SUMÁRIO 1 – INTRODUÇÃO, 2 – ORIGEM DOS ESTUDOS, 3 – APRESENTAÇÃO DAS ANTROPOLOGIAS, 4 – CONCEITOS CENTRAIS DA CIÊNCIA DO CUIDADO, 4.1 – SISTEMÁTICA DEFINIÇÃO DE UM CONCEITO, 4.2 – DEFINIÇÃO DOS CONCEITOS CENTRAIS,
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1 – INTRODUÇÃO
Ao buscar mudanças curriculares e de conteúdo nas disciplinas ou áreas
epistêmicas em que lecionei ou nas IES em que, em momentos diferentes, fui
consultor técnico-pedagógico, tenho posteriormente procedido à
sistematização e à codificação dos saberes dispersos de Enfermagem,
ultrapassando o relevante mas inicial momento de apresentar relatos de
experiência. Com uma perspectiva epistemológica de transformar
experiências em saberes constitutivos para uma Ciência do Cuidado, tenho
proposto subáreas e subcampos epistêmicos, a serem sistematicamente
desenvolvidos e centrados no Paradigma de Cuidado. Dentre esses subcampos e
subáreas, a Historistica emerge dos desenvolvimentos da pesquisa concluída
em 2003 para a obtenção do grau de mestre em enfermagem e, também,
daqueles desenvolvimentos aplicados e discutidos principalmente na disciplina
de História da Enfermagem, sob minha responsabilidade e que envolve várias
histórias, entre as quais estão: da institucionalização e das instituições de
enfermagem, das idéias e das concepções de enfermagem, das concepções de
cuidar e cuidado, dos saberes e das práticas de enfermagem, do trabalho de
enfermagem.
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Minha proposta é de um processo de aprendizagem e de pesquisa cuja
pretensão é constituir a Historística como subcampo epistêmico da Ciência do
Cuidado e linha de pesquisa para estudos filosófico-epistemológicos que
fundamentem o estudo na graduação e na pós-graduação de enfermagem da
história e a historiografia da Arte de Cuidado na América Latina em geral e no
Brasil em particular: uma Filosofia Crítica da História da Arte de Cuidado
inclusora de estudos das ideologias dos eventos nacionais de enfermagem,
tendo por significação estrita de ideologia a ciência que estuda as idéias.
Um momento experimental para se chegar à proposição da Historística
deu-se no ano de 2004 com a disciplina História da Enfermagem, sob minha
responsabilidade à época, na qual estimulei estudos e pesquisas sobre a Arte
de Cuidado e a Arte de Enfermagem, demonstrando que tais Artes expressam
tanto a história do cuidado e do não cuidado quanto a história do corpo no
Brasil.
Do momento experimental na graduação em enfermagem, confirmei a
inexistência de sistemáticos estudos históricos na graduação de enfermagem e
a necessidade de um paradigma de pensamento histórico específico de uma
Ciência do Cuidado: é o que proponho como tarefa do subcampo por mim
denominado de Historística; com tal paradigma, será possível um programa de
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aprendizagem, pesquisa e trabalho a ser desenvolvido na atual disciplina de
História da Enfermagem, configurando o que poderá se constituir em história
e historiografia do cuidado e do não cuidado no Brasil.
Para a compaginação da história e a historiografia da Arte de cuidado,
do autocuidado e do não cuidado no Brasil proponho outra subárea por mim
denominada Antropologia do Cuidado. Partindo do pressuposto de que esta
subárea constitui-se da interconexão entre Antropologia Dialética e
Antropologia Hermenêutica, será, pois, fundamento histórico-antropológico da
Ciência do Cuidado, ou seja, a Antropologia Histórica da Arte de Cuidado
Neste trabalho, meu objetivo é apresentar e discutir as bases teóricas
da Antropologia do Cuidado.
A consecução do objetivo proposto desenvolver-se-á no campo de
pesquisa básica, exploratória.
Na classificação dos Gêneros de Pesquisa em Pedro Demo, trata-se de
pesquisa teórico-metodológico-empírica, cuja perspectiva epistemológica é a
produção de novos saberes a partir de reestruturação de conhecimentos e
saberes constituídos.
Voltado para construir bases teórico-metodológicas de um novo campo
de saber, compus linhas gerais de um percurso metodológico a partir da
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proposta temática mínima de conteúdo para a disciplina Antropologia do
Cuidado:
-descrição da origem dos meus estudos e propostas de uma Antropologia do
Cuidado;
-explicitação do Sistema de Wilhelm Guillermo Dilthey para as ciências da
realidade humano-sócio-histórica e proposta de inclusão da Antropologia do
Cuidado naquele Sistema;
-definição sistemática do conceito Antropologia do Cuidado;
-sumária revisão sobre o campo constituído da Antropologia;
-revisão sumária de diversos tipos de Antropologias e suas ideologias;
-apresentação, aproximações e distâncias entre Antropologia do Cuidado,
Antropologia Dialética, Antropologia Hermenêutica, Etnoenfermagem e Teoria
Cultural do Cuidado em Madeleine Leininger, Antropologia da saúde,
Antropologia do corpo e Antropologia da doença;
-os conceitos centrais da Antropologia do Cuidado formados a partir dos
conceitos por mim criados de linguagem do cuidado, linguagem do não cuidado e
linguagem esquecida do cuidado, apresentados no 13o. Seminário Nacional de
Pesquisa de Enfermagem.
