Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017
ISSN 2236-1855 5623
“ENCANTO E VERDADE”: NOÇÕES DE HIGIENE NA LITERATURA INFANTIL1
Larissa Lima Almeida Moraes2
Na primeira metade do século XX, o ensino de noções de saúde e higiene ancorou-se
em distintas disciplinas escolares, sendo possível identificar temáticas relacionadas ao asseio,
à alimentação e à prevenção das doenças, por exemplo, dispersas em diferentes componentes
do currículo da escola primária. O processo de disciplinarização da higiene se fez
acompanhar da produção e da seleção de textos escolares, dentre os quais os manuais que
fazem alusão direta às questões de saúde, como também os manuais de civilidade, de ciências
naturais, entre outros. O discurso higienista percorre, ainda, as páginas de muitos livros de
leitura, configurados, durante um largo período, como os únicos livros a que tinham acesso
as crianças.
O presente trabalho busca contribuir para o mapeamento de livros escolares
produzidos no período, que, de forma direta ou indireta, põem em circulação o discurso da
higiene e da saúde na escola primária paulista. Para tanto, elege um recorte específico: os
apêndices elaborados por Lourenço Filho, como editor da Melhoramentos, para a coleção
Biblioteca Popular de Hygiene: Saúde para todos, de autoria do médico higienista Sebastião
Mascarenhas Barroso, publicada na década de 1930.
Os apêndices, intitulados “Orientação didactica para o professor”, aparecem em um
momento em que a coleção começa a se direcionar ao público escolar. Constituem-se em
textos que visam oferecer uma proposta metodológica, buscando explicitar detalhadamente
os procedimentos por meio dos quais a coleção deveria ser utilizada em sala de aula. Nesse
sentido, oferecem indícios da concepção de educação higiênica que guiava o editor, um dos
educadores envolvidos no movimento de renovação educacional. Para além destas
recomendações, Lourenço Filho apresenta uma lista de outras obras a serem usadas em
conjunto com os títulos da coleção para o ensino de higiene.
As indicações do editor apresentam títulos oriundos de outras coleções publicadas pela
editora, livros pertencentes a séries graduadas de leitura, além de obras de literatura infantil
1 Este artigo é vinculado ao mestrado no Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Estadual de Campinas (FE/ UNICAMP).
2 Mestranda em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). E-Mail: <[email protected]>.
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e um manual para o ensino de geografia. Em meio a esse variado corpus de livros indicados
nos apêndices, selecionamos como fontes para esta comunicação os títulos El-Rei D. Sapo; D.
Içá Rainha e Totó Judeu, de autoria de Thales Castanho de Andrade, pertencentes à coleção
Encanto e Verdade.
Nascido em 1890 na cidade de Piracicaba, este autor iniciou sua carreira como
professor de primeiras letras na Escola Normal, também atuou como Inspetor Técnico do
Ensino Rural. Sua notória atuação no meio educacional o levou, já no fim de sua carreira, a
assumir a posição de Diretor geral do Departamento de Educação do Estado de São Paulo,
cargo que ocupou de 1948 até 1955, ano em que se aposentou. Neste intervalo, Thales de
Andrade, utilizou sua influência como educador para explorar outros campos, atuou na esfera
política e jornalística, também merece destaque sua importante contribuição como autor de
livros destinados ao público infantil. Como jornalista, colaborou com as revistas “Vida
Moderna”, “Revista da Educação da Escola Normal de Piracicaba” e “A Cigarra”. Também
encontramos artigos de sua autoria nos jornais “Gazeta de Piracicaba”, “Jornal de
Piracicaba”, “Folha Ferreirense” e “Diário Carioca”. Na política, foi vereador de sua cidade
natal no período de 1920 a 1922.
A partir desta breve reconstituição biográfica, podemos perceber a notória influência de
Thales de Andrade, principalmente no interior paulista do século XX. Porém, seu nome
alcançou distâncias além das fronteiras piracicabanas, sendo reconhecido em quase todo
território nacional devido as suas obras de caráter literário. Publicou quarenta e sete livros,
dentre os quais uma série graduada destinada especificamente à leitura escolar do primeiro
ao terceiro ano do curso primário. Publicada pela Companhia Editora Nacional, esta série
possuí apenas oito títulos, mas com um número expressivo de vendas, considerando que
alguns foram editados mais de sessenta vezes, incluindo um dos maiores sucessos do autor: o
livro de título “Saudade”. Hilsdorf e Alexandre consideram que estes livros “(...) assumiram
uma feição plenamente didática, como aqueles volumes editados pela Companhia Editora
Nacional e reunidos na Série Thales de Andrade, elaborada especialmente para a
aprendizagem da leitura” (HILSDORF e ALEXANDRE, 2013, p. 148). Outros grandes
sucessos do autor foram “Itaí, o menino das Selvas” e “O Campo e a Cidade”. Destacamos
ainda a Coleção Encanto e Verdade, com vinte e seis livros (três dos quais foram selecionados
como fonte para esta comunicação).
