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A474 Watson, Thomas As bem aventuranças./ Thomas Watson; tradução e adaptação Silvio Dutra Alves. – Rio de Janeiro, 2015. 107p.; 14,8x21cm Título original: The beatitudes 1. Teologia. 2. Alves, Silvio Dutra. 3. Vida Cristã. 4. Mansos. 5. Humildes. 6. Puros. 7. Pacificadores. I. Título.
CDD 252
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Sumário
Introdução........................................................... 4
1 – Os Pobres de Espírito................................. 14
2 – Os que Choram............................................ 29
3 – Os Mansos.................................................... 47
4 – Os Que Têm Fome e Sede de Justiça........ 58
5 – Os Misericordiosos...................................... 65
6 – Os Puros de Coração.................................. 76
7 – Os Pacificadores......................................... 90
8 – Os Perseguidos........................................... 102
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Introdução
Jesus, pois, vendo as multidões, subiu ao monte; e,
tendo se assentado, aproximaram-se os seus
discípulos,
2 e ele se pôs a ensiná-los, dizendo:
3 Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus.
4 Bem-aventurados os que choram, porque eles
serão consolados.
5 Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra.
6 Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça porque eles serão fartos.
7 Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia.
8 Bem-aventurados os limpos de coração, porque eles verão a Deus.
9 Bem-aventurados os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus.
10 Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus.”.
(Mt 5.1-10).
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As palavras deste sermão pregado por nosso Senhor Jesus Cristo devem ser fixadas permanentemente
pelos seus ministros nas memórias dos seus
ouvintes, porque há muitos que têm uma memória ruim conforme se diz em Tiago 1.25, e as suas
recordações escoam facilmente tal como a água que
sai de um recipiente.
Aqueles que têm o encargo de conduzirem os espíritos dos homens no caminho do céu devem lembrar que assim como não se pode ter um sangue
enriquecido sem um intestino que funcione bem,
de igual modo se uma verdade não ficar retida na
memória, ela nunca poderá, como diz o apóstolo Paulo em I Tim 4.6, nos nutrir com as palavras da fé.
Com que frequência o diabo, a ave do ar, apanha a boa semente que é semeada!
Quantos sermões o diabo tem roubado!
É uma triste verdade que as pessoas não se permitam serem furtadas tão facilmente de seus
bens materiais, mas dão pouca ou nenhuma atenção
ao fato de o diabo lhes furtar continuamente o alimento espiritual, através do qual elas podem ser
fortalecidas na fé.
Por isso os ministros de Cristo devem sempre brilhar não como velas ou lâmpadas, nem mesmo
como planetas, mas como estrelas no firmamento de glória, porque eles são estas estrelas que devem
brilhar nas mãos do Senhor, como se vê em Apo 1.20;
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para que possam iluminar o caminho que conduz os pecadores à salvação.
A honra de converter almas não foi dada por Deus aos anjos, mas aos ministros do evangelho.
Deus confiou aos Seus ministros a maioria das Suas joias preciosas, as Suas verdades e as almas das
pessoas que pertencem a Ele.
Por isso o púlpito é mais elevado do que o trono de qualquer rei terreno, porque o ministro verdadeiramente constituído representa ninguém
menos do que o próprio Deus.
Agora, quanto ao rebanho do Senhor: se os ministros têm que aproveitar todas as
oportunidades para pregarem, o rebanho por sua vez, tem que aproveitar todas as oportunidades para
ouvir e colocar em prática as coisas que ouve.
Quando a Palavra de Deus é pregada, o pão da vida é repartido a todos, e este pão é mais precioso do que
ouro e prata com se diz no Sl 119.72.
Na Palavra pregada, céu e salvação são oferecidos a
você.
Jesus começou o Seu sermão no Monte com bem-aventuranças que contêm promessas e bênçãos.
O povo de Deus se encontra com muitas dificuldades e desânimos, e a marcha dos crentes
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não é somente perigosa e cansativa, como o próprio
coração deles está sempre pronto a desfalecer.
Não é, portanto, para se estranhar que Jesus tenha colocado diante dos crentes a coroa da bem-
aventurança para animar a sua coragem e inflamar o seu zelo.
A bem-aventurança é o alvo que deve ser atingido, é o centro do qual devem partir todas as linhas da vida;
é a flor da alegria dos crentes.
É aquela condição abençoada na qual devem ser achados os servos de Jesus, conforme ele cita em Mt
24.46:
“Bem-aventurado aquele servo a quem o seu senhor, quando vier, achar assim fazendo.”.
A bem-aventurança está ligada a uma condição de alma, a um estado de espírito, a uma atitude de
estrita obediência à Palavra de Deus, em todos os
deveres ordenados nela.
Assim a bem-aventurança não consiste na
aquisição de coisas mundanas, na aquisição de bens naturais e terrenos.
Cristo não diz: “Bem-aventurados são os ricos”, ou “Bem-aventurados são os nobres”, contudo muitos
idolatram estas coisas.
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Os filósofos pagãos ensinam que bem-aventurança é ter suficiência de subsistência e prosperar no mundo.
Mas não há muitos crentes que parecem ser desta mesma opinião filosófica?
Poucos chegam a entender que a árvore da bem-aventurança não cresce num paraíso terrestre.
Deus não amaldiçoou a terra por causa do pecado? Como vemos em Gên 3.17?
Contudo, muitos estão cavando para acharem a sua felicidade aqui, como se eles pudessem achar uma
bênção numa maldição.
Nestas profundidades terrenas Salomão cavou mais do que qualquer outro homem e chegou à conclusão
que tudo deste mundo é vaidade, enfado e canseira,
dando um firme testemunho de que é somente em
Deus que se pode satisfazer verdadeiramente o espírito, e alcançar a condição da bem-aventurança.
As coisas terrenas não podem satisfazer aos
anelos do espírito e assim nunca tornarem uma pessoa bem-aventurada, porque estas coisas são
transitórias, passageiras, e por isso Paulo diz que
elas não são uma realidade permanente, senão uma aparência passageira, como lemos suas palavras em
I Cor 7.31:
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“e os que usam deste mundo, como se dele não usassem em absoluto, porque a aparência deste
mundo passa.”.
O dom da vida que reside no espírito é muito mais do
que o sustento do corpo físico.
É por isso que Jesus diz o que lemos em seu ensino sobre esta verdade em Mt 6.25:
“Por isso vos digo: Não estejais ansiosos quanto à vossa vida, pelo que haveis de comer, ou pelo que
haveis de beber; nem, quanto ao vosso corpo, pelo
que haveis de vestir. Não é a vida mais do que o alimento, e o corpo mais do que o vestuário?”.
A bem-aventurança não se encontra de fato nas coisas terrenas porque elas não podem aquietar o
coração atribulado. Elas não podem trazer alívio e
livramento ao coração que está sendo batido pelas batalhas espirituais.
A bem-aventurança não se encontra nas coisas terrenas porque é exatamente nelas que
encontramos a maior fonte de tentação para nos
afastar da comunhão com Deus, conforme vemos
no dizer do apóstolo João em I Jo 2.15 a 17:
“15 Não ameis o mundo, nem o que há no mundo. Se alguém ama o mundo, o amor do Pai não está nele.
16 Porque tudo o que há no mundo, a concupiscência da carne, a concupiscência dos
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olhos e a soberba da vida, não vem do Pai, mas sim do mundo.
17 Ora, o mundo passa, e a sua concupiscência; mas aquele que faz a vontade de Deus, permanece para
sempre.”.
A bem-aventurança que Deus tem para os seus filhos não é fugaz como todas as riquezas deste
mundo; e não fere os nossos corações como tais riquezas, porque não há o temor de perdê-las.
Se nós não tivermos estas coisas terrenas, não seremos amaldiçoados, nem sequer podemos ser
mais santificados por causa delas.
E devemos saber que é grande a tentação para entesourar riquezas para o próprio dano daquele que o fizer, como se diz em Eclesiastes 5.13: “Há um
grave mal que vi debaixo do sol: riquezas foram
guardadas por seu dono para o seu próprio dano;”.
Definitivamente, não é no acúmulo de bens
terrenos que devemos colocar todo o nosso empenho e esperança de encontrar a bem-
aventurança.
É com todas estas coisas em vista que Paulo afirma o que lemos em I Tim 6.9,10:
“9 Mas os que querem tornar-se ricos caem em tentação e em laço, e em muitas concupiscências
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loucas e nocivas, as quais submergem os homens na
ruína e na perdição.
10 Porque o amor ao dinheiro é raiz de todos os males; e nessa cobiça alguns se desviaram da fé, e se traspassaram a si mesmos com muitas dores.”.
Muito bem. Tendo mostrado em que a bem-aventurança não consiste, eu mostrarei agora em
que ela consiste:
Em primeiro lugar, consiste em alegria, em regozijo e gozo pela certeza das coisas que o espírito possui.
Um homem pode possuir uma propriedade e contudo não desfrutá-la. Ele pode ter o domínio da coisa mas não o seu conforto. Mas a verdadeira bem-
aventurança sempre produz prazer na alma.
Em segundo lugar, a bem-aventurança melhora
a alma, e a enobrece, tornando-a mais preciosa para Deus e para o seu próprio possuidor.
A bem-aventurança traz deleite verdadeiro e duradouro.
Na verdadeira bem-aventurança há variedade. E somente em Jesus há a plenitude de todas as coisas das quais necessita o nosso espírito, como se vê em
Col 1.19.
A verdadeira bem-aventurança tem a eternidade
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estampada nela, e deve ser inabalável, algo que não admita nenhuma mudança ou alteração.
O crente já se encontra abençoado em certo sentido. Somente o fato de ter escapado da condenação eterna por estar em Cristo já é uma grande bênção.
Mas há muitas bênçãos ocultas em Cristo que o
crente é convocado a buscar através de uma vida
devotada a Deus.
Simei amaldiçoou Davi mas ele não se importou, ainda que em grande angústia e tribulação, porque
tinha a convicção que ele era um abençoado de
Deus.
Os santos são coparticipantes da natureza divina como se afirma em II Pe 1.4. Eles foram abençoados por Deus com todas as bênçãos espirituais nas
regiões celestes em Cristo como se vê em Ef 1.3.
Os crentes têm a semente de Deus neles (I Jo 3.9), e esta semente é a semente da bem-aventurança.
A flor da glória nasce da semente da graça.
A graça e a glória não diferem em tipo mas em grau.
A graça é a raiz e a glória o fruto.
A graça é a gloria no amanhecer, e a glória é a graça no entardecer.
A graça é o primeiro elo da corrente da bem-
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aventurança.
Mas todo aquele que tem o primeiro elo da corrente na sua mão, tem a posse da corrente inteira com
todos os seus demais elos.
Os santos já são bem-aventurados porque os seus pecados não lhes serão mais imputados para juízo
condenatório. Toda a dívida dos seus pecados foi paga por Cristo na cruz.
Os santos já são bem-aventurados porque têm o selo do Espírito Santo. Eles têm todas as coisas desta vida
cooperando para o seu bem. Tanto a prosperidade
quanto a adversidade pode torná-los melhores, quer em gratidão, quer em devoção, santificação e
adoração.
Os santos já são bem-aventurados porque eles podem ser achados debaixo da cruz, mas não mais
da maldição.
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1 – Os Pobres de Espírito
Falemos agora sobre a primeira bem-
aventurança.
O Senhor Jesus diz em Mateus 5.3: “Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o
reino dos céus.”.
Nós podemos observar o toque e aroma da divindade neste sermão do Senhor, o qual vai além de toda a filosofia humana.
Na verdade ele vai no sentido contrário da filosofia humana, porque aqui se diz que a pobreza produz
riquezas, e não somente isto, que aquele que é
enriquecido pela pobreza aqui referida, possui um reino.
De igual modo, nós veremos na bem-aventurança que se segue a esta primeira, que o choro, a tristeza,
produz conforto.
Diz-se que a água das lágrimas acenderá a chama da verdadeira alegria.
E mais ainda, que a perseguição trará felicidade, pois se diz que felizes são os perseguidos por causa da justiça.
Observe como diferem a doutrina de Cristo e a opinião dos homens carnais. Eles pensam que bem-
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aventurados são os ricos, mas Cristo diz que bem-
aventurado é o pobre de espírito.
O mundo pensa que bem-aventurados são aqueles que se encontram no pináculo da glória mundana,
mas Cristo diz que bem-aventurados são os que
estão no vale.
Aqueles que usariam as joias de Cristo, mas que recusam a Sua cruz, são estranhos ao verdadeiro
cristianismo.
Observe a conexão entre a graça e a sua recompensa.
Aqueles que são pobres de espírito terão o reino de Deus.
Nosso Salvador encoraja os homens à santidade
associando mandamentos com promessas.
Ele amarra dever e recompensa juntamente.
Uma parte destes versículos das bem-aventuranças consiste no dever e a outra parte consiste na
recompensa.
Nós observamos também nas bem-aventuranças que elas estão encadeadas e uma conduz a outra.
Aquele que tem pobreza de espírito é quebrantado.
Aquele que é quebrantado é submisso.
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Aquele que é submisso é misericordioso e assim por diante.
Nisto consiste a diferença entre um verdadeiro filho de Deus, e um hipócrita.
O hipócrita se gaba de possuir alguma graça pretensiosa, no entanto ele não possui todas as
graças, como verdadeiramente as possui aquele que
é nascido do Espírito.
O hipócrita não tem pobreza de espírito, nem pureza de coração.
Mas um filho de Deus tem todas as graças no seu coração, ainda que seja em semente, e necessite
ainda crescer em graus.
Ser pobre de espírito não é o mesmo que ser pobre de bens terrenos, porque é possível ser pobre de bens e não ser pobre de espírito.
Há também distinção em ser espiritualmente pobre, e ser pobre de espírito, porque aquele que
não tem a graça de Jesus, é espiritualmente pobre, e
não é pobre de espírito, e não conhece até mesmo a
sua pobreza espiritual, como se vê em Apo 3.1.
