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    O Porto e rio Douro: a construo de uma nova relao

    lvaro Domingues

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    RESUMO

    O incio do sculo XXI marca o final de um ciclo muito longo durante o qual o rio Douro foi o principal

    suporte e gerador da construo da cidade e da sua relao com a regio e com o mundo.

    Hoje, o rio sobretudo um cenrio e a sua presena, um elemento de produo de imaginrio que

    est a mudar radicalmente os impulsos da urbanizao das suas margens e uma nova maneira de

    pensar a relao da cidade com o seu territrios de influncia. O passado e as suas memrias cons-

    trudas ou ficcionadas, so a matria-prima que se usa para reconstruir novas funes e significados.

    O tempo longo da histria comprime-se numa nica imagem fixa, onde, desde as velhas muralhas

    medievais at aos ltimos investimentos que resultaram do impulso do desenvolvimento industrial e

    porturio oitocentista, tudo se congela para fixar o relato de um tempo mtico onde se misturam rela-

    tos da cidade dos bispos, dos clrigos ou dos senhores do tempo da fundao do reino de Portugal

    (Portus Cale) e das rotas comerciais com a Flandres na Alta Idade Mdia, com os tempos prsperos

    das Descobertas nos sculos XV e XVI, com o comrcio com o Brasil e a Inglaterra e, claro, com o

    sculo XVIII da fundao da Companhia dos Vinhos do Alto Douro, poca em que o Porto desempe-

    nha um papel de monoplio no comrcio do vinho do Porto. Passados os tempos trgicos das inva-

    ses e dos exrcitos de Napoleo, ficou tambm a marca do sculo XIX e as suas obras de enorme

    importncia: as pontes de ferro (uma delas de Gustave Eiffel), a chegada do caminho-de-ferro, a

    artificializao das margens para a acostagem de navios, a enorme alfndega, as fbricas, os arma-

    zns, o carro elctrico, etc., e a cidade dos negcios que se estende na margem direita em frente

    outra margem onde cresce o entreposto vinhateiro de Vila Nova de Gaia. Amarrados ao cais, flu-

    tuam os rabelos (barcos tradicionais do transporte de vinho pelo rio) a compor um primeiro plano

    para guardar imagens e recordaes.

    Para montante, o rio foi domesticado por uma sequncia de grandes barragens. O vinho do Porto j

    no desce o rio nos barcos Rabelos. A regio demarcada dos Vinhos do Alto Douro, agora classifica-

    da (como tambm o velho burgo do Porto) como Patrimnio da Humanidade, permanece na sua

    dupla importncia econmica e esttica, entalada entre a lgica do negcio global que o vinho,

    as preocupaes de manter uma fisionomia de paisagem patrimonializada, a chegada do turismo e

    dos seus negcios, e, como sempre, a preocupao em manter as pessoas e sustentar uma econo-

    mia dividida entre grandes empresas e quintas, e pequenos e muitos agricultores, cada vez mais

    envelhecidos e a verem sair os seus descendentes.

    Esta transformao pode observar-se em vrias escalas e tipos de interveno: desde a reciclagem

    de velhos edifcios e infra-estruturas que perderam a sua funo e se converteram em equipamentos

    culturais, construo de raiz de uma espcie de parques temticos para esplanadas e cais de cru-

    zeiros, multiplicao de condomnios residenciais com vistas exclusivas, ao redesenho de espaos

    pblicos e passeios marginais, s adegas adaptadas para receber visitantes, plataformas de helicp-

    teros para ver o Porto do cu, hotis, etc. Margens de cidade ps-industrial reciclando o passado e

    actualizando uma nova condio urbana que evolui com outras relaes e outros modos de fazer

    cidade e conectar pessoas e territrios. O porto do Porto agora uma especial waterfront como

    agora se diz.

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    O Porto e rio Douro: a construo de uma nova relao

    1. O rio Douro: o porto do Porto

    O Porto uma cidade inde-

    levelmente ligada com o rio

    Douro e com as histrias

    que o tempo foi tecendo

    em torno dessa relao.