Este autor é considerado por alguns pesquisadores como o pioneiro da literatura
infantil no Brasil, apesar de muitos considerarem que Monteiro Lobato teria sido o
vanguardista deste gênero. André Dela Vale afirma que Thales de Andrade “lançou o seu
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primeiro livro de conto ‘A Filha da Floresta’ em 1919, antes mesmo de Monteiro Lobato
lançar ‘Narizinho Arrebitado” (VALE, 2004, p. 1). No prefácio de uma reedição de Encanto e
Verdade publicada em 1967, o próprio autor comenta a publicação de seu primeiro conto e a
relação com Monteiro Lobato:
Escrito, com o nome de ‘A Filha da Floresta’, li-o, em sessão especial, a jornalistas, escritores e educadores, a 23 de março de 1919, recebendo aplausos dos ouvintes (...). Em consonância com o meu torrão natal, igual acolhimento alcançou na capital paulista e em outras cidades. Em São Paulo, visitei o genial Monteiro Lobato. Queria conhecê-lo, pessoalmente, e agradecer-lhe, de viva voz, a autorização que me dera de inserir em ‘Saudade’, o conto de sua autoria ‘Pedro Pichorra’, publicado sob o pseudônimo de Hélio Bruma, em ‘O Estado de São Paulo’, edição vespertina. Queria oferecer-lhe um exemplar de ‘A Filha da Floresta3’ e informá-lo do ‘encasulamento’ de ‘Saudade’. Fui recebido de braços abertos. Opinou ser o trabalhinho ‘literatura genuinamente brasileira’. (ANDRADE, 1967, p.5).
O debate sobre a gênese da literatura infantil brasileira vem crescendo em diversos
meios acadêmicos, a intenção aqui não é discutir quem seria o precursor deste gênero
literário, mas expor sua crescente consolidação no século XX. A criação das escolas primárias
favoreceu o surgimento de uma determinada “literatura escolar”, o uso de livros para fins
didáticos comprometia-se com o ensino de valores sociais e morais relevantes na época.
Considerando que uma das temáticas mais urgentes da primeira metade do século XX
consistia no ensino de noções de Higiene, era de se esperar que este conteúdo embarcasse no
estouro de livros de leitura daquele período. Uma vez que a principal intenção desta
literatura era incutir valores e comportamentos, a Higiene atravessou diversos dessas obras.
O objetivo da presente comunicação é ampliar a leitura sobre o universo de livros por meio
dos quais se procurou pôr em circulação as noções de Higiene e saúde no universo escolar. O
recorte das três obras selecionadas pretende cumprir com esta função, realizaremos um
exame desse material em conjunto com as prescrições encontradas nos apêndices de autoria
de Lourenço Filho, buscando compreender que noções de Higiene são encontradas em suas
entrelinhas.
Antes de partimos para a análise das três obras específicas, julga-se necessário uma
apresentação da coleção a qual pertencem. “Encanto e Verdade” foi publicada pela primeira
vez em 1919 pela Companhia Melhoramentos, a coleção é composta por vinte e seis livros
destinados ao público infanto-juvenil, algumas dessas obras alcançaram mais de dez edições.
Stanislavski (2005) classifica a coleção como uma série de “contos infantis”, diferenciando de
3 Grifo do texto original.
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outra coleção do mesmo autor, considerada como uma série de leitura escolar. Mesmo que
não indicada especificamente para o uso no ambiente educacional, suspeita-se que títulos de
“Encanto e Verdade” tenham sido utilizados para complementar conteúdos escolares, o
maior indício disto são os apêndices assinados por Lourenço Filho na coleção de Sebastião
Barroso.
El-Rei Dom Sapo, Dona Içá Rainha e Totó Judeu, são, respectivamente, o segundo,
quarto e oitavo livros da série. De acordo com Stanislavski (2005), o primeiro alcançou dez
edições, Dona Içá Rainha, oito edições e Totó Judeu, apenas duas. Importante destacar que
esta autora refere-se à última obra como “Totó Mau”, o que levanta o questionamento se
ocorreu alteração do título de uma edição para a outra.
Esta comunicação se fundamenta em alguns volumes que tivemos acesso no arquivo da
Editora Melhoramentos e em uma reedição datada de 1967. No arquivo da editora,
consultamos uma versão de El-Rei Dom Sapo publicada em 1922, o livro não apresentava a
informação de qual edição pertencia. Na capa de Dona Içá Rainha, ao contrario da anterior,
encontramos a identificação de ser a quarta edição, porém sem o ano de publicação. Com
Totó-Judeu, as informações são ainda mais imprecisas, não apresentando nem o ano de
publicação, nem a edição. Na contracapa, encontramos o número 1927 escrito a lápis, o que
talvez seja um possível indício do ano em que foi publicado, embora a veracidade dessa
informação não possa ser confirmada. Além dos três livros consultados no arquivo, foi
encontrada uma edição especial publicada em 1967 (bicentenário de Piracicaba). Das vinte e
seis histórias originais da coleção, apenas seis permanecem nesta nova versão, El-Rei Dom
Sapo e Dona Içá Rainha são mantidas, já Totó Judeu é excluída.
