7/27/2019 Antonio Cndido - A personagem de Fico
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A Personagem
de Fico
Antonio Candido, Anatol Rosenfeld,
Decio de Almeida Prado e Paulo Emlio Sales Gomes
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A Personagem de Fico
Debatespor J. Guinsburg
Conselho Editorial: Anatol Rosenfeld, AnitaNovinsky, Aracy Amaral, Bons Schnaiderman, CelsoLafer, Gita K. Ghinzberg, Haroldo de Campos, RosaKrausz, Sbato Magaldi, Zulmira Ribeiro Tavares.
Antonio Candido Anatol Rosenfeld
Decio de Almeida Prado Paulo Emlio Sales Gomes
A Personagem de Fico
2aedio
Equipe de realizao: Geraldo Gerson de Souza, reviso; MoyssBaumstein, capa e trabalhos tcnicos.
Editora Perspectiva
So Paulo
1
1Este livro foi digitalizado e distribudo GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source com a inteno defacilitar o acesso ao conhecimento a quem no pode pagar e tambm proporcionar aos DeficientesVisuais a oportunidade de conhecerem novas obras.
Se quiser outros ttulos nos procure http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, ser um prazerreceb-lo em nosso grupo.
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PREFCIO
(pag. 5)
O livro seguinte reproduz, com o mesmo ttulo, o Boletim n. 284
da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras da. Universidade de So
Paulo, publicado em 1964. Nascido de uma experincia de ensino, julgo
oportuno reproduzir a parte do Prefcio que explicava a sua elaborao.
ste Boletim resulta das atividades do Seminrio
Interdisciplinar, iniciativa pela qual procuro dar aos cursos a meu cargo
o carter de interrelao com outros pontos de vista, indispensveis ao
estudo da Teoria Literria. Esta matria toca no apenas em outrosdomnios do saber,como a Filosofia e a Lingstica, mas na realidade
viva das diversas artes. Da se encontrarem nesta publicao, como se
encontraram nas atividades do Seminrio, estudiosos da Filosofia, da
Literatura, do Teatro e do Cinema.
O curso de 1961 para o 4. ano versou Teoria e Anlise do
Romance; dentre os seus tpicos, foi selecionado o referente
Personagem (explanado no ms de abril), para os trabalhos do
Seminrio. Eles se estenderam de outubro a novembro, depois de
terminadas as aulas, constando de exposies sbre o problema geral
da fico pelo Professor Anatol Rosenfeld; sbre a personagem de teatro,
pelo Professor Dcio de Almeida Prado; sbre a personagem de cinema,
pelo Professor Paulo Emlio Sales Gomes. A seguir, vieram outras
atividades, como uma Mesa Redonda, com participao dos alunos e
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dos quatro docentes, para balano e esclarecimento de problemas; a
projeo do filme La Dolce Vita, de Federico Fellini, comentado pelo
Professor Paulo Emilio Sales Gomes do ngulo das tcnicas de
caracterizao psicolgica; a representao da pea A Escada, de Jorge
Andrade, seguida de debate sbre a caracterizao cnica, orientado
pelo Professor Dcio de Almeida Prado, com a participao central do
encenador, Flvio Rangel, e a colaborao da crtica de teatro Brbara
Heliodora Carneiro de Mendona. Dessa maneira, procurou-se pr os
estudantes em contato com vrias faces de um problema complexo, a
fim de que a teoria e a anlise, do ponto de vista literrio, ficassem o
mais esclarecidas possvel pela incidncia de outros focos.
Neste Boletim, recolhem-se as aulas sbre personagem do professor do
curso e as contribuies do Seminrio, redigidas especialmente para o
caso. Como se ver, as exposies crticas sbre o problema no
romance, no teatro e no cinema giram estruturalmente em trno da
exposio bsica sbre o problema geral da fico, embora cada autor
tenha escrito a sua contribuio independentemente e com tda a
liberdade.
Na presente edio, suprimiu-se a pequena bibliografia final, de
intersse meramente indicativo, e corrigiram-se alguns erros
tipogrficos.
So Paulo, 31 de janeiro de 1968
Antonio Candido de Mello e Souza
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Literatura e Personagem
(Pag. 9)
Conceito de Literatura
Geralmente, quando nos referimos literatura, pensamos no que
tradicionalmente se costuma chamar belas letras ou beletrstica.
Trata-se, evidentemente, s de uma parcela da literatura. Na acepolata, literatura tudo o que aparece fixado por meio de letras obras
cientficas, reportagens, notcias, textos de propaganda, livros
didticos, receitas de cozinha etc. Dentro dste vasto campo das letras,
as belas letras representam um setor restrito. Seu trao distintivo
parece ser menos a beleza das letras do que seu carter fictcio ou
imaginrio1. A delimitao do campo da beletrstica pelo carter
ficcional ou imaginrio tem a vantagem de basear-se em momentos delgica literria que, na maioria dos casos, podem ser verificados com
certo rigor, sem que seja necessrio recorrer a valorizaes estticas.
Contudo o critrio do carter ficcional ou imaginrio no satifaz
inteiramenente o propsito de delimitar o campo da literatura no
sentido restrito. A literatura de cordel tem carter ficcional, mas no se
pode dizer o mesmo dos Sermesdo Padre Vieira, nem dos escritos de
Pascal, nem provvelmente dos dirios de Gide ou Kafka. Ser fico opoema didtico De rerum natura, de Lucrcio? No entanto, nenhum
historiador da literatura hesitar em eliminar das suas obras os
romances triviais de baixo entretenimento e em nelas acolher os
escritos mencionados. Parece portanto impossvel renunciar por inteiro
1O significado dste trmo, no sentido usado neste trabalho, se esclarecer mais adiante, sem que haja
qualquer pretenso de uma abordagem ampla e profunda dste conceito tradicional, desde a antiguidade
objeto de muitas discusses. Contribuies recentes para a sua anlise encontram-se nas obras de 3.-P.
Sartre,LImagination eLImaginaire, Roman Ingsrden,Das literarische Kunstwerk (A obra-de-arteliterria) e Untersuchungen zur Ontol,ogle der Kunst (Investigaes acrca da ontologia da arte) M.Dufreune,Phnomnologje de lexprlence esthtique tdas baseadas nos mtodos de E. Husseri.
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a critrios de valorizao, principalmente esttica, que como tais no
atingem objetividade cientfica embora se possa ao menos postular certo
consenso universal.
A Estrutura da Obra Literria
A estrutura de um texto qualquer, ficcional ou no, de valor
esttico ou no, compe-se de uma srie de planos, dos quais o nico
real, sensivelmente dado, o dos sinais tipogrficos impressos no papel.
Mas ste plano, embora essencial fixao da obra literria, no tem
funo especfica na sua constituio, a no ser que se trate de um
texto concretista. No nexo dste trabalho, ste plano deve ser psto de
lado, assim como tdas as consideraes sbre tendncias literrias
recentssimas, cuja conceituao ainda se encontra em plena
elaborao.
Como camadas j irreais por no terem autonomia ntica, necessitando
da atividade concretizadora e atualizadora do apreciador adequado
encontramos as seguintes: a dos fonemas e das configuraessonoras
(oraes), percebidas apenas pelo ouvinte interior, quando se l o
texto, mas diretamente dadas quando o texto recitado; a das unidades
significativas de vrios graus, constitudas pelas oraes; graas a estas
unidades, so (projetadas atravs de determinadas operaes lgicas,
contextos objectuais (Sachverhalte), isto , certas relaes atribudas
aos objetos e suas qualidades (a rosa vermelha; da flor emana um
perfume; a roda gira). stes contextos objectuais determinam as
objectualidades, por exemplo, as teses de uma obra cientfica ou o
mundo imaginrio de um poema ou romance.
Merc dos contextos bjectuais, constitui-se um plano intermedirio de
certos aspectos esquematizados que, quando especialmente
preparados, determinam concretizaes especificas do leitor. Quando
vemos uma bola de bilhar deslizando sbre o pano verde, vivenciamos
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um fluxo continuo de aspectos variveis de um disco eliptide, de uma
cr clara extremamente matizada; atravs dsses aspectos variveis -
nos dada e se mantm inalterada a percepo da esfera branca da
bola. Em geral, os textos apresentam-nos tais aspectos mediante os
quais se constitui o objeto. Contudo, a preparao especial de
selecionados aspectos esquemticos de importncia fundamental na
obra ficcional particularmente quando de certo nvel esttico j
que desta forma solicitada a imaginao concretizadora do apreciador.
Tais aspectos esquemticos, ligados seleo cuidadosa e precisa da
palavra certa com suas conotaes peculiares, podem referir-se
aparncia fsica ou aos processos psquicos de um objeto ou
personagem (ou de ambientes ou pessoas histricas etc.), podem
salientar momentos visuais, tteis, auditivos etc.
Em poemas ou romances tradicionais, a preparao especial dos
aspectos bem mais discursiva do que, por exemplo, em certos poemas
elpticos de Ezra Pound ou do ltimo Brecht, em que a justaposio ou
montagem de palavras ou oraes, sem nexo lgico, deve, como num
ideograma, resultar na sntese intuitiva de uma imagem, graas
participao intensa do leitor no prprio processo da criao (a teoria da
montagem flmica de Eisenstein baseia-se nos mesmos princpios).
Num quadro figurativo h s umaspecto para mediar os objetos, mas
ste de uma concreo sensvel nunca alcanada numa obra literria.
Esta, em compensao, apresenta grande nmero de aspectos, embora
extremamente esquemticos. O cinema e o teatro apresentam muitos
aspectos concretos, mas no podem, como a obra literria, apresentar
diretamente aspectos psquicos, sem recurso mediao fsica do
corpo, da fisionomia ou da voz.
s camadas mencionadas devem ser acrescentadas, numa obra
ficcional de elevado valor, vrias outras as dos significados
espirituais mais profundos que transparecem atravs dos planos
anteriores, principalmente o das objectualidades imaginrias,
constitudas, em ltima nlise, pelas oraes 2.ste mundo fictcio ou
mimtico que freqentemente reflete momentos selecionados e
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transfigurados da realidade emprica exterior obra, torna-se, portanto,
representativo para algo alm dle, principalmente alm da realidade
emprica, mas imanente obra.