    Do tempo longo da histria

    chegam relatos que so

    habituais nos mitos funda-

    cionais das cidades. Sufi-

    cientemente longe dos peri-

    gos que vinham por mar, a

    cidade foi-se desenvolven-

    do junto de um ponto onde

    a travessia era mais favorvel. Desde a colina amuralhada onde ainda est a

    catedral medieval, o burgo foi descendo at s margens, at ribeira, ao longo

    da qual se construram muralhas que acumulavam a sua funo militar e a regula-

    o do comrcio. Domnio e poder, comrcio e relao, so constantes do cdi-

    go gentico das cidades, aqui reforadas pelas facilidades que as estradas da

    gua podiam oferecer quando as outras estradas eram menos eficientes e incons-

    tantes. As barcas de passagem fariam a relao Norte/Sul, documentadas desde

    a presena romana; o traado E/O do rio Douro permitia a ligao com as terras

    do interior e assim se completariam cruzamentos que sempre as cidades so.

    Numa outra escala, a ligao com o Atlntico seria tambm uma outra porta,

    mais vasta, para a geografia das economias-mundo que se foram alargando em

    contextos e mercados diversos at hoje.

    este tipo de narrativa que os historiadores demonstram e documentam abundan-

    temente mesmo antes da fundao de Portugal portus cale -, cujo nome tem

    origem na cidade do Porto. O territrio da bacia do Douro est cheio de testemu-

    nhos de presenas culturais misturadas desde as gravuras paleolticas do Ca, ao

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    santurio rupestre de Panias (Vila Real), ao embate e fuso de Romanos, Sue-

    vos (sculo V), Visigodos, ou Muulmanos (scs. VIII-XI). Desde meados do sculo

    XII, j num perodo de maior segurana, os monges de Cister multiplicaram a sua

    influncia no territrio, arroteando terras, plantando vinhas, aproveitando as

    influncias cruzadas entre a influncia climtica do atlntico e do mediterrneo.

    Esta prosperidade marca no s a ligao da regio do Douro ao Porto, como

    tambm a insero nas rotas comerciais hanseticas com a Flandres e o Norte da

    Europa, a economia-mundo de ento. O vinho surge desde muito cedo como

    um dos principais produtos dessas transaces, tal como o sumagre, uma planta

    importante para a indstria dos curtumes.

    Nos sculos XIV e XV, com o envolvimento do reino de Portugal na conquista do

    Norte de frica e na empresa das Descobertas, o Porto refora o seu perfil de

    cidade de navegantes e mercadores, desenvolvendo-se ao longo da margem

    direita do Douro onde se localizavam os estaleiros e se desenvolviam as activida-

    des mercantis.

    No sculo XVIII a fundao da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto

    Douro (1756-1834) reforou a importncia nacional e internacional da cidade, a

    sua relao com o territrio interior

    o Alto Douro -, e o seu papel

    mediador nas relaes internacio-

    nais. O monoplio do comrcio do

    vinho do Porto, acelerou a ocupa-

    o da margem esquerda do rio,

    Vila Nova de Gaia, transformada

    progressivamente em entreposto

    vinhateiro e pea fundadora de

    uma cidade de duas margens que

    a partir de ento se foi desenvol-

    vendo. A Junta da Obras Pblicas

    (1763-1833) desenvolver um ambicioso plano de estruturao da cidade medie-

    val e regular a expanso extra-muros, incluindo um conjunto de grandes obras de

    construo de novas infraestruturas porturias (NONELL, A. G. (1998), Porto,

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    1763/1852 a construo da cidade entre despotismo e liberalismo, Faculdade de

    Arquitectura da Universidade do Porto (policopiado).

    At ao sculo XIX e ao caminho-de-ferro, as estradas da gua tiveram uma impor-

    tncia basilar. Ao longo do

    curso interior do Douro, os

    barcos rabelos faziam o per-

    curso dos vinhos do Alto

    Douro. Do Porto, por mar,

    saam os navios para a pes-

    ca nos bancos da Terra

    Nova e para o comrcio e

    as carreiras de passageiros

    para Lisboa, para frica,

    para o Brasil. Para trajectos

    mais curtos, a navegao

    no rio Douro era tambm

    usada intensamente para o

    abastecimento dirio da cidade, desde as lenhas e o carvo, at a uma infinida-

    de de produtos alimentares e bens de consumo corrente.

    A construo da Alfndega Nova (c.1860), com um acesso em tnel ligando

    rede de caminho-de-ferro, marca uma das maiores obras de artificializao das

    margens, ao mesmo tempo que as fbricas se vo instalando desde o Freixo, at

    Massarelos e Lordelo, sobretudo junto das margens onde desaguam pequenos rios

    e onde as condies topogrficas so mais favorveis.

