Universidade Federal do Amazonas – UFAM Instituto de Filosofia, Ciências Humanas e Sociais – IFCHS
Programa de Pós-Graduação em História – PPGH
A N A I S
I Seminário do Programa Nossa África
Diálogos africanos: novos objetos, pesquisas e ensino
Keith Valéria de Oliveira Barbosa ORGANIZAÇÃO
1ª Edição
ANAIS ELETRÔNICOS
Manaus - 2017
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Universidade Federal do Amazonas – UFAM
Instituto de Filosofia, Ciências Humanas e Sociais - IFCHS Programa de Pós-Graduação em História – PPGH I Seminário do Programa Nossa África – Diálogos africanos: novos objetos, pesquisas e ensino Promoção CNPq, PROEXT - UFAM, Programa Nossa África, Idiomas Sem Fronteiras. Comissão Organizadora Profª. Dra. Keith Barbosa (DH/IFCHS/UFAM) Prof. Dr. Hideraldo da Costa (DH/IFCHS/UFAM) Prof. Dr. Raimundo Nonato Pereira da Silva (DAN/IFCHS/UFAM) Profª. Valéria Moisin de Araújo (NUCLI/ISF/UFAM) Carlitos Luis Sitoie (doutorando, PPGCASA/UFAM) Wanderlene de Freitas de Souza Barros (mestranda, PPGH/UFAM) Roberta Ketllen Souza Duarte (licenciada em história/UFAM) Miguel Antonio Akel Neto (licenciado em história/UFAM)
Observações:
a) Todas as questões tratadas e abordadas nos textos que integram esta publicação
são de exclusiva responsabilidade dos respectivos autores.
b) Como critério de organização dos textos utilizamos a ordem alfabética dos
autores.
Ficha Catalográfica
Anais do I Seminário do Programa Nossa África – Diálogos africanos: novos objetos, pesquisas e ensino [recurso eletrônico]/ BARBOSA, Keith Valéria de Oliveira (organização e edição). Tipo de suporte: Internet. Editora FUA. Manaus. Edição: 1. 2017. 145 p. ISBN: 978-85-526-0035-0 1 História. 2 História das Áfricas. 3 Escravidão. 4 Diáspora africana. 5 Ensino de Áfricas e das Culturas Afro-brasileiras. 6 Literaturas africanas.
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SUMÁRIO
Apresentação, p. 05
Textos
A METÁFORA DO ESPELHO, NO NEGRO DE FRANZ FANON, EM HISTÓRIA DO RIO NEGRO, DE VERA DO VAL, p. 06 Alexandre da Silva Santos AFRODESCEDÊNCIA BRASILEIRA: REFLETINDO SOBRE PRECONCEITO À PESSOAS NEGRAS E DE ORIGEM AFRICANA, p. 17 Andrielle de Aquino Marques Carlitos Luís Sitoie Therezinha de Jesus Pinto Fraxe LÉA GARCIA NO TEATRO EXPERIMENTAL DO NEGRO ATRAVÉS DOS PERIÓDICOS, p. 28 César Aquino Bezerra Júlio Claudio da Silva RACISMO E ANTIRRACISMO NAS PÁGINAS DO QUILOMBO (1948-1950) , p. 39 Everton Dorzane Vieira Júlio Claudio da Silva A REPRESENTAÇÃO DO NEGRO E DO INDÍGENA NOS LIVROS DIDÁTICOS: LIMITAÇÕES E AVANÇOS, p. 48 Raescla Ribeiro de Oliveira Helenice Aparecida Ricardo UMA REFLEXÃO SOBRE O INÍCIO DA ESCRAVIDÃO NEGRA NAS AMÉRICAS, A PARTIR DO OLHAR HISTORIOGRÁFICO HISPANO-AMERICANO NO SÉCULO XX, p. 59 Girlane Santos da Silva CONTENDAS E QUERELAS NAS ÁGUAS DO ATLÂNTICO SUL: DIREITO DAS GENTES, TRÁFICO DE ESCRAVOS E DIÁSPORA AFRICANA, p. 70 Gustavo Pinto de Sousa
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DAS PRODUÇÕES INTELECTUAIS DO SÉCULO XIX E XX ÀS NOVAS DIRETRIZES: PROBLEMAS E PERSPECTIVAS ÉTNICO-RACIAIS, p. 85 Geize Vieira de Almeida Pedro José Seixas dos Santos IDENTIDADE ÉTNICO-RACIAL NO RIO ANDIRÁ: TRAJETÓRIA DE VIDA DE BENEDITO ANTÔNIO DA SILVA, p. 95 Jucinara Cabral da Silva João Marinho da Rocha FRONTEIRAS, IDENTIDADES E TRAJETÓRIAS: MIGRAÇÃO PARAENSE PARA O AMAZONAS, p. 110 Suena Santarém Loureiro João Marinho da Rocha A FESTA DE SÃO BENEDITO ATRAVÉS DO JORNAL A CRÍTICA (1979-2014), p. 125 Karollen Lima da Silva HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E AFRICANA: PRÁTICAS PEDAGÓGICAS PARA O DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM ORAL E ESCRITA, p. 136 Raescla Ribeiro de Oliveira
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APRESENTAÇÃO
O I Seminário do Programa Nossa África – Diálogos africanos: novos objetos, pesquisas e ensino, realizado entre os dias 23 a 26 de maio de 2017, pretendeu promover o conhecimento dos estudos africanos. Assim, com ênfase nos diálogos africanos, tanto no ensino como na pesquisa, esperamos ter ampliado a reflexão em torno das especificidades e das pluralidades que caracterizaram as sociedades africanas, estimulando o interesse para as pesquisas acadêmicas no Amazonas e investindo na capacitação dos participantes para abordarem o tema na sua comunidade ou nas suas instituições de ensino. Foi nosso interesse principal inaugurar e consolidar na Universidade Federal do Amazonas um importante espaço de debates e reflexões sobre as temáticas no norte do país. Por isso, os textos reunidos nestes Anais refletem as pesquisas acadêmicas que têm sido desenvolvidas nas principais universidades do estado do Amazonas por professores, alunos de pós-graduação e, destacadamente, os alunos dos cursos de graduação. O evento contou com fomento do CNPQ e reuniu cerca de cento e vinte participantes. Além disso, com o apoio da PROEXT/UFAM e Idiomas Sem Franteiras/UFAM conseguimos promover culturais na compo de pesquisa dos estudos africanos, da escravidão e das culturas afro-brasileiras. Logo, foi possível estabelecer um dinâmico encontro de saberes, temas e objetos de investigação que espelham cenários sociais em constante movimento.
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A METÁFORA DO ESPELHO, NO NEGRO DE FRANZ FANON, EM HISTÓRIA
DO RIO NEGRO, DE VERA DO VAL
ALEXANDRE DA SILVA SANTOS1
INTRODUÇÃO
Em tempos onde os valores e princípios de condução ou coerção social são
direcionados a partir do outro, o papel da literatura e, consequentemente, do escritor
é de criar espelhos que permitam ao leitor identificar a si, a partir de um olhar
intimista e engajado.
Em outras palavras, é a concordância com o pensamento de Tzvetan Todorov
(1978), ao entender a arte como um imitação, cuja literatura é o instrumento da
linguagem, ao construir imagens, isto é, o escritor literário conduz o leitor para frente
de si, por meio de uma enunciação plurissignificativa, que por meio da perenidade
permite que o olhar lançado para o eu-leitor traduza o verdadeiro conteúdo dos
corações dos homens e também o da sua consciência.
Esse fenômeno mimético, que Todorov (1978), expõe explica uma das funções
do texto literário: desvenda a existência através da percepção de mundo que se pode
enxergar, por meio de um texto metaforizado, por entender que esse recurso
linguístico da poética, permite ao escritor transcrever a realidade, conforme suas
respectivas intenções.
Logo, a literatura enquanto espelho é também um sinal de sabedoria,
conhecimento, o escritor o detentor de um artefato que cria imagens através da
linguagem, isto é, se utiliza de metáforas para estabelecer analogias da realidade,
representá-la. Uma transposição do pensamento do autor para persuadir ou ainda
mimetizar o factual, na investigação pela busca da verdade ou da apreensão do
conhecimento.
Nesse sentido, o estudo aqui abordado tem como objetivo revelar, ainda que
seja uma realidade aparente, uma reflexão do perene, da imagem do negro, muitas 1 Discente do Programa de Pós Graduação em Letras – Mestrado – Estudos literários, da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), professor-pesquisador. E-mail: [email protected].
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vezes por ele mesmo criada, enquanto identidade e reflexo de um eu invertido, uma
metaforização do espelho de um ser que inserido em um processo de
embranquecimento, multila sua respectiva identidade.
Dessa forma, tal qual um espelho cuja imagem projetada é ao mesmo tempo
uma metamorfose e criação, pensar no sujeito negro, através da narrativa de um
conto de Vera do Val, em Histórias do Rio Negro, é enxergar analogias fabricadas a
esse perfil e que sofre violência na essência de sua respectiva identidade.
Assim, o escritor desempenha o papel de cronista de seu tempo, através da
linguagem cria o fruto, que seria a condição humana exposta, e por meio da
literatura traz à vida as inquietações de seu tempo, a árvore.
Diante do exposto, Vera do Val, natural de Campinas, São Paulo, ganhou
destaque na Literatura produzida no Amazonas, após ser premiada no Concurso
Nacional Cidade de Manaus, em 2006, com o livro a ser mencionado no próximo
tópico textual. Mais tarde receberia o prêmio Jabuti, um dos principais concursos do
país, na categoria conto. Contista de uma linguagem simples e de natureza uniforme
ao exercício do signo em que o texto em Literatura exige, ela consegue ser o agente
que conduz o artefato como poucos, afinal, ela mimetiza situações que agridem a
identidade de um indivíduo, um povo, como será descrito a seguir.
Nisso, a escolha de um conto intitulado “Das Dores”, do livro Histórias do Rio
Negro, de Vera do Val (2007) é o discurso literário que refrata e reflete o pensamento
do negro que busca libertar – se de si mesmo, haja vista existir um complexo de
inferioridade, duplo narcisismo e negação de sua respectiva negritude diante de um
embranquecimento, que o mantém mais negro, provocando uma anulação, conforme
expõe Franz Fanon, na obra Pele negra, máscaras brancas, de 2008.
Paralelo a isso, o autor da obra mencionada no parágrafo anterior, nascido a 6
de julho de 1925, na ilha de Martinica, foi psiquiátrico, filósofo e ensaísta, além de
um influente pensador sobre os temas da descolonização e
da psicopatologia da colonização, no século XX.
Sua escrita analisa as consequências psicológicas da colonização, tanto para
o colonizador quanto para o colonizado, e o processo de descolonização,
considerando seus aspectos sociológicos, filosóficos e psiquiátricos, no âmbito da
prisão em que sem acha: enraizado nos mecanismos da submissão de ideologias
europeizantes. Fanon (2008), em outros termos, é uma das figuras expoentes na
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literatura de qualidade que se tem produzido em contexto africano, em busca da
libertação desse estado.
Dessa forma, há uma coerência entre o texto de Vera do Val (2007), Das Dores,
e do citado de Fanon (2008) e realidade, corroborando o pensamento de Todorov
(2009) em Literatura em perigo, por entender o objeto da literatura, um espelho da
própria condição humana, e ao fazer a leitura de um texto de natureza literária, o
leitor, não um especialista em Literatura, mas um conhecedor do ser humano. O
escritor sendo o cronista de seu tempo, a Literatura é o registro do pergaminho
temporal.
OS CRONISTAS DO TEMPO
Um autor quando pela ficção espelha a realidade factual, ele contribui com a
sociedade ao representar um contexto. Tal peculiaridade é notada na narrativa do
conto intitulado “Das Dores”, conto do livro Histórias do Rio Negro, de Vera do Val
(2007) quando a personagem que dá título ao conto surge no enredo descendo do
barranco “bonita como uma aparição”, isto é, o narrador por meio da metaforização
por comparação constrói uma verdade textual, sugerida pelo recurso linguistico: a
personagem é um fantasma.
Isto implica em afirmar, quanto ao enunciado literário, nesses termos, que ele
apresenta-se ao leitor como sendo a personagem uma mulher de beleza mestiça,
possui “olhos girassóis, nas ancas o balanço do rio, no andar a suavidade dos
peixes” (VAL, 2007, pág. 17), reflete um estereótipo marcado por uma mutilação da
identidade original do negro que o torna um escravo de sua respectiva mutação,
promovendo uma intertextualidade com a análise Fanoniana.
Afinal, o discurso metafórico, nesse contexto, vai além no termo “ancas” e na
expressão que associa o andar sedutor aos peixes, um símbolo fálico, traço
característico inicial da personagem “Das Dores”, por haver uma forte carga de
erotização, afinal, ela é prostituta. Tais recursos servem para conduzir o leitor por
meio da imagem criada a um reflexo de um fantasma de cor: o negro.
Assim, ao nomear, expor as origens do sujeito principal da narrativa, dá um
identidade ao personagem. Ei-las: “O nome, Saúva, nascera já na zona, devia à
bunda; deixará de ser Das Dores, nome de filha de Deus e virará Saúva...”(VAL,
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2007, p.17). Filha de um seringueiro e uma índia, dessa herdou os segredos da
floresta, cabelos e andar macio.
A partir do momento em que a literariedade do texto nascer da construção
resultante da organização do material linguístico e poético em obediência a certos
procedimentos. Esses “adquirem” qualidade literária e possuem a função poética ou
estética no texto, uma vez que sem a presença do literário, no ofício de cronista do
tempo, a trama textual é apenas uma narrativa.
Logo, tais origens justificam um prognóstico no que tange ao preto: ele é uma
alienação fabricada pela sociedade, conforme expõe Fanon, pelo fato desse
compreender que a “Sociedade chega ao ser pelo homem” (FANON, 2008, p.28); por
conseguinte, esse sujeito deveria conduzir uma luta no plano que o condicionou e
noutro que irá atingir a liberdade de marcas sociais e estigmas.
Essas marcas, em Vera do Val (2007), são compreendidas no instante em que a
autora descreve esse olhar da sociedade, para Das Dores, assim: “Qualquer um que
deitasse com Saúva tinha que ir preparado, a mulher fazia pelo gosto, o sujeito saía
babado e de olhos perdidos.” (VAL, 2007, p.18). O futuro dessa luta deve ser uma
construção do presente.
Como isso exige um movimento, tal dinâmica é agressiva e engendra à
escravização, afinal, a personagem é uma representação social, espelho de um
indivíduo que historicamente não é dado a oportunidade de possuir um reflexo de si
mesmo.
Consequentemente, Saúva começara “...a carreira no cabaré de Joana, a Sarará,
cafetina nomeada na boca do rio, e de lá não saira mais, prata da casa...” (VAL, 2007,
p.18), os componentes acima expostos ajudam em um manifesto de transformação
para a virilidade.
No primeiro momento, Das Dores, representação étnica e subjetiva da
submissão, agora Saúva, operária da escravidão da subjetividade do outro por meio
da prostituição, é fruto da metaforização da narrativa, que traz o tom de um
continente que tem moldura e é ausente de retrato, conforme afirma Mia Couto
(2008), em uma tripla restrição que impede o preto de possuir uma identidade livre
de espelhos, isto é: não sentir – se preso a um passado, nem ao presente fabricado
pelo outro, refém de metas terceiras.
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Nesse contexto, Vera do Val (2007), como autêntica escrivã de sua época,
registra o reflexo de uma humanidade expressiva utilizando – se de uma descrição
psicossocial de Saúva. Paralelo a isso, Franz Fanon (2008), como filósofo, psiquiátrico
e ensaísta, descreve a ambiguidade em âmbito clínico também o ser negro, indivíduo
que perdeu o direito de ser o centro do cosmos.
Dessa forma, a metaforização de circunstâncias, origens e outros relatos que
os cronistas fazem, são comparações da realidade factual, imagens que irradiam
verdades do eu e do outro. A linguagem literária atinge a plurissignificação do
objeto, do tempo da realidade factual através da ficção.
Como a linguagem é o artefato do cronista, Vera do Val (2007) expõe uma
busca por possível supercompensação, afinal, ela busca respeito ao olhar do outro,
logo, Saúva uma dia leva para a sua rede Chico, homem determinado e com recursos
financeiros que trariam segurança para a personagem. Ele era “...bom homem, lhe
fazia os gostos, lhe dava conforto, mas era só. “ (VAL, 2007, p.18).
Fanon, no capítulo 2 do livro “Pele negra, máscaras brancas2”, afirma que a
mulher de cor em relação ao branco (Chico), “..é o seu senhor: Dele ela não reclama
nada, não exige nada, senão um pouco de brancura na vida.” (FANON, 2008, p.54);
isto é, a materialidade da vida, o reflexo de sua imagem como alguém que de fato
existe.
Não a toa, Chico monta a casa, compra os móveis e roupas, respeito, afinal,
quando ela e Chico andavam “...pela rua, ninguém ousava olhar duas vezes. Era de
poucas falas, cada um sabe onde aperta o couro.” (VAL, 2007, p.19).
Mas, Saúva gostava da casa de Sarará, e determinou que cuidava de seu
homem pela manhã, de tarde era do cabaré. Fanon (2008), explica tal atitude ao fato
de se encontrar o amor pela sua medida, um sentimento autêntico e enquanto
impossível de ser eliminado, será sinônimo de inferioridade. Em outras palavras,
Saúva não se desliga de Das Dores, o fantasma de cor.
A construção do texto artisticamente literário, permite a impossibilidade do
mais provável do que uma possibilidade improvável, segundo Aristóteles (1996), em
Arte Poética. Isto significa dizer que a realidade do eu é revelada à medida que
acidentes ou traços de individualidade vão surgindo, permitindo interpretações,
deduções acerca do ser, centro da narrativa.
2 Obra traduzida em 2008.
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Dessa maneira, concordando com o pensamento de Bakhtin, a literatura cria
“uma parte inalienável da cultura, sendo impossível compreendê-la fora do contexto
global da cultura numa dada época” (2000, p.362) e ao chegar nessa instância o texto
cumpre uma demanda social e cultural por meio de correlações de sentidos.
Noutro momento, o espectro Das Dores surge no exato momento em que um
gringo aparece e por ela ficou encantado. A personagem riu – se por dentro, “passou
a mão nos cabelos, coçou o decote, se esmurou no gingado, deu um balanço de
ombro e desfilou alta e irá, quase roçando o corpo naquela loirice estrangeira.”
(VAL, 2007, p.20). Nesse ponto do enredo, o cronista do tempo relata uma marcação
especial: o nó da narrativa, o fruto da árvore crescendo.
Uma vez que o texto desempenha uma função de funil de correlações de
realidades para criar uma única verdade, com base em informações culturais,
sociais, existenciais, subjetivas, sensoriais, espaciais e sonoras; haverá violações, que
devem ser vistas como equivalências de uma unidade, isto é: existe um maniqueísmo
do mundo.
Afinal, o disfarce que Saúva cria frente ao estrangeiro, branco e loiro, não
podendo enegrecer o mundo com o seu reflexo diante do espelho – a sociedade –
conforme expõe Fanon: “...tentará embranquecer o corpo e pensamento.” (2008, p.56).
Saúva um dia ao estrangeiro, por sua vez, corroborando o ensaísta: “...escapou um
olho no olho, outro dia um ligeiro sorriso mais convidativo.” (VAL, 2007, p.21). O
fenômeno do embranquecimento teve início e a partir disso, o negro promove a
mutilação de sua respectiva identidade.
Sendo o Brasil uma nação multiétnica de maioria afrodescendente, a presença
desse negro em textos literários torna-se um reflexo de marcas sociais e históricas e
possibilita a compreensão e crítica de vozes que possuem o lugar de secundário na
prosa brasileira, muitas vezes desenvolvidos como discursos antagonistas ou ainda
marginalizados de alguma forma, caso de Saúva.
A realidade primordial da literatura consiste na dramatização do ato de
construir imagens. E através dos recursos simbólicos carregados nesse imagético, se
expressa uma idealização, individualidade, crenças, narrativas orais e teatro de ruas.
Partindo da premissa que a Cultura, o registro dela em um texto de ordem literária
comparava povos, diferencia-os, e os aproxima. Ela, cultura, expressa a totalidade
das características e condições de vida de um povo.
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Nesse sentido, Das Dores, o fantasma de cor que se levanta a partir da
presença do estrangeiro, potencializa uma brancura, ainda que marcada por
preconceitos existentes devido ser prostituta, mesmo tendo o seu homem, Chico. A
inclinação que a personagem feminina direciona para o estrangeiro, reflete o
pensamento de Fanon (2008), na medida em que ela por sua respectiva experiência,
revela-se “..infecunda, deve entrar na composição do real, e, por isso esse meio,
ocupar um lugar na reestruturação desse real.” (FANON, 2008, p.58).
Assim, Saúva, fantasma Das Dores, espera Chico sair para o garimpo, onde
trabalhava e começa a espiar pela cortina os fregueses que chegavam ao cabaré se
Sarará. Percebeu então a chegada do gringo, logo: “...se eriçou toda, chamou a
negrinha que anotava os pedidos. – Tá vendo aquele lá, o loiro aguado no canto? O
de camisa azul? Esse é meu e não quero enxerida.” (VAL, 2007, p.21).
Há nisso um complexo comportamento fóbico, haja vista o embranquecimento
apenas refletir um sentimento de inferioridade, uma necessidade de ascensão social
ou existencial, segundo a análise Fanoniana.
Mediante o exposto, Franz Fanon (2007), como um autêntico ensaísta, escritor
de uma literatura entendia como africana, inicia e termina a composição textual de
sua obra nos limites de sua respectiva experiência pessoal e do esforço que seu
espírito realiza para encontrar e formular ideias adequadas.
Significa isso dizer que o ensaísta, não raro, é um agente cuja composição
escrita em prosa é o resultado de estudos empíricos, discussões sem pretensão de
esgotar o assunto. Ele é capaz de estabelecer conexões sutis entre concepções e juízos
e com apreciações sempre nítidas.
Essas conexões que tanto Vera do Val (2007) e Franz Fanon (2008) realizam,
conforme Bourdie: “(...) permite superar a oposição entre leitura interna e a análise
externa sem perder nada das aquisições e das exigências dessa abordagem,
tradicionalmente percebidas como inconciliáveis” (BOURDIEU, 1996, p. 234).
Logo, é correto afirmar que analisando uma obra artística a partir dessa
postura, é viável considerar que a questão social não está refletida diretamente na
arte, pois ela é captada por um processo (imaginário do ficcionista) que altera seu
conteúdo original (FACINA, 2004). Com base nessa perspectiva, a literatura
desempenha o papel de espelho da realidade.
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Nesse contexto, Saúva levou o gringo para o quarto, no cabaré de Sarará, o
acomodou e depois “...saiu do canto escuro, os dentes brilhando em um sorriso, os
olhos prometendo tudo e foi se aproximando mansinha, tocando os dentes no peito
dele, ouvindo o suspirar do homem.” (VAL, 2007, p. 22). Depois que o fantasma se
apoderou da matéria, a imagem refletida naquela ação toda, transformou de vez a
personagem.
Afinal, ela só tinha olho para o gringo, não bastavam mais de dengos, as
tardes onde os dois se consumiam um do outro permitia a ela descobrir “um
caminho novo a percorrer naquela pele clara, tão diferente da sua, e ele se
emaranhava mais no dourado escuro dela...” (VAL, 2007, p.23).
À medida que essa realidade tornava-se fixa, o conflito que há entre devir a
ser e o não ser, provoca mazelas, deixa marcas. Isto é, quando Chico toma
conhecimento do cenário exposto “...não tugiu, nem mugiu, sentiu um frio na
barriga. Voltou pra casa, a fiou a adaga e esperou o dia seguinte”. (VAL, 2007, p.24).
Logo mais, com febre no corpo e alma gelada, “...deu um bote só, saltou de repente,
sem aviso e sem medo e cravou a adaga no peito dele.” (VAL, 2007, p.24).
O preto inferiorizado, diante da humilhação de sua impotência, desespera – se
num sentimento de frustração e culpa, continuará escravo de si mesmo, na ilusão de
um dia torna-se branco.
MATERIAL E MÉTODO
O presente estudo foi realizado por meio de um estudo bibliográfico, partindo
das leituras iniciais das obras Histórias do Rio Negro, particularmente no conto “Das
Dores”, de Vera do Val (2007); e Pele Negra, máscaras brancas, de Franz Fanon
(2008). Posteriormente, leituras foram feitas concernentes aos estudos culturais,
literatura e sociedade, teoria da literatura.
Após essa etapa, realizou-se uma leitura informativa, obedecendo a exposição
de Cervo (1996, p.20): coletas de dados por seleção, natureza reflexiva e
interpretativa. Logo após, construídos fichamentos de tais obras investigadas, com o
propósito de sistematizar os dados obtidos para a realização de outras literaturas
relacionadas à proposta da pesquisa, para enfim, compilar as informações
necessárias, considerando o contexto acadêmico e literário de épocas diferentes.
(FONSECA, 2010, p.58).
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O método adotado no estudo enquanto pesquisa fora o dialético e
comparativo, por entender quer a expressão cultural, imagética e literária não é algo
estagnado, mas dinâmico; assim, a dialética envolve investigação da realidade
(textual) e corrobora tal exposto. Por sua vez, as comparações realizadas objetivam
explicar semelhanças e divergências dentro das mudanças que implicam os estudos
sociais e culturais, na Literatura.
Desta forma, uma vez os textos lidos e organizados, produziu – se a análise
temática, interpretativa e de síntese pessoal acerca do assunto abordado. Com isso,
pôde ser feito um levantamento e discussão de problemas relacionados à mensagem
obtida dos autores, no intuito de elaborar uma dissertação de mestrado, cujo tema
proposto em questão aborde uma reflexão dialética entre teóricos de Teoria da
Literatura, conceito de Cultura, Cultura amazônica em sintonia com a produção
literária desenvolvida nesse estudo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Literatura é o espelho da sociedade, do inconsciente humano. A
representação que ela traduz associa-se ao processo de apreensão da realidade e
Cultura o choque dessa representação, uma invenção oriunda de um sincretismo. Ou
seja, quer-se dizer que a realidade primordial da literatura consiste na dramatização
do ato de construir imagens, por isso, será tratada como arte e não como outra coisa.
Desse modo, pensar criticamente esse perfil de expressão cultural no
Amazonas, a da mutilação de identidades a partir da afirmativa acima exposta, é
observar uma ausência de investigação acadêmica acerca do assunto e o mais grave
em contexto local: negar o passado histórico e privilegiar uma historicidade fabricada
por aventureiros e colonos ao longos de três séculos.
Com efeito, como cultura também pode ser entendido como “civilização”, ela
tanto nos instrui a um estilo de neutralidade de vida quanto esclarecimento de uma
vida refinada, estudar ou falar desse termo implica em voltar-se para o homem e
expor suas respectivas particularidades e a combinação dessas diz-nos que somos
construtores e representantes de um mesmo fenômeno humano. (EAGLATON,
2003).
No que tange ao negro, segundo a professora Patrícia Sampaio (2012), no
texto “Negro na Amazônia: recuperando a sua história”, a presença de um espaço de
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cultura, cujo território marcadamente cultural é indígena, naturalmente ou caboclo,
fez com que as marcas das culturas africanas se deslocassem em menor número por
conta do conhecimento que os nativos possuíam na extração do vegetal aqui
presente.
Logo, Saúva é a típica mulher negra que mesmo possuindo o seu homem,
exerce no estrangeiro branco e loiro, de olhos azuis, a chance de se ressignificar pelo
amor, ainda que esse sentimento seja um ato de violência, devido ao fato de a
identidade dela formar-se a partir de um encontro com outro e não com ela mesmo,
em um processo existencial da sua respectiva subjetividade, intimidade.
As letras produzidas no Amazonas, em contexto literário são escassos no trato
do assunto desenvolvido nesse estudo, mesmo o olhar sobre o nativo, é a fabricação
do olhar de fora, isto é, o reflexo de uma imagem cujo projeto imagético é de um
terceiro, de um discurso polifônico – estrangeiro – menos amazônico enquanto
identidade.
REFERÊNCIAS BIBIOGRÁFICAS
ARISTÓTELES, Arte poética. In. Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996.
BAKHTIN, Mikhail. Os estudos Literários Hoje. In. Estética da Criação Verbal. 3. ed.
São Paulo: Martins Fontes, 2000.
BOURDIEU, Pierre. As Regras da Arte. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
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AFRODESCEDÊNCIA BRASILEIRA: REFLETINDO SOBRE PRECONCEITO À
PESSOAS NEGRAS E DE ORIGEM AFRICANA
CARLITOS LUÍS SITOIE3 THEREZINHA DE JESUS PINTO FRAXE4
ANDRIELLE DE AQUINO MARQUES5
INTRODUÇÃO
A influência da visão redutora sobre a população negra tem bases na teoria de
Lafargue (1842-1911), socialista francês e genro de Karl Max, que considerava o
Homem negro como bárbaro, atrasado e selvagem, havendo necessidade de civiliza-
lo através da colonização. Segundo ele, o negro não tinham hábitos/costumes de
pessoas, sem linguagem de gente, nem cantos e danças agradáveis, não
demostravam gosto pelas coisas consideradas boas pelos europeus, não contemplava
belezas, nem arquitetava ideias que caracterizam raciocínio, entre outros aspectos
dignos de seres humanos, se constituindo como seres isentos de cultura.
Ki-Zerbo et al. (2016), refuta, dizendo que a África tem sua história, que
congrega valores legítimos, havendo necessidade de repensar esses povos como
sujeitos e não apenas como objetos de dominação, conversão e escravatura. Sendo
que mesmo escravizados no período compreendido entre século XVI à XVIII,
desempenharam papel dinamizador na cultura e economias do “Novo Mundo”
(Brasil, Caribe, Ilhas Francesas, EUA, Goa e Macau), acelerando as relações entre a
África, Ásia e as Américas. Enquanto isso, os libertados fundaram Agudás ou
comunidades de ex-escravos, disseminando valores da diáspora, fortificando cada
vez mais essas relações, como foi no caso de Congo (AJAYI, 1982).
3 Doutorando em Ciências do Ambiente e Desenvolvimento Sustentável na Amazônia pela Universidade Federal. 4 Professora Associada da Universidade Federal do Amazonas, coordenadora do Núcleo de Socioeconomia (NUSEC/FCA/UFAM 5 Bibliotecária mestre em ciências da comunicação. Bibliotecária no Serviço Social da Indústria (SESI)
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O processo redutivo negro se fortificou dentro da África com a montagem da
administração colonial (1884-1935), continuando sob categoria de apartheid na
Rodésia do Sul e África do Sul. Vedando o acesso aos espaços ocupados pelos
brancos, expropriando terras e todas as riquezas dos negros até excluindo-os da vida
política, apesar de constituírem a maioria no país.
Perante esta temática, no Brasil, foi estabelecido que o ensino devia fazer o
direcionamento para o atendimento a lei n° 10.639/2003 estabelecendo as diretrizes e
bases da educação nacional, incluindo no currículo oficial da Rede de Ensino a
obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira" (BRASIL, 2005).
PRECONCEITO COMO HERANÇA DO SISTEMA COLONIAL
A estrutura da administração colonial na África resultou na construção de
uma categoria de Homens negros (em maioria), capturados e transportados, em
condições desumanas. Para trabalhar como mão de obra escrava numa forma
humilhante, representando o desprezo e barbárie, perdendo suas crenças, batizados
na religião católica e indigitados nomes europeus ignorando por completo suas
culturas e saberes, principalmente no Brasil, nas ilhas francesas, Caribe e nos Estados
Unidos da América. Porque falavam idiomas diferentes, dificilmente conseguiram
impor-se contra as injurias do escravizador, que dava continuidade à política usada
para dominar a África e os africanos denominada “dividir para reinar”.
O termo escravo, segundo qualquer dicionário brasileiro, significa aquele que,
é privado da liberdade, está submetido à vontade de um senhor, a quem pertence
como propriedade. Recursivamente o termo escravo é creditado ao indivíduo de pele
negra, africano ou afrodescendente, Carboni (2003). Mas a verdade é que os
primeiros escravos eram indivíduos de pele clara ou branca.
Partindo de Querino (1954) e Gândavo (1965), é possivel afirmar que
etimologicamente o termo vem de slav, que designa um grupo étnico da Europa
central e oriental (Brancos) que perdeu a liberdade depois que Carlos Magno tomou
a região em que habitavam. A palavra original gerou diversas derivações para outros
idiomas.
Os documentos dos administradores, missionários da igreja e outros que
constituíam a máquina da administração colonial, na época. Descrevem a África
atrasada, não civilizada entre outras, visões eurocêntricas. Essas desinformações
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traduzem preconceito, racismo e dificuldades em articular novos raciocínios sobre o
negro e a história deste continente. Persistindo a imagem construída pela insistência
a teoria de Lafargue, das representações africanas como a terra dos safáris, dos leões,
dos homens nus e dos escravos. Sempre subjulgada em relação aos outros
continentes.
Cunha Jr. (1999), discorre sobre o “bloqueio da imaginação e informação
desinformada sobre a África” como sendo o resultando na descrença, negação ou
pela dificuldade do mundo fora da África entender seu contexto. A dificuldade de
produzir, criar sinapses ou abstrações que permitam a reprodução da complexidade
das relações que ligam a África e outras partes do mundo.
Essa construção constitui uma herança do sistema colonial, que é imposta até
os dias atuais. De forma consciente ou não, usa-se a cor da pele, para validação de
estatutos sociais. Refletido no Brasil, através da lei que denuncia o preconceito, cotas
raciais e maior número de negros em profissões de baixa renda. Segundo o IPEA
(2011), “[...] até hoje cerca de 96,7% das empregadas domésticas são negras e a
criação das cotas raciais comprovam que a sociedade enxerga o negro como incapaz,
ou menos capaz que os brancos e a lei referente ao preconceito denuncia a sua
existência”.
Constantemente têm aparecido na mídia brasileira notícias de preconceito
racial travestido de melhorias sociais, mas na verdade reafirmam a discriminação
segundo a cor da pele. Nas eleições de 2014 para presidência da república um dos
candidatos veiculou nacionalmente uma propaganda afirmando que “[...] colocaram
negros e pobres nas faculdades, nos aviões, na posse de seus direitos” (ESTADÃO,
2015). Veiculações com essa conotação induzem indiretamente a população em geral
a pensar que negros e pobres são palavras semelhantes e ainda que os negros sejam
desfavorecidos apenas pela cor da pele.
Santos (2009) e Zago (2012) são unanimes em afirmar que apesar da Lei
Federal 10.639/03 que coloca a obrigatoriedade, de ensino de conteúdos sobre África
nos programas de ensino brasileiro. O teor dos assuntos positivos continua ínfimo
em relação aos aspectos negativos sobre a África, que a definem como: África
colonizada, escravizada, subdesenvolvida, com conflitos armados, com alta taxa de
mortalidade, industrialização atrasada, agricultura tradicional, falta de
infraestruturas, degradação ambiental, entre outros problemas.
