Transcript
  • Traduo

    clemente pereira

    Benjamin alire Senz

  • Copyright da edio original 2012 by Benjamin Alire Senz

    Publicado mediante acordo com Simon & Schuster Books For Young Readers, um selo da Simon & Schuster Childrens Publishing Division.

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou transmitida em nenhuma forma e por nenhum meio, eletrnico ou mecnico, incluindo fotocpia, gravao ou qualquer sistema de armazenamento de informao, sem permisso por escrito da editora.

    O selo Seguinte pertence Editora Schwarcz S.A.

    Grafia atualizada segundo o Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

    ttulo original Aristotle and Dante Discover the Secrets of the Universe

    capa Chlo Foglia

    ilustrao de capa 2012 by Mark Brabant

    lettering de capa e desenhos ao redor 2012 by Sarah J Coleman

    preparao Thais Rimkus

    reviso Renato Potenza Rodrigues e Mariana Cruz

    [2014]Todos os direitos desta edio reservados editora schwarcz s.a.Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 3204532-002 So Paulo spTelefone (11) 3707-3500Fax (11) 3707-3501www.seguinte.com.brwww.facebook.com/[email protected]

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (cip)

    (Cmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

    Senz, Benjamin Alire

    Aristteles e Dante descobrem os segredos do universo /

    Benjamin Alire Senz ; traduo Clemente Pereira. 1a ed. So

    Paulo : Seguinte, 2014.

    Ttulo original: Aristotle and Dante Discover the Secrets

    of the Universe.

    isbn 978-85-65765-35-0

    1. Fico juvenil I. Ttulo.

    14-02805 cdd-028.5

    ndice para catlogo sistemtico:

    1. Fico : Literatura juvenil 028.5

  • A todos os garotos que tiveram de aprender a jogar com regras diferentes.

  • Por que SorrimoS? Por que damoS riSada? Por que nos sentimos ss? Por que somos tristes e confu-sos? Por que lemos poesia? Por que choramos ao ver uma pintura? Por que nosso corao se descontrola quando estamos apaixonados? Por que sentimos vergonha? O que essa coisa no fundo das entranhas chamada desejo?

  • As diferentes regras do vero

    O problema da minha vida era que ela tinha sido ideia de outra pessoa.

  • 13

    Um

    Certa noite de vero, Ca no Sono deSejando

    que o mundo fosse diferente quando eu acordasse. Quando abri os

    olhos de manh, estava tudo igual. Afastei os lenis e permaneci

    deitado, enquanto o calor entrava pela janela aberta.

    Estendi o brao para sintonizar o rdio. Tocava Alone. Droga.

    Alone, de uma banda chamada Heart. No era minha msica

    favorita. No era minha banda favorita. No era meu assunto favo-

    rito. Voc no sabe quanto tempo

    Eu tinha quinze anos.

    Estava entediado.

    Estava infeliz.

    Por mim, o sol poderia ter derretido todo o azul do cu. A o cu

    seria to infeliz quanto eu.

    O locutor dizia coisas irritantes e bvias, como vero! Faz

    calor l fora!, para depois chamar a vinheta antiga do Cavaleiro

    Solitrio; ele gostava de tocar aquilo todas as manhs, achava que

    era um bom jeito de acordar o mundo. Ai, Silver! Quem contra-

    tou esse cara? Ele era pssimo. Acho que pensava que, ao escutar-

    mos a abertura da pera Guilherme Tell, imaginaramos o Cavaleiro

  • 14

    Solitrio e o Tonto cavalgando pelo deserto. Talvez algum devesse

    dizer quele cara que j no tnhamos mais dez anos. Ai, Silver!