A procura por diferentes edições permite observar possíveis alterações nas historias,
bem como na materialidade que as dá suporte, uma vez que compreendemos que o suporte
material do livro é tão importante quanto seu conteúdo. Apoiados nas contribuições de Roger
Chartier, consideramos fundamental perceber as condições de produção do livro como
impresso, como objeto cultural e também mercadológico. Este autor ressalta que:
Contra a representação, elaborada pela própria literatura, segundo a qual o texto existe em si, separado de toda materialidade é preciso lembrar que não há texto fora do suporte que lhe permite ser lido (ou ouvido) e que não há compreensão de um escrito, qualquer que seja, que não dependa das formas pelas quais atinge o leitor. Daí a distinção indispensável entre dois conjuntos de dispositivos: os que provêm das estratégias de escrita e das intenções do autor, e os que resultam de uma decisão do editor ou de uma exigência de oficina de impressão. (CHARTIER, 1991, p.182).
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Os três livros consultados na editora possuem a mesma imagem na capa, um cenário
rural com destaque para um menino com um livro na mão e uma menina (aparentemente um
pouco mais velha) gesticulando como se explicasse algo ao garoto. Ao lado das crianças, um
cachorro acompanha a cena. O título da coleção, o nome do autor e o título do livro se
encontram na parte superior da capa. O símbolo da editora aparece em evidência abaixo da
imagem.
Na edição mais recente, não encontramos diferenças significativas no que se refere às
narrativas originais, a linguagem foi adaptada e alguns termos substituídos para
enquadrarem-se melhor à época, sem alterar o sentido da história. Todavia a materialidade
foi modificada substancialmente. A opção do editor foi por um livro de capa dura com
dimensões maiores que as versões antigas, agora com vinte e três centímetros e meio por
dezesseis centímetros. O título da coleção, bem como o símbolo da editora, são deslocados
para a lombada do livro, o nome do autor aparece apenas na contracapa.
Concentrada no canto inferior direito encontra-se o desenho em alto relevo de uma
mulher sentada com duas crianças aos seus pés, ela também gesticula como se contasse uma
história. O cenário rural desaparece, bem como a presença de animais. Nas primeiras
versões, as crianças eram protagonistas da cena, na edição de 1967 elas parecem escutar
passivamente as explicações de um adulto. Outro elemento que deve ser destacado é a
presença do livro que acompanha as crianças nas capas originais, este objeto desaparece na
capa mais recente, incitando uma possível representação de história oral.
Figura 1 – Capa do livro El Rei Dom Sapo, 1922.
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Figura 2 – Capa do livro Encanto e Verdade, 1967.
Considerando que a “leitura é sempre uma prática encarnada em gestos, espaços,
hábitos” (CHARTIER, 1991, p.178), as alterações das capas nos permite especular possíveis
expectativas sobre o uso dos livros e os modos de ler em diferentes épocas e contextos. As
primeiras edições foram publicadas em um período que, apesar dos investimentos em
urbanização, a zona rural abrigava a maior parte da população. Neste contexto, os livros
infantis ainda eram concentrados quase que exclusivamente ao âmbito escolar. A outra
edição analisada pertence a um contexto histórico completamente diferente e,
consequentemente, os hábitos de leitura também eram outros. Chartier nos lembra que a
construção de sentido na leitura é um processo historicamente determinado “(...) cujos
modos e modelos variam de acordo com os tempos, os lugares, as comunidades.”
(CHARTIER, 1991, p.178). E ainda complementa:
[...] as significações múltiplas e móveis de um texto dependem das formas por meio das quais é recebido por seus leitores (ou ouvintes). Estes, com efeito, não se confrontam nunca com textos abstratos ideais, separados de toda materialidade: manejam objetos cujas organizações comandam sua leitura, sua apreensão e compreensão partindo do texto lido. Contra uma definição puramente semântica do texto, é preciso considerar que as formas produzem sentido, e que um texto estável na sua literalidade investe-se de uma significação e de um estatuto inéditos quando mudam os dispositivos do objeto tipográfico que o propõem à leitura. (CHARTIER, 1991, p.178).
Assim, a análise da materialidade de diferentes edições da coleção sugere as
expectativas que autor e/ou editor dispensaram sobre os livros, levantando diversas
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indagações, como, por exemplo: o público destinado seria o mesmo para ambas as edições?