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Diante desta problemática, surgem questionamentos, tais como: Porque ainda
existe tanto preconceito racial, entendendo que a independência do Brasil datada em
meados 1822?, com a segunda maior população negra do mundo, porquê os negros
ainda representam as minorias desfavorecidas? Quais os fatores que garantem a
continuidade dessa visão em relação ao negro? A reflexão exige o questionamento,
uma discussão, sobre o nível de conhecimentos sobre os universais da cultura
humana e o conhecimento sobre a geografia e história da África, tal como é vista pela
África e pelos africanos.
GEOGRAFIA E HISTÓRIA DA ÁFRICA PARA FORMAÇÃO DE CONSCIÊNCIA
POSITIVA SOBRE OS NEGROS
Experiências de convivência com alguns brasileiros deduziram ao
preconceitos e desconhecimento do papel de negros africanos e afrodescendentes na
evolução da humanidade e da sociedade brasileira em particular. Repetidamente,
questionaram como conseguiu conviver com leões, elefantes, cobras e outros animais
da selva, se sabia usar celular, computador, como foi possível estudar até ao
doutorado sendo negro? Na maioria insistiram em denominar/chamar de “africano”
aos indivíduos vindos de Moçambique, angola, Benim, Camarões, Togo, entre outras
nações africanas, reduzindo um continente extenso ao mero pais de negros africanos.
Mas se recusavam de ser chamados ou identificados de americano por que são
brasileiros, mesmo sabendo que seu pais localiza-se na América.
Para respeitar os povos negros é preciso primeiramente conhecer as origens e
suas singularidades, o que evitaria recursivamente falar da África de forma
homogênea, como se fosse um único país. É necessário compreender as diversas
culturas e influências da complexidade dialética de 56 países e 8 territórios. É preciso
realizar movimentos de análise, sobre os fatos e fenômenos históricos das
temporalidades e espacialidades, que busquem explicações, que agrupem esse
universo em aspectos geológicos, históricos, políticos, econômicos, socioculturais e
ambientais em geral.
Aspectos geológicos, que busquem a consciência sobre as diferenças e
semelhanças existentes da África e relação com outros continentes. Movimento das
tectônicas, processos que resultem na formação das diferentes formas de relevo
(montanhas, planaltos e depressões), acompanhados pelos processos da evolução das
espécies. O que significa que a África como espaço geográfico compartilha
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semelhanças geológicas e de ecossistemas com outros continentes, o que o torna igual
as outras partes do mundo.
Historicamente reside no fato, de ser, o “berço da humanidade”, traduzindo a
ideia de que todos os seres humanos têm um ancestral comum descendente do
continente africano incluindo as primeiras sociedades de classes e reinos.
Para além de ser o berço das civilizações humanas, o continente africano,
constitui um dos maiores patrimônios da humanidade, pela diversidade de
ecossistemas, povos (1.111 milhões de pessoas) que compartilham mais de 1.000
línguas locais e internacionais, tais como: inglês, francês, árabe, espanhol, português,
os idiomas africanos e culturas. Contribui com grandes serviços ambientais, através
de ecossistemas, recursos naturais e humanos. Ao estudar a cultura brasileira
podemos perceber a forte influência de base africana na literatura, música, culinária
não apenas no Brasil, mas também em quase todos os países do mundo.
Tal como outras partes do mundo é afetada pelos problemas globais,
relacionados com eventos extremos: fome, epidemias, conflitos étnicos, guerra civil,
analfabetismo, entre outros, o que permite concluir que não é digno exaltar esses
aspectos como se a África vivesse apenas de misérias, nudez ou como fonte única e
pura desses problemas relacionados à cima.
Na religião apenas cerca de 40% ainda praticam cultos africanos, 60%
compartilham outras formas de crença religiosa de origem asiática, europeia e
americana.
Alguns países africanos possuem índice de desenvolvimento humano maior
que o Brasil, entre eles a República de Seicheles. O país esteve em 50º lugar no
ranking da Organização das Nações Unidas (ONU) de 2008, com um IDH de 0,843.
As ilhas Maurícias (ou Ilhas Maurício), em 65º lugar no ranking com IDH de 0,804. O
Brasil é apenas o 70º, com índice de 0,800 (SATO, 2009).
A economia é bastante segregada, de acordo com as características de cada
país no geral, tal como qualquer parte do mundo, cada nação é influenciada por
fatores de ordens Físicas e Geográficas: localização, recursos naturais, belezas
naturais; Históricos: influenciados pelo tipo de colonização que sofreu sendo Inglesa,
Francesa, Portuguesa e Espanhola; os fatores Políticos: países em conflitos armados e
étnicos. Apesar disso tudo podemos destacar a exploração mineral e o turismo como
algumas das alavancas da economia atualmente.
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De acordo com Devisse e Vansina (1982) a África participou sempre no
processo histórico mundial em que evoluíram as economias, realizando trocas
comerciais nas diferentes regiões do continente, assim como fora, mantendo contatos
com os Árabes Suaílis e algumas caravanas da Ásia menor. Registrando grandes
transformações relativas à produção de alimentos, relações com ambiente,
urbanização entre outros aspectos.
Quanto ao desenvolvimento urbano é preciso tirar de brasileiros e sociedade
em geral a ideia massificadora da representação da África como apenas um lugar
rural que simboliza safáris e animais selvagens. A África possui grandes cidades com
zona urbana muito desenvolvida, mais que muitas cidades brasileiras.
Entre elas podemos destacar:
FIGURA 1 - Nigéria, lagos. Abuja é a cidade capital, com PIB de US$ 595 bilhões e 175 milhões de habitante.
Fonte: Habitat Urbain (2016).
Figura 2 - África do Sul, Durban. Principais cidades são: Johanesburgo, Pretória e Cidade do Cabo. Economia baseada na indústria, turismo e comércio, PIB de US$ 342
bilhões e 51 milhões de habitantes.
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Fonte: Eduardo Vessoni/UOL.
Figura 3 - Egito, Cairo capital, possui PIB: US$ 285 bilhões e população de 87 milhões de habitantes.
Fonte: Portal Pharaohegypt.
Pensar o continente africano como um lugar rural é recusar que ele participa
nas conjunturas ou dinâmicas sistêmicas que constituem o mundo moderno
globalizado. É preciso aceitar que está integrado num contexto mundial, constituído
através de processos compartilhados e de conexões ocultas que organizam as
reciprocidades de ações, em que os africanos fazem parte. Esses processos
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compartilhados formam conjunturas ou dinâmicas duradouras da história da
humanidade em que os africanos em especial os negros sempre interviram, não como
objetos, mas sim, como principais sujeitos.
PROPOSTAS DE ENSINO SOBRE ÁFRICA
A história e a geografia como disciplinas escolares, desempenham um papel
central na formação da consciência de cidadania, sentimentos de patriotismo e de
pertencimento de todos indivíduos à mesma casa, o sistema terrestre como lugar de
todos. Para tanto, estas disciplinas, deveriam ser estruturadas de modo a capacitar os
alunos de forma a construírem e reconstruírem conhecimentos, atitudes e
habilidades de respeito mútuo entre os povos.
A potencialização da transdisciplinaridade nas escolas brasileiras desde o
ensino básico dando ênfase aos conteúdos de sociologia, antropologia, linguística
entre outras que podem resgatar autoestima afrodescendente. Ensinando
progressivamente desde os primeiros anos de escolaridade respeito aos valores afro
em seu conjunto, sempre numa perspectiva holística que permita compreender a
pluralidade e diversidade, incluindo as semelhanças e diferenças com outros grupos
sociais brasileiros.
Faz-se necessário desconstruir e eliminar os elementos básicos das ideologias
preconceituosas, através de apresentação de vídeos, fotografias, filmes e outros
materiais áudio visual com teor da imagem positiva sobre a África.
Apresentação de estudos, conceitos e categorias comparativas entre países
africanos e o Brasil, diminuindo a distância de uma África perdida na floresta.
Recomendação de referenciais teóricos (Mia Couto, Fage, Hampaté Bá e
outros) e biografia de líderes políticos africanos (Nelson Mandela, Samora Machel,
Kwame Kruma, José Eduardo dos Santos, Julius Nyerere, Robert Mugabe, etc.) como
fontes importantes de informação em prol da cultura e redução da desinformação
com as questões africanas.
Mostrar o desenvolvimento econômico, político e urbano das cidades
africanas: Lagos na Nigéria, Maputo em Moçambique, Cairo no Egito e outras.
Algumas com índice de desenvolvimento igual ou superior ao Brasil (Seicheles,
Maurícias, Tunísia, Cabo Verde e Argélia).
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Perante as dificuldades em contextualizar a África, como é percebida por seu
povo, surge a necessidade de convênios entre especialistas brasileiros e africanos.
Esta já é uma realidade em vigor, algumas universidades brasileiras possuem
convênios com universidades e institutos africanos de educação e tecnologia com
intercâmbio de professores e estudantes. Contar com a visão de africanos ou
brasileiros que conhecem a África e sua poderosa metodologia de pesquisa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O preconceito sobre o negro pode ser aliado a diversos fatores, sendo alguns
ideológicos provenientes da herança colonial impregnada no sistema de ensino
brasileiro, o desconhecimento das singularidades, das pluralidades físico geográficas
e socioeconômicos das origens afro descente. Havendo necessidade de conhecer
essas origens africanas aprendidas ou estudadas a partir da realidade de seus povos
e livre de ideologias preconceituosas ocidentais. Para que isso aconteça é necessário
rever os conteúdos programáticos de ensino, as fontes de conhecimentos e as
metodologias de abordagem mostrando a realidade, as dificuldades e problemas
sociais assim como, o potencial econômico das grandes cidades africanas e os
sucessos/avanços das populações negras.
O estudo da História e Geografia possibilita diversas abordagens
metodológicas como uso de vídeos de filmes e documentários, mapas ilustrados,
fotografias, livros, artigos entre outros subterfúgios que podem facilitar a
comunicação entre professores e estudantes. É necessário utilizar-se de informações
atualizadas que mostrem o progresso social desses países na linha do tempo.
Tratar a África como homogênea é desmerecer os méritos do desenvolvimento
econômico, político e social de diversos países que se empenham para equiparar-se
as hegemonias mundiais com investimentos milionários em infraestrutura e
educação.
Os países africanos, assim como os países americanos, possuem historicidades
diferentes, até mesmo de resistência ao processo de colonização. Equipará-los em um
mesmo patamar é simplificar a analise temporal e sócio-espacial, um pecado aos
historiadores e geógrafos. Cabe a nós desmistificar o mito de África selvagem e
caracterizar individualmente cada país, a partir de suas características econômicas,
sociais, ambientais, históricas, políticas e outras. Que nos permitam conhecer a
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imagem da realidade dos negros africanos para valorizar também os
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LÉA GARCIA NO TEATRO EXPERIMENTAL DO NEGRO ATRAVÉS DOS
PERIÓDICOS∗
CÉSAR AQUINO BEZERRA** JULIO CLAUDIO DA SILVA***
INTRODUÇÃO
O presente artigo analisa a contribuição dos atores egressos do Teatro
Experimental do Negro, em especial, a da atriz Léa Garcia, no processo de criação e
ampliação da presença de atores, personagens e temáticas negra nos teatros
brasileiros, na década de 1950. Assim também procuramos iluminar as relações
raciais no universo das artes cênicas no Brasil, face à conjuntura política desta
década. De acordo com Petrônio Domingues (2006:101), a pesquisa da História do
Movimento Negro, pensada a partir das principais fases da História da República
Brasileira, possui muitas lacunas. Na tentativa de suprir esse espaço vazio na
historiografia brasileira, seguimos o que Silva (2015) chama de abordagem inovadora
nesse tema: a História do Movimento Negro, neste caso específico do Teatro
Experimental do Negro, não a partir de suas lideranças, mas da trajetória de atrizes
que surgem em espetáculos montados para denunciar o racismo nos palcos
brasileiros e posteriormente profissionalizam-se. Pretendemos unir essas duas
propostas de pesquisa, ao investigar a História do movimento negro, tomando como
perspectiva “o tempo da experiência democrática” (FERREIRA & DELGADO, 2010) e
do “nacionalismo e reformismo radical” (FERREIRA & AARÃO REIS, 2007). Vale
sublinhar ter Léa Garcia subido aos palcos em espetáculos montados para denunciar
∗ Apontamentos do projeto de iniciação científica “A trajetória de Léa Garcia no Teatro Experimental do Negro (1952-1956)” desenvolvido no âmbito do projeto de produtividade acadêmica “Entre o Teatro Experimental do Negro e Casa Grande e Senzala: a trajetória de Léa Garcia nos diálogos entre o palco e a plateia (1952-1971)”. ** Graduando em História na Universidade do Estado do Amazonas – Centro de Estudos Superiores de Parintins. Bolsista do Programa Institucional de Iniciação Científica e Tecnológica. Email: [email protected] *** Professor Adjunto do Colegiado de História na Universidade do Estado do Amazonas – Centro de Estudos Superiores de Parintins. Email: [email protected]
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o racismo e posteriormente se profissionalizado, e permanecido no campo do
ativismo negro, pelo menos até a década de 1980.6
Sobre o uso dos periódicos em pesquisa histórica, dialogamos com as
inovações historiográficas trazidas a partir da terceira geração dos Annales, na década
de 1970, quando são adotados novos métodos de análise e crítica aos documentos
históricos, e surgem novas concepções sobre as fontes jornalísticas (LUCA, 2005:111-
112).
Nessa perspectiva os periódicos e, especialmente, os jornais, são vistos como
fontes não apenas para observação dos grupos dominantes, no interior do jogo
político, mas também para elementos do cotidiano social. Essas fontes tornaram-se
uma importante ferramenta para o trabalho do historiador (BARBOSA, 1998:87).
Como toda e qualquer fonte, os periódicos não são o registro da verdade, sobre
aquilo que é analisado. É imprescindível dialogar este documento com outras fontes,
problematizar os silêncios e as omissões. E, manter um olhar crítico sobre a suposta
objetividade da notícia, pois o jornalismo faz “uma seletiva reconstrução do
presente” (p. 88). A pesquisa originária deste artigo foi feita a partir de periódicos
doados pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Afro Brasileiros, do Rio de Janeiro
(IPEAFRO-RJ) ao Grupo de Estudos Históricos do Amazonas da Universidade do
Estado do Amazonas (GEHA/UEA).
Léa Lucas Garcia de Aguiar nasceu no Rio de Janeiro, em 11 de março de 1933,
filha de José dos Santos Garcia e Stella Lucas Garcia. Após o falecimento de sua mãe,
foi morar com a avó materna, na casa dos Godoy, uma rica família da zona sul
carioca. Com dezesseis anos, conheceu a atriz Ruth de Souza, que teria falado a seu
respeito com Abdias Nascimento. Após conhecê-la, Abdias Nascimento, fundador e
diretor do Teatro Experimental do Negro (TEN), iniciou os seus argumentos para
convencê-la a ser atriz.7 Deste contato teve início um relacionamento amoroso e,
posteriormente, o estabelecimento do que hoje denominamos como união estável
entre ambos. O relacionamento durou três anos e gerou dois filhos com o fundador
do TEN.
Na década de 1950, Léa Garcia atuou em sete montagens do TEN dirigida por
Abdias Nascimento, no Rio de Janeiro e em São Paulo, “Rapsódia Negra” (1952),
6 Curriculum Vitae de Léa Garcia. Acervo Privado Léa Garcia/Grupo de Estudos Históricos do Amazonas. 7 Dados biográficos coletados na entrevista de Léa Garcia concedida a Sandra Almada, para o livro “Damas Negras: sucesso, lutas, discriminação”. Rio de Janeiro: Mauad, 1995.
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roteiro de Abdias; “O Filho Pródigo”, de Lúcio Cardoso (2ª montagem em 1953 e 3ª
montagem em 1955); “Festival O’Neill”, com cenas de “Todos os filhos de Deus têm
asas” e “O Imperador Jones”, e “Onde está marcada a cruz” na íntegra (1954), de
Eugene O’Neill; e “Sortilégio (Mistério Negro)” (1956), de Abdias Nascimento. Ainda
em 1956, participa de “Orfeu da Conceição”, de Vinícius de Moraes e direção de Léo
Jusi, sua primeira atuação profissional.8
Desde então, Léa tem atuado no cinema, teatro e televisão, em uma longa
carreira com um pouco mais de seis décadas. Um de seus personagens mais
conhecidos na televisão foi a escrava Rosa na novela “A escrava Isaura” (1975), da
TV Globo, exibida em dezenas de países. Também conhecida internacionalmente é a
atuação em seu primeiro filme, “Orfeu do Carnaval” (1957), dirigido por Marcel
Camus, pelo qual ficou em segundo lugar como “Melhor Atriz” no Festival de
Cinema de Cannes.9
Léa Garcia também foi funcionária do Ministério da Saúde, ocupando o cargo
de agente administrativa. Trabalhou com teatro terapêutico com os pacientes no
Hospital Pinel, no Rio de Janeiro. Na década de 1980, ingressou no Instituto de
Pesquisa das Culturas Negras (IPCN), onde foi membro da diretoria desta entidade
do movimento negro. 10
Até o século XX, a mulher foi excluída do campo histórico. A mulher era
relegada ao espaço privado, o lar, a família, e apenas aos homens era dado o espaço
público, o político, que era estudado em fontes onde mulheres raramente apareciam
(DEL PRIORE, 2014:217-219).
Segundo Soihet & Pedro (2007:284-286), as mudanças historiográficas
ocorridas a partir dos Annales, aliadas às reinvindicações levantadas pelo movimento
feminista na década de 1960, começaram a reverter esse quadro e dar voz a essas
personagens afastadas da discussão histórica. Entretanto, já na década seguinte,
dentro e fora do campo historiográfico, surgiram questionamentos sobre a categoria
“mulher” (p. 286, 287).
A adoção da categoria gênero, como uma ferramenta mais abrangente para
iluminar as relações sociais, supera a perspectiva apresentado pela História das
Mulheres. O gênero passou a ser percebido como um dos três eixos de exclusão do
8 Idem. 9 Idem. 10 Idem.
31 Texto integrante dos Anais do I Seminário do Programa Nossa África – Diálogos africanos: novos objetos, pesquisas e ensino.
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poder, e a ser analisada a divisão sexual dos papéis. Gênero é uma construção social,
e, assim sendo, é algo cultural: “homens e mulheres tornavam-se o produto de um
processo de aculturação, eles eram, por assim dizer, fabricados e não nasciam como
se apresentavam socialmente” (DEL PRIORE:232). Analisar as relações sociais a
partir do uso da categoria gênero nos permite ver que essas distinções baseadas no
sexo não são naturais, mas cada cultura construiu modos particulares de excluir a
mulher da participação pública e de legitimar essa exclusão. Permite ainda ver as
relações entre mulheres e homens, pois é impossível tentar compreendê-los
totalmente em separado (SOIHET & PEDRO, p. 288-289).
Iluminados pela categoria gênero, mapeamos e transcrevemos 77 recortes de
periódicos, cedidos pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Afro Brasileiros (IPEAFRO-
RJ) ao Grupo de Estudos Históricos do Amazonas da Universidade do Estado do
Amazonas (GEHA/UEA). Originários de 20 instituições jornalísticas diferentes,
alguns desses recortes de periódicos, não apresentam nome de autor ou local, e
outros são documentos, que tratam da memória pública do TEN e da atriz Léa
Garcia, entre o período de 1952 a 1957.
ATUAÇÃO DE LÉA GARCIA E O LUGAR DA MULHER E DA ATRIZ NEGRA
Os recortes de jornal que fazem menção à Léa Garcia podem ser divididos em
dois grupos. O grupo que avalia a sua atuação, com elogios ou depreciação ao seu
trabalho de interpretação. O segundo grupo de críticos, ao desenvolverem o seu
trabalho, revelam as concepções desses atores sobre o lugar da mulher negra.
Uma das matérias mais antigas entre os recortes de periódicos doados pelo
IPEAFRO-RJ ao GEHA-UEA não apresenta identificação de autoria e expõe a
iniciativa de Abdias Nascimento em “Rapsódia Negra”. Segundo a matéria, a peça
apresenta “uma espécie de antologia do folclore das três Américas, incluindo
motivos brasileiros, haitianos, cubanos e até norte-americanos”, o que para o autor
do artigo resultou em uma “verdadeira colcha de retalhos”.11
Contudo o espetáculo não teria sido “de todo desinteressante, apesar de longo
e um tanto cansativo”. Para o autor da matéria, “números como Candomblé e
Maracatú salvam o espetáculo de um fracasso retumbante”. Assim como a atuação
11 Sem autor, “Prece a Xangô para que ajude Abdias”. Ultima Hora, [s. l.], 31 jul. 1952.
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de artistas de rádio, como Coralina, “a dona do show”. Para o articulista, o
espetáculo era “pobre, mal vestido e mal ensaiado”. Contudo, o autor não
identificado reconhece as dificuldades de Abdias Nascimento em produzir o
espetáculo, por não ter auxílio, “sabotado pelos organismos oficiais, que tinha o
dever de ajuda-lo”. Sobre a jovem atriz estreante, destaca sua beleza e presença. “Léa
Garcia é uma bonita crioulinha, tem “aplomb”12 e está muito graciosa como rainha do
Maracatú”. Em relação à sua atuação observa, “mas, como canta mal! A sua “Mãe
Preta” é de amargar!” A nota final pede a Xangô que ajude as iniciativas de Abdias,
pois “o moço tem peito. E há de mostrar, algum dia, do que é capaz”.13
O artigo de Sabato Magaldi14, de 1954, destaca a homenagem do TEN ao autor
americano recém-falecido, Eugene O’Neill, com o “Festival O’Neill”. Especialmente
porque este lhes concedeu os direitos de “Imperador Jones” e “Todos os filhos de
Deus têm asas”, no início das atuações do TEN. Continua, afirmando: “Como
espetáculo foi fraco, fraquíssimas as cenas das duas peças acimas referidas. Abdias
Nascimento, Léa Garcia e Ivone Miranda não conseguiram nada em Todos os filhos
de Deus têm asas.” A matéria também destaca a notória beleza da atriz, “Léa Garcia é
uma figura belíssima”, entretanto, “em matéria de interpretação está ainda muito
crua e a mesma coisa continua acontecendo com o veterano Abdias Nascimento”.
Sabato comenta seu desencanto com a atuação dos atores negros, pois faltava agora
“a marca daquelas interpretações, algumas vêzes incertas, mas que se tornavam
“bem”, porque eram criações espontâneas e encantavam pelo sabor do primitivo”.
Encerra elogiando a terceira peça do Festival, “Onde está marcada a cruz”.15
Já em 1957, a matéria “Será racista Abdias do Nascimento?: paixão e tragédia
da cultura negra!”, do Ultima Hora, comenta a tentativa de Abdias de apresentar
“Sortilégio” em São Paulo. O artigo aborda as avaliações em torno da peça feita pela
imprensa carioca. Segundo o autor não identificado, Abdias Nascimento e sua obra
teatral eram percebidos como racista por alguns. O articulista faz menção à
originalidade da peça como motivação das críticas negativas. Uma das seções do
artigo traz uma entrevista com o diretor do TEN, apresentando sua visão sobre a
peça. Na entrevista, Abdias explica que a história do personagem principal equivale
12 Do francês aplomb. Segurança, confiança. Arrogância; ousadia. Ver: Dicionário Infopédia da Língua Portuguesa com Acordo Ortográfico. Disponível em <http://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/aplomb>. 13 “Prece a Xangô para que ajude Abdias”. 14 Provavelmente, trata-se de Sabato Magaldi, conhecido crítico teatral carioca. O recorte do jornal, talvez devido a uma falha na impressão, mostra “Sabato Magaian”. 15 MAGALDI, Sabato. “O’Neill pelo Teatro do Negro.” Diário Carioca, Rio de Janeiro, 19 jan. 1954.
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a história da cultura brasileira, “a mais completa e absurda alienação, gerando
problemas e conflitos de toda a ordem”. Também comenta o papel de sujeito dos
valores culturais africanos e sobre a escolha do diretor Léo Jusi. Depois, a matéria
recupera a opinião de Nelson Rodrigues, “o maior autor dramatico brasileiro”, sobre
a peça, em um “artigo de fogo”, onde elogia a proposta, o significado da peça, que se
baseia na “experiência vital do autor”. Logo após há elogios para diversas pessoas
envolvidas na peça, o que aparenta ser uma fala de Abdias. Por fim o texto destaca a
atuação de Léa Garcia no espetáculo: “No elenco sobressai o nome de Lea Garcia,
maior atriz do teatro brasileiro, segundo Leo Jusi, isto entre brancas e negras. Lea
interpreta “Efigenia” e o faz de forma exemplar.”16
“Censura e teatro”, de Decio Prado, é outra matéria emblemática sobre
Sortilégio. O artigo publicado no final de outubro de 1957 divide-se em duas seções. A
primeira inicia com a menção à censura de “Perdoa-me por me traíres”, de Nelson
Rodrigues. Neste espetáculo, Abdias Nascimento e Léa Garcia estavam escalados
para atuar.17
A peça passou por interdições e liberações da censura, e Prado credita isso
principalmente à influência cada vez maior “de um grupo catolico dentro dos
quadros da censura oficial”. Para ele, o governo sofre “pressão de natureza
religiosa”. Contudo, para o crítico, o governo não pode se dobrar a “um dos varios
grupos de opinião que compõem a totalidade do País”. Mesmo estes sendo maioria.
O Estado deve “velar pelos direitos das minorias que, sem esse poder neutro e
mediador, seriam sempre esmagadas, negando-se assim a liberdade de pensamento
individual”. Decio de Almeida Prado afirma não crer que as autoridades católicas
queiram “exercer jurisdição, de qualquer natureza, também sobre os não-catolicos”.
Em uma menção clara a restrição do diálogo a ser estabelecido no inteiro da Igreja
Católica, Almeida Prado formula o seguinte argumento: se querem, simplesmente
impedir que católicos assistam à peça, isso se deve a um assunto “puramente
confessional, que nada tem a ver com o Estado”. Aprofundando a sua crítica, observa
“o fato de recorrer ao Estado, de tentar impor os seus pontos de vista através de um
organismo laico, parece-nos, por parte da comunidade catolica, uma confissão, não
de força, mas de fraqueza”. Remetendo à condição de Estado laico, prevista na
Constituicao, o articulista enfatiza que esta atitude não é própria de uma época “que
estabelece, como pacifica, a separação entre a Igreja e o Estado”, e serviria apenas 16 Sem autor, “Será racista Abdias do Nascimento?: paixão e tragédia da cultura negra!”, Ultima Hora, São Paulo, 17 set. 1957. 17 PRADO, Decio de Almeida. “Censura e teatro.” Estado de São Paulo, São Paulo, 27 out. 1957.
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para renascer o anticlericalismo. A seção termina prevendo se essas situações
persistirem, brevemente “fôrças contrarias, desejosas de preservar a liberdade da
criação artistica, igualmente se arregimentem e se apresentem para a luta”. E lembra
que “numerosissimos catolicos, dos mais esclarecidos, pensam como nós”.18
A segunda seção do artigo, trata da estreia de “Sortilégio”, que também sofreu
com a censura. “A representação – feita em carater de exceção, uma só vez, no Teatro
Municipal – veio mostrar, na prática, a inanidade dessa suposta defesa da
moralidade publica.” O autor define como nobre a iniciativa de Abdias do
Nascimento com o TEN, mas isso não basta “para fazer um autor dramático”.
Compara a peça com os dramas de Eugene O’Neill, mas diferencia:
O’Neill encara essa volta á magia e aos ritos primitivos como uma regressão da personalidade, ao passo que Abdias a enxerga, ao contrario, como uma volta triunfal, embora trágica, á religião dos seus maiores, uma reintegração na cor que o protagonista consciente ou inconscientemente, renegara.
Prossegue afirmando que “o verdadeiro defeito de “Sortilégio” é outro”, a
falta de integração “entre pensamento e ação, entre personagem principal e
personagens secundarias, entre enredo e pano-de-fundo dramatico”. E diz que seu
conteúdo é apenas “o ressentimento racial”, o que a levou a ser chamada de
“racista”. Entretanto, “a simples existência de “Sortilégio” serve, de certo modo,
como prova em contrario”; precisa duvidar-se “dos primores da nossa chamada
democracia racial”. O problema brasileiro não é igual ao americano, mas este
também não é igual ao sul-africano: “Há, portanto, toda uma gradação de
preconceitos e injustiças, que é preciso ponderar, antes de repetir cegamente que não
há questão a resolver.”. Além da menção a elementos constituintes a uma montagem
teatral, como os cenários, Almeida Prado traz-nos sua visão sobre a atriz Léa Garcia.
Novamente há um grande destaque para o corpo da mulher. “Entre os interpretes,
Lea Garcia é uma esplendida presença, cheia de magnetismo sexual e animal, ainda
que parecendo pertencer mais ao teatro norte-americano genero “Porgy and Bess19”
18 Idem. 19 Porgy and Bess é uma ópera do compositor americano George Gershwin. Imaginada como uma "ópera folclórica americana", Porgy and Bess estreou em 1935, “e tinha um elenco composto unicamente de cantores negros com formação clássica - uma escolha artística ousada na época”. A obra não foi
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que ao nosso.” E encerra comentando a inutilidade da censura, pois “o publico
moderno sabe muito bem cuidar da sua moral”, pois “a moral deve se basear, não na
ignorancia, mas no conhecimento preciso de todos os assuntos”.20
Dois dias depois, o artigo “Sortilégio: o milagre do Teatro Negro que fez
explodir polêmicas e paixões”, de Ewaldo Ferreira, comenta a estreia de “Sortilégio”
em meio a uma grande greve na capital paulista, o que não atrapalhou a chegada do
público. Relembra os “choques com a censura”, a reação dividida da crítica carioca à
montagem, “racista – foi a menor das acusações” sobre Abdias “que procurou
deslindar à frente das platéias a intimidade das tragedia que o negro vive até mesmo
no Brasil, depois de superados tantos preconceitos”. A matéria relata as dificuldades
logísticas para a montagem e realização da peça no teatro paulista, pois os materiais
que vinham do Rio de Janeiro chegaram apenas um dia antes da estreia no Teatro
Municipal de São Paulo. Duas faltas eram especialmente notórias: a ausência de um
sonoplasta e da “artista loura cujo personagem centraliza as atenções da peça só de
personagens negros”. Após encontrarem um bom sonoplasta e uma atriz substituta
para a personagem branca do espetáculo, o autor elogia a cena com Abdias e Léa
Garcia. “A artista negra que apareceu pela primeira vez ante os paulistas,
desenvolvendo um trabalho consagrador”. Ainda sobre Lá Garcia, afirmou: mostrou
ser “uma artista absolutamente excepcional, de um talento raro no teatro brasileiro.”
Exceto pela parte financeira, o autor comenta os resultados favoráveis da encenação,
inclusive que Abdias afirmara “consequencias que se estenderam até o amago dos
espiritos de muitas pessoas que estavam na assistencia, chegando mesmo a
influenciar decisões de vida”.21
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Há uma grande quantidade de recortes de periódicos e documentos sobre o
período de atuação da atriz Léa Garcia, nos acervos doados pelo IPEAFRO-RJ ao
GHEA-UEA. Dado os limites de um paper, centraremos nossa análise a Sortilégio
(Mistério Negro), primeira peça escrita por Abdias Nascimento. A cobertura do
bem aceita, e considerada racista por alguns críticos. Disponível em <https://pt.wikipedia.org/wiki/Porgy_and_Bess_(musical)>. 20 PRADO. “Censura e teatro.” 21 FERREIRA, Ewaldo Dantas. “Sortilégio: o milagre do Teatro Negro que fez explodir polêmicas e paixões.” Diário da Noite, São Paulo, 29 out. 1957.
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espetáculo revela aspectos do ambiente político e cultural vivido pelos integrantes do
Teatro Experimental do Negro, nos anos cinquenta.
Uma amostra da importância da peça pode ser percebida na leitura do artigo
de Nelson Rodrigues, “Abdias: o negro autêntico”, já mencionado. 22 Discorrendo
sobre Sortilégio, o autor aponta para um descompasso entre a validade e qualidade da
peça e os críticos. Para Nelson Rodrigues “a maioria da crítica não vai entendê-la”.
Eles irão mesmo “se atirar contra” o mistério de Abdias, “mas nada impedirá que o
mistério negro entre para a escassa história do drama brasileiro”. Este foi um dos
muitos artigos da época, revelador do impacto da montagem do Mistério Negro na
cena cultural brasileira.
Sobre a montagem deste espetáculo, é necessário também considerar o papel
limitador da censura, reflexo da conjuntura política da década de 1950. Escrita em
1951, Sortilégio foi impugnada duas vezes antes de sua montagem, conforme consta
em um parecer do censor Alvaro Adamo.23 A recusa em reconhecer como legítima a
peça e tratar a questão racial pode ser verificada a partir das alegações para a sua
proibição. A primeira impugnação, em maio de 1951, foi dada por “explorar
preconceitos de raça, usando uma linguagem que não poderá ser ouvida por
nenhuma plateia”. Dois anos depois, em maio de 1953, após nova petição do
fundador do TEN, a proibição é mantida, pois “procura, de modo corrompido e em
linguagem menos sadia, tornar tensas as relações entre brancos e pretos”.24 Um
recorte do articulista Nicanor Miranda, de 1953, comentando a segunda censura,
informa que Abdias “recorreu a Associação Brasileira de Críticos Teatrais de São
Paulo [ABCT], solicitando parecer sobre a peça”.25 Após ser dado o parecer, a ABCT
enviou um ofício para o diretor da Divisão de Diversões Públicas protestando contra
a proibição, reconhecendo que “o problema do negro no Brasil existe, embora de
forma atenuada”, e mesmo nos Estados Unidos “não põem entraves para que
escritores teatrais brancos ou negros o discutam com a maior liberdade”. Considera
que tal proibição não contribui para “a fama que queremos ter de país onde já se
realizou, de maneira perfeita, a democratização racial”.
Nas matérias que destacam o papel de Léa Garcia no TEN, verificamos críticas
negativas, como as do autor de “Prece a Xangô para que ajude Abdias”, comentando 22 RODRIGUES, Nelson. “Abdias: o negro autêntico.” Ultima Hora, [s.l.], 26 ago. 1957. 23 ADAMO, Alvaro. [Sortilégio]. São Paulo, 19 maio 1953. Parecer da Divisão de Diversões Públicas de São Paulo sobre a peça Sortilégio. 1 folha avulsa manuscrita. 24 Idem. 25 MIRANDA, Nicanor. “Sortilégio, a censura e a ABCT.” Diário de São Paulo, São Paulo, 22 jul. 1953.
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que ela cantou mal em sua estreia nos teatros, ou Sabato Magaldi dizendo em 1954
que “em matéria de interpretação está ainda muito crua”. Mas, todavia as críticas
positivas tornam-se mais comuns à medida que a atriz amadurece e se aproxima do
fim da fase experimental, como após a estreia de Sortilégio na capital paulista. Na
ocasião, Ewaldo Dantas comenta ser Léa Garcia “uma artista absolutamente
excepcional, de um talento raro no teatro brasileiro”.
Entretanto, ao mesmo tempo, em algumas matérias, é possível verificar o
lugar da mulher negra. Refiro-me às matérias em que sobressaem o corpo da atriz,
como uma “figura belíssima”26 e com “magnetismo sexual e animal”27. As definições
sobre a beleza parecem atenuar a avalição negativa da atuação de Léa Garcia.