    Droga. A voz dele preencheu de novo o ar: Hora de acordar, El

    Paso! Segunda-feira, 15 de junho de 1987! 1987! D pra acredi-

    tar? Um grande feliz aniversrio a Waylon Jennings, que completa

    cinquenta anos hoje!. Waylon Jennings? Aquilo era uma estao

    de rock, caramba! Mas o que o locutor disse em seguida deu a

    impresso de que talvez tivesse crebro. Ele contou como Waylon

    Jennings tinha sobrevivido ao acidente de avio que matara Buddy

    Holly e Richie Valens, em 1959. Para finalizar o comentrio, tocou

    a verso de La bamba de Los Lobos.

    La bamba. Era tolervel.

    Comecei a batucar o cho de madeira com os ps descalos.

    Enquanto balanava a cabea no ritmo da msica, imaginava o que

    Richie Valens teria pensado antes de o avio se espatifar no cho. Ei,

    Buddy! Acabou a msica.

    A msica acabou to cedo. A msica acabou quando mal tinha

    comeado. Era muito triste.

  • 15

    Dois

    entrei na Cozinha. minha me PreParava um

    almoo para as amigas da igreja. Peguei um copo de suco de laranja.

    Minha me sorriu.

    No vai me dar bom-dia?

    Estou pensando no assunto eu disse.

    Bom, pelo menos voc conseguiu sair da cama.

    Foi preciso muito esforo.

    Por que meninos precisam dormir tanto?

    Somos bons nisso. Ela riu da resposta. Mas eu no

    estava dormindo. Estava ouvindo La bamba.

    Richie Valens ela disse baixinho. To triste.

    Igual Patsy Cline.

    Ela concordou com a cabea. s vezes, quando a flagrava can-

    tarolando aquela msica, Crazy, eu abria um sorriso. Era como

    se compartilhssemos um segredo. Minha me tinha uma bela

    voz.

    Acidentes de avio ela murmurou. Acho que estava falan-

    do mais para si mesma do que para mim.

    Talvez Richie Valens tenha morrido jovem mas pelo menos

  • 16

    ele fez alguma coisa. Quer dizer, ele realmente fez alguma coisa. E

    eu? O que eu fiz?

    Voc tem tempo ela disse. Ainda tem muito tempo.

    Eterna otimista.

    Bom, primeiro preciso virar gente eu disse.

    Ela fez uma cara engraada.

    Tenho quinze anos completei.

    Sei quantos anos voc tem.

    Com quinze anos voc ainda no considerado gente.

    Minha me riu. Ela era professora de colegial. Eu sabia que em

    parte ela concordava comigo.

    E ento? Por que essa grande reunio?

    Vamos reorganizar o banco de alimentos.

    Banco de alimentos?

    Para distribuir alimentos pra quem no tem.

    Minha me se sensibilizava com a pobreza. J fora pobre. Tinha

    passado por situaes que eu jamais passaria.

    Entendi comentei.

    Talvez voc possa ajudar

    Claro concordei.

    Eu odiava ser escalado para essas funes. O problema da minha

    vida era que ela tinha sido ideia de outra pessoa.

    O que voc vai fazer hoje? a pergunta soou como um

    desafio.

    Vou entrar em uma gangue.

    No tem graa.

    Sou mexicano. No isso que a gente faz?

  • 17

    J disse que no tem graa.

    No tem graa mesmo eu disse, por fim. , no tinha graa.

    Precisava sair de casa. No que tivesse algum lugar para onde ir.

    Me sentia sufocado quando minha me convidava as amigas da

    igreja para ir em casa. No era porque elas tinham mais de cinquenta

    anos No, no era. Nem por causa dos comentrios sobre como eu

    estava virando homem to rpido. Quer dizer, eu sabia que era bes-

    teira. E, dentre todas as besteiras possveis, aquela era at simptica,

    inofensiva e carinhosa. Dava para suportar quando elas me pegavam

    pelos ombros e diziam: Deixe-me olhar para voc. Djame ver. Ay,

    que muchacho tan guapo. Te pareces a tu papa. No que houvesse

    alguma coisa para ver. Era s eu. Tudo bem, eu era mesmo parecido

    com meu pai. Mas no achava aquilo grande coisa.