A Obra Literria Ficcional
1) O problema ontolgico:A verificao do carter ficcional de
um escrito independe de critrios de valor. Trata-se de problemas
ontolgicos, lgicos e epistemolgicos.
Como foi exposto antes uma das funes essenciais da orao a de
projetar, como correlato,um contexto objectual que transcendente aomero contedo significativo, embora tenha nle seu fundamento
ntico. Assim, a orao Mrio estava de pijama projeta um correlato
objectual que constitui certo ser fora da orao. Mas o Mrio assim
projetado deve ser rigorosamente distinguido de certo Mrio real,
possivelmente visado pela orao. Como tal, o correlato da orao pode
referir-se tanto a um rapaz que existe independentemente da orao,
numa esfera ntica autnoma (no caso, a da realidade), comopermanecer sem referncia a nenhum mo real. Todo texto, artstico
ou no, ficcional ou no, projeta tais contextos objectuais puramente
intencionais que podem referir-se ou no a objetos nticamente
autnomos.
Imaginemos que eu esteja vendo diante de mim o Mrio real; evidente
que na minha conscincia h s uma imagem dle, alis no notada por
mim, j que me refiro diretamente ao Mrio real. Posso chamar steobjeto o Mrio real de tambm intencional, visto o mesmo existir
no por graa do meu ato, mas ter plena autonomia, mesmo quando
visado por mim num ato intencional, como agora. Todavia, a imagem
dle, a qual o representa na minha conscincia (embora no a note),
puramente intencional, visto no possuir autonomia ntica e existir
por graa do meu ato. Posso reproduzi-la at certo ponto na minha
mente, mesmo sem ver o rapaz autnomo; posso tambm transform-lamerc de certas operaes espontneas. bvio que as oraes s
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podem projetar tais correlatos puramente intencionais, j que no lhes
dado tampouco como minha conscincia encerrar os objetos
tambm intencionais.
Ainda assim, as objectualidades puramente intencionais projetadas por
intermdio de oraes tm certa tendncia a se constiturem como
realidade. Se a orao Mrio estava de pijama apresenta o mo pela
primeira vez, ste torna-se portador do traje a ele atribudo; portador
graas funo especfica de sujeito da orao; e portador de algo, em
virtude da funo significativa da cpula. O pretrito, apesar de em
certos casos ter o cunho fictcio do era uma vez, tem em geral mais
fra realizadora e individualizadora do que a voz do presente (O
elefante pesano mnimo uma tonelada pode ser o enunciado de um
zologo sbre os elefantes em geral; mas o elefantepesavano mnimo
uma tonelada refere-se a um elefante individual, existente em
determinado momento). De qualquer modo, a orao projeta o objeto
Mrio como um ser independente. Com efeito, ela sugere que Mrio
j existia e j estava de pijama antes de a orao assinalar ste fato.
Ao seguir a prxima orao: le batia uma carta na mquina de
escrever, Mrio j se emancipou de tal modo das oraes,. que os
contextos objectuais, embora estejam pouco a pouco constituindo e
produzindo o mo, parecem ao contrrio apenas revelarpormenores
de um ser autnomo. E isso ao ponto de o mundo objectual assim
constitudo pelas oraes (mas que se insinua como independente,
apenas descrito pelas oraes) se apresentar como um contnuo,
apesar de as oraes serem naturalmente descontnuas como os
fotogramas de uma fita de cinema. base das oraes, o leitor atribui a
Mrio uma vida anterior sua criao pelas oraes; coloca a
mquina sbre uma mesa (no mencionada) e o rapaz sbre uma
cadeira; o conjunto num quarto, ste numa casa, esta numa cidade
embora nada disso tenha sido mencionado.
Uma das diferenas entre o texto ficcional e outros textos reside no fato
de, no primeiro, as oraes projetarem contextos objectuais e, atravs
dstes, sres e mundos puramente intencionais, que no se referem, a
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no ser de modo indireto, a sres tambm intencionais (nticamente
autnonios), ou seja, a objetos determinados que independem do texto.
Na obra de fico, o raio da inteno detm-se nestes sres puramente
intencinais, smente se teferindo de um modo indireto e isso nem
em todos os casos a qualquer tipo de realidade extraliterria. J nas
oraes de outros escritos, por exemplo, de um historiador, qumico,
reprter etc., as objectualidades puramente intencionais no costumam
ter por si s nenhum (ou pouco) pso ou densidade, uma vez que, na
sua abstrao ou esquematizao maior ou menor, no tendem a conter
em geral esquemas especialmente preparados de aspectos que solicitam
o preenchimento concretizador. O raio de inteno passa atravs delas
diretamente aos objetos tambm intencionais, semelhana do que se
verifica no caso de eu ver diante de mim o mo acima citado, quando
nem sequer noto a presena de uma imagem interposta.
H um processo semelhante no caso de um jornal
cinematogrfico ou de uma foto de identificao. Trata-se de imagens
puramente intencionais que, no entanto, procuram omitir-se para
franquear a viso da prpria realidade. J num retrato artstico a
imagem puramente intencional adquire valor prprio, certa densidade
que fcilmente ofusca a pessoa retratada. Alis, mesmo diante de um
fotgrafo despretensioso a pessoa tende a compor-se, tomar uma pose,
tornar-se personagem; de certa forma passa a ser cpia antecipada da
sua prpria cpia. Chega a fingir a alegria que deveras sente.
2) O problema lgico. Os enunciados de uma obra cientfica e, na
maioria dos casos, de notcias, reportagens, cartas, dirios etc.,
constituem juzos, isto , as objectualidades puramente intencionais
pretendem corresponder, adequar-se exatamente aos sres reais (ou
ideais, quando se trata de objetos matemticos, valores, essncias, leis
etc.) referidos. Fala-se ento de adequatio orationis ad rem. H
nestes enunciados a inteno sria de verdade. Precisamente por isso
pode-se falar, nestes casos, de enunciados errados ou falsos e mesmo
de mentira e fraude, quando se trata de uma notcia ou reportagem em
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que se pressupe inteno sria.
O trmo verdade, quando usado com referncia a obras de arte ou de
fico, tem significado diverso. Designa com freqncia qualquer coisa
como a genuinidade, sinceridade ou autenticidade (trmos que em geral
visam atitude subjetiva do autor); ou a verossimilhana, isto , na
expresso de Aristteles, no a adequao quilo que aconteceu, mas
quilo que poderia ter acontecido; ou a coerncia interna no que tange
ao mundo imaginrio das personagens e situaes mimticas; ou
mesmo a viso profunda de ordem filosfica, psicolgica ou
sociolgica da realidade.
At neste ltimo caso, porm, no se pode falar de juzos no
sentido preciso. Seria incorreto aplicar aos enunciados fictcios critrios
de veracidade cognoscitiva. Sentimos que a obra de Kafka nos
apresenta certa viso profunda da realidade humana, sem que,
contudo, seja possvel verificar a maioria dos enunciados individuais
ou todos les em conjunto, quer em trmos empricos, quer puramente
lgicos. Na obra de Knut Hamsun h uma viso profunda inteiramente
diversa da realidade, mas seria impossvel chamar a maioria dos
enunciados ou o conjunto dles de falsos. Quando chamamos falsos
um romance trivial ou uma fita medocre, fazemo-lo, por exemplo,
porque percebemos que nles se aplicam padres do conto de
carochinha a situaes que pretendem representar a realidade
cotidiana. Os mesmos padres que funcionam muito bem no mundo
mgico-demonaco do conto de fadas revelam-se falsos e caricatos
quando aplicados representao do universo profano da nossa
sociedade atual (a no ser que esta prpria aplicao se torne temtica).
Falso seria tambm um prdio com portal e trio de mrmore que
encobrissem apartamentos miserveis. esta incoerncia que falsa.
Mas ningum pensaria em chamar de falso um autntico conto de
fadas, apesar de o seu mundo imaginrio corresponder muito menos
realidade emprica do que o de qualquer romance de entretenimento.
Ainda assim a estrutura das oraes ficcionais parece ser em geral a
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mesma daquela de outros textos. Parece tratar-se de juzos. O que os
diferencia dos verdadeiros a inteno diversa isto , a inteno que
se dtm nas objectualidades puramente intencionais (e nos
significados mais profundos por elas sugeridos), sem atravess-las,
diretamente, em direo a quaisquer objetos autnomos, como ocorre,
no nosso exemplo, na viso do mo real. essa inteno diversa
no necessriamente visvel na estrutura dos enunciados que
transforma as oraes de uma obra ficcional em quase-juzos3. A sua
inteno no sria4.
O autor convida o leitor a deter o raio de inteno na imagemde Mrio,
sem buscar correspondncias exatas com qualquer pessoa real dste
mesmo nome5.
Todavia, os textos ficcionais, apesar de seus enunciados costumarem
ostentar o hbito exterior de juzos, revelam nitidamente a inteno
ficcional, mesmo quando esta inteno no objetivada na capa do
livro, atravs da indicao romance, novela etc. Ainda que a obra
no se distinga pela energia expressiva da linguagem ou por qualquer
valor especfico, notar-se- o esfro de particularizar, concretizar e
individualizar os contextos objectuais, mediante a preparao de
aspectos esquematizados e uma multiplicidade de pormenores
circunstanciais, que visam a dar aparncia real situao imaginria.
paradoxalmente esta intensa aparncia de realidade que revela a
inteno ficcional ou mimtica. Graas ao vigor dos detalhes,
veracidade de dados insignificantes, coerncia interna, lgica das
motivaes, causalidade dos eventos etc.,
3. A expresso usada por Roman Ingarden em Das literarische
Kunstwerk.J.-P. Sartre, em LImagination, formula: Il y a l un type daffirmation,
un type dexistence intermdiaire entre les assertions fausses du rve et les certitudes
de la veille: et ce type dexistence est videmment celui des crations imaginaires.
Faire de celles-ci des actes judicatifs, cest leur donner trop (p.137).
4. Quando da publicao de seus Buddenbrooks,Th. Mann foi violentamente atacado
devido ao retratamenso de pessoas e aspectos da cidade de Lbeck. Tais incidentes
so freqentes na histria da literatura. Num ensaio sbre o caso (Bilse und ich), Th.