Vale sublinhar um aspecto revelador das relações de gênero contida nessas
críticas. Nenhuma das matérias, até então pesquisadas, apresenta referências
similares aos homens, atores atuantes nas peças. Tais palavras parecem evidenciar
um certo lugar, destinado a o corpo feminino, nas hierarquias de gênero presentes na
sociedade brasileira.
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reimpressão. São Paulo: Contexto, 2014. p. 217-235 26 MAGALDI, Sabato. “O’Neill pelo Teatro do Negro.” Diário Carioca, Rio de Janeiro, 19 jan. 1954. 27 PRADO, Decio de Almeida. “Censura e teatro.” Estado de São Paulo, São Paulo, 27 out. 1957.
38 Texto integrante dos Anais do I Seminário do Programa Nossa África – Diálogos africanos: novos objetos, pesquisas e ensino.
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39 Texto integrante dos Anais do I Seminário do Programa Nossa África – Diálogos africanos: novos objetos, pesquisas e ensino.
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RACISMO E ANTIRRACISMO NAS PÁGINAS DO JORNAL QUILOMBO (1948-
1950)*
EVERTON DORZANE VIEIRA∗∗
JULIO CLAUDIO DA SILVA***
INTRODUÇÃO
O presente artigo analisa a contribuição do Teatro Experimental do Negro, no
processo de combate ao racismo na sociedade brasileira no final da década de 1940,
face a conjuntura política nesta década. Tomamos como perspectiva as ações
antirracistas registradas no jornal Quilombo em matérias, colunas e editoriais. O
Teatro Experimental do Negro – TEN surgiu para tornar possível a montagem de
espetáculos que iluminassem temáticas socioculturais negras. Vale sublinhar ser o
Quilombo um braço impresso, um veículo de divulgação das ações do TEN e uma das
mais importantes obras capitaneada por Abdias Nascimento.
As páginas do jornal Quilombo apresentam várias matérias com denúncias e
proposições para a superação do racismo. Entre elas estão matérias com a defesa da
campanha de conscientização “de que não existem raças superiores nem servidão
natural, conforme nos ensina a teologia, a filosofia, e a ciência”. A defesa do
esclarecimento ao “negro de que a escravidão significa um fenômeno histórico
completamente superado, não devendo, por isso, constituir motivo para ódios ou
ressentimentos” bem como “inibições motivadas pela cor da epiderme que lhe
recordar sempre o passado ignominioso”28.
*Apontamentos do projeto de iniciação científica. ∗∗Acadêmico do Curso de Licenciatura em História, na Universidade do Estado do Amazonas (UEA), Centro de Estudos Superiores de Parintins (CESP). *** Professor Adjunto do Colegiado de História na Universidade do Estado do Amazonas – Centro de Estudos Superiores de Parintins. Email: [email protected] 28 Jornal Quilombo, Ano 01/Nº 01, publicado em 09 de dezembro de 1948, página 03.
40 Texto integrante dos Anais do I Seminário do Programa Nossa África – Diálogos africanos: novos objetos, pesquisas e ensino.
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A década de 1950 fez parte de um denso e controverso período para a análise
historiográfica. No plano da política nacional destaca-se a tentativa de construção de
um regime Civil e Democrático. A análise da História do Movimento Negro tendo
como perspectiva as principais fases da História da República Brasileira é um tema
subexplorado, já sinalizou Petrônio Domingues29.
Ao tomar como referência o período entre 1889 e o ano 2000, Petrônio
Domingues identifica três fases da História do Movimento Negro, nas quais este
movimento social empreendeu diversas estratégias de luta a favor da população
negra. A primeira fase compreende o Movimento Negro organizado entre a Primeira
República e o inicio do Estado Novo (1889-1937). Segunda fase refere-se ao período
entre o fim do Estado Novo e o Golpe Civil-Militar. E por fim a terceira fase que
compreende do inicio do processo de redemocratização à República Nova
(DOMINMGUES, 2006:101).
A partir da análise da matéria publicada no jornal Quilombo pretendo
compreender o lugar ocupado pelo TEN, no processo de luta contra as desigualdades
de cunho racial face à conjuntura política da República brasileira no final da década
de 1940.
O presente artigo dialoga com as inovações introduzidas pela chamada
terceira geração dos Annales, na década de 1970. “Foi neste momento no qual houve
um redirecionamento da historiografia, com adoção de novos métodos de análise e
crítica aos documentos históricos que surge às novas concepções e perspectivas em
relação às fontes jornalísticas” (LUCA, 2005:111-112). Assim os periódicos e, em
particular, os jornais passaram a ser visto não somente como fonte de observação dos
grupos dominantes, no interior do jogo político, mas também como acesso a
elementos do cotidiano social, ao coletivo.
Sendo assim, os periódicos tornaram-se uma importante fonte para a
construção de novos objetos de pesquisa histórica. A imprensa tornou-se uma
importante ferramenta para o trabalho do historiador (BARBOSA, 1998:87). É
importante estabelecer o diálogo deste documento com outras fontes, entre cruzá-las
com outras informações. Problematizar os silêncios e as omissões. E sobre tudo
manter um olhar crítico sobre a suposta objetividade da notícia: “vista como uma
falácia, até para o mais ingênuo dos profissionais”. Pois faz parte do labor jornalístico
a seleção, hierarquização, priorização das informações. (STEPHANOU, 2001:45).
29 Para um trabalho ver (BARRETO, 2007; ALBERTI & PEREIRA, 2007a; ALBERTI & PEREIRA, 2007b).
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O racismo é um dos assuntos mais discutidos na sociedade contemporânea,
principalmente nos ambientes educacionais. O jornal Quilombo é uma fonte
privilegiada por mostrar as denúncias públicas de racismo e a proposta para a
superação dessa desigualdade nos anos quarenta.
DENÚNCIAS PÚBLICAS DE RACISMO DO JORNAL QUILOMBO
Ao selecionarmos as matérias que tratam de denúncias públicas de racismo,
feita pelo jornal Quilombo, identificamos 11 matérias dos primeiros 05 números do
jornal30. Contudo, em função dos limites deste trabalho, elegemos duas matérias para
análise. A matéria, “Linha de côr”, redigida por Raquel de Queiroz e “Há preconceito de
côr no teatro?”. Esta última foi escrita a partir de uma entrevista de Abdias
Nascimento, diretor de Teatro Experimental do Negro, com Nelson Rodrigues, que
enfatiza em suas palavras o racismo nos palcos dos teatros brasileiros.
A seção “Arquivo” do número um do jornal tem por tema “Linha de Côr”.
Escrita por Raquel de Queiroz31, que refuta um escritor, não identificado. Segunda
Raquel de Queiroz este autor “lamentou outro dia, nas colunas de um matutino
paulista, ‘a invenção artificial do problema da gente de côr’ aqui no Brasil, invenção
pela qual seria uma das responsáveis esta vossa humilde servidora”32. Como
estratégia argumentativa a autora põe-se a formular perguntas ao seu admirado
colega.
Para a autora racismo não é um caso individual, mas sim recorrente. Para
Raquel de Queiroz a formulação de “filosofia da mulataria” nasceu de um conceito
primário e simplista, elaborado por certos sociólogos. E apresenta uma questão sobre
30 As 11 matérias descritas sobre as denúncias públicas de racismo são: Linha de côr (Jornal Quilombo, Ano 01/Nº 01, publicado em 09 de dezembro de 1948, página 02); Crianças racistas (Jornal Quilombo, Ano 01/Nº 01, publicado em 09 de dezembro de 1948, página 08); Há preconceito de côr no teatro? (Jornal Quilombo, Ano 01/Nº 01, publicado em 09 de dezembro de 1948, página 01); Racismo – a herança de Hitler (Jornal Quilombo, Ano 01/Nº 02, publicado em 09 de maio de 1949, página 02); Racismo ante o parlamento (Jornal Quilombo, Ano 01/Nº 02, publicado em 09 de maio de 1949, página 06); O silêncio do General Lima Câmara (Jornal Quilombo, Ano 01/Nº 02, publicado em 09 de maio de 1949, página 03); Discriminação nas obras sociais (Jornal Quilombo, Ano 01/Nº 02, publicado em 09 de maio de 1949, página 08); Os arianos de Criciúma (Jornal Quilombo, Ano 01/Nº 03, publicado em junho de 1949, página 04); Ku-Klux-Klan (Jornal Quilombo, Ano 01/Nº 04, publicado em julho de 1949, página 09); Liberdade de culto (Jornal Quilombo, Ano 02/Nº 05, publicado em janeiro de 1950, página 07); O amor venceu o preconceito (Jornal Quilombo, Ano 02/Nº 05, publicado em janeiro de 1950, página 09). 31 Jornal Quilombo, Ano 01/Nº 01, publicado em 09 de dezembro de 1948, página 02. 32 Idem.
42 Texto integrante dos Anais do I Seminário do Programa Nossa África – Diálogos africanos: novos objetos, pesquisas e ensino.
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o tema: “Se nos Estados Unidos existe um problema negro, por que no Brasil não o
haveremos de ter também?”33.
A autora prossegue seu diálogo com o colega colunista lhe indagando a
lembrança de “certo requerimento feito pelos comerciantes chamados Triângulo
Paulista a interventora de São Paulo, em abril de 1944”34. Segundo o texto havia
documentos que solicitavam a retirada das pessoas de cor. Na década de 1940, os
racistas estavam “pedindo que fosse proibido as pessoas de côr no trânsito pela área
do citado Triângulo”35.
A narrativa da autora pretende iluminar os vários exemplos de racismo pelo
país, presente em praticamente em todos os lugares onde habitavam negros e
brancos. Para Raquel de Queiroz o racismo não seria um caso individual, daí a sua
pergunta irônica, “será isso simples ‘caso individual’?”36.
A escritora cearense segue indagando ao articulista sobre casos de racismo de
grande repercussão, “recorda o famoso caso de Criciúma, Santa Catarina, onde um
engenheiro de côr (filho, aliás, de um médico ilustre), quase foi linchado porque
ousou entrar – com convite – num baile clube local?”37. Para a colunista mesmo o
negro sendo da alta sociedade, ainda sim sofria desta enorme injustiça por não ser
aceito apenas por ser negro.
Outra pergunta da autora foi “será por ausência de preconceito que quase
nenhuma das ordens religiosas existentes no Brasil recebe pessoas de côr no seu selo
– salvo como leigos, que quer dizer, como criados?”38.
A autora informa os casos de racismo mais elevado, ao tratar das crianças
negras que estudavam naquele período, crianças que não eram aceitas em colégios de
classe. Por isso lembra ao seu nobre colunista “e os colégios grã-finos não aceitam
alunos ou alunas de côr?”39.
A autora também se detém em exemplos relativos ao racismo nos ambientes
de trabalho. Três exemplos de racismo em empresas diferentes para mostrar ao seu
colega, que também no âmbito profissional o racismo fazia-se forte. O primeiro 33 Idem. 34 Idem. 35 Idem. 36 Idem. 37 Idem. 38 Idem. 39 Idem.
43 Texto integrante dos Anais do I Seminário do Programa Nossa África – Diálogos africanos: novos objetos, pesquisas e ensino.
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exemplo seria o caso da: Light (e o governo fecha os olhos ante a isso) não admite
telefonistas de côr?”40. O outro exemplo “e que nenhuma loja das ditas elegantes
daqui do Rio de Janeiro, de São Paulo e de outras capitais, emprega vendedor de
côr?”41. E finaliza com este exemplo “já viu manicuras e cabelereiras de côr nos salões
de beleza de luxo?”42.
Raquel de Queiroz faz referência ao racismo nos espaços de sociabilidade,
“sabe que nenhum bar da área atlântica, em Copacabana, permite que sente em as
suas mesas algum freguês de côr? E que restrição era feita nos casinos – e ainda é
feita em certas ‘boites’ ou cabarés da alta sociedade?”43. O racismo fazia com que o
negro não se livrasse a um momento de sofrer tanta discriminação, além de sofrer no
trabalho, e ainda nos momentos de lazer.
Raquel de Queiroz também cita casos de racismo no âmbito educacional.
“Recorda o caso denunciado pela minha cara amiga e grande escritora Lia Correia
Dutra, a respeito de dois alunos seus que não foram admitidos em certa escola –
porque eram mulatos?”44. E ela ainda recorda mais sobre este tipo de discriminação
nas escolas, “e por falar em escolas, sabe, o meu distinto confrade, que a Fundação
Rio Branco, escola de preparação de rapazes para a carreira diplomática, igualmente
recusa alunos de côr?”45.
Uma de suas indagações visa identificar como como nomear o racismo na
sociedade brasileira. “Se isto não é discriminação racial – e, mais grave ainda,
discriminação admitida e amparada pelo governo que nome lhe daremos?”46. Em
relação ao Teatro de Negro, ela afirma que “não ignora de certo o meu colega e
mestre que se trata de uma experiência cultural do mais elevado significado
artístico”47. A autora conhecia a proposta de Abdias Nascimento e os demais
membros do teatro em realizar esta ação, cujo resultado foi revelar ao público
brasileiro “grandes homens de teatro, da força de um Abdias do Nascimento e de um
Aguinaldo Camargo”48.
40 Idem. 41 Idem. 42 Idem. 43 Idem. 44 Idem. 45 Idem. 46 Idem. 47 Idem. 48 Idem.
44 Texto integrante dos Anais do I Seminário do Programa Nossa África – Diálogos africanos: novos objetos, pesquisas e ensino.
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Raquel de Queiroz evidencia a necessidade da fundação do TEN. Para
esclarecer ao seu “caro amigo” as motivações para que “esses notáveis artistas se
viram obrigados a fundar um teatro próprio, em vez de, como seria natural, se
incorporassem as companhias teatrais já existentes?”49. Abdias Nascimento saberia
que o negro não tinha vez nos demais teatros. E quando obtinha a oportunidade de
atuar, somente os brancos ficavam com as cenas principais, e o negro como atuante
invisível, “porque até hoje, no teatro brasileiro, nunca um negro pode aparecer num
papel sério. A si só lhe cabe o lugar de criado ou de palhaço. Ou Pai João, banzando,
ou moleque arteiro, levando cascudo”50.
Além do mais, as atrizes negras apareciam apenas em atuações sensuais,
desvalorizando o corpo da mulher, afirmando que esta somente servia para tal
função, “aproveitam-se ainda as mulatas bonitas, cantando e dançando seminuas nos
espetáculos mais ou menos só para homens”51. E mais nos teatros de grande
importância, quando o negro aparece, é apenas como ridículo. “Teatro sério, arte de
verdade, jamais lhe abriu as portas. Não vê o Grande Otelo? Tem fibra de ator, é um
grande ator. Mas só tem uma chance no teatro dos brancos se se veste de mulher e
pendura beiço, fingindo de macaco”52.
Essas observações de Raquel de Queiroz nos informa que o preconceito racial
estava presente em quase todos os espaços da sociedade brasileira na década de 1940.
Independente de o negro ser conhecido ou da alta sociedade, sofrem o racismo assim
como os negros pobres do Brasil.
A segunda matéria escolhida para nossa análise foi redigida a partir de uma
entrevista de Abdias Nascimento com Nelson Rodrigues. A pergunta feita pelo
diretor do jornal dá o título da matéria “Há preconceito de côr no teatro?” 53. Nelson
Rodrigues afirma “ingenuidade ou má fé negar o preconceito racial nos palcos
brasileiros”54.
Na época da entrevista Nelson Rodrigues já era escritor de várias peças
teatrais, tais como: Vestido de Noiva, A mulher sem pecado, Álbum de Família e Anjo
Negro. Essas obras, segundo o jornal recebeu, muitos elogios. Seu autor fora definido
49 Idem. 50 Idem. 51 Idem. 52 Idem. 53 Jornal Quilombo, Ano 01/Nº 01, publicado em 09 de dezembro de 1948, páginas 01e 06. 54 Idem.
45 Texto integrante dos Anais do I Seminário do Programa Nossa África – Diálogos africanos: novos objetos, pesquisas e ensino.
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como “verdadeiro gênio”. Contudo o trabalho de Nelson Rodrigues recebeu diversas
críticas “negando-lhe qualquer valor”.
O jornal QUILOMBO faz a seguinte pergunta a Nelson Rodrigues: “A que
atribui o afastamento do negro ou mestiço dos nossos palcos?”55. E de acordo com o
jornal, ele respondeu “com precisão”56. Nelson Rodrigues inicia resposta a afirmar
sobre o racismo no teatro. “– Acho, isto é, tenho a certeza de que é pura e simples
questão de desprezo. Desprezo em todos os sentidos, mas físico, sobretudo” 57. Com
base nesta resposta percebe-se que o racismo estava presente nos teatros do Brasil.
Ele responde a questão afirmando que negros eram praticamente ausentes dos
teatros, “raras companhias gostam de ter negros em cena; e quando uma peça exige
um elemento de côr, adota-se a seguinte solução: brocha-se um branco. ‘Branco
pintado’ – eis o negro do teatro nacional” 58, esta ação que ele disserta para jornal
fazia com que os negros de grande brilhantismo artístico ficassem de fora de diversas
peças teatrais, e colocavam brancos para atuar em papel de negro, sem às vezes
nenhuma noção de atuação, nenhum dom qualificado ao que o negro obtinha.
Segundo Nelson Rodrigues há exceções em alguns teatros em receber negros
para trabalhar, mas logicamente é perceptível o preconceito que estes sofrem em
meio aos brancos, eis sua afirmação, “claro, não devemos contar uma ou outra
exceção. Mas isto não constitui uma regra. É preciso uma ingenuidade perfeitamente
obtusa ou uma má fé cínica para se negar existência do preconceito racial nos palcos
brasileiros”59.
Nelson Rodrigues enfatiza que o TEN é exceção. Nos demais grupos de teatro,
quando há negros presentes ficam apenas como papeis fúteis ou até mesmo ficam de
fora das atuações. Nas palavras do autor de Anjo Negro “a não ser no Teatro
Experimental do Negro, os artistas de côr, ou fazem moleques gaiatos, ou carregam
bandeja ou, por último, ficam de fora”60.
55 Idem. 56 Idem. 57 Idem. 58 Idem. 59 Idem 60 Idem
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Neste momento ele mesmo se questiona com ironia, do desprezo do negro aos
palcos teatrais. “Por que esta situação humilhante?”61, e o grande autor responde aos
problemas mais visíveis desta questão, “vejamos alguns dos motivos mais nítidos”62.
Segundo Nelson Rodrigues muitos autores e diretores enfatizam a
incapacidade dramática do negro, “em primeiro lugar, subestima-se a capacidade
emocional do negro, o seu ímpeto dramático, a sua força lírica e tudo que ele possa
ter de sentimento trágico. Raros admitem que ele possa superar a molecagem e a
cachaça”63.
Para Nelson Rodrigues era preciso descobrir o negro como tema para o teatro.
Ao criticar o modelo de teatro existente no Brasil, observa que o teatro deveria
perceber a vida do negro e valorizar este grande contribuinte da história do Brasil.
Para o escritor Nelson Rodrigues “o teatro brasileiro, que é tão pobre, tão vasio, e que
vive ainda na sua prehistoria, bem que precisava descobrir o negro, seus temas, seus
dramas”64.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nas duas matérias analisadas neste artigo, identificamos mais estratégias para
explicitar e anunciar o racismo. Naquele período de pós-guerra, o racismo estava
presente em diversos setores da sociedade brasileira, e coube ao jornal Quilombo
denunciá-lo. Nesse sentido o jornal foi uma ferramenta do Teatro Experimental do
Negro, além de informar aos seus leitores, sobre notícias artísticas e peças teatrais,
também informava sobre as questões raciais vividas naquela época.
O objetivo principal do jornal era fazer com que o negro pudesse observar as
publicações e compreendesse a sua importância dentro da sociedade. Dentro deste
contexto do racismo pode-se tratar sobre a superação da desigualdade racial, que se
iniciou com este processo a partir da força que o jornal Quilombo obtinha fazendo
com que os negros pudessem se encorajar e tomar medidas no ato do racismo, as
reflexões dos autores era que estas medidas não fossem de cunho com a violência e
nem com o desrespeito aos ofensores, apesar de terem razão para tal ato, o jornal
mostrava diversas formas para enfrentar essas desigualdades dentro da função de
61 Idem 62 Idem 63 Idem 64 Idem
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que o negro pode intervir as ofensas sem sair como culpado no momento do
acontecimento racista.
A maioria dos casos de racismo citados no jornal faz com que leitor
compreenda essa onda de descriminalização ocorrida neste período marcado pelo
fim da Segunda Guerra Mundial, e a iniciativa de Abdias do Nascimento em
produzir e divulgar estas matérias era justamente para firmar o negro em seu teatro,
para que eles pudessem conhecer a função real do TEN, que era de cooperar com os
negros em vários aspectos de igualdade social. Tais como, promover a educação e
alfabetização; encontrar artistas em meio aqueles que não poderiam se quer ter
contato com o teatro, ajudando-os a desenvolver seus talentos e habilidades nas
questões artísticas.
O TEN não funcionava apenas para os negros, mas para todos que queriam se
identificar com a arte e cultura, tanto dos negros como de outros, o TEN fazia
diferente dos demais teatros da época, no qual somente aceitavam pessoas brancas e
da alta sociedade. Com isso, podemos compreender que Teatro Experimental do
Negro foi um templo onde as pessoas que participavam e trabalhavam, obtivessem o
brilho nos olhos e sorriso nos rostos, o jornal Quilombo foi um grande propulsor para
imensa satisfação às pessoas de cor.
BIBLIOGRAFIA
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NEVES, Lúcia Maria Bastos das; MOREL, Marcos (Org.). História e Imprensa:
homenagem a Barbosa Lima Sobrinho – 100 anos. Anais do Colóquio. Rio de Janeiro: UERJ,
1998.
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históricos”. Revista Tempo, Niterói. 2006.
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dirigido por Abdias Nascimento (1948-1950). São Paulo: FUSP; Editora 34, 2003.
STEPHANOU, Alexandre Ayub. Censura no Regime Militar e militarização das
artes. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001.
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A REPRESENTAÇÃO DO NEGRO E DO INDÍGENA NOS LIVROS
DIDÁTICOS: LIMITAÇÕES E AVANÇOS.
RAESCLA RIBEIRO DE OLIVEIRA65 HELENICE APARECIDA RICARDO66
INTRODUÇÃO
A lei 11.645/2008 que torna obrigatório aos currículos do ensino fundamental
ao médio a abordagem da história e cultura afro-brasileira e indígena promove os
princípios de uma educação intercultural, em que haja um diálogo entre as diferentes
culturas.
A lei está em vigência desde o ano de 2008, no entanto as pesquisas mais
recentes apontam inúmeros questionamentos quanto à realidade escolar, a
metodologia e o material didático envolvido no cotidiano das escolas colocando em
questão a aplicabilidade da lei.
Diante de tal realidade, foi elaborado o projeto de pesquisa “Os conteúdos
étnico-raciais nos livros didáticos da rede pública de Manaus/AM” buscando aferir a
aplicabilidade da lei no estado do Amazonas, averiguando nos livros didáticos e
paradidáticos as possibilidades e limitações das discussões sobre a temática da
história e da cultura afro-brasileira e indígena nas obras didáticas distribuídas nas
escolas da rede pública, situadas na cidade de Manaus. Propomos ainda, verificar, a
proximidade ou não dos povos indígenas retratados nessas obras com os que
historicamente habitam a região amazônica.
Com os resultados apresentados no relatório parcial desse projeto de pesquisa,
edificamos o presente artigo. Desse modo, esse artigo se organiza com a intenção de
proporcionar visibilidade ao tema e a realidade da representação da história e cultura
africana, afro-brasileira e indígena nos livros didáticos, esse instrumento secular da
sala de aula.
65 Graduanda de Pedagogia pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM). 66Mestra em Educação pela Faculdade de Educação (FACED) da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Professora no curso de Formação de Professores Indígenas (FPI) da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).
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A INSERÇÃO DOS CONTEÚDOS ÉTNICO-RACIAIS NOS LIVROS
DIDÁTICOS
O estudo do tema está sendo realizado com base em autores que discutem a
inserção dos conteúdos étnico-raciais à educação brasileira, os livros didáticos e a
representação do negro e indígena, a abordagem intercultural e o empoderamento
como desdobramento.
Dentre estes autores merecem destaque Mauro Coelho et al (2008; 2010), Ana
Cláudia Oliveira da Silva (2013), Edson Silva (2013), Maria da Penha Silva (2013),
Ana Célia da Silva (2005; 2011), Candau e Gimenez (2010). Essa discussão será feita
mediante a intersecção entre os tópicos aqui sugeridos.
A lei 11.645/2008 chega ao seu nono ano em vigência, sua trajetória é
extremamente significativa para um Brasil que almeja que o direito à diversidade
torne-se uma prática nas salas de aulas e nos diferentes currículos que compõem as
práticas pedagógicas que as sustentam.
Os esforços dos movimentos negros e indígenas que pensam tal lei, como “[...]
instrumento indispensável na luta contra as desigualdades étnico-raciais” somaram
de forma expressiva para a constituição da lei, bem como para a criação das
estratégias que foram estudadas para a reformulação do currículo oficial (SILVA,
2013, p.126).
A inserção da história e cultura negra e indígena faz com que os livros
didáticos promovam essas duas personagens no cenário dessa literatura,
modificando o notório e longo período de invisibilidade. Consideramos que os
obstáculos presentes na representação de negros e indígenas transformaram-se ao
longo das décadas, passando da total invisibilidade para a representação distorcida e
estereotipada da imagem do negro e do indígena no currículo oficial e oculto das
salas de aula brasileira.
A CONSTRUÇÃO DE UMA REPRESENTAÇÃO DO NEGRO E DO INDÍGENA
Ao analisar as frequências das personagens indígenas nos livros didáticos de
5ª. e 6ª. séries do ensino fundamental da disciplina de História em Belém do Pará ,
Mauro Coelho (2010) explica que na formulação de uma História Nacional o Instituto
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Histórico e Geográfico Brasileiro – IHGB “definiram os limites e os personagens de
uma história do Brasil, na qual o índio [...] ocuparia lugar destacado”(COELHO,
2010, p.99).
O autor contribui ainda colocando que sobre a influência do iluminismo e do
romantismo os alicerces para a representação do indígena que se requeria naquele
período foram construídos. Essa representação se formulava pela ideia dos bons
selvagens “[...] sábios o bastante para auxiliar o europeu na edificação da nação
brasileira” (COELHO, 2010, p.99). Assim, os indígenas foram sendo idealizados,
pensados como heróis nacionais, cheios de compaixão.
No final do século XIX e início do XX, o índio é retirado do seu posto de herói
nacional e realocado em posição similar à do negro. Essa mudança na perspectiva da
representação social dos indígenas ocorre devido às teorias raciológicas, que
sustentavam a superioridade ou inferioridade racial baseada em fatores hereditários
e genéticos. Teorias, essas que sobre o respaldo científico alimentaram e legitimaram
grande parte das ações racistas do século XIX.
Note-se nesse percurso a grande influência dos fatores socioeconômicos, uma
vez que negros e indígenas constituíam a força de trabalho a ser explorada e a
camada mais pobre da população e os descendentes de europeus, a elite da
população nacional. Dessa forma, negros e índios são considerados “inferiores”, e o
índio passa a ser visto como indolente e incapaz (COELHO, 2010, p. 100).
Essa representação do indígena como “indolente e incapaz” tem perpassado
os séculos. Coelho (2008; 2010) conclui seus trabalhos apontando que nas obras
analisadas a imagem do indígena tem sido levantada como vítima/dominado e que
há uma tendência em uniformizar os grupos indígenas. Dessa forma as obras
didáticas por muitas vezes falam apenas de um índio genérico - não relacionado a
nenhuma etnia em particular - principalmente quando se trata de conteúdos das
disciplinas de História e de Geografia em que o Brasil Colônia está em debate. Assim,
entendemos que esse índio genérico permanece distante da representação de um
agente histórico ativo.
Se durante os séculos percebemos que a imagem do indígena passou por
mutações e alternâncias até chegar ao mesmo local social em que a imagem dos
negros estava, constatamos que o mesmo não ocorreu com a representação social do
negro que, por sua vez, permaneceu estática. O negro no Brasil Colonial era
pensado como uma mercadoria, já que a economia era escravocrata, e essa forma de
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ver o negro se estendeu até após a Abolição da Escravatura em 1888, pois serviços
importantes para a sobrevivência digna e a autonomia, como a educação, por
exemplo, foram negligenciados a esse grupo, uma vez que esse grupo não era
compreendido como cidadão. Os direitos públicos só foram alcançados, através de
lutas árduas para a população negra.
A forma com que o negro ainda é visto na sociedade brasileira quando ele
ascende socialmente ou simplesmente passa a frequentar um local como a
Universidade é explicada por algumas autoras (Gonzales, 1984; Santos, 2010) como
algo incômodo, pois para muitos a “mulher negra continuaria a saga da senzala
exercendo funções de cozinheira, lavadeira, empregada doméstica, e o homem negro,
o trabalho braçal, terceirizado, [...] e brutal.” (SANTOS, 2010, p.75). Entende-se, dessa
forma, que quando falamos da representação do negro no livro didático, também
estamos falando de uma representação social que apenas é renomeada durante os
séculos, permanecendo inalterada em seu conteúdo em que a força braçal ou física
são vistos como os pontos altos de todo um grupo étnico (visão estereotipada) e em
que a potencialidade intelectual desse grupo é subestimada por séculos de uma
representação negativa. Um recorte de gênero apontaria ainda outros adventos que
mostrariam a situação ainda mais dramática das mulheres nesse processo, no entanto
vou me deter ao recorte racial.
Na obra "A representação social do negro no livro didático: o que mudou? por
que mudou?" - de Ana Célia da Silva (2011), a autora afirma que o negro como
minoria persiste e que as manifestações culturais africanas e afro-brasileiras não
chegam a ser descritas. Ao avaliar as frequências das descrições, ela pontua que em
algumas ilustrações torna-se habitual as seguintes descrições “[...] rosto sem
caricatura, traços sem definição da sua raça/etnia. O que o distingue como negro são
a pele negra e os cabelos crespos.” (SILVA, 2011, p.35) Desse modo, as ilustrações
tendem a trazer como marco a cor e o cabelo, fortalecendo dessa forma a valorização
dos personagens de traços finos e fenótipo similar ao do branco, e se trazemos essas
questões para o debate referente ao que Candau chama de empoderamento “O
‘empoderamento’ começa por liberar a possibilidade, o poder, a potência que cada
pessoa tem para que ela possa ser sujeito de sua vida e ator social” (CANDAU 2006,
p. 54) percebemos que o processo de “tomar poder sobre si” torna-se mais dificultoso
diante da falta de representação adequada. Ana Célia Silva assinala que:
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Não ser visível nas ilustrações do livro didático e, por outro lado, aparecer desempenhando papéis subalternos, pode contribuir para a criança que pertence ao grupo étnico/racial invisibilizado e estigmatizado desenvolver um processo de auto-rejeição e de rejeição ao seu grupo étnico/racial. (SILVA, 2005, p.25)
Assim sendo, as ilustrações possuem papel fundamental para a circulação das
novas formas em que se pretende ver o negro representado. O empoderamento, a
autoestima das crianças negras e a própria forma com que as crianças veem as
pessoas negras, dependem em parte das ilustrações. Essa outra forma de texto,
também tem papel essencial na comunicação de conteúdos e na construção de
representações.
Percebemos então que a questão da uniformização presente na representação
do índio também se faz presente na representação do negro, como também os papéis
desempenhados (que acarretam na perpetuação do lócus social de negros e
indígenas), e a ideia de vitima/dominado. Esses três elementos estão a compor os
livros didáticos e assim como foi apresentado são os dados mais pautados nas
pesquisas referentes à análise de livros didáticos.
O LIVRO DIDÁTICO
O livro didático, desde a década de 1980 passa por avaliações instituídas pelo
Programa Nacional do Livro Didático – PNLD, tais avaliações e recomendações
colaboram até hoje para que o material construído nos livros leve em consideração os
diferentes grupos étnicos que fazem parte da sociedade brasileira, apesar disso como
fora colocado aqui, muitas pesquisas (COELHO, 2010; SILVA, 2011) apontam que
ainda há muito que se fazer.
Diante da discussão sobre a análise dos livros Coelho (2008) ressalta o
significado que o livro didático carrega, informando que “[...] o livro didático acaba
adquirindo uma importância maior que sua função inicial” (COELHO, 2OO8, pg.
96). Já que o uso do livro didático como único instrumento em sala de aula, por
muitas vezes demarca sua importância, e, além disso, o livro didático pode ser a
única obra “acadêmica” que o estudante de escola pública terá contato.
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DISCUSSÕES SOBRE O GUIA DOS LIVROS DIDÁTICOS
Durante a trajetória dessa pesquisa, analisamos os Guias dos Livros Didáticos
do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e notamos que nas Fichas de
Avaliação a questão étnico-racial quando mencionada, aparece frequentemente em
questionamentos tais como – “A obra é livre de estereótipo e/ou preconceito étnico-
racial?”.
A partir disso, observamos que o PNLD busca aferir a presença dos
estereótipos e preconceitos, o que já assinala um avanço considerando as pesquisas já
realizadas sobre a temática (COELHO, 2008, 2010; SILVA, 2010). No entanto, diante
das mesmas pesquisas notamos que a questão não é apenas definir se há ou não a
presença de estereótipos ou preconceitos, mas sim redefinir e recriar a literatura
didática por meio da presença dos agentes históricos negros e indígenas.
Dessa forma, compreendemos que avaliação do PNLD não abrange com
totalidade as propostas promovidas pela lei 11.645/2008, já que a corroboração para o
fim de estereótipos e preconceitos não é único fator que a lei vem a colocar.
O “fim de estereótipos e preconceitos” tenderia a ser uma consequência de
uma literatura didática em que personagens negros e indígenas tivessem suas
imagens retratadas dentro de sua história e cultura, em que suas diversas
manifestações fossem descritas, assim sendo, pensamos que além da formulação “a
obra é livre de estereótipo e/ou preconceito étnico-racial?”, as fichas avaliativas
deveriam trazer outros questionamentos como os que sugerimos a seguir:
- O conteúdo programático da obra inclui aspectos, tais como o estudo da história da
África e dos africanos?
- Resgata a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil pelo reconhecimento das
suas identidades e na conquista dos direitos sociais atinentes a qualquer cidadão do
país?
- Faz o resgate da cultura negra e indígena brasileira como componentes importantes
da cultura nacional?
- Considera o negro e o índio na formação da sociedade nacional resgatando as suas
contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil? 67
67 Trecho da Lei 11.645/2008
54 Texto integrante dos Anais do I Seminário do Programa Nossa África – Diálogos africanos: novos objetos, pesquisas e ensino.
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Dessa maneira, as apurações das propostas presentes nos livros poderiam fluir
para além da demarcação entre estereótipo e preconceito, possibilitando assim a
identificação da presença ou ausência de conteúdos referentes à população negra e
indígena, e assim em um filtro maior poderíamos observar que a aplicabilidade da lei
se faria até mesmo nas breves descrições dos capítulos presentes nos Guias do PNLD,
o que acaba não acontecendo.