    O que realmente me incomodava era o fato de minha me ter

    mais amigos do que eu. Tem coisa mais triste?

    Resolvi ir nadar na piscina do Memorial Park. Uma ideia boba,

    mas pelo menos era minha.

    Enquanto seguia em direo porta, minha me pegou a toa-

    lha velha apoiada em meu ombro e trocou por uma melhor. O

    mundo da minha me tinha algumas regras que eu simplesmente

    no entendia. E as regras no paravam nas toalhas.

    Ela encarou minha camiseta.

    Eu sabia reconhecer um olhar de censura. Antes que ela me

    fizesse trocar de roupa, retribu o olhar.

    minha camiseta predileta falei.

    Voc no usou ontem?

    Sim confirmei. do Carlos Santana.

  • 18

    Eu sei que ela disse.

    Meu pai me deu de aniversrio.

    Se bem me lembro, voc no demonstrou tanta empolgao

    quando abriu o presente.

    Eu esperava outra coisa.

    Outra coisa?

    Sei l, outra coisa. Uma camiseta de aniversrio? Olhei

    para ela e completei: Acho que eu no entendo ele.

    Ele no to complicado, Ari.

    Mas ele no fala.

    s vezes as pessoas falam, mas no dizem a verdade.

    Talvez eu disse. S que agora eu gosto da camiseta.

    D pra notar ela comentou, com um sorriso no rosto.

    Eu tambm estava sorrindo.

    O papai me disse que comprou no primeiro show que ele foi.

    Eu estava junto. Lembro bem. J est velha e gasta.

    Tem um significado sentimental.

    Ah, claro.

    Me, vero.

    Sim ela disse. vero.

    Regras diferentes eu disse.

    , regras diferentes.

    Eu adorava as regras do vero. Minha me as tolerava.

    Ela estendeu a mo e passou os dedos no meu cabelo.

    S prometa que no vai usar de novo amanh.

    Tudo bem. Prometo. Mas s se voc prometer que no vai

    colocar na secadora.

  • 19

    Talvez voc mesmo devia lavar ela disse, achando graa.

    S no v se afogar.

    Retribu o sorriso.

    Se acontecer, no se desfaa do meu cachorro.

    O negcio do cachorro era piada. No tnhamos animais de

    estimao.

    Minha me entendia meu senso de humor; e eu, o dela. Dava

    certo. No que ela no tivesse seus mistrios. Mas uma coisa eu de

    fato entendia: por que meu pai tinha se apaixonado por ela. J o

    porqu de ela ter se apaixonado por meu pai era algo que no me

    entrava na cabea. Uma vez, quando eu tinha cinco ou seis anos,

    fiquei com muita raiva. Queria que ele brincasse comigo, e ele era

    to distante. Parecia que eu nem estava l. Com toda minha raiva

    infantil, perguntei minha me:

    Como voc pde casar com esse cara?

    Ela sorriu e passou os dedos no meu cabelo. Sempre fazia isso.

    Ento me olhou bem nos olhos e respondeu tranquilamente:

    Seu pai era lindo.

    Minha me nem sequer hesitou.

    Fiquei com vontade de perguntar para onde tinha ido toda

    aquela beleza.

  • 20

    Trs

    deBaixo daquele Calor, at oS lagartoS SaBiam

    que no era dia de ficar rastejando por a. At os passarinhos esta-

    vam quietos. Os remendos de asfalto nas ruas derretiam. O cu

    tinha um azul plido, e me veio a ideia de que talvez as pessoas

    tivessem fugido da cidade e do calor. Ou talvez tivessem morrido

    como nos filmes de fico cientfica , e eu estava sozinho. Mas

    bem no momento em que essas coisas me passavam pela cabea,

    um bando de moleques do bairro me ultrapassou de bicicleta, o

    que me fez desejar realmente estar sozinho. Riam e faziam baguna,

    aparentemente se divertindo. Um dos caras gritou para mim:

    Ei, Mendoza! Passeando com seus amigos?