Bem, então, o que devemos entender por pobre de espírito?
A palavra grega para pobre é ptocoi, e esta significa estar reduzido à mendicância, ser destituído de
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riqueza, influência, posição, honra, e estar destituído de virtudes cristãs e riquezas eternas, ser
desamparado, e impotente para realizar um
objetivo, enfim, ser necessitado em todos os
sentidos.
Pobre de espírito significa então aqueles que são trazidos ao senso da sua própria miséria, em razão
dos seus pecados, e que não veem nenhuma
bondade em si mesmos, e em seu desespero se
entregam completamente à misericórdia de Deus em Cristo.
Pobreza de espírito é um tipo de autonegação.
A pessoa se vê como o publicano da parábola de Lc 18.13, e fala juntamente com Paulo que não há
nenhuma justiça nela própria que lhe possa
recomendar a Deus, como se vê em Fp 3.9.
Por que Jesus teria começado o sermão do Monte
com pobreza de espírito?
Certamente o Senhor a colocou na frente das demais bem-aventuranças, citando-a antes das
demais, porque a pobreza de espírito é o
fundamento no qual todas as outras graças são
colocadas.
Tal como o fruto não pode ser produzido numa árvore sem raiz, de igual modo as demais graças não
podem existir sem pobreza de espírito.
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Quando uma pessoa vê os seus próprios defeitos e se vê imperfeita por causa dos seus pecados, então
chorará na presença de Cristo.
Esta pobreza de espírito fará com que tenha fome e sede de justiça, porque desejará estar conformado
àquilo que Deus é em Sua própria natureza, a saber:
santo.
Assim, a pobreza de espírito é a causa da humildade, porque quando um homem vê a sua necessidade de
Cristo, e como depende das suas graças, isto o leva a se humilhar.
Até que sejamos pobres de espírito, não somos habilitados a receber a graça.
Aquele que está inchado com uma opinião de auto excelência e autosuficiência, não está ajustado para
receber a Cristo.
Ele já está cheio de si mesmo.
Se a mão está cheia de pedras, ela não pode receber
ouro.
O copo deve ser esvaziado primeiro, antes que possa ser enchido com a água viva do Espírito.
Assim, Deus esvazia primeiro o homem de si mesmo, antes de enchê-lo com a Sua preciosa graça.
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Somente o pobre de espírito pode ser alcançado pela missão de Cristo, porque se diz que ele veio para os
que estão quebrados quanto ao senso da sua
indignidade:
Nós lemos no texto de Isaías 61.1:
“O Espírito do Senhor Deus está sobre mim, porque
o Senhor me ungiu para pregar boas-novas aos mansos; enviou-me a restaurar os contritos de
coração, a proclamar liberdade aos cativos, e a
abertura de prisão aos presos;”.
Até que sejamos pobres de espírito, Cristo não é precioso para nós.
Antes de vermos nossas próprias necessidades, nunca veremos o valor que Cristo tem para nós.
Os que são ricos em pobreza de espírito são aqueles que são verdadeiramente ricos da graça de Deus,
porque Ele a derrama abundantemente sobre os
humildes.
Deste modo, as riquezas de um crente consistem na
sua pobreza de espírito.
Esta pobreza o habilita a um reino celestial.
Logo, quão pobres são aqueles que pensam serem ricos, e quão ricos são aqueles que se veem pobres e
necessitados da graça de Deus!
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Se bem-aventurado é o pobre de espírito, então pelo sentido oposto podemos entender que o
amaldiçoado é o orgulhoso de espírito, como vemos em Pv 16.5, que diz:
“Todo homem arrogante é abominação ao Senhor; certamente não ficará impune.”
Aqueles que se julgam muito bons para irem para o céu jamais o alcançarão.
Tal como o fariseu de Lc 18.11 não serão justificados por Deus porque o orgulho deles não lhes permite
enxergarem o quanto necessitam de arrependimento.
Não admira que Cristo chame tais homens de cegos porque eles estão nus, mas se recusam a receber o
vestido branco de justiça de Jesus para cobrirem a
sua nudez, porque pensam que são ricos e que não necessitam de nada da parte do Senhor.
Eles estão cegos e não poderão ver que estão nus caso não apliquem o colírio de Cristo aos seus olhos
espirituais para que possam ver.
O pobre de espírito é verdadeiramente rico para com Deus porque entre os muitos benefícios que lhe
advêm de tal pobreza podemos destacar os seguintes:
O pobre de espírito é desmamado de sua própria alma. O seu ego deixa de ser o centro de seus
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objetivos e atenções, e Cristo passa a ocupar este
lugar central em sua vida.
Ele não confia em si mesmo e não busca apoio na sua
própria alma para estar firme, mas nAquele que o fortalece em tudo.
Assim, o pobre de espírito é um adorador e admirador de Cristo.
Ele tem os pensamentos mais elevados acerca de Jesus.
Ele se vê nu e corre para Cristo para se cobrir com a Sua veste de justiça, de modo a poder obter a Sua
bênção.
O pobre de espírito nunca está satisfeito com a pobreza da sua alma quanto aos dons e graças de
Deus, e se empenha diligentemente em buscá-los
nEle, para enriquecer o seu espírito.
Ele lamenta sempre por não ter mais graça para poder glorificar ainda mais o nome do Seu Deus.
Esta é a diferença principal entre o hipócrita e um verdadeiro filho de Deus.
O hipócrita se gaba daquilo que pensa possuir, e o filho de Deus lamenta o que lhe falta e reconhece
que sem a graça do Senhor nada é e nada tem.
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Assim, aquele que é pobre de espírito é também humilde de coração.
Homens ricos costumam ser orgulhosos e
arrogantes, mas o pobre de espírito é manso e submisso.
Além disso, quanto mais graça ele tem, mais humilde ele se torna, pois entende o quanto é
devedor a Deus.
Quando executa bem qualquer dever reconhece que o fez muito mais pela força de Cristo do que pela sua própria força; porque ele reconhece que o seu
trabalho na obra de Deus foi realizado pela graça do
Senhor, sendo, portanto, imitador do apóstolo
Paulo, conforme podemos ver em I Cor 15.10.
O pobre de espírito ora muito porque reconhece o quanto depende da oração porque vê o quão longe
está do padrão da santidade divina, então implora
mais graça e mais fé ao Senhor, para poder estar em
conformidade com Ele.
O pobre de espírito é muito grato porque sabe o
quanto tem sido alvo da misericórdia de Deus.
A pobreza de espírito é o fundamento no qual Deus constrói o edifício da glória.
Deste modo, é possível que alguém tenha as riquezas do mundo e ainda ser pobre, porque a
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verdadeira riqueza de alguém não consiste na
quantidade de bens mundanos que ele possui, mas
na grandeza da sua pobreza de espírito.
Quanto mais pobre de espírito uma pessoa for, mais
rica ela será da graça de Jesus, porque terá sempre
mãos vazias para serem enchidas por Deus com as bênçãos espirituais que destinou aos crentes em
Cristo Jesus. E assim se cumpre a verdade citada em
Ef 1.3:
“Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual nos abençoou com todas as bênçãos espirituais nas regiões celestes em Cristo;”.
Esta pobreza é a nobreza do crente.
Deus olha para o pobre de espírito como uma pessoa honrada.
Aquele que é vil aos seus próprios olhos é precioso aos olhos de Deus, porque se apresenta verdadeiro
diante dEle por se reconhecer ser um vil pecador.
A pobreza de espírito aquieta a alma, pois leva a pessoa a descansar em Cristo.
Ele se vê pobre, mas pode dizer juntamente com Paulo em Fp 4.19: “o meu Deus proverá todas as
minhas necessidades”.
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Os que desejam ser ricos segundo o mundo buscam construir um reino temporal aqui, mas o pobre de
espírito almeja por um reino celestial.
E os santos reinarão com Cristo numa maneira gloriosa, porque lhes é prometido não um reino
terreno, mas o reino dos céus.
Depois da morte os santos são coroados como
vemos em Apo 2.10.
Eles não são apenas perdoados por Cristo, mas são também coroados.
A coroa é um símbolo de honra e autoridade.
A coroa que os santos receberão é mais excelente do que todas as demais. E não haverá o risco de se
perder esta coroa, conforme o temor que sentem os
reis terrenos quanto à possibilidade de perderem as suas.
Esta coroa não instigará inveja porque um santo não invejará outro, porque todos serão coroados.
Esta coroa é imarcescível, porque não pode murchar, tal como murchavam as coroas de louro
que os atletas vitoriosos recebiam no passado. E esta
coroa dos crentes é também eterna, e jamais perderá o seu brilho, conforme se vê em I Pe 5.4.
No terceiro céu, a saber, no paraíso, que é citado em II Cor 12.2, neste lugar sublime e glorioso será
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erguido o trono dos santos, e este trono é seguro e
inabalável, conforme a promessa que Jesus fez aos
crentes vencedores em Apo 3.21:.
“Ao que vencer, eu lhe concederei que se assente comigo no meu trono.”.
Um preço foi pago para isto. Jesus derramou o seu
sangue na cruz para que os santos conquistassem o reino através do Seu sangue.
Jesus foi pregado na cruz para nos trazer à coroa.
Ele diz que bem-aventurados são os pobres de espírito porque eles têm um reino, a saber, o reino
dos céus.
Aqueles que têm um reino têm também uma coroa.
A recompensa da pobreza de espírito é muito alta e não pode ser comparada a nenhum bem terreno
passageiro.
Nós entendemos então porque são tão fortes as exigências de Deus para que os Seus filhos se
santifiquem em tudo, empenhando-se em todo o
esforço para mortificarem o pecado e a carne, pois
afinal, a recompensa que lhes é feita é a de um reino eterno celestial glorioso.
Nós podemos pensar que é um grande sacrifício nos empenharmos para mortificar definitivamente o
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pecado em nossas vidas, mas Deus não acha nenhum sacrifício em nos dar graciosamente um
reino tão maravilhoso; ao contrário, foi do Seu
inteiro agrado concedê-lo a nós, conforme se vê em
Lc 12.32.
Os crentes são herdeiros do reino, e qual destes herdeiros não deseja ser coroado?
Tiago nos diz em Tg 2.5: “Ouvi, meus amados irmãos. Não escolheu Deus os que são pobres
quanto ao mundo para fazê-los ricos na fé e
herdeiros do reino que prometeu aos que o amam?”.
Enquanto neste mundo, parece que os santos fiéis e piedosos são massacrados pelas suas próprias fraquezas, e pelas investidas furiosas dos
principados das trevas sobre eles, mas eles são
chamados pelo Senhor a exultarem em tudo isto
porque a fidelidade deles será recompensada com um reino onde serão consolados definitivamente de
todos os seus sofrimentos.
Para que nós tivéssemos a firme certeza desta
esperança Deus colocou o reino dentro de nós.
O reino de Deus está dentro do crente como se vê em Lc 17.21.
Este reino significa o reino da graça no coração.
E a graça pode ser comparada a um reino porque
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ordena a lei de Deus no espírito e executa tudo o que é necessário para a nossa transformação de glória em glória à própria imagem e semelhança do
Senhor.
A graça rege sobre os nossos pecados destruindo-os e colocando-os com sua autoridade, em cadeias. E
governa assim sobre o orgulho, sobre a paixão e a incredulidade.
Se há evidências seguras deste reino da graça trabalhando no nosso coração, então podemos estar
certos de que entraremos no reino dos céus depois
da nossa morte, e de que seguramente seremos coroados por Cristo para reinarmos juntamente
com Ele.
Lembremos que assim como há graus de tormento para aqueles que forem para o inferno, de igual
modo há graus de glória para os herdeiros do reino de Deus, e assim quanto mais serviço alguém fizer
para o Senhor, maior será a sua glória no reino
futuro que lhe está prometido e garantido por Deus.
Deus recompensará os homens segundo as suas obras, e assim, quanto for maior o serviço, maior
será a recompensa.
Deus tem planejado isto para nos incentivar a buscarmos uma santidade, devoção e serviço cada
vez maiores.
Quanto for maior a glória que Deus receber através
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de nossas obras, maior será a nossa própria glória quando estivermos reinando juntamente com
Cristo.
Isto será uma grande honra para nós pelo modo como o Senhor nos distinguirá como forma do Seu agrado pela nossa fidelidade a Ele.
Basílio disse que a esperança de um reino deveria
levar o crente a ter coragem e alegria em todas as suas aflições.
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2 – Os que Choram
Há oito degraus na escada da bem-aventurança.
Eles podem ser comparados à escada de Jacó que
alcançava o topo do céu. Nós já analisamos o
primeiro e agora falaremos sobre o segundo degrau, que é o da consolação que nos vem pelo fato de
chorarmos.
Nós temos que passar pelo vale das lágrimas para podermos chegar ao paraíso.
Choro é um assunto triste e desagradável para se tratar, mas não é nisto em que consiste a bem-
aventurança, senão no consolo que vem depois do choro.
O choro é colocado aqui no lugar do arrependimento. E o que o texto quer afirmar é que
os quebrantados são bem-aventurados, porque
embora as lágrimas dos santos sejam lágrimas amargas, contudo elas são lágrimas abençoadas.
Há uma tristeza mundana que consiste geralmente no lamento pela perda de coisas terrenas, e há uma
tristeza diabólica que é o lamento por não se poder
satisfazer aos desejos pecaminosos, e à soberba da vida.
Há dois objetos da tristeza espiritual referida por Jesus nesta bem-aventurança: primeiro, tristeza
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pelo nosso próprio pecado, e segundo, tristeza pelo pecado de outros.
Enquanto nós tivermos o fogo do pecado queimando em nossas vidas, nós, temos que ter a água das
lágrimas para extingui-lo (Ez 7.16).
João Crisóstomo dizia que bem-aventurados não eram necessariamente aqueles que choram pelos
mortos, mas os que choram por causa do pecado.
