alma J. D. Sunwolf

nativos americanos consideram suas histrias como ferramentas de comunicao que funcionam ao representar acontecimentos poderosos, bem como ao criar eventos novos59. Bruchac60 descreve a forma pela qual os povos nativos da regio sudeste disseram que contar histrias sobre coiotes, por exemplo, na poca errada do ano, um convite para que o pregador de peas (o coiote) venha visitar o contador trazendo sempre problemas indesejados. Nossas crenas religiosas so guias vivos, sempre iluminando o caminho na direo da possibilidade de um tempo melhor no futuro; assim, histrias so importantes ferramentas para alcanar um futuro sagrado no qual se acredita. LaMothe61 estudou o desempenho da f em histrias e rituais comuns e extraordinrios, argumentando que um entendimento mais completo da dinmica da f emerge do exame dos processos simblicos como pontes entre o consciente e o inconsciente. Afirmou tambm que o contar histrias, como atividade simblica, cria uma resoluo entre as tenses dialticas que desafiam a f (isso , confianadesconfiana, lealdadedeslealdade, crenadescrena e esperanadesespero). As histrias de uma comunidade religiosa desenvolvem significados e contextos novos para representar a crena, a confiana, a lealdade e a esperana.

lbum de recordaes: um jeito de lembrarAs religies organizadas podem ser mais organismos do que organizaes, pois crescem quando passadas de uma gerao prxima como entidades vivas, dinmicas e fortes. Valores, crenas e eventos espiritualmente significativos podem ser passados de gerao a gerao pela estrutura da histria. O conto religioso, como resultado, pertence religio, no ao contador; sem autor, a histria publicada vez aps vez, sendo transportada pelo flego do contador ao ouvido (e corao) do ouvinte. O esprito vivo da religio recebe msculos e um esqueleto atravs da histria, para que possa agir junto s pessoas que ela serve. Sabemos que a memria narrativa forte, facilitando a reteno e a lembrana individual. A pesquisa de Schank62 sobre a inteligncia artificial, por exemplo, iluminou a memria e a inteligncia humanas. Especialista em inteligncia artificial, Schank concluiu que podemos informar as pessoas sobre regras gerais abstratas que derivamos de nossas experincias passadas, mas muito difcil as pessoas aprenderem com elas. Temos dificuldade de memorizar tais abstraes, mas conseguimos lembrar mais facilmente uma boa histria. Ele nos diz ainda que todo pensamento envolve alguma forma de indexao. Para assimilarmos um fato, precisamos fix-lo em algum lugar em nossa memria. Informaes s quais no h acesso no so informaes. A memria, fundamental para a vitalidade de qualquer religio, , com efeito, criada e preservada contando-se histrias. Registrar histrias, ou fazer um lbum de recordaes, uma atividade proeminente em muitas tradies religiosas. Tribos de nativos americanos, bem como vrios grupos mestios do Hava, so excelentes exemplos de povos que mantm os ensinamentos espirituais de ancestrais em suas histrias. Halper63,

59. SUNWOLF. The peda gogical and persuasive effects, op. cit. 60. BRUCHAC, J. Roots of survival: native ame rican, op. cit. 61. LAMOTHE, R. Perfor mances of faith: a relation between conscious and unconscious organizations of faith (Desempenhos de f: uma relao entre organizaes conscientes e inconscientes de f). Pastoral Psychology, 49, 363377, 2001. 62. SCHANk, R. C. Tell me a story: a new look at real and artificial memory (Conteme uma histria: um olhar novo sobre a realidade e memria artifi cial). New york: Charles Scribners Sons 1990. 63. HALPER, L. Ancestral perception with a Nati ve American storyteller (Percepo ancestral com um contador de histrias americano nativo). journal of Religion & Psychical Re search, 19, 232234, 1996.