    Acenei, fingindo levar na esportiva, ha, ha, ha. E depois mostrei

    o dedo do meio.

    Um dos caras parou, deu meia-volta e comeou a me cercar

    com a bicicleta.

    Faz de novo ele desafiou.

    Mostrei o dedo outra vez.

    Ele parou a bicicleta bem na minha frente e tentou me intimi-

    dar com o olhar.

  • 21

    No funcionou. Eu sabia quem ele era. O irmo dele, Javier,

    j tinha mexido comigo uma vez. E eu tinha socado a cara dele.

    Viramos inimigos. No me arrependia. Bom, eu tinha personali-

    dade difcil. Admito.

    Ele fez uma voz de mau. Como se me assustasse.

    No me provoca, Mendoza.

    Mostrei o dedo mais uma vez, apontando para a cara dele como

    se fosse uma arma. Ele logo desceu da bicicleta. Eu tinha medo de

    muita coisa mas no de caras como ele.

    A maioria no mexia comigo. Nem mesmo os que andavam

    em bando. Eles passaram de novo por mim com suas bicicletas,

    gritando besteiras. Tinham entre treze e catorze anos. Mexer com

    garotos como eu era a diverso deles. Assim que as vozes ficaram

    distantes, comecei a sentir pena de mim mesmo.

    Sentir pena de mim mesmo era uma arte. Acho que parte de

    mim gostava disso. Talvez tivesse a ver com o momento em que

    nasci. No sei, acho que influa. No me agradava o fato de ser

    pseudo filho nico. Era assim que eu me via. Era filho nico sem ser

    de verdade. Um saco.

    Minhas irms eram gmeas e tinham doze anos a mais do que

    eu. Doze anos era uma vida, srio. Sempre faziam que eu me sen-

    tisse um beb, um brinquedo, um trabalho de escola ou um animal

    de estimao. Eu gosto de cachorros, mas s vezes tinha a sensao

    de que eu mesmo no passava de uma mascote da famlia. Em espa-

    nhol, o termo para o cachorro de estimao: mascoto. Mascote.

    timo. Ari, a mascote da famlia.

    Meu irmo era onze anos mais velho. Ele era ainda mais

  • 22

    inacessvel que minhas irms. Eu no podia nem mencionar o

    nome dele. Afinal, quem gosta de falar de irmos mais velhos que

    esto na cadeia? Meu pai e minha me no, com certeza. Menos

    ainda minhas irms. Talvez todo aquele silncio sobre meu irmo

    mexesse comigo. Acho que sim. No falar pode deixar algum

    muito solitrio.

    Meus pais eram jovens e batalhadores quando minhas irms

    e meu irmo nasceram. Batalhador a palavra favorita de meus

    pais. Em algum momento entre os trs filhos e a tentativa de termi-

    nar a faculdade, meu pai se tornou fuzileiro naval. E ento partiu

    para a guerra.

    A guerra o transformou.

    Nasci quando ele voltou para casa.

    s vezes, penso em todas as cicatrizes de meu pai. No corao.

    Na cabea. Em toda parte. No fcil ser filho de um homem que

    j esteve na guerra. Aos oito anos, ouvi uma conversa da minha me

    com a tia Ophelia ao telefone.

    Acho que a guerra nunca vai acabar para ele.

    Mais tarde, perguntei tia Ophelia se aquilo era verdade.

    ela confirmou. verdade.

    Mas por que a guerra no deixa ele em paz?

    Porque seu pai tem conscincia ela respondeu.

    O que aconteceu com ele na guerra?

    Ningum sabe.

    E por que ele no conta?

    Porque no consegue.

    Era isso. Quando eu tinha oito anos, no sabia nada sobre guerras.