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Alguns principais resultados teóricos alcançados podem ser assim
resumidos:
-consecução do percurso apresentado, definindo a Antropologia do Cuidado
como subárea do subcampo especial por mim denominado Corpística; subcampo
dos fundamentos filosóficos da Ciência do Cuidado em sua particularidade de
ser também uma Ciência do corpo, a Corpística nasceu do desenvolvimento das
concepções de corpo identificadas e analisadas na pesquisa realizada entre
2001 e 2003 para a minha obtenção de grau de mestre em enfermagem;
-Antropologia do Cuidado1 é a subárea especial da Corpística para:
a) estudo das formações sócio-étnicas da Arte de Cuidado e análise de suas
formas assumidas no Brasil;
b)estudo hermenêutico das configurações histórico-étnicas da Arte de
Cuidado registradas nos diversos Brasis e análise do modo pelo qual
conformaram a memória de cuidado e a memória de não cuidado da sociedade e
da cultura brasileira;
c)análise das expressões étnico-sociais da Arte de Cuidado e do Não Cuidado e
suas formas discerníveis no Brasil, bem como as estruturas de poder a elas
correspondentes;
1 Antropologia do Cuidado sinonimiza à historiografia da arte de cuidado, à antropologia histórica do cuidado e à antropologia hermenêutica do cuidado.
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d)análise crítica das construções sócio-étnicas e ideológicas da Arte de
Cuidado e do Não Cuidado pelas quais se tem elaborado a memória de cuidado e
a memória de não cuidado no Brasil.
Para a compaginação da história e da historiografia Arte de Cuidado, do
não cuidado e do autocuidado no Brasil –objeto de estudo da Antropologia do
Cuidado- parto de periodizações possíveis a serem evocadas ou criadas.
Respeitando-se as investigações arqueológicas e as pesquisas históricas, pode-
se sugerir a seguinte periodização geral:
- Período Lítico (aproximadamente 50.000 a 9.000 anos atrás), dividido
em Pré-pontas e Paleoíndio;
- Período Arcaico (aproximadamente 9.000 a 2000 antes de Cristo);
- Período Formativo (aproximadamente 2000 antes de Cristo ao século um
depois de Cristo);
- Período das Chefias, Florescente e Expansivo (aproximadamente século
um depois de Cristo a 1500);
- Período de transição para o escravismo (entre 1500 e 1549);
- Período de colonização e pós colonização: 1549 a 1850;
- -Período emergente de novas organizações material e social: 1850 a
1930;
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- Período de introdução do modo de produção capitalista: 1930 até hoje.
Para o estudo da Arte de Cuidado no Brasil, pode-se enfatizar momentos
históricos, particularmente entre os séculos XVI e XX, nos quais mudanças,
transfigurações, mutações, compulsões e coerções ecológico-bióticas,
tecnológico-culturais, sócio-econômicas, ideológicas e psicológicas ocorreram e
continuam vigentes.
- de 1500 até 1549: das artes e dos saberes indígenas de cuidar sem a
presença dos jesuítas;
- de 1549 a 1759: das artes e dos saberes de cuidar com a presença dos
jesuítas até a sua expulsão;
- de 1759 a 1808: das artes e dos saberes de cuidar sem os jesuítas até a
fuga da família real portuguesa para o Rio de Janeiro;
- de 1808 a 1888: das artes e dos saberes de cuidar com a fuga da
família real portuguesa para o Brasil até a abolição oficial da escravidão
negra;
- de 1888 a 1922; das artes e dos saberes de cuidar desde a abolição
oficial da escravidão negra até o Congresso dos Práticos no Rio de
Janeiro;
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- de 1923 a 1964: das artes e dos saberes de cuidar desde a
institucionalização da enfermagem profissional até o golpe militar de
1964;
- de 1964 a 1985: da Arte de cuidado durante a ditadura militar no Brasil;
- de 1985 a 1999: da Arte de cuidado pós-regime militar até o final do
século XX;
- de 2000 em diante: da Arte de cuidar e a história do corpo na
atualidade.
Outra forma de se estudar a Arte de Cuidado é manter a
multidiversidade cultural e regional do Brasil na história, a partir das
indicações de Darcy Ribeiro:
- a Arte de Cuidado no Brasil Indígena;
- a Arte de Cuidado no Brasil luso-indígena;
- a Arte de Cuidado no Brasil Crioulo;
- a Arte de Cuidado no Brasil Caboclo;
- a Arte de Cuidado no Brasil Sertanejo;
- a Arte de Cuidado no Brasil Caipira;
- a Arte de Cuidado nos Brasis Sulinos.
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Em qualquer um desses momentos, estamos diante de um mar empírico de
história, de um tecido emaranhado da história, enfim, de trajetórias e
memórias de corpo a serem conhecidas, compreendidas, entendidas,
esclarecidas para compor a história e a historiografia da Arte de Cuidado no
Brasil.
A Antropologia do cuidado, não se limita necessariamente ao estudo da
história e da historiografia da Arte de Cuidado no Brasil, estendendo-se a
quaisquer comunidades, povos, nações, sobretudo potencializando tanto a
formação de consciência e memória históricas, quanto para o desenvolvimento
de responsabilidade social e sanitária.