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Mann declarou: Quando fao de uma coisa uma orao que tem que ver esta coisa
com a orao? O fato que mesmo uma cidade realmente existente torna-se fico no
contexto fictcio, j que representa determinado papel no mundo imaginrio. Isso se
refere tambm s imagens de filmes tomadas no ambiente real correspondente ao
enrdo: o ambiente, embora em si real, situa-se agora num espao fictcio e torna-seigualmente fictcio. Um enunciado como dois e dois so quatro sempre verdico;
mas quando preferido por uma personagem, com inteno sria, esta inteno sria ,
por sua vez, fictcia; e quando ocorre na prpria narrao, a inteno fictcia
transforma o enunciado em quase-juzo, embora em si certo. Quando, em Lio, de
Ionesco, o professor e a aluna se debatem com multiplicaes astronmicas, ningum
pensaria em verificar os resultados. A funo dos juzos aritmticos, no contexto
fictcio, no esta.
5. A conscincia do carter ficcional no tem sido sempre ntida. Wolfgang
Kayser (em:Die Wahrheit der DlchterA verdade dos Poetas)demonstra que no
sculo XVI os leitores de romance no tinham a noo ntida de que os enunciados
respectivos eram fictcios.
tende a constituir-se a verossimilhana do mundo imaginrio.
Mesmo sem alguns dstes elementos o texto pode alcanar tamanha
fra de convico que at estrias fantsticas se impem como quase-
reais. Todavia, a aparncia da realidade no renega o seu carter de
aparncia. No se produzir, na verdadeira fico, a decepo da
mentira ou da fraude. Trata-se de um verdadeiro ser aparencial
(Julian Matias), baseado na conivncia entre autor e leitor. O leitor,
parceiro da emprsa ldica, entra no jgo e participa da no -seriedade
dos quase-juzos e do fazer de conta.
Uma orao como esta: Enquanto falava, a mulherzinha deitava sbreo marechal os grande olhos que despediam chispas. Floriano parecia
incomodado com aqule chamejar; era como se temesse derreter-se ao
calor daquele olhar. . . (Lima Barreto, Triste Fim de Policarpo
Quaresma)revela de imediato, apesar do contexto histrico, a inteno
ficcional. O autor parece convidar o leitor a permanecer na camada
imaginria que se sobrepe e encobre a realidade histrica.
3) O problema epistemolgico (a personagem). porm a
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personagem que com mais nitidez torna patente a fico, e atravs dela
a camada imaginria se adensa e se cristaliza. Isto pouco evidente na
poesia lrica, em que no parece haver personagem. Todavia, expresso
ou no, costuma manifestar-se no poema um Eu lrico que no deve
ser confundido com o Eu emprico do autor. Sem dvida, houve no
decurso da histria grandes variaes neste campo. No se devem
aplicar os mesmos padres e conceitos a poemas da Grcia antiga, a
poemas romnticos e a poemas atuais. Parece, contudo, que se pode
negar em geral a opinio de que nas oraes de poemas lricos se trata
de juzos, de enunciados existenciais acrca de determinada realidade
psquica do poeta ou qualquer realidade exterior a le. precisamente
no poema que so mobilizadas tdas as virtualidades expressivas da
lngua e toda a energia imaginativa.
No caso de versos como stes:
A chuva de outono molha
O pso da minha altura
E tal rosa que desfolhaTenho ptalas na figura 6
seria absurdo falar de juzos, mesmo subjetivos, referentes,
passo a passo, a estados psquicos reais da poetisa 7. perfeitamente
possvel que haja referncia indireta a vivncias reais; estas, porm,
foram transfiguradas pela energia da imaginao e da linguagem
potica que visam a uma expresso mais verdadeira, mais definitiva e
mais absoluta do que outros textos.
O poema no uma foto e nem sequer um retrato artstico de
estados psquicos; exprime uma viso estilizada, altamente simblica,
de certas experincias.
Mesmo em versos aparentemente confessionais como stes de Safo: A
lua se ps e as Pliades, pelo meio
anda a noite, esvai-se a juventude, mas eu estou deitada, szinha
no se deve confundir o Eu lrico dentro do poema com o Eu emprico
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fora dle. ste ltimo se desdobra e objetiva, atravs das categorias
estticas, constituindo-se na personagem universal da mulher ansiosa
por amor. At um poeta como Goethe que, na sua fase romntica,
considerava a poesia a mais poderosa expresso da verdade, como
revelao da intimidade, chegou, j aos vinte anos, concluso de
Fernando Pessoa (o poeta finge mesmo a dor que deveras sente), porque
o poema , antes de tudo, Gestalt, forma viva, beleza. Variando
concepes de Plato, declara que a beleza no luz e no noite;
cre-
6Lupe Cotrlm Garaude, Raiz Comum.
7. Tal , contudo, a opinio de Kaethe Hamburger emDie Logik der Dichrung (ALgica da Fico); segundo a autora, os enunciados de um poema lrico seriam
juzos existenciais, juzos subjetivos, mas juzos.
psculo; resultado da verdade e no-verdade. Coisa
intermediria. So quase os trmos com que Sartre descreve a fico.
Contudo, a personagem do poema lrico no se define nitidamente.
Antes de tudo pelo fato de o Eu lrico manifestar-se apenas no
monlogo, fundido com o mundo (A chuva de outono molha / O pso
da minha altura), de modo que no adquire contornos marcantes;
depois, porque exprime em geral apenas estados enquanto a
personagem se define com nitidez smente na distenso temporal do
evento ou da ao.
Como indicadora mais manifesta da fico por isso bem mais
marcante a funo da personagem na literatura narrativa (pica). H
numerosos romances que se iniciam com a descrio de um ambiente
ou paisagem. Como tal poderiam possivelmente constar de uma carta,
um dirio, uma obra histrica. geralmente com o surgir de um ser
humano que se declara o carter fictcio (ou no-fictcio) do texto, por
resultar da a totalidade de uma situao concreta em que o
acrscimo de qualquer detalhe pode revelar a elaborao imaginria. No
nosso exemplo de Mrio seria possvel que as oraes Mrio estava de
pijama. ele batia uma carta na mquina de escrever constassem de um
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relato policial que prosseguisse assim: . . . quando entrou o ladro. . .
Se o texto, porm, prosseguir assim: Sem dvida ainda iria alcan-la.
Afinal, Lcia decerto no podia partir depois-de-amanh, sabemos que
se trata de fico. Notamos, talvez sem reconhecer as causas, que Mrio
no urna pessoa e sim uma personagem. Certas palavras sem
importncia aparente nos colocam dentro da conscincia de Mrio,
fazem-nos participar de sua intimidade: sem dvida, afinal,
decerto, depois-de-amanh. Tais palavras indicam que se verificou
uma espcie de identificao com Mrio, de modo que o leitor levado,
sutilmente, a viver a experincia dle. Mais evidentes seriam verbos
definidores de processos psquicos, como pensava, duvidava,
receava, os quais, quando referidos experincia temporalmente
determinada de uma pessoa, no podem, por razes epistemolgicas,
surgir num escrito histrico ou psicolgico. Numa obra histrica pode
constar que Napoleo acreditava poder conquistar a Rssia; mas no
que, naquele momento, cogitava desta possibilidade. S com o surgir
da personagem tornam-se possveis oraes categorialmente diversas de
qualquer enunciado em situaes reais ou em textos no-fictcios: Bem
cedo ela comeava a enfeitar a rvore. Amanh era Natal (Alice Berend,
Os Noivos de Babette Bomberling); ... and of course he was coming to
her party to-night (Virgnia Woolf, Mrs. Dallowcry); A revolta veio
acabar da a dias (Lima Barreto, Triste Fim de Policarpo Quaresma);
Da a pouco vieram chegando da direita muitas caleas. . . (Machado
de Assis, Quincas Barba).
altamente improvvel que um historiador recorra jamais a tais
oraes. Advrbios de tempo (e em menor grau de lugar) como
amanh, hoje, ontem, da a pouco, da a dias, aqui, ali, tm
sentido smente a partir do ponto zero do sistema de coordenadas
espcio-temporal de quem est falando ou pensando. Se surgem num
escrito, so possveis smente a partir do narrador fictcio, ou do foco
narrativo colocado dentro da personagem, ou onisciente, ou de algum
modo identificado com ela. O amanh do primeiro exemplo citado pe
o foco dentro da personagem, cujo pensamento expresso atravs do
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estilo indireto livre:
no caso, os pensamentos so reproduzidos a partir da perspectiva da
prpria personagem, mas a manuteno da terceira pessoa e do
imperfeito finge o relato impessoal do narrador. Seriam possveis
outros recursos:
Ela pensava: Amanh ser Natal; Ela pensava que no dia seguinte
seriaNatal; mas nenhum como o indicado (alis j usado na literatura
latina, na literatura francesa desde o sculo XII e com bem mais
freqncia no romance do sculo XIX, desde Jane Austen e Flaubert)
revela o carter categorialmente singular do discurso fictcio. Em
nenhuma situao real o amanh poderia ser ligado ao era; e o
historiador teria de dizer no dia seguinte j que no pode identificar-se
com a perspectiva de uma pessoa, sob pena de transform-la em
personagem.
Embora tais formas no surjam nem na poesia lrica, nem na
dramaturgia, e no necessriamente na literatura narrativa, o fenmeno
como tal extremamente revelador para todos os tipos de fico, j que
a anlise dste sintoma da fico indica, ao que parece, estruturas
inerentes a todos os textos fictcios, mesmo nos casos em que o sintoma
no se manifesta. O sintoma lingstico evidentemente s pode surgir
no gnero pico (narrativo), porque nle que o narrador em geral finge
distinguir-se das personagens, ao passo que no gnero lrico e
dramtico, ou est identificado com o Eu do monlogo ou,
aparentemente, ausente do mundo dramtico das personagens. Assim,
smente no. gnero narrativo podem surgir formas de discurso
ambguas, projetadas ao mesmo tempo de duas perspectivas: a da
personagem e a do narrador fictcio. Mas a estrutura bsica do discurso
fictcio parece ser a mesma tambm nos outros gneros.
O sintoma lingstico, bvio nos exemplos apresentados, revela,
precisamente atravs da personagem, que o narrar pico
estruturalmente de outra ordem que o enunciar do historiador, do
correspondente de um jornal ou de outros autores de enunciados reais.
