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IV Encontro Internacional de Literaturas, Histórias e Culturas Afro-brasileiras e Africanas

Universidade Estadual do Piauí – UESPI

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ANÁLISE COMPARADA DOS ROMANCES BELOVED E PONCIÁ VICÊNCIO: INFANTICÍDIO, AUTOFLAGELO E

RESISTÊNCIA DO NEGRO ESCRAVIZADO

Viviana Vieira Pimentel (UESPI)

Maria do Socorro Baptista (UESPI) Elio Ferreira de Souza (UESPI)

RESUMO

O presente trabalho apresenta como proposta a análise comparativa entre as obras

Beloved (1987), de Toni Morisson, e Ponciá Vicêncio (2003), de Conceição Evaristo,

destacando nelas a resistência das personagens frente às violências ocasionadas pela

escravidão. Dessa forma, os atos de resistência nas obras em estudo resultaram em

atitudes drásticas como o assassinato de familiares como forma de rebeldia contra o

sistema. Isso ocorre porque as personagens em análise, Sethe e Vô Vicêncio, preferiram

ver seus familiares mortos a sofrerem os abusos e as humilhações oriundas da

escravidão. Na obra Ponciá Vicêncio (2003), o avô de Ponciá, Vô Vicêncio, assassina a

própria esposa e mutila o próprio braço como forma de resistência à subalternidade que

lhe era imposta. Da mesma forma, Sethe, protagonista de Beloved, comete o infanticídio

de sua filha ainda bebê para evitar que ela seja levada por senhores de escravos. Assim,

este trabalho propõe elucidar por quais motivos os negros escravizados cometiam tais

atos, ressaltando os atos de rebeldia contra a escravidão presentes nas personagens em

análise. Além da personagem principal de Beloved (1987), outras mulheres,

personagens secundárias, como sua mãe e Ella, também cometem o mesmo crime. Com

isso, percebe-se que a temática permeia fortemente os romances mencionados e, com

vista à investigação dos objetivos propostos, como fundamentação teórica para esta

análise, foram utilizadas as questões acerca do sujeito subalterno discutidas por autoras

como Gayatri Spivak (2010), as teorias de estudos sobre pós-colonialismo discutidas

por Homi K. Bhaba (2010), Glissant (2005) e Edward Said (2005).

Palavras-Chave: Beloved. Ponciá Vicêncio. Infanticídio. Resistência. Escravidão.

ISBN: 978-85-8320-162-5

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INTRODUÇÃO

A obra Beloved (1987), escrita por Toni Morrison, uma das grandes autoras da

literatura afro-americana, traz a trama que retrata a intensa e perturbadora história da

personagem Sethe, que resistente à sociedade escravagista da época, recorre ao

infanticídio para impedir que sua filha fosse escravizada e também tenta, com fracasso,

assassinar as outras três crianças. Paralelamente, a obra Ponciá Vicêncio (2003) trata da

história da protagonista que dá nome ao livro, descendente de negros escravizados, que

revela, em toda a trama, as opressões sofridas pelos afrodescendentes mesmo anos após

a abolição da escravidão. Nela é retratada, metaforicamente, o drama da diáspora, pois

ainda que este fenômeno constitua o deslocamento que a população africana sofreu por

diversos lugares do mundo onde foram escravizados, em Ponciá, existe a migração das

personagens da cidade interiorana para capital, pois a personagem buscava um emprego

e esperança de uma vida mais digna

A resistência presente em ambas as tramas está relacionada com a revolta e a

vontade de reivindicar por algo melhor. Com isso, as autoras Morrison e Evaristo em

Beloved (1987) e Ponciá Vicêncio (2003) trazem esses conceitos através das trajetórias

de personagens negras, que apesar de serem oprimidas e silenciadas por uma sociedade

racista, criam maneiras e estratégias de deslocamentos a partir do momento em que

subvertem alguns valores, reinventando suas identidades, para tornarem-se agentes que

têm voz e que definem os seus destinos.