    A partir do sculo XVI, a viticultura de qualidade, com objectivos comerciais, assu-

    me importncia crescente na zona dos vinhos de Lamego, designao que abar-

    ca os vinhos de qualidade diferenciada de grande parte do actual Baixo Corgo,

    mas tambm em outras reas que no sculo XVIII viro a integrar a regio demar-

    cada do Douro, como as encostas dos rios Tvora e Pinho.

    A expanso vitcola prosseguiu no sculo XVII, a par de alteraes na tecnologia

    da produo de vinhos e de um maior envolvimento nos mercados europeus de

    vinhos. Em 1675, aparece pela primeira vez, uma referncia documental desig-

    nao "vinho do Porto", referente a vinho exportado para a Holanda. Por essa altu-

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    ra, inicia-se um importante fluxo comercial para Inglaterra, favorecido pelas guer-

    ras entre esse pas e a Frana. Rapidamente, o "vinho do Porto" domina o mercado

    ingls de vinhos, ultrapassando os franceses, os espanhis e os italianos, de tal for-

    ma que alguns autores britnicos o consideraram "the englishmen's wine". Em 1703,

    o Tratado de Methuen, entre Portugal e a Gr-bretanha, vir confirmar no plano

    diplomtico essa corrente comercial, concedendo direitos preferenciais aos vinhos

    portugueses. Os vinhos generosos do Douro tornam-se, ao longo do sculo XVIII,

    dependentes do mercado ingls, o que se traduz, quer por uma adaptao do

    produto ao gosto desse mercado consumidor e, paralelamente, quer por um cres-

    cente domnio do comrcio do vinho do Porto por mercadores britnicos que se

    fixam no Porto. Em 1727, a prspera colnia inglesa do Porto funda a uma Feitoria,

    que assume um papel importante na articulao dos interesses britnicos ligados

    ao comrcio do vinho.

    O conflito entre estes interesses comerciais e os dos produtores do Douro, crescen-

    temente submetidos aos preos cada vez mais baixos impostos pelo comrcio e,

    por outro lado, s exigncias de tipos de vinhos mais fortes, retintos, doces e aguar-

    dentados, conduziu interveno do Estado no sentido de regulamentar a produ-

    o e o comrcio de um produto-chave da economia portuguesa. Pelo alvar

    rgio de 10 de Setembro de 1756 institua-se, para esse efeito, a Companhia Geral

    da Agricultura das Vinhas do Alto Douro, iniciando-se um vasto conjunto legislativo.

    Entre outros aspectos, procede-se demarcao da regio produtora, a primeira

    demarcao no mundo de uma zona de denominao de origem controlada no

    sentido contemporneo do termo.

    De facto, a primeira demarcao, ordenada em 1756 e estabelecida no terreno

    entre 1757 e 1761, constitui j uma manifestao de modernidade inequvoca, na

    medida em que, alm da definio de limites de uma regio vitcola, inclui a ela-

    borao de um cadastro e de uma classificao das parcelas e dos respectivos

    vinhos, tendo em conta a complexidade do espao regional, e, por outro lado, a

    criao de mecanismos institucionais de controlo e certificao do produto,

    apoiados num vasto edifcio legislativo. No menos importante o sentido de con-

    tinuidade temporal que associa a identidade regional ideia de regio vitcola

    demarcada, desde o sculo XVIII at aos nossos dias, independentemente das

    alteraes na rea (passando de cerca de 40 mil para 250 mil ha) e nos limites

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    regionais, na dimenso do vinhedo, nas prticas vitcolas ou na organizao institu-

    cional do sector. As sucessivas delimitaes da Regio Demarcada (1757-1761,

    1788-1793, 1907-1908, 1921) reflectem, essencialmente, as vicissitudes da prpria

    evoluo tcnica nos domnios da produo, dos transportes e da comercializa-

    o, mas mantm uma forte continuidade face aos princpios orientadores que

    exerceram, tanto na mentalidade popular como na das elites, uma forte carga

    simblica, constituindo um elemento-chave da identidade regional. A identifica-

    o entre o territrio alto-duriense como "pas vinhateiro", ou "regio do vinho do

    Porto", configurou, desde o sculo XVIII, uma vocao econmica e cultural espe-

    cfica e fixou o sistema de relaes entre o Porto e o hinterland duriense. Desde

    ento at aos nossos dias, as vicissitudes da vitivinicultura e do comrcio de vinhos

    do Porto tm praticamente dominado a histria regional.