Os usos dos livros, seus modos de ler, seriam semelhantes mesmo em períodos tão
diferentes? Quais seriam os interesses investidos na publicação desses exemplares? Uma vez
que existem indícios do uso escolar, os desenhos na capa poderiam sugerir um protagonismo
infantil no uso do livro das primeiras edições? Nossas fontes não permitem responder todos
esses questionamentos, porém, o apêndice assinado por Lourenço Filho (enquanto editor)
trás possíveis indicações sobre o uso das obras, a edição mais recente não possui
interferência do editor, mas o prefácio assinado pelo autor fornece algumas pistas sobre essa
relação:
Animado, pensei em reeditar o conto e escrever outros. Planejei, porém, ceder os direitos autorais à Companhia Melhoramentos de São Paulo, de Weiszflog Irmãos Incorporada. Sem dúvida, julguei ser, para mim, um fato feliz, a edição de ‘Encanto e Verdade’ por essa editora. Já nesse tempo era magnífico o conceito a que ela fizera jus e provinha do reconhecimento público por sua obra, principalmente nos setores educativo e escolar. Realizava, in totum os superiores objetivos a que se destinara na edição de livros, quer quanto à excelência dos textos, quer quanto ao feitio material, quer quanto à modicidade dos preços. Mestres e discípulos, jovens e crianças, beneficiaram-se com os seus compêndios, mapas e livros (...). Para o meu contentamento, após contrato celebrado a 6 de novembro de 1919, a Melhoramentos, em bela edição ilustrada pelo inolvidável Francisco Richter, publicou ‘A Filha da Floresta’. A partir daí, sequentemente, foram editados os nove restantes volumes da série contratada e, mediante renovação contratual, os demais da série ampliada. (ANDRADE, 1967, p.6).
O prefácio traz informações importantes sobre a trajetória do autor na tentativa de
publicação de suas obras. O contrato com a Editora Melhoramentos é celebrado, Thales de
Andrade destaca o reconhecimento da editora no universo escolar. Em um estudo sobre os
intelectuais brasileiros, Sergio Miceli propõe um quadro sobre a produção das maiores
editoras do Brasil de 1938 a 1943; de acordo com seu levantamento, a Melhoramentos
dominava o mercado de livros voltados ao público infantil, com 38% de sua produção
direcionada especificamente a este gênero (MICELI, 2001, p.153), figurando-se com uma das
maiores editoras da época e a principal na literatura infantil. A escolha desta editora teria
sido intencional para atingir o público destinado, “mestres e discípulos, jovens e crianças”, a
qualidade do texto, a materialidade e a “mocidade dos preços” também são fatores editoriais
importantes que foram considerados pelo autor na escolha da editora. Tais elementos
sugerem que desde início a intenção do autor era a de alcançar o público escolar. As
informações contidas neste prefácio, associada à materialidade da obra e também ao seu
conteúdo, sugerem as expectativas do autor para os usos das obras em questão, os apêndices
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do editor (alocados em outra coleção) complementam as perspectivas sobre os modos de ler
essa coleção.
Não pretendemos aqui realizar uma análise do discurso destas obras, porém
consideramos necessária uma breve apresentação a fim de situar o leitor acerca das
narrativas que colocavam em circulação. Tanto em El-Rei Dom Sapo, como em Dona Içá
Rainha, como os próprios nomes sugerem, as personagens centrais são animais, e a história
gira em torno da sua relação com os humanos. No primeiro livro, o autor cria duas categorias
para os animais: os bons e os ruins. Os primeiros seriam aqueles que auxiliam o homem nas
plantações e colheitas, sendo necessários para o funcionamento perfeito da natureza, já os
maus animais seriam as pragas, os “bichos daninhos” que atrapalham a vida dos
trabalhadores rurais. O personagem El-Rei Dom Sapo, fora classificado com um animal da
primeira categoria, um soberano responsável por manter a harmonia entre todos os animais
de seu reino e a espécie humana:
El-Rei Dom Sapo XV, que subira ao throno já fazia tantos annos, gastava a maior parte do tempo a ensinar os seus vassallos a verem no Homem, o Deus dos animaes. “Elle os cria; elle os extermina”, dizia, e o caso é que ia sendo, indiscutivelmente, o maior e mais fiel amigo do Homem. Os Bons Animaes tinham fé na palavra de El-Rei e, por isso, tudo faziam em benefício do Homem, não o prejudicando nem o atacando, nem ao que lhe fosse útil, mas, pelo contrário, dando um combate de morte a todos os animaes que eram damninhos. (ANDRADE, 1922, p.16-17)
A descrição do personagem é complementada por uma ilustração que aparece o sapo
em seu trono, com uma coroa e os outros animais em sua volta. A imagem é assinada por
Franz Richter, ilustrador Tcheco que se radica no Brasil alterando seu nome para Francisco
Ritcher, há ainda algumas obras que o fazem referência como Franta Richter. Mas o que vale
destacar é a influência deste ilustrador em um significativo número de obras da editora, os
três livros aqui analisados possuem imagens de sua autoria. Em uma época em que
prevaleciam livros em preto e branco, as ilustrações coloridas de Richter contribuíram para o
sucesso da coleção.
O cenário é outro elemento importante da história. “O campo é, nos escritos de Thales,
quase como uma personagem. Ele será o local privilegiado para o desenvolvimento dos
enredos e uma das principais características estilísticas/estruturais” (ALEXANDRE, 2006,
p.4503). O reino de El-Rei Dom Sapo encontrava-se no sítio de nhô Fidélis e nhá Vicência,
um bondoso casal de velhinhos que cuidava com muito esmero do lugar, mantendo uma
relação amigável com os animais que ali habitavam. A paisagem rural se destaca:
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A meia legua do povoado, á margem de um regato barulhento, ficava o Campestre, um sitio pequeno, mas o que havia de bem arranjadinho. Dava gosto de vel-o, de longe ou de perto. Á distancia, parecia uma pintura. Rente, era um jardim.(...) Era dono della, um casal de camponios velhos, trabalhadores da roça. Elle, o nhô Fidélis, estava com os cabelos brancos de uma vez, mas inda era um homem sacudido! Amava a terra e sabia tratal-a como ninguém. Amava as boas plantações e os bons animaes, tanto que até parecia comprehendel-os! (ANDRADE, 1922, p. 3-4).