1 AS ESTRATÉGIAS SUBVERSIVAS DO NEGRO FRENTE ÀS OPRESSÕES

RETRATADAS NAS OBRAS BELOVED (1987) E PONCIÁ VICÊNCIO (2003)

Ponciá Vicêncio (2003) e Beloved (1987) são romances que retratam a luta do

afrodescendente por sua identidade, as opressões sofridas durante e após o período da

escravidão, as denúncias sociais e o anseio pela liberdade. Outro aspecto em comum nas

narrativas é a questão da resistência dos negros contra a escravidão.

Morisson e Evaristo conseguem trazer para suas obras Beloved e Ponciá

Vicêncio as discussões de questões raciais, de segregação, da insubordinação, da

diáspora, da desagregação e, muitas vezes, impotência frente a essas condições que

eram e ainda são impostas aos negros.

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O teórico Bhabha (2001) menciona ainda diretamente a obra de Morisson e

enfatiza que: “A obra de Toni Morrison teve papel formativo em meu pensamento a

respeito da temporalidade narrativa e histórica”. Isso porque este romance aborda a

técnica do fluxo de memória que envolve a trama em desordenados acontecimentos, tal

qual as lembranças são guardadas em nossa mente. Este romance, além de ressaltar a

subversão da personagem principal ao cometer o assassinato de sua própria filha,

demonstra uma questão ética de forte complexidade.

Assim, a respeito da questão do infanticídio, Bhabha explica alguns rituais e

costumes feitos por ancestrais da etnia negra, além de argumentar sobre a atitude da

protagonista morrisoniana quando afirma:

Beloved (Amada), de Toni Morrison, revive o passado da escravidão e

seus rituais assassinos de possessão e autopossessão a fim de projetar

a fábula contemporânea da história de uma mulher, que e ao mesmo

tempo a narrativa de uma memória afetiva, histórica de uma esfera

pública emergente, tanto de homens como de mulheres (BHABHA,

2001, p.25).

Com relação a isso, Bhabha (2001) observa que os escravos que se

automutilavam, matavam suas famílias ou se matavam eram as verdadeiras vítimas de

um sistema pervertido e injusto. O mesmo se adequa ao avô de Ponciá na obra de

Evaristo.

Além disso, trazem também questões de intensa complexidade e que envolvem

personagens, em sua maioria, alocados em um lugar de subalternidade e o da minoria

como a questão da escravidão, o complexo social, o desprestígio político e racial,

porém, com protagonistas fortes, com traços psicológicos marcantes diferentemente da

estereotipia a qual muitas personagens negras já foram retratadas na literatura.

Morison, ao demonstrar as condições em que os negros estavam inseridos na

sociedade escravista, escreve sobre negros, em especial, a mulher negra, em que esses

podem ser categorizados como sujeitos subalternos a quem Spivak dedica suas

teorizações. Da mesma forma, a obra Ponciá Vicêncio representa fatores sociais que

evidenciam diversas problemáticas na sociedade brasileira como: a miséria, a

marginalização dos afrodescendentes no país e personagens negras alocadas em

condições de subalternidade. Segundo Spivak :

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Pode o subalterno falar? O que a elite deve fazer para estar atenta à

construção contínua do subalterno? Evidentemente, se você é pobre,

negra e mulher, está envolvida de três maneiras” (SPIVAK, 2010,

p.85).

Spivak (2010) comenta sobre as opressões sofridas pelos subalternos e evidencia

que esses grupos marginalizados e oprimidos são, em sua maioria, formados por

mulheres pobres e negras. Além disso, explica que, muitas vezes, não possuem as

oportunidades necessárias para falarem por si, a menos que assimilem o discurso

hegemônico.

Beloved remonta a época posterior da Guerra Civil norte-americana (1861-

1865), quando a escravidão foi abolida nos EUA, desfilando como personagens centrais

negros escravizados de 1855 e libertos em 1873. A respeito da retomada ao passado,

Said, em Cultura e Imperialismo, afirma:

A invocação do passado constitui uma das estratégias mais comuns

nas interpretações do presente. O que inspira tais apelos não é apenas

a divergência quanto ao que ocorreu no passado e o que teria sido esse

passado, mas também a incerteza se o passado é de fato passado,

morto e enterrado, ou se persiste, mesmo que talvez sob outras formas

(SAID, 2005, p.20).

