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Page 1: Apogeu c declínio da felicidade€¦ · Ensaio Viriato Soromenho-Marques Apogeu c declínio da felicidade Temos tendência para afirmar que existe uma separação abrupta entre os

EnsaioViriato Soromenho-Marques

Apogeu c declínio da felicidade

Temostendência para afirmar que

existe uma separação abruptaentre os princípios que regem a

política e a ética. Continuamos a

considerar que, tal como na imortal tragédiade Sófocles, a espada do Estado, represen-tada por Creonte, rei de Tebas, e o impulsoda lei natural, representada pela compaixãode Antígona para com o seu irmão morto,continuam em conflito. Na luta entre a

hubris, a desmesura, do Estado, e a força daliberdade de consciência, parece ser o pri-meiro que continua a prevalecer sem rival.

A VITÓRIA DA «FELICIDADE»... A terrível hipó-tese alternativa, que temos uma compre-ensível dificuldade em assumir, é a de quetalvez a política tenha sido, afinal, capturadapor um modelo ético, sim, mas não por ummodelo fundado no princípio da liberdade.A hipótese de que no grande debate de Se-tecentos entre a ética da liberdade, de Kant,e a ética da utilidade e do cálculo distribu-tivo, de Jeremy Bentham, tenha sido estea ganhar de modo definitivo e absoluto o

combate pelo primado dos princípios. Umavitória tão definitiva, que arrastaria com elao fim da própria tensão entre ética e política.Se aceitamos, como propõe Bentham - e

mais ainda as inumeráveis escolas baseadasna receção da sua obra -, que o princípio da

utilidade, como garantia da felicidade, deve

guiar tanto a ação do indivíduo como as me-didas do governo e as promessas da políticapública, então encontraremos no utilitaris-mo a fórmula perfeita e quantificável quenos garante a unidade do ético e do político.Ou seja, por outras palavras, a realização deuma verdadeira «política moral», mas sobo signo do cálculo empírico da felicidade,numa espécie de radicalização argumenta-tiva de uma vontade totalmente dominada

pela heteronomia dos princípios da ética

(a sua dependência total em relação aocálculo de custo-benefício). Uma espéciede inversão completa do dualismo kantiano.

...E A DERROTA DA LIBERDADE Aquilo que aosolhos dos discípulos de uma ética da liber-dade - a única capaz de alimentar a tensãovital entre ação política e deliberação moral- aparece como a destruição do político,como a demissão da cidadania, a mercan-

tilização do serviço público, a captura da

democracia representativa pelos gruposde interesse, talvez não seja mais do que a

manifestação da ocupação da esfera públicapelo triunfo total de uma ética da felicidadeconcreta, orientada para a conquista da

«terra do leite e do mel», aqui e agora.Se as éticas da liberdade implicavam a ma-

nutenção de um espaço vazio de permanen-te incompletude, um holograma do infinitoético, ou da perfeição da justiça políticasempre por realizar nas pessoas e nascomunidades, a ética triunfante do utilitaris-mo unidimensional teve de nos cegar parao carácter finito do ambiente e do mundo

natural. A Natureza teve ser pensada comoinfinita, pois era ela a base para uma sempremaior intensificação da produção e distri-

buição dos bens de consumo, que davam

corpo tangível à ética da felicidade.

então vivemos, hoje, na época mais vigorosada filosofia, tal como o Ocidente a cunhouhá dois milénios e meio. A profecia, contidana 11. " tese de Marx contra Feuerbach,está em vias de se realizar, embora não no

sentido que o autor de O Capital desejaria.O utilitarismo é hoje uma filosofia mundial

que já não se limita a interpretar o mundo,concentrando-se, absolutamente, na sua

transformação. O resultado desta deman-da de milhares de milhões de criaturashumanas pela felicidade, medida por umabitola estritamente material, será, tudo o pa-rece indicar, a transformação da Terra numdeserto. Nesse desfecho extremo - que só

um evento extraordinário e fora da esferade previsão racional poderia impedir - nãodeixa de brilhar a febre de uma desmesura.Desta vez, contudo, trata-se da hubris, nãoda crueldade política, mas de uma filosofiamoral capaz de honrar, até ao limite da ani-

quilação, as suas promessas de felicidade. ?

O resultado destademanda de milhares

de milhões de criaturashumanas pela felicidade,medidapor uma bitolaestritamente material,será a transformaçãoda Terra num deserto

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