317

comunicao

& educao

Ano

X

Nmero

3

set/dez 2005

estudando os Lakota Oglala nos Estados Unidos, encontrou um contador de histrias que lhe revelou a responsabilidade de preservar as narrativas e seu papel na manuteno da identidade espiritual de seu povo, com a alta espiritualidade contida nas histrias sempre passadas de pai para filho. A histria era o tema valorizado, e no a modernizao dos contos. O narrador se via como uma ponte entre o presente e o passado, utilizando a histria para uni-los. Uma dessas colees (lbum de recordaes) de grande destaque para as religies organizadas no mundo a Bblia, considerada um texto sagrado por trs religies: judasmo, cristianismo e islamismo. Estudiosos modernos acreditam que a Bblia hebraica (Tanakh) pode ter sido escrita por quatro ou cinco redatores entre 1000 a.C. e 400 a.C., em parte com base em tradies orais mais antigas. Enquanto h fortes debates sobre a seqncia e a composio dos escritos na Bblia, h uma concordncia geral de que o Novo Testamento foi redigido por diversos autores em algum momento entre 60 d.C. e 110 d.C., com seu contedo sendo formalizado por Atansio da Alexandria, em 367 d.C., posteriormente canonizado em 382 d.C. Como grandes colees de narrativas espirituais amplamente compartilhadas, verses da Bblia so utilizadas por contadores de histrias dentro das tradies religiosas como ferramentas fundamentais para fazer sermes e para ensinar por meio delas. O Internet Sacred Text Archive (Arquivo de Textos Sagrados da Internet) uma fonte acessvel para a comparao desses textos, contendo a verso do rei James (com links cruzados com o Eastons Bible Dictionary), os livros apcrifos, a Vulgata, o Novo Testamento grego, o Tanakh e a traduo da Jewish Publication Society da Bblia Hebraica, publicada pela primeira vez em 1917 (Internet Sacred Text Archive, 2004).

Visionrio: um meio de visualizar o futuroUm ouvinte de uma histria recebe permisso do conto para sonhar com aquilo que poderia ainda acontecer. De fato, nossos sonhos acordados so histrias contadas. Estruturas narrativas facilitam a imaginao de possibilidades futuras, bem como a contemplao de pontos hipotticos (pensamento contrafactual ou de e se). Simms64 revela que medida que os personagens de um conto de fada cruzam os limites e invadem outros mbitos, a audincia (os ouvintes) atrada para dentro, alm dos limites da mente lgica ao vasto espao e presena comunal. O trabalho de Simms contar histrias para a paz , realizado com culturas de todo o mundo, levou a pesquisadora concluso de que a intimidade do storytelling permite que as portas da mente lgica do ouvinte se abram para dentro, dando espao a uma experincia de espao de mente sem tempo e permitindo que sonhemos acordados. Os contos do sufistas so persas, rabes e turcos. A prpria palavra sufismo relativamente nova, tendo sido cunhada em 1821 por um alemo; Shah65 argumentou que nenhum sufista desconhecedor de idiomas ocidentais seria capaz de reconhec-la. Apesar disso, o termo utilizado aqui. O sufismo um ensinamento esotrico dentro do islamismo que rastreia a transmisso de contos at chegar aos ensinamentos do profeta Maom.

64. SIMMS, L. Crossing into the invisible (Cruzan do no invisvel). Parabola, 25, 6268, 2000. 65. SHAH, l. Caravan of dreams (Caravana dos sonhos). London: Octagon Press, 1968.

318

Era uma vez, para a alma J. D. Sunwolf

Os contos de sabedoria sufistas reconhecem o poder exclusivo que as histrias tm para sugerir ao ouvinte comportamentos novos, possibilidades futuras diferentes. A sutileza um recurso-chave: o entendimento no fica claro, a no ser que o ouvinte capte cuidadosamente o significado do conto. De modo geral, os contos sufistas so contados entre professores e alunos, no a grandes audincias nem visando entretenimento66. Os adeptos acreditam que determinada atividade mental pode produzir aquilo que conhecido como um trabalho mental superior, levando a percepes especiais cujos mecanismos so latentes no homem comum67. Como ocorre com os nativos americanos lderes espirituais e contadores de histrias , os seguidores do sufismo acreditam que suas histrias instrutivas perdem algo vital quando registradas de forma escrita, uma vez que os contos orais produzem mais efeito quando destinados para um grupo ou pessoa68. Enquanto o ensinamento dos americanos nativos varia em tamanho, dependendo do contexto do storytelling, uma caracterstica do conto de sabedoria do sufista sua brevidade, dada a importncia do impacto de uma expresso econmica.