Subentende-se, com a passagem acima, que o autor questiona a invocação do

passado e, principalmente, se a retomada do mesmo não representa um presente, ou

seja, o entendimento da atualidade está relacionado com fatos que marcaram o passado.

Isso porque muitas coisas na história se repetem ou se perpetuam, como por exemplo, a

opressão ao povo negro que ainda se estende aos dias atuais.

Além disso, o autor antilhano, antropólogo, filósofo, poeta, romancista e ensaísta

Edouard Glissant, criador da teoria da crioulização, faz reflexões a cerca das

interpretações das identidades diaspóricas. Assim, ele traz o conceito de africanidade,

que está relacionada ao conjunto de valores civilizatórios das sociedades negro-

africanas. O autor escolheu o Caribe como fonte de estudo, pois foi o primeiro espaço

escolhido pelos colonizadores. Assim, após aportarem nas ilhas caribenhas,

desembarcaram navios com negros vindos da África.

A respeito do Caribe Glissant diz que “é uma espécie de introdução ao

continente, uma espécie de elo entre o que é preciso deixar pra trás de si e o que é

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preciso dispor-se a acontecer” (GLISSANT, 2005, p.15). Com isso, ele reforça a

escolha do Caribe como fonte de estudo da diáspora.

Com isso, pode-se relacionar o contexto apresentado por Glissant com o do

negro sul e norte americano que fazem parte das obras Ponciá Vicêncio e Beloved.

Nesta passagem, Glissant afirma que:

O mundo se criouliza. Isto é, hoje, as culturas do mundo colocadas em

contato umas com as outras de maneira fulminante e absolutamente

consciente transformam-se, permutando entre si, através dos choques

irremissíveis, de guerras impiedosas, mas também de consciência e da

esperança que nos permitem dizer – sem ser utópico e mesmo sendo-o

– que as humanidades de hoje estão abandonando dificilmente algo

em que se obstinavam há muito tempo – a crença de que a identidade

de um ser só é válida e reconhecível se for exclusiva, diferente de

todos os seres possíveis (GLISSANT, 2005, p.15).

Com isso, é perceptível que Glissant sugere que globalmente, as pessoas estão se

crioulizando. Isso porque, segundo ele, a partir da chegada dos europeus nas colônias,

ainda que tenham se estabelecido a violência e o trauma, os traços culturais dos povos

negros ainda prevaleceram. Assim, questiona-se como os costumes e cultura ainda se

estabeleceram diante de tantas opressões.

No período escravocrata, muitos negros fugiram como forma de resistência e

para poderem sobreviver, tendo em vista as más condições a qual eram constantemente

submetidos. Dessa forma, quando não conseguiam fugir, era extremamente comum que

eles matassem os senhores em um momento de fúria ou que tentassem, de alguma

forma, subverter as regras, causando algum tipo de prejuízo a mais valia dos fazendeiros

donos de escravos. A respeito disso, o pesquisador Elio Ferreira (2006) afirma:

No Novo Mundo, muitos negros matavam seus senhores, feitores e, às

vezes, a família destes, quando trespassados por um acesso de ódio e

vingança. Isso geralmente acontecia nas fazendas e era seguido de

fuga individual ou coletiva para os quilombos. Outros escravos

preferiam morrer, pois a morte seria melhor do que a escravidão e

daria um fim à sua dor. Daí a frequência de suicídios. Os filhos da

mulher escrava também se tornavam escravos. As crianças negras

eram vendidas a outros senhores. E não foram raros os casos de

infanticídios, quando a mãe cativa num acesso entre desespero e

loucura preferia matar o filho a entregá-lo ao mercado de escravos

negros. Esse tipo de episódio é narrado no romance Amada, da afro-

norte-americana Toni Morrison, cuja ação trágica desencadeia uma

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série de outros episódios da intriga romanesca que estão relacionados

ao sobrenatural e à memória da escravidão (FERREIRA, 2006. p.68).