Na edição de 1922 uma ilustração antecede a descrição do cenário, na versão de 1967 a
imagem é excluída. Muitas figuras não permaneceram na nova edição, por outro lado, poucas
foram as adaptações na narrativa para a edição de 1967, além das modificações para
acompanhar as transformações da língua portuguesa, apenas algumas palavras foram
trocadas para fazerem jus ao vocabulário da época. Por exemplo: “Êle, nhô Fidélis, estava
com os cabelos todos brancos, mas era um homem ainda vigoroso.” (ANDRADE, 1967, p. 43).
Nada que alterasse substancialmente o sentido do conto.
A história se desenrola com a chegada de um “negrinho” (como o autor denomina) que
interfere na paz de seu reino, maltratando cruelmente todos os animais ali presentes. A única
solução encontrada pelo sapo foi mudar seu reino para outras terras, onde ficaria longe do
“mal” que o menino acometia. Com a mudança do reino, os bichos daninhos invadiram
aquela região, causando danos irreparáveis para os humanos que ali moravam. A culpa foi
atribuída ao menino traiçoeiro, que quase foi expulso de onde vivia. Porém, uma escola foi
aberta nas proximidades do sítio, surgindo a esperança de que se o menino a frequentasse
poderia mudar sua índole maldosa. Agapiíto (como era chamado) então foi levado à escola, e
se antes era considerado “sem vergonha” e “incorrigível”, com a atuação da educação foi se
transformando em um menino bom, uma vez que a escola seria capaz de “corrigir os maus
espíritos”. Assim, através da paciência, insistência e brandura da professora, o menino que
antes era considerado um “demônio”, passa a ser “(...) um moço forte e bonito, negro de pelle
e branco de coração” (ANDRADE, 1922, p. 56). Interessante observar que uma das poucas
alterações que encontramos na edição de 1967 foi a adaptação do trecho acima que, ao
caracterizar o menino, apenas resume “(...) Agapito, um môço bondoso, forte e bonito”
(ANDRADE, 1967, p.61), sem fazer referência a sua cor de pele. Ressalta-se que o contexto
histórico interfere no que é socialmente aceitável na literatura infantil, com quarenta e cinco
anos entre as duas edições analisadas, foram poucas mudanças, porém observa-se a
preocupação em adaptar a narrativa para um novo contexto.
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Outro ponto que merece destaque é a influência da escola que seria capaz de reverter os
modos do menino travesso incutindo-o hábitos e bons comportamentos. Sobre isso, Hilsdorf
e Alexandre comentam:
[...] podemos salientar o papel determinante das aulas da professora para a tomada de consciência de Agapito, ao se perceber como o pivô dos males surgidos no Sítio Campestre. A escola é posta, desta maneira, como instrumento necessário para a educação daqueles que, destituídos de seus ensinamentos mais elementares, não podem conviver em harmonia com a natureza. Da mesma maneira, trata-se de oferecer para Agapito algo como os primeiros rudimentos técnicos para o adequado aproveitamento da terra, ao considerar – pela fala da professora – a necessidade de uma diversidade significativa de animais e insetos para o equilíbrio satisfatório no trato da lavoura. De fato, a mudança de comportamento do protagonista lhe propicia a reversão do problema e a sua futura prosperidade. (HILSDORF E ALEXANDRE, 2013, p, 150-151).
O desfecho da história é feliz, em decorrência da atuação quase que “milagrosa” por
parte da escola sobre a alma do menino, El-Rei Dom Sapo julga seguro retornar seu reino ao
local antigo, expulsa todos os animais daninhos e salva a plantação retomando uma relação
amistosa entre os animais e os humanos.
Se El-Rei Dom Sapo era a representação da relação amistosa entre animais e humanos,
Dona Içá rainha era a expressão do oposto. Considerada uma inimiga perversa do homem, a
formiga seria responsável por destruir plantações tornando-se o pesadelo dos lavradores. “–
Temos uma excellente rainha em Vossa Magestade. Quem governa saúvas é também nosso
governo, porque, com franqueza, as saúvas são, dentre os inimigos do lavrador, as mais
astuciosas, as mais fortes, as mais terríveis” (ANDRADE, s./d., p. 22).
A presença da saúva está em outras obras do período. Lajolo e Zilberman chamam
atenção para a descrição negativa da terra feita por Monteiro Lobato em O Picapau Amarelo:
“Todavia, nas raras ocasiões em que descreve a terra, o escritor não se constrange em mostrar
seu pouco valor e má qualidade, chamando-a de ‘terras ordinaríssimas, onde só havia saúva e
sapé’, como se lê em O picapau Amarelo” (LAJOLO, ZILBERMAN, 1984, p. 56). Assim, terras
com saúvas era sinônimo de terras de má qualidade, ordinárias, Thales de Andrade enfatiza
essa ideia descrevendo a formiga como a pior inimiga do lavrador. “O conto Dona Içá
Rainha, por seu turno, será pródigo no sentido de demonstrar a viabilidade da agricultura
ainda que se pese os anunciados problemas decorrentes das infestações de pragas no campo”.