SERMES COM HISTRIAS/ENSINAMENTOS COM HISTRIAS: FELIzESPARASEMPRE EM NOVAS DIREESOnde est Deus? [Pergunta o contador aos ouvintes.] No sabemos, mas as histrias sabem! [Resposta dos ouvintes ao contador.] Pergunta e resposta tradicional, solicitando e concedendo permisso para iniciar o storytelling.66. SUNWOLF, J. D. The pedagogical and persua sive effects..., op cit. 67. SHAH, l. Caravan of dreams, op. cit. 68. GOLEMAN, D. Intro duction (Introduo). In: FRIEDLANDER, S. Talks on Sufism..., op. cit., p. VIIIx. 69. COLLINS, R.; CO OPER, P. J. The power of storytelling: teaching through storytelling (O poder da narrao: ensi nando por narrao) 2. ed. Scottsdale, AZ: Gorsuch, 1997. 70. St. JOHN, P. Dreamer (Sonhador). Pittsburgh, PA: Carnegie Mellon University Press, 1990.

Contar histrias uma das formas mais antigas de comunicao e j foi utilizada por todas as culturas69. Apesar disso, a acessibilidade, o apelo e a variedade de vdeos e os muitos canais de filmes na TV a cabo contriburam para distanciar os indivduos das poderosas histrias das pessoas que os cercam e os isolaram muito de uma conscincia plena de suas prprias e ricas histrias, pessoais. A seguir, veremos trs caminhos que enriqueceriam a prtica e o entendimento do storytelling em tradies espirituais: como fazer novas conexes entre o contador e o ouvinte, como criar novos locais para os contos serem compartilhados e como apoiar pesquisas inovadoras sobre o contar e o ouvir histrias, de uma pessoa para outra no mundo real.O que as histrias fazem? Afetam-nos, nada mais. Primus St. John70

319

comunicao

& educao

Ano

X

Nmero

3

set/dez 2005

Pontes de histrias: como fazer novas conexesPontes de histrias que verdadeiramente conectam as pessoas umas s outras, a idias, a valores e a novos entendimentos exigem que prestemos muita ateno ao contexto das narrativas. Scheub71 argumenta que a histria a totalidade das atividades que compem o contar, cada uma das quais um ingrediente crucial do todo. Aqui, mostro a necessidade de prestar ateno no s ao contar a histria, mas tambm ao conto propriamente dito.

O EfEitO VElcrOBausch72 argumentou sobre a importncia dos contos mais curtos, como parbolas que permanecem no subconsciente, talvez at provocando um pequeno desconforto em uma palavra, histrias que ressonam com a condio humana. O objetivo do contador de histrias nas tradies espirituais o mesmo: manter-se muito prximo do esprito multifacetado do ouvinte. A histria desse sucesso pode ser comparada ao efeito Velcro. George de Mestral descobriu o segredo do Velcro enquanto caava nas montanhas Jura, na Frana, em 1941. Aps arrastar-se pela mata, por entre arbustos, suas calas de l ficaram cobertas de carrapichos que tinham incrvel poder de adeso. Ele analisou esses espinhos com uma lupa e descobriu que cada um deles tinha centenas de pequenos ganchos enroscados nos laos do tecido de suas calas. Mestral construiu uma mquina para replicar esses ganchos e chamou o produto novo de Velcro, das palavras francesas velour e crochet. A mente e a alma do ouvinte so cobertas com trilhes de minsculos ganchos. Histrias memorveis grudaro nesses ganchos. Quantos mais laos e ganchos, melhor. O objetivo dos contadores de histrias espirituais o do coletor: continuamente procurar por contos que tm poder de adeso. As histrias no so criadas da mesma forma: uma lio aprendida continuamente com a proliferao da televiso e com a seduo, da mdia, pela histria superficial. O conto superficial de uma pessoa pode representar o alimento espiritual imprescindvel da outra? Talvez. Ainda assim, h contos mais ricos a serem coletados, e comunidades de contadores de histrias das tradies religiosas devem ser estimuladas a busc-los.