A Caim aborreceu mais o castigo que Deus proferiu sobre ele, do que o seu próprio pecado. Ele disse que
o seu castigo era mais do que o que ele poderia
suportar. Em vez de chorar e se arrepender ele se
endureceu no seu pecado.
Assim, a declaração de Caim é uma rebelião e não uma demonstração de arrependimento.
Tal como ele há muitos que rasgam as suas vestes diante de Deus, mas não os seus corações.
Um arrependimento sincero é espontâneo e voluntário.
Um arrependimento verdadeiro é espiritual, pois nos faz lamentar muito mais pelo pecado do que
pelo sofrimento ao qual o nosso pecado deu causa.
Faraó estava triste pela pestilência que o Egito estava sofrendo, mas não pela pestilência que havia
em seu próprio coração endurecido, que estava
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dando causa a todos aqueles juízos que Deus
despejou sobre o Egito nos dias de Moisés.
Um pecador pode assim lamentar os juízos que acompanham os seus pecados, e não lamentar propriamente pelo pecado.
A palavra hebraica para pecado é hatat, e significa rebelião.
Esta palavra define bem o que é o pecado, porque um pecador luta contra Deus.
Então bem-aventurados são todos os que conhecem o que significa o pecado e que se entristecem pela
sua condição de pecadores, com o desejo de serem santificados por Deus, e serem libertos dos seus
pecados.
Nós temos que chorar pelo pecado como sendo a forma de ingratidão mais alta.
Nós pecamos contra o sangue de Cristo e contra a graça do Espírito Santo e não choraremos?
Nós reclamamos da descortesia que sofremos da
parte de outras pessoas e não choraremos pela nossa própria descortesia para com Deus?
Mas não são apenas estes os motivos pelos quais
devemos chorar por causa do pecado. Nós devemos chorar também o fato de o pecado nos impor uma
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privação, pois nos impede de ter comunhão com
Deus.
Por isso, as lágrimas do evangelho devem cair do
olho da fé. Se estas lágrimas espirituais de tristeza pelo pecado não fluírem de nós, de maneira alguma
poderemos receber as consolações do Espírito
Santo, traduzidas no derramar das suas graças em
nossos corações.
As águas de um verdadeiro arrependimento são águas que limpam. Elas levam para longe, como
numa inundação, toda a sujeira dos nossos pecados.
Tal como o apóstolo Paulo diz em II Cor 7.10:
“Porque a tristeza segundo Deus opera arrependimento para a salvação, o qual não traz
pesar; mas a tristeza do mundo opera a morte.” .
Este tipo de tristeza pelo pecado que é segundo
Deus, traz indignação contra o pecado, luta contra o pecado, defesa da justiça de Deus:
Diz-se que bem-aventurados são os que choram, porque lágrimas procedem dos olhos, e a palavra
hebraica para olho, é ain, que é a mesma palavra
usada para fonte, manancial.
Isto indica que as nossas lágrimas por causa do pecado têm que jorrar continuamente de nossos
olhos espirituais, assim como a água que jorra de
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uma fonte.
As águas do arrependimento não devem transbordar somente pela manhã, mas durante
todos os períodos do dia.
Como Paulo disse: eu morro diariamente'”” (I Cor 15:31), assim um crente também deveria dizer: “eu lamento diariamente”.
Esta tristeza pelo pecado é o melhor antídoto contra a apostasia, a saber, para não se voltar as costas para
Deus e abandonar a comunhão dos santos na Igreja.
Até mesmo os próprios filhos de Deus têm que chorar pelo pecado, pedindo perdão a Deus, para
perdoar pecados passados, presentes e futuros, porque assim como o arrependimento é renovado, o
perdão também é renovado.
Caso os pecados pudessem ser perdoados antes de serem cometidos, isto tornaria nulo o ofício de
Cristo de nosso Mediador e Sumo-Sacerdote, porque não haveria necessidade da Sua intercessão
em nosso favor junto do Pai.
É importante saber que embora o pecado seja perdoado, ele ainda tentará se rebelar, embora seja
coberto, no entanto não está curado (Rom 7.23).
Assim como a água penetra no casco de um barco furado, e deve ser escoada continuamente para que
o barco não afunde, de igual modo navegamos nas
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águas do pecado, que devem ser continuamente
escoadas de nossas vidas através do arrependimento.
Assim como nós choramos pelos nossos próprios pecados, devemos também chorar pelos pecados de
outros. Chore pelos erros e blasfêmias da nação.
Chore pelo quanto a vontade de Deus é transgredida no mundo, pelo quanto a Sua Palavra é desonrada e
quanto o Seu santo nome é blasfemado.
Nossas lágrimas podem ajudar a extinguir a ira de Deus, que está pronta a ser despejada sobre o
mundo pecador.
Por isso a Palavra nos ordena a interceder em favor de todos os homens, e a maior parte desta
intercessão consiste no pedido de misericórdia a
Deus pelos seus pecados, como podemos ver em I
Tim 2.1,2.
Quando há sinais de que a ira de Deus está pronta para irromper sobre a nação, sobre os nossos lares,
igrejas, não há momento mais oportuno para
intensificarmos a nossa tristeza em
arrependimento pelo pecado, porque quando Deus tira a Sua espada da bainha para pelejar contra o
mundo de pecado, quando parece que Ele está de pé
no limiar do templo, pronto para levar de nós o Seu
evangelho e nos abandonar, nossas lágrimas possivelmente podem fazer com que cesse a Sua ira
e Ele volte a ser favorável a nós. E este procedimento
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é ordenado na própria Bíblia, como podemos ver os
profetas Isaías, Oseias, Joel, Sofonias, entre outros.
A Ceia do Senhor é também outro momento oportuno para nos entristecermos pelos nossos pecados e confessá-los a Deus.
Se ela foi instituída por Jesus para ser um memorial da Sua morte, então certamente Ele deseja que
façamos uma justa avaliação dos nossos pecados,
pois foi exatamente por causa deles que Ele morreu
na cruz.
Se é pela morte do Senhor que alcançamos misericórdia da parte de Deus, não podemos
esquecer que sem uma tristeza amarga pelo pecado
não podemos receber tal misericórdia, porque a
ausência de tristeza pelo pecado indica o nosso desprezo pelo Seu sacrifício, e a falta de
reconhecimento da necessidade que temos da Sua
misericórdia para sermos perdoados.
Quando há ausência de sensibilidade pelo pecado, o coração permanece endurecido como pedra. E uma pedra não é sensível a qualquer coisa. Um coração
de pedra é conhecido por sua inflexibilidade. Uma
pedra não se dobra e não se rende ao toque. Por isso
um coração endurecido não se inclinará diante do cetro de Cristo.
Há muitos murmuradores, mas poucos quebrantados de coração. A maioria está como o
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chão rochoso no qual há falta de umidade, como se vê na parábola do semeador.
Nós ouvimos muitos lamentos em tempos difíceis, mas os que lamentam não estão conscientes de
terem um coração endurecido.
Quando Deus chama os homens ao arrependimento em vez de lamentarem por seus pecados, eles endurecem seus corações e se alegram em suas
luxúrias em vez de se entristecerem, eles se
colocam na situação de juízo extremamente
perigosa, citada em Is 22.12-14.
É exatamente para evitar este terrível
endurecimento de coração que o apóstolo Tiago nos ordena a transformar o nosso riso em pranto,
quando há pecados em nós ou em outros para serem
lamentados, em vez de vivermos nos alegrando desconsiderando tais pecados numa clara
demonstração de desprezo aos juízos de Deus.
“Senti as vossas misérias, lamentai e chorai; torne-se o vosso riso em pranto, e a vossa alegria em
tristeza.” (Tg 4.9).
É melhor chorar pelo pecado e ser alegrado por Deus, do que se alegrar agora no pecado, e depois chorar eternamente num juízo eterno.
É neste sentido que entendemos as palavras proferidas por Cristo em Lc 6.24,25.
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“24 Mas ai de vós que sois ricos! porque já recebestes a vossa consolação.
25 Ai de vós, os que agora estais fartos! porque tereis fome. Ai de vós, os que agora rides! porque vos
lamentareis e chorareis.” (Lc 6.24,25).
É somente quando o pecado cessar que as lágrimas
também cessarão (Apo 7.17).
Por isso, enquanto estivermos neste mundo, devemos evitar a todo custo a maldição de um
engano terrível que é muito comum de se ver, pois
não são poucos os que afirmam a misericórdia de
Deus como pretexto para continuarem em seus pecados.
Assim, alguém afirma que Deus é misericordioso e então se entrega à prática deliberada do pecado.
Mas afinal para quem é a misericórdia?
Para o pecador que não se arrepende, ou para o pecador entristecido?
Não há misericórdia para aquele que não pretende abandonar o pecado.
Deus faz uma proclamação de misericórdia ao quebrantado, e como pode então aquele que vive abertamente em rebelião contra Ele reivindicar o
benefício do Seu perdão?
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Outro grande perigo para o endurecimento do coração é o fato de se pensar que há pecados
pequenos que não são considerados por Deus.
“Não é um pequeno pecado?”.
Eles dizem.
E assim ficam endurecidos e insensíveis e incapazes
de lamentar por suas misérias.
E quem buscaria a Deus com um coração penitente em busca de misericórdia, enquanto continuar
pensando que o pecado é apenas uma coisa leve?
Nenhum pecado pode ser pequeno porque é contra a Majestade do céu.
Não há nenhuma traição pequena, porque todas elas são contra a pessoa do Rei Jesus.
Não permita, portanto, que Satanás lance uma
nuvem diante de seus olhos para que você não veja a real dimensão do pecado.
Ninguém se iluda com a infinita paciência e longanimidade de Deus que faz com que ele não
execute imediatamente a Sua sentença sobre o
pecado.
Deus não é um credor precipitado que requer o pagamento imediato da dívida e que não dá
qualquer tempo para o seu pagamento.
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A longanimidade de Deus não deve ser um motivo para abusarmos da Sua bondade e graça, e assim
nenhum crente verdadeiro deveria permitir que o canal da tristeza que conduz ao arrependimento seja
obstruído pela corrupção do pecado.
O juízo do Senhor é como uma pedra que cai, cujo peso de impacto é maior quanto maior for o tempo
da sua queda.
Pecados contra a paciência de Deus são pecados terríveis porque nem mesmo os anjos caídos cometeram este tipo de pecado que é contra a
misericórdia e longanimidade de Deus.
Então é preciso que o Espírito Santo produza em nós quebrantamento de coração e inspire nossas
tristezas pelo pecado para que possamos expressá-las diante de Deus.
O consolo prometido no texto da bem-aventurança é produzido pelo Espírito.
Observe que Deus reserva a melhor safra do seu vinho para o final. Primeiro ele prescreve tristeza
pelo pecado e então serve por último o vinho da
consolação.
O diabo faz exatamente o contrário. Ele serve o melhor primeiro e reserva a pior safra para o final.
Satanás oferece os seus pratos delicados diante dos homens. Ele lhes apresenta o pecado de uma forma
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colorida, atraente, com beleza, adocicado com prazer, com lucro, e então, no fim, a triste conta é
apresentada para ser paga.
Esta é a razão por que o pecado tem tantos seguidores, porque mostra o melhor primeiro.
Mas Deus mostra o pior primeiro. Primeiro ele prescreve um remédio amargo, o do
arrependimento, e é isto o que nos leva a chorar, mas então Deus nos dá uma recompensa, a de
sermos consolados conforme a promessa da bem-
aventurança.
Por isso as lágrimas do evangelho não são perdidas porque são sementes de consolo divino.
Depois da corrente de lágrimas o Espírito Santo faz fluir no nosso interior uma corrente de alegria.
Daí, se dizer que aqueles que semeiam em meio a lágrimas ceifarão com alegria, conforme se lê no Sl
126.5.
O coração quebrantado é esvaziado do orgulho e então Deus o enche com a Sua bênção.
O vale de lágrimas traz ao espírito um paraíso de alegria.
A alegria de um pecador impenitente produzirá tristeza, porque é sempre este o salário que é pago
pelo pecado.
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Mas a tristeza do quebrantado produz alegria. “Sua tristeza será transformada em alegria” (João 16:20).
As consolações que Deus dá aos quebrantados excedem todos os demais consolos e a raiz na qual estes confortos crescem é o Espírito Santo.
Ele é chamado ”o Consolador” em João 14.26.
O Espírito consola aplicando as promessas a nós mesmos e nos ajudando a tirar águas desses
mananciais da salvação.
O Espírito derrama o amor de Deus no coração do crente e sussurra secretamente a ele o perdão que
recebeu para os seus pecados, e esta visão do perdão dilata o coração com alegria.
Estes confortos são reais e verdadeiros, porque o Espírito de Deus não pode testemunhar aquilo que é
falso.
Há muitos nesta época que fingem confortar, mas os confortos deles são meras imposturas.
Mas os confortos dos santos são verdadeiros porque
eles têm o selo do Espírito Santo fixado neles.
Quando um homem é trazido aos mandamentos de Cristo, para crer e obedecer, então ele fica
preparado para receber a misericórdia.
É por isso que antes de consolar o Espírito primeiro
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convence do pecado.
Quando o coração é arado pelo convencimento do pecado, Deus semeia nele a semente do conforto.
Assim, aqueles que se vangloriam de conforto, mas que nunca foram convencidos ainda de seus
pecados, nem quebrantados por causa dos seus
pecados, devem ter motivo para suspeitar que o conforto deles não passa de uma ilusão de Satanás.
O Espírito de Deus é um Espírito santificante, antes de ser um Espírito consolador.
Alguns falam sobre o Espírito confortante, mas
nunca tiveram o Espírito santificante.
Assim, suas alegrias são falsas, e estes falsos confortos deixarão os homens na morte.
Eles terminarão em horror e desespero.
Então os efeitos da verdadeira consolação do Espírito Santo são completamente diferentes dos
confortos de Satanás, que muitos alegam ser de
Deus.