DAS OBRAS EM ANÁLISE
Mediante coleta de dados chegamos aos livros mais distribuídos pela
Secretaria Municipal de Educação – SEMED, Manaus. Buscamos aferir as obras de
primeiro ao quinto ano de Língua Portuguesa e Letramento, de quarto ao quinto ano
selecionamos as obras didáticas de História, Geografia, Ciências e Artes, entretanto
durante a coleta de dados nos deparamos com outra demanda, que são os livros de
Ciências humanas e da natureza presentes no quarto e quinto ano, logo estendemos a
análise à eles também.
Organizamos os dados coletados conforme as editoras que têm mais livros
distribuídos na rede municipal de ensino. São as editoras – FTD (Ciências Humanas e
da Natureza, Artes); editora Moderna (Ciências da Natureza, História, Geografia);
editora Global e a editora Ática (Língua Portuguesa e Letramento). A pesquisa
encontra-se ainda em etapa de análise das obras didáticas, no entanto buscamos no
artigo aqui presente socializar algumas das questões que já presenciamos em análise
de obras didáticas que não fazem parte da amostra dos mais selecionados, mas que
também possuem um grande número de distribuições na cidade.
Os livros “Letramento e Alfabetização” (3 ano) de Ana Paula Dias Torres e
Mara Motta, da editora IBEP, considerando que 17% das obras distribuídas de
“Letramento e Alfabetização” são da editora IBEP; e o “Arte” (4 e 5 ano) de Rosa
Iavelberg, Tarcísio Sapienza, Luciana Arslan do Projeto Presente, realizado pela
editora moderna, que tiveram 18% dos livros de Artes distribuídos na rede pública
de Manaus, segundo nossa coleta de dados – são os livros que vamos comentar nesta
discussão.
Na primeira obra percebemos a permanência das características citadas por
Silva (2011) quando analisamos as frequências dos personagens negros, a pele escura
e o cabelo crespo ainda são uma das únicas características que trazem as
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Manaus, 23 a 26 de maio de 2017 – ISBN 978-85-526-0035-0
personagens, foi possível notar ainda que os narizes dos personagens negros são
ilustrados como maiores que os narizes das personagens brancas. Essa representação
do negro enquanto figura homogênea, não permite o próprio reconhecimento das
crianças nas personagens. Outro ponto de observação é em que categoria o negro
está sendo colocado, não foi notado no livro a presença do negro enquanto agente
histórico, social e cultural. Não são citadas personalidades negras que fomentaram e
articularam a cultura e história brasileira, não há registros no sumário do livro sobre
eventos como o dia da consciência negra. Nas fotografias, encontramos uma em que
estão presentes crianças quilombolas, porém o texto não articula ou apresenta o que é
um quilombo e qual seu propósito e história, é um texto que trata da importância do
brincar.
O livro ainda conta com uma seção sobre lendas aonde nos deparamos com
um texto sobre o “Saci”, destacamos aqui o seguinte trecho: “Delinquente de uma
perna só, com capuz vermelho e cachimbo na boca [...] há muito tempo o Saci é
acusado de malandragens, desde a época em que as avós, bisavós e tataravós eram
crianças.” ( TORRES; MOTTA, 2014, p. 143) O Saci se trata de um dos únicos
personagens negros do livro, e apresenta as mesmas características dos demais
personagens que compõem as ilustrações, o que o diferencia é a vestimenta, o que
torna preocupante é a forma com que o texto apresenta o personagem, utilizando-se
de delinquência e malandragem para defini-lo. Na mesma seção temos como lendas
brasileiras – o Macunaíma e o Cupuripa – na descrição do Macunaíma (que está
ilustrado como um personagem indígena) encontramos o seguinte: “é um menino
esperto e preguiçoso” (TORRES; MOTTA, 2014, p. 138) e mais uma vez nos
deparamos com a reprodução de um discurso estereotipado sobre um grupo étnico,
que aparece com o “preguiçoso”.
Na unidade 4 da obra temos a presença de uma personalidade indígena, o
escritor e doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) Daniel
Munduruku. Notamos que ele foi apresentado de modo positivo, e que a
importância que atribuí as suas origens foi enaltecida. Na mesma seção em que o
autor aparece, está a lenda da vitória-régia e um texto que apresenta a Amazônia, é
relatado o desmatamento e a necessidade da preservação. Percebemos, então, que
nas páginas do livro o indígena só será percebido nas lendas amazônicas e na própria
Amazônia. Nos atrevemos ainda a afirmar que o texto sobre Daniel Munduruku ao
falar de “novos horizontes” limita o olhar, pois em nenhum momento são
apresentado indígenas que ainda vivem nas comunidades, e até mesmo as lideranças
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são ignoradas. O texto sobre Daniel Munduruku é um bom exemplo de mudança nos
livros didáticos, mas para a implementação da lei 11.645/2008 necessitamos de mais.
Na segunda obra que destacamos para a discussão, encontra-se já no sumário
muitas alterações significativas para a efetivação de uma representação positiva do
africano e afro-brasileiro, na unidade 1 do livro, temos a temática “Culturas do
Brasil”, e os capítulos desdobram-se em “A cultura afro-brasileira”, “A moda
inspirada na arte africana”, “Inspirações na cultura africana” e seguem nessa
sequência. Apesar desses avanços, notamos que os povos indígenas e suas
contribuições para a cultura brasileira não são citadas. Mas na seção sobre História
da Arte, é apresentada a arte plumária, é colocado o significado que essa arte vai ter
para os povos indígenas e pontuado as possíveis distinções. Na seção não
presenciamos a tendência a uniformização ou a caracterização enquanto vítima-
dominado nem na representação do negro ou do indígena.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme as análises aqui discutidas tanto do guia do PNLD, quanto dos
próprios livro aqui destacados percebemos avanços quanto a representação do negro
e do indígena, mas ainda notamos limitações que se dão pela inviabilidade dos
sujeitos negros e indígenas como agentes históricos. O fomento ao empoderamento
ou a construção de uma identidade sólida não se consolidam em totalidade nas
obras.
Ainda nos resta muito para que alcancemos a representação que almejamos e
que pensamos que pode vim a colaborar para o empoderamento e a construção da
identidade, no entanto devemos descartar os avanços que tivemos até aqui.
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Manaus, 23 a 26 de maio de 2017 – ISBN 978-85-526-0035-0
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UMA REFLEXÃO SOBRE O INÍCIO DA ESCRAVIDÃO NEGRA NAS AMÉRICAS, A PARTIR DO OLHAR HISTORIOGRÁFICO HISPANO-
AMERICANO NO SÉCULO XX
GIRLANE SANTOS DA SILVA68
INTRODUÇÃO
O presente estudo visa realizar uma reflexão sobre a prática da escravidão negra
na América espanhola, que segundo Martin (1970) abrange a necessidade de
compreender o exercício escravista como uma espécie de instituição tradicional, de
certo já realizado desde os primórdios da história por diversos povos do mundo até
então conhecidos.
Parte do ponto de partida para o início dessa análise é a prática escravista na
exploração do Novo Mundo, acobertado pelo discurso religioso, que segundo
Mellafe (1959), se inicia na Hispaniola ou Ilha Espanhola69 e logo depois em Cuba,
inspirado nas novas políticas econômicas e comercias indianas, que instaurava uma
monarquia, logo depois da morte de Isabel a Católica, e que foi espalhando-se por
toda a América, que “sofria” com a escassez mão-de-obra indígena, devido ao
violento genocídio das populações indígenas, como assinala Todorov (2003), quando
descreve a venda de mulheres grávidas, a utilização do sangue para manutenção de
jardins, a retirada de membros (nariz, mãos, língua etc.) entre outras ações de cunho
agressivo, como citada por Marianne M. (1990), como por exemplo, na fala dos
* Discente do curso de Licenciatura Plena em História. Aluna-pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Políticas, Instituições e Práticas Sociais (POLIS), e componente do Grupo de Estudos Africados, da Universidade Federal do Amazonas (UFAM)* E-mail: [email protected]. 69 Conhecida atualmente como Ilha do Haiti.
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espanhóis: “Dios etá em el cielo, el rey etá lejos, yo mando aquí” (MAHN-LOT, 1990:
13). É necessário ainda frisar a morte devido as doenças infectocontagiosas que os
colonizadores trouxeram para o Novo Mundo, como por exemplo a morte de muitos
astecas, devido a uma epidemia de Varíola, em 1520, um caso de muitos ocorrido nas
Américas.
A quase extinção da população indígena, provocou uma enorme escassez de
trabalhadores no início de 1500, influenciando de modo preocupante o abastecimento
das empresas responsáveis pela distribuição de cultivos e minérios entre os
comerciantes. Em virtude desse fato, a procura por mão-de-obra seja indígena,
nabórias e outros; tal problema persistiu e agravou-se com término da escravidão
formal indígena na América espanhola, em 1548, conforme aborda Mellafe (1959).
Nisso, a escolha do tema e dos autores tem como objetivo a reflexão sobre a
necessidade de uma melhor compreensão no campo historiográfico hispano-
americano, sobre o início do processo escravista na América Espanhola, que muitas
vezes são explorados de maneira superficial na academia, provocando um
desconhecimento grandioso por parte dos futuros historiadores.
Logo, o objetivo desse trabalho é preencher as lacunas sobre a falta da presença
negra nos territórios da América espanhola, que tanto alimenta estereótipos nos
discursos atuais, através de uma reflexão histórica sobre a presença do escravo negro
no “Novo Mundo espanhol”.
A ESCASSEZ DE MÃO-DE-OBRA INDÍGENA
O processo de inserção da lógica escravista acompanha o homem desde seus
primórdios gregos, e que perpassou por diversas modificações ao longo do tempo,
como na Era Medieval, em torno do século VI, que segundo Baschet (2006), obter um
escravo envolvia atender as demandas de produção para questão da sobrevivência;
enquanto no século XII, com os novos moldes de uma nobreza ligada a aristocracia,
possuir um escravo era sinônimo de ostentação de poder diante da sociedade e dos
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rivais, principalmente sua absorção pela a normas morais e éticas cavalheirescas,
sem mencionar a relação de dominium, que é caracterizada pela pratica da servidão,
definida como:
“(...) forma estabilizada de uma posição intermediária entre a escravidão e liberdade: o servo não é mais uma propriedade do senhor, assimilado ao gado, mas sua liberdade é marcada por importante limitações. Se a escravidão é um cativeiro definitivo, o ritual de servidão (...) traz uma corda no pescoço, parece indicar um cativeiro de que e é perfeitamente resgatado pelo pagamento de uma obrigação. (BASCHET, 2006: 133)
Segundo Norman F. Martin70 (1970), a prática escravista é reafirmada com o
processo de Reconquista no século XIII, que chega a América em 1492, através dos
exploradores espanhóis, que impuseram essa lógica aos povos existentes naquele
momento, e que pouco tempo depois foram desaparecendo graças ao genocídio
desses indígenas, que não absorveram essa nova ordem social, um exemplo claro é o
caso da Ilha Española, habitada por cerca de 100.000 indígenas no início da
colonização, já em 1958 passaram para o número de 60.000, em 1514 o número caiu
para 30.000 e em torno de 1570 esse número não passava de 500.
Essa matança se justifica pela grande violência, tão denunciado por Bartolomeu
de Las Casas, em suas cartas ao Rei e escritos pessoais. Em A Conquista da América, a
questão do outro (2003), Tzvetan Todorov ressalta vários exemplos de como eram
tratados os indígenas, como pode-se exemplificado a baixo:
(...) os índios são tratados são tratados como menos do que homens: sua carne é utilizada para alimentar os índios que restam, ou até
70 Graduado na Universidade Nacional Autônoma do México, em 1957, assumindo nesse mesmo ano o cargo de professor de história de Latino-América, na Universidade de Santa Clara, California, autor daobra: Los Vagabundos em la Nueva España, siglo XVI. Foi membros de várias associações acadêmicas como El Instituto Histórico de la Compania de Jesús, de Roma, e continuou seus estudos como doutor no Mexíco, até o período de sua morte.
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mesmo os cães; matam-nos para usar sua gordura, que, supõe-se, cura os ferimentos dos espanhóis: e assim são considerados como animais de corte: cortam-se todas as extremidades, nariz, sexo, mãos, seios, língua, sexo transformando-os em aleijões, como se cortam árvores; propõe-se utilizar-lhes o sangue para regar o jardim, como se fosse água de rios. (TODOROV, 2003: 256).
Como pode ser visto, tal violência e “A princípio (...) o trauma de ordem biológica
(...) provoca um choque microbiano e viral que se traduzia por epidemias
assustadoramente assassinas para os índios. ” (MAHN-LOT, 1913: 19), foram os
fatores responsáveis pelo alto índice de mortalidade indígena, em virtude disso, se
“inaugura” a entrada em massa dos escravos africanos na América Latina, no século
XVI.
INTRODUÇÃO DO TRABALHO NEGRO NA AMÉRICA
Segundo Rolando Mellafe71 (1959), a extinção da mão-de-obra indígena estava
trazendo inúmeros prejuízos as empresas responsáveis que atuavam no continente, e
como colocado a cima, tal problema foi solucionado no final do século XVI, com a
chegada em massa dos escravos negros, e pela presença da mestiçagem branca “ (...)
y de color que a partir de essas años es de considerable importancia. ” (MELLAFE,
1959, Pág. 13). Porém, já nota-se a presença de escravos como parte componente da
tripulação, na chegada dos primeiros conquistadores, como Alonso Pietro, piloto de
La Niña, (foi uma das caravelas usadas por Colombo na sua primeira viagem ao
Novo Mundo), que era mulato.
No ano de 1501, a coroa espanhola iniciava sua preocupação com a introdução da
escravidão negra na América, pois, a utilização de escravos era comum na Espanha,
71 Pesquisador Chileno, vencedor do Prêmio de História, em 1986. Graduou-se como professor de História e Geografia na Universidade do Chile, em 195, foi o autor das seguintes obra: Diego de Almagro (1954), La introducion de la esclavitud negra em Chile: tráfico e rutas (1959), Breve historia de la esclavitud negra em America Latina (1973), Histoia social de Chile y América: sugerencias y proximaciones (1986), Reeña histórica del Instituto Pedagógic: cien años em la formacíon de professores (1988), entre outras.
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principalmente para a realização de serviços domésticos. As instruções passadas
pelos reis católicos para Nicolás Ovando, em 3 de setembro de 1501, proibia a
escravização judeus mouros e novos convertidos. Os únicos livres eram aqueles que
nasceram no meio dos cristãos, o que significa que eram aqueles nascidos na
Península.
O processo de troca da mão-de-obra negra pela indígena ocorreu pela falta de
trabalhadores indígenas, mas também por três aspectos importantíssimos que devem
ser ressaltados, são eles: A) Assim como na colonização portuguesa, a Espanha
possuía a intenção de incorporar os nativos no processo civilizador, influenciado
pelos interesses da Igreja Católica (ALMEIDA, 1997), cujo objetivo principal era
“ganhar” mais adeptos ao cristianismo, vetando o processo escravista aos judeus,
mouros, e novos cristãos, fazendo o interesse se voltar para trabalhador negro. Logo,
a rigidez ligada aos decretos de proteção ao indígena, se pusera como um obstáculo
que favorecia a exploração da escravidão negra. Como coloca Frantz Fanon72, em seu
livro Pele Negra e Máscaras Brancas, (2002), a escravidão do negro comparado aos
povos de cor mais branca, ocorria de maneira mais voraz e violenta, comparada com
os demais; B) Os inúmeros pedidos de comerciantes, governadores e outros membros
da sociedade colonial, que estavam preocupados com a baixa produção de bens,
devido à falta de trabalhadores; C) A própria satisfação das necessidades vividas
pela Cora Espanhola.
A introdução dos trabalhadores negros foi de maneira gradativa, obedecendo
uma série de petições, para satisfazer as necessidades de pequenos proprietários,
encomenderos73 e colonos, auxiliando na manutenção da economia escravista. Porém,
72 Psiquiatra e filosofo com o pensamento embasado no marxismo, compôs as seguntes obras: Os Condenados da Terra (1961), Peles Negras, Máscaras Brancas (1952), Sociologie d’une revolution: l’an V de la révolution algérieene (1959). Postumamente editou-se uma antologia com os seus escritos intitulada Pour la révolution africaine (1964). 73Nesse sistema os administradores assumiam a imagem do rei espanhol, concedendo uma permissão ao encomendero, que poderia explorar diversos indígenas ou até mesmo uma comunidade para a exploração de minas e terras, sendo que este em troca realizava o processo de catequização dos índios que estavam sob sua responsabilidade.
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tráfico de escravos negros sofreu muitas restrições, pelo medo da divulgação de
heresias dos negros para com os índios, que é utilizado como ponto de partido para
proibição de certas castas de negros. Em 1502, por exemplo, foi permitida a entrada
de poucos escravos negros a Santo Domingo, que foi suspendida no ano seguindo,
por conta das preocupações com as heresias.
Martin (1970), enfatiza a importância da influência de Las Siete Partidas, por
Afonso X el Sabio, que introduziriam um código que constituía o funcionamento da
escravidão, tido como um mal necessário. Essas leis tinham como objetivo assegurar
os direitos concedidos aos escravos, conforme os mandamentos de Deus. Esses
códigos surgiram muito antes do comércio escravo moderno, refletindo as ideologias
e doutrinas da Igreja e da Coroa, porém, tais leis eram válidas apenas para os “(...)
sarracenos, bereberes, judíos, eslavos, nativos de las Canarias y hasta cristianos
españoles (...)” (MARTIN, 1970, Pág. 55), quanto aos escravos nativos da África sub-
saharianas “(...) cuya presencia em España concidía, em el tempo, casi com los
principíos de la invasión morisca.” (MARTIN, 1970, Pág. 55). Esse código acompanha
os exploradores na descoberta do Novo Mundo, como no caso da aprovação do
decreto de 1789, pelo monarca Carlos Borbón IV, que tratava exclusivamente da
escravidão de indivíduos negros, tendo como interesse em comum com Las Siete
Partidas, a suavização do tratamento oferecido pelos donos de escravos aos seus
“trabalhadores”. Porém, há diversos caso em que essas leis eram desrespeitadas,
pondo um fim trágico a milhares de vidas de escravos.
Nesse sentido, o processo inicial de escravização foi importante não somente para
o âmbito econômico das nações dominantes, nesse caso a Espanha, mas para a
própria sobrevivência dos colonos na terra recém-descoberta, e principalmente, na
manutenção da sociedade colonial diante das constantes necessidades que se
surgiam, o que acabou convertendo a escravidão negra como o sistema básico de
trabalho para todos que viam o Novo Mundo, como fonte de riquezas imensuráveis,
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através de um indivíduo que é considerado altamente eficiente quanto a adaptação
ao trabalho e resistente a uma longa jornada de exploração.
Assim, o escravo negro possui o papel principal na história da colonização das
Américas, pois sem sua existência todo o projeto civilizador não seria possível,
juntamente com suas conquistas econômicas adquiridas pelos europeus, que até hoje
podem ser consideradas como fonte para sua manta de civilidade, diante das nações
e povos que são considerados subdesenvolvidos.
UMA BREVE ANÁLISE HISTORIOGRÁFICA
A historiografia hispano-americana ganha novos diretrizes, a partir da segunda
metade do século XX, com o início do processo de nacionalização ligada, a um
projeto de nação que fora inicialmente constituída por uma elite, que deixava de lado
negros e índios desse projeto de identidade nacional (IANNI, 1987: 5).
Segundo Octavio Ianni74, a origem da sociedade nacional abrange em grande
parte seu conflito com a metrópole, e uma porção menor aos conflitos internos e com
seus vizinhos, e quem em muitos casos, como do Uruguai e Bolívia, que possuíam
um projeto de identidade, no qual, não envolviam negros e índios, os isolando em
áreas rurais, ou seja, tal estratégia não passava de um método de “contenção de
castas” dando origem, assim, a grandes desigualdades entre campo e cidade.
As produções historiográficas, segundo Donghi (1997), estavam se renovando
intensamente e ligada ao advento da história social, no qual, deixava para traz uma
historiografia baseada na ótica do colonizador. Migrando para uma nova
perspectiva, embasada no “olha indígena”, rompendo com “estereótipo de encontro
de dois mundos”, sob o qual a colonização se deu através do relacionamento pacifico
entre colonizador e colonizado.
74 Cientista politico e sociólogo, nascido em São Paulo. Livre – docente da Universidade de São Paulo (USP), autor de 25 livros, como: As metamorfoses do escravo (1962), O colapso do populismo no Brasil (1968), Imperialismo e Cultura (1970), A formação do Estado populista na América Latina (1975), El Estado Capitalista en la epoca de Cardenas (México, 1977), Escravidão e racismo (1978), Revolução e Cultura (1983).
66 Texto integrante dos Anais do I Seminário do Programa Nossa África – Diálogos africanos: novos objetos, pesquisas e ensino.
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Essa nova historiografia, critica a produção histórica da Conquista e Colonização,
começando a valorizar mais as “heranças” deixadas pelas civilizações pré –
colombianas e expondo a grande catástrofe demográfica que ocorrera nas Américas,
no período da Reconquista, no qual, possuíam revelavam principalmente no México
Central, o desaparecimento de 80% da população indígena, que fora um dos motivos
para introdução da mão-de-obra negra na América Espanhola.
O livro Visão dos Vencidos (1987), de Miguel de León-Portilla e A Conquista da
América Espanhola (1910), de Marianne Mahn-Lot, são exemplos, dessa nova
produção, em que traça até panorama psicológico sobre o impacto da figura do
conquistador para com o conquistado, como segue abaixo:
O choque mental, porém, foi igualmente muito grave. A própria aparência dos homens de Castela – desses seres barbudos, rosto pálido apertados em suas couraças, suas armaduras e seus capacetes de aço – tinha algo de aterrorizante. Os astecas e seu soberano Montezuma ficaram fascinados pela chegada desses homens brancos (...). (MAHN-LOT, 1990: 19)
Tal mudança está também ligada, a mudança de polo de produção de
conhecimento, por conta do advento da Segunda Guerra Mundial (1939), onde
anteriormente a França era tida como o centro de produção intelectual, por conta do
Arquivo das Índias. Esse acontecimento abriu margem para estabelecer a criação de
uma história produzida na própria América, nesse caso, esse centro seria os EUA, e
logo, se espalhando por toda América.
Tais transformações, foram de grande contribuição para a crítica da formação
de uma identidade latina, fundamentada do reflexo da elite criola, que carregavam
apenas os traços europeus e ignoravam seus aspectos indígenas e negros, que são
partes essenciais do seu “eu” latino americano.
MATERIAL E MÉTODO
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O presente artigo foi constituído através de um estudo bibliográfico, a partir de
fichamentos para a coleta de dados de autores relacionados ao tema desenvolvido
nessa pesquisa. Isto é, a fundamentação teórica é oriunda de Rolando Mellafe, com o
livro La introducion de la esclavitud negra em Chile, de 1959 e Norman F. Martin, no
capítulo Antecedentes y Prática de la Esclavitud Negra em la nueva España del siglo XVI,
do livo Historia y Sociedad em el mundo que habla española, editado por Bernardo Garcia
Martinez, em 1970.
Após esse primeiro contato, foi realizado uma abordagem reflexiva e dialética
entre os teóricos mencionados a fim de que, fosse possível construir o presente texto.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A escravidão negra tem um papel essencial na colonização, pois foi a “peça” que
tornava possível os movimentos da engrenagem social europeia, e tanto Norman F.
Martin (1970) e Rolando Mellafe (1959), assim como outros autores, como Octavio
Ianni (1988), Tulio Halperin (1997) e outros que fazem parte de uma nova tradição
historiográfica, que trazem abordagens históricas que auxiliam na construção de uma
nova perspectiva, que constitui a imagem de um europeu dependente da política
escravista, após, o extermínio em massa tão enfatizado no decorrer desse artigo.
Em conjunto com Frantz Fanon (2008), formam uma “elite” de escritores e
intelectuais que buscam ressignificar as relações de dominação partindo do ponto em
que o colonizado não agia de modo brando aos maus tratos cometidos por seus
senhores, como exemplo utilizam as fugas para os Quilombos, a prática de sua fé,
utilização de médicos tradicionais como meios de resistências, tornando-se o dono de
sua própria história, que procurou resistir de todas e quaisquer maneiras ao intendo
processo de colonização.
No que tange ao negro, essas novas interpretações não o encaixam na condição de
ferramenta de trabalho, no qual, fora inúmeras vezes submetidos a tantos maus e
tentativas de embranquecer sua “alma”, corrompida no decorrer do intenso processo
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histórico, sob a justificativa de um suposto auxilio rumo ao progresso e civilização,
ocasionando danos imensuráveis a compreensão do seu “eu”, que muitas vezes é
trocado por um falso branqueamento, que perpassa pela negação de sua língua até
de seu próprio povo, se transformando assim em um indivíduo que não é negro e
nem branco, e sim um “ser” sem identidade própria que vive num eterno limbo
de“raças”.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Rita Heloísa. O Diretório dos Índios: um projeto de “civilização” do Brasil no século XVIII. Brasília: Universidade de Brasília, 1997.
BASCHET, Jérôme. A civilização feudal do ano mil à colonização da América. Capítulo II. A feudalidade e a organização da aristocracia. São Paulo, O Globo, 2006.
DONGHI, Tulio Halperin. Historiografia Colonial- Americana e Multiculturalismo: a História da Colonização entre a perspectiva do Colonizador e a do Colonizado. Rio de Janeiro, N. 20, p 163 – 193. 1997. Seminário “História e historiografia latino-americanas”.
FANON, Frantz. Pele negra Máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
IANNI, Octavio. A questão nacional na América Latina. São Paulo, N. 1, p. 5 – 40. 1988. Simpósio Interpretações Contemporâneas da América Latina.
MAHN-LOT, Marianne. A conquista da América Espanhola. Campinas: Papirus Editora, 1990.
MALLAFE, Rolando. La intruccion de la esclavitud negra en Chile, tráficos y rotas. Santiago de Chile: Univesidad de Chile, 1959.
MARTIN. Antecedentes y prática de la esclavitud negra em la nueva España del siglo XVI. In: Historia y Sociedade em el mundo de habla española. MARTÍNEZ, García Bernardes.
MIRANDA, José. Michigan. Antecedentes y prática de la esclavitud negra em la nueva España del siglo XVI. IN: Historia y sociedad en el mundo de habla española: México: Colégio de México,1970.
PORTILLA, Miguel Leon. A visão dos Vencido. A tragédia da conquista narrada pelos astecas. Rio Grande do Sul e São Paulo: L&PM Editores S/A, 1987.
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TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América. A questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
SITES
Disponivel em: <http://www.biografiasyvidas.com/biografia/i/isabel_i_catolica.htm>. Acesso em: 09.04.2017 ás 21:29 Disponível em: <http://mundoeducacao.bol.uol.com.br/historia-america/formas-trabalho-na-america-hispanica.htm>. Acesso em: 10.04.2017 ás 15:45
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CONTENDAS E QUERELAS NAS ÁGUAS DO ATLÂNTICO SUL: DIREITO
DAS GENTES, TRÁFICO DE ESCRAVOS E DIÁSPORA AFRICANA.
GUSTAVO PINTO DE SOUSA*
O presente texto tem como objetivo apresentar as conclusões preliminares do
projeto de pesquisa - No tribunal das contendas: uma análise comparativa do direito das
gentes no Brasil e em Portugal 1839-1850 - desenvolvida na Universidade Federal do
Oeste do Pará. E que também foi resultado de tese de doutorado defendida, em
janeiro de 2017, no âmbito do Programa de História Comparada da UFRJ1.
A partir disso, apresento um panorama das questões problemas que foram e
são desenvolvidas no campo de estudo do tráfico internacional de escravos, direito
das gentes, história atlântica e da pluralidade das diásporas.
Londres, 9 de agosto de 1839. Lorde Palmerston, primeiro-ministro do Reino
Unido, promulgava a lei que proibia os navios sob bandeira portuguesa de se
empregarem nas atividades do transporte de escravos. Conhecido como Bill
Palmerston, a norma estabelecia que essas embarcações — os tumbeiros — fossem
apreendidas e julgadas nos tribunais com jurisdição britânica. Informava Palmerston
que seu bill “deu ao Almirantado e Vice-almirantado o direito de lidar com navios
tomados durante o tráfico de escravos […] da mesma maneira como se fossem navios
britânicos”.2
Passados cinco anos, em 8 de agosto de 1845, o know-how de Palmerston fora
aproveitado por lorde Abeerden. Na condição de premier, ele criminalizava o
transporte de escravos em navios com bandeira brasileira. Ancorado nos tratados de
1815 (Tratado de Aliança e Comércio Luso-britânico), 1817 (Convenção de 1817 ou
*Professor Adjunto de História na Universidade Federal do Oeste do Pará, Doutor em História, FAPESPA e PIBIC/UFOPA. 1 A tese encontra disponível na plataforma Minerva – Biblioteca Digital – da UFRJ. Disponível em: http://minerva.ufrj.br/F?RN=691017125 Acessado em 22 abrol 2017. 2 “and gave to the Admiralty and Vice-Admiralty Courts a right to deal with vessels taken while engaged in the Slave-trade, but having no nationality, in the same manner as if they were British vessels” (tradução nossa). Disponível em: <http://hansard.millbanksystems.com/commons/1839/aug/09/slave-trade-suppression-bill#S3V0050P0_18390809_HOC_59>. Acesso em: 22 abril. 2017.
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Ato Adicional ao Tratado de 1815) e, principalmente, de 1826 (Convenção Anglo-
brasileira contra o Comércio de Escravatura, Aberdeen anunciava que “seja
promulgada, que haverá lícito o Almirantado ou vice […] para conhecer e julgar
qualquer navio que transporte no tráfico de escravos, os africanos, em violação da
referida Convenção de 1826”.3
A realidade dos bills norteou a defesa da soberania de Brasil e Portugal. Eles,
que não foram desejados pelo mundo luso-brasileiro, ativaram ou acionaram
respostas políticas para uma tormenta que se avolumava: a extinção nas águas
internacionais do tráfico internacional e intercontinental de escravos. No banco dos
réus, pode-se inferir que os políticos brasileiros e portugueses se indagavam: e agora,
o que fazer com o fim do tráfico de escravos? Imposto de fora para dentro, a
invenção foi estabelecer um debate político que provasse os excessos jurisdicionais
de Palmerston e Aberdeen. A arquitetura de um “tribunal das contendas”, por parte
das nações brasileira e portuguesa, tinha como objetivo contestar a operação jurídica
dos bills contra suas nações.
Inicialmente, a saída dialógica foi o campo do direito das gentes. Dos ritos
jurídicos às práticas de jurisdição, esse campo de saber foi ativado como uma
ferramenta para acusação e defesa entre os agentes e personagens envolvidos. O
direito das gentes tornou-se no “tribunal das contendas” o fio condutor para o debate
sobre a licitude ou não do tráfico de escravos praticado por Brasil e Portugal em
águas internacionais, em especial na região do Atlântico Sul. Portanto, o direito das
gentes será encarado como uma ferramenta de debates entre as nações, ou seja, como
as nações buscavam resolver suas diferenças no plano internacional.
O que é Direito das Gentes? A resposta de Silvestre Pinheiro Ferreira era:
É o complexo dos princípios por que se devem regular os agentes dos diversos poderes políticos de cada nação, para que nenhum dano seja feito pelos seus membros aos direitos das outras nações. Chama-se também direito público externo ou direito das nações, e divide-se em direito das gentes positivo, e direito das gentes filosófico, natural ou universal. (FERREIRA, 1834, 312)
3 “and be it enacted, That it shall be lawful for Her Majesty’s High Court of Admiralty and any Court of Vice Admiralty within Her Majesty’s Dominions to take cognizance of and adjudicate any Vessel carrying on the African Slave Trade in contravention of the said Convention of the Twenty-third Day of November One thousand eight hundred and twenty-six” (tradução nossa). Disponível em: <http://www.pdavis.nl/Legis_28.htm>. Acesso em: 22 abril. 2017.
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Assim, o Direito das Gentes ou Internacional é um Direito das Gentes de
caráter positivo, no qual seu campo de interesse “é o complexo dos princípios
sobremencionados que as diversas nações sem quebra de sua independência têm
reconhecido, ou expressamente pelos tratados e convenções ou tacitamente pelos
usos e costumes.”(FERREIRA, 1834, 312-313)
Nesse sentido, entre os atos processuais, na linguagem do direito e da
acontecimentalização4 para o historiador, este trabalho partirá de como os políticos
brasileiros e portugueses lidaram contra as políticas de Palmerston e Aberdeen em
relação à marginalização de suas bandeiras no transporte de escravos, da quebra da
ordem do direito das gentes, do julgamento de seus mercadores com legislação de
outro país e como isso afetava a economia política de suas nações. Afinal de contas, o
tráfico de escravos e a escravidão constituíam-se em políticas de geração de riquezas
para alguns brasileiros e portugueses imersos no mundo da política.
Por outro lado, a existência dos bills conduzia à resistência dos marginalizados
comerciantes de escravos — “traficantes, piratas, homens infames”. Eles foram,
economicamente, os prejudicados com as medidas “jurídicas”, “humanas” e
“filantrópicas” tomadas por Palmerston e Aberdeen. Apesar das investidas dos
navios policiais, os renegados comerciantes de carne humana ganharam uma
“sobrevida” ao criar táticas para driblar o policiamento dos mares. Como estudaram
Roquinaldo do Amaral, Marcus Carvalho, Manolo Florentino e Jaime Rodrigues, a
elasticidade dos pontos de embarcação, a extensão das costas americanas e a
tecnologia dos novos tumbeiros favoreceram os últimos suspiros do “ilícito
comércio” em tempos de constante vigilância.
Todavia, esses traficantes, além do conhecimento científico e técnico,
colocaram-se no enfrentamento com a Marinha da Grã-Bretanha. Foi possível, a
partir de alguns requerimentos e relatórios ministeriais, identificar as pistas daqueles
que foram atingidos com as medidas de supressão do tráfico.
Nas páginas da seção dos Negócios Exteriores de 1844, o ministro Ernesto
Ferreira França descreveu o conflito do Boqueirão da Cidade de Santos. O episódio
4 A acontecimentalização como uma ferramenta que não naturaliza os fatos, mas que entrecruza saberes. Seu objetivo é problematizar os estatutos de verdade e como eles foram construídos. Ver: FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Tradução de Laura Fraga de A. Sampaio. 2. ed. São Paulo: Loyola, 1996.
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envolvia os habitantes do litoral santista e os oficiais britânicos que estavam a serviço
da supressão do tráfico de escravos. Segundo o ministro, esse tipo de ocorrência era
analisada pelo governo com muita cautela.
No entardecer do dia 5 de janeiro de 1844, alguns marinheiros não
identificados atacaram o Frolic — brigue de guerra inglês. O comandante W. A.
Willis, o piloto Francisco of May e o auxiliar Richard Byrne foram acometidos de
forma “bárbara”. Infelizmente, o documento não descreve o teor da barbaridade,
nem se os agredidos foram mortos ou feridos. O presidente de província de São
Paulo, ao receber a notificação do caso, enviou a polícia para investigação do
“horroroso crime”.