O

EfEitO da ViVidEz

71. SCHEUB, H. Story, op. cit. 72. BAUSCH, W. J. A world of stories..., op. cit. 73. WHITE, W. R. Stories for telling..., op. cit.

O que atrai muitos contadores de histrias espirituais ao conto folclrico a sensao da urgncia moral que emitem. Tais contos esto repletos de marcas virtuais de exclamao: Cuidado!; Ateno!; Sua escolha importante!; Aqui existem drages!; ento, o que parece ser uma escolha sem importncia nenhuma freqentemente gera conseqncias praticamente csmicas73: uma promessa quebrada e o mundo desanda; uma caixa proibida aberta e o mal escapa.

320

Era uma vez, para a alma J. D. Sunwolf

Uma linguagem vvida traz credibilidade, deflagra a ateno e tem poder de adeso. A linguagem falada, de fato, sempre cria um efeito mais intenso no ouvinte do que a linguagem escrita recitada. O ritmo, as pausas, as frases, tudo diferente. Como a linguagem escrita consiste de palavras preservadas em pginas, os contadores de histrias ficam tentados a pensar o storytelling como palavras que vm da pgina, mas so faladas em voz alta. O poder de contar histrias diferente. Mesmo quando os contos so coletados de forma textual, para que toquem o esprito devem ser transmitidos de forma coloquial, com a cadncia familiar do falar dirio. Quando conversamos uns com os outros no dia-a-dia, a comunicao rica e rtmica. Estou sugerindo que os contadores de histrias contem um conto, que eles ouam o conto. assim que voc falaria, em uma conversa informal? Agora, como um contador de histrias que dramatiza, aprendi dos mestres contadores de histrias a abandonar minha fala textual (to familiar para mim como para um advogado) e a traduzir meus contos em uma fala mais vvida. Quando olhamos o texto escrito de uma histria, nossa mente no consegue ver a rica oralidade das palavras. Como resultado, difcil falar essas palavras com a vividez necessria para tocar o esprito dos outros. Encontra-se, a seguir, um excerto de uma narrativa para ilustrar isso. Primeiramente, olhe o texto escrito; pense sobre como ele soaria se voc o lesse em voz alta. Depois, veja o formato oral, que estimula a mente do contador de histrias a pausar, inserir maciez, palavras de efeito, esticar palavras. Quando sua mente est aprendendo a partir do texto oral, uma entrega vvida facilitada. Verso escrita: Certa vez, h muito tempo, quando a mgica ainda existia, estranhos s vezes apareciam sua porta. Voc no conhecia essas pessoas, e nunca sabia quando viriam. Depois, sua vida era alterada para sempre. s vezes para melhor, outras vezes, no. Formato oral: quando a m-gica a-ind-a

h muito, muito tempo, existia,

Certa vez,

sua porta.

s vezes apareciam

estra-nhos

Voc no conhecia essas pessoas...

outras vezes,

s vezes

e nunca, quando viriam. Depois, depois, sua vida era alterada p-a-r-a s-e-m-p-r-e. para melhor, no.