  • 23

    No sabia sequer o que era conscincia. Tudo que sabia era que

    s vezes meu pai ficava triste. Eu odiava quando ele ficava triste.

    Aquilo me deixava triste tambm. E eu no gostava de tristeza.

    Ento eu era filho de um homem que tinha o Vietn dentro

    de si. Sim, eram muitos motivos trgicos para sentir pena de mim

    mesmo. Ter quinze anos no ajudava. s vezes achava que ter

    quinze anos era a pior tragdia de todas.

  • 24

    Quatro

    eu PreCiSava tomar uma duCha anteS de entrar

    na piscina. Era uma das regras. Pois , regras. Odiava tomar banho

    com um bando de estranhos. No sei por qu, simplesmente no

    gostava. aquilo, alguns caras falam sem parar, como se fosse nor-

    mal entrar no chuveiro com um monte de gente e contar da pro-

    fessora que voc odeia, do ltimo filme que voc viu ou da garota

    de quem voc est a fim. Eu no gostava; no tinha nada para falar.

    Caras no chuveiro. No era minha praia.

    Caminhei at a piscina, sentei na beirada da parte rasa e botei

    os ps na gua.

    O que voc faz numa piscina quando no sabe nadar? Aprende.

    Acho que essa era a resposta. Eu tinha ensinado meu corpo a boiar

    na gua. Sem perceber, aplicara um dos princpios da fsica. E o

    melhor que tinha feito a descoberta por mim mesmo.

    Por mim mesmo. Estava apaixonado por essa expresso. Eu no

    era muito bom em pedir ajuda, um mau hbito herdado do meu

    pai. E, alm disso, os instrutores de natao que se consideravam

    salva-vidas eram uma droga. No tinham o menor interesse em

    ensinar um pivete raqutico de quinze anos a nadar. Estavam mais

  • 25

    interessados nas garotas que comeavam a ter peitos. Eram obce-

    cados por peitos. Essa era a verdade. Ouvi um dos salva-vidas con-

    versar com outro enquanto deveria estar de olho num grupo de

    crianas pequenas.

    Uma garota como uma rvore. D vontade de escalar e

    arrancar todas as folhas.

    O outro salva-vidas riu.

    Voc um babaca disse.

    No, sou um poeta reagiu o primeiro. Um poeta do

    corpo.

    E os dois caram na gargalhada.

    Sim, claro, aqueles dois eram os novos Walt Whitman. Pois ,

    meu problema com garotos que eu no fazia a menor questo

    de ficar perto deles. Quer dizer, me causavam desconforto. No sei

    por qu, exatamente. que Sei l, eu no fazia parte daquele

    mundo. Acho que o fato de eu ser um deles me deixava absur-

    damente envergonhado. E a possibilidade de crescer e virar um

    daqueles babacas me deprimia. Uma garota como uma rvore?

    Sim, e um cara to inteligente quanto um toco de madeira infes-

    tado de cupins. Minha me diria que era apenas uma fase. Logo

    teriam seus crebros de volta. Ah, claro.

    Talvez a vida fosse mesmo s uma srie de fases uma depois

    da outra. Talvez em alguns anos eu passaria pela mesma fase em

    que os salva-vidas de dezoito anos estavam. No que eu acreditasse

    na teoria da minha me sobre fases. Aquilo no parecia ser uma

    explicao estava mais para uma desculpa qualquer. Acho que

    minha me no entendia a fundo os garotos. Nem eu. E eu era um.

  • 26

    Tinha a sensao de que havia algo de errado comigo. Acho que

    eu era um mistrio at para mim mesmo. Que saco. Eu tinha srios

    problemas.

    Uma coisa era certa: pedir para um daqueles idiotas me ensinar

    a nadar estava fora de questo. Melhor sofrer sozinho. Melhor mor-

    rer afogado.

    Ento fiquei boiando no canto. No que fosse muito divertido.