Identificados os agressores como José Maria Renovar, mestre do Patacho
Nacional, Manoel Diogo de Brito, marinheiro, e Manoel Rodrigues Moreira,
pertencente à embarcação Constância, foram enviados para julgamento. Essas
embarcações, conforme constam no relatório, eram suspeitas de envolvimento com o
tráfico ilícito de africanos. Por sua vez, informava o chefe de polícia que os agressores
“forão postos à disposição do Juizo […] e remetidos ao mesmo Tribunal todos os
papéis, diligencias e provas judiciarias, á que se procedeo para a formação da culpa
dos Réos”. (Ministério da Justiça, 1844, 21-23)
Em linhas gerais, as atitudes de José Maria, Manoel Diego e Manoel Moreira
constituem o sentimento de perda econômica que as ações dos cruzadores britânicos
significavam para eles. Isto é, não era apenas o prejuízo com a embarcação
apreendida, mas com toda a carga que simbolizava um valor estimado para a “boa
sociedade” brasileira.
Além do episódio do Boqueirão de Santos, outro acontecimento chamou
atenção durante a pesquisa. Na atmosfera de fiscalização e vigilância que se tornou a
costa da África e o Oceano Atlântico, o caso da embarcação Despique da Inveja merece
ser iluminado. Durante a consulta ao Conselho de Estado em 7 de março de 1846, os
conselheiros instruíam o imperador sobre a apreensão da embarcação brasileira que
havia sido retida pelo cruzador português Ninfa em 2 de janeiro de 1845.
O Despique da Inveja partiu em 28 de janeiro de 1844 de Luanda rumo a Serra
Leoa. Sob a responsabilidade do capitão e proprietário José Maria Pereira, o navio ia
para lá com o objetivo de solicitar o perdão de uma fiança, que havia sido herdada na
ocasião de sua compra. Todavia, como consta nos autos do requerimento, a
embarcação não completou a viagem, pois, por causa de um temporal, no dia 30 do
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mesmo mês, acabou sofrendo uma avaria — um furo — que impedia o
prosseguimento da viagem, uma vez que “principiou o dito brigue a fazer água em
tanta quantidade”. (Conselho de Estado, 1978, 66)
No ano seguinte, na região do rio Coanza, a escuna de guerra portuguesa
Ninfa iniciou uma caça ao brigue brasileiro. Ao interceptá-lo, os fiscais portugueses o
apresaram e o conduziram, novamente, para o porto de Luanda. Lá, fora condenado
como boa presa, ou seja, acusado de empregar-se no tráfico de escravos. Para o
capitão José Maria, a apreensão da embarcação era “um ato de injustiça e
arbitrariedade”. (Conselho de Estado, 1978, 66) Ele e sua tripulação, composta pelo
piloto e mestre, iriam recorrer ao governo imperial para que fossem tomadas as
devidas providências contra a ação dos portugueses e, consequentemente, o
pagamento de uma indenização pelos prejuízos e humilhações.
Nos autos dos processos, os portugueses descreviam que “[…] encontrou-se
um homem branco sem passaporte, […] e bem assim se descobrira um furo aberto
por trado na tábua no fundo por onde entrava água”. (Conselho de Estado, 1978, 66)
Outra acusação feita pelos apresadores fora que o furo, possivelmente, fora feito
pelos apresados. Ademais, o tribunal português condenaria o Despique da Inveja com
base no decreto de 1836, que proibia o transporte com embarcações de escravos. Por
sua vez, José Maria e sua tripulação negavam a versão dos apresadores e
informavam:
[…] em uma palavra favorecem aos apresados [José Maria e tripulação] presunções de direito das gentes, segundo as quais merecem fé os papéis de bordo enquanto se não convencem de falsos, e prejudicam aos apresadores as suspeitas de serem movidos pelo interesse que tinham na condenação do brigue apresado, e pelo desar que lhes resultaria da precipitação com que procederam neste apresamento. (Conselho de Estado, 1978, 67)
Os brasileiros repudiavam a condenação e afirmavam que ela era uma
precipitação dos portugueses. Seu sentido era criar um factoide para eles mostrarem
às demais nações que de agora em diante estavam empregados no combate ao ilícito
comércio. Na consulta ao Conselho, o requerimento lembrava que “nem mesmo a
Inglaterra de sobejo exigente erigiu, no Tratado com Portugal de 1842, em
presunções esses fatos inocentes que tanto pesaram na consciência dos juízes
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portugueses”. (Conselho de Estado, 1978, 67) Os fatos inocentes para os brasileiros
seriam “furos, embarques de pessoas fora da tripulação, ou pano largo para evadir à
caça”. (Conselho de Estado, 1978, 67) Para José Maria e seus empregados uma
condenação consistente de um tumbeiro deveriam constar:
(1o) escotilhas com grades abertas; (2o) separações em maior número do que é necessário para o tráfico lícito; (3o) tábuas aparelhadas para segunda coberta; (4o) gargalheiras, algemas, etc.; (5o) maior quantidade de água; (6o) quantidade extraordinária de pipas ou barris; (7o) maior quantidade de selhas, gamelas etc.; (8o) caldeira de maior dimensão do que é usual; (9o) quantidade extraordinária de víveres. (Conselho de Estado, 1978, 67)
E nada disso constavam nos autos do processo, segundo o proprietário. E o
que os juízes portugueses faziam era uma “vergonha”. Os conselheiros Bernardo
Pereira de Vasconcelos (relator), Francisco de Paula Sousa, visconde de Monte
Alegre, José Antônio da Silva Maia, visconde de Olinda, José Cesário de Miranda
Ribeiro e Caetano Maria Lopes Gama entenderam que, não tendo sido encontrados
escravos a bordo da embarcação, nem outros indícios que classificavam o navio como
tumbeiro, ficava evidente os excessos dos juízes portugueses. E acrescentavam que o
acórdão que julgava a embarcação como boa presa era “atroz injustiça, e manifesta
injúria a súditos brasileiros”. (Conselho de Estado, 1978, 67) Além disso, informavam
ao imperador que a sentença sobre a questão “é nula porque Portugal não tem com o
Brasil tratados que a permitam” (Conselho de Estado, 1978, 67) fiscalizar
embarcações brasileiras.
Em parecer conclusivo, informavam os senhores conselheiros:
É, pois o parecer da Seção que o Governo Imperial não pode deixar de proteger ao súdito brasileiro José Maria Pereira, capitão do brigue escuna Despique da Inveja na pretensão que tem de ser indenizado, reclamando diplomaticamente a quantia em que o prejudicou a detenção e a condenação do dito brigue pelas autoridades portuguesas; e bem assim que forçoso é pedir ao Governo português uma satisfação correspondente ao ultraje feito à bandeira brasileira pela já mencionada vista. (Conselho de Estado, 1978, 68)
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O apresado José Maria recorria de uma indenização no valor de 30:621$034
(trinta contos, seiscentos e vinte e um mil e trinta e quatro réis) por todo prejuízo
gerado com o processo de apreensão do Despique da Inveja. Por outro lado, o episódio
envolvendo o súdito brasileiro ligou o alerta dos conselheiros da necessidade de se
estabelecer na África portuguesa instituições diplomáticas para zelar e cuidar dos
brasileiros que por lá exerciam atividades comerciais, além de garantir a
respeitabilidade do direito das gentes.
Eles reconheciam que, nos novos tempos de patrulhamento das costas
africanas, os súditos brasileiros estavam à mercê dos excessos de algumas jurisdições.
Nas linhas do parecer, os conselheiros apontavam que “os súditos imperiais estão
abandonados nos portos da África portuguesa; […] não há ali um cônsul ou vice-
cônsul que proteja o comércio, navegação e súditos brasileiros”. (Conselho de Estado,
1978, 68) E, para evitar em alguns casos a “arrogância”, as “opressões” e os
“vexames”, era necessário que o governo brasileiro exigisse das nações fiscalizadoras
respeito às regras básicas do direito das gentes no que tange ao cumprimento dos
deveres e respeito aos direitos, assim como o estabelecimento de vice-cônsules nos
portos da África portuguesa como forma de proteger os “interesses e as pessoas
súditos de Vossa Majestade Imperial”. (Conselho de Estado, 1978, 69)
Nesse sentido, o que o leitor pode esperar deste trabalho? O trabalho que por
ora se descortina insere-se em um horizonte de história política a partir dos aportes
da história comparada. No campo de uma história do político, experimentar-se-ão as
nuanças e as perspicácias das produções de discursos de verdade que se instituem
nas relações de poder. Como sublinhou Michel Foucault, “relações de poder
múltiplas que atravessam, caracterizam e constituem o corpo social”.(FOUCAULT,
1979, 179) E estas, por sua vez, funcionam por “uma circulação e um funcionamento
do discurso”.(FOUCAULT, 1979, 179)
As políticas produzidas pelos bills Palmerston e Aberdeen, os usos do direito
das gentes, os protestos institucionais defendidos no jogo político brasileiro e
portugueses e as vozes de alguns abolicionistas britânicos e traficantes de escravos
configuram-se nessa relação tentacular de poderes, que não apresentam fixações.
Não há neste trabalho o sentido de “centro do poder” ou “extremidade do poder”,
afinal isso seria dar localidade ao poder, o que foge à precaução do “filósofo
historiador”. O que foi planejado, portanto, é estudar as relações de poder “como
algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia. Nunca está
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localizado aqui ou ali. […] O poder funciona e se exerce em rede”. (FOUCAULT,
1979, 183)
Além disso, o historiador que narra esta história apresenta a seu leitor suas
caixas de ferramentas com algumas noções-chave, que serão encontradas na
constituição do texto. São elas: discurso; lei e norma; e governamentalidade, que
entrecruza e auxilia o método comparativo.
A noção de discurso que este trabalho utilizará parte das análises de Michel
Foucault. Para ele, discurso, ou matriz discursiva, são conjuntos de enunciados que
têm certa regularidade e que não estão reduzidos exclusivamente ao aspecto
linguístico. De acordo com Foucault:
Chamaremos de discurso um conjunto de enunciados, na medida em que se apoiem na mesma formação discursiva; ele não forma uma unidade retórica ou formal, indefinidamente repetível e cujo aparecimento ou utilização poderíamos assinalar (e explicar, se for o caso) na história; é constituído de um número limitado de enunciados para os quais podemos definir um conjunto de condições de existência. (FOUCAULT, 2009, 132-133)
O discurso, ou matriz discursiva, consiste, portanto, em um corpo de
enunciados que tem como objetivo instituir, legalizar e normatizar as práticas dos
sujeitos históricos. Nesse sentido, cabe uma distinção entre discurso e fala com o
objetivo de evitar distorções. O discurso, como alertou Durval Muniz de
Albuquerque Júnior, “segue regras cultural e historicamente estabelecidas, obedece
[a] modelos, está implicado em dadas relações sociais e de poder que o incitam a
dizer algumas coisas e o proíbem ou o limitam de dizer outras”.(ALBUQUERQUE
JR, 2009, 235) Ou seja, os manuais de direito das gentes, o pronunciamento dos
ministros de Estado, conselheiros, senadores e deputados foram tomados não como
unidades linguísticas, mas como uma “ordem discursiva”.
Isso porque a orientação desses homens tem como “lugar de produção de
conhecimento” o campo do direito. Eles estavam empenhados em legitimar ou não a
jurisprudência dos bills; se era juridicamente legal ou não a proibição do comércio de
escravos pelas águas do Atlântico. Seus argumentos, no plano do direito, estavam em
direção a dar um novo ordenamento em um mundo com o fim do tráfico
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intercontinental de escravos. Portanto, quando o filósofo-historiador alertou que o
discurso se apoia em um conjunto de enunciados com regularidade, ilumina-se no
tribunal das contendas o saber jurídico.
A governamentalidade sugerida por Michel Foucault será estudada a partir de
três pontos: segurança, população e governo; o primeiro relacionado com a questão
da soberania.5 Na relação entre direito e soberania, os bills não eram um atentado
restrito à figura dos soberanos — dos irmãos d. Pedro II e dona Maria II. Ou seja, a
noção de soberania no universo do direito não era exclusiva ao corpo do monarca.
Conforme sublinhou Foucault, o campo jurídico não se fecha unicamente no
universo da lei, mas “no conjunto de aparelhos, instituições e regulamentos que
aplicam o direito, põe em prática, veicula relações que não são relações de soberania
e sim de dominação”. (FOUCAULT, 1979, 180)
Nesse sentido, o que foi proposto em Londres em 1839 e 1845 constitui um
novo canal nas “relações de dominação e técnicas de sujeição polimorfas”(
FOUCAULT, 1979, 180), na qual as nações brasileira e portuguesa buscaram novas
táticas — pelo debate jurídico — para ordenar seu cenário político e econômico na nova
realidade de interrupção do tráfico internacional de escravos.
O segundo [população] é caracterizado pelos habitantes, pelas riquezas, pelos
comportamentos. E o último sendo a “arte de governar”, de se fazer a política. Para
Foucault:
Chamaria de História da Governamentalidade […] o conjunto constituído pelas instituições, os procedimentos, análises e reflexões, cálculos e as táticas que permitem exercer essa forma bem específica, embora muito complexa, de poder que tem por alvo principal a população, por principal forma de saber a economia política e por instrumento técnico essencial os dispositivos de segurança. (FOUCAULT, 2008, 182)
A arte de “bem governar um Estado” consiste, basicamente, em “conduzir as
condutas” (FOUCAULT, 2008, 190) a partir das “táticas” que o governo tece para 5 Esse trabalho não oblitera a discussão da ciência política sobre uma teoria clássica da soberania. Autores como Nicolau Maquiavel, Jean Bodin e Thomas Hobbes discutem a questão da soberania a partir da figura do monarca. E, a partir dele, a soberania é compreendida como um desdobramento. Cf: BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. Brasília: UnB, 1997.
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atingir seus objetivos ou finalidades. Essas táticas para garantir o menor prejuízo
possível à população foram utilizadas pelo governo quando “incita, induz, desvia,
facilita ou dificulta, estende ou limita, torna mais provável, no limite, obriga ou
impede absolutamente” (FOUCAULT, 2008, 190). Em linhas gerais, a
governamentalidade tem como finalidade disciplinar as ações do governo em direção
à vida dos sujeitos. A governamentalidade, como lembrou Foucault, teria uma forma
triangular, preocupando-se com a soberania, a disciplina e a gestão governamental.
Nessa trama histórica, tal noção ajudará a analisar como Brasil e Portugal
lidaram com o problema externo — os bills — e seus desdobramentos internos —
discussões do mundo da política — a partir das leis antitráfico promovidas pela
Inglaterra. Nessa intermediação, como países que moralmente — governo de si —
enxergam a exploração da escravidão como ethos cultural e a entendem como negócio
de família — questão familiar — podem combater o lucrativo tráfico de escravos a
partir de uma política de Estado — arte de governar? Daí, como a
governamentalidade como consequência do discurso acerca do direito das gentes
acionou uma maneira de legitimar uma nova moral para os sujeitos — a disciplina
normatiza a moral — a partir do governo? Em suma, qual o lugar do direito das
gentes nos debates de interrupção do tráfico intercontinental de escravos? Ele
assumirá, a princípio, um caráter disciplinar, na medida em que auxilia os
argumentos jurídicos em prol de práticas de governamentalidade de que o tráfico de
escravos tem prejudicado os princípios de soberania, economia e de respeito às
“coisas” da nação.
O trabalho com o triângulo da governamentalidade requer a normalização das
táticas, que são criadas a partir das leis. O acontecimento dos bills e o debate jurídico
travado por Brasil e Portugal deram-se por meios de leis, tratados, protestos,
resoluções que tinham como finalidade ordenar as relações entre os países e os
personagens com o objetivo de evitar o prejuízo para a economia das nações.
Portanto, do acontecimento ao tribunal, os bills transformados nos autos deste
inventado tribunal surgem como o estopim da contenda, que não só envolveram as
nações brasileira, britânica e portuguesa como os traficantes, prejudicados com a
supressão do “ilícito comércio”. Assim, a narrativa do trabalho – os ritos jurídicos, a
contenda, em juízo, a conciliação e a saída – foram inventados num “processo-tese”,
problematizando questões jurídicas e políticas que emergiram das contendas do
debate de supressão do tráfico internacional de escravos.
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E AGORA, O QUE FAZER? “NOVOS TEMPOS”, SEM TRÁFICO
[TRANS]ATLÂNTICO DE ESCRAVOS?
Lisboa, 3 de julho de 1842. O governo português ratificava o tratado de 1842,
negociado pelo duque de Palmela. Encerrava-se o Bill de Lorde Palmerston e
Portugal retomava a harmonia do direito das gentes com a Inglaterra. Rio de Janeiro,
4 de setembro de 1850. Eusébio de Queirós Coitinho Mattoso Camara endurecia a
legislação de 7 de novembro de 1831 que desarticulava a política da escravidão, no
Brasil. Não estava revogado o Bill Aberdeen, mas a contenda aos poucos diminuía.
Tratar do direito das gentes como uma discursividade permitiu a
problematização dos sentidos da atividade ilícita do comércio de escravos. Não se
desejou fazer uma História do Tráfico de Escravos na primeira metade do século XIX.
Para isso há uma vasta produção historiográfica, tal como Leslie Bethell em A abolição
do tráfico de escravos no Brasil (1976) que analisou com ampla documentação as
relações diplomáticas e políticas que envolveram os conflitos e negociações sobre a
supressão do tráfico. E na atual tese de doutorado de Tamis Peixoto Parron, A política
da escravidão na Era da Liberdade: Estados Unidos, Brasil e Cuba, 1787-1846 (2015), no
qual ele apresentou uma generosa análise sobre a política da escravidão em três
regiões distintas.
Neste trabalho, o direito das gentes, como um campo jurídico, foi tomado a
partir de uma experimentação, ou seja, como Brasil, Portugal e Inglaterra partiram do
direito das gentes para justificar suas posições sobre o infame comércio. Sejam elas a
favor da supressão do tráfico de escravos ou com os silêncios acerca do ofício dos
tumbeiros. O que importava, de fato, para eles era legitimar-se perante o “tribunal” e
provar que as nações não agiram a margem do Direito e dos “direitos” estabelecidos
pelos tratados.
Como afirmou Silvestre Pinheiro Ferreira, o direito das gentes era um
“complexo dos princípios por que se devem regular os agentes dos diversos poderes
políticos de cada nação, para que nenhum dano seja feito pelos seus membros aos
direitos das outras nações”.(FERREIRA, 1834, 312) Evitar os danos a uma nação e aos
seus membros foi o que buscaram os políticos portugueses e brasileiros após as ações
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de Palmerston e Aberdeen. No entanto, qual a sentença esperar do tribunal das
contendas?
Não há sentença, porque não houve juiz. Não cabe ao historiador a produção
de um acórdão judicial. Cabe a ele a tarefa de apurar as fontes e propor caminhos de
investigações. Nesse cenário de averiguar o corpus documental conclui-se que entre
a supressão, silenciamentos e tolerância com o tráfico de escravos, o direito das
gentes foi ativado como uma forma de defender os interesses nacionais. Afinal, as
reclamações e os protestos funcionaram como essa ferramenta jurídica para contestar
a contenda estabelecida.
No corpus documental desse trabalho foram usados livros jurídicos da época
sobre o direito das gentes e suas matrizes discursivas. Foram investigados relatórios
ministeriais, despachos internos e legislações das nações envolvidas: Brasil, Portugal
e Inglaterra. Assim como, livros de autoria dos políticos que viveram o momento de
recebimento dos bills. Ademais, em alguns momentos, recorri aos textos da imprensa,
os mapas e as imagens de navios negreiros. A partir das fontes foi possível iluminar
o entrecruzamento do direito das gentes e sua experimentação com a supressão do
tráfico internacional de escravos. Esse entrecruzamento, como método comparado,
foi possível a partir Michael Werner e Bénédicte Zimmermann. (ZIMMERMANN &
WERNER, 2003)
O entrecruzamento dos contextos e textos sobre o tráfico de escravos e o
direito das gentes permitiram mudanças na arte de “bem governar” o Estado. Se
antes Brasil e Portugal possuíam rentabilidade com o lucrativo “odioso comércio”,
foi preciso repensá-lo para os novos tempos. Sem dúvida, houve uma transformação
nos sentidos políticos que o tráfico internacional tinha nas duas margens do
Atlântico.
Em tempos que a criminalização do transporte de africanos e africanas ia
sendo, paulatinamente, transformado em norma no espaço atlântico, os governo
brasileiro e português precisam buscar saídas e soluções para manter suas
economias, o bem estar da vida das pessoas e a segurança jurídica e internacional de
suas nações (soberania). Com o tempo houve uma “universalização ocidental do
Atlântico”, para lembrar Lynn Hunt e a invenção dos direitos humanos, de que traficar
era não só um atentado ao Direito das Gentes, mas ao direito natural.
O impedimento britânico aos poucos tornou-se norma. Coube, portanto, a
direção política portuguesa e brasileira adequar-se ao novo cenário. A equação a ser
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resolvida era mostrar que brasileiros e portugueses não recuaram de suas soberanias.
Mas adequaram-se as novos tempos de universalização de que traficar pelo Atlântico
era um atentado aos direitos, que foi sendo pouco a pouco acordado entre as nações
a partir dos tratados — ferramenta de direito das gentes. Por isso, o trabalho partiu de
que o Direito das Gentes acionou uma governamentalidade com a finalidade de
defender as riquezas da nação e sua segurança/soberania.
O governo português, prontamente, preocupou-se com seus territórios
ultramarinos, com atenção especial, na África. Após o tráfico, o receio de insurreições
e movimentos contra a metrópole levou os ministro de d. Maria II a repensar os
sentidos do Império.
A soberania tinha lugar de destaque, tanto para portugueses e brasileiros. Era
consensual que os políticos luso-brasileiros entendiam que as políticas britânicas
tinham como finalidade a cobiça pelas colônias portuguesas, o colapso da navegação
mercantil e a ruína da grande lavoura, como relatavam os políticos brasileiros.
Entretanto, não foi suficiente reduzir os problemas causados pelo bills a
independência das nações. As pistas investigativas ofereciam mais, como a
administração e a disciplina.
A gestão administrativa em investimento nas indústrias agrícolas e no
emprego nos negros livres foi colocada em ação para garantir a produção de riquezas
e a dinâmica da economia política do universo luso-africano. A disciplina foi usada
para tornar úteis esses novos homens — negros livres e indígenas — que não mais
poderiam ser reduzidos a mercadoria escrava, do ponto de vista a lei e dos tratados.
O que acabou foi o tráfico internacional e não a escravidão nos interiores da África.
No Brasil a economia não desmoronou como apostavam os toleracionistas
com o tráfico de escravos. Após 1850 houve uma considerável queda na introdução
ilegal de africanos e africanas no litoral brasileiro. Poucos agora aventuravam-se
nessa atividade, que era desarticulada pelo governo de d. Pedro II. No Império, como
nas colônias portuguesas, em África, o que tinha acabado foi o tráfico e não a
escravidão. Na administração da “arte de bem governar” o Estado existiu uma
substituição do tráfico internacional e intercontinental por um tráfico interno e
interprovincial. Nas terras brasileiras o ofício de traficar estava mantido.
Escravos, africanos livres, imigrantes, trabalhadores livres coabitavam nesse
universo disciplinar onde o trabalho adquiria outros sentidos. Nos debates
parlamentares o trabalho era qualificado como caminho para a civilização e o
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progresso. Não foi por acaso que 1850 batia com a inauguração da Casa de Correção
da Corte, que punia os prisioneiros com pena de trabalho e disciplinarizava os
africanos livres a comportar-se como sujeitos trabalhadores. Mesmo em paralelo com
a escravidão, o trabalho, portanto, era apresentado como uma forma de condução do
Império ao “mundo civilizado”.
Por fim, no tribunal das contendas: uma análise comparativa sobre o direito das
gentes no Brasil e em Portugal 1839-1850 teve como objetivo discutir como o direito das
gentes proporcionou a partir do debate do tráfico internacional de escravos uma
reorientação da gestão administrativa, da disciplina e da soberania de Portugal e do
Brasil. Sua utilização, portanto, tornou-se instrumento político-jurídico na defesa dos
interesses nacionais e da economia política pelos governos brasileiro e português.
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DAS PRODUÇÕES INTELECTUAIS DO SÉCULO XIX E XX ÀS NOVAS
DIRETRIZES (PROBLEMAS E PERSPECTIVAS ÉTNICAS-RACIAIS)
GEIZE VIEIRA DE ALMEIDA* PEDRO JOSÉ SEIXAS DOS SANTOS∗
INTRODUÇÃO
Foi na segunda metade do século XIX que teve inicio as propostas de estudos
sistematizados sobre a presença e contribuição das populações e culturas de origem
africana no Brasil. Raimundo Nina Rodrigues foi um dos primeiros autores a tratar
desta temática, embora o tenha feito a partir de uma abordagem, aceita em sua época,
mas que situava o negro como uma raça hierarquicamente inferior. Seus estudos
precursores, sobre a presença da população e culturas de origem africana no Brasil,
foram seguidos, pelos trabalhos de Oliveira Vianna e Arthur Ramos. O presente
artigo pretende analisar a contribuição dos estudos precursores do papel das
populações e culturas de origem africana no Brasil, na segunda metade do século XIX
e XX e inicio do século XX. E os esforços de escrita fílmica recentes sobre a temática
História e Cultura Afro-Brasileira, registrada através do vídeo-documentário
“Cultura Negra Resistência e Identidade” produzido pelo CEAP- Centro de
Articulação de Populações Marginalizadas- 2007. “Cultura Negra Resistência e
Identidade” faz uma análise da presença negra no Brasil, mostrando suas
diversidades e suas contribuições para a formação da identidade brasileira. Assim
como evidencia as estratégias de resistência através da preservação dos costumes
trazidos da África.
APROXIMAÇÕES COM O TEMA
Em certa media o presente artigo reflete o nosso esforço na busca de uma
aproximação ou uma entrada de acesso a pesquisa da Temática História da África e
∗ Acadêmicos do Curso de Licenciatura em História do Centro de Estudos Superiores da Universidade do Estado do Amazonas.
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Cultura Afro-Brasileira. Aproximação iniciada pelo estudo bibliográfico sobre o
tema.
Sendo assim, o levantamento, leitura e revisão bibliográfica dos artigos
científicos que tratam do tema consiste no primeiro movimento de pesquisa
(PIZANNI, et al, 2012: 54)
Como a pesquisa bibliográfica é um trabalho investigativo minucioso em busca do conhecimento e base fundamental para o todo de uma pesquisa, a elaboração de nossa proposta de trabalho justifica-se, primeiramente, por elevar ao grau máximo de importância esse momento pré-redacional
Até porque, “ninguém inicia uma reflexão cientifica ou acadêmica a partir do
ponto zero. O mais comum é iniciar qualquer trabalho ou esforço de reflexão
científica a partir de conquistas ou questionamentos que já foram levantados em
trabalhos anteriores” (BARROS, 2007: 54). Isso se torna um ponto de grande
relevância na pesquisa de um artigo cientifico.
Para isso temos que fazer a revisão literária. De acordo com estudos de
(PIZANNI et al, 2012:54)
A revisão de literatura tem vários objetivos, entre os quais citamos: a) proporcionar um aprendizado sobre uma determinada área do conhecimento; b) facilitar a identificação e seleção dos métodos e técnicas a serem utilizados pelo pesquisador; c) oferecer subsídios para a redação da introdução e revisão da literatura e redação da discussão do trabalho científico.
Após feita a revisão da literatura e a escolha dos autores que trabalham com a
temática, é possível passar para a produção textual, mas sempre seguindo a linha de
pensamento com forme o andamento da pesquisa científica.
Segundo José D’Assunção Barros a “metodologia remete a uma determinada
maneira de trabalhar algo, de eleger ou construir materiais, de extrair algo destes
materiais de se movimentar sistematicamente em torno do tema definido pelo
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pesquisador” (BARROS, 2007:80). Isto requer uma leitura especifica acerca dos
materiais a serem pesquisados.
POPULAÇÕES E CULTURAS DE ORIGEM AFRICANA
A partir de meados do século XIX e início do século XX no Brasil foram
realizadas importantes produções intelectuais que abordavam a questão do negro na
formação do povo brasileiro, produções estas que em geral apresentavam um caráter
racista em sua interpretação sobre o negro na sociedade. Um dos primeiros
pensadores sobre a temática foi Nina Rodrigues que “em seus textos ele procurava
mostrar o quão perniciosa era a influência dos negros na população brasileira o que
estava em absoluta consonância com as ideias de seu tempo, esse não era, no entanto
seu tema principal de estudo” (CORREA, 2005-2006). Rodrigues portanto era um
autor que interessava-se por pesquisar a população afrodescendente, mas com os
conceitos de sua época, que visavam a figura do negro como um ser intelectualmente
inferior.
Raimundo Nina Rodrigues estava preocupado em entender a influência da
população e cultura de origem africana na formação social brasileira. Nos termos da
época, a “Cultura Negra”, tal preocupação torna-se visível em uma de suas frases
famosas “Para nos servir da expressão de Tylor, ou melhor da expressão consagrada
na Costa D’África pode-se afirmar que na Bahia todas as classes, mesmo a dita
superior, estão aptas a se tornarem negras” (CORREA, 2005-2006).
Influenciados pelos estudos de Nina Rodrigues surgiram alguns outros
estudiosos que se interessaram em pesquisar a população negra no Brasil. Nas
décadas de 1920, 1930 e 1940 “o estudo acerca das populações e culturas de origem
africana tornou-se um tema privilegiado”. Não por acaso, foi neste período o
surgimento do campo de estudo, dedicado “a análise do papel das populações
negras na formação social brasileira”. Conhecido naqueles dias como “Estudos Afro-
Brasileiros” (SILVA, 2011). Dentro do campo de pesquisa dos Estudos Afro-
Brasileiros surgiram vários pensadores. Alguns deles reproduziam as teses cunho
racista, leitora de uma inferioridade biológica do negro, na sociedade brasileira, cujos
trabalhos obtiveram uma penetração bastante significativa na sociedade da época,
como Oliveira Vianna.
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Oliveira Vianna defendia a inferioridade inata do afrodescendente em suas
publicações cientificas, baseando-as em pesquisas, seus trabalhos encontravam-se
presentes principalmente nos livros didáticos de história da rede pública de ensino,
que por consequência alimentava o etnocentrismo dos estudantes “brancos” a raça
“superior” (SILVA apud VIANNA, 2011). Sua ideologia racista não só explicitava um
pensamento etnocêntrico no qual acreditava que existia uma raça pura, na qual os
mestiços se tornavam inferiores, mas também apresentavam caraterísticas do
pensamento nazista, pois o mesmo em resposta a um pensador que tentara refutar
sua tese, afirmava que, o negro não poderia ser criador de civilizações, pois para isso
teria de se misturar a outras raças como a ariana ou semita, discurso este bastante
reciproco ao dos nazistas alemãs.
Oliveira em seus trabalhos buscou tornar cientifica suas pesquisas, tanto que
buscou na antropologia leis que comprovassem a inferioridade do negro e dos
mestiços de acordo com (SILVA apud VIANNA, 2011).
O mestiços de brancos e negros, os mulatos, idiossincráticos, tendem, segundo essa lei, na sua descendência, a voltar ao tipo inferior, aproximando-se dele mais e mais pela índole e pelo físico. O seu caráter, entretanto, não pode atingir nunca a pureza e a integridade da raça primitiva, a que regressasse. Tendo de se harmonizar as duas tendências étnicas, que se colidem na sua natureza, acabando sempre por se revelar uns desorganizados morais, uns desarmônicos psicológicos, uns desequilibrados funcionais.
Em contrapartida ao pensamento de Oliveira Vianna, o pesquisador Artur
Ramos combatia a ideia da existência de raças desiguais, principalmente na formação
social brasileira e buscava denunciar a discriminação racial ora sofrida pelo negro no
seu dia a dia e principalmente nas próprias interpretações e representações dos
intelectuais, e para o pesquisador “o que explicava a posição social do negro no
Brasil era a sua condição econômica, a forma de exploração de seu trabalho durante a
escravidão e ainda durante seu tempo” (Silva, 2011). Ramos buscou em seus
trabalhos refutar as ideias e pensamentos racistas publicados por Oliveira e demais
pensadores que abordavam a temática, conseguindo a partir de sua intensa produção
acadêmica mobilizar a opinião pública, em torno desta problemática e conscientizar a
população sobre a igualdade entre negros e brancos, seus argumentos norteavam
várias de suas obras, assim como publicações em jornais e revistas na qual em uma
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destas“ Artur Ramos defende a existência de uma paridade entre civilizações
africanas e as de outras regiões do mundo” ( SILVA, 2011).
HISTÓRIA DA ÁFRICA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA 2003
No limiar do século XXI os estudos Afro-Brasileiro ganham um novo impulso.
A nova lei de 09 de Janeiro de 2003 N° 10.639 estabeleceu que as diretrizes e bases da
educação nacional deveria incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a
obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira” lei esta que tratou-
se de uma decisão política em respostas as fortes pressões vindas por partes de
movimentos sociais: o movimento negro; movimento das mulheres negras;
movimento dos remanescentes quilombolas e entre outros. Esta medida trouxe
bastante repercussões pedagógicas para a educação, segundo as determinações das
(Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino
de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, 2004)
A obrigatoriedade de inclusão de História e Cultura Afro-Brasileiras e Africana nos currículos da Educação Básica trata-se de decisão política, com fortes repercussões pedagógicas, inclusive na formação de professores. Com esta medida, reconhece-se que além de garantir vagas para negros nos bancos escolares, é preciso valorizar devidamente a história e cultura de seu povo, buscando reparar danos, que se repetem há cinco séculos, a sua identidade e a seus direitos. A relevância do estudo de temas decorrentes da história e cultura afro-brasileira e africana não se restringem à população negra, ao contrário, diz respeito a todos os brasileiros, uma vez que devem educar-se enquanto cidadãos atuantes no seio da sociedade multicultural e pluriétnica, capazes de construir uma nação democrática.
A partir destas determinações o ensino de história passou a assumir a
responsabilidade do fortalecimento de identidades e direitos, assim como explicitar a
consciência política e histórica da diversidade, buscando ações educativas de
combate ao racismo e a discriminações nos seus conteúdos, fazendo com a figura do
negro não se limite a figura do período escravocrata, de uma pessoa oprimida,
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sofrida e incapaz, mas de um ser atuante com uma diversidade cultural, que criava
resistências que participava de modo afetivo para construção de nosso país.
Observa-se um grande progresso nas questões étnicas-raciais em nosso país a
partir das determinações supracitadas, a lei N° 10.639, as políticas de reparações, a
valorização das ações afirmativas e o sistema de cotas, mas enquanto ao silêncio de
aproximadamente seis décadas? Infelizmente durante todo esse tempo em que tal
temática se tornara reprimida, os conteúdos de ensino de história que corriam por
nossa rede pública de ensino assim como a particular, continham e de certo modo
ainda contém um caráter camuflado, alienando o negro a sua posição de escravo do
período colonial, criando assim memorias sociais difíceis de se desconstruir, pois as
mesma se encontram enraizadas em nossa sociedade.
De acordo com as historiadoras e pesquisadoras Martha Abreu e Hebe Matos,
elas afirmam que “desde o final da década de 1990, as noções de cultura de
diversidade cultural, presentes nas normatizações estabelecidas pelo MEC com o
objetivo de regular os ensino fundamental e médio, especialmente na área de
história.” (ABREU e MATOS, 2008:). Ou seja, desde esse tempo em diante a história
da cultura afro-brasileira vem sendo implementada nos currículos, mas o grande
problema é saber se elas estão sendo aplicados de maneira correta pelos profissionais
da educação. Devem ser ensinados para os alunos, não como uma forma de que os
africanos foram só escravizados e mau tratados pelos brancos, mas deve ser colocado
em pauta a colaboração da população negra para a construção da identidade cultural
do povo brasileiro.