    (in Candidatura do Porto a Patrimnio da Humanidade, UNESCO, 1996)

    A relao da cidade com o rio conhece, assim um forte impulso e a segunda

    metade do sculo XIX constitui uma poca de desenvolvimento longitudinal da

    cidade ao longo das margens e, na cota alta, a uma expanso em dedos ao

    longo das principais estradas de ligao do Porto para Norte e Nascente. A revolu-

    o dos transportes tambm a razo para a construo de duas pontes de ferro:

    Maria Pia (1876) de Gustave Eiffel, para a passagem ferroviria, e a ponte Lus I

    (1886) com dois tabuleiros, o da cota baixa no mesmo local onde se fez sempre a

    principal travessia do Douro, e o da cota alta abrindo um novo relacionamento

    para a cidade que se desenvolvia j longe da relao directa com o Douro. A

    obra desmedida do aterro e do novo edifcio da Alfndega faz-se praticamente

    na mesma altura em que j se pe a hiptese de mudar o porto fluvial para Lei-

    xes, a Norte do Porto na foz do rio Lea.

    Junto foz do rio, perto do forte que vigiava a barra e do farol, fez-se um passeio

    pblico com fontes, palmeiras e jardins, expresso de um certo gosto burgus e

    cosmopolita apreciador da maresia, das bandas no coreto, da sombrinha e do

    namoro discreto.

    At aos anos sessenta, prximos da revoluo do automvel que em Portugal foi

    tardia e que daria uma nova ponte em beto (a Arrbida, 1963, desta vez apenas

    cota alta), toda a marginal do Douro permanece com pouca presena residen-

    cial, conservando velhos edifcios de armazns e fbricas e um trajecto ribeirinho

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    que levava o servio do carro elctrico da Ribeira at nova zona porturia e

    industrial de Leixes e Matosinhos. Da modernizao do gs e da luz elctrica fica-

    ram tambm borda de gua o gasmetro e as estaes de transformao elc-

    trica.

    Passada a foz, na frente de mar, desenvolvia-se uma outra cidade de chalets,

    de veraneio e de residncia distinta de classes abastadas. Para montante da Pon-

    te D. Lus, restavam algumas grandes quintas nos pontos da encosta em que a

    escarpa grantica era menos abrupta. No Freixo, um palcio barroco resistia na sua

    segunda vida como casa de um industrial de moagens, assinalando a passagem

    de testemunho de uma aristocracia arruinada para os novos industriais e comer-

    ciantes emergentes. No entanto, as principais marcas do Porto industrial j no se

    produziam apenas na beira rio mas na cidade alta, junto gare ferroviria, nas

    ilhas de habitao operria e, sobretudo, em regies rurais como o Vale do Ave e

    do Vizela onde a industrializao se fez nos campos, apesar da riqueza ser muitas

    vezes drenada para o Porto o actual Museu de Serralves vem de uma casa de

    campo e de uma quinta de um rico industrial da indstria txtil do rio Vizela. A

    nova burguesia industrial veio assim a misturar-se com a velha burguesia das quin-

    tas do Douro, da produo do vinho do Porto e do comrcio com a Inglaterra e

    com o Brasil.

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    Foi preciso esperar quase at aos anos noventa do sculo XX para que se consu-

    masse uma transformao que at hoje se tem vindo a intensificar. No entanto o

    tempo passou no Porto e nas margens do Douro sem grandes sobressaltos daque-

    les que como os grandes incndios, terramotos ou guerras devastadoras, limpam a

    memria das cidades. As margens do Douro so um palimpsesto onde ainda se

    registam as sucessivas marcaes e se acumulam marcas do tempo longo e dos

    perodos curtos em que a mudana rpida. O prprio aterro da Alfndega

    Nova, uma das maiores obras de transformao das margens, deixou do lado

    oposto ao rio a marcao do antigo nvel da praia, dos arcos em pedra que

    defendiam as habitaes superiores das grandes inundaes que o rio trazia no

    Inverno.

    Em 1985 foi concluda a barragem de Crestuma-Lever, a ltima das grandes barra-

    gens do Douro, pea importante no sistema de produo hidroelctrica do rio, no

    controlo das cheias e na navegabilidade que agora se pode fazer, embora de for-

    ma muito limitada, at fronteira com Espanha.