Na passagem acima Ferreira (2006) explica como a protagonista Sethe resolve

lutar de alguma maneira contra os abusos sofridos, pois ela planeja sua fuga e a executa

com êxito para a casa de Baby Suggs quando, pouco tempo depois, após ser encontrada

por Schoolteacher, percebe que será levada novamente para Sweet Home e percebe

ainda que seus filhos, com quem conviveu por um período que poucas negras

conseguiam conviver com seus descendentes, seriam levados para sofrer as mesmas

crueldades que ela passou, resolve então matar seus filhos num ato desesperado de

amor. O mesmo ocorre com Vô Vciêncio ao matar sua própria esposa e, em seguida,

mutilar o próprio braço.

A resistência das personagen frente às violências ocasionadas pela escravidão

permeia ambas as narrativas. Existem, além disso, a questão da morte de familiares

como forma de recusa à esta condição. Esses personagens preferem ver seus familiares

mortos a sofrerem os abusos e as humilhações por serem cativos. Na obra Ponciá

Vicêncio, o avô de Ponciá, Vô Vicêncio, assassina a própria esposa e mutila o próprio

braço como forma de resistência às humilhações sofridas.

A Resistência do Negro em Beloved (1987)

No sistema escravocrata, a mulher negra era alvo das mais perversas ações de

crueldade, sendo tratada de forma animalesca. Isso porque, além de propriedade e

ferramenta de trabalho exaustivo, ela ainda deveria servir para os desejos de seus

senhores, sofrendo, inúmeras vezes, violências físicas, verbais e sexuais.

A personagem Sethe foi inspirada na história real da negra escravizada

Margareth Gardner, que chocou a sociedade norte-americana da época a cometer tal

crime para proteger a filha da escravidão. Após a prisão, a protagonista da narrativa

passa a ser assombrada pelo fantasma da filha morta, que, posteriormente, aparece em

sua porta na forma humana da personagem Amada.

A heroína de Morrison em Beloved (1987), por exemplo, conta na narrativa os

tratamentos desumanos a qual era submetida. Isso pode ser observado na passagem:

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Me seguraram no chão e tiraram meu leite. Contei tudo para a senhora

Garner. Aquele caroço não a deixava falar, mas as lágrimas

escorreram por seu rosto. Os garotos descobriram que eu os denunciei.

O professor fez um deles abrir minhas costas e, quando a pele

cicatrizou, tomou a forma de uma árvore. Ela continua aqui. – usaram

o açoite em você? – E tiraram meu leite. – Surraram você grávida? – E

tiraram meu leite! (MORRISON, 1987, p. 27).

Sethe sofreu a retirada de leite de seus seios que seriam destinados a seus filhos.

Além desse trauma, também recebeu chicotadas durante a última gestação, que gerou

Denver, o que ocasionou, posteriormente, a presença de uma enorme cicatriz em suas

costas no formato de uma árvore. Após esse incidente, a personagem principal foge da

fazenda em que sofria maus-tratos, Sweet Home, para Cincinatti onde se encontra a casa

de sua sogra Baby Suggs, negra liberta com o esforço do filho Halle, marido de Sethe.

Lá, ela tem a experiência da vida em liberdade e da convivência com seus filhos, coisas

que não poderia ter caso ainda estivesse escravizada.

A resistência das personagens femininas frente às violências ocasionadas pela

escravidão revelam atitudes drásticas como o infanticídio. Isso porque, faz-se necessário

compreender por quais motivos as mulheres negras cometiam tal ato. Algumas, como

Sethe, cometera não por ódio à filha, mas, paradoxalmente, por extremo amor.

Diante de tantas opressões, muitas mulheres escravizadas rejeitavam o fruto dos

abusos sexuais ou, muitas vezes, para rebelarem-se contra o sistema, tendo em vista que

seus filhos eram lucro para os senhores, uma vez que essas crianças seriam

escravizadas, essas mães acabavam assassinando seus próprios filhos. Além disso,

muitas negras não tinham o privilégio de conviver com sua prole, pois estes eram

vendidos, trocados, açoitados ou mortos por seus proprietários. Tais fatos, comuns neste

período, foram retratados de maneira crucial em Beloved (1987).