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2 – ORIGEM DOS ESTUDOS
A idéia da existência de uma Antropologia do Cuidado partiu de minha
primeira apresentação acadêmica sobre os povos indígenas no Brasil, datada
em 2001, no 8o. Colóquio Internacional de Sociologia Clínica e Psicossociologia,
realizado em Belo Horizonte-Minas Gerais: o trabalho apresentado era fruto
de uma exploração bibliográfica sobre as formas de resistência indígena à
escravidão, à divisão territorial do Brasil, à desqualificação e à destruição dos
valores étnico-culturais que os distingue.
Sem ser uma estrita re-exposição de datas e fatos pontuais, o trabalho
sobre as Resistências Indígenas sugeria um novo tipo de chamamento aos
fatos históricos do Brasil pela centralidade das ações indígenas construindo,
modificando e reconstruindo o processo histórico nacional e europeu:
limitando-me ao século XVI, fiz uma releitura crítica de três momentos.
O primeiro momento histórico, entre 1500 e 1549, falava do encontro
dos povos Tupinikim com portugueses à guerra indígena contra a divisão
territorial do Brasil pela destruição do projeto português de capitanias
hereditárias.
O segundo momento histórico, de 1549 a 1567, revisitava as “Malocas
de Culto” ou Santidades, tidas como forças indígenas de resistência religiosa,
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até a formação e o desfecho trágico da Confederação dos Tamoio, tida como
força indígena de resistência política.
O terceiro momento histórico, de 1567 a 1599, fazia um inventário
crítico e uma classificação das Migrações Indígenas, instituídas como forças
indígenas de resistência econômico-geográfica, até um novo acordo de paz
com o Grande Líder dos povos Potiguar Poti –acordo mais uma vez não
cumprido pelos portugueses.
Com o estudo das Resistências, iniciei uma ininterrupta investigação
sobre Cultura Indígena, aproximando-me da obra de Darcy Ribeiro e revendo
toda a história e historiografia nacional: o estudo sobre a antropologia, a
arte, a pedagogia, a educação e a história indígena tornou-se uma prática
cotidiana. Nesse campo de estudos, descobri uma fonte sobre a Arte
Indígena de cuidar de si, da vida e do outro, antecipatória e realizadora de
todas as contemporâneas declarações e esforços internacionais para uma
nova lógica de desenvolvimento, nova ética, nova pedagogia:
ecodesenvolvimento, ética do cuidado, ecopedagogia, ecocidadania,
ecoeconomia são alguns dos novos conceitos em que identificava a sua
realização na história milenar dos povos indígenas. Desde então, os indícios de
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que estava diante de uma milenar Civilização do Cuidado tornaram-se cada vez
mais evidentes.
O estudo da Arte Indígena de Cuidar levou-me a prever a construção
de uma Ciência do Cuidado e, detendo-me nesta utopia realizada na história
dos povos indígenas, vi a emergência de um campo epistêmico –Ciência do
Cuidado- e subcampos, tais como Etnocuidado, Antropologia do Cuidado,
Hermenêutica do Cuidado, Biocuidado.
O material do campo e dos subcampos previstos estavam na História
Antiga e História Contemporânea do Brasil, tendo como construtores e
representantes os Povos Indígenas –a primeira matriz étnica formadora do
Povo Brasileiro e que, no século XXI e após séculos de resistência, afirma-se
como Paradigma Civilizatório de Cuidado.
A identificação e sistematização do Paradigma Indígena de Civilização
de Cuidado são a formulação de uma tese inaugurante de um novo campo
epistêmico ao mesmo tempo dentro de uma Nova Enfermagem e fora da
Enfermagem Moderna: por isso, inicialmente procurei na Enfermagem fontes
de estudo e pesquisa sobre a Arte Indígena de Cuidar e as poucas linhas
encontradas falavam erroneamente de período e povo pré-históricos e de
14
práticas mágico-religiosas segundo transliteração dos preconceitos da
história da medicina e de sua institucionalização.
Apesar do Internato Rural Indígena e da disciplina obrigatória Saúde
Indígena no currículo do Curso de Enfermagem da Universidade Federal do
Amazonas, há quase absoluta ignorância na Enfermagem sobre Civilização
Indígena, Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas e sobre a
não aplicabilidade ou aplicabilidade inútil dos conceitos clínico e
epidemiológico de processo saúde-doença e educação em saúde àqueles povos.
Em suma, se a Arte de Cuidado ainda é uma grande desconhecida para a
Enfermagem Moderna, a Arte Indígena de Cuidado é ainda saber obscuro
para aquela mesma Enfermagem: possivelmente, tais desconhecimentos e
obscuridades somente serão superados no campo de uma Nova Enfermagem e
de uma Ciência do Cuidado que a anteceda, a inclua e a ultrapasse.
Em direção a uma Nova Enfermagem, os estudos de Madeleine
Leininger criaram os subcampos Etnoenfermagem e Enfermagem
Transcultural; com relação a uma Ciência do Cuidado, tais estudos não
oferecem subsídios porque estruturalmente se restringem à transliteração
de conceitos da Antropologia para aquela Nova Enfermagem. Tal restrição
deve-se mais ao entendimento e a aplicação dos estudos leiningerianos dentro
15
da Enfermagem Moderna do que as possíveis dimensões conceituais dos
mesmos para formação de uma Nova Enfermagem.