O diabo é capaz, não somente de se transfigurar em anjo de luz, como se lê em II Cor 11.14, como também
em se disfarçar em consolador.
Mas todos os consolos de Deus nos conduzem à
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humilhação porque não permitem que sejamos inchados com orgulho, apesar destes consolos do
Espírito Santo elevarem o nosso coração em gratidão.
Os confortos que Deus dá aos quebrantados não são misturados. Eles não trazem pesar conforme se
afirma em II Cor 7.10.
Mas os confortos mundanos são como água misturada com sujeira, porque em meio aos
sorrisos o coração está triste.
O pecador pode ter um rosto sorridente enquanto tem uma consciência que o acusa.
Mas os confortos espirituais são puros. Eles não são misturados com culpa porque lançam fora o medo e
trazem o perdão de Deus. De modo que o consolo
que vem depois da tristeza pelo pecado é a alegria do Espírito Santo, e nada mais do que alegria.
Tão doces são estes confortos do Espírito que eles enfraquecem muito e moderam nossa alegria em
coisas mundanas.
Aquele que tem bebido da água do Espírito, não terá depois sede de água; e aquele homem que tem uma
vez provado quão bondoso é o Senhor e bebido do Espírito, não terá sede imoderada por delícias
terrenas.
O Espírito Santo não pode produzir no nosso espírito
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alegrias impuras tal como o sol não pode produzir trevas.
Assim aquele que tem os confortos do Espírito Santo se manifestando nele, nunca desejará negociar com o pecado, porque ele mataria tais confortos.
Os confortos que Deus dá para os seus quebrantados nesta vida são confortos gloriosos: “Alegria cheia de
glória” como se lê em I Pe 1.8.
Eles são gloriosos porque eles são um antegosto daquela alegria que nós teremos no céu.
São tão gloriosos os confortos do Espírito que um crente nunca está tão triste que não possa se alegrar.
Observe então que é verdadeiramente bem-aventurado o que chora, porque o quebrantado é um
privilegiado, pois será confortado por Deus.
Os olhos do quebrantado não devem estar tão cheios de lágrimas a ponto de lhe impedir de enxergar as
promessas de perdão no sangue de Jesus Cristo.
A virtude e conforto de um remédio está em usá-lo.
De igual modo quando as promessas forem aplicadas com fé, elas trarão conforto.
Mas lembremos que uma mente mundana pode nos privar do conforto divino.
Deus esconde o seu rosto daqueles que amam o
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mundo e que se conformam ao modo do mundo.
Um coração, enquanto mundano, não deve contar com as consolações do Espírito Santo. Aquele que
busca confortos terrenos apagará com estes falsos confortos o verdadeiro conforto do Espírito.
Devemos evitar também a tentação de fazer dos confortos divinos o fim mesmo da vida cristã,
porque até mesmo ao Senhor faltaram tais
confortos em determinados momentos de seu ministério terreno, e é de se esperar que o mesmo
suceda conosco.
Mas embora um filho de Deus nem sempre tenha conforto expressado em flor, ele sempre o tem em
semente.
Embora ele não sinta conforto de Deus contudo ele
está debaixo do Seu conforto.
Um crente pode ser elevado em graça e ser rebaixado em conforto.
As montanhas altas estão sem flores.
As minas de ouro têm pouco ou nenhum trigo crescendo nelas.
O coração de um crente pode ser uma mina de ricos filões de graça, entretanto ser estéril de conforto.
Entretanto, o quebrantado é o herdeiro do conforto,
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porque somente por um breve momento Deus poderá abandonar as pessoas do Seu povo como
vemos em Isaías 54.7, contudo há um tempo que
vem brevemente quando os quebrantados terão
todas as lágrimas enxugadas de seus olhos, e serão plenamente cheios de conforto.
Esta alegria está reservada para o céu. Porque se
diz que são bem-aventurados os que choram porque deles é o reino dos céus. Aleluia. Amém!
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3 – Os Mansos
Vamos da continuidade ao nosso comentário
sobre as bem-aventuranças, falando agora sobre a
terceira bem-aventurança, citada por Jesus no texto de Mateus 5.5, no qual lemos o seguinte:
“Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra.”.
Esta mansidão tem um aspecto duplo, mansidão para com Deus e mansidão para com o homem.
Na mansidão para com Deus duas coisas são insinuadas: a primeira é a submissão à Sua vontade;
e a segunda, o dobrar-se à Sua Palavra.
Ser manso então em relação a Deus significa seguir o exemplo de mansidão que Jesus nos deixou sendo
submisso à vontade do Pai, e por ter se dobrado
inteiramente à Sua palavra, vivendo debaixo do
exclusivo poder e direção do Espírito Santo.
Assim, é espiritualmente submisso aquele que se conforma à mente de Deus, e não luta contra as
instruções da Sua santa Palavra, mas com as
corrupções do seu coração. E quão feliz é isto,
quando a Palavra vem com majestade e é recebida com mansidão no coração, como se diz em Tiago
1.21.
Este ato de receber a Palavra com mansidão referido
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por Tiago, significa acatar com submissão tudo que nos é ordenado nela pelo Senhor.
A mansidão consiste basicamente em três coisas: a primeira, suportar danos; a segunda, perdoar danos, e a terceira, recompensar o mal com o bem.
Vamos repetir para você poder memorizar em que consiste basicamente a mansidão:
Primeiro, suportar danos.
Segundo, perdoar danos.
E terceiro, recompensar o mal com o bem.
Quanto a suportar danos, podemos dizer desta graça da mansidão, que ela não é conseguida facilmente.
Mas lembremos que um espírito submisso, tal como pano molhado, não pegará fogo facilmente.
A mansidão é a rédea da raiva.
As paixões são inflamáveis, mas a mansidão é a água divina que as apaga.
A mansidão é a rédea da boca, porque amarra a
língua e lhe dá um bom comportamento.
A precipitação de espírito é oposta à mansidão.
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Quando o coração ferve em paixão e ira, ele se encontra longe da mansidão.
A raiva pode ser encontrada num homem sábio, mas ele não se permitirá ser dominado por ela, no
entanto a raiva permanece no coração dos tolos, e
tem ali a sua moradia.
O homem iracundo é como pólvora, sempre pronto
a entrar em chamas ao menor atrito.
A ira altera o estado de consciência tanto como o álcool o faz no que está embriagado. Assim o uso da
razão é suspenso naquele que se deixa dominar pela
ira.
Somente em alguns casos é justificado ficarmos irados. Há uma ira santa. Aquela ira sem pecado que é contra o pecado. Na qual mansidão e zelo podem
estar juntos.
Em assuntos da defesa da verdade do evangelho, um crente deve ser vestido com o espírito de Elias, e
estar “cheio da ira do Senhor” como se vê em Jer 6.11.
Cristo era manso conforme se diz em Mt 11:29,
contudo era zeloso, como se vê em João 2.14,15. E este Seu zelo pela casa de Deus o consumiu.
A malícia também é oposta à mansidão. A malícia é o retrato do diabo.
Um espírito malicioso não é um espírito manso.
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A disposição para se vingar também é oposta à mansidão. A vingança é um ofício para Deus e não
para os homens. Por isso a Bíblia proíbe a vingança, como se vê em Rom 12.19.
Lutas espirituais são legítimas, quando consistem na luta contra o diabo, e com a parte carnal do
homem, e abençoado é todo aquele que busca se
vingar das suas luxúrias.
Mas outros tipos de lutas são ilegais.
Passar por um dano sem vingança não traz qualquer
descrédito à honra de um homem.
Um espírito nobre esquece um dano que tenha sofrido, ainda que injustamente.
No entanto, a autodefesa, ou legítima defesa, como é mais conhecida, é consistente com a mansidão
cristã.
Neste sentido os magistrados são ministros de Deus para vingarem o mal, como citado em I Pe 2.14 e Rm 12.17, e assim, o exercício do ofício deles não é oposto
à mansidão.
A maledicência também é oposta à mansidão. A
maledicência sempre carrega a intenção de desprezar, ofender e difamar outros.
Quando Paulo chamou os Gálatas de insensatos, a
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sua intenção não era a de ofendê-los e difamá-los, senão apenas de reformá-los pela repreensão que
lhes dirigiu.
Não é mansidão, mas fraqueza separar-nos da nossa integridade.
Deve haver mansidão cristã, como também prudência cristã. Ambas devem caminhar lado a
lado.
É legítimo sermos nossos próprios defensores em face de acusações injustas que possamos sofrer.
Somente haverá falta quando replicarmos os danos procurando pagá-los na mesma moeda com que os
sofremos.
Tendo considerado acerca da mansidão quanto ao seu aspecto de suportar danos, vejamos agora o
relativo ao de se perdoar danos.
Um espírito manso é um espírito perdoador.
Por natureza os homens são dados a esquecerem a bondade que recebem de outros, mas lembram-se
com facilidade dos danos que sofreram.
Mas Deus exige que sejamos como Ele, a saber,
perdoando de coração e esquecendo os danos que sofremos, conforme se exige em Mt 18.27.
Deus perdoa completamente os nossos pecados.
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E um crente verdadeiramente manso também perdoa todos os danos dos seus ofensores, em face
do arrependimento deles.
Deus perdoa frequentemente porque nós pecamos
frequentemente. Como Ele perdoa setenta vezes sete nos ordena também que façamos o mesmo.
É nosso dever estar sempre prontos para perdoar conforme se ordena em Col 3.13; ainda que
tenhamos que suportar aqueles que parecem mais
monstros do que homens, porque não deixam de nos fazer o mal a par de todo o bem que possamos
lhes fazer.
Mas nós cessaríamos de fazer o bem porque outros não cessaram de serem maus?
Lembremos que quanto mais danos perdoarmos mais brilhará a nossa graça.
Se faltar a algum crente esta virtude do perdão,
então lhe faltarão também as demais graças. Porque onde há uma graça, há todas as demais.
Se a mansidão estiver faltando, o que haverá é apenas uma falsa corrente de graça. A fé será uma
fábula, o arrependimento uma mentira, e a
humildade, uma hipocrisia.
Considerando que você diz que não pode perdoar, pense em seu pecado. Seu próximo não é tão ruim
lhe ofendendo quanto você é por não lhe perdoar.
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Seu próximo, lhe ofendendo, transgride contra um homem, mas você, enquanto se recusa a lhe
perdoar, peca contra Deus.
Também considere o perigo que você está correndo
negando-se a perdoar, porque Deus tem disposto o dever de perdoar de tal maneira que as suas ofensas
não serão perdoadas por Ele, se você não perdoar as
ofensas do seu próximo conforme vemos em Mc
11.26.
O terceiro aspecto relacionado à mansidão é recompensar o mal com o bem; e este é um grau
mais elevado do que o anterior.
Jesus diz em Mt 5.43,44: “Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo, e odiarás o teu inimigo.
Eu, porém, vos digo: Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam e vos
perseguem; para que sejais filhos do vosso Pai que
está nos céus;”.
E o apóstolo Paulo acrescenta em Rom 12.20,21:
“Portanto, se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber; porque,
fazendo isto, amontoarás brasas de fogo sobre a sua cabeça.
Não te deixes vencer do mal, mas vence o mal com o bem.”.
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E também o apóstolo Pedro nos diz em I Pe 3.9:
“Não tornando mal por mal, ou injúria por injúria; antes, pelo contrário, bendizendo; sabendo que para
isto fostes chamados, para que por herança
alcanceis a bênção.”.
A mansidão nos mostra a marca de um verdadeiro santo. Ele é de um espírito submisso, sincero. Ele
não é provocado facilmente.
Quando o crente se dispõe a vencer o mal com a mansidão, Deus honra a sua obediência à sua
Palavra, fazendo com que triunfe a causa do bem.
Deixe-me pedir a todos os vocês que se esforcem
para buscarem esta graça superior da mansidão; conforme se ordena no texto de Sofonias 2.3:
“Buscai ao Senhor, vós todos os mansos da terra, que tendes posto por obra o seu juízo; buscai a
justiça, buscai a mansidão; pode ser que sejais
escondidos no dia da ira do Senhor.”
Buscar insinua que nós podemos perder esta graça da mansidão, não a alcançando. Então, nós temos
que fazer uma exibição pública depois de achá-la. E
isto faremos mostrando que somos de fato mansos
tanto para aprender de Deus, quanto para suportar danos e perdoar ofensas sofridas.
A mansidão é necessária em tudo o que fizermos, especialmente quando estivermos instruindo
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outros no caminho da verdade conforme se ordena
em II Tim 2.25.
A mansidão conquista os oponentes da verdade.
A mansidão é necessária quando ouvimos a Palavra, como se afirma em Tg 1.21.
Aquele que ouve o sermão ou o ensino da verdade com preconceito e sem mansidão, não adquire
nenhum bem, mas feridas. Ele transformará o azeite
da graça de Deus em veneno e se ferirá com a espada
do Espírito, que é a Palavra de Deus, em vez de vencer o Inimigo com ela.
Paulo diz em Gál 6.1: “se algum homem chegar a ser surpreendido nalguma ofensa, vós, que sois
espirituais, corrigi-o com espírito de mansidão;
olhando por ti mesmo, para que não sejas também tentado.”.
No original grego, o verbo para corrigir neste
texto de Gálatas 6.1 é katartizo, que significa emendar, tal como um cirurgião faz a união de um
osso fraturado com o cuidado de não causar outras
lesões ao ferido.
Somos indesculpáveis se não buscarmos a graça da mansidão porque temos este exemplo fixado na Bíblia, na vida dos servos de Deus e na do próprio
Cristo.
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“Dizei à filha de Sião: Eis que o teu Rei aí te vem, manso, e assentado sobre uma jumenta.”(Mt 23.5).
Jesus foi insultado, mas não insultou os seus agressores como se lê em I Pe 2.23.
Jesus nos ordena em Mt 11.29 a aprendermos do Seu próprio exemplo de mansidão.