Diferente de Sethe que teve todos os filhos através de laços afetivos com o

marido Halle, sua sogra, Baby Suggs, teve sete filhos, cada um com um pai diferente.

Para que ela conseguisse proteger aqueles que nasciam de relações amorosas ela se

submetia aos desejos de um capataz. Isso pode ser percebido através do trecho:

(...) O fato de ter dormido com um capataz por quatro meses em troca

da permissão para ficar com o terceiro filho – só para vê-lo ser trocado

por madeira na primavera do ano seguinte e se descobrir grávida do

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homem que lhe fizera a promessa não cumprida. Ela não podia amar

aquela criança, e o resto ela não podia. (MORRISON, 1987, p.35)

Baby Suggs não conseguiu conviver com suas crianças, pois todos tiveram um

destino diferente e essa é mais uma das formas de violência sofridas pelas mulheres

negras no período escravocrata. Com isso, negavam-lhes seus nomes, sua maternidade,

suas escolhas e uma vida digna.

Diferentemente, Sethe, ao conviver com suas crianças, viu seu amor pelos filhos

tomar proporções maiores e, no ato de desespero, após a chegada do professor para

levá-la de volta a Sweet Home, ao lembrar de todas as violências sofridas, ela resolve

que deveria tirar a vida dos próprios filhos, pois preferia vê-los mortos a escravos. Tudo

indica que, ao conseguir matá-los, ela faria o mesmo com a própria vida. Nota-se que a

protagonista não hesita e nem se arrepende, pois se convence que fez o melhor pela

filha.

Pode-se encontrar dentro do romance Beloved (1987) mais um indício da

temática em análise quando, em uma das passagens, Sethe soube que quando ainda era

uma criança, que de todos os filhos de sua mãe, ela fora a única sobrevivente. Isso

porque a mãe jogara fora todos os outros bebês, também frutos de abusos sexuais.

Dessa forma, dos irmãos que teve, Sethe foi a única sobrevivente e aquela que

recebera um nome. Sem defesas contra os sucessivos donos que violentavam seu corpo,

sua mãe jogava fora as crianças que descendiam desses estupradores, impedindo algo

que poderia continuá-los. O único que ela aceitou foi o negro pai de Sethe, e por isso

esta fora preservada.

Com isso, observa-se que, além da protagonista e de sua mãe, uma personagem

secundária, chamada Ella, também comete o mesmo crime, ainda que indiretamente,

pois se recusa a amamentar o filho que provém de um estupro, causando,

posteriormente, a morte da criança. Durante a trama, esta personagem relembra o

trauma dos abusos sofridos e teme que o fantasma da criança a assombre como ocorreu

com Sethe. Isso pode ser visto no trecho: “Lembrou-se de que dera à luz uma coisa

branca e peluda, gerada pelo ‘mais vil de todos’. Aquilo, que ela se recusara a

amamentar, vivera por cinco dias sem emitir um único gemido”. (MORRISON, 2000,

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p.302). Assim, nota-se que Ella, por sentir repulsa ao seu abusador, acaba por rejeitar o

recém-nascido.

No entanto, cabe ressaltar que enquanto Sethe mata por amor, Ella mata por

desprezo. Com isso, ainda que por causas distintas, revela-se que umas das principais

causas do infanticídio era a vingança, demonstrando a resistência contra a situação a

qual essas mulheres estavam submetidas.

Mais uma vez, dentro da obra, o infanticídio de Sethe, de sua mãe e de outras

mulheres negras demonstram que o fato delas jogarem fora os filhos gerados por abusos

de senhores ou matá-los, ainda que fossem amados, revela uma forma de resistir a tais

violências, evitando a perpetuação desses homens, de seus atos violentos, bem como o

aumento da mais valia dentro do sistema escravista, pois essas crianças seriam um lucro

extra dentro do sistema. Comprar uma negra era um investimento extremamente

lucrativo pelo fato dela poder se reproduzir.