O erro epistemológico é o de adotar os pressupostos teórico-
metodológicos da Sociologia, da Administração, da Antropologia e outras
áreas de conhecimento para o estudo sobre cuidado e processo de cuidado: as
bases antropológicas, sociológicas, psicológicas, pedagógicas e políticas
daqueles estudos não significam aplicar a eles aqueles pressupostos – uma
aplicação também feita por Madeleine Leininger. E é por isso que os meus
estudos exigem áreas a serem formadas e desenvolvidas, tais como
Antropologia do Cuidado, Etnocuidado, Biocuidado –todos subáreas da Ciência
do Cuidado e não da Enfermagem Moderna.
Ciência do Cuidado é a ciência da Arte de Cuidado ou ciência do sistema
filosófico nursing de Florence Nightingale: seu advento é o fim da
Enfermagem Moderna –fim este convencionalmente colocado por mim em
1982, ano do XXXIV Congresso Brasileiro de Enfermagem (CBEn), realizado
em Porto Alegre – Rio Grande do Sul.
No XXXIV CBEn, as concepções crítico-analíticas de educação, saúde e
institucionalização das práticas da Enfermagem Moderna apontam para outra
ou nova enfermagem para a qual saúde é estruturalmente questão sócio-
16
política e não médica ou biomédica; educação é processo-meio da Pedagogia
para formação de indivíduos, povos, nações; enfermagem é profissão, prática
social e serviço-fim para mudança da situação sanitária e não atividade-meio
para o Estado ou para a Medicina realizarem suas práticas de poder e
controle externo das sociedades; Políticas Públicas, tais como a de Saúde e de
Educação, devem conhecer e respeitar a cultura sanitária do povo a que se
destinam. Essa Nova Enfermagem deve atender às necessidades sanitárias
dos povos e não às necessidades tanto de um modelo econômico de
extrativismo-expatriação-expropriação quanto do complexo médico-
industrial; as práticas e políticas de ensino, de pesquisa, de assistência dessa
Nova Enfermagem deverão ser práticas sociopolíticas para formação de
agentes de mudança e não práticas e formação de agentes sem
responsabilidade sanitária porque condicionados às necessidades do mercado
de trabalho. E é no sentido dessa Nova Enfermagem,fundada numa Ciência do
Cuidado e não nas necessidades da prática médica, que a Arte Indígena de
Cuidado se mostra milenarmente como Paradigma de uma Educação para o
Cuidado a ser sistematizada e conhecida como tal.
Com a teleologia de criar e descobrir os fundamentos de uma Educação
para o Cuidado, desde o final do ano de 2003 e no exercício da docência em
17
algumas Instituições de Ensino Superior de diferentes estados, tenho
inserido a metodologia científica, o estudo histórico da Arte de Cuidar ou
Arte do Cuidado no Brasil e o conhecimento do Sistema Único de Saúde
(SUS) em todas as áreas e subáreas em que leciono, integrando-as, de algum
modo, aos Domínios e Classes particularmente da Classificação dos
Diagnósticos, das Intervenções e dos Resultados de Enfermagem: utilizando a
hermenêutica como teoria filosófica e teoria metodológica, o material de
estudo e pesquisa indicado ou entregue aos alunos para elaboração de pré-
projetos de pesquisa, trabalhos acadêmicos e grupos de discussão são textos
de periódicos nacionais, além dos documentos disponibilizados pelo governo
federal. Nesse itinerário, problemas básicos, além da corrigível ausência de
consciência metodológica, têm sido enfrentados: desconhecimento do SUS, da
Arte de Cuidado no Brasil, do que possa ser cuidado-processo de cuidado-
cuidado de enfermagem, dos domínios da enfermagem, dos sistemas de
classificação da enfermagem, do processo de enfermagem: por esses
desconhecimentos, ampliei a inserção daqueles estudos nas áreas e subáreas
sob minha responsabilidade, havendo nesse processo aprendente entre alunos
e professor a geração de alguns saberes transformados em textos e que nas
turmas novas utilizo como textos referenciais.
18
A geração desses saberes significa geração de conceitos históricos
formados a partir do estudo e da pesquisa implementados em sala-de-aula
sobre modelos de cuidado e de não cuidado no Brasil; todos estes estudos
foram compaginados sob os conceitos de linguagem do cuidado, linguagem
esquecida do cuidado e linguagem do não cuidado, apresentados por mim sob o
título “A Linguagem esquecida do cuidado”, no 13o. Seminário Nacional de
Pesquisa em Enfermagem, realizado em São Luís, no Maranhão,entre 14 e 17
de junho de 2005.
De tais estudos, posteriormente reanalisados por mim, emerge esta
escritura servindo como introdução aos estudos sobre cuidado, enfermagem,
cuidado de enfermagem, processo de cuidado e arte de cuidado: uma
introdução histórico-antropológica da Arte de Cuidado, compaginada em
vários momentos de expressão dessa Arte no Brasil e que, dialogando com a
Antropologia Dialética de Darcy Ribeiro e a Antropologia Hermenêutica de
Guillermo Dilthey, propõe-se a ser uma Antropologia Histórica e
Hermenêutica da Arte de Cuidado ou, simplesmente, Antropologia do Cuidado.
O processo de formação teórica dessa Antropologia do Cuidado
iniciou-se com o conceito de trajetórias e memórias de corpo desenvolvido em
minha Dissertação, densificado nos meus estudos sobre a diversidade étnico-
19
cultural e regional das concepções e expressões de cuidado na história do
Brasil.
Trajetórias de corpo são as vivências e experiências de pessoas,
comunidades, sociedades e povos em sua trajetória de vida; reafirmando o
fato de que não existe vida e condição humana sem corpo, aquelas trajetórias
de vida são trajetórias de corpo.