Moisés era o homem mais manso da terra, conforme se afirma em Nm 12.3. Quando os
israelitas murmuravam contra ele em vez de se irar, ele intercedia em favor deles (Ex 15.24, 25).
A mansidão é um grande ornamento de um crente como afirmado em I Pe 3.4. E quão agradável se
torna aos olhos de Deus o crente que usa esta joia
preciosa.
Deus poderia facilmente esmagar os pecadores e enviá-los logo ao inferno, mas Ele modera a Sua ira
porque embora esteja cheio de majestade, contudo
está cheio de mansidão.
A mansidão forja um espírito nobre e excelente. Um homem manso é um homem valoroso. Ele adquire uma vitória sobre si mesmo. A paixão surge de
fraqueza, mas o homem manso pode conquistar a
sua fúria. Aquele que é tardio para se irar, ou seja,
que é longânimo, é melhor do que o poderoso, e do que aquele que conquista uma cidade, como lemos
em Pv 16.32.
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Ser manso é nadar contra a natureza, é contrariá-la, e, portanto, é algo difícil de ser conquistado, e por
isso este esforço merece ser recompensado, e daí se dizer que os mansos herdarão a terra.
A paixão pode fazer um inimigo de um amigo, mas a mansidão, ao contrário, pode fazer um amigo de um
inimigo.
Quando é dito que os mansos herdarão a terra, não significa que eles não herdarão mais do que a terra. Eles herdarão o céu também.
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4 – Os Que Têm Fome e Sede de Justiça
Nós procederemos agora ao comentário da quarta
bem-aventurança citada por Jesus em Mateus 5.6:
“Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça porque eles serão fartos.”
Nós chegamos agora ao quarto passo da bem-aventurança.
A fome e a sede espiritual são abençoadas porque é prometido que serão saciadas por Deus.
Toda fome e sede relativas à justiça do reino de Deus serão saciadas.
A fome e a sede natural são desejos por alimento e água necessários para crescimento ou para a manutenção da vida. O pão e a água naturais provêm
o sustento do corpo natural; e o pão e a água
espirituais provêm o sustento do corpo espiritual.
Qual é o significado da justiça referida por Jesus?
Esta justiça é evangélica, a saber, que alcançamos por causa da nossa fé no evangelho. Ela é uma
justiça dupla: uma que nos atribuída e outra que é implantada em nós.
A justiça evangélica que nos é atribuída por Deus no dia da nossa conversão, quando cremos pela
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primeira vez em Cristo, recebendo-O em nossos
corações é a relativa à nossa justificação. Esta
justiça que nos é atribuída é a justiça do próprio
Cristo.
Ela nos é atribuída pela nossa fé nEle. Em virtude desta justiça, quanto à condenação eterna, Deus
olha para o crente que foi justificado por tal justiça
de Jesus, como se ele nunca tivesse pecado. Esta é
uma justiça perfeita. É por causa desta justiça com a qual fomos justificados na conversão, que se diz em
Col 2.10 que os crentes se encontram perfeitos em
Cristo diante de Deus: “E estais perfeitos nele, que é
a cabeça de todo o principado e potestade;”. É por causa desta justiça que lhe foi atribuída na
conversão, que o crente terá fome daquela outra
justiça que é implantada.
Uma justiça implantada se refere à retidão inerente à pessoa do crente, ou seja, às graças do Espírito; à santidade do coração.
Esta fome por esta justiça que é implantada comprova a existência da verdadeira vida espiritual.
Daí Cristo afirmar que estes que têm fome e
sede de justiça serão saciados, porque foram vivificados pelo Espírito Santo na conversão, e agora
podem ter esta fome e sede, porque enquanto
estavam mortos em delitos e pecados, sem a vida do Espírito Santo habitando neles, não poderiam ter tal
fome e sede.
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O crente pode, no entanto, perder o seu apetite por esta justiça evangélica que deve alimentar o seu
espírito, caso venha a entristecer e a apagar o Espírito Santo, porque, neste caso, apesar de ter sido
vivificado por Cristo, estará como morto perante
Deus, porque as graças do Espírito estão prontas a morrer naqueles que se afastam da comunhão com
Jesus.
Um homem morto não pode ter fome. A fome procede da vida. A fome espiritual se seguirá ao
novo nascimento (I Pe 2.2). Assim, sem esta fome
espiritual não pode haver crescimento espiritual, porque somente os que têm fome se disporão a se
alimentar do verdadeiro alimento espiritual.
Tudo o que Deus requer de Seus filhos, para participarem do Seu banquete espiritual é que eles
tragam apenas o seu apetite, porque Ele tem estabelecido um preço que é acessível a todos para
obtenção das coisas divinas, como se lê em Is 55.1,2:
“1 Ó vós, todos os que tendes sede, vinde às águas, e os que não tendes dinheiro, vinde, comprai, e
comei; sim, vinde, comprai, sem dinheiro e sem preço, vinho e leite. 2 Por que gastais o dinheiro
naquilo que não é pão? E o produto do vosso trabalho
naquilo que não pode satisfazer? Ouvi-me
atentamente, e comei o que é bom, e a vossa alma se deleite com a gordura.”.
Assim não nos é ordenado que compremos a justiça com dinheiro.
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Se alguém convidar amigos à sua mesa, ele não espera que eles deveriam trazer dinheiro para pagar
pelo jantar deles, mas que venham somente com apetite. Assim, o Senhor diz que não é penitência,
peregrinação, farisaísmo que Ele requer. Traga
somente seu estômago se você tem fome e sede de justiça.
O pecado tem um gosto doce para os ímpios porque eles não têm nenhuma fome espiritual de justiça.
Eles estão cheios da sua própria justiça como se vê
em Rm 10.3. E um estômago cheio recusa o favo de
mel. Esta é a doença de Laodiceia. Ela estava cheia e não tinha nenhum estômago para valorizar o colírio
e o ouro de Cristo, conforme se lê em Apo 3.17.
Não há ninguém que esteja tão vazio da graça como aquele que julga estar cheio.
A Palavra reprova aqueles que em vez de terem fome e sede de justiça, têm fome e sede de riquezas. Esta é a fome e a sede dos homens cobiçosos. A
avareza é idolatria como se afirma em Col 3.5.
Muitos crentes erigiram o ídolo de ouro no templo
dos seus corações. O pecado mais difícil de se desarraigar é o da cobiça. Geralmente quando
outros pecados deixarem os homens, este
permanece.
E a cobiça, o amor ao dinheiro, é a raiz na qual nascem todos os males. E a cobiça não produzirá fome e sede de justiça, senão fome e sede de toda
sorte de injustiças.
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Deste modo, o problema não está em ser a fome e sede fracas, mas haver a ausência total delas. Uma
fome e sede fracas são como um pulso que bate
fraco, mas mostra que há vida. E estes desejos fracos não devem ser desencorajados porque há uma
promessa feita a eles de que a cana quebrada não
será esmagada pelo Senhor como Ele afirma em Mt
12.20.
Uma cana é algo fraco em si mesma, e quanto mais se a cana estiver quebrada, entretanto não será
esmagada e florescerá como a vara seca de Arão.
Olhando em sua fraqueza para Cristo, Seu Sumo-
Sacerdote será ajudado por Ele porque é paciente, poderoso e misericordioso.
Se você não tem aquele apetite como antigamente pelas coisas divinas, contudo não seja
desencorajado, porque com o uso adequado dos
meios da graça você pode recuperar seu apetite.
Chamamos de meios de graça a oração, o louvor, o
jejum, a adoração, a meditação e prática da Palavra de Deus, a comunhão dos crentes, e o compromisso
com a obra do evangelho.
As riquezas não duram para sempre, mas a justiça dura para sempre e é por isso que os homens são
exortados a trabalharem por este alimento que não perece, e não para ajuntar riquezas terrenas.
A menos que nós tenhamos fome desta justiça evangélica nós não podemos obtê-la, porque Deus
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nunca jogará fora as Suas bênçãos naqueles que não as desejam.
Assim como os exercícios físicos estimulam o apetite natural, de igual modo o exercício na
piedade estimula o apetite espiritual, conforme se
afirma em I Tim 4.7.
Aos que têm fome e sede de justiça Deus promete
dar-lhes plenitude de fartura e daí se dizer que os tais são bem-aventurados porque serão
aperfeiçoados na justiça que eles desejam como
algo vital para a sua subsistência espiritual.
Deus saciará o espírito faminto porque Ele mesmo incitou esta fome. Ele plantou desejos santos em nós, e Ele não satisfaria esses desejos?
Deus satisfará o faminto porque o espírito faminto é muito grato pela misericórdia. Deus ama dar a
misericórdia dele onde ele pode ter um maior
louvor.
Nós nos encantamos em dar àqueles que são gratos.
Deus enche o espírito faminto com plenitude de
graça, paz e alegria.
Assim é de fato uma grande bem-aventurança ter fome e sede de justiça.
Considere por que Cristo recebeu o Espírito sem medida (João 3.34). Não foi para Si mesmo. Ele estava
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infinitamente cheio antes. Mas ele estava cheio com
a unção santa para este fim, a saber, para que ele
pudesse derramar a Sua maravilhosa graça no
espírito faminto.
Você é ignorante? Cristo estava cheio com sabedoria para poder lhe ensinar.
Você está sujo? Cristo estava cheio com graça para poder limpá-lo.
A alma não virá então a Cristo que tem toda a plenitude para saciar o faminto?
Peçamos, portanto, a Deus que jamais nos falte o apetite espiritual pelo qual Ele nos dará crescimento
e força, para podermos fazer a Sua vontade.
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5 – Os Misericordiosos
Nós procederemos agora ao comentário da quinta
bem-aventurança citada por Jesus em Mateus 5.7:
“Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia.”
Haveria necessidade de pregar sobre misericórdia mais do que nestes tempos desapiedados em que
nós vivemos?
Mas como muitos não sabem exatamente o que é misericórdia, falaremos primeiro sobre os vários
tipos de misericórdia.
A misericórdia é uma disposição por meio da qual nós carregamos no coração as misérias de outros e
estamos prontos em todas as ocasiões a sermos instrumentos para o bem deles.
Muitos confundem misericórdia com amor, mas há algumas diferenças marcantes entre ambos.
Em algumas coisas o amor e a misericórdia são iguais, mas em outras eles diferem, como as águas
de um rio que podem ter duas nascentes, mas se
encontram no fluxo.
O amor e misericórdia diferem nisto: o amor é mais extenso. O amor é um amigo constante que nos
visita até mesmo quando estamos bem.
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Já a misericórdia é como um médico que só nos visita quando estamos doentes.
O amor age mais por afeto.
Mas a misericórdia age mais por um princípio de consciência.
A misericórdia empresta sua ajuda a outros, mas O
amor dá seu coração a outros.
Deste modo, eles diferem, mas o amor e a misericórdia concordam em que ambos estão
sempre prontos a prestarem bons serviços.
A misericórdia procede de um trabalho da graça no coração.
Por natureza, nós estamos bem longe da misericórdia.
O pecador é por natureza uma oliveira brava e não
uma oliveira que dá bom azeite.
O caráter e vocação do homem natural é ser desapiedado como se lê em Rm 1.31; e a misericórdia
que ele possui é um instinto natural e não a
misericórdia santificada que é um fruto do Espírito
Santo.
Por natureza nós não produzimos azeite, mas veneno; não o óleo da misericórdia, mas o veneno do
pecado.
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Além desta falta da misericórdia divina que não pode ser achada na nossa natureza terrena, há algo que é também implantado por Satanás, porque o
príncipe das trevas trabalha no coração dos homens
como se vê em Ef 2.2. E se ele domina os homens não
é de se estranhar que eles sejam inclinados a serem implacáveis e sem misericórdia.
Afinal, que misericórdia pode ser esperada do inferno?
De forma que, se o coração é afinado com a misericórdia, é por causa da mudança que a graça
produziu nele, conforme se vê em Col 3.12.
Assim, antes de um homem ser misericordioso, é
necessário que seja uma nova criatura; e a misericórdia é algo para ser aprendido com Deus,
que nos ensinará isto de modo prático, na
experiência da vida.
Nós devemos ser misericordiosos às almas de
outros, especialmente aquelas que não foram salvas.
Realmente este é o principal tipo de misericórdia, porque o espírito é a coisa mais preciosa que existe.
Mais do que nós sentimos pela morte física de alguém, nós deveríamos sentir pela sua morte
espiritual, porque este é o estado permanente de toda pessoa que não conhece a Cristo, e também
devemos sentir pela sua morte eterna, que se
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seguirá à sua morte física. Assim uma alma
misericordiosa reprovará os pecadores impenitentes na expectativa de que eles se
convertam de seus pecados.
Nós estaremos sendo misericordiosos quando lutarmos com eles pela salvação de seus espíritos e
não permitirmos que eles desçam quietamente para o inferno.
Se a casa de uma pessoa estivesse pegando fogo nós deixaríamos de lhe dar o devido aviso para não
assustá-la quanto ao prejuízo que estava sofrendo? E
nós ficaremos calados vendo alguém dormir o sono da morte e vendo o fogo da ira de Deus pronto para
queimá-lo?
Veja então como é um trabalho abençoado o trabalho do ministério! A pregação da Palavra nada
mais é do que mostrar misericórdia às almas.
Ministros que toleram o pecado por temor de não
ofenderem as pessoas são maus ministros.
É um erro pensar que ser agradável a todos, ainda que estejam perdidos em pecados é uma forma de
mostrar estima e amizade por eles.
Na verdade, ainda que muitas pessoas se sintam ofendidas e ressentidas com os pastores, quando
eles pregam de maneira veemente contra o pecado, não importa, porque aquele que faz isto está sendo
verdadeiramente misericordioso para com elas,
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uma vez que é disto que depende o destino eterno
feliz delas, caso venham a se arrepender dos seus
pecados.
Olhe como Jesus e João Batista pregavam em seus
ministérios. Eles diziam “arrependei-vos e crede no evangelho” fazendo duras repreensões contra
aqueles que viviam no pecado.