Sethe, após matar sua filha nomeada Amada, vai para a prisão. Após cumprir

pena, ela retorna à rua 124 e enfrenta o fantasma da filha morta que assombra a todos,

bem como o preconceito da sociedade, pois passa anos ignorada pelos vizinhos e

demais cidadãos de Cincinatti.

Além da dor da perda, e da solidão, a personagem principal ainda teve de lidar

com o julgamento e desprezo das pessoas que não compreenderam sua atitude.

Restando apenas Denver, a filha mais nova e a única que gosta de Amada além de

Sethe; os demais filhos, Howard e Buglar fugiram ao serem assombrados pelo fantasma

de Amada, que dentro da trama, retorna encarnada no corpo de uma moça.

2.2 A resistência do negro em Ponciá Vicêncio (2003)

Evaristo (2013), autora de Ponciá Vicêncio, além de escritora, é uma

pesquisadora da literatura afrodescendente. Ela apresenta o conceito de escrevivência,

que quer dizer a “escrita da vivência”. Desde cedo, Evaristo teve contato com as

histórias de sofrimento do povo negro e, com isso, mostra-se engajada em uma literatura

de denúncia social.

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Evaristo (2013) trata sobre a problemática da colonização no território africano,

mencionando a questão da escravidão do negro e relacionando as consequências desses

processos, resultando na diáspora dos afrodescendentes. Além disso, ela menciona que:

Em minhas viagens tenho observado como as periferias das cidades

parecem umas com as outras. O relato de uma favelada pode ser

escrito nas margens do Tietê, em São Paulo, como foi o de Carolina

Maria de Jesus, como ser a inscrição de uma vida em Haiti, nos

arredores de Luanda ou de uma cidade na Índia... Reafirmo que existe

uma experiência comum, mesmo vivenciada em espaços históricos,

geográficos e temporal diferentes que atravessam os textos produzidos

pelos sujeitos que experimentam a condição de subalternidade e que

ensejam movimentos de resistência para escaparem dessa condição

(EVARISTO, 2013, p.150).

A partir da leitura do trecho acima, observa-se que a situação do negro, mesmo

após a abolição da escravidão, mudou de maneira pouco perceptível, tendo em vista a

exclusão social e o racismo velado que ele ainda sofre em diversos locais do mundo.

Na obra Ponciá Vicêncio (2003) são nítidas as formas de exclusão que o negro

enfrenta mesmo após a abolição da escravidão do negro no Brasil. A protagonista

Ponciá narra, desde a infância, as dificuldades e abusos sofridos pela família. Antes

mesmo dela nascer, seu avô Vicêncio, personagem que Ponciá muito se assemelha, fora

escravizado por um senhor que lhe dera este sobrenome. Uma das formas de opressão

consistia na herança do sobrenome, pois Ponciá não reconhecia o mesmo.

Os negros não tinham também direito a educação, nem a uma vida digna. A

exemplo da citação acima, observa-se que Evaristo retratou na trama o fato de, ainda

quando criança, o pai de Ponciá fora humilhado diversas vezes, pois além de servir de

“cavalo” para o senhorzinho brincar, fora ainda obrigado a engolir a urina do

coronelzinho para satisfazer-lhe o desejo sádico deste opressor. Isso pode ser visto no

trecho abaixo:

O pai de Ponciá sabia ler todas as letras do alfabeto. (...). Não

conseguia, porém, formar as sílabas e muito menos as palavras. (...).

Filho de ex-escravos, crescera na fazenda levando a mesma vida dos

pais. Era pajem do sinhô-moço. Tinha a obrigação de brincar com ele.

Era o cavalo onde o mocinho galopava sonhando conhecer todas as

terras do pai. (...). Um dia o coronelzinho exigiu que ele abrisse a

boca, pois queria mijar dentro. O pajem abriu. A urina do outro caía

escorrendo quente por sua goela e pelo canto de sua boca. Sinhô-moço

ria, ria. Ele chorava e não sabia o que mais lhe salgava a boca, se o

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gosto da urina ou se o sabor de suas lágrimas (EVARISTO, 2003, p.

14).