Memórias de corpo são as fixações das vivências e experiências de
pessoas, comunidades, sociedades e povos, desde um gesto até grandes
objetividades do pensamento tais como os sistemas culturais e sistemas de
organização interna e externa da sociedade.
Trajetórias e memórias de corpo são unidades de vida estudáveis e
pesquisáveis; do ponto de vista conceitual superam as noções e os conceitos
de sujeito e de objeto coisas.
Concepções e expressões de cuidado, em sua multidiversidade étnico-
cultural-geográfica, são memórias de corpo; essa multidiversidade vem sendo
por mim estudada dentro das várias idades ou momentos da Arte de Cuidado
no Brasil:
-a Arte de Cuidado no Brasil Indígena;
- a Arte de Cuidado no Brasil luso-indígena;
20
- a Arte de Cuidado no Brasil afro-indígena;
-a Arte de Cuidado no Brasil e luso-afro-indígena;
-a Arte de Cuidado no Brasil Crioulo;
-a Arte de Cuidado no Brasil Caboclo;
-a Arte de Cuidado no Brasil Sertanejo;
- a Arte de Cuidado no Brasil Caipira;
-a Arte de Cuidado nos Brasis Sulinos.
A história analítico-crítico-reflexiva e, portanto, hermenêutica da Arte
de Cuidado nos diversos Brasis constitui a Historística: por ser uma história
analítico-crítico-reflexiva ou simplesmente hermenêutica, a Historística é
fundamento filosófico-espistemológico da Ciência do Cuidado e Filosofia
Histórica a Arte de Cuidado. a Arte de Cuidar no Brasil.
A historiografia analítico-crítico-reflexiva e, portanto, hermenêutica
da Arte de Cuidado constitui a Antropologia do Cuidado; por ser uma
historiografia analítico-crítico-reflexiva ou simplesmente hermenêutica, a
Antropologia do Cuidado é fundamento histórico-antropológico da Ciência do
Cuidado e Antropologia Histórica da Arte de Cuidado.
21
3 –APRESENTAÇÃO DAS ANTROPOLOGIAS
No final do século XVIII, inventa-se o conceito de homem e as
denominadas Ciências do Homem, vulgarizadas na atualidade com a expressão
Ciências Humanas.
No século XIX alguns estudiosos propõem vários nomes para o edifício
autônomo das Ciências do homem, da sociedade e do Estado, diante das
Ciências Naturais;
- Wilhelm Guillermo Dilthey em 1883 publica Introdução às Ciências do
Espírito, adotando, pois, a designação ciências naturais e ciências do
espírito; a adoção se deve exclusivamente à popularização da expressão
“ciências do espírito” por John Stuart Mill em seu livro “Lógica”.
Sob a designação Ciências do Espírito, Guillermo Dilthey entende todas
as ciências que têm por objeto a realidade, a vida ou o mundo histórico-
sócio-humana, até então pulverizadas com as expressões dissensuais de
ciências da sociedade, ciências morais, ciências históricas, ciências da
cultura.
- Wilhelm Windelband em 1894, também preocupado com a autonomia das
Ciências Históricas diante das Ciências Naturais, propõe a substituição
22
da designação diltheyana de ciências naturais e ciências do espírito para
ciências nomotéticas e ciências ideográficas respectivamente;
- Henrich Rickert em 1922 discordando da designação diltheyana, propõe
o nome ciências naturais e ciências culturais;
No estudo daquele homem, supostamente sinômino de humanidade,
começam-se as invenções sobre tipos de homem: nesse itinerário, em 1789
inventa-se o nome Etnologia para a atividade de organização e elaboração dos
materiais coletados nas viagens dos estudiosos sobre o homem selvagem; no
século XIX, o conceito de homem selvagem é substituído pelo conceito de
homem primitivo – ancestral do homem civilizado, outro conceito inventado
pelos europeus; fundada nos estudos de religião e parentesco das sociedades
indígenas australianas, a Antropologia do século XIX sofre a influência direta
dos preconceitos evolucionistas de James George Frazer para quem as etapas
do espírito humano evoluíam da magia para a religião e desta para a ciência –
estágio superior para o qual os dois anteriores são um entrave à razão; no final
do século XIX, os membros da Escola Francesa de Sociologia, Emile Dürkheim
e Marcel Mauss, são considerados os primeiros teóricos da inicialmente
chamada Nova Ciência do Social ou Antropologia; no início do século XX, o
23
alemão norte-americanizado Franz Boas, pai da antropologia norte-americana, e
o polonês naturalizado inglês Bronislaw Malinowski, o inventor do Funcionalismo,
são os fundadores do método antropológico nomeado Etnografia;
Vale destacar a diferença básica dos pensamentos de Dürkheim e Mauss
quanto ao estatuto da Antropologia: para o primeiro, será um subcampo da
Sociologia e, para o segundo, uma ciência autônoma.
O desenvolvimento contemporâneo da Antropologia divide-se: na
Antropologia Norte-Americana ou Cultural, representada por Franz Boas,
Alfred Kroeber e Ruth Benedict; na Antropologia Britânica ou Social,
representada por Bronislaw Malinowski e Alfred Reginald Radcliffe-Brown; na
Antropologia Francesa ou Simbólica, representada por Emile Durkheim, Marcel
Maus e Marcel Griaule.