Quando Jesus e João diziam aos fariseus que eles eram uma raça de víboras, que seriam cortados pela
raiz pelo machado do juízo de Deus, eles estavam demonstrando verdadeiro amor e verdadeira
misericórdia para com eles, porque estavam dando
a eles o aviso solene do que lhes sucederia caso não
se arrependessem dos seus pecados.
Então fiel, misericordioso, e verdadeiramente amigo é o pastor que repreende aqueles que estão
vivendo na prática deliberada do pecado. Ainda que
aqueles que estão na carne façam um juízo errado
pensando que isto é falta de misericórdia.
Então estes pastores que não pregam contra o pecado são maus pastores.
São ministros que não têm uma misericórdia verdadeira pelas almas perdidas.
O cuidado deles é maior por dízimos do que por almas.
Por realizações materiais do que por almas.
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Os tais são mercenários e não ministros de Cristo, e
caso tenham tido uma chamada para o ministério, acabaram se desviando dela.
Como podem ser chamados de pastores aqueles que não possuem intestinos de misericórdia?
Tais homens não alimentam os espíritos das pessoas com verdades sólidas.
Quando Cristo enviou os seus apóstolos, ele lhes deu o texto que eles deveriam pregar e ensinar.
Os ministros de Cristo devem pregar as coisas que pertencem ao reino de Deus.
Eles são desapiedados se em vez de repartir o pão da vida, encherem as cabeças das pessoas com
especulações e noções vazias, que fazem apenas
cócegas na consciência.
Há ministros que pregam como se eles estivessem falando uma língua desconhecida.
Alguns ministros gostam de planar nas alturas
como a águia e voam acima da capacidade das pessoas, e se esforçam bastante para serem mais admirados do que compreendidos.
É falta de misericórdia para com as almas pregar para não ser entendido.
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Ministros deveriam ser estrelas para dar luz, não nuvens para esconder a verdade.
É crueldade para com as almas quando nós andarmos para tornar as coisas fáceis em coisas
difíceis.
Muitos são culpados de subirem ao púlpito somente
para exibirem a própria glória deles e divertirem as pessoas. Isto cheira mais a orgulho do que a
misericórdia.
Nós devemos também ser misericordiosos com os nomes de outros.
Um bom nome é uma das maiores bênçãos na terra. Assim, é grande falta de misericórdia, uma grande crueldade, infamar o renome dos homens,
conforme se vê em Rom 3.13.
O homem orgulhoso e invejoso atacará a reputação de outros.
Pensando em apagar os nomes que ataca, julga que o seu poderá brilhar mais do que os deles.
O invejoso difama a dignidade dos outros, mas a Bíblia nos ensina a nos alegramos com a estima e fama de outros como se vê em Rm 1.8 e Hb 11.2.
A calúnia é uma grande demonstração de falta de misericórdia.
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A defesa do bom nome dos que são caluniados é uma grande demonstração de misericórdia.
Lembremos que Deus requererá em juízo cada palavra ociosa que foi proferida pelos homens,
especialmente aquelas que foram usadas para infamar outros.
Em vez de infamarmos as pessoas, nós devemos ser misericordiosos em relação às ofensas que eles nos
fazem.
Estejamos prontos para mostrar misericórdia àqueles que nos prejudicaram.
Nós lemos em Pv 19.11 que “A discrição do homem
fá-lo tardio em irar-se; e sua glória está em esquecer ofensas.”.
Nós devemos ser misericordiosos às necessidades de outros. Considere os pobres; veja as lágrimas
deles, e os seus suspiros e gemidos.
Deus demonstra a Sua misericórdia e cuidado com os pobres nos muitos mandamentos da Lei de Moisés que prescreveu para o benefício deles como
se pode ver por exemplo em textos como Êx 23.11;
Lev 19.9; 25.35 e Dt 14.28,29.
Na verdade Deus agrava o Seu juízo nos ricos mais do que nos pobres, porque se aos primeiros deu confortos e facilidades neste mundo, no entanto
pesou muito sobre eles a responsabilidade de
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assistirem aos necessitados com suas riquezas, e na medida que não o fazem agravando a pobreza no
mundo, sofrerão um maior juízo de condenação.
No entanto, o pobre não foi cumulado com este peso de responsabilidade da parte de Deus, e nisto tem
uma grande vantagem em relação aos ricos, e assim não houve nenhuma injustiça da parte de Deus em
ter disposto a criação de tal sorte que houvesse
pobres e ricos no mundo. Então a riqueza deve ser
usada para a exibição de generosidade para com o próximo, conforme é da vontade de Deus.
Por isso Deus requer as boas obras depois que somos justificados, mesmo que sejamos pobres, porque se
somos pobres de bens materiais, nada nos impede
de sermos ricos da graça de Jesus para usá-la em benefício de outros.
Assim, apesar de sermos justificados somente pela fé, devemos lembrar que a fé justificadora nunca
está só, porque deve ser acompanhada pelas boas
obras.
Embora as boas obras não sejam a causa da salvação,
contudo elas são evidências da salvação.
Embora elas não sejam o fundamento da nossa casa espiritual, contudo elas são a sua estrutura.
Deste modo, não deve ser edificada uma fé em obras, mas devem ser edificadas obras em fé.
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As boas obras são a pedra de toque da fé como se vê em Tg 2.18.
Estes frutos das boas obras adornam a árvore da justiça. Assim deixe a liberalidade da sua mão ser o ornamento da sua fé.
Pelo menos em dois aspectos as boas obras são em algum senso, mais excelentes do que a fé.
Porque as boas obras são de uma natureza diferente e mais nobre.
Embora a fé seja mais necessária para nós mesmos, contudo as boas obras são mais benéficas a outros.
A fé é uma graça que nós recebemos, mas as boas obras são para o bem de outros, e é uma coisa mais abençoada dar do que receber.
A fé é uma graça mais oculta. As boas obras são mais visíveis.
A fé pode permanecer escondida no coração e pode não aparecer, mas quando são unidas as boas obras
com a fé, a fé brilhará diante dos homens, por causa
das nossas boas obras e trará glória ao Senhor.
Lembremos sempre que fomos criados em Cristo Jesus para as boas obras como se afirma em Ef 2.10.
Foi para este fim que fomos tornados filhos de Deus, em Cristo Jesus.
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É nosso dever vivermos para atender ao propósito para o qual fomos criados.
Através da misericórdia nos assemelhamos a Deus, que é um Deus de misericórdia. DEle é dito em
Miqueias 7.18 que se deleita na misericórdia.
Ele requer que o mal seja vencido com o bem.
Exige que pratiquemos o bem como vemos em Hb 13.16: “Mas não vos esqueçais de fazer o bem e de
repartir com outros, porque com tais sacrifícios Deus se agrada.”
Antes de fechar este assunto eu devo dizer que tudo o que fizermos deve ser de modo livre e voluntário e
devemos fazê-lo em Cristo e para Cristo, porque
estão perdidas, as melhores obras que não são originadas da fé.
Todo fruto aceitável a Deus deve ser produzido na Videira Verdadeira.
As obras de misericórdia devem ser feitas em humildade e sem ostentação. E se a nossa ação em
atender à necessidade do pobre for feita de tal forma
que venha a humilhá-lo, isto será em si mesmo um mal maior do que a própria necessidade dele.
Sejamos então criteriosos no exercício da misericórdia.
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6 – Os Puros de Coração
Nós procederemos ao comentário da sexta bem-
aventurança citada por Jesus em Mateus 5.8:
“Bem-aventurados os puros de coração, porque eles verão a Deus.”
Deus é tão puro de olhos que não pode ver o mal, e não pode contemplar a perversidade, como se
afirma em Hc 1.13.
Isto significa que os olhos de Deus são perfeita e puramente bons e não param para se deleitarem na
observação da maldade.
Os olhos de Deus não se detêm na contemplação do mal, antes têm repugnância a toda forma de
maldade.
Isto sucede com Deus porque a pureza é uma coisa sagrada perfeitamente refinada e que se levanta em
oposição a tudo o que é sujo.
Nós devemos distinguir os vários tipos de pureza.
Primeiro, há uma pureza primitiva que está originalmente e essencialmente em Deus.
A santidade é a glória da divindade. Deus é o padrão e protótipo de toda a santidade.
Segundo, há uma pureza criada.
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Assim, a santidade está nos anjos eleitos e esteve no começo da criação em Adão, antes dele cair no
pecado.
O coração de Adão não tinha a menor mancha ou impureza.
Nós chamamos isto de ouro puro que não tem qualquer escória misturada nele.
Tal era a santidade de Adão.
Mas tal pureza absoluta como estava em Adão antes da sua queda no pecado, não será mais achada na
terra.
Nós temos que buscar tal pureza no céu para poder encontrá-la, e se a encontrarmos, ela será aqui na terra, uma pureza evangélica.
Nesta pureza evangélica a graça se encontra misturada com algum pecado, como a escória no
ouro.
Deus chama esta mistura de pureza, em sentido evangélico.
Onde houver uma presença de pureza com uma repugnância por nós mesmos por causa da nossa impureza, então podemos dizer que somos puros de
coração.
Esta pureza evangélica é a pureza que é citada nesta
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bem-aventurança de que os puros de coração são aqueles que verão a Deus.
Porque é somente por meio da fé no sangue de Jesus, e pela obra de regeneração e santificação do
Espírito Santo, mediante a Palavra de Deus, que nós
somos de fato purificados dos nossos pecados e
achados dignos de estarmos em comunhão com Deus. Por isso, desde o princípio é ensinado por
Deus ao Seu povo que não é por nenhuma pureza
pessoal própria, segundo o modo de pensar do
homem e do mundo, que alguém pode estar de fato purificado aos Seus santos olhos divinos.
Toda a pureza que tivermos será operada em nós pelo Espírito Santo, com base no sangue purificador
de Cristo, conforme se vê tipificado desde os dias
mais remotos, mesmo de Adão, nos sacrifícios de animais exigidos por Deus para que os pecadores
pudessem se aproximar dEle.
Esta aproximação é feita pela fé. É pela fé no valor do sangue, na expiação de Jesus, e fé na Palavra de
Deus, que somos de fato purificados.
Assim, a simples educação não é nenhuma pureza.
É possível que um homem esteja repleto de virtudes morais, de prudência e temperança, e, contudo, ir para o inferno.
A simples profissão de fé não é também nenhuma pureza.
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Um homem pode ter um nome de que vive, ou seja,
ser considerado um crente, e ainda estar morto, como se vê em Ap 3.1.
Ele pode ter como o joio, toda a aparência com o trigo, e no entanto, o diabo ainda reside na casa.
Pureza de coração não exclui pureza de vida.
Mas é chamado pureza de coração, porque esta é a coisa principal da santidade, pois não pode haver
nenhuma pureza de vida sem isto.
O grande cuidado de um crente deveria ser portanto o de manter o seu coração puro.
Deve sobretudo ter atenção para que o amor ao pecado não entre no seu coração, porque é o pecado
quem mata a pureza de coração.
Uma das melhores formas de se prevenir do pecado é praticar a Palavra de Deus, guardando-a no
coração.
Porque se a Palavra habitar no coração, este não
perderá a sua pureza, por ser penetrado pelo pecado.
Daí dizer o salmista, no Salmo 119.11:
“Escondi a tua palavra no meu coração, para não pecar contra ti.”.
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A pureza é uma coisa ordenada pelo próprio Deus na Bíblia, como se vê em I Pe 1.16: “Ser-me-eis santos
porque eu sou santo.”. Afinal, o que um Deus Santo pode fazer com servos profanos?
Nada. Porque o pecado é uma enfermidade terrível, uma sujeira, uma imundície, uma pestilência
dolorosa, é um vômito.
O corpo de Cristo seria monstruoso se somente a cabeça fosse pura e não os membros também.
Importa pois, na condição de membros do corpo de Cristo que sejamos achados em pureza de coração e vida, tal como o nosso Senhor, como se afirma em I
Jo 3.2,3:
“2 Amados, agora somos filhos de Deus, e ainda não é manifesto o que havemos de ser. Mas sabemos
que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele; porque assim como é, o veremos.
3 E todo o que nele tem esta esperança, purifica-se a
si mesmo, assim como ele é puro.”.
A pureza deve ser principalmente do coração porque se o coração não é puro, nossa pureza não
será diferente em nada de uma pureza farisaica.
A santidade do fariseu consistia principalmente em exterioridades. A pureza deles era apenas externa.
Eles nunca deram atenção ao interior do coração.
O coração deve ser especialmente puro, porque é o
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coração que santifica tudo o que nós fazemos.
Se o coração for santo, tudo será, porque o coração é o altar que santifica a oferta.
Se nós devemos ser então puros de coração, nós não devemos nos contentar apenas com o nosso exterior.
Educação não é suficiente, porque um porco pode ser lavado, contudo é ainda um porco.
A educação nada faz além de ensinar boas maneiras a um homem, mas a graça o transforma no seu
interior.
A santidade de coração, a sua purificação está tipificada na Lei porque se exigia de Arão que ele lavasse as entranhas dos animais que eram
oferecidos em sacrifício no Velho Testamento,
como se vê em Lev 9.14.
Esta pureza de coração não é sentimental, mas
real, operada pelo lavar do Espírito Santo mediante aplicação da Palavra de Deus.
Satanás pode segurar um homem através de um só pecado específico.
Almas impuras brincam com o pecado. Eles sentem prazer pela injustiça, e por isso Deus permite que
sejam aprisionados pelo erro, como se afirma em II
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Tes 2.12. Este prazer pela injustiça mostra que a
vontade está presa ao pecado.
As Escrituras trovejam contra o pecado, mas estes pecadores não temem este trovão. Ministros que são como Boanerges, vestidos do espírito de Elias,
ainda que denunciem todas as maldições de Deus
contra os pecados dos homens, contudo ainda assim
eles não lhes dão a devida consideração.