A diferena fundamental que o historiador se situa, como enunciador
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real das oraes, no ponto zero do sistema de coordenadas espcio-
temporal, por exemplo, no ano de 1963 (e na cidade de So Paulo),
projetando a partir dste ponto zero, atravs do pretrito plenamente
real, o mundo do passado histrico igualmente real de que le,
naturalmente, no faz parte. Ao sujeito real (emprico) dos enunciados
corresponde a realidade dos objetos projetados pelos enunciados (e s
neste contexto possvel falar de mentira, fraude, rro etc.). Na fico
narrativa desaparece o enunciador real. Constitui-se um narrador
fictcio que passa a fazer parte do mundo narrado, identificando-se por
vzes (ou sempre) com uma ou outra das personagens, ou tornando-se
onisciente etc. Nota-se tambm que o pretrito perde a sua funo real
(histrica) de pretrito, j que o leitor, junto com o narrador fictcio,
presencia os eventos. O pretrito mantido com a funo do era uma
vez, mero substrato fictcio da narrao, o qual, contudo, preserva a
sua funo de posio existencial, de grande vigor individualizador, e
continua fingindo a distncia pica de quem narra coisas h muito
acontecidas. A modificao do discurso indica que na fico (e isso se
refere tambm poesia e dramaturgia) no h um narrador real em face
de um campo de sres autnomos. ste campo existe smente graas
ao ato narrativo (ou ao enunciar lrico, dramtico). O narrador fictcio
no sujeito real de oraes, como o historiador ou o qumico;
desdobra-se imaginriamente e torna-se manipulador da funo
narrativa (dramtica, lrica), como o pintor manipula o pincel e a cr;
no narra depessoas, eventos ou estados; narra pessoas (personagens),
eventos e estados. E isso verdade mesmo no caso de um romance
histrico 8. As pessoas (histricas), ao se tornarem ponto zero de
orientao, ou ao serem focalizadas pelo narrador onisciente, passam a
ser personagens; deixam de ser objetos e transformam-se em sujeitos,
sres que sabem dizer eu.
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8. Kaethe Hamburger, na obra citada, estuda agudamente os
vrios problemas envolvidos.
A rainha se lembrava neste momento das palavras que dissera
ao rei tal orao no pode ocorrer no, escrito de um historiador, j
que ste, nos seus juzos, smente pode referirr-se a objetos,
apreendendo-os exclusivamente de fora, mesmo nos casos da mais
sutil compreenso psicolgica, baseada em documentos e inferncias.
Smente o criador de Napoleo, isto , o romancista que o narra, em
vez de narrar dle, lhe conhece a intimidade de dentro.
A personagem nos vrios gneros literrios e no espetculo
teatral e cinematogrfico.
Em trmos lgicos e ontolgicos, a fico define-se nitidamente
como tal, independentemente das personagens. Todavia, o critrio
revelador mais bvio o epistemolgico, atravs da personagem, merc
da qual se patenteia s vzes mesmo por meio de um discurso
especificamente fictcio a estrutura peculiar da literatura imaginria.
Razes mais intimamente poetolgicas mostram que a personagem
realmente constitui a fico.
A descrio de uma paisagem, de um animal ou de objetos quaisquer
pode resultar, talvez, em excelente prosa de arte. Mas esta excelncia
resulta em fico smente quando a paisagem ou o animal (como no
poema A pantera, de Rilke) se animam e se humanizam atravs da
imaginao pessoal. No caso da poesia lrica, atravs da fuso do Eu, do
foco lrico, com o objeto. No fundo, isso que Lessing pretende dizer no
seu Laocoonte ao criticar um poema descritivo por lhe faltar o que
chama segundo a terminologia do sculo XVIII a iluso
(Taeuschung), ou seja, a impresso da presena real do objeto. Tal
iluso smente possvel pela colocao do leitor dentro do mundo
imaginrio, merc do foco personal que deve animar o poema e que
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lhe d o carter fictcio. No poema isto conseguido, antes de tudo,
atravs da fra expressiva da linguagem, que transforma a mera
descrio em vivncia duma personagem que erradamente se costuma
confundir com o autor emprico. Mas, enquanto a poesia, na sua forma
mais pura, se atm vivncia de um estado, o gnero narrativo (e
dramtico) transforma o estado em processo, em distenso temporal.
Smente assim se define a personagem com nitidez, na durao de
estados sucessivos. A narrao mesmo a no-fictcia , para no se
tornar em mera descrio ou em relato, exige, portanto, que no haja
ausncias demasiado prolongadas do elemento humano (ste,
naturalmente, pode ser substitudo por outros sres, quando
antropomorfizados) porque o homem o nico ente que no se situa
smente no tempo, mas que essencialmente tempo 9.
Se Lessing recomenda, no ensaio acima citado, a dissoluo da
descrio em narrao porque a palavra, recurso sucessivo, no pode
apreender adequad amente a simultaneidade de um objeto,
ambiente ou paisagem (que a nossa viso apreende de um s relance), o
que no fundo exige a presena de personagens que atuam. Homero,
em vez de descrever o traje de Agamenon, narra como o rei se veste, e
em vez de descrever o seu cetro, narra-lhe a histria desde o momento
em que Vulcano o fz. Assim, o leitor participa dos eventos em vez de se
perder numa descrio fria que nunca lhe dar a imagem da coisa.
Antes de abordar, mesmo marginalmente, a fico dramtica, convm
ressaltar que verbos como dizer, responder etc., desempenham na
fico em geral funo semelhante aos que revelam processos psquicos
(recear, pensar, duvidar), particularmente quando
9. Pode-se escrever e j se escreveram contos sbre baratas. Mas h de
se tratar, ao menos, de uma baratinha. O diminutivo afetuoso desde logo humaniza
o bicho. O mais terrvel na Metamorfose de Kafka a lenta desumanizao do
inseto. As fbulas e os desenhos cinematogrficos baseiam-se nesta humanizao. O
homem, afinal, s pelo homem se interessa e s com ele pode identificar-se realmente.
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acompanham uma fala em voz direta, referida a momentos
temporais determinados (determinados no tempo irreal da fico). Taisverbos indicam em geral a presena do foco narrativo no campo fictcio.
Ademais, personagens, ao falarem, revelam-se de um modo mais
completo do que as pessoas reais, mesmo quando mentem ou procuram
disfarar a sua opinio verdadeira. O prprio disfarce costuma
patentear o cunho de disfarce. Esta franqueza quase total da fala e
essa transparncia do prprio disfarce (pense-se no aparte teatral) so
ndices evidentes da oniscincia ficcional.A funo narrativa, que no textodramtico se mantm humildemente
nas rubricas ( nelas que se localiza o foco), extingue-se totalmente no
palco, o qual, com os atres e cenrios, intervm para assumi-la.
Desaparece o sujeito fictcio dos enunciados pelo menos na aparncia
, visto as prprias personagens se manifestarem diretamente atravs
do dilogo, de modo que mesmo o mais ocasional disse le,
respondeu ela do narrador se torna suprfluo. Agora, porm, estamosno domnio de uma outra arte. No so mais as palavras que
constituem as personagens e seu ambiente. So as personagens (e o
mundo fictcioda cena) que absorveram as palavras do texto e passa a
constitu-las, tornando-se a fonte delas exatamente como ocorre na
realidade. Contudo, o mundo mediado no palco pelos atres e cenrios
de objectualidade puramente intencionais. Estas no tm referncia
exata a qualquer realidade, determinada e adquirem tamanhadensidade que encobrem por inteiro a realidade histrica a que,
possivelmente, dizem respeito. A fico ou mimesis reveste-se de tal
fra que se substi tu ou superpe realidade. talvez devido velha
teoria da iluso da realidade supostamente criada pela cena, devido,
portanto, ao altssimo vigor da fico cnica, que no se atribui ao
teatro o qualificativo de fico.
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Contudo, o dilogo tem na dramaturgia a mesma funo do
amanh era Natal.Compe-se, para o pblico, de quase-juzos,
embora os atres se comportem como se se tratasse de juzos, j que as
personagens levam os enunciados a srio. Embora seja apresentado ao
pblico em forma semelhante s condies reais, o dilogo concebido
de dentrodas personagens, tornando-as transparentes em alto grau.
verdade que, no teatro moderno, esta conveno da franqueza dialgica
ficou abalada ao ponto de se tornar temtica (Tchecov, Pirandello,
Th.Wilder, Ionesco, Beckett etc.). Temos aqui uma das razes para a
mobilizao de recursos picos, narrativos. Quando Brecht pede ao
ator que no se identifique com a personagem, para poder critic-la,
pe um foco narrativo fora dela, representado pelo ator que assume o
papel de narrador fictcio. Isso indica claramente que a identificao do
ator com a personagem significa que o foco se encontra dentro dela: a
aparente ausncia do narrador fictcio, no palco clssico, explica-se pelo
simples fato de que ele se solidarizou ou identificou totalmente com
uma ou vrias personagens, de tal modo que j no pode ser discernido
como foco distinto. por isso tambm que, o palco dssico depende
inteiramente do ator-personagem, porque no pode haver foco fora dle.
O prprio cenrio permanece papelo pintado at surgir o foco fictcio
da personagem que, de imediato, projeta em trno de si o espao e
tempo irreais e transforma, como por um golpe de magia, o papelo em
paisagem, templo ou salo.
No que se refere ao cinema, deve ser concebido como de carter pico-
dramtico; ao que parece, mais pico do que dramtico. verdade que
o mundo das objectualidades puramente intencionais se apresenta
neste caso, semelhana do teatro, atravs de imagens, como
espetculo percebido (espetculo visto e ouvido; na verdade quase-
visto e quase-ouvido; pois o mundo imaginrio no exatamente objeto
de percepo). Mas a cmara, atravs de seu movimento, exerce no
cinema uma funo nitidamente narrativa, inexistente no teatro.
Focaliza, comenta, recorta, aproxima, expe, descreve. O close up, o
travelling, o panoranomizar so recursos tipicamente narrativos.