(ALEXANDRE, 2006, p.4497 -4498).
Seguindo o padrão do primeiro livro, a história de D. Içá Rainha também apresenta o
cenário rural e a categorização de animais bons e ruins. A narrativa se desenrola a partir da
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guerra entre a soberana das formigas (expoente da maldade animal) e o sr. Papa-ventos, um
camaleão líder dos animais aliados do homem. O autor apresenta as estratégias dos dois
rivais para atacarem ou protegerem os humanos, até o momento em que o sr. Papa-ventos
vence a batalha e o reino de Dona Içá é exterminado. Em seu leito de morte, a rainha faz seu
último pedido e deixa um alerta:
Dona Içá fez um último e supremo esforço e disse: - Filha bondosa! Jura-me que vaes á casa de minha mãe, lá nos sapezaes, e a ensinas, por misericórdia, que nunca se metta em terras onde o Homem protege pássaros e sapos, lagartixas, lavadeiras, mus... Não pode terminar. D. Içá estava morta. (ANDRADE, s/.d., p. 22)
Observa-se que nas duas histórias apresentadas, o autor, conhecido pelo seu estilo
ruralista, enfatiza a importância de um relacionamento amistoso entre homens e animais,
presando pela harmonia da natureza. Uma curiosidade interessante é que o dono do recanto
em que se passa a história de dona Içá é chamado de Manuel Lourenço, em uma possível
homenagem ao editor Manuel Bergstrom Lourenço Filho.
O terceiro livro aqui selecionado, Totó Judeu, difere-se dos anteriores uma vez que não
apresenta animais como personagens centrais. A narrativa aborda a história de um menino
que, devido a uma tragédia familiar, fora abandonado assim que nasceu, sendo adotado por
uma senhora que tinha interesse em aproveitar-se dele. O menino ainda sofria por seu
terrível aspecto físico; “tinha mais feição de sapo do que de gente” (ANDRADE, s/.d, p. 3).
Totó era motivo de zombaria na cidade e não possuía uma família que o apoiasse, tornando-
se assim um menino agressivo e irresponsável. Cansado da exploração da senhora que o
adotou e de ser motivo de chacota dos vizinhos, o menino passa a reagir com violência às
agressões verbais que recebia. Foi assim que foi apelidado de “Judeu” (adjetivo pejorativo
para a época), “A má fama de Totó cresceu na cidade. Deram-lhe o apelido de judeu. Foi
assim que o infeliz e feio Totó se transformou em Totó Judeu.” (ANDRADE, s./d., p. 22). Ao
receber o apelido, o garoto tornou-se ainda mais agressivo, representando um perigo aos
olhos das autoridades que decidiram prendê-lo. Assustado, Totó decide fugir para a floresta,
onde encontra uma tribo indígena e passa a viver longe da civilização. O garoto adaptou-se
bem ao estilo de vida dos Bugres, com quem viveu até tornar-se adulto. Ele que sofria na
cidade, teria encontrado sua felicidade na floresta, casou-se com uma “formosa” índia, e
assim tornou-se líder do grupo, posição consolidada com a vinda de um primogênito. A
relação harmoniosa com a natureza é destacada pelo autor como um dos fatores que
complementava essa felicidade.
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O que parece ser um final feliz, surpreende quando Totó (agora nomeado Pindobussú),
encontra um grupo de expedicionários liderados por General Rondon. Caracterizados como
“corajosos e desbravadores”, o autor apresenta esses novos personagens como exploradores
responsáveis por levar a “civilização” a lugares ainda desconhecidos, desbravando os tesouros
da natureza do país. “- O sertão do Brasil é um thesouro intacto! – É uma maravilha a
natureza do Brasil. Eram essas, a cada passo, as exclamações dos naturalistas” (ANDRADE,
s./d., p. 42 -43).
Totó (ou Pindobussú) acolhe cordialmente a equipe e os guia entre as florestas,
mostrando a riqueza do lugar, os frutos exóticos, árvores raras e até pedras preciosas. O
General agradece a ajuda do “índio”, reconhecendo sua contribuição para a nação:
O general, estendendo a mão ao cacique, exclamou, com enthusiasmo: És um grande patriota! És um benfeitor da humanidade! Dás ao Brasil uma riqueza e aos homens allivio de tantas dores. Em nome do povo brasileiro eu te agradeço. Em nome da sciencia eu te saúdo. Serás querido e abençoado. (ANDRADE, s./d., p. 55)
Como agradecimento ao líder dos Bugres, General Rondon recomendou que se
construísse uma estrada “(...) facilitando o contacto com aquella boa gente, levando-lhe os
confortos da civilização e aproveitando em beneficio da terra pátria aquelles vigorosos braços
de seus legítimos filhos” (ANDRADE, s./d., p. 54). Assim, Totó que fora tão infeliz na sua
infância, acaba a história como um grande herói, uma vez que contribui para tamanha obra
patriótica que era a exploração do Brasil.