O pecado os engana e os justifica, dizendo que Deus
não pode afinal exigir uma tal pureza de coração a pecadores. No entanto é o que Ele requer de fato e o
revelou de capa a capa na Bíblia. E esta resistência a
crer no padrão de santidade e pureza que são
exigidos por Deus em Sua Palavra é chamado pela Bíblia de coração mau de incredulidade, conforme
se afirma em Hb 3.12.
Este tipo de incredulidade é um tipo terrível porque chama Deus de mentiroso quando Ele afirma que
devemos ser santos porque Ele é santo.
Aqueles que não creem nos mandamentos de Deus e que não se dispõem a honrá-los e praticá-los,
nunca O amarão verdadeiramente, porque somente
os que têm os mandamentos de Cristo e que os
guardam são verdadeiramente aqueles que O estão amando.
Não admira que haja mesmo entre os filhos de Deus não poucos que não Lhe estejam amando de fato.
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A incredulidade endurece o coração e o torna hipócrita. E a falta de pureza do coração produzida
pela incredulidade o expõe a se tornar um apóstata. Esta é a razão porque muitos que pareciam uma vez
zelosos se encontram agora menosprezando os
santos e justos caminhos do Senhor.
Há uma antipatia entre um coração carnal e a santidade.
E todo aquele que deprecia a pureza tem um coração impuro.
Os carnais zombam daqueles que se esforçam para serem espirituais.
Mas não é ordenado por Jesus em Mateus 5.48 que sejamos perfeitos como Deus é perfeito?
Muitos tentam obter esta pureza de coração independentemente de serem batizados e andarem
no Espírito Santo. No entanto, é absolutamente
impossível vencer o pecado sem ser santificado pelo Espírito Santo, porque é Ele quem retira de nós não
somente as impurezas como o nosso apego às coisas
do mundo.
Daí que se a pessoa não se consagrar inteiramente a Deus, ela nunca poderá experimentar esta pureza de coração que faz parte da santificação.
Deus ama um coração quebrado, mas não um coração dividido.
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Porque somente um coração sincero seguirá a Deus completamente.
Um homem de coração sincero nunca agirá contra a sua consciência.
Um coração puro é um coração que se conduz pela verdade e sabe que é possível haver iluminação sem
santificação, como bem o exemplificam Saul e Judas.
Um homem pode reprimir e abandonar certos pecados, contudo não ter um coração puro, porque
o coração puro detesta todos os pecados.
Um homem pode reprimir o pecado pelo temor
da penalidade, mas o de coração puro reprimirá o pecado por amor a Deus.
Aqueles que protestam amar a Deus, mas que têm ainda suas mentes aprisionadas ao prazer das impurezas que Deus condena, não têm ainda um
coração puro.
Quando alguém chega a dizer com o salmista que odeia toda vereda de falsidade, isto é realmente
excelente, porque agora o amor ao pecado foi de fato crucificado, e isto é indicativo de que se alcançou
um coração puro.
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O salmista diz no Sl 119.104: “Pelos teus preceitos alcanço entendimento, pelo que aborreço toda
vereda de falsidade.”
Um coração puro evita a aparência do mal como se vê em I Tes 5.22.
Um coração puro evita aquilo que pode ser interpretado como mal.
Um coração puro executa deveres santos de uma maneira santa.
Um coração puro terá uma vida pura, como se ordena em II Cor 7.1:
“Ora, amados, visto que temos tais promessas, purifiquemo-nos de toda a imundícia da carne e do espírito, aperfeiçoando a santidade no temor de
Deus.”.
Onde há uma consciência boa haverá uma conversação boa.
Alguns bendizem a Deus e eles têm bons corações, mas as vidas deles são más.
Há uma geração que é pura aos seus próprios olhos e ainda não foi lavada da sua imundícia, como se afirma em Pv 30.12.
Um coração puro está tão apaixonado por pureza que nada pode desviá-lo disto.
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Deixe outros reprovarem a pureza, ele continuará amando a pureza.
Ele sabe que se os cegos ridicularizarem um
diamante, nem por isto o diamante terá menos valor pelo fato de estar sendo desprezado pelos que são
cegos. Portanto, o puro de coração amará a
santidade ainda que os cegos espirituais a
desprezem. Lembremos que é a pureza de coração que nos torna parecidos com Deus.
A infelicidade de Adão consistiu em que ele aspirou ser como Deus em onisciência; mas nós devemos
nos esforçar para sermos como Deus em santidade.
Sermos à imagem de Deus consiste em termos
santidade. E para aqueles que não têm esta imagem em santidade, Jesus dirá que não os conhece.
O Salmo 73.1 afirma que Deus é bom para com os
puros de coração.
Isto significa que Ele terá prazer em manifestar a Sua bondade aos tais, como recompensa do esforço
deles para agradá-lo buscando viverem em sincera
santidade.
Tudo cooperará para o bem destes que amam verdadeiramente a Deus; porque são de coração puro, e buscam guardar os Seus mandamentos. Por
isso o puro de coração verá a Deus.
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Mas como nós atingiremos a pureza de coração?
Isto é obtido pelo exercício das graças espirituais, mas especialmente pela prática da Palavra de Deus.
Por se meditar frequentemente na Palavra de Deus.
Jesus disse aos seus discípulos em Jo 15.3: “Vós já estais limpos pela palavra que vos tenho falado.”.
E rogou ao Pai que os santificasse na verdade, como vemos em João 17.17: “Santifica-os na verdade, a tua
palavra é a verdade.”.
A pureza de coração é obtida também por se orar para se ter tal pureza.
Vejamos agora de que maneira os puros de coração verão a Deus.
O puro de coração verá o puro Deus, e há uma visão dupla que os santos têm de Deus.
Primeiro, nesta vida; quer dizer, espiritualmente pelo olho da fé. A fé vê os atributos gloriosos de Deus
na Sua Palavra. A fé vê Deus através das Suas
ordenações. Assim Moisés viu aquele que é invisível como se afirma em Hb 11.27.
Em segundo lugar os santos verão a Deus, na vida por vir.
Nós veremos Deus como Ele é, conforme prometido
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em I Jo 3.2, na plenitude da Sua glória, porque teremos corpos glorificados, não de carne e sangue,
mas corpos celestiais apropriados para terem tal
visão de Deus, que é espírito.
Será, portanto, uma visão perfeita.
Nós veremos o rei na Sua formosura como se diz em Is 33.17.
Ali entenderemos o por que são devidas uma pureza e santidade totais a um Deus tão grande.
Não se trata, portanto, apenas de uma promessa de que os puros de coração verão a Deus, mas nesta
promessa estão embutidas todas as consequências
sagradas e espirituais que acompanharão este
privilégio de poder ver a Deus, como recompensa de ter se empenhado na purificação do coração contra
todos os tipos de pecados.
Aqueles que honraram a Deus deste modo neste mundo, serão honrados e recompensados por Ele
na glória.
Porque se diz que bem-aventurados são estes que
são puros de coração, porque verão a Deus.
Como pode então uma pessoa estar confiante e segura de que verá a Deus se não tem tido tal pureza
de coração aqui neste mundo?
Jesus não disse que bem-aventurados são os que
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forem purificados dos seus corações no céu para poderem ver a Deus; mas que bem-aventurados são
os que são puros de coração neste mudo, porque estes, e somente estes podem ter a certeza de que
verão a Deus no céu.
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7 – Os Pacificadores
Nós vamos proceder ao comentário da sétima
bem-aventurança citada por Jesus em Mateus 5.9,
de que bem-aventurados são os pacificadores,
porque eles serão chamados filhos de Deus.
Este é o sétimo degrau da escada de ouro que conduz
à bem-aventurança.
O trabalho da paz é um trabalho abençoado, e por isso se diz que são bem-aventurados os
pacificadores.
A Bíblia une a pureza de coração à paz de espírito:
“Mas a sabedoria que vem do alto é, primeiramente, pura, depois pacífica...” como se lê em Tg 3.17.
Em Hb 12.14 nós lemos: “Segui a paz com todos, e a santificação...”.
Aqui Jesus une puros de coração com pacificadores, como se não pudesse haver nenhuma pureza onde não há uma sincera busca de paz. Os que amam a paz
do Senhor e que se empenham por serem achados
em paz nEle são praticantes da verdadeira religião,
porque é suspeita a religião que está cheia de facção e discórdia.
Não se pode dizer que são bem-aventurados aqueles que estão divididos em seus corações por disputas,
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invejas, iras, discórdias. Mas bem-aventurados são
todos aqueles que são promotores da paz, primeiro
em si mesmos, vencendo a fúria pecaminosa de
seus corações, e depois no trato com os seus semelhantes.
Assim, antes que um homem possa ser um promotor da paz, ele deve ser um amante da paz.
A paz de espírito é a beleza visível de um santo, que expressa a pureza escondida no interior do seu
coração.
O ornamento de um espírito pacifico e quieto é uma joia de grande valor à vista de Deus, como se lê em I Pe 3.4.
Os crentes são ovelhas de Cristo, e a ovelha é uma criatura pacífica.
Embora os crentes devam ser leões em relação à coragem para enfrentar o pecado, contudo eles
devem ser cordeiros em relação à paz.
Deus não estava no terremoto e nem no fogo, mas
no cicio suave, quando falou com Elias na caverna.
Assim Deus não está no espírito do iracundo, mas no espírito do pacífico.
Nós temos que ter paz em família, quer nos lares, quer na igreja.
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Isto é chamado de laço de paz em Ef 4.3. Sem este laço o que teremos serão partes isoladas e não uma unidade.
A paz é o cinto que amarra os membros unidos numa família.
Não pode haver nenhum verdadeiro conforto sendo cultivado em nossos lares, caso a paz não seja
entretida como um ocupante permanente em
nossas casas.
Há uma paz paroquial, quando há uma doce harmonia, uma afinação de afetos, quando há um só
sentir e querer, como diz o apóstolo Paulo em I Cor
1.10:
“Rogo-vos, porém, irmãos, pelo nome de nosso Senhor Jesus Cristo, que digais todos uma mesma coisa, e que não haja entre vós dissensões; antes
sejais unidos em um mesmo pensamento e num
mesmo parecer.”.
Uma só corda arruinada na harpa desafinará a música e impedirá a unidade harmoniosa da
melodia.
Um só membro ruim quer na família, quer na igreja, pode vir a prejudicar o todo.
Por isso é ordenado na Palavra: “Tende paz entre vós.”, como se lê em I Tes 5.13.
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Há paz na igreja quando há unidade e verdade entre os seus membros.
Nós devemos ser pacificadores porque nós fomos chamados à paz, conforme se afirma em I Cor 7.15.
Deus nunca chamou qualquer homem à divisão. Isso é uma razão por que nós não deveríamos ser dados à discussão, porque nós não temos nenhuma
chamada para isto. Mas Deus nos chamou à paz, para
nos edificarmos mutuamente no corpo de Cristo.
Por isso a natureza da graça no trabalho de mudar o coração é no sentido de torná-lo pacífico.
Por natureza nós somos de uma disposição violenta.
Quando Deus amaldiçoou a terra por causa do homem, a maldição foi a de que ela deveria produzir espinhos e cardos (Gên 3.18). O coração do homem
natural está debaixo desta maldição. Produz nada
mais do que os espinhos e cardos da discussão e da
contenda. Mas quando a graça entra no coração ela o torna pacífico. Implantando no coração uma
doçura e disposição amorosa.
Assim a paz nos mostra o caráter de um verdadeiro santo. Ele é dado à paz. Ele é o guardião da paz. Ele é
um filho da paz.
A paz que um crente busca não deve ter ligações de amizade com os que vivem no pecado. Embora nós
devamos estar em paz com as pessoas deles,
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contudo nós devemos estar em guerra com os seus
pecados. Nós devemos ter paz com as pessoas deles
como sendo feitos à imagem de Deus, mas ter
guerra com os pecados deles como sendo feitos à imagem do diabo.
Nós devemos ter uma paz civilizada com o pior dos pecadores, mas não um laço de amizade, porque isto
significa comunicar-se com as obras infrutíferas das
trevas, como se afirma em Ef 5.11.
O rei Josafá, embora fosse um crente devotado, foi
culpado disto, em sua aliança com a casa de Acabe. Sua falta consistiu em não ter tido apenas uma paz
civil com Acabe, mas ele formou laços de amizade
com ele, e foi isto que despertou a ira de Deus em
relação a Josafá. Assim, nós devemos ser úteis a todos os homens, aconselhá-los, aliviá-los, mas não
devemos permitir ter muita familiaridade com eles,
porque nós nunca devemos comprar a paz com a perda da santidade.
Não devemos ter paz com outros sobre bases erradas. A verdade deve ser comprada e nunca
vendida, como se afirma em Pv 23.23.
A paz não deve ser comprada com a venda da verdade. A verdade é a base da fé. A verdade é a
maior pedra preciosa das igrejas. A verdade é um depósito, um tesouro, que contém o que Deus nos
confiou.
Nós não devemos deixar nenhuma das verdades de
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Deus cair ao chão.
Nós não devemos buscar a flor da paz quando isto implicar a perda da pérola da verdade.
Alguns dizem que devemos estar unidos a todos, mas nós não devemos nos unir com o erro.
Que comunhão tem a luz com a escuridão? Como se diz em II Cor 6.14?.
Há muitos que têm paz com hereges que negam a Palavra, mas isto é uma paz diabólica. Amaldiçoada
seja aquela paz que faz guerra contra o Príncipe da paz. Embora nós devamos ser pacíficos, contudo nós
somos ordenados a defender a fé, como se ordena
em Judas 3.
Nós nunca devemos estar tão apaixonados pela
coroa dourada da paz ao ponto de arrancar dela as joias da verdade. Se preciso for deixe que a paz se vá
em vez da verdade. Os mártires prefeririam perder suas vidas a negarem a verdade.