Assim, revela-se mais uma vez os diversos tipos de opressões que sujeitavam os

negros e como eles eram tratados como animais selvagens. Assim, a partir da análise da

trama nota-se que a protagonista Ponciá assemelha-se ao seu avô. A respeito dele sabe-

se que perdera os filhos em plena vigência da lei do ventre livre. Na citação abaixo, é

retratado as humilhações que os negros e seus filhos sofriam:

Pajem do sinhô-moço, escravo do sinhô-moço, tudo do sinhô-moço,

nada do sinhô-moço. Um dia o coronelzinho, que já sabia ler, ficou

curioso para ver se negro aprendia os sinais, as letras de branco e

começou a ensinar o pai de Ponciá. O menino respondeu logo ao

ensinamento do distraído mestre. Em pouco tempo reconhecia todas as

letras. Quando sinhô-moço se certificou de que o negro aprendia,

parou a brincadeira. (EVARISTO, 2003, p. 15)

Nota-se que a família de Ponciá estava inserida num processo de dominação do

negro pelo branco arraigado por várias gerações. Com isso, a trama revela que Ponciá

herdara a mesma miséria que Vô Vicêncio e na citação abaixo revela-se a semelhança

da protagonista com seu avô:

A menina ouvira dizer algumas vezes que Vô Vicêncio havia deixado

uma herança para ela. Não sabia o que era herança, tinha vontade de

perguntar e não sabia como. Sempre que falavam dele (falavam muito

pouco, muito pouco) a conversa era baixa, quase cochichada e quando

ela se aproximava, calavam. [...]. Diziam que ela, como ele, gostava

de olhar o vazio (EVARISTO, 2003, p. 29).

As péssimas condições de vida eram passadas aos negros de geração em

geração. Ponciá herdara, além da pobreza e dificuldades que seus progenitores,

personalidade emblemática de seu avô. Evaristo, na citação abaixo, revela a relação

entre a protagonista e seu avô em sua narrativa que:

Discute a questão da identidade de Ponciá, centrada na herança

identitária do avô e estabelece um diálogo entre o passado e o

presente, entre a lembrança e a vivência, entre o real e o imaginado.

Ponciá é uma pessoa que, como o avô, foi acumulando partidas e

vazios até culminar numa ausência. (EVARISTO, 2003, p. 5)

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Além disso, Vô Vicêncio foi retratado na trama como um homem negro que

sofreu uma série de violências. O fato ele não aceitar a dominação imposta a ele e sua

família acarretou em uma tragédia que a sua família presenciou.

Na obra Ponciá Vicêncio o avô de Ponciá assassina a própria esposa e

mutila o próprio braço como forma de resistência à subalternidade que lhe era

imposta após presenciar a venda de quatro filhos mesmo após a vigência da Lei do

Ventre Livre. Isso revela que este ato de desespero demonstra uma forma de resolução

ou fuga da situação a qual viviam. Essa atitude assemelha-se com a protagonista de

Beloved, Sethe, que também mata a filha Amada como forma de evitar que ela se

tornasse escrava e viesse a sofrer os mesmos maus-tratos que ela sofria.

Com isso, após o crime cometido, o velho ficou deficiente e sofreu ainda a

mesma rejeição que Sethe após o infanticídio. Dessa forma, nota-se que além de ter se

tornado um estorvo para a família e entregue pelos senhores, já que não podia mais

trabalhar e ninguém desejava um portador de deficiência, seus familiares ficaram

marcados pela tragédia, principalmente o pai de Ponciá, como demonstra a passagem:

Não tinha herdado nada do velho e nem queria herdar. [...] Tivera

vários sentimentos em relação ao homem. Quando menino, ainda

pequeno, tivera, talvez, medo, respeito, amor. Depois de tudo, pavor,

ódio, e vergonha, muita vergonha quando o pai começou a rir e a

chorar ao mesmo tempo, como também a dizer coisas não inteligíveis.