VÍDEO DOCUMENTÁRIO “CULTURA NEGRA RESISTÊNCIA E
IDENTIDADE”
Ao analisarmos ao vídeo documentário podemos perceber que ainda se tem
muito a conquistar para ter uma democracia étnica racial em nosso país, pois o vídeo
deixa bem claro que a identidade brasileira no exterior está ligada a cultura afro
como por exemplo a capoeira o carnaval, comidas típicas etc. (Ivanir dos Santos.
Secretário executivo do CEAP).
Nós não queremos excluir a contribuição europeia aqui, que grupos
de descendência europeia vieram para o Brasil, deram ao país, nós
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não podemos esquecer disso. Mas também nós não podemos aceitar
que a larga contribuição que os africanos deram ao Brasil fique
esquecido... Quer, dizer, o Brasil só vai ser um pais justo e moderno...
Quando compreender isso. Nós não somos uma nação europeia e
esse é um valor da elite dominante, não é um valor do povo... e o
interessante que os setores dessa mesma elite quando quer se mostrar
popular fora do Brasil tem de dizer que sabe sambar... quando você
quer um valor de ser brasileiro não é o violino que você toca e nem é
o piano que você toca, tem que ser o pandeiro, o tantã ou o tamborim.
Então os valores que identificam o brasileiro no exterior está ligado aos
aspectos culturais africanos e não europeus, entretanto, muitos brasileiros
(principalmente os descendentes de europeus) não se sentem bem por motivos de
serem lembrados por esses costumes africanos, e nesse momento que o preconceito
se impõem. De acordo com Selva Guimarães, “se ao ensino de História cabe um
papel educativo, formativo, cultural e político e sua relação com a construção da
cidadania perpassa diferentes espaços de produção de saberes históricos”. (Fonseca,
2010:6). Mas cabe aos professores quebrarem esse paradigma. Criando assim uma
sociedade mais justa e menos preconceituosa
Fazendo quebrar a visão arbitraria que as pessoas tem da África como vimos
no vídeo-documentário, quando se fala a respeito da África se generaliza o
continente africano como um todo, como se não houvessem sociedades formadas e
que todos que viviam ali eram selvagens, mas não é bem assim; (Joel Rufino escritor)
“A África primeiro é um continente muito grande ne? Ali havia de
tudo, havia povos que viviam em aldeias, havia povos que viviam em
cidades, havia povos que tinham organização política centralizada
com Estado, ministros, leis, burocracia, exercito, havia outras que não
tinham nada disso, enfim a África é muito variada.”
Diante das palavras do escritor Joel Rufino, podemos perceber que a África
antes da chegada dos colonizadores já era um continente repleto de diversidades
culturais. Assim como haviam grupos formados por uma sociedade e viviam de
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forma civilizada, havia também aqueles que viviam com costume e política de
subsistência.
O vídeo-documentário vem fazer também uma abordagens acerca da
produção escrita negra, quando o professor (Diomário da Silva Jr) Professor fala;
Porque se você é branco e quer escrever sobre negro eles falam assim,
‘ah, só quer escrever sobre você’. Claro! Quem entende do que eu sou
e o que eu sofri sou eu. Tenho uma bagagem querendo ou não há
uma questão de sentimentalismo envolvido
Isso mostra que quem entende melhor da cultura negra e o que esse povo
sofreu com a escravidão são eles próprios, então é através disso que se luta para uma
sociedade racial sendo que, “as ações afirmativas como esse sistema de cotas pra
universidade pública pro serviço público etc. elas são expressão de um desejo de
democracia racial que tem que ser levado em conta na luta pela democracia, o
movimento negro reivindica isso há dezenas de anos.” (Joel Rufino, escritor)
A partir de então, (Ivanir dos Santos, Secretário Executivo do CEAP)
A lei 10.639 é a primeira política concreta de estado tem que vir
outras ela só não é suficiente, mas ela já abre um bom diálogo entre
os vários indivíduos que compõem a sociedade brasileira, daqui a
vinte anos eu não tenho dúvida se conseguimos de fato efetivar a
aplicação dessa lei que ainda atem algumas dificuldades estamos
tentando superar e tentar fazer um país diferente.
Em consequência dessa luta por uma democracia racial, “em 2004, foram
aprovadas pelo Conselho Nacional de Educação as Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura
Afro-Brasileira e Africana” (Fonseca, 2010:4). Observa-se que a partir das novas
diretrizes abriu-se novas perspectivas para se abordar a temática étnica racial nas
salas de aulas, para que se possa descontruir tal memoria social que forma a
identidade do povo brasileiro, fazendo com que nossos cidadãos percebam e
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respeitem a diversidade cultural de nosso pais, e a contribuição da cultura afro para
sua construção.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os primeiros contatos com a literatura e a temática História da África e
Cultura Afro-brasileira, nos sugere ser ainda necessário um significativo
investimento em pesquisa nas temáticas delas derivadas. Ao mesmo tempo parece
ser um desafio, por parte das universidades, incluir os acadêmicos nas dinâmicas
relativas ao ensino e pesquisa sobre esta temática. Contudo, trata-se de um esforço
importante no sentido de serem os graduandos de hoje, os futuros educadores, que
estarão nas salas de aula amanhã, e terão a responsabilidade de formar pessoas
críticas capazes de reconhecer e respeitar a diversidade humana e cultural que
compõem nossa sociedade.
Os novos investimentos nos Estudos Afro-brasileiros possibilitarão romper
com a imagem do negro, limita somente ao período colonial ou a figura do escravo
açoitado no tronco. Assim como favorecer aos alunos da Educação Básica perceber
como equivalente as contribuições dos povos formadores da sociedade brasileira e
valorizar positivamente, a contribuição negra neste processo.
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IDENTIDADE ÉTNICO-RACIAL NO RIO ANDIRÁ: TRAJETÓRIA DE VIDA DE
BENEDITO ANTÔNIO DA SILVA
JUCINARA CABRAL DA SILVA 1 JOÃO MARINHO DA ROCHA 2
INTRODUÇÃO
Nossa pesquisa inseriu-se em um contexto de luta por diferenciação étnico-
racial no Rio Andirá – Barreirinha/AM, fronteira com o estado do Pará. Há cerca de
quinze anos, Santa Tereza do Matupiri, Boa Fé, Trindade, São Pedro e Ituquara,
comunidades negras rurais do rio Andirá, vem efetivando processos de construção
de suas identidades coletivas como quilombolas. Em 20133, conseguiram certificação
como tais e hoje se encontram no processo de demarcação de seus territórios pelo
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária –INCRA.
Comunidades quilombolas do Rio Andirá, apresentam em seu processo
político reivindicatório, um memória do cativeiro que remonta ao século XIX
(ROCHA, 2016) quando ali chegaram negros que, segundo consta em mito de
origem, tem ascendência angolana e haviam sido escravizados nos plantéis do Pará.
Assim, reivindicavam suas ancestralidades angolanas e ali, junto a indígenas Sateré
Mawé, construíram espaços de liberdades.
Se para as comunidade supracitadas, envolvidas no processo de diferenciação
étnico-racial “o ser negro e quilombola”, parecia “algo a ser conhecido e aprendido”
(ROCHA, 2016), tal situação se torna ainda mais cara para as demais afastadas da
comunidade de Santa Tereza, eleita pelo movimento quilombola como aquela que
deveria ser o polo das lutas e reivindicações.
1 Acadêmica do 7º período de Licenciatura Plena em História da Universidade do Estado do Amazonas. Centro de Estudos Superiores de Parintins UEA/ CESP. [email protected] 2 Professor Assistente da Universidade do Estado do Amazonas. Centro de Estudos Superiores de Parintins, UEA/ CESP. Doutorando do Programa de Pós-Graduação “Sociedade e Cultura na Amazônia”. PPGSCA/UFAM. [email protected] 3 A fundação Palmares, através da portaria nº 176 de 24 de outubro de 2013, registrou no livro de Castro Geral nº16 e certificou de acordo coma auto definição e o processo em tramitação junto a referida fundação que as comunidades de Boa fé, Itucuara, São Pedro, Tereza do Matupiri, Trindade se definem como remanescente de quilombo. Ver Diário oficial da União Seção 1 nº 208 sexta 25 outubro.
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Nosso texto se atém a um desses casos. Nos referimos a agrovila de São Paulo
do Açú, localizada no Igarapé-Açu, margem esquerda do rio Andirá, do lado oposto
das demais comunidades envolvidas no processo diferenciação étnico-racial
encampado pela Federação das Organizações das Comunidades Quilombolas de
Barreirinha. Do Açú, como é mais conhecida, apenas duas famílias estavam
cadastradas como quilombolas, a saber: os Castros e os Barbosa Dias. A comunidade
toda apenas foi inserida em 20 de Novembro de 2015, quando na ocasião de uma
audiência pública para fechamento do território quilombola, após reivindicações de
moradores que justificaram que havia relações ancestrais entre um dos patriarcas de
São Paulo do Açú e os “pretos do Matupiri”, agora quilombolas.
Benedito Antônio da Silva era o sujeito ao qual se referiram os moradores do
São Paulo. Filho de Leonardo Antônio da Silva e Melentina Antônio dos Santos. Por
isso, nos atemos no conhecimento das trajetórias de vida e trabalho de Benedito
Antônio da Silva, 80 anos, reconstituída a partir da memória familiar, através do
patriarca da família. As tramas das memórias construídas, no bojo do movimento
quilombola, levam Benedito para o contexto das histórias de negros, pretensamente
Angolanos trazidos para o Pará e, que segundo a tradição oral das comunidades do
Andirá inseridas no movimento político, ali chegaram nos fins do século XIX.
A maioria das 46 famílias na agrovila São Paulo do Açu, distante por via
fluvial a 2 horas de barco motor H.P. 25, da sede do município de Barreirinha, são
descentes de Benedito. Morto em 2016, após deixar registrada sua memória para as
lideranças do movimento quilombola do Rio Andirá.
Por meio da história oral (PORTELLI, 1997; VERENA, 2000; MEIHY, 2010) a
reconstrução da trajetória de vida de Benedito Antônio da Silva, ocorre a partir de
relatos de memórias de seus filhos que residem, atualmente, na própria Agrovila.
Através destas memórias trabalhamos a importância da reconstrução de
Identidade pelas classificações de identidade coletiva da agrovila do Açú, ligada a
outras trajetórias de vida de outras comunidades negras, localizadas no Rio Andirá
nas proximidades. Torna-se foco conhecer as trajetórias dos protagonismos dos
sujeitos, para entender como elas se ligam por meio dessa memória de pessoas.
Focamos no que os relatos indicam dentre outros, em elementos como: a
trajetória de Benedito, desde os processos sócios históricos que os levaram para o
Açú; a constituição das práticas de trabalho, sociabilidades, religiosidade no lugar
Açu.
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A pesquisa aqui relatada teve origem em um Trabalho de Conclusão de Curso
– TCC e decorre de contextos maiores de pesquisas que vem sendo desenvolvidas
com e em comunidades do Rio Andirá, desde 2010, a partir do Curso de História da
Universidade do Estado do Amazonas – UEA, insere-se nos estudos do Grupo de
Estudos Históricos do Amazonas – GEHA, acerca da construção da Identidade
coletiva quilombola no Rio Andirá. Especificamente sobre o Açú, temos mapeado as
memórias acerca dos acontecimentos, tradições orais, práticas socioeconômicas e
culturais, processos sociais de educação, formas de uso e ocupação da terra. Enfim, as
percepções os processos que levaram esses sujeitos a migrarem da comunidade
Tucumanduba para cabeceira do Açu. Neste novo espaço, até então distante das
fazendas de gado.
A partir das práticas da Historia Oral temos acesso a essas informações para
então, entender as conexões e relações essa ligação familiar com Santa Tereza e as
outras comunidades classificadas como remanescente de quilombo. A partir desse
ponto de partida enfatizamos a relevância da Historia Oral, o papel que ela ocupa na
Historiografia que temos como herança da Escola dos Annales, o qual propõem uma
Nova História, a que denomina de história vista de baixo, sob a perspectivas de
mulheres, negros, homossexuais, sujeitos marginalizados (POLLAK, 1989).
Por meio da história oral encaminhamos a pesquisa, fomos a campo, onde
realizamos entrevistas nos messes de julho de 2016 e janeiro de 2017. Nesse
procedimento, pudemos experimentar as trajetórias de vidas e relações sociais ali
estabelecidas, por sujeitos por vezes classificados como de “poucas letras”. Isto
ganha relevo para os estudos de comunidades amazônicas, na medida em que outras
fontes entram nos cenários de pesquisa e iluminam outros processos históricos. Neste
caso, as fontes orais nos permitem obter informações sobre povos não alfabetizados,
grupos sociais, sem registros documentais de sua história ou até mesmo essa foi
escrita sob outro olhar totalmente distorcida (PORTELLI, 1997).
Do pressuposto, partimos para a História Oral, assim, conhecemos mais sobre
o personagem Benedito, quando nas entrevistas seus filhos contam de onde vinham
as formas de sobrevivências/sustento da família, a origem da esposa dele, seus pais,
buscando sempre respostas pra lacunas abertas que necessitam serem respondidas
ao final da pesquisa que engloba todo um contexto girando em torno da própria vida
desses sujeitos, o que eles podem fornecer sobre si mesmo, o que conhecem de sua
origem e para onde isto os levaria, hoje, com uma identidade em pleno processo de
reconstrução.
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Pollak (1989), elabora que as diversas abordagens e dimensões da história se
cruzam, mesmo que estas entrevistas sejam individuais, elas expõem uma memória
no coletivo. Quando eles retratam, nesse caso, da origem de Benedito Antônio da
Silva, trazem à tona a história da Agrovila São Paulo do Açu.
As memórias dos filhos de Benedito Antônio da Silva repassadas pelo próprio,
por meio do convívio, são as fontes primárias da pesquisa ora tratada, é de onde se
tiram as respostas para nosso problema, pois é na memória que se guardam
respostas do desconhecido sobre nosso passado.
Por isso, há a necessidade de construir um solo seguro em fontes que validem
essa oralidade que nos é passada por meio das entrevistas, fontes essas que estão na
história social, história cultural, história econômicas, história local, história regional
juntas em um contexto que é a trajetória de vida de umas únicas pessoas, mas que
possuem ligações com outras e leva ao reconhecimento de como Quilombola do
Andirá foi se constituindo.
Através da memória estudada podemos analisar a trajetória de Benedito,
partindo do lugar onde nasceu, por onde passou, onde pescava, onde caçava, onde
eram feitos os cultivos da terra, onde coletava a castanha, se analisa através desses
elementos o que o levou a fazer esse percurso, o qual vai de um lugar com escassez
de alimentos para outro com fartura.
Como a trajetória de Benedito está vinculada à reconstrução da história e
memória da Agrovila São Paulo do Açu? Quem é ele, como sujeito dentro dessa
Agrovila, sendo o patriarca da família Silva, que tem maior quantidade de familiares
na localidade? Como a organização espacial da comunidade informa sobre as
relações sociais, política, religiosas, práticas festivas e de lazer, estabelecidas no Açú?
A análise das origens familiares foi que levou ao conhecimento de que a
Agrovila também tem conexões com os mitos de origem quilombola. Esta parte da
vida de Benedito, talvez seja menos a conhecida até então. Iniciam os processos de
luz sobre o passado quando atentamos para o fato de que os filhos mais velhos de
Benedito Antônio da Silva se casaram com filhas de Santa Tereza do Matupiri, que
era conhecida por eles como “pretos do matupiri”.
A partir das entrevistas podemos notar que toda a trajetória de Benedito
Antônio da Silva, quando analisada em profundidade, juntamente com outras
entrevistas, está (re)construindo, pela memória oral, a história e a identidade do Rio
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Andirá, das comunidades construídas ali. Fica nítida a necessidade de passamos por
toda trajetória vivida, percorrida por ele, pelos seus pais, vividas pelos filhos, que
passam para os netos e bisnetos que esta mesma trajetória é longa. Todo contexto
dela nos leva ao reconhecimento da identidade de um lugar, de grupo social que se
via separado de outro e se redescobre tão pertencente entre si. E que esta trajetória de
vida junta-se a outras e formam um grande quebra-cabeça acerca da presença negra
no Leste do Amazonas, se montando através das ligações que possui entre elas,
tornando complementares e apontando possibilidades variadas.
Falamos de memória, de identidade, de reconstrução através da Historia Oral,
pois através dela a trajetória de um homem que se tinha apenas como o patriarca de
uma família pode-se entender essa questão Étnico-racial no Rio Andirá, juntamente
com outras trajetórias de homens e mulheres protagonistas. Nisso, analisar como a
agrovila de São Paulo do Açú, entrou nesse complexo de comunidades Reconhecidas
como Quilombolas, ganha relevo no processo de compreensão de como ocorre nos
últimos anos a diferenciação étnico-racial na Amazônia.
DAS LUTAS DAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS
O Rio Andirá apresenta um contexto cultural diversificado. Se houve no
Brasil, com grande intensidade, imigrações, a Amazônia logo foi afetada pelo
aglomerado de Culturas resultante desses movimentos. Quando olhamos para o
Baixo amazonas, especialmente o Rio Andirá, percebemos a necessidade de falar de
identidades “que pertencem a sujeitos de origens diversas, com ideias opostas, com
pensamentos e ações, etnias, culturais, nacionais, religiosas, de gênero e ideológicas
que se distanciam” (DELGADO, 2010, p. 46).
Rios e Mattos (2004) ensinam que o processo de pós-abolição no Brasil foi bem
mais apresentado por estudos pelos pontos de vistas político e econômico e não pelo
social e cultural. Então surge como uma resposta a uma história contada por
“estrangeiros” de passagem apressada pela região. Trabalhos como este, que visam
colocar essas comunidades, esses sujeitos pertencente ao Rio Andirá como
protagonistas de suas próprias Histórias, para além dos mundos da escravidão,
transfiguram-se e reatualizam pelos processos socioculturais que resistiram à
invisibilidade e que hoje buscam ligações culturais que se perderam ao longo dos
processos históricos violentos e ficaram nos lugares de trânsitos desses sujeitos.
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No contexto social que cabe aqui falamos das lutas travadas pelas
comunidades atualmente reconhecidas como Remanescente de Quilombo no Rio
Andirá iniciadas pelo Distrito de Santa Tereza do Matupiri. Logo se anexam à luta
comunidades como Boa Fé, São Pedro, Itucuara, e Trindade, e em 2015, São Paulo do
Açu, como anexa ao Itucuara. Busca-se pôr como um dos pontos principais a
compreensão de como essas comunidades/grupos no Rio Andirá se identificavam
atualmente etnicamente através de festas populares, o trabalho, práticas
socioculturais que apresentam significados que os levam a suas ancestralidades.
“Nessa concepção das situações sociais dos povos e comunidades tradicionais que
está a beleza dessas novas lutas sociais na Amazônia que sempre se apropriam e
articulam-se, a seu modo, das questões que a ela se apresentam” (ROCHA, 2016,
p.13).
Rocha e Freitas (2017), pensando assim na reconstrução de identidade como
objeto para contar a própria História nas suas versões, já que até algum tempo não
havia muitas referências sobre isso, e com a Metodologia da História Oral passou a
ser focado nessas temáticas onde “a metodologia da História oral se alinha à vontade
do sujeito que é quem contém esses conhecimentos que serão registrados por meios
dos relatos com versões diferentes, de personagens distintos, que também
construirão uma história” (DELGADO, 2010, p. 46).
Ao longo do tempo podemos falar de como a cultura de um povo constitui a
identidade de um determinado lugar. Como essas resistências e lutas refletem no
cotidiano e passam através da memória de geração em geração para que não se
esqueçam quem foram seus antepassados e quem são eles hoje, que papéis ocupam
nesses “novos” momentos vividos pelas “antigas” comunidades ribeirinhas do Rio
Andirá.
Comunidades que antes não se viam como negras e, tampouco, como
descendentes de Quilombo, não se sentiam pertencentes até o momento em que suas
genealogias os levam a, de fato, se ver como descendentes e, assim, a trazer de voltas
costumes culturais para que assim se vejam e resinifiquem sua identidade. Dizemos
isso por que durante as emergências, as comunidades quilombolas do Andirá, aos
poucos, passaram a ressemantizar práticas socioculturais e atribuir novos e variados
sentidos e significados a ancestralidade requerida (ROCHA, 2016).
Nessa direção, vale a pena dialogar com Gláucio Paixão da Silva, que informa:
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“(...) dizer que às vezes você não é valorizado pelo valor que você tem, também reconhecido pelo valor que você tem né e isso aqui surgiu, por exemplo, da, eu não sei quem conversou com a dona Cremilda né que trabalha na saúde em Barreirinha, que foi ela que trouxe esse plano pra cá de ver esse direito que o Quilombola tem né, foi ela que, eu ainda não conversei com ela pra, agora o que eu digo assim, o que eu acho é [...] Desses valores, por exemplo, que há [...] E além do valor é um direito que o Quilombola teve no Brasil né, isso ai é uma lei que existe no Congresso Nacional e tem recurso pra isso, agora eu acho, eu tenho pra mim que esse valor que não foi valorizado antes, hoje meu pai já faleceu né, se ainda vier a acontecer pra família dele, pra ele, pra nós filhos dele que ainda tão vivo que venha beneficiar pra trazer alguma coisa de bem pra família, pra ele daqui mais tarde seria uma gloria né porque vamos dizer assim, o fruto que veio dele né, podemos até dizer meu pai já morreu, mas se hoje eu tô sendo beneficiado, bem feito”4.
Benedito antes de falecer fez o religamento da Agrovila São Paulo do Açu ao
Matupiri (núcleo das Comunidades Remanescente de Quilombola) proporcionando
essa reconstrução de identidade para esses sujeitos que até àquele momento
desconheciam sua origem étnica. Ele passa, assim, a ter um papel importante e a
ocupar um lugar significante para a própria Agrovila e para o Andirá.
DO PUCU AO AÇU: TRAJETOS DE MEMÓRIA, RASTROS DA HISTÓRIA DO
PROTAGONISMO NEGRO NO ANDIRÁ, O CASO DE BENEDITO
As análises dos conjuntos das memórias construídas por seus familiares e o
grupo ligado ao movimento quilombola levantadas nesta pesquisa, acerca de
Benedito, dão conta que sua trajetória familiar liga-se a final do XIX e início do XX,
dialogando, portanto com as memórias construídas e sistematizadas pelo movimento
quilombola no Andirá por ocasião de sua luta por reconhecimento étnico-racial.
Um olhar mais atendo para o conjunto de tais entrevistas possibilita
reconstituir os percursos de Benedito e seus familiares pelo rio Andirá até sua
instalação no igarapé Açú, hoje Agrovila de São Paulo do Açú, anexado como um
núcleo da comunidade quilombola de Ituquara.
4 Gláucio Paixão da Silva, agricultor 56 anos. Filho de Benedito Antônio da Silva, Atual Presidente das associação dos moradores do Distrito de Santa Tereza do Matupiri 2016.
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[...] minha avó era daí do lago grande [...] Minha avó, ela morava um tempo no lago grande outro tempo no Tapecuru que chamam, que ela, ela falou que ela nasceu no Tapecuru e se mudou pro lago grande [...] o meu avô ela falava que é [...] Eu não tenho muita coisa do meu avô aonde que ele nasceu porque ele falava que quando ele veio que ele veio com a avó dele, que ele, ele era filho da Gavita e ai essa avó dele deu, era mais cria da avó né! [...] Ela morou também, ela morava no, não tem aqui o Pucu que falu? O Pucu aqui de Barreirinha pois é eles moravam ai”5.
Ao percorrer o caminho notamos que todas as mudanças feitas por Benedito
Antônio da Silva resultaram nesse contexto de uma agrovila (São Paulo do Açu),
formada em torno da família dele. Desde então, vamos enfatizar a presença de
acontecimentos do cotidiano para englobar essa história em um contexto maior
socialmente, dos ocorridos a partir de o momento que o pai de Benedito (Leonardo)
foge com a mãe (Melentina) do Pucu para o Tucumanduba (localidade situada na
outra margem do Rio Andirá). A fuga foi motivada pelos pais dela, já estes que não
aceitavam que Melentina se casasse com um “preto”, porque era branca.
Nisso, os pais de Bendito fugiram para Tucumanduba formaram família,
tiveram dois filhos, uma menina e um menino. Logo depois adotaram duas meninas.
A filha legítima faleceu aos dez anos e, portanto, somente ficaram Benedito,
Madalena e a Antônia Madalena, que foram adotadas. Estas últimas, ainda novas,
foram morar em Manaus e ficou só ele com os pais. Quando atingiu idade para
trabalhar Benedito foi com um senhor desse lugar e aprendeu a ler e a escrever,
trabalhou no Paraná do Ramos, depois de algum tempo, voltou ao Tucumanduba,
onde seus pais haviam se estabelecido.
Se casou com a Raimunda Condino Paixão, que era da área indígena Sateré
Maué. No entanto, seus pais já haviam descido o Andirá e moravam na entrada da
atual Agrovila, chamada época de “Boca do Açu”, onde Raimunda herdara as terras,
juntamente com seus irmãos.
Pela necessidade de ajudar os pais no sustento e já com esposa, Benedito
passou a ir para região do Açu coletar, caçar, pescar nas cabeceiras, saia na segunda
5 Raimunda da Silva Brito, Ceramista e Agricultora, 53 anos. Entrevista realizada em 2016. Agrovila São Paulo do Açú.
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feira voltava no sábado. Por que ele, constantemente, ia para o Açu? Por conta de que
no Tucumanduba havia muita escassez dos recursos naturais e, portanto, de
subsistência da família.
“Depois que ele ficou rapaz saiu pra trabalhar também, assim né, foi pra trabalha ai pra juta também com o um senhor que chamavam de Otácio né [...] Aí foi embora trabalhar já estava vivendo com a mamãe e [...] Pra lá ele trabalhou um tempão com esse Senhor né”6.
Depois que voltou passou uma temporada no Tucumanduba, e decidem então
ir morar na cabeceira do Açu no terreno da esposa (Raimunda) situado na boca do
Açu, onde fizeram sua primeira casa levando junto com eles seus velhos pais
(Leonardo e Melentina).
Os lugares em que Benedito e sua família percorreram aparecem nas suas
trajetórias, como “lugares de memória”, e esses motivos que os levaram a migrar de
uma cabeceira pra outra se atem aos fatores econômicos e conflitos agrários, dada a
chegada de pecuaristas nos anos 1970 no Tucumanduba e, principalmente, pelas
condições de trabalho, onde o lugar não oferece recursos naturais suficientes para o
sustento da família.
Esses marcos constantes nas memórias da família Silva, são ponto que
iluminam para a direção das formas de enfrentamentos em torno da posse da terra.
Se no início a terra foi também um dos motivos que ocasionou a migração de
Benedito, hoje essa mesma terra é quem leva muitos a entrarem no movimento
quilombola e através desses garantirem a posse de seus territórios de onde coletam
castanha, extraem palha, pescam, caçam, plantam suas roças, bananas, que as
utilizam há muito tempo mas, nem por isso, possuem o título definitivo que os
legitimem como proprietários das terras em que sobrevivem.
Ocorre o fenômeno da “reconceituação de território”. Visualizamos isto,
através das transformações sociais na primeira década do século XXI, classificando os
lugares pelas ancestralidades fazendo com que estes façam um retorno ao passado,
6 Vicente Paixão da Silva, professor 53 anos. Entrevista realizada na Agrovila São Paulo do Açú. Julho de 2016.
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onde fatores econômicos e ambientais fazem parte dessa constituição desse
reconhecimento como donos de terminadas áreas de terras (ALMEIDA, 2012, p. 1).
AÇÚ: MEMÓRIAS QUE ILUMINAM PROCESSOS E PRÁTICAS
SOCIOECONÔMICAS E CULTURAIS.
Na Agrovila São Paulo do Açu, antes mesmo de sua formação como tal, já
havia famílias muitas morando lá. Estas pessoas se mantinham de suas economias
pautadas na extração de recursos naturais pelo sistema de aviamento e também pela
agricultura familiar, como a coleta de castanha, extração de palha, coleta de cumaru,
a plantação de roça, de banana, do guaraná, cana-de-açúcar, da malva e sem contar
da pescaria, caça, coleta de frutas silvestres como o uixí, tucumã, açaí, bacaba que
também ajudavam/ajudam no sustento das famílias.
Consta nos arquivos de memória sistematizados por nós, que havia um
gerente que dividia a coleta da castanha por estradas, cada família ficava responsável
pela coleta em uma determinada estrada e ele era quem organizava. Não é possível
apontar uma base econômica, mas “múltiplas estruturas socioeconômicas”, em
constantes conexões como os fatores “geográficos, demográficos e culturais”
(GOMES, 2015, p. 3).
“Da época deles só trabalhavam mesmo na roça né, [...] a pôr roça,
que eles sempre diziam que tinha, que sempre eles diziam que tinha,
eles trabalhavam muito a pôr roça e a banana esse era o trabalho. É,
eles falavam também é [...] a castanha que nós ainda concluindo aqui
nessa ponta e fazia malva, a gente ainda ajudava bem ele naquela
época, ainda cortar né, trabalhou bem na malva. Primeiro, ele fazia o
roçado, depois ele plantava, naquele tempo ainda plantavam nas
máquinas que tinha, ele mesmo plantava, aí quando chegava a época
de corte né, cortava e aí mesmo ele fazia as jangadas que se dizem
que faziam naquele tempo [...] aí de lá a gente ia lavar, quando os que
tavam maior, maior já ajudavam no negócio da lavagem. É, por
exemplo, ela, fazia no começo, assim, por exemplo, o roçado no mês
de outubro, novembro, ai quando era assim po lado da cheia, já tava
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cheio, assim pro lado de maio, já dava de plantar [...] Era só a juta
mesmo e a farinha. Na castanha também, a castanha também”7.
De cabeceira do Açu, passa a ser comunidade do São Paulo do Açu. Através
dos acontecimentos que ocasionam a migração de Benedito e sua família para uma
região bem mais farta de recursos naturais, ocorrem os movimentos migratórios. As
incidências são mais perceptíveis no Rio Andirá e estão ligados à necessidade de
buscar o sustento familiar. Se manifestam com maior intensidade e frequência
através do fluxo de moradores das comunidades Remanescente de quilombola do
Rio Andirá, que mantém sua economia, até os dias atuais, com base na coleta de
frutas silvestres ou, a utiliza, para dar suporte à outras práticas, como a agricultura e
a pecuária de subsistência, por exemplo.
“Ele contava que ele veio de lá porque, porque lá as coisas eram mais difícil né pra ele manter a família ele tinha que vim de lá pra cá pra cabeceira do Açu pescar ou, caçar [...] Tudo ele mantia a família lá, era tudo que ele conseguia aqui, aí depois com o tempo a minha mãe tinha um terreno ai na Boca do Açu, aí ele veio morar aí, daí que habitua [...] A condição financeira com a família, porque ele tinha um, naquela época ele já tinha 11 filhos ai era muita [...] a família era grande pra, pra manter, ai ele contava que lá era muito difícil a condição financeira, o peixe, a caça de lá ele passou a vim aqui pra, cabeceira do Açu, ai foi que ele foi a casa aqui o [...] depois que os filhos começaram a, a arrumar mulher, ai ele, ele foi formando a comunidade, ai o Vicente que era os filhos dele mais velho casou e fez a primeira casa, fiz a casa dele ai depois passou, a outra arrumou marido fez outra casa, ai depois começaram a fazer uma igreja né pra [...] Pra rezar, só que que ainda não tinha plano de fazer a comunidade né, a igreja pra rezar aí com tempo conseguiram fazer um barracão pra dona Rosa dá aula naquela época né”8.
As terras do Açú, ao longo do seu processo de ocupação, passaram pelas
“mãos’’ de vários donos e empresas até 2016, quando ela passa a estar nesse conjunto
de Comunidades Reconhecidas como Quilombolas com acompanhamento do
INCRA que faz a demarcação dos territórios. Sobre isso, Castro (2016, p. 89) assim se
posiciona:
7 Adma da Silva Maia, agricultora, 48 anos. Entrevista realizada em 2016. 8 Perpétua Paixão da Silva, agricultora, 41 anos. Agrovila São Paulo do Açu 2016.
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“Quero dizer que depois que encerrou esse período de atividade, recebi na minha casa vários moradores da vila de São Paulo do Açu, fui procurada por eles. Eles queriam que eu explicasse porque essa área deles tinha ficado de fora da medição do território. Viajei novamente pra Manaus. Dia 04 de dezembro foi que eu cheguei em Manaus, porque também eu tinha sido convidada pelo INCRA pra participar de uma reunião que ia tratar de “Agenda Itinerante” com o Presidente Nacional do INCRA. Recorrendo ao trabalho do INCRA, fui conversar com engenheiro responsável pelo nosso trabalho, o Sr. Afonso Vieira. Contei pra ele da preocupação do pessoal do Açu”.
As práticas culturais e econômicas tem acompanhado famílias e comunidades
no Andirá sendo bastante comum entre elas, a partir do momento em que essas
famílias ajudam umas às outras utilizando-se com frequência uma força de trabalho
denominada “puxirum”. Estas reuniões de família para ajuda mútua contribuem
para o crescimento comunitário como um todo. Desde o momento em que eles
migram de determinados lugares em busca de uma “melhora financeira”, nota-se
que a coleta da castanha, do cumarú, a “tirada” de palha unem esses sujeitos em suas
práticas e acabam acarretando em formação de pequenas comunidades. Se nos
tempos do cativeiro, os escravos fugiam dos maus tratos, trabalhos forçados, das
repreensões, no Andirá essas pessoas se deslocam de seus lugares de origem em
busca de outros que lhes forneçam melhores condições de vida e a seus descendentes
“As cabeceiras voltariam a ser nossas e teríamos o nosso peixe em abundância”.
“No tempo da dona Rosa houve o padre que residia por Barreirinha né, não tô lembrado, se eu não me engano era o padre Carlos naquela época. E nos anos 70, quando nos se passamos pra lá ela já tinha, mas não tinha mais essa casa dela e nem a igreja, ela já tinha tirado, eles tinham passado lá pra cá, pra boca do Buiuçú com Araçatuba aí mesmo no Açu, né, e foi nos anos 80 já que com a visita do padre Gabriel né, apenas pra pegar uma madeira pra fazer um, um refeitório no Jawari, né ai em Barreirinha na boca do pucú, aí que ele passando por lá pra pegar essa madeira veio a ideia de ele reunir as famílias que tinham lá pra fundar a comunidade né, e aí com a ajuda do pessoal do Itucuara, a diretoria aqui do Itucuara foi lá pra dá apoio pra fundar a comunidade nos anos 81, foi fundada aí, o núcleo
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com o nome do padroeiro São Paulo né, aí que passaram, passou ser conhecido São Paulo do Açu, né [...]”9.