É somente por este amor à verdade e sua prática que os servos de Cristo podem viver em verdadeira
harmonia e paz, amando-se uns aos outros. E isto é o
que Cristo espera daqueles que são seus, como se vê em Jo 13.35.
As tábuas do tabernáculo eram unidas pelos travessões de ouro que simbolizam o amor e a paz de
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Deus. De igual modo as suas cortinas eram unidas
por laçadas que representavam os laços de amor e paz.
Assim os corações dos crentes devem estar unidos pelos laços de unidade em amor e paz.
Uma disposição pacífica é uma disposição divina.
Deus Pai é chamado “o Deus de paz” em Hb 13.20.
Deus Filho é chamado “o Príncipe da paz” em Is 9.6. E ele saiu do mundo deixando-nos um legado de paz,
como se lê em João 14.27.
Deus Espírito Santo é um Espírito de paz. Ele tomou a forma de uma pomba. Ele é o Consolador.
Cristo orou em favor da paz entre as pessoas do Seu povo, como vemos em João 17.11, 21, 23. Ele orou para
que os crentes fossem um, de modo que tivessem a
mesma mente e coração.
Cristo não somente orou pela paz, mas sangrou para isto.
Ele não morreu somente para fazer paz entre Deus e os homens, mas também entre homens e homens.
Discussão e contenda impedem o crescimento da graça. Quem se disporia a semear num campo
repleto de espinheiros? Os espinhos sufocam a
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semente da graça e impedem a sua germinação e
crescimento.
Como a fé pode crescer num coração sem paz?
Porque a fé opera pelo amor.
Por isso Cristo exorta os crentes a terem paz uns com os outros, como se vê em Mc 9.50.
Somente quando os corações dos crentes são uma casa espiritual adornada com a mobília da paz, então
eles estão preparados para hospedarem o Príncipe
da paz.
Para mantermos esta mobília abençoada da paz em
ordem é preciso não dar ouvidos aos fofoqueiros (Lev 16.16), que de alguma forma sempre procurarão
nos exasperar e nos derrubar com os seus relatórios.
E Satanás sempre procurará enviar suas correspondências a nós através destes seus
mensageiros. O fofoqueiro é um incendiário. Ele
ativa o carvão da contenção para nos indispor com
os homens.
O orgulho deve ser mortificado porque é a
humildade a solda que une os crentes em paz.
A inveja deve ser também mortificada porque a paz não pode habitar juntamente com este ocupante.
Nós não devemos somente abandonar estes pecados que são contrários à paz, como devemos
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nos esforçar para obter aquelas coisas que conduzem à paz, e dentre estas podemos destacar:
A fé, porque ela realiza aquilo que a Palavra nos ordena. A Palavra diz em II Cor 13.11: ”vivei em paz”,
e pela fé nós somos habilitados a crer e a obedecer
tal ordenança.
Podemos destacar também a prática da comunhão cristã que nos ajuda a vivermos em paz uns com os
outros.
Não devemos também nos concentrar nas falhas dos outros, mas nas graças deles.
Não há nenhuma perfeição aqui neste mundo. Em vez de ressaltarmos as fraquezas deles devemos
voltar nossa atenção para as suas virtudes.
Devemos também orar para que Deus envie o Espírito da paz aos nossos corações. Oremos para
que o Senhor extinga o fogo da contenda e acenda o
fogo da compaixão em nossos corações.
Os cristãos não devem ser apenas pacíficos, mas pacificadores, ou seja, eles devem levar outros a estarem em paz. Eles devem ser instrumentos da
consolação do Espírito para trazer alívio aos
corações atribulados. Eles devem ser o instrumento
da reconciliação entre os pecadores e Deus, e da reconciliação entre irmãos. Esta é uma tarefa difícil,
mas que sempre contará com a bênção de Deus.
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Deus abomina os semeadores de discórdias entre irmãos, como se vê em Pv 6.19.
As divisões obstruem o progresso do evangelho. Mas a obra de Deus avançará onde houver unidade
e paz. Aquele que semeia paz colherá paz.
O pacificador morrerá em paz porque levará uma
boa consciência com ele e deixará um bom nome atrás de si.
Os pacificadores serão chamados filhos de Deus e nisto está o privilégio glorioso dos santos. Aqueles
que fizeram a paz deles com Deus e labutaram para
fazer a paz entre seus irmãos terão esta grande honra conferida a eles, a de serem chamados filhos
de Deus.
Eles serão reconhecidos como sendo da mesma disposição e natureza de Deus, semelhantes a Ele,
seus imitadores amados que alcançaram o testemunho de Lhe terem agradado. Pelo seu
procedimento pacífico e pacificador serão
reconhecidos como sendo verdadeiramente filhos
de Deus. Esta é então a marca essencial de um filho de Deus, a saber, aqueles que têm paz com Ele e com
seus irmãos. E devemos destacar a honra do nome
dos filhos de Deus, porque eles são preciosos para o
Pai deles.
Deus os olha como pessoas honradas. O nome deles é precioso. As orações deles são preciosas. As
lágrimas deles são preciosas.
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Os filhos de Deus têm títulos de honra. Eles são chamados de reis em Apo 1.6. A excelência da terra
no Sl 16.3. Vasos de honra em II Tim 2.21.
O estado dos filhos de Deus é mais excelente e honrado do que o estado de Adão quando estava vestido de inocência no Éden, porque apesar de
glorioso era mutável, e foi logo perdido, mas os
filhos de Deus por adoção estão num estado
inalterável, pela impossibilidade de caírem da posição de sua filiação.
É prometido a eles que serão seguramente como os anjos eleitos do céu. Tal como os anjos eleitos,
jamais serão lançados fora da presença de Deus por
causa da eleição dos crentes, que foi conhecida por
Deus antes mesmo da fundação do mundo.
As correções divinas às quais eles estão submetidos não são para a confirmação da adoção deles como
filhos, senão a prova do amor de Deus para com eles,
que os está aperfeiçoando para poderem
experimentar da Sua própria santidade, este fruto maravilhoso da árvore da vida celestial.
Um dos grandes privilégios da adoção é que se nós somos filhos, então Deus será paciente com muitas
fraquezas. Um pai é muito paciente com um filho
que ele ama. Ele os poupará ainda que não encubra o mal que eles venham a praticar. Ele não tomará
vingança contra eles, mas terá piedade.
Um pai se esforça para livrar os seus filhos do mal. E
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Deus move o céu e os anjos para a proteção dos seus filhos, quer dos males externos, quer do mal em
seus corações. E sendo filhos somos herdeiros de
Deus e de todas as Suas boas promessas, como se vê
em Hb 6.17.
E se somos filhos, teremos sempre a bênção do nosso Pai celestial.
Os filhos de Deus não podem perecer eternamente porque a justiça de Deus está satisfeita quanto aos
pecados deles.
O sangue de Cristo é o preço que foi pago para que a justiça ficasse completamente satisfeita.
Assim, esta bênção da salvação eterna é segura para os crentes verdadeiros, por causa da eleição deles, mas um viver abençoado neste mundo é sempre
condicional à obediência do crente à verdade,
porque Deus mesmo dispôs esta verdade para
incentivar os Seus filhos à santificação das suas vidas.
De maneira, que ninguém espere um viver abençoado neste mundo, caso não esteja vivendo
em conformidade com a vontade de Deus.
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8 – Os Perseguidos
Nós vamos proceder ao comentário relativo à
oitava e última bem-aventurança citada por Jesus
em Mateus 5.10, de que bem-aventurados são os
perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus.”.
Nesta última bem-aventurança Jesus nos leva a considerar o custo da vida cristã.
Nós teremos lágrimas de arrependimento e o sangue da perseguição, mas nós vemos aqui um
grande encorajamento para nos impedir de
desfalecer no dia da adversidade, porque nos é prometida a coroação no Seu reino celestial.
A verdadeira piedade será perseguida. E é por isso que entramos no reino de Deus através de muitas
tribulações como se afirma em At 14.22.
Lutero disse apropriadamente que Cristo morreu para tirar a maldição de nós, mas não a cruz.
Os santos não têm nenhuma promessa nas
Escrituras que seriam livrados das provações.
Embora sejam mansos, misericordiosos, puros de coração e pacificadores, a devoção deles não os
protegerá de sofrimentos.
A palavra grega para perseguir significa “vexar,
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molestar, fazer fugir, procurar a morte”.
Há vários tipos de perseguição. Ela pode ser física e espiritual. Mas a sua causa e base geralmente serão
ocasionadas pela perseguição do erro à verdade.
Deus tem propósitos santos e sábios nas perseguições que permite que venham sobre os
seus filhos.
As provações refinam a fé dos crentes e distingue os verdadeiros santos dos hipócritas, porque somente
uma fé genuína não é destruída pelas tribulações.
Deus permite que seus filhos passem pelo forno das
provações para que os seus corações sejam purificados. Ele remove as escórias do orgulho,
impaciência, amor ao mundo e tudo aquilo que é
contrário à santidade.
Estas perseguições decorrem sobretudo do fato de
que há uma inimizade entre a semente da mulher e a semente da serpente.
As tempestades de perseguições caem principalmente sobre os ministros do evangelho
porque eles precisam ser mais refinados do que os
demais crentes por conta do ofício sagrado que lhes foi confiado de apascentarem o rebanho do Senhor.
Especialmente os ministros devem destruir o reino de Satanás e ele cuspirá todo o seu veneno neles.
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Se nós pisamos na cabeça do diabo ele nos ferirá o calcanhar. E o trabalho dos ministros é o de tirar as
pessoas de Deus das garras do diabo.
Assim, um pastor fiel sempre sofrerá provações e oposições.
Agora, esta perseguição e sofrimento é o que torna um homem bem-aventurado. Não a perseguição
pelo fato de ser um malfeitor, mas por ser um amante da justiça divina.
É quando sofremos por causa do nosso amor à justiça, na defesa e pregação da verdade, no bom
combate da fé, que somos bem-aventurados.
Estes guerreiros santos que defendem a causa da justiça de Cristo conquistarão o reino dos céus.
Quando há fins bons em nosso sofrimento, pelos quais nós possamos glorificar a Deus, nós
poderemos e daremos com isto, testemunho da
verdade e mostraremos nosso amor a Cristo.
Não há, neste tipo de sofrimento, no dizer do apóstolo, em I Pe 4.16, do que se envergonhar.
Um amor verdadeiro não esfria e não recua por
causa das aflições quanto ao ser amado. Ao contrário ele se mostra verdadeiro e fiel na sua perseverança muito mais nestas horas difíceis. O
nosso relacionamento com o Senhor é da qualidade
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e nível de um matrimônio. E nossa união a Ele está sendo provada em todas as circunstâncias.
Jesus nos deixou o legado da paz, mas também o das aflições, para que esta paz seja gloriosa, porque é
dada sobrenaturalmente por Ele a nós em meio às
aflições.
Assim a Sua vitória triunfa sobre todas as
circunstâncias difíceis que possamos experimentar.
A justiça de Cristo com a qual os crentes estão vestidos, e a justiça que a graça tem implantado
neles e que se manifesta nas suas boas obras darão
ocasião a que sejam perseguidos por aqueles que
são contrários à verdade e que não amam a luz, senão as trevas.
Há, portanto, um combate estabelecido, não propriamente contra a carne e o sangue, mas contra
os poderes das trevas.
O medroso não está habilitado a lutar as guerras de Cristo. Um homem possuído de temor não consulta o que é melhor, mas o que é mais seguro.
Para poder salvar a sua pele e propriedade ele agirá contra a sua própria consciência.
O temor fará o pecado parecer pequeno e o sofrimento grande.
O medo enfraquece e lança fora a coragem.
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O temor é a raiz da apostasia. Então Cristo exorta os crentes a lançarem fora o medo e estarem prontos a
sofrerem por amor à justiça.
A causa do evangelho deve triunfar ainda que seja necessário ser escrita a vitória com o
derramamento do sangue dos crentes pelos seus perseguidores.
O bom soldado de Cristo suporta o sofrimento como se afirma em II Tim 2.3; sofrimento este que lhe
sobrevém no bom combate da fé.
Jesus nos exorta à fidelidade mesmo em face da morte porque nos tem prometido a coroa da vida em
Apo 2.10. Mas é preciso que um crente aprenda primeiro a negar-se a si mesmo, ou seja, a negar o
seu ego, antes que ele possa carregar a cruz.
O eu se levantará contra a cruz, mas um ego negado não poderá nos impedir de carregá-la e o eu será
definitivamente crucificado por ela.
O velho homem detesta a cruz, mas a nova
criatura a ama e não se opõe a ela, e a carrega
voluntariamente, assim como Jesus carregou a Sua cruz.
Pela fé nós podemos resistir até o sangue como se vê em Hb 11.34. A fé é uma graça vitoriosa.
A fé une o espírito do crente a Cristo e é esta Cabeça
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santificada que dá força aos Seus membros, de modo que tudo podemos em Jesus que nos fortalece.
Deus prometeu estar com os santos nos seus sofrimentos.
Ele fez promessas de libertação de todas as tribulações dos justos. Ele está no controle de todas
as perseguições que eles possam sofrer e nada lhes sucederá em sua fidelidade a Deus, sem que Ele o
permita.
Assim, em tudo o que têm que sofrer, devem aprender a ver a mão do Senhor em tudo, e a esperar
nEle, enquanto devem prosseguir adiante fazendo a
Sua santa vontade.
Aquele que recusa sofrer perseguição nunca será livre de sofrer, pois terá sofrimentos internos de
consciência, e em se tratando de incrédulos, terão
que padecer um sofrimento no fogo eterno. Estes
sofrimentos presentes não podem impedir um homem de ser abençoado.
Muitos julgam que bem-aventurados são os ricos e os que não sofrem, mas Jesus diz que bem-
aventurado são os que sofrem por causa da justiça,
pois isto comprova que de fato estão do Seu lado, que eles se converteram das trevas para a luz, e figuram
agora entre aqueles que serão coroados no céu.