Essa narrativa, apesar de não possui um animal como personagem principal, também
ressalta a importância de uma relação harmoniosa com a natureza. Porém, ultrapassa esse
aspecto e aborda a questão das expedições de exploração do sertão brasileiro, temática muito
frequente na literatura do período. Sobre isso, Lajolo e Ziberman afirmam:
[...] essas narrativas se afinam a um fenômeno da época: a ocupação das regiões até então intocadas e, portanto, não integradas às diretrizes econômicas do país. A construção de estradas, de uma nova capital no sertão, a ênfase na exploração da agricultura e pecuária no Centro-Oeste, os projetos para a Amazônia – todas estas são iniciativas federais que denunciam uma nova maneira de encarar áreas inaproveitadas. A transfiguração desse projeto numa mitologia que reunisse elementos históricos e imaginários é uma tarefa assumida pela literatura infantil, contribuindo para a divulgação desses ideais. (LAJOLO, ZIBERMAN, 1984, p. 106).
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As autoras argumentam que o mito da epopeia bandeirante contribui para a criação de
um modelo de “herói brasileiro”, além de enfatizar a abundância natural do país. Também
ressaltam a relação com o índio que normalmente aparece como um “obstáculo” ao herói
branco, com algumas exceções (como é o caso da historia de Thales de Andrade). O discurso
da “Marcha para Oeste”, ou da exploração do sertão brasileiro, percorreu o imaginário da
época, e, consequentemente, configurou-se como temática de diversas obras literárias,
inclusive destinadas ao público infanto-juvenil.
Assim como a exploração do território brasileiro, um tópico frequente na literatura da
época era a questão rural, presente em todos os livros aqui analisados. Thales de Andrade
ficou conhecido como um escritor ruralista, Lajolo e Zilberman destacam esta característica:
Estes apelos ao heroísmo e ao patriotismo, à devoção e ao sentimento filial se fazem, geralmente, em meio a uma evocação da natureza que tem sublinhados seus aspectos de riqueza, beleza e opulência. (LAJOLO, ZIBERMAN, 1984, p. 39).
A extrema valorização da natureza se torna radical na obra que, praticamente encerra esse primeiro período da nossa literatura para jovens: Saudade, que Tales de Andrade publica em 1919. Nesse, a apologia da natureza, tal como ocorrera em outras obras, tem um significado ideológico bastante marcado. (...) a ficção de Tales de Andrade endossa e propaga a imagem de um Brasil que encontra na agricultura sua identidade cultural, ideológica e econômica. Saudade é a apologia da felicidade e da riqueza por intermédio da agricultura, riqueza e felicidade acenadas como resultado social do programa político que o livro abraça. (LAJOLO, ZIBERMAN, 1984, p. 40).
As autoras citam um dos maiores sucessos do autor, porém as características
mencionadas podem ser observadas também em Encanto e Verdade. A relação entre campo e
cidade, homem e natureza é uma temática recorrente nas obras desse autor. Sua atuação em
escolas rurais influenciou na defesa da ideia do Brasil como um país agrário. Thales de
Andrade demonstra uma preocupação em ensinar as crianças a importância de uma relação
harmoniosa com o meio ambiente, a exaltação da fauna e da flora beiram um patriotismo
exacerbado, comum no período.
As manifestações do patriotismo e do nacionalismo, identificados à ideologia do Brasil como país essencialmente agrário, parece ter encontrado nos escritos de Thales, um instrumento de divulgação deste ideário, como atestam diversos de seus livros entre o final da década de 1910 e 1920, dentre
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eles o Saudades4 e muitas histórias da coleção Encanto e Verdade. (ALEXANDRE, 2007, 153).
Uma vez que desde o início a intenção do autor era atingir o público escolar, suas obras
apresentam conteúdos vão de encontro com os valores elencados ideais para as crianças do
período. Assim como a temática rural e o fenômeno do nacionalismo, a questão da higiene
também percorreu diversos livros destinados à infância do país. As obras aqui analisadas são
convocadas por Lourenço Filho como leitura auxiliar para a educação higiênica. No apêndice
do livro “O solo e a Saúde”, o editor apresenta orientações didáticas para o professor utilizar a
obra em sala de aula, a partir de “centros de interesses” e “metodologia de projetos”, como
convinha o modelo educacional do qual defendia.
Este livro não foi escripto para leitura directa dos alumnos do curso primario. Servirá, no entanto, como leitura ocasional, para a ilustração de assumptos que podem dar materia para <<unidades de trabalho>>, (centro de interesses e projectos) nas ultimas classes deste curso. (LOURENÇO FILHO, 1937 p. 51)
Ele reparte o livro de Barroso em quatro partes definindo possíveis centros de interesse
a serem trabalhados em cada sessão. Observa-se que da terceira parte podem derivar dois
centros de interesse: Como os vegetaes nos auxiliam e Como os animaes nos auxiliam e
nos prejudicam. Para aprofundar os tais centro de interesse, além do livro em questão, ele
sugere outros títulos para leitura auxiliar do professor e leitura recreativa para os alunos.