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Em tdas as artes literrias e nas que exprimem, narram ou
representam um estado ou estria, a personagem realmente constitui
a fico. Contudo, no teatro a personagem no s constitui a fico mas
funda, nticamente, o prprio espetculo (atravs do ator). que o
teatro integralmente fico, ao passo que o cinema e a literatura
podem servir, atravs das imagens e palavras, a outros fins (documento,
cincia, jornal). Isso possvel porque no cinema e na literatura so as
imagens e as palavras que fundam as objectualidades puramente
intencionais, no as personagens. precisamente por isso que no
prprio cinema e literatura ficcionais as personagens, embora realmente
constituam a fico, e a evidenciem de forma marcante, podem ser
dispensadas por certo tempo, o que no possvel no teatro. O palco
no pode permanecer vazio.
stes momentos realam o cunho narrativo do cinema. A imagem (como
a palavra) tem a possibili dad de descrever e animar ambientes,
paisagens, objetos. Estes sem personagem podem mesmo
representar fatres de grande importncia. A fita e o romance podem
fazer viver uma cidade como tal. Ademais, no teatro uma s
personagem presente no palco no pode manter-se calada; tem de
proferir um monlogo.
Uma personagem muda no pode permanecer szinha no palco. J no
cinema ou romance, a personagem pode permanecer calada durante
bastante tempo, porque as palavras ou imagens do narrador ou da
cmara narradora se encarregam de comunicar-nos os seus
pensamentos, ou, simplesmente, os seus afazeres, o seu passeio
solitrio etc. o homem centro do universo. O uso de recursos picos
o cro, o palco simultneo etc., so recursos picos indica que o
homem no se concebe em posio to exclusiva.
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A pessoa e a personagem.
A diferena profunda entre a realidade e as objectualidades
puramente intencionais imaginrias ou no, de um escrito, quadro,
foto, apresentao teatral etc. reside no fato de que as ltimas nunca
alcanam a determinao completa da primeira. As pessoas reais, assim
como todos os objetos reais, so totalmente determinados
apresentando-se como unidades concretas, integradas de uma
infinidade de predicados, dos quais smente alguns podem ser
colhidos e retirados por meio de operaes cognoscitivas especiais.
Tais operaes so sempre finitas, no podendo por isso nunca esgotar
a multiplicidade infinita das determinaes do ser real, individual, que
inefvel. Isso se refere naturalmente em particular a sres humanos,
sres psicofsicos, sres espirituais, que se desenvolvem e atuam. A
nossa viso da realidade em geral, e em particular dos sres humanos
individuais, extremamente fragmentria e limitada.
De certa forma, as oraes de um texto projetam um mundo bem mais
fragmentrio do que a nossa viso j fragmentria da realidade. Uma
expresso nominal como mesa projeta o objeto na sua unidade
concreta, mas isso apenas formaliter, como esquema que contm
apenas potencialmente uma infinidade de determinaes. Atravs das
funes significativas da orao posso atribuir (ou retirar) a essa
unidade uma ou outra determinao (a mesa azul, alta, redonda, bem
lustrada); mas por mais que a descreva ou lance mo de aspectos
especialmente preparados, capazes de suscitar o preenchimento
imaginrio do leitor (a mesa era um daqueles mveis tradicionais em
trno do qual, antes do surgir da televiso, a famflia costumava reunir-
se para o jantar), as objectualidades puramente intencionais
constitudas por oraes sempre apresentaro vastas regies
indeterminadas, porque o nmero das oraes finito. Assim
psmiagemde um romance (e ainda mais de um poema ou de uma pea
teatral) eum configurao esquemtica, .tanto no sentido fsico como
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psquico, emboraformaliterseja projetada como um indivduo real,
totalmente determinado.
ste fato das zonas indeterminadas do texto possibilita at certo ponto
a vida da obra literria, a variedade das concretizaes, assim como a
funo do diretor de teatro, chamado a preencher as mltiplas
indeterminaes de um texto dramtico. Isso, porm, se deve variedade
dos leitores, atravs dos tempos, no variabilidade da obra, cujas
personagens no rnutabilidade e a infinitude das de de sereshumanos
reais. As concretizaes podem variar, mas a obra como tal no muda.
Comparada ao texto, a personagem cnica tem a grande vantagem de
mostrar os aspectos esquematizados pelas oraes em plena concreo
e, nas fases projetadas pelo discurso literrio descontnuo, em plena
continuidade. Isso comunica representao a sua fra de presena
existencial. A existncia se d smente percepo (o fato de que o
mundo imaginrio tambm neste caso no prpriamente percebido
quase negligencivel). Isso naturalmente no quer dizer que a
representao no tenha zonas mdeterminadas caractersticas de tdas
as objectualidades puramente intencionais. Os atres, stes sim, so
reais e totalmente determinados, mas no os sres imaginrios de que
apresentam apenas alguns aspectos visuais e auditivos e, atravs dles,
aspectos psquicos e espirituais, O fato que a pea e sua
representao mostram em geral muito menos aspectos das
personagens do que os romances, mas stes poucos aspectos aparecem
de modo sensvel e contnuo, dando s personagens teatrais um poder
extraordinrio. ste poder no diminudo pelo fato de no teatro
clssico (por exemplo, Racine) as personagens terem o carter quase de
silhuetas, porque se confrontam com poucas personagens, aparecem
em poucas situaes e se esgotam quase totalmente nos aspectos
proporcionados pela ao especfica da pea, de modo que seria difcil
imagin-las fora do contexto desta ao peculiar. J nas peas de
cunho mais aberto pico pense-se em diversas obras de
Shakespeare as figuras adquirem maior plasticidade, podendo ser
imaginadas fora da pea. Tais diferenas, porm, no implicam um
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juzo de valor. Trata-se de outros estilos.
O curioso que o leitor ou espectador no nota as zonas
indeterminadas (que tambm no filme so mltiplas). Antes de tudo
porque se atm ao que positivamente dado e que, precisamente por
isso, encobre as zonas indeterminadas; depois, porque tende a atualizar
certos esquemas preparados; finalmente, porque costuma ultrapassar
o que dado no texto, embora geralmente guiado por le.
De qualquer modo, o que resulta que precisamente a limitao da
obra ficcional a sua maior conquista. Precisamente porque o nmero
das oraes necessriamente limitado (enquanto as zonas
indeterminadas passam quase despercebidas), as personagens
adquirem um cunho definido e definitivo que a observao das pessoas
reais, e mesmo o convvio com elas, dificilmente nos pode proporcionar
a tal ponto. Precisamente porque se trata de oraes e no de
realidades, o autor pode realar aspectos essenciais pela seleo dos
aspectos que apresenta, dando s personagens um carter mais ntido
do que a observao da realidade costuma a sugerir levando-as,
ademais, atravs de situaes mais decisivas e significativas do que
costuma ocorrer na vida. Precisamente pela limitao das oraes, as
personagens tm maior coerncia do que as pessoas reais (e mesmo
quando incoerentes mostram pelo menos nisso coerncia); maior
exemplaridade (mesmo quando banais; pense-se na banalidade
exemplar de certas personagens de Tchecov ou Ionesco); maior
significao; e, paradoxalmente, tambm maior riqueza no por
serem mais ricas do que as pessoas reais, e sim em virtude da
concentrao, seleo, densidade e estilizao do contexto imaginrio,
que rene
os fios dispersos e esfarrapados da realidade num padro firme e
consistente. Antes de tudo, porm, a fico nico lugar em trmos
epistemolgicos em que os sres humanos se tornam transparentes
nossa viso, por se tratar de seres puramente intencionais a sres
autnomos; de sres totalmente projetados por oraes. E isso a tal
ponto que os grandes autores, levando a fico fictciamente s suas
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ltimas conseqncias, refazem o mistrio do ser humano, atravs da
apresentao de aspectos que produzem certa opalizao e iridescncia,
e reconstituem, em certa medida, a opacidade da pessoa real.
precisamente o modo pelo qai p autor dirige o nosso olhar, atravs de
aspectos selecionados de certas situaes de aparncia fsica e do
comportamento sintomticos de certos estados ou processos
psquicos ou diretamente atravs de aspectos da intimidade das
personagens tudo isso de tal modo que tambm as zonas
indeterminadas comeam a funcionar precisamente atravs de
todos sses e outros recursos que o autor torna a personagem at certo
ponto de nvo inesgotvel e insondvel.
A valorizao esttica
A exposio do problema da fico foi numerosas vzes
ultrapassada por descries que de fato j introduziam certas
valorizaes estticas. Quando, por exemplo, foi afirmado que osgrandes autores tendem a refazer o mistrio humano, o campo da
lgica ficcional, assim como os aspectos puramente epistemolgicos e
ontolgicos, foram abandonados em favor de consideraes estticas; a
mesma falta de rigor se verificou na abordagem da vibrao verbal da
poesia do problema da verdade ficcional (que no fundo de ordem
esttica) e da questo dos aspectos esquemticos especialmente
preparados para suscitar preenchimentos determinados do leitor. Apreparao de tais aspectos depende em alto grau da escolha da palavra
justa, insubstituvel da sonoridade especfica dos fonemas, das
conotaes das palavras, da carga de suas zonas semnticas marginais,
do jgo metafrico, do estilo ou seja, da organizao dos contextos de
unidades significativas e de muitos outros elementos de carter
esttico. stes momentos inerentes s camsdsas exteriores da obra
literria esto, naturalmente, relacionados com a necessidade deconcretizar e enriquee a camada das objectualidades puramente
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intencionais, e de dar a ste piano imaginrio certa transparncia ou
iridescncia em direo a significados mais profundos, em que se
revela o sentido, a idia da obra. No pocesso da criao stes planos
mais profundos certamente condicionaram, de modo consciente ou
inconsciente, o rigor seletivo aplicado s camadas mais externas
(embora num poema todo o processo criavo possa iniciar-se a partir de
uma sequncia rtmica de palavras).