nunca

sabia

321

comunicao

& educao

Ano

X

Nmero

3

set/dez 2005

Embora no exista um modo certo de criar uma verso oral a partir de um texto escrito, sua mente lembrar a diferena de forma mais completa se ele for oralizado antes de ser decorado. A segunda verso ldica, o que o esprito adora. As palavras so repetidas, quebradas ou amortecidas, entremeadas por breves perodos de silncio. O contar a histria mais ntimo e at mais familiar com as coisas do dia-a-dia, alcanando diretamente a alma. No basta encontrar contos e estar disposto a cont-los. O compromisso com o ouvinte deve ser mais forte para o contador de histrias religiosas, para que estas colem um pouco melhor. No entanto, esta uma tarefa difcil. Os ouvintes no precisam de mais histrias, mas de histrias mais bem contadas.

Crculos de histrias: como criar locaisReligies tambm so organizaes, formadas por grupos grandes e pequenos. A perspectiva simblico-interpretativa das dinmicas de grupo74 argumenta que a vitalidade de qualquer grupo depende das atividades simblicas de seus integrantes. O ato de contar histrias, o ritual e os smbolos so os principais meios atravs dos quais os integrantes de um grupo ligam-se uns aos outros. Se expandirmos nosso pensamento alm do plpito, h espaos mais ricos para a prtica e partilha de contos e histrias religiosas. Crculos de histrias assumem uma caracterstica coletiva de narrativa dentro de uma comunidade de fiis. Em tais crculos, nos quais os contadores e os ouvintes renem-se, cria-se uma comunidade e se aproveita de sua existncia. Nos Estados Unidos, onde est ocorrendo um renascimento do hbito de contar histrias tradicionais, hoje existem crculos comunitrios que se renem mensalmente em cidades de todo o pas. Os contadores narram as histrias aos ouvintes, que, por sua vez, transformam-se em contadores, medida que um conto puxa o outro. Profissionais e amadores, experientes e novatos, todos se sentam juntos e se revezam no contar ou no ouvir, conforme a vontade de cada um. Poucos lugares de adorao nos Estados Unidos, entretanto, oferecem crculos de histrias para seus membros. O poder desses crculos reconhecido h muito tempo pela psicoterapia, por grupos de auto-ajuda e, mais recentemente, entre equipes de profissionais de sade. O trabalho de Cesario75 com mulheres de tribos nativas norte-americanas apoiou seu argumento narrativo de que, como muitas tribos so matriarcais, o uso de tais crculos de contar histrias (compostos de cinco a 15 mulheres nativas americanas que se renem para compartilhar informaes, dar apoio e solucionar problemas) valorizado e visto como uma ferramenta-chave (subutilizada) para os profissionais da sade. Estudiosos da Escola de Enfermagem da Universidade de Washington e do Centro de Sade Indgena Yakama descobriram, ao ouvir histrias, que contos sobre doena, para as mulheres indgenas Yakama, faziam parte dos contos sobre a jornada da vida76. O cncer de colo do tero era o principal tipo de cncer entre as mulheres americanas nativas do Alasca, com alta incidncia e taxas mais baixas de sobrevivncia doena entre todos os grupos tnicos dos Estados Unidos (Instituto Nacional

74. FREy, L. R.; SUNWOLF, J. D. A symbolicinterpre tive perspective on group dynamics (Uma perspecti va interpretativosimblica em dinmica de grupo). Small Group Research, 35 (3), 277306, 2004. 75. CESARIO, S. k. Care of the Native American wo man: strategies for practice, education, and research (O cuidado com a mulher americana nativa: estratgias para prtica, educao e pesquisa). journal of Obstetric, Gy necologic, and Neonatal Nursing, 30,1319, 2001. 76. STRICkLAND, C. J. et al. Walking the journey of womanhood: yaka ma In dian women and Papanicolaou (Pap) Test screening (Percorrendo a viagem da feminilidade: as mulheres ndias yakama e o exame de Papanicolau). Public Health Nursing, 13, 141150, 1996. 77. WHITE, W. R. Spea