    Foi ento que ouvi uma voz meio esganiada.

    Posso ensinar voc a nadar.

    Fui at a lateral da piscina e fiquei de p, os olhos quase fecha-

    dos por causa do sol. Ele estava sentado na beirada. Encarei-o com

    desconfiana. Um cara que se oferece para ensinar algum a nadar

    com certeza no tem nada melhor para fazer da vida. Dois caras

    sem nada para fazer da vida? Quo divertido poderia ser?

    Eu tinha uma regra: melhor se entediar sozinho do que acompa-

    nhado. E quase sempre seguia essa ideia. Talvez por isso no tivesse

    amigos.

    Ele me encarava. Esperando. Ento, repetiu:

    Posso ensinar voc a nadar, se quiser.

    Por algum motivo, gostei da voz dele. Soava como se estivesse

    gripado, meio rouco.

    Voc fala de um jeito esquisito comentei.

    alergia ele disse.

    Alergia a qu?

    Ao ar respondeu.

    A resposta me fez rir.

    Meu nome Dante ele disse.

  • 27

    Seu nome me fez rir ainda mais.

    Desculpe eu disse.

    Tudo bem. As pessoas costumam rir do meu nome.

    No, no acrescentei. que o meu Aristteles.

    Seus olhos brilharam. Tipo, o cara estava disposto a escutar cada

    palavra que eu dissesse.

    Aristteles repeti.

    Ento ambos perdemos o controle. De tanto rir.

    Meu pai professor de ingls em uma faculdade ele disse.

    Pelo menos o seu nome tem uma explicao. Meu pai car-

    teiro. Aristteles o nome do meu av.

    E ento pronunciei o nome do meu v, caprichando no sotaque

    mexicano:

    Aristotiles. E, na verdade, meu primeiro nome Angel.

    Emendei em espanhol: Angel.

    Seu nome Angel Aristteles?

    Sim. Esse o meu nome de verdade.

    Rimos de novo. No conseguamos parar. Perguntava a mim

    mesmo do que estvamos rindo. Era s dos nomes? Ou ramos por

    estarmos aliviados? Felizes? O riso era outro mistrio da vida.

    Eu costumava dizer s pessoas que meu nome era Dan.

    Sabe, s tirando duas letras. Mas parei de fazer isso. No era

    verdade. E, no fim das contas, fui descoberto. Me senti um men-

    tiroso idiota. Tive vergonha de mim mesmo por ter tido vergo-

    nha de mim mesmo. No gostei de me sentir assim explicou,

    dando de ombros.

    Todo mundo me chama de Ari.

  • 28

    Prazer, Ari.

    Gostei do jeito como disse Prazer, Ari. As palavras soaram

    sinceras.

    Tudo bem eu disse , me ensine a nadar.

    Acho que pronunciei as palavras como se estivesse fazendo um

    favor a ele. Mas ele no percebeu ou no se importou.

    Dante era um professor detalhista. Sabia nadar muito bem,

    entendia tudo sobre o movimento dos braos e das pernas e a respi-

    rao. Entendia como o corpo funcionava na gua. Ele amava e res-

    peitava a gua. Compreendia suas belezas e perigos. Falava de nadar

    como um estilo de vida. Ele tinha quinze anos. Quem era aquele

    cara? Parecia meio frgil, mas no era. Era disciplinado, rgido e

    inteligente; e no fingia ser burro e comum. No era nem um nem

    outro.

    Era engraado, focado e impetuoso. Quer dizer, podia ser im pe-

    tuoso. E no tinha nenhuma maldade. Eu no entendia como

    algum podia viver em um mundo mau e no absorver um pouco

    dessa maldade. Como um cara era capaz de viver sem um pouco de

    maldade?

    Dante se tornou mais um mistrio em um mundo cheio de

    mistrios.