A dificuldade de abordar o fenmeno da fico sem recorrer a
valorizaes estticas indica que ste problema e o do nvel esttico no
mantm relaes de indiferena. Sem dvida, h fico de baixo nvel
esttico, de grande pobreza imaginativa (clichs), com personagens sem
vida e situaes sem significado profundo, tudo isso relacionado com a
inexpressividade completa dos contextos verbais (que por vzes,
contudo, so afetados e pretensiosos, sem economia e sem funo no
todo, sem que sua exagerada riqueza corresponda qualquer coisa na
camada imaginria e nos planos mais profundos). Todavia a criao de
um vigoroso mundo imaginrio, de personagens vivas situaes
verdadeiras, j em si de alto valor esttico, exige em geral a mobilizao
de todos os recursos da lngua, assim como de muito outros elementos
da composio literria, tanto no plano horizontal da organiza das
partes sucessivas, como no vertical das camadas; enfim, de todos os
rneios tendem a constituir a obra-de-arte literria. De outro lado, a
mobilizao plena dsses recursos dar obra, mesmo a despeito da
inteno possivelmente cientfica ou filosfica, um carter seno
imaginrio, ao menos imaginativo, que a aproximar at certo ponto
da fico. Exemplos caractersticos seriam os dilogos de Plato (que,
em parte, podem ser lidos como comdias), certos escritos de
Kierkegaard, Pascal, Nietzsche, a obra de Schopenhauer (cuja vontade
metafsica se torna quase personagem de uma epopia) etc. Deve-se
admitir, na delimitao do que seja literatura no sentido restrito,
amplas zonas de transioem que se situariam obras de grande poder e
preciso verbais, na medida em que se ligam agudeza da observao,
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perspiccia psicolgica e riqueza de idias.
Na descrio da estrutura da obra literria em sentido lato (pp. 2-3)
verificou-se que, em essncia, se trata da associao de camadas mais
sensveis (das quais a nica realmente foi posta de lado) e de planos
mais profundos projetados por aquelas. Esta estrutura
fundamentalmente a de tdas as objetivaes espirituais (todos os
produtos humanos) e, em especial, de tdas as obras de arte. Em tdas
as objetivaes espirituais associam-se a uma camada material,
sensvel, real, uma ou vrias camadas irreais, no apreendidas
diretamente pelos sentidos, mas mediadas pelos exteriores.
Entretanto, graas ao material em jgo no caso de uma sinfonia, de um
quadro ou de uma apresentao teatral, evidencia-se a sua inteno
esttica, mesmo que no se tenha cristalizado em relevante obra de
arte. No. caso da literatura, bem ao contrrio, o material em jgo a
lngua tanto pode servir para fins tericos ou prticos como para fins
estticos. a isso que Hegel se refere quando chama a literatura (as
belas letras) aquela arte peculiar em que a arte... dissolver-se...,
passando a ser ponto de transio para a prosa do pensamento
cientfico. Principalmente neste campo, portanto, surge o problema de
diferenciar entre prosa comum e arte.
A diferena entre um documento literrio qualquer e a obra-de-arte
literria reside, antes de tudo, no valor diverso da camada quase-
sensvel das palavras (sensvel quando o texto lido a viva voz). ste
plano quase-sensvel das palavras e de seus contextos maiores tem na
literatura em sentido lato funo puramente instrumental: a de
projetar, como vimos, objectualidades puramente intencionais que, por
sua vez, sem serem notadas como tais, se referem aos objetos visados.
O que importa so os significados que se identificam com os objetos
visados, no os significantes. stes ltimos ai palavras se omitem
por completo (da mesma Forma que as objectualidades puramente
intencionais); podem ser substitudos por, quaisquer outros que
constituam os mesmos significados. A relao entre a camada quase-
sensvel e a camada espiritual , portanto, inteiramente convencional.
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A inteno do leitor passa diretamente ao sentido e aos objetos
visados.
Na obra-de-arte literria, esta relao deixa de ser convencional,
apresenta necessidade e grande firmeza e consistncia. Em casos
extremos (particularmente na poesia), a mais ligeira modificao da
camada exterior (e na poesia concretista, mesmo da distribuio dos
sinais tipogrficos) destri o sentido de tda a obra, devido ao valor
expressivo das palavras, agora usadas como se fssem relaes de cres
ou sons na pintura ou msica. A camada verbal adquire, pois, valor
prprio e passa a fazer parte integral da obra. Isso vale particularmente
para contextos maiores, que passam a constituir o ritmo, o estilo, o
jgo das repeties e associaes e que se tornam momentos
inseparveis do todo, de modo que a modificao da estrutura das
oraes e da maneira como se organizam os significados afeta
profundamente o sentido total da obra (imagine-se uma edio de
Proust com as oraes simplificadas!) ao passo que num texto
cientfico ou filosfico as mesmas teses podem ser mediadas por
contexto diversos de oraes (isso no se refere a filsofos como
Heidegger; mas neste caso a prosa comum do pensamento cientfico
abandonada em favor de especulaes teosficas que requerem o uso da
arquipalavra admica). isso que Lessing tem em mente
quando chama o poema um discurso totalmente sensvel ou quando
Hegel, num sentido mais geral, define a beleza como o aparecer (luzir)
sensvel da idia.
O significado disso que os planos de fundo (os mais
espirituais) se ligam na obra de arte (literria ou no)
de um modo indissolvel ao seu modo de aparecer, concreto,
individual, singular. a isso que Croce chama de intuio.
O sentimento do valor esttico, o prazer especfico em que se anuncia a
presena do valor esttico, refere-se precisamente totalidadeda obra
literria ou, mais de perto, ao modo de aparecer sensvel (quase-
sensvel) dos objetos mediados. As camadas exteriores impem a sua
presena em virtude da organizao e vibrao peculiares de seus
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elementos. O raio de inteno, ao atravessar estas camadas exteriores,
conota-as, assimila-as no mesmo ato de apreenso das camadas mais
profundas. Isso, em parte, se verifica tambm em virtude de uma
atitude diversa em face de escritos de valor esttico.
Na vida cotidiana ou na leitura de textos no-estticos, a nossa
inteno geralmente atravessa a superfcie sensvel devido imposio
de valores prticos, vitais, tericos etc. O raio da inteno, sem deter-se
nas exterioridades sensveis, dirige-se diretamente ao que interessa,
por exemplo, s atitudes e palavras, amabilidade, clera, disposio
geral do interlocutor (a no ser que se trate de pessoa de grande
encanto fsico, dificilmente nos lembramos de seus traos e jgo
fisionmico) ou topografia de um bosque (quando o observador um
engenheiro de estradas de ferro) ou ao valor til das rvores (quando se
trata de um negociante de madeiras) ou teoria dos genes (exposta
num tratado de gentica). A experincia esttica, bem ao contrrio,
desinteressada, isto , o objeto j no meio para outros fins, nada
nos interessa seno o prprio objeto como tal que, em certa medida, se
emancipa do tecido de relaes vitais que costumam solicitar a nossa
vontade. o fenmeno da moldura que, nas vrias artes, de modo
diverso, isola o objeto esttico, como rea ldica, de situaes reais (s
quais, contudo, pode referir-se indiretamente). Esta atitude
desinteressada j condicionou a elaborao do objeto e a configurao
altamente seletiva das camadas exteriores. A experincia do apreciador
adequado, atendendo s virtualidades especficas do objeto, se
caracterizar por uma espcie de repouso na totalidade dle. le no se
ater apenas idia expressa, nem smente configurao sensvel
em que ela aparece, mas ao aparecer como tal, ao modo como
aparece; ao todo, portanto. No primeiro caso, um atesta seria incapaz
de apreciar Dante ou um antimarxista, Brecht. No segundo caso, tratar-
se- provvelmente de um crtico que s examina fenmenos tcnicos,
sem referi-los ao todo. Nem aqules, nem ste apreendero o objeto com
aquela peculiar emoo valorizadora do prazer esttico, que se liga a
atos de apreenso referidos ao objeto total.
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ste tipo de apreciao, facilitado pelo isolamento em face de situaes
vitais, permite uma experincia intensa, quase arcaica, das
objectualidades mediadas (particularmente quando se trata de
objectualidades imaginrias), que se apresentam com grande concreo,
graas aos aspectos especialmente preparados e forte co-apreenso
dos momentos mais sensveis. A apreenso do mundo fictcio
acompanhada de intensas tonalidades emocionais, tudo se carrega de
mood, atmosfera, disposies anmicas. Em obras de inteno filosfica
ou cientfica, ste cunho esttico pode representar fator de perturbao,
j que desvia o raio de inteno da passagem reta aos objetos visados.
Contudo, mesmo na obra fictcia, ste retrocesso a tipor mais puros e
intensos de percepo e emocionalidade no realmente, uma volta a
fases mais primitivas no provoca tiros contra o palco ou a tela. As
prprias lgrimas tm, por assim dizer, menos teor salino. Ao forte
envolvimento emocional liga-se, no apreciador adequado, a conscincia
do Contexto ldico, da moldura. Mantm-se intata a distncia
contemplativa. O prazer esttico no modo de aparecer do mundo
mediado integra e suspende em si a participao nas dores e mgoas do
heri. ste prazer possvel smente porque o apreciador sabe
encontrar-se em face de quase-juzos, em face de objectualidades
puramente intencionais, sem referncia direta a objetos tambm
intencionais.
A obra-de-arte literria ficcional
Os momentos descritos so de importncia na valorizao
esttica da obra literria fictcia. Na fico. em geral, tambm na de
cunho trivial, o raio de inteno se dirige camada imaginria, sem
passar diretamente s realidades empricas possivelmente
representadas. Detm-se, por assim dizer, neste plano de personagens,
situaes ou estados (lricos), fazendo viver o leitor, imaginriamente, osdestinos e aventuras dos heris. Boa parte dos leitores, porm, pe o
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mundo imaginrio quase imediatamente referncia coma realidade
exterior obra, j que as objectualidades puramente intencionais,
embora tendam a prender a inteno, so tomadas na sua funo
mimtica, como reflexo do mundo emprico. Isto , em muitos casos,
perfeitamente legtimo; mas esta apreciao, quando muito unilateral,
tende a deformar e empobrecer a apreenso da totalidade literria,
assim como o pleno prazer esttico no modo de aparecer do que
aparece.
Na medida em que se acentua o valor esttico da obra ficcional o mundo
imaginrio se enriquece e se aprofunda, prendendo o raio de inteno
dentro da obra e tornando-se, por sua vez, transparente a planos mais
profundos, imanentes prpria obra. S agora a obra manifesta tdas
as virtualidades de revelao revelao que no se deve confundir
com qualquer ato cognoscitivo explcito, j que em plena imediatez
concreta que o mediado se revela, na individualidade quase-sensvel das
camadas exteriores e na singularidade das personagens e situaes.