Atualmente, o racionalismo e o idealismo da tradição do pensamento
francês está no campo da Antropologia Simbólica, cujo interesse é o sentido
dos sistemas de representações; o evolucionismo e neo-evolucionismo do
pensamento norte-americano está no campo da Antropologia Cultural, cujo
interessa é pelos processos de continuidade ou descontinuidade entre as
diversas culturas e entre os indivíduos e sua cultura; o empirismo do
pensamento inglês está presente no campo da Antropologia Social, cujo
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interesse é pela organização interna dos grupos. Além disso, tem-se a
Antropologia Estrutural, cujo interesse é pelas estruturas inconscientes
atuantes nas instituições, no parentesco, no mito, na obra de arte, entre
outras; a Antropologia Dinâmica, interessada nas relações de poder e na
dinâmica dos sistemas sociais.
Diante de todas essas Antropologias, tipificadas como produtoras de um
“cientificismo desinteressado”, Darcy Ribeiro, dentro da sua Antropologia da
Civilização, cria a Antropologia Dialética, caracterizada por quatro
interconexas linhas de pesquisa:
- estudo das formações econômico-sociais e análise de suas formas
assumidas no Brasil;
- estudo comparativo das configurações histórico-culturais registradas
nas Américas e análise do modo pelo qual conformaram a sociedade e a
cultura brasileira;
- análise das estratificações sociais e suas formas discerníveis no Brasil e
das estruturas de poder a elas correspondentes;
análise crítica das construções culturais e ideológicas pelas quais se tem
elaborado a consciência nacional.
25
Para Darcy Ribeiro, a Antropologia Dialética vem do materialismo
histórico, afastando-se da versão dogmática do marxismo, reduzido à técnica
exegética de textos clássicos ou transplante de idéias eurocêntricas a povos e
sociedades extra-européias.
Na atualidade, Jean-Yves Leloup criou o campo denominado Antropologia
Essencial para o estudo terapêutico do corpo e de sua simbologia expressa nas
várias regiões ou segmentos do mesmo, tais como pés, tornozelos, joelhos,
pernas, ânus, genitais, ventre, coluna vertebral, medula, coração e pulmões,
pescoço, mãos, cabeça.
Anterior a todas as contemporâneas antropologias, em 1865, Guillermo
Dilthey dá o nome de antropologia ao que ele multinomeia de psicologia real,
psicologia estrutural, psicologia de conteúdo, psicologia de intenção, psicologia
analítica e descritiva ou, em resumo, Psicologia Histórica -oposta à chamada
psicologia experimental, psicologia clínica.
Guillermo Dilthey cria, pois, uma Antropologia Histórica ou
Antropologia Hermenêutica para designar uma antropologia de conteúdo ou
concreta cujos conteúdos eram a um só tempo históricos e psicológicos,
segundo a lógica, a metodologia e a epistemologia de seu Sistema para as
Ciências da Vida ou do Espírito e, também, segundo o seu Historicismo
26
Hermenêutico: E por isso a Hermenêutica, no Sistema Dilthey e em sua
dimensão metodológica é um método histórico-analítico-crítico e bilateral, ou
seja, a um só tempo histórico psicológico ou histórico antropológico.
O Sistema de Dilthey funda outra hierarquia de Ciências, podendo ser
representado no seguinte diagrama:
CIÊNCIAS DA PESSOA CIÊNCIAS DA REALIDADE HISTÓRICO-SÓCIO-HUMANA
CIÊNCIAS DOS SISTEMAS CULTURAIS
CIÊNCIAS DE ORGANIZAÇÃO
SISTEMAS DE ORGANIZAÇÃO INTERNA
DA SOCIEDADE
HISTÓRIA
CIÊNCIAS DA VIDA
SISTEMAS DE ORGANIZAÇÃO EXTERNA DA
SOCIEDADE
No diagrama apresentado, além de renominação das Ciências do Espírito
por Ciências da Vida, renomino as Ciências do Indivíduo para Ciências da
Pessoa, o que poderia ser traduzido como Ciências das Unidades de Vida, hoje
27
denominadas Ciências Humanas: a força dessa última expressão deve-se ao
fato de que a primeira obra de Dilthey, “Introdução às Ciências do Espírito”,
publicada originalmente na Alemanha em 1883, foi traduzida e publicada na
França com o título de “Introdução ao estudo das Ciências Humanas”.
Sistemas no Pensamento Diltheyano são nexos finais e conexões de fim:
as Ciências da pessoa são sistemas procedentes das conexões ou nexos
vivenciais ou conexão unitária da vida onde estão os conteúdos histórico-
descritivos do conhecimento; as Ciências da realidade humano-sócio-histórica
são sistemas procedentes de conexões ou nexos volitivos de onde nascem os
juízos de valor e as regras da sociedade.
As Ciências da realidade humano-sócio-histórica, sendo nexos ou
conexões volitivos e finais, dividem-se em ciências dos sistemas culturais,
ciências dos sistemas de organização interna da sociedade e ciências dos
sistemas de organização externa da sociedade.
As Ciências dos sistemas culturais são nexos finais da cultura de onde
nascem as teorias ou o campo dos conteúdos teórico-abstratos.
As Ciências de organização são nexos volitivos da cultura.
28
Cultura, do alemão Kultur, significa manifestações criadoras; portanto,
todas as ciências dos sistemas da realidade humano-sócio-histórica são
culturais.