    2. Segundo andamento: a construo de uma nova relao

    Hoje, quando se fala do rio Douro, esto presentes sobretudo quatro temas:

    - Uma estrada de gua - intercalando barragens, eclusas e albufeiras - de

    ligao ao Alto Douro que est a ser usada pelos barcos tursticos, com uma

    articulao cada vez maior regio vinhateira onde se combina o negcio

    do vinho com o turismo. O potencial de uso do rio para o transporte de mer-

    cadorias est, para j, reduzido a algum transporte de granito, depositando-

    se algumas expectativas nas obras dos novos molhes na foz do rio que permi-

    tiro a passagem de embarcaes para o mar e para o porto de Leixes. Os

    custos da intermodalidade transporte fluvial/transporte no fluvial impedem o

    uso dos barcos de mercadorias. O principal potencial de gerao de cargas,

    o vinho, tem um significado nulo. A preparao e engarrafamento do vinho

    do Porto faz-se cada vez mais na regio de origem, passada a obrigatorieda-

    de de uso do entreposto de Vila Nova de Gaia para onde, de resto, o cami-

    nho-de-ferro j tinha substitudo o transporte por barco. A ambio de criar

    um corredor fluvial de transportes de mercadorias para Espanha continua

    sem interesse. O Instituto Porturio e de Transportes Martimos Douro, conti-

    nua com a sua misso de garantir o canal navegvel (sobretudo at

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    Rgua, cerca de 100 Km a montante do Porto, para os barcos de mercado-

    rias at 80*12 metros), e gerir as obras dos novos molhes na foz (cf., http://

    www.douro.iptm.pt/PT/via_navegavel/). No entanto, so sobretudo as embar-

    caes tursticas que usam o Douro.

    - A relao com o Alto Douro Vinhateiro, com o Parque Arqueolgico do Vale

    do Ca (ambos classificados pela UNESCO como Patrimnio da Humanida-

    de) e com o Parque Natural do Douro Internacional. A excepcionalidade dos

    valores culturais e paisagsticos permanece como um elevado potencial turs-

    tico e de conservao da natureza, embora a procura turstica, excepto no

    Douro Vinhateiro, continue ainda muito escassa e de pouco relevo na regio

    Norte Interior de Portugal. A regio continua em processo acelerado de des-

    povoamento e de desruralizao, com a excepo do dinamismo do sec-

    tor vinhateiro.

    - A forte presso turstica nas margens do Douro Litoral, prximo da aglomera-

    o metropolitana do Porto, para projectos pontuais de turismo residencial.

    Este tipo de investimentos possuem um impacte paisagstico assinalvel e des-

    qualificador o que tem criado muitas dificuldades de licenciamento, apesar

    do potencial de criao de emprego que possam gerar.

    - No Porto e em Vila Nova de Gaia, no tramo final do Douro, assiste-se a uma

    rpida transformao cujo contedo abordaremos de seguida.

    2.1 Turismo, estetizao, patrimnio e sustentabilidade

    Do rio de mau navegar, o rio Douro transformou-se numa presena e numa

    experincia estticas, num recurso de produo de imaginrio onde se jogam

    todos os traumas de perdas sucessivas:

    - Do medo da perda da cidade histrica, velha e disfuncional, tornada urgn-

    cia de preservao e de patrimonializao, e tantas vezes objecto de formas

    de apropriao e projectos superficiais, pasteurizados, mercantilizados,

    festivalizados, reduzindo a cidade histrica a cenrios e novos encanta-

    mentos para os quais a memria do passado se sintetiza numa abordagem

    pictoresca;

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    - Do medo da perda das paisagens, esvaziadas da sociedade e da econo-

    mia rural tradicional e da histria, tornadas disfuncionais pela perda dos

    jardineiros da paisagem que produziam nexos e sentidos para entender a

    transformao e a apropriao do territrio: a paisagem transforma-se num

    wallpaper, recurso infindvel de emoes e experincias inesquecveis, ao

    mesmo tempo, fora e dentro da geografia e da histria;

    - Da ameaa da natureza (de me, a divindade castigadora e vingativa) e

    do ambiente (e de uma certa verdolatria a tentar ocupar uma certa m

    conscincia de predadores), compensada agora pelo discurso apaziaguador

    da sustentabilidade e da moral associada s prticas no predatrias de

    recursos naturais.