    Durante todo aquele vero, nadamos, lemos quadrinhos e livros

    e conversamos sobre eles. Dante tinha revistas do Super-Homem

    que eram de seu pai. Ele adorava. Tambm gostava de Archie &

    Veronica. Eu odiava aquela merda.

    No merda nenhuma ele reclamava.

    J eu gostava de Batman, Homem-Aranha e Hulk.

  • 29

    Sombrio demais Dante disse.

    Falou o cara que gosta de Corao das trevas, do Conrad.

    diferente ele rebateu. Conrad escreveu literatura.

    Eu sempre defendia que histrias em quadrinhos tambm eram

    literatura. S que literatura era coisa sria para algum como Dante.

    No me lembro de ter ganhado uma discusso com ele. Ele argu-

    mentava melhor. E lia melhor. Li o livro do Conrad por causa dele.

    Quando terminei, disse que tinha odiado.

    Apesar de que verdade. comentei. O mundo um

    lugar sombrio. Nisso Conrad tem razo.

    Talvez o seu mundo, Ari. O meu no.

    Pois eu disse.

    Pois ele disse.

    A verdade que eu tinha mentido para Dante. Amei o livro.

    Achei a coisa mais linda que j tinha lido. Quando meu pai viu o

    que eu estava lendo, me contou que era um de seus livros prediletos.

    Tive vontade de perguntar se ele tinha lido antes ou depois do Vietn.

    Mas no adiantava fazer perguntas ao meu pai. Ele nunca respondia.

    Assumi que Dante lia porque gostava. J eu lia porque no tinha

    nada melhor para fazer. Ele analisava as coisas. Eu apenas lia. Acho

    que precisava procurar mais palavras no dicionrio do que ele.

    Eu era mais escuro do que ele. E no falo apenas da cor da pele.

    Ele disse uma vez que eu tinha uma viso trgica da vida.

    por isso que voc gosta do Homem-Aranha.

    que eu sou muito mexicano. O povo mexicano trgico.

    Pode ser ele falou.

    Voc o americano otimista.

  • 30

    Isso uma ofensa?

    Talvez respondi.

    Rimos. Sempre ramos.

    Dante e eu no ramos parecidos. Mas tnhamos algumas coisas

    em comum. Para comear, nenhum de ns tinha autorizao para

    assistir tv durante o dia. Nossos pais no gostavam do que a tv fazia

    com a cabea dos garotos. Ambos crescemos com discursos mais ou

    menos assim: Voc um menino! Saia da e v fazer alguma coisa!

    Tem um mundo inteiro l fora sua espera.

    Dante e eu fomos os ltimos garotos dos Estados Unidos a cres-

    cer sem tv. Um dia, ele me perguntou:

    Voc acha que nossos pais esto certos? Que tem um mundo

    inteiro l fora nossa espera?

    Duvido foi minha resposta.

    Ele riu.

    Ento, tive uma ideia.

    Vamos pegar um nibus e ver o que tem l fora.

    Dante sorriu. Ns dois adorvamos andar de nibus. s vezes,

    passvamos a tarde inteira fazendo isso.

    Gente rica no anda de nibus falei para Dante.

    por isso que a gente gosta.

    Talvez eu disse. A gente pobre?

    No ele respondeu, abrindo um sorriso. Mas, se fugsse-

    mos de casa, ns dois seramos pobres.

    Achei a ideia muito instigante.

    Voc teria coragem? questionei. Teria coragem de fugir

    de casa?

  • 31

    No.

    Por que no?

    Quer ouvir um segredo?

    Claro.

    Sou louco pela minha me e pelo meu pai.

    Abri um sorriso sincero. Nunca tinha ouvido algum falar

    assim dos pais. Quer dizer, ningum era louco pelos pais. Exceto

    Dante.

    Ento ele cochichou no meu ouvido:

    Acho que aquela mulher dois bancos frente est tendo um

    caso.

    Como voc sabe? cochichei de volta.