A Ciência Fundamental e abarcadora de todas as ciências de todos os
sistemas é a História, uma vez que a unidade de vida procede e é conhecida
pela história, tanto quanto a história procede e é conhecida pela unidade de
vida: história é “realização da vida no curso do tempo e na simultaneidade” “o
que o homem é não se conhece mediante introspecção sobre si mesmo nem
tampouco mediante experimentos psicológicos, mas mediante a História.”
(DILTHEY, 1951, p.229)
As Ciências da Pessoa, nascendo dos conteúdos histórico-descritivos do
conhecimento, erguem-se com fatos, objetos e teorias de primeira ordem; as
ciências da realidade histórico-sócio-humana, tanto as ciências dos sistemas
culturais quanto às ciências dos sistemas de organização, erguem-se com fatos,
objetos e teorias de segunda ordem e “como cada um deles é um conteúdo
parcial da vida real, nenhum [dos sistemas culturais e de organização] poderá
ser tratado histórica ou teoricamente sem referência ao estudo científico dos
outros”. (DILTHEY, 1949, p.49)
29
A História funda, fundamenta e abarca todos os fatos, objetos e teorias
de primeira e de segunda ordem.
No triádico grupo de enunciados (fatos, teorias, juízos e regras),
procedentes da classificação das ciências no Sistema de Dilthey, tem-se que
nas Ciências da Pessoa o campo é o da vivência, nas Ciências dos Sistemas
Culturais e de Organização o campo é o da expressão da vivência; a História,
fundante e fundamentadora, é o campo da compreensão.
Se se insistir em momentos do pensamento diltheyano, sempre
interconexas, pode-se dizer que os estudos no campo da vivência são o
momento da fundamentação psicoempírica, de construção do Empirismo
Histórico do Sistema de Dilthey; os estudos no campo da expressão da vivência
são o momento da epistemológica, de construção da Epistemologia Histórica do
Sistema de Dilthey; os estudos no campo da compreensão são o momento
hermenêutico, de construção do Historicismo Hermenêutico e da Hermenêutica
Histórica e Filosófica do Sistema de Dilthey.
As Ciências da Pessoa, nascidas dos enunciados factuais descritivos,
fundam-se na Psicologia Histórica, uma psicologia analítica, descritiva,
compreensiva, real, concreta, de conteúdo, oposta em tudo à chamada
30
Psicologia Experimental, explicativa; a Psicologia Histórica do Sistema de
Dilthey é a um só tempo antropológica e histórica.
As Ciências dos Sistemas Culturais, dos enunciados teóricos, englobam
todos os sistemas filosóficos, científicos, religiosos, artísticos, pedagógicos,
poéticos.
As Ciências dos Sistemas de Organização Externa da Sociedade, dos
enunciados práticos, são as associações de família, Estado, igreja, comunidade,
Direito, Economia e Economia Política, entre tantas outras.
As Ciências dos Sistemas de Organização Interna da Sociedade, também
dos enunciados práticos, são todas as associações particulares dentro da
sociedade, tais como corporações, sindicatos, organizações não
governamentais, associações de bairro e de determinados grupos populações
(mulheres, negros, índios, sem-teto, sem-terra, sem-escola...)
Todas as Ciências em todos os Sistemas, segundo a classificação das
Ciências da Vida, são nexos e conexões de concepções da vida e do mundo de
quem as criaram; nasceram do mar empírico da história no tecido emaranhado
da história e não do pensamento conceptual, de uma vontade de saber. Portanto
todas as ciências e todas as filosofias são empíricas, ciências e filosofias da
31
experiência – definindo-se experiência como o conhecimento procedente da
percepção.
De acordo com o Pensamento de Dilthey, sumariamente apresentado
quanto a hierarquia das ciências, a Antropologia de Conteúdo é uma das
Ciências da Pessoa e é a ela que nomeio Antropologia Hermenêutica, tendo
como uma das subáreas a Antropologia do Cuidado pela especificidade da
Ciência do Cuidado.
A diferença epistemológica entre a Antropologia Dialética e a
Antropologia Hermenêutica está em que a primeira se referencia no
materialismo histórico-dialético de Karl Marx e a segunda no historismo
hermenêutico de Guillermo Dilthey.
Tanto na Antropologia Dialética quanto na Antropologia Hermenêutica
tem-se quatro linhas de pesquisa interconexas:
- estudo das formações sócio-culturais e análise de suas formas
assumidas no Brasil;
- estudo hermenêutico das configurações histórico-culturais registradas
nas Américas e análise do modo pelo qual conformaram a sociedade e a
cultura brasileira;
32
- análise das estratificações étnico-sociais e suas formas discerníveis no
Brasil e das estruturas de poder a elas correspondentes;
- análise crítica das construções sócio-culturais e ideológicas pelas quais
se tem elaborado a consciência nacional.
No itinerário das quatro linhas de pesquisa interconexas da
Antropologia Hermenêutica, tem-se as mesmas na Antropologia do Cuidado:
- estudo das formações sócio-étnicas da Arte de Cuidado e análise de
suas formas assumidas no Brasil;
- estudo hermenêutico das configurações histórico-étnicas da Arte de
Cuidado registradas nos diversos Brasis e análise do modo pelo qual
conformaram a memória de cuidado e a memória de não cuidado da
sociedade e da cultura brasileira;
- análise das expressões étnico-sociais da Arte de Cuidado e do Não
Cuidado e suas formas discerníveis no Brasil, bem como as estruturas de
poder a elas correspondentes;
- análise crítica das construções sócio-étnicas e ideológicas da Arte de
Cuidado e do Não Cuidado pelas quais se tem elaborado a memória de
cuidado e a memória de não cuidado no Brasil.