322

Era uma vez, para a alma J. D. Sunwolf

do Cncer, 1993). Os lderes tribais convidaram esses estudiosos para trabalharem coletivamente com eles aps a morte de trs de suas mais respeitadas ancis causada por cncer, em 1991. Como resultado do acesso aos crculos de histrias dessas mulheres, a equipe de profissionais da sade descobriu que as ancis tinham maior influncia entre as mulheres mais jovens que estavam iniciando a jornada (Andando nos passos da av, p. 145); por conseqncia, fazer o exame de Papanicolau foi contado em forma de histria (pelas ancis) como uma parte importante de se tornar mulher, muito diferente do mtodo ocidental de orientao sobre sade, que se baseia no uso de fitas de vdeo, aulas e impressos. A jornada da alma tambm faz uso dos crculos de histrias. Dentro das igrejas, esses crculos oferecem estruturas simples e gratuitas que proporcionam um lugar para todos os cinco aspectos funcionais para o desenvolvimento da partilha de histrias. Nutrir e manter os fiis, enquanto se vai ao encontro de novos adeptos, um desafio para as religies organizadas. Os crculos de histrias podem ajudar ao fazer que se renam os novos e os antigos membros da congregao, jovens e velhos, homens e mulheres, pessoas de origens tnicas diversas, aqueles que esto carentes, bem como os que tm algo a oferecer. Em tais crculos as reunies acontecem tanto antes dos cultos formais quanto depois deles, sintonizadas com eventos especiais ou isoladamente, em locais fechados ou ao ar livre, em casas ou hospitais. White77 descreve seu treinamento inicial de pregador, observando que, como diretor de grupos eclesiais em reas rurais, por anos suas salas ficavam ao redor de fogueiras ou sob as rvores. Como a organizao do crculo flexvel, este diminui ou expande-se medida que as pessoas chegam ou partem. Embora um horrio de incio seja necessrio, o crculo termina quando todos os ouvintes cansam de ouvir; esse horrio pode ser medido em minutos ou horas, pois objetivos espirituais no dependem do relgio. Um crculo de histrias de 20 minutos para novos membros seria, de fato, um tesouro para antigos participantes. Tratando-se de culturas como aquelas descritas anteriormente, que tm crculos de histrias de carter tradicional e possuem modelos prontamente acessveis, o Homo narrans gosta de participar de crculos de histrias sempre que tem oportunidade.

Conhecimento de histrias: como expandir nossa pesquisa surpreendente observar que existe pouco conhecimento acadmico sobre o efeito do ato de contar histrias. Em sua maioria, esse trabalho concentra-se nas estruturas, funes e nas variaes culturais do processo. O efeito de ouvir, entretanto, de grande interesse no contexto religioso e, alm disso, est dentro do domnio dos estudiosos da comunicao. Emissor, mensagem, receptor, rudo, contexto so todas variveis que os pesquisadores de comunicao conseguem investigar de modo nico a partir de vrias perspectivas tericas. Alm de uma falta de ateno acadmica ao ouvinte de histrias, poucos pesquisadores investigaram os efeitos de contar histrias dentro de tradies

king in stories..., op. cit.