    A festivalizao do centro histrico

    Notcia sobre o novo Cais de Gaia:

    Depois de muitas dcadas ao servio da actividade porturia de mercadorias o projecto

    Cais de Gaia insere-se no plano de renovao e valorizao de toda a zona ribeirinha de

    Gaia, convertendo-o num espao de animao e de lazer, envolvido numa paisagem

    urbanstica inigualvel. O Cais de Gaia constitudo por amplos espaos comerciais, de

    restaurao e servios, de elevada qualidade arquitectnica utilizando materiais que

    reforam a leveza e transparncia das fachadas. A expresso plstica dos edifcios baseia-

    se numa forma de dois pisos cujas coberturas inclinadas participam no jogo dinmico das

    silhuetas caractersticas dos armazns das caves do vinho do Porto. De todo o Cais de

    Gaia e sobretudo das esplanadas dos pisos superiores desfrutam-se inesquecveis vistas

    sobre o Douro e a paisagem patrimnio mundial da ribeira do Porto. () O Cais de Gaia

    conta com uma Praa exterior em anfiteatro concebida como espao polivalente de ani-

    mao denominada Praa Super Bock e a Praa Central.() Eventos e Comemoraes

    no Cais: Feira de artesanato e antiguidades (Art&Guidades) - ltimo fim-de-

    semana de cada ms; Fim de Ano; Dia dos Namorados; Carnaval; 25 de Abril; Ani-

    versrio do Cais; S. Joo; Concertos; Exposies; Animao de Rua; Pista de Gelo;

    Lanamento de Neve Artificial.

    O renovado Cais de Gaia um plo central de vivncia, acompanhando a

    mudana e os desejos de uma populao em permanente evoluo.

    www.juventude.gaiaglobal.pt/ gaia/linkto?categoryOID=42848080804B83GC -31k -

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    Distino e esttica cosmopolitas a canibalizao da paisagem e dos valores

    patrimoniais

    Notcia sobre um empreendimento turstico do Douro Vinhateiro:

    Aquapura Douro Valley um refgio nico e requintado na margem sul do Rio

    Douro, entre os vinhedos classificados como patrimnio mundial pela Unesco, vol-

    tado cidade do Peso da Rgua. Vale Abrao, propriedade histrica e cultural

    associada produo dos famosos vinhos da regio, foi recuperada e transforma-

    da num hotel que oferece 41 quartos e 9 suites com diferentes tipologias e vistas,

    incluindo uma Suite Presidencial. Variados jardins e uma surpreendente mata

    rodeiam a propriedade. Esto ainda disponveis 14 villas com piscina e terrao pri-

    vado viradas ao rio em estilo moderno e outras 7 entre as vinhas num estilo mais

    tradicional. As reas pblicas do hotel, espaosas e confortveis, transmitem luxo e

    relaxamento por toda a propriedade ao mesmo tempo que retiram a noo de

    tempo e espao. Num ambiente que revela a fuso entre a filosofia asitica e a

    cultura europeia, nasce um SPA de referncia internacional. Vrias experincias

    foram criadas neste espao de 2200m desde um laconium ou uma sauna panor-

    mica at 10 salas de tratamento com luz natural e uso de produtos especialmente

    concebidos por marcas de prestgio internacional Karin Herzog e Ytsara. O uso de

    ingredientes locais com um toque de cozinha internacional cria experincias gas-

    tronmicas que a Aquapura lhe prepara para completar a jornada pelos sentidos.

    Ainda disponveis dois bares, uma piscina exterior aquecida, um campo de tnis e

    uma mata de 5 hectares classificada.

    http://lisbon.nethotels.com/nethotels/portuguese/hotels/aquapura_douro_valley

    nesta encruzilhada que se pode situar muito daquilo que se tem passado ao lon-

    go do rio Douro durante as ltimas trs dcadas, seja nas frentes urbanas do Porto

    e de Vila Nova de Gaia, seja na regio do Alto Douro Vinhateiro.

    No Alto Douro Vinhateiro, a mudana mais visvel a da expanso do plantio da

    vinha (para vinho do Porto e vinhos de mesa) e uma expanso contnua do investi-

    mento em projectos tursticos, tirando partido dos recursos paisagsticos e culturais,

    da distino da classificao da UNESCO (Alto Douro Vinhateiro e Parque Arqueo-

    lgico do Ca) e da classificao do Parque Natural do Douro Internacional. A

    internacionalizao e a concentrao empresarial da indstria do vinho, caminha

    a par e passo com o processo de desruralizao da regio situada fora da rea

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    vinhateira. A, a populao vai regredindo e envelhecendo, abandonando velhas pr-

    ticas de trabalho agrcola do solo e de manuteno e produo de paisagem.