Neste sentido, a cogitatio pode de certa forma ser contida na
apreenso esttica, mas ela ultrapassada por uma espcie de visio, ou
viso intuitiva, que ao mesmo tempo superior e inferior ao
conhecimento cientfico preciso. Tampouco deve-se comparar o prazer
desta revelao ao prazer do conhecimento. esttico integra e suspende
a distncia da contemplao, o intenso envolvimento emocional e a
revelao profunda; pode manifestar-se mesmo nos casos em que o
contedo desta revelao se ope a tdas as nossas concepes (bem
tarde T. S. Eliot reconheceu isso com referncia a Goethe e
Shakespeare, visceralmente contrrios sua concepo do mundo).
Seria tautolgico dizer que essa riqueza e profundidade da camada
imaginria e dos planos por ela revelados pressupem uma imaginao
que o autor de romances triviais no possui, assim como capacidades
especiais de observao, intuio psicolgica etc. Tudo isso, porm,
adquire relevncia esttica smente na medida em que o autor
consegue projetar ste mundo imaginrio base de oraes, isto ,
merc da preciso da palavra, do ritmo e do estilo, dos aspectos
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esquemticos especialmente preparados, sobretudo no que se refere ao
comportamento e vida ntima das personagens; aspectos stes cujo
preparo, por sua vez, se relaciona mntimamente composio estilstica
e camada sonora dos fonemas.
Na medida em que a obra ficcional tambm uma de obra-de-arte,
estas camadas exteriores so co-percebidas com muito mais fra do
que ocorre em geral. Se, na obra cientfica, a inteno atravessa estas e
a camada objectual, sem not-las, para incidir sbre os objetos
exteriores obra (que, como tal, quase no notada, j que ela
apenas meio) e na obra de fico em geral h certo repouso na
camada objectual, na obra-de-arte ficcional h, alm disso, ainda certo
repouso nas camadas exteriores; h como que um fraccionamento do
raio (sem que isso afete a unidade do ato de apreenso), em virtude do
fascnio verbal e estilstico. Falando metafisicamente, o raio adquire
certo effet e, graas a isso, maior capacidade de penetrao nas
camadas mais profundas da obra.
Na cena do sonho do heri de A Morte em Veneza (Thomas Mann), o
acmulo de certos ditongos faz-nos ouvir as flautas e o ulular do
squito dionisaco; as oraes assindticas, as aliteraes, o ritmo
acelerado, os aspectos tteis e olfativos apresentados que sugerem
um mundo pnico e primitivo reforam a impresso do xtase e da
presena embriagadora do Deus estranho, assim como a sugesto de
todo um plano de fundo arcaico, de evocaes mticas, j antes
suscitadas por trechos de prosa que tomam, quase imperceptivelmente,
o compasso dactlico do hexmetro. O enrdo a camada imaginria
trata do amor de um escritor envelhecido por um formoso rapaz. As
camadas exteriores retiram a ste tema algo do seu aspecto melindroso
por cerc-lo de atmosfera grega, colocando-o, de certo modo, numa
constelao mais universal e numa grande tradio. o estilo, atravs
das sugestes arcaicas por ele mediadas, que nos leva a intuir os planos
mais profundos, o significado das objectualidades puramente
intencionais: o perigo de retrocesso arcaico que ameaa o homem,
particularmente o artista fascinado pela beleza, pelo puro aparecer,
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independentemente do que aparece; o perigo, portanto, da existncia
esttica. H nisso uma parfrase levemente irnica da expulso dos
artistas do Estado platnico ironia que se anuncia na grecizao do
estilo, no uso de palavras homricas (tambm Homero deveria ser
expulso do Estado platnico).
Seria fcil prosseguir na interpretao da novela, atravs da
anlise da organizao polifnica das camadas; todavia, em
determinado ponto a interpretao deve deter-se. A grande obra de arte
inesgotvel em trmos conceituais; stes s podem aproximar-se dos
significados mais profundos. O essencial revela-se, em tda a sua fra
imediata, smente prpria experincia esttica.
O Papel de Personagem
Se reunirmos os vrios momentos expostos, verificaremos que a
grande obra-de-arte literria (ficcional) o lugar em que nos
defrontamos com sres humanos de contornos definidos e definitivos,
em ampla medida transparentes, vivendo situaes exemplares de um
modo exemplar (exemplar tambem no sentido negativo). Como sres
humanos encontram-se integrados num denso tecido de valores de
ordem cognoscitiva, religiosa, moral, poltico-social e tomam
determinadas atitudes em face dsses valores. Muitas vzes debatem-se
com a necessidade de decidir-se em face da coliso de valores, passam
por terrveis conflitos e enfrentam situaes-limite em que se revelam
aspectos essenciais da vida humana: aspectos trgicos, sublimes,
demonacos, grotescos ou luminosos. Estes aspectos profundos, muitas
vzes de ordem metafsica, incomunicveis em tda a sua plenitude
atravs do conceito, revelam-se, como num momento de iluminao, na
plena concreo do ser humano individual. So momentos supremos,
sua maneira perfeitos, que a vida emprica, no seu fluir cinzento e
cotidiano, geralmente no apresenta de um modo to ntido e coerente,
nem de forma to transparente e seletiva que possamos perceber as
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motivaes mais intmas, os conflitos e crises mais recnditos na sua
concatenao e no seu desenvolvimento.
O prprio cotidiano, quando se torna tema da fico, adquire outra
relevncia e condensa-se na situao-limite do tdio, da angstia e da
nusea.
Todavia, o que mais importa que no s contemplamos stes
destinos e conflitos distncia. Graas seleo dos aspectos
esquemticos preparados e ao potencial das zonas indeterminadas, as
personagens atingem a uma validade universal que em nada diminui a
sua concreo individual; e merc dsse fato liga-se, na experincia
esttica, contemplao, a intensa participao emocional. Assim, o
leitor contemplae ao mesmo tempo vive as possibilidades humanas
que a sua vida pessoal diflcilmente lhe permite viver e contemplar, pela
crescente reduo de possibilidades. De resto, quem realmente vivesse
sses momentos extremos, no poderia contempl-los por estar
demasiado envolvido nles. E se os contemplasse distncia (no crculo
dos conhecidos) ou atravs da conceituao abstrata de uma obra
filosfica, no os viveria. precisamente a fico que possibilita viver e
contemplar tais possibilidades, graas ao modo irreaal de suas amadas
profundas, graas aos quase-juzos que fingem referir-se a realidades
sem realmente se referirem a sres reais; e graas ao modo de aparecer
concreto e quase-sensvel dste mundo imaginrio nas camadas
exteriores.
importante observar que no poder apreender estticamentea
totalidade e plenitude de uma obra de arte ficcional, quem no fr capaz
de sentir vivamente tdas as nuanas dos valores no-estticos
religiosos, morais polticos-sociais, vitais, hedonsticos etc. que
sempre esto em jgo onde se defrontam sres humanos. Todos stes
valores em si no-estticos, assim como o valor at certo ponto
cognoscitivo de uma profunda interpretao do mundo e da vida
humana, que fundam o valor esttico, isso , que so
pressupostos e tornam possvel o seu aparecimento, de modo algum o
determinam. O fato de os valores morais representados numa tragdia
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serem mais elevados do que os de uma comdia no influi no valor
esttico desta ou daquela. O valor esttico aparece nas costas
(expresso usada por Max Scheler e Nicolai Hartmann) dstes outros
valores, mas o nvel qualitativo dste valor no condicionado pela
elevao dos valores morais ou religiosos em choque, nem pela
interpretao especfica do mundo e da vida. O valor esttico suspende
o peos real dos outros valores (embora os faa aparecer em tda a sua
seriedade e fra); integra-os no reino ldico da fico, transforma-os
em parte da organizao esttica lhes d certo papel no todo.
A isso corresponde o fenmeno de que o prazer esttico integra no seu
mbito o sofrimento e a risada, o dio e a simpatia, a repugnncia e a
ternura, a aprovao e a desaprovao com que o apreciador reage ao
contemplar e participar dos eventos. Tanto a nobre Antgone como o
terrvel Macbeth sucumbem; as emes com que participamos de seus
destinos so profundamente diversas. Mas o prazer suscitado pelo valor
esttico, pelo modo como aparecem stes destinos diversos, tal prazer,
como que consome estas emoes divergentes; nutrindo-se delas, ele
as assimila; e embora no renegue a variedade das emoes que
contribuem para fund-lo e que o tingem de tonalidades distintas, o
prazer como tal, na sua qualidade de prazer esttico e na sua
intensidade, tende a convergir em ambos os casos.
Quanto ao valor cognoscitivo que como tal no pode ser plenamente
visado por quase-juzos substitudo pela revelao e vivncia de
determinadas interpretaes profundas da vida humana, pela
contemplao e participao de certas possibilidades humanas.
Todavia, a profundeza e coerncia dessas interpretaes no tm valor
por si, como teriam numa obra filosfica, mas smente na medida em
que so integradas no todo esttico, tomando se viso e vivncia,
enriquecendo o prazer esttico. O extraordinrio que podemos, de
certo modo, participar destas interpretaes por mais que na vida real
nos sejam contrrias, por mais que as combatamos na vida real.
evidente que h, nesta apreciao esttica, limites. Ao que esta
descrio visa expor o fenmeno esttico como tal na sua mxima
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pureza. Contudo, no existe o Homo aestheticus. Mesmo dentro da
moldura da rea ldica no ocorre a suspenso total das
responsabilidades. Normalmente, o homem um ser incapaz de
valorizar apenas estticamente o mundo humano mesmo quando
imaginrio; a literatura no uma esfera segregada. Glorificar a arte,
maneira de Schopenhauer, como quietivo ou entorpecente da nossa
vontade, resulta em desvirtuamento da funo que a arte exerce na
sociedade.