323

comunicao

& educao

Ano

X

Nmero

3

set/dez 2005

culturais. As histrias contadas, o objetivo do contador, as histrias da perspectiva do professor religioso, tudo bem documentado. A maneira como um conto recebido por um ouvinte em especial, se a necessidade ou o objetivo era espiritual ou uma questo de f, entretanto, foi deixada de lado. Relatos informativos e ensaios bem pensados de pregadores sugerem, porm, que o efeito da histria poderoso entre os ouvintes. White78 descreve sua prpria jornada como pregador: Vrios anos e um diploma de teologia mais tarde, descobri a alegria da histria em minhas congregaes rurais no sul de Wisconsin. Naqueles cultos srios e rgidos, a histria era uma ocasio de alvio e deleite. Quando eu comeava a narrar alguns de meus contos, as pessoas descruzavam os braos e se curvavam para a frente, as sobrancelhas subiam. Embora parecessem tolerar os sermes, elas adoravam as histrias. White, um ministro que estimula o storytelling, fala no apenas para pregadores e professores, mas para estudiosos tambm, quando compartilha de sua convico de que mensagens religiosas, para conseguirem penetrar nas mentes das pessoas, devem estar repletas de figuras que estimulem as pessoas a se abrirem a elas. Quando examinamos os efeitos de contar histrias religiosas, sempre procuramos por uma comunicao. Precisamos entender mais sobre a experincia do ouvinte da mirade de contos que esto sendo narrados em todo o mundo nos contextos espirituais.Histrias so alimentos mgicos que so oferecidos aos outros e, quando recebidas pelo corao, elas nunca acabam. Fishes and Loaves [Peixes e Pes]

78. Ibid., p. 10.

324

Era uma vez, para a alma J. D. Sunwolf

Resumo: Histrias esto entre as nossas unidades mais bsicas de comunicao. So mos socializados atravs da narratividade, embora possamos slo tambm por meio da racionalidade. O papel das histrias em uma explicao social foi analisado em campos to diversos como a psicologia, sociolingstica, cincias polticas, histria, antropologia, direito e comunicaes. Os seres humanos pensam, percebem, imagi nam e fazem escolhas morais de acordo com as estruturas de narrativa. Embora os efeitos de compartilhar narrativas tenham sido bem documentados entre crianas em ambientes educacionais, como portadoras de cultura, e entre aqueles que esto doentes, relativamente pouca ateno acadmica direcionase questo de como ouvir as narrativas afeta os membros de tradies e comunidades espirituais. Os prprios contadores de histrias, entretan to, h muito tempo reconhecem o poder que as narrativas tm para transportar os ouvintes da dor do momento a um e todos viveram felizes para sempre. Os contos orais vieram antes dos textos escritos em todas as tradies religiosas. Para enfocar a discusso, so esclarecidos trs termos: espiritualidade, f e religio. Aqui, uma interseo oferecida para enquadrar a discusso de histrias; dse ateno ao uso de histrias orais dentro de prticas espirituais, de metas que geram f e dentro de instituies religiosas. As pessoas tm uma necessidade bsica pela espiritualida de para ajudlas a dar sentido ao mundo, enquadrar suas escolhas sobre em que crer ou rejeitar, determinar o que valorizar e para guiar escolhas comportamentais. As religies oferecem uma estrutura, um su porte e uma fundao mais especficas para a necessidade espiritual central. O ato de contar histrias uma ferramenta vital para alcanar essas necessidades e metas. Palavras-chave: contos orais, contador de histrias, narrativas, tradies espirituais, folclore.

Abstract: Stories are among our most basic units of communication. We are socialized through narrativity, though we can be educated through rationality. The role of stories in a social explanation was analyzed in fields as diverse as psychology, sociolinguistics, political sciences, history, anthropology, law and communication. Human beings think, perceive, imagine and make moral choices according to their narrative structures. However the effects of sharing narratives have been well documented for children in educative environments, as culture carriers, and for the sick people, relatively small academic attention was focused on how listening to narratives affects the members of tra ditions and spiritual communities. Though, storytellers themselves have recognized for long time the power of narratives to take the listeners from the pain in a moment to the and they all lived happily ever after. Oral tales came before written texts in all spiritual traditions. To focus the discussion, three terms are clarified: spirituality, faith and religion. Here, an intersection is given to frame the discussion of stories: attention is given to the use of oral stories inside spiritual practices, to goals that generate faith and to religious institutions. People have a basic necessity of spirituality to help them in giving sense to the world and frame their choice on what to believe or reject, determine what to valorize and guide to behavioral choices. Religions offer more specific structure, support and foundation for a central spiritual need. Storytelling is a vital tool for reaching these necessities and goals.

Keywords: oral tales, storyteller, narratives, spiritual traditions, folklore.

325