À medida que o velho piorava, começou a desejar ardentemente que

ele morresse. Chagou um dia até a pensar em matá-lo. Evaristo (2003,

p.19)

Na citação acima percebe-se que desejam a morte de vô Vicêncio e, após o

ocorrido, torna-se um homem louco, marcado pelo trauma após rebelar-se contra seus

senhores, pois o assassinato ou suicídio era uma forma de tirar a mais-valia destes

tiranos que tanto se beneficiavam da escravidão dos negros.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Assim, a partir da proposta de comparação das obras Beloved (1987) e Ponciá

Vicêncio (2003), nota-se que ambas as narrativas podem ser consideradas referências

nos estudos da literatura afrodescendente, pois apresentam personagens negras que

criaram formas de romper com as amarras e opressões impostas pelo sistema escravista

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que demarcam a hegemonia racial do branco e que, além disso, fogem aos estereótipos

de representação do negro ao longo dos anos. Dessa forma, as obras em estudo são de

grande importância para a contribuição dos estudos sobre a literatura afrodescendente

no contexto pós-colonial.

Faz-se necessário ressaltar que os atos de resistência nas obras em estudo

resultaram em atitudes drásticas como o assassinato de familiares como forma de

rebeldia contra o sistema. Isso ocorre porque as personagens em análise, Sethe e Vô

Vicêncio, preferiram ver seus familiares mortos a sofrerem os abusos e as humilhações

oriundas da escravidão.

Na obra Ponciá Vicêncio (2003), o avô de Ponciá, Vô Vicêncio, assassina a

própria esposa e mutila o próprio braço como forma de resistência à subalternidade que

lhe era imposta. Da mesma forma, Sethe, protagonista de Beloved, comete o infanticídio

de sua filha ainda bebê para evitar que ela seja levada por senhores de escravos. Assim,

este trabalho propõe elucidar por quais motivos os negros escravizados cometiam tais

atos, ressaltando os atos de rebeldia contra a escravidão presentes nas personagens em

análise. Após as observações descritas na análise da temática do infanticídio na obra

Beloved (1987), constatou-se que a resistência das personagens femininas frente às

violências ocasionadas pela escravidão permeia toda a narrativa e é necessário que se

compreenda por quais motivos as mulheres negras cometiam tal ato.

Analisou-se que, no caso de Sethe, a morte da filha mais jovem e a tentativa de

assassinar os outros não fora por ódio aos filhos, mas, contraditoriamente, por extremo

amor a eles. Para ela, era melhor ver os filhos mortos, que submetidos às vontades dos

senhores, passando por humilhações e outras agressões físicas ou simbólicas.

Dessa forma, faz-se necessário ressaltar que, a partir da leitura acima, subtende-

se que as manifestações de resistência, por mais fracassadas que possam tornar-se,

possuem extrema importância nas mudanças dos sistemas vigentes.

Em Beloved e Ponciá Vicêncio a morte de familiares revela uma forma de

resistência ás opressões a qual os negros eram submetidos, pois isso era uma forma de

evitar o aumento da mais valia dentro do sistema escravista, pois reduziria a mão de

obra e, consequentemente, afetariam o lucro para os senhores brancos.

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Ambas as tramas em análise abordam, portanto, um tema de debate polêmico,

mas que representa milhões de negros oprimidos que viveram o drama da escravidão e

os abusos ocasionados por ela.

REFERÊNCIAS

BHABHA, Homi K. O Local da Cultura. Belo Horizonte. Ed. UFMG, 2001.

DU BOIS , W.E.B. As almas da gente negra. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1999.

EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2003.

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Knipel Moreira. São Paulo: Editora 34; Rio de Janeiro: Universidade Candido

Mendes/Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001.

GLISSANT, Edouard. Introdução a uma poética da diversidade. Trad. de Elnice

Albergaria Rocha. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2005.

MORRISON, Toni. Beloved USA: Penguin Books, 1991.

SAID, Edward. W. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

SOUZA, Elio Ferreira de Souza. Poesia negra das Américas: Solano Trindade e

Langston Hughes. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, Tese de Doutorado do

Programa de Pós-Graduação em Letras/Doutorado em Teoria da Literatura, 2006.

SPIVAK, Gayatri Chacravorti. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte. Ed. UFMG,

2010.


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