Isso, porm, no exclui, antes pressupe que a grande obra de arte
literria nos restitua uma liberdade o imenso reino do possvel
que a vida real no nos concede. A fico um lugar ontolgico
privilegiado: lugar em que o homem pode viver e contemplar, atravs de
personagens variadas a plenitude da sua condio, e em que se torna
transparente a si mesmo; lugar em que, transformando-se
imaginriamente no outro, vivendo outros papis e destacando-se de si
mesmo, verifica, realiza e vive a sua condio fundamental de ser
autoconsciente e livre, capaz de desdobrar-se, distanciar-se de si
mesmo e de objetivar a sua prpria situao. A plenitude de
enriquecimento e libertao, que desta forma a grande fico nos pode
proporcionar, torna-se acessvel smente a quem sabeater-se, antes de
tudo, apreciao esttica que, enquanto suspende o pso real das
outras valorizaes, lhes assimila ao mesmo tempo a essncia e
seriedade em todos os matizes. Smente quando o apreciador se entrega
com certa inocncia a tdas as virtualidades da grande obra de arte,
esta por sua vez lhe entregar tda a riqueza encerrada no seu
contexto.
Neste sentido pode-se dizer com Ernst Cassirer que afastando-
se da realidade e elevando-se a um mundo simblico o homem, ao
voltar realidade, lhe apreende melhor a riqueza e profundidade.
Atravs da arte, disse Goethe, distanciamo-nos e ao mesmo tempo
aproximamo-nos da realidade.
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A PERSONAGEM DO ROMANCE
(pag. 51)
Geralmente, da leitura de um romance fica a impresso duma
srie de fatos, organizados em enrdo, e de personagens que vivem stes
fatos. uma impresso prticamente indissolvel: quando pensamos
no enrdo, pensamos simultneamente nas personagens; quando
pensamos nestas, pensamos simultneamente na vida que vivem, nos
problemas em que se enredam, na linha do seu destino traada
conforme uma certa durao temporal, referida a determinadas
condies de ambiente. O enrdo existe atravs das personagens; as
personagens vivem no enrdo. Enrdo e personagem exprimem, ligados,
os intuitos do romance, a viso da vida que decorre dle, os significados
e valores que o animam.Nunca expor idiasa no ser em funo dos
temperamentos e dos caracteres1. Tome-se a palavra idia como
sinnimo dos mencionados valores e significados, e ter-se- uma
expresso sinttica do que foi dito. Portanto, os trs elementos centrais
dum desenvolvimento novelstico (o enrdo e a personagem, que
representam a sua matria; as idias, que representam o seu
significado, e que so no conjunto elaborados pela tcnica), stes trs
elementos s existem intimamente ligados, inseparveis, nos romances
bens realizados. No meio dles, avulta a personagem, que representa a
possibilidade de adeso afetiva e intelectual do leitor, pelos mecanismosde identificaes, projeo, transferncia etc. A personagem vive o
enrdo e as idias, e os torna vivos. Eis uma imagem feliz de
Gide: Tento enrolar os fios variados do enrdo e a complexidade dos
meus pensamentos em tmo destas pequenas bobinas vivas que so
cada uma das minhas personagens (ob. cit., p. 26).
No espanta, portanto, que a personagem parea o que h de mais vivo
no romance; e que a leitura dste dependa bsicamente da aceitao da
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verdade da personagem por parte do leitor. Tanto assim, que ns
perdoamos os mais graves defeitos de enrdo e de idia aos grandes
criadores de personagens. Isto nos leva ao rro, freqentemente
repetido em crtica, de pensar que o essencial do romance a
personagem, como se esta pudesse existir separada das outras
ralidades que encarna, que ela vive, que lhe do vida. Feita esta
ressalva, todavia, pode-se dizer que o elemento mais atuante, mais
comunicativo da arte novelstica moderna, como se configurou nos
sculos XVIII, XIX e como do XX; mas que s adquire pleno
significado
1. Gide, Journal des Faux-Monnayeurs, 6.medition, Gallmard, Pule 1927,
p. 12.
no contexto, e que, portanto, no fim de contas a construo
estrutural o maior responsvel pela fra e eficcia de um romance.
A personagem um ser fictcio, expresso que soa como paradoxo.
De fato, como pode uma fico ser?Como pode existir o que no existe?
No entanto, a criao literria repousa sbre ste paradoxo, e o
problema da verossimilhana no romance depende desta possibilidade
de um ser fictcio, isto , algo que, sendo uma criao da fantasia,
comunica a impresso da mais ldima verdade existencial. Podemos
dizer, portanto, que o romance se baseia, antes de mais nada, num
certo tipo de relao entre o ser vivo e o ser fictcio, manifestada atravs
da personagem, que a concretizao dste.
Verifiquemos, inicialmente, que h afinidades e diferenas essenciais
entre o ser vivo e os entes de fico, e que as diferenas so to
importantes quanto as afinidades para criar o sentimento de verdade,
que a verossimilhana. Tentemos uma investigao sumria sbre as
condies de existncia essencial da personagem, como um tipo de ser,
mesmo fictcio, comeando por descrever do modo mais emprico
possvel a nossa percepo do semelhante.
Quando abordamos o conhecimento direto das pessoas, um dos dados
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fundamentais do problema o contraste entre a continuidaderelativa
da percepo fsica (em que fundamos o nosso conhecimento) e a
descontinuidade da percepo, digamos, espiritual, que parece
freqentemente romper a unidade antes apreendida. No ser uno que a
vista ou o contato nos apresenta, a convivncia espiritual mostra uma
variedade de modos-de-ser, de qualidades por vzes contraditrias.
A primeira idia que nos vem, quando refletimos sbre isso, a de que
tal fato ocorre porque no somos capazes de abrangera personalidade
do outro com a mesma unidade com que somos capazes de abrangera
sua configurao externa. E conclumos, talvez, que esta diferena
devida a uma diferena de natureza dos prprios objetos da nossa
percepo. De fato, pensamos o primeiro tipo de conhecimento se
dirige a um domnio finito, que coincide com a superfcie do corpo;
enquanto o segundo tipo se dirige a um domnio infinito, pois a sua
natureza oculta explorao de qualquer sentido e no pode, em
conseqncia, ser aprendida numa integridade que essencialmente no
possui. Da concluirmos que a noo a respeito de um ser, elaborada
por outro ser, sempre incompleta, em relao percepo fsica
inicial. E que o conhecimento dos sres fragmentrio.
Esta impresso se acentua quando investigamos os, por assim dizer,
fragmentos de ser, que nos so dados por uma conversa, um ato, uma
seqncia de atos, uma afirmao, uma informao. Cada um dsses
fragmentos, mesmo considerado um todo, uma unidade total, no
uno, nem contnuo. le permite um conhecimento mais ou menos
adequado ao estabelecimento da nossa conduta, com base num juzo
sbre o outro ser; permite, mesmo, uma noo conjunta e coerente
dste ser; mas essa noo oscilante, aproximativa, descontnua. Os
sres so, por sua natureza, misteriosos, inesperados. Da a psicologia
moderna ter ampliado e investigado sistemticamente as noes de
subconsciente e inconsciente, que explicariam o que h de inslito nas
pessoas que reputamos conhecer, e no entanto nos surpreendem, como
se uma outra pessoa entrasse nelas, invadindo inesperadamente a sua
rea de essncia e de existncia.
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Esta constatao, mesmo feita de maneira no-sistemtica,
fundamental em tda a literatura moderna, onde se desenvolveu antes
das investigaes tcnicas dos psiclogos, e depois se beneficiou dos
resultados destas. claro que a noo do mistrio dos sres,
produzindo as condutas inesperadas, sempre estve presente na criao
de forma mais ou menos consciente, bastando lembrar o mundo das
personagens de Shakespeare. Mas s foi conscientemente desenvolvida
por certos escritores do sculo XIX, como tentativa de sugerir e
desvendar, seja o mistrio psicolgico dos sres, seja o mistrio
metafsico da prpria existncia. A partir de investigaes metdicas em
psicologia, como, por exemplo, as da psicanlise, essa investigao
ganhou um aspecto mais sistemtico e voluntrio, sem com isso
ultrapassar necessriamente as grandes intuies dos escritores que
iniciaram e desenvolveram essa viso na literatura. Escritores como
Baudelaire, Nerval, Dostoievski, Emily Bronte (aos quais se liga por
alguns aspectos, isolado na segregao do seu meio cultural acanhado,
o nosso Machado de Assis), que preparam o caminho para escritores
como Proust, Joyce,Kafka, Pirandello, Gide. Nas obras de uns e outros,
a dificuldade em descobrir a coerncia e a unidade dos sres vem
refletida, de maneira por vzes trgica, sob a forma de
incomunicabilidade nas relaes. ste talvez o nascedouro, em
literatura, das noes de verdade plural (Pirandello), de absurdo
(Kafka), de ato gratuito (Gide), de sucesso de modos de ser no tempo
(Proust), de infinitude do mundo interior (Joyce). Concorrem para isso,
de modo direto ou indireto, certas concepes filosficas e psicolgicas
voltadas para o desvendamento das aparncias no homem e na
sociedade, revolucionando o conceito de personalidade, tomada em si e
com relao ao seu meio. o caso, entre outros, do marxismo e da
psicanlise, que, em seguida obra dos escritores mencionados, atuam
na concepo de homem, e portanto de personagem, influindo na
prpria atividade criadora do romance, da poesia, do teatro.
Essas consideraes visam a mostrar que o romance, ao abordar as
personagens de modo fragmentrio, nada mais faz do que retomar, no
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plano da tcnica de caracterizao, a maneira fragmentria,
insatisfatria, incompleta, com que elaboramos o conhecimento dos
nossos semelhantes. Todavia, h uma diferena bsica entre uma
posio e outra: na vida, a viso fragmentria imanente nossa
prpria experincia; uma condio que no estabelecemos, mas a que
nos submetemos. No romance, ela criada, estabelecida e
racionalmente dirigida pelo escritor, que delimita e encerra, numa
estrutura elaborada, a aventura sem fim que , na vida, o conhecimento
do outro. Da a necessria simplificao, que pode consistir numa
escolha de gestos, de frases, de objetos significativos, marcando a
personagem para a identificao do leitor, sem com isso diminuir a
impresso de complexidade e riqueza. Assim, em Fogo Morto,Jos Lins
do Rgo nos mostrar o admirvel Mestre Jos Amaro por meio da cr
amarela da pele, do olhar raivoso, da brutalidade impaciente, do
martelo e da faca de trabalho, do remoer incessante do sentimento de
inferioridade. No temos mais que sses elementos essenciais. No
entanto, a sua combinao, a sua repetio, a sua evocao nos mais
variados contextos nos permite formar uma idia completa, suficiente e
convincente daquela forte criao f