Dentre as indicações, encontram-se os títulos de Thales de Andrade selecionados aqui, o que
nos permite especular que tais obras poderiam ser usadas no contexto escolar. Lourenço filho
sugere uma metodologia detalhada de como a temática deveria ser abordada, dividindo em:
a) observação,
b) associação e
c) expressão.
No item “observação” ele aponta: “animaes uteis no trabalho e na alimentação. Animais
nocivos: porque nos atacam, porque nos transmitem molestias, porque atacam nossas
plantações.” (LOURENÇO FILHO, 1937, p. 52). Em “associação” destaca: “A luta dos
colonizadores contra os animaes. A luta pelo saneamento: a febre amarela, o impaludismo, as
verminoses. A obra de Oswaldo Cruz. Como nos defendemos dos animaes que nos atacam e
4 Grifo original do texto
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que nos trasmitem molestias.” (LOURENÇO FILHO, 1937, p.52). Já no item “c”, “expressão”,
a questão higienista é enaltecida: “Cuidados hygienicos para a defesa contra a acção dos
animaes que nos transmitem molestias. Exercícios de leitura, elocução e de redacção”.
(LOURENÇO FILHO, 1937, p.53).
Logo abaixo, encontram-se as indicações de leituras auxiliares, aparecendo os títulos
mencionados. Pressupõe-se a escolha das obras de Andrade pelo seu recorrente apelo às
questões do campo, destacando-se a relação entre os homens e os animais. Na versão de
1967, as histórias são acrescidas de subtítulos, embaixo de “El-Rei Dom Sapo” encontra-se
entre parênteses “proteção aos animais úteis à lavoura”, e Dona Içá Rainha é seguido de
“combate à saúva”. Os subtítulos referem-se ao conteúdo e a mensagem que o autor e/ou
editor almejavam transmitir, observa-se que vão de encontro com os centros de interesse
apontados por Lourenço Filho. Em suas histórias, Thales de Andrade categoriza os animais
entre aliados ou nocivos ao homem, assim como Lourenço Filho propõe o estudo de “Como
os animaes nos auxiliam e nos prejudicam.” Neste sentido, a escolha de El-Rei Dom Sapo e
Dona Içá Rainha enquadram-se perfeitamente as propostas para o ensino de higiene do
educador. O livro Totó Judeu não apresenta referências diretas aos centros de interesse
proposto por ele, mas, de maneira indireta, a história também aborda a importância de um
relacionamento harmonioso com a natureza.
Lembrando que o apêndice encontra-se em uma obra destinada propriamente ao
ensino de higiene, surge a indagação dos motivos que teriam levado o editor a escolher as
obras de Thales de Andrade para tratar do assunto. Considerando o livro como um objeto
mercadológico, não podemos descartar a possibilidade das indicações serem parte de uma
estratégia editorial para aumentar a comercialização dos livros da Melhoramentos, ou ainda
estarem pautadas no capital social do editor, uma vez que Lourenço Filho também atuou em
Piracicaba onde conheceu Thales de Andrade. Porém, ao cotejar as obras da coleção Encanto
e Verdade com os apêndices assinados por Lourenço Filho, nota-se que a questão higienista
podia ser tratada associada às questões rurais e até nacionalistas. Em um momento em que o
país necessitava de sujeitos educados, civilizados, com boa saúde e disposição para o
trabalho, o conceito de higiene e saúde se aproximava de patriotismo e civilidade. O
higienismo e o saneamento do país configuravam-se como um compromisso patriótico,
essenciais para o desenvolvimento e progresso. Os apêndices sugerem o quão ampla a
questão da higiene era para o período, sendo associada à diversas temáticas além da
prevenção de doenças e do asseio corporal.
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A partir desta perspectiva, destacamos que a análise das obras de Thales de Andrade
em conjunto com o discurso de Lourenço Filho sugere que a literatura poderia ser usada para
diversas funções, correspondendo diferentes expectativas, o livro poderia ser utilizado como
um veículo para divulgação de hábitos e valores. Percebe-se também o quão ampla a questão
higienista era para o período, abarcando conceitos muito além da prevenção de doenças. As
obras aqui analisadas indicam que a temática rural poderia ser tratada em conjunto com as
noções de Higiene, uma relação harmoniosa com a natureza era considerada imprescindível
para a vida do homem, sugerindo a importância da questão para época. Desta maneira,
concluímos que noções de higiene podem ser encontradas de distintas maneiras na literatura
infantil da primeira metade do século XX.
Fontes
ANDRADE, T. D. Içá Rainha. São Paulo: Melhoramentos, s.d. ANDRADE, T. Totó Judeu. São Paulo: Melhoramentos, s.d. ANDRADE, T. El- Rei D. Sapo. São Paulo: Melhoramentos, 1922. BARROSO, S. M. O solo e a saude. São Paulo: Melhoramentos, 1937.
Referências
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