    Ela tirou a aliana assim que entrou no nibus.

    Concordei com a cabea e sorri.

    Ns inventvamos histrias sobre os outros passageiros.

    Quem sabe eles no imaginavam histrias para ns.

    Nunca fui muito prximo de ningum. Eu era um solitrio.

    Tinha jogado basquete, beisebol e passado pelos lobinhos e ten-

    tado ser escoteiro. Sempre mantendo distncia dos outros garotos.

    Nunca, jamais me sentira parte daquele universo.

    Garotos. Observava-os. Estudava-os.

    No fim das contas, sempre achei a maioria dos caras desinteres-

    sante. Na verdade, os desprezava.

    Talvez me sentisse um pouco superior. No sei se superior

    era a palavra. S no sabia como falar com eles, como ser eu

    mesmo perto deles. Andar com outros caras no me dava a sensa-

    o de ser mais inteligente. Andar com outros caras me dava a

  • 32

    sensao de ser burro e deslocado. Era como se todos fizessem

    parte de um clube do qual eu no era scio.

    Quando cheguei idade de entrar para os escoteiros, disse a

    meu pai que no queria. No aguentava mais.

    Tente por um ano meu pai falou.

    Meu pai sabia que eu era meio briguento. Sempre me passava

    sermes sobre violncia fsica. Ele queria me manter longe das gan-

    gues. Queria evitar que eu fosse como meu irmo e acabasse na

    cadeia. Assim, por causa do meu irmo, de cuja existncia ningum

    parecia se lembrar, eu precisava ser um bom escoteiro. Que saco.

    Por que precisava ser um bom menino s por ter um irmo malo-

    queiro? Eu odiava essa lgica dos meus pais.

    Fiz a vontade do meu pai. Tentei por um ano. Odiei tudo, com

    exceo das aulas de primeiros-socorros. Quer dizer, eu no gostava

    nem um pouco da ideia de assoprar dentro da boca de algum.

    Me dava desespero. Por algum motivo, porm, aquilo tudo me fas-

    cinava. Aprender como fazer o corao de algum voltar a bater.

    Eu no entendia muito como era possvel. Assim que ganhei uma

    insgnia por saber reanimar algum, desisti. Voltei para casa e entre-

    guei a insgnia para o meu pai.

    Acho que voc est cometendo um erro foi tudo o que

    ele disse.

    No vou acabar atrs das grades. Era isso que eu queria dizer.

    No entanto, apenas falei:

    Se voc me obrigar a voltar l, juro que comeo a fumar

    maconha.

    Meu pai me lanou um olhar estranho.

  • 33

    A vida sua disse.

    Como se fosse verdade. Outra caracterstica do meu pai: ele

    nunca dava sermes. No sermes de verdade. E isso me deixava

    louco. Ele no era mau. Tambm no era estourado. Soltava frases

    curtas: A vida sua; Tente; Tem certeza de que isso que voc

    quer?. Por que no podamos simplesmente conversar? Como eu

    o conheceria, se ele no deixava? Eu odiava isso.

    Sobrevivi bem. Tinha colegas na escola. Mais ou menos. No era

    popular. Como poderia ser? Para ser conhecido, era preciso fazer

    as pessoas acreditarem que voc era divertido e interessante. E eu

    simplesmente no era um bom fingidor.

    Havia dois garotos com quem eu costumava andar, os irmos

    Gomez. S que eles se mudaram. E duas garotas, Gina Navarro

    e Susie Byrd, tinham como passatempo infernizar minha vida.

    Garotas. Tambm eram um mistrio. Tudo era um mistrio.

    Mas no sofri tanto. Talvez no fosse amado por todos, mas tam-

    pouco era um daqueles garotos que todos odiavam.

    Eu era bom de briga. Por isso as pessoas me deixavam em paz.

    Eu era praticamente invisvel. Acho que gostava de ser assim.

    At que surgiu Dante.