    No Porto, antes da revoluo democrtica de Abril de 1974, tinha-se iniciado uma

    operao de melhoramentos e de higienizao dos bairros pobres da Ribeira/

    Barredo, envolvendo a transferncia de populaes para novos bairros e dando-

    se incio interveno nos espaos e nas infraestruturas pblicas. J no Portugal

    democrtico, a Ribeira/Barredo foi palco de uma experincia de interveno pro-

    funda no edificado e de criao de equipamentos/servios de proximidade. Na

    sequncia dessas operaes coordenadas por um Comissariado para a Renova-

    o Urbana CRAUB, o centro histrico do Porto classificado como Patrimnio da

    Humanidade em 1996. Nesse mesmo ano, o governo, a administrao porturia e

    a Cmara Municipal do Porto assinam um acordo de colaborao para a requali-

    ficao das margens do Douro entre a Ribeira, Massarelos e a foz do rio, incluindo

    uma interveno num antigo palcio de veraneio do sculo XVIII, o Palcio do

    Freixo, depois transformado em residncia de um industrial de moagens no sculo

    XIX. Entretanto o edifcio da Alfndega Nova e a rea envolvente tinham sido

    Foto: Filipe Jorge, Portugal Visto do Cu. Ed. Argumentum, 2007.

  • 14

    recuperados para a VIII Cimeira Ibero-Americana, 1998, e para o novo museu dos

    Transportes e Comunicaes.

    Nos projectos de renovao urbana da Porto 2001, Capital Europeia da Cultura, a

    marginal objecto de uma profunda interveno de Massarelos at Foz

    (infraestruturas, canal do elctrico, jardins e espaos pblicos, viaduto do Cais das

    Pedras). O passeio ribeirinho ganha assim uma outra visibilidade e distino, assis-

    tindo-se a uma cada vez maior intensidade de investimentos no sector imobilirio

    residencial. A interveno nas margens ribeirinhas e no centro histrico e zona cen-

    tral da cidade est agora a cargo de uma Sociedade de Reabilitao Urbana

    (2004), uma instituio pblica com 60% de capital do Estado atravs do Instituto

    Nacional da Habitao, e 40% da Cmara Municipal do Porto.

    Na marginal de V.N. Gaia, a Administrao Porturia APDL, cmara municipal e

    privados iniciam tambm os primeiros contactos para uma interveno profunda

    no cais de Gaia (entretanto vazio), na marginal do entreposto vinhateiro e no pas-

    seio pblico at foz do rio (actual zona de interveno do programa POLIS). Para

    alm da qualificao do espao pblico, faz-se tambm uma profunda renova-

    o infraestrutral no mbito da despoluio do rio Douro (na margem do Porto

    foram construdas duas estaes de tratamento de guas residuais). O POLIS de

    Gaia um projecto ambicioso, mobilizando capitais privados e grandes reservas

    fundirias de antigas quintas, conventos, fbricas, armazns, cais, uma antiga seca

    de bacalhau, marina, hotis, etc., bem como uma interveno profunda no aglo-

    merado e porto piscatrio da Afurada, e todo o re-desenho da marginal e algu-

    mas vias de acesso cota alta da margem do Douro. Parte deste projecto urbano

    agora gerido pela PARQUE EXPO, uma empresa sada da grande operao

    urbanstica do parque de exposies da EXPO 98 Lisboa que constituiu em Portugal

    a primeira grande operao ao estilo internacional das waterfronts associadas

    organizao de grandes eventos.

    3. Concluso

    Esto assim lanados os dados para o futuro prximo:

    O rio Douro perdeu a lgica que vinha do tempo longo: j no o porto do Porto;

    j no a via que servia de suporte s relaes mercantis; foi domesticado de

    barragem em barragem, sendo um dos principais produtores da energia hidroelc-

  • 15

    trica portuguesa ao longo dos quase 300 Km de percurso em Portugal (incluindo o

    Douro Internacional). As memrias do passado esto agora como que

    compactadas em produtos tursticos, desde as gravuras Neolticas do Ca, aos

    artefactos porturios, armazns e fbricas dos sculo XIX e XX. A patrimonializao

    do Porto e da regio vinhateira, amplificam um imaginrio infinitamente reproduzi-

    do em imagens e textos para turistas, simplificando, retirando a espessura dos sig-

    nificados e reduzindo-os a verses prontas para consumir: Cosmopolitismo e localis-

    mos, convivem, como na gastronomia e nos vinhos, em estranhas redues (in

    cooking, reduction is the process of thickening or intensifying the flavor of a liquid

    mixture such as a soup or sauce by evaporation) e fuses. Nomes de condom-

    nios residenciais como Douros Place, D Ouro Villa, ou projectos tursticos como

    Aquapura Douro Valley, so inesperadas fuses de latim e ingls uma lngua

    hiper-morta com outra hiper-viva que designa um novo mapa de lugares e uma

    outra geografia em construo.