Assim, nas cabeceiras do Açu, nas estradas de castanha, na cabeceira Buiuçú,
do Piquiá, do Mirity, do Araçatuba foi fundada a atual Agrovila do São Paulo do
Açu, que é formada por famílias oriundas de lugares estratégicos do Rio Andirá. Por
conta de buscarem uma situação econômica mais promissora, buscam uma terra com
titulação, para poder usufruir dos lugares de uso comum. Partindo assim para a
identidade Étnico-racial heranças de um povo que vivenciou a escravidão e resistiu
“onde há escravidão, há resistência” (REIS e GOMES, 1996, p 1).
Nesse mesmo sentido, MATTOS (2005), nos lembra que:
Se não necessariamente descendente de antigos acampamentos de
escravos fugidos, escondidos nas matas desde o tempo do Brasil
monárquico, de onde afinal surgiram os novos quilombos? Como os
mais críticos tendem a ressaltar, eles têm claramente uma origem
recente nas demandas por garantia de direitos à posse coletiva de
terras, apresentadas por colonos e posseiros negros tradicionais, a
partir do apoio de novos aliados, entre os quais a pastoral da terra da
Igreja Católica, os movimentos negros, a Associação Brasileira de
Antropologia e alguns outros atores da sociedade civil brasileira pós-
redemocratização que ocupam um papel essencial (p. 107).
Na trajetória percorrida por Benedito Antônio da Silva encontramos laços que
haviam sido esquecidos juntamente com a própria ancestralidade deixada nos
lugares em que ele passou. Essas memórias reconstruídas pela genealogia familiar,
juntamente com a Federação de Quilombolas do Andirá, refazem as ligações com
suas raízes afogadas no caudaloso Rio Andirá, hoje em processo de reconstrução,
pelas memórias de sujeitos como Benedito, que se fazem atuantes nesses processos
de reconhecimento e autoafirmação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
9 Gláucio Paixão da Silva, agricultor, 56 anos. Distrito de Santa Tereza do Matupiri, 2016.
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O trabalho aqui exposto em suas particularidades trata da reconstrução da
identidade de uma comunidade quilombola. Nasce das memórias coletivas, de
protagonistas de uma história esquecida, de uma cultura perdida nas águas do Rio
Andirá, que juntamente à trajetórias de vidas de outros sujeitos de diferentes lugares
e origens, se veem a partir de determinados acontecimentos tão próximos. Os quais
pelas práticas culturais, genealógicas e socioeconômicas contam história que as unem
cada vez mais na defesa de seus direitos e proteção de suas terras, de seus lugares de
uso comum, resgatando uma cultura perdida ao longo dos anos, que passam a ser
trazidas e avivadas na memória a fim de não se perderem no tempo e no espaço, a
fim de se tornarem vida a ser revivida.
Se alguns anos atrás, a atual Agrovila do São Paulo do Açu, se via como
Comunidade Ribeirinha, atualmente, com o processo de reconhecimento como
quilombola, surge a necessidade de reconstrução de identidade. No entanto, para
isso ocorrer precisa-se conhecer e identificar quem são os sujeitos que
protagonizaram e protagonizam na história de terminados lugares, neste caso
específico, Benedito Antônio da Silva.
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FRONTEIRAS, IDENTIDADES E TRAJETÓRIAS: MIGRAÇÃO PARAENSE
PARA O AMAZONAS
SUENA SANTARÉM LOUREIRO1 JOÃO MARINHO DA ROCHA2
INTRODUÇÃO
Esta comunicação tem por finalidade refletir questões de fronteiras e
identidades, constituídas em contextos históricos de trânsito/migração entre Pará e
Amazonas. A partir de um processo de evidenciamento desses contextos,
problematizamos a ideia de fronteira estabelecida pelo Estado Colonial e Pós-
colonial, que sempre foi burlada por experiências e protagonismos de sujeitos que
buscaram construir seus espaços de vida e sobrevivências.
Este artigo é fruto de uma pesquisa que vem sendo desenvolvida tendo-se em
vista a construção do Trabalho de Conclusão de Curso – TCC, em curso de História
realizado no Centro de Estudos Superiores de Parintins – CESP, pela Universidade
do Estado do Amazonas – UEA. Insere-se no âmbito das práticas do Grupo de
Estudos Históricos do Amazonas – GEHA, do qual decorrem pesquisas como as de
Júlio Cláudio da Silva e João Marinho da Rocha, que em certos aspectos, iluminam a
respeito do intenso trânsito da população negra entre Oeste do Pará e o Leste do
Amazonas, especialmente, como as que ocorreram ao longo do século XIX e início do
XX, chegando a formar comunidades negras rurais e quilombolas, como as que
reivindicaram diferenciação étnico-racial no rio Andirá, Barreirinha-AM3.
Nossa pesquisa insere-se, portanto, nesse esforço de identificar e reconhecer
tais trânsitos, não somente das populações de cor, mas dos diversos sujeitos sociais
que, historicamente, tramaram seus destinos e construíram suas vidas entre as
1 Acadêmica do 7º período de História no Centro de estudos Superiores de Parintins – CESP, da Universidade do Estado do Amazonas – UEA. 2 Docente do Centro de Estudos Superiores de Parintins – CESP, da Universidade do Estado do Amazonas – UEA. Doutorando do Programa de Pós-graduação “Sociedade e Cultura na Amazônia” PPGSCA/UFAM. 3 A Fundação Palmares, através da portaria nº 176 de 24 de outubro de 2013, registrou no livro de Cadastro Geral nº 16 e certificou de acordo com a auto definição e o processo em tramitação junto a referida fundação que as comunidades de Boa fé, Itucuara, São Pedro, Tereza do Matupiri, Trindade se definem como remanescente de quilombo. Ver Diário oficial da União Seção 1 nº 208 sexta 25 outubro.
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fronteiras Pará-Amazonas. Na pesquisa, focaliza-se tal questão, tomando como
recorte as experiências de deslocamentos ocorridas na segunda metade do século XX,
nos contextos dos “grandes projetos” experimentados na Amazônia, com destaque
para o Polo Industrial de Manaus, como um forte elemento atrator de destinos do
Oeste Paraense.
No esforço de localizar e situar os percursos do século XX, realizamos uma
investida teórica junto a autores que tratam de processos históricos regionais ainda
no século XIX. Nesse sentido, e para este momento, apresentamos uma breve
reflexão acerca de tal temática a partir das indicações constantes nos textos de
autores estudados num contexto da disciplina História da Amazônia 2 no semestre
2016/02, ministrado por João Marinho da Rocha, a saber: Ricci, (2003); Gomes e
Queiróz, (2003); Funes, (2003); Pinheiro, (1999); e Sampaio, (2001). A consulta e
análise de tais textos nos permitiram refletir e produzir, naquele contexto, escrita
sobre essa dinâmica migratória interna na Amazônia no século XIX e entender as
relações históricas que possibilitaram essa trajetória de homens e mulheres. Citamos
especialmente as conexões estabelecidas de tais sujeitos com as conjunturas
econômicas, sociais e políticas daquele século, tais como a Cabanagem (1836-1840) e a
expansão em larga escala da extração da borracha em fins do século (1870-1920).
Sobre o recorte para a segunda metade do século XX, vale lembrar que a
Amazônia atravessava redirecionamentos de políticas do Estado autoritário
Brasileiro, especialmente na década de 1970, quando foram criadas medidas que
aumentaram o processo produtivo de alimentos e abertura de novas fronteiras na
região. Vista outra vez pelo capital como fornecedora de matéria prima, a Amazônia
estabeleceu setores agropecuários e extrativistas. A nova onda de colonização dos
espaços regionais, baseou-se na formação de fazendas, geralmente ao redor dos rios e
estradas, e as cidades que foram formadas a partir deste momento eram
complemento das fazendas que se faziam presentes em diversos locais da região
amazônica (TOBIAS, 2002).
Dentro desse contexto situamos a cidade de Terra Santa – PA, local de onde
parte nossas análises na construção do referido TCC. Consta que a cidade
denominada Terra Santa origina-se de uma antiga fazenda de criação de gado
bovino, por volta dos anos 1930. Situada no extremo Oeste Paraense, fronteira com o
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Amazonas, este município foi distrito de Faro4 até o ano de 1992, quando construiu
seu processo de emancipação política5.
Por ser uma cidade situada distante da capital paraense, ou seja a 891 km de
Belém e, por estar em uma região de fronteira, observa-se que há um grande fluxo
migratório dela para cidades mais próximas, como Parintins e Manaus, situadas a
Leste do Estado do Amazonas, reatualizando corredores históricos de mobilização
populacionais. Mas, o fluxo que ocorre nos dias atuais tem relação com algo que
muito frequentemente acontecia há um determinado tempo, por conta dos interesses
que os diversos grupos tinham, como por exemplo, quando no Brasil a Amazônia era
dividida administrativamente entre Grão-Pará e Alto Rio Negro, sendo esses
trânsitos sempre intensos na Amazônia.
AMAZÔNIA: “UMA FRONTEIRA ABERTA”
Ao tratar a respeito do processo de migração, evidenciamos uma dinâmica
social que ocorre em vários momentos na Amazônia. Trata-se de um processo
marcado pela trajetória de vida de sujeitos que precisaram, desde sempre, encontrar
em novos lugares os meios de sobrevivência.
Neste tópico trabalharemos com a dinâmica migratória que ocorre nas
fronteiras abertas entre os dois maiores estados da região norte, Pará e Amazonas.
Buscaremos refletir sobre algo que perpassa através de séculos na Amazônia, ou seja,
o contato e a forma de vida de sujeitos sociais marcados por diferentes contextos,
perspectivas e expectativas, dentro das fronteiras dessa região.
Focalizamos o trânsito de sujeitos das regiões de fronteira de Terra Santa à
Parintins, que em seguida se estende à Manaus. Esse trânsito continua solto no
século XX, atrelado aos grandes projetos de desenvolvimento da Amazônia, já que a
área do oeste do Pará se torna esquecida por parte dos governantes, que não olham
para essas regiões de fronteira. E a trajetória dos sujeitos ao longo do século XX, nos
ajuda a perceber essas configurações sociais, cenários políticos e processos.
4 “A villa de São João Baptista de Faro, que teve sua origem em uma aldeia dos índio Uaboys, estabelecida abaixo da confluência do histórico Nhamundá ou Jamundá com o Pracatú, acha-se situada na extremidade ocidental de um bello lago, de 3 milhas de comprimento e 2 de largura e na margem esquerda do mesmo Nhamundá [...]”. (SOUZA, 1873, p 173) 5Ver Godinho (2005). Monografia de Conclusão do Curso de História do Centro de Estudos Superiores de Parintins – CESP/UEA.
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Visualizaremos tais trajetórias com auxílio da metodologia da história oral,
estando atento para o fato de que a memória se constitui como um processo
identitário, quando faz referência à culturas e comportamentos coletivos, já que se
lembra individualmente, mas este sujeito sempre está inserido social e historicamente
em determinada perspectiva (DELGADO, 2010). Mais que isso, “o ato de relembrar
insere-se entre as possibilidades múltiplas de registro do passado, elaboração de
representações e afirmação de identidades construídas na dinâmica da História”
(DELGADO, 2010: 46).
De acordo com Cardoso (2010), trazer as narrativas para um campo de
investigação, requer pensar como esses indivíduos se faziam sujeitos no enredo que
construíram e como suas experiências individuais nos falam sobre o significado de
processos sociais marcados tanto pelas tensões, quanto pelas contradições nos
diversos espaços que frequentavam.
As questões trazidas para esta breve reflexão dialogam com sete entrevistas,
realizadas com sujeitos que fizeram parte de processo de migração. Elas foram feitas,
na cidade de Terra Santa – PA, com pessoas que atravessaram os limites do Estado
entre as décadas de 1970, 1980, 1990 e a partir dos anos 2000. Nisso, reatualizaram
processos históricos dos tempos coloniais e no Império, nos contextos cabanos (1836-
1840) e extrativistas, como na Borracha (1870-1920), já citados, quando tais trânsitos
eram comuns nas práticas econômicas, políticas, sociais e culturais entre o Oeste
Paraense e o Leste Amazonense.
Essas entrevistas evidenciam segmentos das histórias de vida de diversos
atores sociais marcados por um processo contínuo de busca de melhores condições
de vida e sobrevivência para além de seus lugares de origem. Além disso, elas
iluminam as conexões econômicas, sociais, políticas e culturais na Amazônia. Esses
relatos constituem-se de diferentes narrativas, indo desde questões econômicas à
questões educacionais, apenas para citarmos duas delas.
Sobre a primeira, amplamente visualizada nas trajetórias e sonhos de vidas de
sujeitos repelidos de suas localidades no interior da Amazônia, lugares
representados por eles como “sem muita opção” e atraídos pelo grande espaço
produzido e reatualizado para uma nova frente do capital na Amazônia Ocidental,
que foi o que ocorreu com a cidade de Manaus a partir da década de 1960, com a
implantação da Zona Franca. Muitos dos quais requalificados economicamente, até
então pescadores e plantadores de juta e malva, nas várzeas no Rio Amazonas e
afluentes, tornaram-se “montadores de peças” do Distrito Industrial de Manaus. Foram,
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ao que parece, atraídos pelo eterno “mito viajante” do El Dorado, que como indica
Castro (2010), reatualiza-se constantemente nas políticas do Estado para a Amazônia
nos diversos cenários históricos.
Sobre a segunda, ocorre que impulsionados pela vontade e necessidade de
estudar, a fim de deixarem “de cavar buracos na lama da mineradora Vale do Rio Doce em
Porto Trombetas”, em Oriximiná-PA muitos, como é o caso de Reginaldo Barbosa
Gentil (Atual Secretário de Educação de Terra Santa), que por não ter o Ensino
Fundamental completo, foi retirado do ônibus e reclassificado para o caminhão “pau-
de-arara”. Cena ocorrida no seu contexto de trabalho na “frente de exploração de
bauxita” no rio Trombetas, e que marcou definitivamente sua trajetória. Desde então,
tomou para si a decisão de estudar e isto implica em “desterrar”.
Para tanto, tiveram que mudar de cidade e de vida, outros, pela falta da
oportunidade de emprego, precisaram buscar, em um primeiro momento, em
cidades menores como Santarém, se a decisão fosse para a Amazônia Oriental, ou
Parintins, se a decisão fosse para a Amazônia Ocidental, objeto destas reflexões. Na
sequência, impulsionados pelos grandes projetos que se faziam na Amazônia,
partiram rumo a capital Manaus.
MIGRAÇÃO E TRAJETÓRIAS I: OS SUJEITOS DO SÉCULO XIX
O Baixo Amazonas6, como era conhecido nos tempos coloniais e imperiais, que
é a atual região do Oeste do Pará, foi e é um dos um dos pontos do Estado onde mais
se encontram populações negras e mestiças do Grão Pará. É dessa região, de onde
surgem, a partir das últimas duas décadas do século XX, inúmeras comunidades
quilombolas reconhecidas da Amazônia. Confrontados pelos grandes projetos de
Mineração Rio do Norte que “intruzaram” suas terras e modos de vidas e iniciaram
exploração de Bauxita.
No século XIX, viajantes como Bates (1979: 102) indica que:
6 Os principais núcleos populacionais tornados cidades no XIX foram Santarém, Óbidos, Alenquer e Faro. Atualmente além dessas cidades, mais 11 municípios, constituem o Oeste do Pará: Almeirim, Belterra, Curuá, Juruti, Mojuí dos Campos, Monte Alegre, Oriximiná, Placas, Porto de Moz, Prainha e Terra Santa.
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Óbidos e Santarém receberam, nos últimos oitenta anos, grandes
levas de escravos negros; antes disso, o que havia era um cruel tráfico
de índios, com a mesma finalidade, mas o seu número foi
diminuindo gradativamente, e hoje os índios constituem uma
insignificante parte da população do distrito. A maioria dos
proprietários de Óbidos são proprietários de fazendas de cacau,
situadas nas terras baixas da vizinhança. Alguns são grandes
criadores de gado, possuindo muitas léguas quadradas de pastos à
beira do lago grande e de outros situados no interior, perto dos
vilarejos de Faro e Alenquer.
Sobre as existências e formas de relacionamentos com a sociedade escravista, Bastos
(2000: 101) indica como tais mocambeiros do Trombetas exerciam suas relações
econômicas e sociais com a cidade de Óbidos nos idos do XIX:
Os mocambos do Trombetas são diversos [...] atraem os escravos [...]
Os negros cultivam a mandioca e o tabaco [...] colhem a castanha, a
salsaparrilha etc. Às vezes descem em canoas e vêm ao próprio porto
de Óbidos, à noite, comerciar às escondidas; com os regatões que
sobem o trombetas, eles o fazem habitualmente.
Essas populações transitavam dentro da Amazônia, tendo sempre uma
fronteira aberta entre o Grão–Pará e as Guianas, especialmente no Baixo Amazonas e
entre este e o Alto Rio Negro (GOMES e QUEIRÓZ, 2003). Abaixo, conta o relato de
Bates (1979: 114-115), sobre um negro encontrado nas mediações da atual Parintins-
AM, vindo do rio Madeira, que pretendia comercializar seus produtos em Santarém-
PA. Tal fato evidencia os mundos das relações entre os agentes sociais e trocas de
solidariedades, para além daquilo que o Estado considera como Fronteira.
No dia 27 chegamos a um promontório cujas terras eram altas e
cobertas de matas; é chamado Parentins, e atualmente forma os
limites entre as províncias do Pará e do Amazonas. Ali encontramos
uma pequena canoa, que descia o rio com destino a Santarém. Seu
proprietário era um negro livre por nome de Lima; ele descia o rio,
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acompanhado da mulher, com o fim de trocar a sua produção de
fumo por mercadorias europeias. A canoa era comprida e rasa, e
estava tão carregada que sua borda quase chegava ao nível da água.
Lima morava nas barrancas do Rio Abacaxi, que vai desaguar no
Canomá, um canal interior que se estende desde o Rio Madeira até o
Parentins, [...] era natural de Pernambuco, mas fazia muitos anos que
se fixara naquela região. Trazia em sua companhia uma jovem índia
pertencente à tribo dos Mauhés, cuja terra de origem é a região
situada antes do Canomá, entre o Madeira e o Tapajós.
Sobre esses trânsitos e entrepostos comerciais, Conego Bernardino (1873),
indica como havia um comércio intenso nessa fronteira Oeste/Leste, indicando que os
produtos de Cerpa/Itacoatiara e Vila Bela/Parintins, saíam registrados pelo porto de
Óbidos. Dentre os vários produtos cita o comércio do pirarucu que “dá-se em todo o
Amasonas, sendo o districto de Villa-Bella o que fornece a maior quantidade do
peixe secco (pirarem), que abastece as duas províncias do Pará e Amasonas”
(SOUZA, 1873: 74).
Em meados do século XVIII e início do XIX, de acordo com Ricci (2003), o Pará
cresceu significativamente, mais precisamente durante os anos em que funcionava a
Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão (1755-1778) e em que ele possuía
ligações comerciais e políticas na ocupação da Amazônia, expandindo seus limites e
fronteiras. De acordo com essa autora, as famílias que residiam no Pará, eram
migrantes de outras capitanias.
A antiga Capitania do Grão-Pará iniciava o século XIX com o contato não só
entre homens letrados e comércios entre os diversos locais, mas também com a troca
entre as ditas “pessoas mais simples” (livres pobres, libertos e escravos) em todos
estes pontos. Havendo inclusive, uma migração interna de pessoas, principalmente
os escravos negros (RICCI, 2003).
De acordo com Gomes e Queiróz (2003), no período da exportação da
borracha na segunda metade do século XIX, era utilizada a mão-de-obra do
mameluco, caboclo ou tapuio, esses grupos circulavam nas regiões do Grão-Pará. E
em várias áreas da Amazônia, muitos dos quais passaram a ser fugitivos, se uniram e
formaram comunidades, e encontravam-se também frequentemente nas fronteiras da
região. Eles reinventaram constantemente suas próprias fronteiras e também
identidades. Ainda de acordo com os autores, “grupos de fugitivos negros do
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Suriname, grupos indígenas e negros fugidos do Grão-Pará encontraram-se
frequentemente nas fronteiras amazônicas” (GOMES e QUEIRÓZ, 2003: 150).
Há muitos relatos que confirmam esse processo de contatos entre as diversas
etnias presentes na Amazônia e de suas experiências, em sua maior parte negros
fugidos, grupos indígenas entre outros. Ainda segundo Gomes e Queiróz (2003) algo
que chama atenção nos relatos de autoridades do final do século XIX é o profundo
desconhecimento sobre o que se passava na região, quanto às fronteiras Amazônicas,
e de certa forma também o preconceito que havia com a população local.
No livro “O Fim Do Silêncio” de Patrícia Sampaio, no artigo de Ygor Olinto
Rocha Cavalcante, intitulado “Fugido, ainda que sem motivo: escravidão, liberdade e
fugas escravas no Amazonas Imperial (1850-1888)”, mostra-se a fuga de escravos e
escravas “com experiências históricas específicas” (CAVALCANTE, 2010: 44). As
informações foram recolhidas através dos inúmeros jornais da época, que mostram
que a maioria das fugas que saíam das mais diversas regiões amazônicas, ou mesmo
do Oeste do Pará, tinham Manaus como destino, cidade que crescia e se modernizava
oferecendo trabalho e a oportunidade dos escravos conseguirem o pecúlio.
E ainda conforme Cavalcante (2010) dentro desse processo de estruturação e
organização da nova província, as fugas desses cativos devem ser consideradas como
expansão das atividades produtivas. Mas fugir nesse sentido, não queria dizer
necessariamente que os negros escravos iriam diretamente para os quilombos, mas
sim circulavam pelos rios se juntando a outros negros livres e libertos. Os escravos
em fuga trabalhavam nos barcos ou se escondiam neles, viajando através do rio
Amazonas, se deslocando entre o Baixo Amazonas e Manaus, como mostra
Cavalcante nos relatos observados nos anúncios de jornais.
É importante destacar que no início da década de 1820 a agitação pelo Brasil
iniciou por conta do cenário de independência, e destacou-se também o estado de
espírito do povo do Pará e Amazonas, onde se intensificou as comunicações entre os
moradores da capitania do Pará e das capitanias vizinhas. Onde homens livres,
índios e negros entravam e saíam dos sertões de dentro e fora das capitanias (RICCI,
2003). Está ocorrendo, nesse momento, uma transição política em que o Brasil passa
de Colônia para Império, e isso vai refletir nos trânsitos dos sujeitos que vivem na
região norte.
No século XIX, está se discutindo a emancipação política do Brasil, em que
havia nesse momento um conflito e uma contradição entre o alto Amazonas e o
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Grão–Pará. O Amazonas não possui sua autonomia política e quando ela ocorre
demonstra ser uma independência problemática, pois os seus governantes são todos
Paraenses. Isso vai alimentar e criar uma memória negativa sobre o paraense, que se
faz presente por todo o século XIX, adentrando o XX, e reatualizado na atualidade
nas memórias aqui analisadas.
O principal movimento que elevou o “estado de espírito” na região amazônica
foi a Cabanagem (1836-1840), sendo um movimento político constituído no Pará e no
Amazonas, registrando intensa participação de camadas populares, que lutavam pela
independência e igualdade no Brasil no século XIX. A sua grandiosidade se revela no
número e na diversidade de pessoas envolvidas, e no grande território alcançado
pelos confins da Amazônia. Este movimento tinha a presença de povos indígenas, os
escravos negros fugidos e demais populações ribeirinhas.
Nesse movimento os negros reivindicavam a liberdade de todo o seu povo, já
os índios e caboclos por melhores condições de vida. Aliados a pequenos
proprietários, os cabanos constituíram revoltas populares contra interesses políticos e
de senhores. “Os cabanos são visto ora como criminosos ora como heróis, ora como
bandidos, ora como salvadores da pátria - reinventado sob diferentes perspectivas”
(PINHEIRO, 2001: 1).
De acordo com Pinheiro (2001), em 1836, no período da regência, foi enviado
uma tropa do Exército, sob o comandado do general Francisco D’Andréa, para
combater os cabanos, a tropa cercou Belém provocando a retirada dos cabanos para o
interior do Pará. A última fase da luta demorou alguns anos e na Amazônia houve
diversos combates de grupos dispersos de cabanos enfrentando as forças imperiais
do Brasil, o que resultou não somente em um massacre de inúmeras comunidades
indígenas e grupo quilombolas, mas também na fuga desses grupos para o interior
do Baixo Amazonas, o que ocasionou o fim do conflito e, consequentemente, o
aumento das redes de solidariedades na atual região Oeste Paraense e Leste
Amazonense.
MIGRAÇÃO E TRAJETÓRIAS II: OS SUJEITOS DO SÉCULO XX
Acerca dos movimentos contemporâneos, verificamos entre Oeste Paraense e
Leste Amazonense intensa movimentação em busca de oportunidades de formação
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educacional e profissional em centros regionais maiores, que aparece como fator
mobilizador de jovens Paraenses saídos de Terra Santa e demais cidades.
Os fluxos migratórios destinados à Parintins ou Manaus podem ser encarados
a partir de várias interpretações que permitem identificar essas diferenças de
contextos e estruturas sociais presentes nos deslocamentos populacionais. Portanto,
cada migrante ou grupo de migrantes, tem uma trajetória social diferenciada,
construída a partir de um constante contato com as estruturas sociais distintas do seu
local de origem.
Percebemos essas trajetórias diferenciadas ao recorrermos às narrativas dos
sujeitos entrevistados no decorrer da pesquisa. Cada um deles possui uma história
de vida única, mas que está ligada a um contexto social, econômico e cultural mais
amplo.
Um caso emblemático é o da senhora Ana Lúcia Fernandes Ribeiro que saiu
da cidade de Terra Santa – PA, na década de 1970, para estudar na cidade de
Parintins-AM, já que sua cidade natal não oferecia condições para que prosseguisse
nos estudos. Segundo ela, as pessoas que quisessem estudar tinham que ir para
outros locais. Após o término do seu estudo e especialização, partiu na década de
1980, para buscar emprego na capital, atraída pela Zona Franca de Manaus:
“Aí eu fui pra Manaus que eu trabalhei cinco anos na SHARP, fiquei
trabalhando lá [...] Eu era analista de inventário rotativo [...] Eu
comecei como [...] na produção de montadora, e aí com seis meses tu
tem direito a fazer um teste [...] Aí uma vez eu vi, eu vi uma vaga pra
auxiliar de custos, e aí eu fiz um teste pra mim [...] e quando eu fiz o
teste eu passei, passei. Com seis meses eu saí da produção. Aí eu fui
pra lá, trabalhei num, no departamento de custos, aí com o tempo, aí
eu trabalhei, aí peguei uma promoção pra analista de inventário
rotativo, aí eu fiquei lá trabalhando, durante cinco anos eu trabalhei
lá”7.
Sobre esse contexto, Batista (2007) nos diz que a Zona Franca de Manaus foi
criada em 1957, mas em 1967 o presidente Castelo Branco a reformulou 7 Ana Lucia Fernandes Ribeiro, professora, 50 anos. Entrevista realizada em Abril de 2017 em Terra Santa Pará.
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completamente, para vigorar durante 30 anos, promovendo, consequentemente, o
desenvolvimento da Amazônia. Mas, ele aponta tanto os aspectos positivos, quanto
elenca dez pontos negativos da Zona Franca de Manaus, dentre estes o
“deslocamento maciço do interior, que viu nas novas perspectivas de Manaus uma
esperança para alcançar um nível de vida digno” (BATISTA, 2007: 351). De acordo
com esse autor, tal população se estabeleceu, sobretudo, nas periferias de Manaus em
constante expansão urbana, via ocupação de terras.
Tal situação pode ser percebida a partir do relato do senhor Manoel Duque de
Castro (55 anos, aposentado) que saiu da comunidade do Ubim, localizada próximo à
cidade de Terra Santa, no interior do Pará, rumo à cidade de Parintins-AM, ainda
criança, impulsionado pela necessidade de estudar. Mas por conta da falta de
recursos financeiros, e a não adaptação nas áreas de várzea da Amazônia, teve que ir
junto com seus pais, sua esposa e alguns irmãos, para a capital amazonense,
instalando-se nas referidas áreas de ocupação, comumente classificadas pelo Estado
como “área de invasão” dentro da cidade.
“[...] o papai decidiu vim embora pra Parintins e depois, decidiu
vender a casa pra gente ir embora pra Manaus. [...] Nessa nossa
mudança pra Manaus aí só acompanhou eu e minhas irmãs menores
que eu [...] também morei num bairro que era de invasão, Terra
Nova, era [...] aliás em Manaus parte daqueles bairro tudo [...]
naquele tempo era só invasão. [...] Invadiam e depois o pessoal [...] aí
o prefeito mandava aterrar, meter rua, meter luz, [...] e eu consegui
também um terreno lá e até hoje ainda tenho casa por lá”8.
Tais relatos nos deixam a impressão de que as cidades localizadas nas
fronteiras Amazônicas são esquecidas, de modo proposital, por seus governantes.
Assim, estas cidades não oferecem aos seus habitantes condições dignas para que
tenham uma boa educação e saúde. Consequentemente, esses sujeitos precisam
migrar para outras cidades, repelidos de seus locais de origem, por conta das más
condições de vida que lhes são oferecidas. Esta é uma prática corriqueira observada
na região do Oeste Paraense até pouco tempo.
8 Entrevista realizada em Abril de 2017. Terra Santa Pará.
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O caso do senhor Reginaldo Barbosa Gentil (50 anos, Secretário de Educação)
o qual foi parcialmente explicitado em trecho antecedente neste texto, evidencia essa
dinâmica no contexto da cidade de Terra Santa - PA na década de 1990, a qual não
possuía recursos e uma estrutura que atendesse aos anseios da população, deixando
a desejar em aspectos educacionais, por exemplo. Durante a entrevista ele relata que
passou um longo tempo sem ter acesso ao estudo, e que somente no momento em
que teve que cavar buraco na construção civil, percebeu que teria que sair de seu
local de origem à procura de oportunidades, tendo ele se deslocado, em busca disso,
rumo à capital do Amazonas:
“[...] a minha viagem pra Manaus, aconteceu no ano de 2001, eu
passei quatorze anos parado sem estudar em Terra Santa. Quando eu
parei de estudar eu tinha 15 anos e voltei a estudar com 26 pra 27
anos, eu tinha só a sétima série. Fui trabalhar em trombetas, cavando
lá buraco na construção civil, passei lá algum tempo e depois tomei a
decisão de estudar [...] Terra Santa naquela época não oferecia
nenhum curso de graduação. [...] era muito difícil naquela época,
muito difícil mesmo! Nós não tínhamos oferecimento de nenhum
curso técnico, nenhum curso de graduação, enfim, nenhum curso de
nível superior e nem técnico. Isso motivava muito a gente a sair de
Terra Santa”.
A falta de condições para prosseguir nos estudos fez com que Reginaldo
perdesse uma grande oportunidade de emprego e a chance de poder mudar de vida.
Ele segue sua narrativa, mostrando o quanto isso marcou profundamente sua
trajetória e as decisões que tomaria dali por diante em sua vida. Por meio de uma
cena impactante que nos mostra que os sujeitos que não possuem formação oriunda
de estudo, são reclassificados e, em certa medida “desqualificados”, nas frentes de
expansão e produção de espaços do capital na Amazônia adentro.
“[...]infelizmente sem estudo você não consegue nada melhor, né.
Perdi algumas oportunidades de emprego, inclusive na Vale do Rio
Doce, né, no ano de 91, eu perdi essa oportunidade porque eu não
tinha o primeiro grau, ofereceram dez vagas, nós éramos em torno de
cinquenta homens de Terra Santa e Oriximiná, [...] e eles foram lá
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oferecendo vaga pra quem tivesse o segundo grau, e não tinha
ninguém dos quarenta, depois eles baixaram pra quem tivesse o
primeiro grau pelo menos, e eu só tinha a sétima série naquela época.
E aí aquilo já me marcou, e só tinha três pessoas com o primeiro grau,
inclusive esses três eles entraram pra Vale do Rio Doce, Mineração
Rio do Norte projeto Trombetas, e nós em torno de 35-37 fomos pra
uma empresa de construção civil, uma terceirizada. Fato curioso foi
que também me marcou nessa época foi [...] na hora da saída lá do
escritório, aí todos nós nos dirigimos pra um ônibus, entramos no
ônibus e com poucos minutos um funcionário veio [...] e perguntou se
nós [...] iriamos entrar pela Mineração, fazer integração, e aí a gente
disse que não, e ele disse não, então desçam do ônibus que vocês vão
no caminhão pau-de-arara, pra ir lá atrás num outro caminhão. Então
tudo isso já foi marcando pra mim, pra mim poder ir embora de Terra
Santa”9.
Através desses relatos constituímos caminhos sugestivos de uma reflexão
sobre a sociedade capitalista, a qual ao mesmo tempo em que integra determinados
sujeitos, a partir de seu nível intelectual, exclui e desqualifica tantos outros, pelo
mesmo motivo. Tendo este segundo grupo, pela necessidade de se enquadrar ao
modelo proposto, a buscar se incorporar às exigências impostas pelos mecanismos
capitalistas vigentes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As razões pessoais do fenômeno migratório podem ter diversos resultados,
podendo ser ocasionados pelos desequilíbrios regionais dos fatores de produção. Seja
em um enfoque neoclássico, em que os indivíduos migrariam em busca de trabalho,
melhores oportunidades e salários, seja em uma abordagem em que a formação dos
fluxos de migrantes decorreria das necessidades e ditames do desenvolvimento
econômico capitalista no país, os motivos da migração são relacionados ao trabalho e
aos protagonistas do processo (OLIVEIRA & JANNUZZI, 2004).
Contudo, as questões levantadas aqui ilustram, no campo de estudos
migratórios, a contribuição em poder trazer a interpretação sobre como que se
9 Entrevista realizada em Abril de 2017. Terra Santa –PA.
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manifesta esse fenômeno na região Amazônica, que era muito forte durante o
período Colonial e continuou no Império e na República. Incontáveis são as
trajetórias de sujeitos que não acabam e transgridem as fronteiras estabelecidas pelo
Estado, e buscam melhores condições de vida e sobrevivência.
Portanto, percebemos com maior nitidez, uma atualização dessa dinâmica
presente na Amazônia desde o século XIX, com o trânsito das populações, desde as
negras e mestiças dos contextos coloniais e imperiais, até gentes mais
contemporâneas, que atravessavam os limites impostos pelo Estado, burlando as
fronteiras, e que se fazem presentes na atualidade, requalificados pelos atores sociais
desse processo ao longo do século XX à XXI.
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A FESTA DE SÃO BENEDITO ATRAVÉS DO JORNAL A CRÍTICA (1979-2014)
Karollen Lima da Silva 10
A Festa de São Benedito começou a ser realizada a partir de uma promessa
feita na cidade de Alcântara, Maranhão. A migração maranhense em fins do século
XIX possibilitou o deslocamento do festejo para o Amazonas. Os primeiros a chegar à
região foram Felipe Beckman e sua esposa Maroca Beckman, que vieram
acompanhados de uma amiga da família Maria Severa Nascimento Fonseca e seus
três filhos: Manoel, Antão e Raimundo, que eram considerados como filhos por
Felipe.
Instalaram-se no bairro conhecido atualmente como Praça 14 de Janeiro e lá
construíram a sua moradia, a Festa de São Benedito está interligada a sua fundação,
pois foi a primeira manifestação festivo-religiosa realizada pelos moradores do local.