    O rio antes de mais um cen-

    rio, uma imagem poderosa, um

    cone, um espectculo. A cons-

    truo dos novos molhes na foz

    do rio, bem como as expectati-

    vas goradas do projecto da

    navegabilidade, parecem, por

    agora desfasadas da leitura que

    os operadores empresariais

    fazem da questo. Parece que

    o rio no tem um hinterland

    econmico ajustado ao trfego

    de mercadorias e mesmo isso tambm disputado por cenrios possveis de

    modernizao da linha ferroviria (projecto entretanto abandonado).

    Resta nova a leitura que a dinmica econmica faz da questo. O rio Douro, as

    vistas para o Douro so o argumento mais usado para produzir valores de distin-

    o e de filtragem ascendente para promover produtos imobilirios considera-

    dos de excepo. Imune s flutuaes cclicas do mercado imobilirio no seu con-

    junto (em crise desde 1999/2000), o ritmo de construo e de anncio de novos

  • 16

    empreendimentos no Porto e em V.N. de Gaia parece imparvel. Da

    gentrificao da zona histrica e monumental, aos novos projectos de raiz para

    terrenos desocupados ou edifcios industriais obsoletos, a febre do Douro acelera

    ao ritmo da filoxera na vinha no sculo XIX. Entre o regozijo de quem vende e de

    quem compra, nota-se uma difcil compatibilizao de valores assentes na defesa

    de valores paisagsticos, culturais e ambientais, por um lado, e, por outro, na acele-

    rao das procuras e das ofertas de imobilirio mais ou menos genrico, orienta-

    do para a gama alta do mercado e para uma certa mise-en-scne. Para tudo

    se produzem respostas: os empreendimentos so sustentveis e enquadrados na

    paisagem mesmo que a citao da natureza se reduza a um relvado montono;

    as arquitecturas oscilam entre o pastiche ps-moderno e um certo minimalismo e,

    para quem pode e aprecia, disputam uma assinatura de arquitecto conhecido.

    esta a nova equao, uma outra sociedade e outro modo de territorializao

    que o rio Douro e as suas margens vo registando num difcil equilbrio entre defesa

    de valores identitrios e patrimoniais que, ao mesmo tempo, vo sendo canibaliza-

    dos pelas novas intervenes que se dizem articuladas ou consonantes com esses

  • 17

    valores: Heterotopias no verdadeiro sentido de Michel Foucault:

    Nous sommes l'poque du simultan, nous sommes l'poque de la juxtaposi-

    tion, l'poque du proche et du ,lointain, du cte cte, du dispers. Nous som-

    mes un moment o le monde s'prouve, je crois, moins comme une grande vie

    qui se dvelopperait travers le temps que comme un rseau qui relie des points et

    qui entrecroise son cheveau. Peut-tre pourrait-on dire que certains des conflits

    idologiques qui animent les polmiques d'aujourd'hui se droulent entre les pieux

    descendants du temps et les habitants acharns de l'espace. Le structuralisme, ou

    du moins ce qu'on groupe sous ce nom un petit peu gnral, c'est l'effort pour ta-

    blir, entre des lments qui peuvent avoir t rpartis travers le temps, un ensem-

    ble de relations qui les fait apparatre comme juxtaposs, opposs, impliqus l'un

    par l'autre, bref, qui les fait apparatre comme une sorte de configuration; et vrai

    dire, il ne s'agit pas par l de nier le temps; c'est une certaine manire de traiter ce

    qu'on appelle le temps et ce qu'on appelle l'histoire.

    (Michel Foucault, Dits et crits 1984 , Des espaces autres (confrence au Cercle d'tudes

    architecturales, 14 mars 1967), in Architecture, Mouvement, Continuit, n5, octobre 1984,

    pp. 46-49.

  • 18

    esta mudana que verdadeiramente nos confunde. Perdidos os nexos

    funcionais da relao do rio com as suas margens, a nova construo de senti-

    dos e os seus diferentes significados a heterotopia , provoca uma ruptura acen-

    tuada nos modos tradicionais de fazer e justificar as opes e as realizaes do

    ordenamento do territrio e do urbanismo.