Quando chegou ao Amazonas Felipe Beckman juntamente com Manoel, Raimundo e
Antão delimitaram a área onde a festa aconteceria “...construíram um barracão, uma
espécie de terreiro, onde a festa começou a ser celebrada em função de um promessa
feita por Felipe Beckman a São Benedito, no lado oposto de onde hoje é feita a festa
na Avenida Japurá” (SILVA, 2011:175)
Em uma das versões acerca da origem da festa Felipe Beckman teria
prometido que se ficasse isento dos arranhões de um gato doido, realizaria o festejo
em honras ao santo preto11. Essa versão foi apresentada na etnografia produzida por
Mario Ypiranga Monteiro em Cultos de Santos & festas profanos religiosas em 1979 e
publicada em 1983, essa perspectiva foi reafirmada na etnografia do festejo realizada
por Jamily Souza da Silva em 2010, que é organizadora da festa no presente.
10 *Graduada em História pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) 11 Essa versão é utilizada na primeira etnografia da festa realizada por Mario Ypiranga (1979), onde foi atribuído um protagonismo a Felipe Beckman que teria sido o primeiro organizador do festejo. Jamily Silva que também realizou a etnografia da comunidade, reconhecendo o papel de Felipe Beckman na realização da promessa ao santo preto. Optei por dar destaque a essa versão do autor em minha pesquisa, tendo em vista que tem é a mais bem documentada.
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O diferencial da etnografia produzida por Jamily Silva é o
redimensionamento dos protagonismos na devoção a São Benedito, que destacou a
figura de Maria Severa Fonseca, mulher negra e ex-escrava, que teria trazido a
imagem de São Benedito esculpida em pau de angola. Considerou ainda, as
mudanças no festejo após o seu deslocamento para o Amazonas, quando era
realizado no Maranhão em homenagem ao Santo Preto “o tambor de crioula era
batido”, a alteração significativa foi a mudança do tambor de crioula para os
batuques “um rito de canto e dança, que era apreciado pelos marinheiros quando
chegavam ao porto de Manaus”. (SILVA, 2011:176)
“(...) assim como não há uma História imóvel, também não há uma festa imóvel. A festa na longa duração, assim como a podemos analisar através dos séculos, não é uma estrutura fixa, mas um continuum de mutações, de transições, de inclusões com uma das mãos e afastamos com a outra” (VOVELLE, 1987: 281).
Nesse aspecto, as transformações do festejo são compreendidas nessa
mobilidade natural das festividades que se movimentam no tempo e no espaço. O
festejo de São Benedito é um patrimônio familiar e religioso que tem sido transmitido
de geração a geração. Com a morte de Felipe Beckman, a devoção continuou sendo
mantida por seu filho de criação Raimundo Nascimento Fonseca. Após Raimundo,
quem ficou à frente do festejo foi sua filha mais velha Bárbara Fonseca,
posteriormente foi Maria de Lourdes Fonseca, conhecida como “Tia Lurdinha”,
quem assumiria a organização da festa.
Maria de Lourdes Fonseca dedicou-se na preparação do festejo de São
Benedito enfrentando inúmeras dificuldades, que vão desde o desinteresse dos fiéis
até a falta de condições financeiras para a compra de frutas, velas, guloseimas, entre
outros elementos da festa. Após a direção da “Tia Lurdinha” que faleceu em 2003,
quem passou a organizar o festejo foi sua sobrinha Jacimar Souza da Silva. Jacimar
passou a obrigação para Jamily Souza da Silva- após ficar enferma - que partir de
2010 ficou à frente da festa, a tradição festiva-religiosa tem sido mantida na
comunidade negra até o presente.
As festas católicas ou festejos de santos no Brasil começaram a ser realizados
no período colonial e tinham como função de a catequização e a civilização das
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gentes das colônias, alinhando ao comportamento metropolitano. A religiosidade
colonial se caracterizava pelo encontro entre as práticas de índios, negros e
portugueses, que podem ser relacionadas ao conceito de hibridismo cultural “...as
práticas híbridas podem ser identificadas na religião, na música, na linguagem, no
esporte, nas festividades e alhures”. (BURKE, 2006:28)
A historiadora Martha Abreu, em sua investigação das religiosidades
presentes na Festa do Divino no Rio de Janeiro no século XIX, percebeu que se
tratava de uma herança religiosa colonial, essa perspectiva também foi destacada por
Mary Del Priore. Na Festa do Divino e em outras festividades podem ser
identificadas as continuidades de aspectos coloniais impregnados do caráter popular,
entre outros elementos como “...a mistura do sagrado e profano, a importância do
culto dos santos e a teatralização da religião” (PRIORE, 2002:10).
Esses aspectos da religiosidade colonial também podem ter continuidade nas
festas religiosas do tempo presente. Todavia, atualmente há uma compreensão mais
ampla em relação aos significados das festas e suas estruturações, que envolvem toda
a dimensão experiência cotidiana. No estudo da Festa de São Benedito, uma questão
significativa a considerar é que a festa se originou do encontro entre as práticas
católicas e as religiões de matrizes africanas – o que pode ser caracterizado como
hibridismo cultural.
“Desde o início as religiões afro-brasileiras se formaram em sincretismo com o catolicismo, e em grau menor com religiões indígenas. O culto católico aos santos, numa dimensão popular politeísta, ajustou-se como uma luva ao culto dos panteões africanos” (PRANDI, 1996:67).
A devoção a São Benedito possuía esse vínculo sincrético que envolvia os
rituais de candomblés. O relacionamento entre essas duas esferas trouxe
desdobramentos significativos na festa do Santo Preto, nos discursos e hierarquias
que a enquadraram. Com a chegada da colônia portuguesa em 1940 e dos
capuchinhos que trouxeram a devoção de Nossa Senhora de Fátima no bairro da
Praça 14 de Janeiro houve um choque de culturas que gerou disputas no campo
simbólico e material do bairro. De um lado havia São Benedito, um Santo Preto, que
seria o percussor na vida das comunidades negras instaladas desde a fundação do
bairro; de outro Nossa Senhora de Fátima, uma santa branca, que seria o símbolo
devocional dos portugueses recém-instalados.
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Um dos aspectos mais incômodos aos capuchinhos em relação à devoção de
São Benedito era verificar a existência de um catolicismo enegrecido que se
distanciava das formas ibéricas12. Essa questão tem relação com a origem do
catolicismo negro13 no Brasil que desde período da escravidão foi utilizado como
estratégia por africanos e afrodescendentes para consolidar identidades e
religiosidades através da associação de santos católicos às divindades africanas. A
interação dessas dimensões possibilitou a ressignificação dos símbolos cristãos,
criando uma devoção original.
São Benedito, Santo Elesbão e Santa Efigênia (ou Ifigênia) fazem parte do rol
de santos pretos que foram promovidos e incorporados por africanos e
afrodescendentes em suas devoções14. A identificação com os santos de cor foi
fundamental para sua aceitação por esses indivíduos, que passaram a manifestar
suas crenças nas festas profano-religiosas através das danças, requebros e batuques.
A adoção de formas ibéricas e católicas nas devoções negras possibilitou disfarçar a
religiosidade africana, seja através da incorporação dos santos pretos, da coroação de
reis negros, da formação de irmandades negras e do festejar através de danças e
requebros, o catolicismo branco progressivamente se enegreceu, ampliando os
espaços de protagonismo desses sujeitos15.
No caso da Festa de São Benedito na Praça 14 de Janeiro, tem-se visivelmente
a herança de maranhenses ex-escravos que perdura até a contemporaneidade. A festa
começa com a retirada do mastro da mata no domingo de ramos, após ser
descascado e posto para secar durante alguns dias é ornamentado com folhagens e
frutas doadas pelos os devotos de São Benedito. Ao redor do mastro é colocada uma
fita vermelha - permeada por rezas- que significa segundo os festeiros o alcance da
graça. No topo do mastro, há a bandeira com imagem de São Benedito que identifica
a comunidade negra.
12 SOUZA, Marina de Mello e. “Catolicismo negro no Brasil: santos e minkisis, uma reflexão sobre a miscigenação cultural”. Afro-Ásia. Nº 28, 2002, p.128 13 Expressão utilizada por Marina de Mello e Souza para explicar a incorporação e ressignificação do catolicismo por africanos 14 OLIVEIRA, Anderson José Machado de. “Devoção e identidades: significados do culto de Santo Elesbão e Santa Efigênia no Rio de Janeiro e nas Minas Gerais no Setecentos”. TOPOI. V. 7, Nº. 12, jan.-jun/2006, p.61 15 Ideia utilizada por Marina de Mello e Souza para explicar a permissão às práticas mais próximas ao catolicismo. Há uma diferenciação entre os calundus, os batuques que eram duramente perseguidos pelas autoridades e os cortejos e danças na coroação de reis negros que eram acompanhados pelo padre nas festas em torno dos santos padroeiros.
129 Texto integrante dos Anais do I Seminário do Programa Nossa África – Diálogos africanos: novos objetos, pesquisas e ensino.
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No sábado de aleluia há o levantamento ou enterrada do mastro onde tem
abertura do ciclo de nove noites de oração – em que são entoados cânticos em
português e latim- sendo realizadas ao longo da semana no oratório familiar
reservado ao santo. Na etnografia de Mario Ypiranga, memorialista que produziu a
etnografia da festa em 1979 são mencionadas as velas acesas ao pé do mastro durante
o dia e a noite que significam a vigília do santo.16. Segue-se a ritualística com a
procissão que acontece no domingo da ressurreição, neste dia há a finalização parcial
do festejo com a última novena, a derrubada do mastro, a distribuição de guloseimas
e comidas afro-brasileiras aos presentes. O encerramento oficial acontece no dia 31 de
maio com a festa do “arranca-toco”17.
A investigação do festejo de São Benedito através do jornal A crítica teve o
intuito de recuperar suas representações, entre o final da década de 1970, quando foi
feita a primeira etnografia da festa pelo memorialista Mário Ypiranga Monteiro, e o
primeiro quartel da década de 2000, quando a comunidade de São Benedito foi
reconhecida como Quilombo Urbano pela Fundação Palmares. As notícias referentes
a Festa de São Benedito e outros símbolos do bairro consagrados pelo órgão de
comunicação normalmente apareceram com maior frequência no dia do aniversário
da Praça 14 de Janeiro. A partir dos periódicos coletados, pode-se analisar que
inicialmente a narrativa da imprensa apresentou a homogeneização dos elementos
simbólicos que compunham o bairro, de que faziam parte os maranhenses devotos
de São Benedito, a Igreja Nossa Senhora de Fátima e a Escola de Samba Vitória
Régia.18
“A Praça 14 de Janeiro, como acontece tradicionalmente, está hoje festejando mais um aniversário comemorativo à data que deu nome ao bairro. Os festejos, como sempre, serão marcados com torneios de futebol e, principalmente, com a participação ativa da Escola de Samba Vitória Régia. Considerado o reduto do samba, a Praça 14 traz também consigo muitas histórias relacionadas com a cultura local, principalmente pelas suas memoráveis participações no festival folclórico com seus bois-bumbás e pastorinhas. Considerado como o primeiro reduto de uma comunidade negra, estes vindos do
16 MONTEIRO, Mário Ypiranga. Cultos de Santos & festas profanos religiosas. Manaus: Imprensa Oficial,
1983. P. 233. 17 Segundo o relato dos festeiros, o mastro significa a ligação entre o céu e a terra, seguem-se várias etapas até o encerramento oficial que acontece com a festa do “arranca-toco” que é realizada devido o aniversário de Maria de Lourdes Fonseca, a “Tia Lurdinha”, que foi uma das coordenadoras do festejo. Nessa ocasião há a última noite de oração e o resto do mastro é retirado. 18: A crítica, nº11.515. Manaus, 14 de janeiro de 1983/A crítica, nº 12.682. Manaus, 14 de janeiro de 1986.
130 Texto integrante dos Anais do I Seminário do Programa Nossa África – Diálogos africanos: novos objetos, pesquisas e ensino.
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Maranhão, que ainda hoje lá vivem com suas tradições, dentre as quais os festejos de São Benedito, o bairro tem no seu nome uma homenagem à Revolução dos Tenentes acontecida em 14 de janeiro de 1892 culminada com a nomeação de Eduardo Ribeiro para Governador do Amazonas”19(A crítica nº11.515, 1983:4)
Colocavam-se os símbolos do bairro no mesmo plano fazendo um mix
cultural religioso que passou agregar progressivamente outras tradições do bairro
como o Boi Bumbá, as Pastorinhas Filhas Lodianas e a primeira escola de samba do
bairro chamada Mixto da Praça 14. Não havia uma preocupação em historicizar os
elementos apresentados, tudo se resumia a um mosaico de tradições que pouco
comunicava a história do bairro. Destacou ainda o bairro da Praça 14 como “reduto
do samba” e sendo o “primeiro reduto de uma comunidade negra”. A migração
maranhense em fins do século XIX tem sido um aspecto relevante para a
compreensão da cultura enegrecida voltada pros batuques, sambas e comemorações
em geral.
O segundo movimento presente no discurso do jornal A crítica foi a
hierarquização das religiosidades que colocava a festa do São Benedito em segundo
plano, apresentando a devoção a Nossa Senhora de Fátima como centro da
religiosidade do bairro. A partir da década de 1990 essa orientação passou a ser mais
visível nos textos e imagens publicados nos jornais que retratavam a igreja como a
majestosa representação da fé e da identidade do bairro. Apesar da Festa de São
Benedito ter inaugurado o bairro, ela acabou se tornando marginal, dessa forma, o
reconhecimento simbólico foi atribuído à devoção de Nossa Senhora de Fátima.20
19 Jornal A crítica, nº11.515. Manaus, 14 de janeiro de 1983. 20 A crítica, nº 14.313. Manaus, 14 de janeiro de 1990/ A crítica, nº 15.349. Manaus, 14 de janeiro de 1993/ A crítica, nº 17.238. Manaus, 14 de janeiro de 1999.
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Figura 01. Igreja de Nossa Senhora de Fátima é o cartão do bairro
Fonte: A crítica, 1993, p.5 21
21 Jornal A crítica, nº 15.349. Manaus, 14 de janeiro de 1993.
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Figura 02. Igreja Nossa Senhora de Fátima o centro da fé católica
Fonte: A crítica, 1993, p.5 22
A figura 1 esteve na capa da edição do jornal A crítica e apresentou a Igreja
Nossa Senhora de Fátima como o “cartão postal do bairro”. A figura 2 destacou o
santuário como “centro da fé católica” convivendo com a quadra da Escola de Samba
Vitória Régia, essa atribuição reforça o status hegemônico aos poucos construído
pelas autoridades clericais e pela imprensa. A devoção de São Benedito parece ser até
coadjuvante de uma história que inaugurou com a chegada dos maranhenses no
local. Há uma hierarquização das religiosidades do bairro que colocou Nossa
Senhora de Fátima no topo e simultaneamente deslocou a devoção ao santo preto
para um patamar inferior.
A seleção do órgão de comunicação pode ser compreendida a partir da
própria associação da Festa do Santo Preto ao candomblé e do posicionamento
político-ideológico do órgão de comunicação, que manifestava um caráter racista, e
sem dúvidas, a religiosidade da santa portuguesa era mais agradável como uma
22 Ibidem.
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representação da Praça 14 de Janeiro23. A narrativa da imprensa seguiu o curso da
progressiva desafricanização da Festa de São Benedito que foi enfatizada à medida
que a devoção a Nossa Senhora de Fátima parecia se fortalecer, os cultos afro-
brasileiros que eram realizados no bairro quase não foram mencionados nos
periódicos.
Apresenta-se uma suposta “passagem” para uma festa mais catolizada,
colocando-se em um patamar “mais cristão”. Apesar de ressaltar uma resistência da
devoção a São Benedito o discurso do jornal demonstrou o caráter frágil das
religiosidades negras que pareciam desaparecer com a chegada do progresso e a
morte dos mais velhos responsáveis pela tradição festivo-religiosa.24Ainda que os
batuques e cultos afro-brasileiros não existam mais, deixaram sua herança aos
remanescentes no quilombo, que pode não ser visualizada materialmente, mas
espiritualmente. Alguns aspectos como o mastro e as comidas afro-brasileiras
evidenciam continuidades da religiosidade, do universo mental e cotidiano africano.
As religiosidades negras não deixaram de ser realizadas simplesmente por que
não havia a presença dos mais antigos que estavam à frente dos rituais de
candomblé. Houve uma pressão que foi criada pela igreja e apoiada pela imprensa
em invisibilizar e dominar esses ritos, que se distanciavam daquilo que era
enxergado como o “verdadeiro catolicismo” ou catolicismo puro. Essa estratégia
abalou a estruturação da festa que progressivamente se catolizou.
A Festa de São Benedito nasceu do encontro entre as religiões de matrizes
africanas e do catolicismo, é inegável a consideração das continuidades das religiões
de matrizes africanas nas etapas festivas, nas rezas e espiritualidades dos
remanescentes de quilombo. Com o movimento de catolização da Festa de São
Benedito houve uma abertura na sociedade que proporcionou uma maior
visibilidade ao festejo, inclusive através da imprensa.25
A tradição festivo-religiosa somada às lutas políticas e sociais dos
afrodescendentes possibilitou a titulação da comunidade negra como quilombo
urbano pela Fundação Palmares em 2014, através da Portaria Nº 104, de 23 de
23 A respeito da orientação racista do jornal foi apresentada uma charge no A crítica associando a figura de um sambista a um macaco na edição comemorativa do aniversário da Praça 14 de Janeiro. Verificar em: A crítica, nº15.001. Manaus, 14 de janeiro de 1992. 24 A crítica nº 13.760. Manaus, 14 de janeiro de 1989. 25 A crítica, nº 19.737. Manaus, 21 de abril de 2006.
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setembro de 201426 e o reconhecimento da Festa de São Benedito como Patrimônio
Imaterial do Amazonas (2015). A resistência da comunidade, suas lutas pelos direitos
sociais proporcionaram o alcance dessas conquistas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Fontes documentais
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MATTOS, Hebe e ABREU, Martha. Festas, patrimônio cultural e identidade negra.
Rio de Janeiro: 1888, 2011.
MONTEIRO, Mário Ypiranga. Cultos de Santos & festas profanos religiosas.
Manaus, Imprensa Oficial, 1983.
26 BRASIL. Portaria Nº 104, de 23 de setembro de 2014. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 24 set. 2014. Disponível em URL: < https://www.jusbrasil.com.br/diarios/77122315/dou-secao-1-24-09-2014-pg-21> Acesso em 05 set. 2017.
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Manaus, 23 a 26 de maio de 2017 – ISBN 978-85-526-0035-0
HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E AFRICANA: PRÁTICAS
PEDAGÓGICAS PARA O DESENVOLVIMENTO DA LIGUAGEM ORAL E
ESCRITA.
RAESCLA RIBEIRO DE OLIVEIRA1
INTRODUÇÃO
A História e Cultura afro-brasileira, africana e indígena são obrigatórias nos
currículos da educação brasileira, devido à lei 11.645/2008 que foi planejada e
mobilizada pelos movimentos negro, indígena, indigenista e pela educação. A
temática se faz necessária em todas as etapas educacionais, uma vez que a sala de
aula é um espaço composto por diversidade e um ambiente fundamental para a
construção do respeito ao direito à diversidade. Ao pensar na aplicabilidade da lei e
na própria instrumentalização das educadoras e dos educadores para que fomentem
ações pautando história e cultura africana e afro-brasileira é que esse artigo se
organiza.
A reflexão construída nesse artigo busca debater a realização de atividades
que coloquem em evidência no âmbito da educação infantil o desenvolvimento das
linguagens escrita e oral dentro dos elementos culturais e históricos africanos e afro-
brasileiros. Criando assim alternativas pedagógicas, para a aplicabilidade da lei
11.645/2008 e das próprias orientações organizadas pelo Referencial Curricular
Nacional para a Educação Infantil – RCNEI e pelas Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação Infantil – DCNEI. Para tal, compreendemos a metodologia da
pedagogia histórica- crítica dos conteúdos de Saviani nos utilizando das etapas que
por ele foram organizadas para que debates sociais e conteúdos acadêmicos
encontrem conexões e pontes.
Os instrumentos escolhidos para a seleção de práticas pedagógicas que
compactuem com o debate que a lei busca inserir, se encontram presentes no ato de
contar histórias articulado sobre a presença da figura dos griots africanos e das
griotes africanas realizando assim, um trabalho com o desenvolvimento da
1 Graduanda de Pedagogia pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM).
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linguagem oral. Para a instrumentalização do desenvolvimento da linguagem escrita
é pensado a construção de um material coletivo pelos educandos e educadores, que
pretende ser um livro que junte as ilustrações das crianças e as narrativas que elas
buscam representar após o contato com os contos africanos. Essa proposta se origina
das construções e debates teóricos realizados na disciplina “A criança e a linguagem
oral, escrita e visual”, da licenciatura em pedagogia na Faculdade de Educação da
Universidade Federal do Amazonas que fora lecionada pela Profa. Dra. Michele
Bissoli.
Optou-se por trabalhar primeiramente na apresentação das figuras dos griots
e das griotes e sua relevância para a cultura Africana e afro-brasileira, e em seguida a
breve exposição da obra selecionada para o trato da temática afro na sala de
educação infantil. Em um terceiro momento será colocado os debates referentes ao
desenvolvimento das linguagens oral e escrita. Por fim, será exemplificada a
proposta de alternativa pedagógica para entrelaçar tais questões.
RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS EM EDUCAÇÃO
O debate sobre relações étnico-raciais em educação é algo que vem sendo
assimilado e empreendido pelos documentos oficiais já há algum tempo, são
exemplos as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil e o RCNEI,
este que por sua vez traz em sua apresentação a seguinte afirmação: “Estes volumes
pretendem contribuir para o planejamento, desenvolvimento e avaliação de práticas
educativas que considerem a pluralidade e diversidade étnica, religiosa, de gênero,
social e cultural das crianças brasileiras [...].” (BRASIL, 1998, p.14)
Tais considerações nos permitem compreender que os documentos também
trazem uma abordagem em que a diversidade étnica, cultural e social brasileira seja
respeitada e com isso contribui também para que o fazer pedagógico seja exercido
sobre esse viés atuando na aplicação de leis tais como a 11.645/2008 em que se
promovem a obrigatoriedade da história e cultura afro-brasileira e indígena nos
currículos da educação básica.
Iniciar essa discussão na educação infantil é uma estratégia para promover um
ambiente em que a diversidade seja respeitada e não ignorada. E cria possibilidades
de reparos diários nos discursos e práticas dos educandos e educadores. O uso dos
livros infantis e de atividades que coloquem as diferentes linguagens em exercício,
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apresentando a escrita como algo atraente, curioso e útil, vai atribuir mais significado
e importância para a criança pela escrita.
As crianças estão cercadas de figuras eurocêntricas que fogem à própria
diversidade brasileira, que se fazem presentes nas bonecas Bárbie, as princesas da
Disney, os super-heróis da Marvel, e entre outras figuras do universo infantil. A
presença negra é ignorada pelas grandes empresas e mídias. Como já apontado, por
Mariosa e Reis (2011) “Crescerão com essa ideia de branqueamento introjetada,
achando que só serão aceitas se aproximarem-se dos referenciais estabelecidos pelos
brancos. Rejeitando tudo aquilo que as assemelhe com o universo do negro.”
(MARIOSA; REIS, 2011, p. 42)
Logo, se torna uma preocupação da(o) profissional de educação proporcionar
outras possiblidades para as crianças, possiblidades essas que impulsionem o contato
e o respeito pela diversidade, e por muitas vezes com a sua própria identidade.
Candau (2008) chama de empoderamento, esse reconhecimento da identidade, que
seria o tomar poder sobre si.
OS GRIOTS E AS GRIOTES
A presença dos Griots na cultura Africana é compreendida da seguinte
maneira: “Os griots, como são conhecidos, são anciãos responsáveis por transmitir
aos mais novos as memórias do povo, da comunidade, por meio da narração de
histórias.” (FERREIRA, 2012, p. 04) Ou seja, a tradição oral e o cultivo da memória
coletiva na África e na própria realidade dos africanos no Brasil e dos afro-brasileiros
se deram em boa parte pela presença dos Griots, apresentá-los as crianças de
educação infantil organiza-se como meio para que a imagem do negro africano ou
afro-brasileiro se desvincule da ideia vítima/dominado, que é assinalada como
predominante segundo alguns autores.
Transformando dessa maneira olhares e edificando novas representações
ainda na infância. Fazendo com que a compreensão da importância das contribuições
históricas e culturais de africanos e afro-brasileiros seja promovida em sala de aula,
como também o fomento da necessidade e do significado da oralidade na história da
humanidade já que: “Outra característica do griot é a arte de narrar, contar histórias.
Arte fundamental para uma cultura oral, pois já que a História não está escrita nos
livros [...].” (FERREIRA, 2012, p.05)
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O significado e a relevância das narrativas orais e da própria memória coletiva
têm sido ignorada durante séculos, pois a “ciência moderna fomentou o surgimento
da visão ideológica das relações entre o conhecimento e a escrita, criando percepções
negativas das comunidades e sociedades que não utilizavam a escrita como forma de
comunicação e registro.” (LIMA; COSTA, p. 220)
A interpretação do não uso da escrita como fator secundário acabou sendo
explicado e propagado como um símbolo de “atraso” e “barbárie” dos reinos e
comunidades africanas, mediante o olhar do europeu e essas concepções foram
comunicadas e “afirmadas por intelectuais como Hegel e Kant, justificaram não só a
dominação, mas todas as formas de violência [...].”(LIMA; COSTA, p. 219) Nota-se
portanto que esse olhar foi totalmente desfavorável a construção de uma
representação positiva sobre a intelectualidade dos africanos e afro-brasileiros no
Brasil. O resgate da figura do griot pode proporcionar a construção de novos olhares
e representações sobre o que acabou sendo definido e legitimado pela ciência
moderna, composta majoritariamente pelo homem branco.
A LINGUAGEM ORAL E ESCRITA
Pensamos como alternativa a roda de conversa para que possamos partir da
realidade do educando e de sua curiosidade para inserir os conteúdos em prol de
uma curiosidade epistemológica, mas para, além disso, a roda de conversa, como já
dito por Mello e Miller (2008) “é uma forma interessante para iniciar e concluir as
atividades de cada dia estimulando a fala das crianças.” (MELLO; MILLER, 2008,
p.16)
Esse estímulo à fala fortalece o desenvolvimento da linguagem oral e
possibilita uma expansão do vocabulário, por meio do diálogo com os outros. E como
já colocado por Miller e Melo (2008) o: “[...] aperfeiçoamento e desenvolvimento da
linguagem oral são produzidos pelo uso da fala na relação com as outras
pessoas”.(MELLO; MILLER, 2008, p.16)
Por muitas vezes as dificuldades ou facilidades que algumas crianças
encontram nos processos de letramento e alfabetização na escola se dá pelos contatos
diferentes que elas tiveram fora da escola com a escrita, que podem ter sido positivos
ou negativos, mas não podemos ignorar o fato de que eles ocorreram e na escola
teremos de cultivar tanto as “atividades de introdução da criança ao sistema
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alfabético e suas convenções – alfabetização – quanto as práticas de uso social da
leitura e da escrita – letramento.” (SOARES, 2009, p. 07) Ou seja, a escola não irá por
meio de um ato mágico lhes apresentar as letras ou induzir com técnicas de treino da
caligrafia o uso da escrita pelas crianças, mas a escola deve proporcionar os
elementos significativos do uso da escrita para salientar o interesse das crianças,
pelos meios mais adequados contando histórias, elaborando bilhetes e cartas entre
outras atividades.
A escrita é um signo, que tem por função realizar representações e é um
elemento cultural complexo, pois o que se escreve por vezes se diferencia do que se
ouve na fala, e na maioria das circunstâncias a palavra não faz jus ao objeto. Ou seja,
a escrita é uma representação de segunda ordem, composta por uma complexidade
entre conexões que formam seu significado. Essa compreensão é criada por
elementos que vão sendo inseridos nas rotinas das crianças durante anos, como já
dito por Soares (2009), o importante é proporcionar um “ambiente alfabetizador”, no
convívio com os diversos gêneros textuais, o que possibilita o desenvolvimento de
uma “consciência fonológica” e com os momentos para as leituras e afins.
(SOARES, 2009, p. 09)
Se considerarmos, portanto que a linguagem escrita se desenvolve em
momentos anteriores a escola podemos pensar no que disse Whitehead (2009) “toda
criança na fase pré-escolar que desenha no vidro embaçado da janela, rabisca sobre
uma revista ou faz um desenho para dar a alguém especial tornou-se um criador de
símbolos e um escritor iniciante.” (WHITEHEAD, 2009, p.12)
Sendo assim é notório que quando falamos da presença da escrita na vida das
crianças antes da escola estamos falando que os símbolos e as representações que a
escrita vem a propor também já fazem parte de suas rotinas, devemos, portanto criar
e recriar quando for preciso as maneiras para melhor conduzir os caminhos para a
alfabetização e o letramento, que já fora iniciado. No entanto tudo isso dependerá
bastante do tipo de contato que a criança teve com a escrita e a que elementos
culturais ela acessou, o próprio vocabulário diante do hábito da leitura realizada
pelos pais e ou cuidadores pode ir ganhando elementos livrescos e sendo
enriquecido gradativamente.
Assim sendo, é possível compreender que o letramento e a alfabetização
ocorrem gradualmente ao formar representações e criar conexões para que a
necessidade e o significado da escrita sejam inseridos em suas rotinas, contudo para
isso é necessário atividades que contribuam, criando espaços, colocando os livros de
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uma maneira acessível às crianças e organizando a rotina de um modo em que a
escrita seja exercitada e cultivada diariamente. Como bem lembrado por Britto
(2009): “[...] ler é mais do que enunciar um texto em silêncio ou em voz alta”, a
cultura escrita deve ser inserida e incentivada na vida das crianças, pois não é pela
repetição que elas irão aprender a conhecer o mundo e as aventuras que o
conhecimento presente na leitura pode proporcionar, afinal como disse Britto (2009)
“Ensinar a escrita é mais do que ensinar a escrever – como se fosse um objeto neutro.
É ensinar um valor e um modo de poder ser e pensar a si e o mundo.” (BRITTO,
2009, p.15)
Desse modo, pretendemos demonstrar maneiras de realizar a apresentação de
elementos da cultura africana e afro-brasileira como um acréscimo aos processos de
aprendizagem e aquisição da linguagem escrita e oral que são extremamente
significativos.
PROPOSTA DE PROJETO PEDAGÓGICO
Organizamos tal proposta pedagógica para ser realizada nas salas de
referência na educação infantil, dentro da proposta metodológica de Saviani que
encontra-se dividida em cinco pontos, sendo o primeiro a prática social inicial
encontrada na sala de aula, o segundo a problematização dessa prática, em seguida o
autor sugere a instrumentalização, ou seja, a criação de elementos e condições para a
leitura da prática social vigente, o quarto passo é a catarse, o momento em que há a
transformação dos elementos e o último passo está na nova prática social que se
configura por meio de uma alteração qualitativa formada pelas etapas anteriores.
A proposta de Saviani quando colocada em favor das questões étnico-raciais
pode facilitar o debate de vários pontos que envolvem o negro e o indígena na
sociedade atual e é o que propomos aqui, uma vez que a etapa da problematização é
um fator gerador de grandes questionamentos em sala de aula e ao mesmo tempo
colabora para a busca de novos conhecimentos em meio aos debates sugeridos, como
afirma Demerval Saviani (1999, p. 80): “Trata-se de detectar que questões precisam
ser resolvidas no âmbito da prática social e, em consequência, que conhecimentos é
necessário dominar”.
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Assim sendo, pensamos articular tais demandas teóricas e metodológicas
dentro do debate étnico-racial em educação. Para tal, pretendemos possibilitar
visibilidade as construções e debates comunicados no artigo.
O recurso para a promoção do respeito da diversidade e do empoderamento
escolhido para essa proposta pedagógica, é a leitura do livro “Ulomma: a casa da
beleza e outros contos”, do autor nigeriano, Sunday Ikechukwu Nkeechi e a
ilustradora Denise Nascimento que se direcionem para esse sentido. As atividades
encontram-se divididas da seguinte maneira:
1- Será realizado incialmente a leitura do livro “Ulomma: a casa da beleza e
outros contos”, em que a professora ou professor estará caracterizado como
uma griote ou griot. A apresentação do livro se dará pelos nomes do autor e
da ilustradora e da importância do papel da cada um para que se chegue ao
livro. Como trazem Miller e Mello (2008) “a roda de leitura propicia às
crianças um momento rico de experiência com a situação de leitura de textos
escritos que é muito importante em sua formação como leitora e também
como produtora de textos escritos.” (MILLER; MELLO, 2008, p. 12);
2- No fim da leitura pode ser articulada uma roda de conversa sobre o que as
crianças pensam sobre os contos narrados e a própria figura do griot que
deve ser apresentada pela professora ou professor durante a roda, e assim
pode ser explicada a importância da tradição oral, e os pontos que estão
presentes no livro devem ser discutidos. A roda de conversa é um elemento
que tem sido apontado como meio para o desenvolvimento da linguagem
oral;
3- Após o diálogo será solicitado que as crianças desenhem o que lhes chamou
atenção na história e até mesmo na conversa. O objetivo final será montar o
nosso próprio livro, com ilustrações e frases que resgatem os contos e até
mesmo a figura dos griots, o objetivo será apresentado logo no inicio da
conversa em roda. Quando as crianças estiverem fazendo seus desenhos, a
professora irá questionar o que elas pretendem colocar naquela passagem
do livro e desse modo as representações que os desenhos vão trazer serão
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lançadas junto de frases e colocações das próprias crianças que verão as
edições irem acontecendo gradualmente e observaram a inserção da
linguagem livresca na obra coletiva da turma;
4- Como o desdobramento da atividade, é possível executar e trabalhar
diversas linguagens por meio das seguintes oficinas:
a) Oficina de máscaras africanas. Sendo possível realizar um trabalho de
corte, colagem e de colorir que irá colaborar para as possibilidades da
inteligência visuo-espacial.
b) Roda Africana: A curiosidade é um elemento a ser incentivado na
criança. Desse modo por meio dos questionamentos sobre África, a
atividade se dará. Será selecionada a música e coreografia “Roda
Africana” do DVD “As Melhores Brincadeiras da Palavra Cantada”,
assim sendo a alfabetização sonora, aconselhada por Antunes (2001)
passa a ser elaborada, dando impulso a inteligência sonora ou musical,
por meio da música e a inteligência cinestéscio-corporal através da
coreografia que acaba por trabalhar as representações gestuais.
Essas são algumas alternativas pedagógicas que podem ser utilizadas na educação
infantil e ou adaptadas para o ensino fundamental e até mesmo médio.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mediante o debate aqui construído é possível visualizar maneiras e formas de
se articular o trabalho na educação infantil, das experiências que as crianças devem
passar para um melhor desenvolvimento com a construção de suas identidades e a
própria aplicabilidade das leis 10.639/2003 e 11.645/2008 que vem a promover e
garantir o direito á diversidade em toda a educação básica, quando constroem a
obrigatoriedade da história e cultura africana, afro-brasileira e indígena.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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