33
Na explicitação das quatro linhas de pesquisa, de estudo e de ação da
Antropologia do Cuidado, ressalta-se a distância epistemológica e metodológica
da mesma em relação à autodenominada Antropologia Médica e suas vertentes
de Antropologia da Saúde e Antropologia da Doença,–todas estas últimas
subcampos ligadas ao que hoje se denomina campo das Ciências Sociais e
Humanas em Saúde.
Antropologia da Saúde é subárea nascida da inserção dos antropólogos
brasileiros na temática saúde e doença com o objetivo de entender os
chamados "sistemas médicos nativos" ou modelos culturais explicativos das
doenças e seus tratamentos; Antropologia da Doença é subárea notadamente
francesa; Antropologia Médica é subárea notadamente norte-americana.
Na América Latina, a articulação entre antropologia e epidemiologia
parece configurar a subárea Antropologia da Saúde Coletiva.
Para todas estas Antropologias, doença é processo de construção
sociocultural, rompendo com a noção biomédica da mesma.
A minha proposição de uma Antropologia do Cuidado ou Antropologia
Histórica da Arte de Cuidado, do autocuidado e do não cuidado dialoga mas
não se referencia por nenhuma das Antropologias citadas.
34
As linhas de pesquisa propostas para a Antropologia do Cuidado
referem-se a quatro bases da Arte de Cuidado, do Autocuidado e do Não
cuidado, formadoras de memória de cuidado e memória de não cuidado:
- formações sócio-étnicas;
- configurações histórico-étnicas nos diversos Brasis;
- expressões étnico-sociais;
- construções sócio-étnico-ideológicas.
Todos os estudos apontados estão dentro da Ciência do Cuidado ou
ciência da Arte de Cuidado, sendo necessário:
primeiro: apresentar os conceitos centrais da Ciência do Cuidado;
segundo: definir sistematicamente os conceitos Arte, Cuidado, Arte de
Cuidado, Autocuidado, Não cuidado, memória de cuidado, memória de não
cuidado, etnia, formação sócio-étnica, configuração histórico-étnica, expressão
étnico-social, construção sócio-étnico-ideológica.
35
4 – CONCEITOS CENTRAIS DA CIÊNCIA DO CUIDADO
Em trabalho anterior, apresentado no 13o. Seminário Nacional de
Pesquisa em Enfermagem, realizado em São Luís – Maranhão, de 14 a 17 de
junho de 2005 e sob o título "Noção de Pessoa na Enfermagem e sua relação
com os modelos de atenção á saúde no Brasil", conclui sugerindo alguns
conceitos centrais da Ciência do Cuidado:
- cuidado;
- cuidado de enfermagem;
- assistência de enfermagem;
- conforto;
- bem estar;
- qualidade de vida;
- corpo;
- trajetórias e memórias;
- enfermagem;
- pessoa;
- ambiente;
- autocuidado;
- não cuidado.
Nenhum desses conceitos está sistematicamente definido, apesar dos
termos serem conceituados: dizer que cuidado, ou qualquer um dos termos
referidos, é isso ou aquilo, segundo minhas crenças ou segundo esse ou aquele
referencial teórico não é definição sistemática.
36
4.1 – SISTEMÁTICA DEFINIÇÃO DE UM CONCEITO
A explicitação de Dilthey (1952) sobre o modo de se formar e se definir
um conceito se dá com os seguintes passos:
- escolher ou criar a palavra designativa do que se quer conceituar;
- esclarecer a origem ou a história da palavra escolhida ou criada;
- determinar a origem ou a história do conceito escolhido ou criado;
- escolher ou identificar que fatos da realidade histórico-social-humana
serão traduzíveis do nome ou da expressão geral escolhida ou criada;
- discriminar as possíveis noções, idéias, concepções, conceituações e até
definições já existentes do conceito escolhido; se o conceito é criado,
discriminar as possíveis noções, idéias, concepções e conceituações que se
poderiam agregar ao conceito criado. Tais noções, idéias, concepções,
conceituações e até definições já existentes ou possíveis serão nomeadas
de abreviaturas do fato;
- separar as abreviaturas distorcivas ou falsas do fato que, porventura,
tenham sido ou possam ser anexadas ao nome ou expressão geral escolhida
ou criada; tais abreviaturas serão consideradas relações isoladas ou
arbitrárias entre vivências de fato - realidades de fato - abreviaturas de
fato;
- compor traços distintivos essenciais e traços distintivos suficientes,
expressivos do conceito escolhido ou criado. Essa composição permite a
definição do conceito escolhido ou criado pela explicitação dos traços
distintivos do fato.
- definir o conceito mediante a composição dos traços distintivos do fato.
37
FORMAÇÃO DE CONCEITOS
2. Identificação de fatos da realidade humano-sócio-histórica traduzíveis da
palavra
Traços distintivos dos fatos
Traços essenciais dos fatos
1. Escolha ou criação da palavra
Traços suficientes dos fatos
Abreviaturas de fato (possíveis outras
interpretações do mesmo
Relações isoladas (distorções ou falsidades do
fato)
Definição do conceito
4.2 – DEFINIÇÃO DOS CONCEITOS CENTRAIS
Pela especificidade temática deste trabalho, apresentarei o resultado
final de minhas pesquisas anteriores, ou seja, a definição de cada um dos
conceitos centrais da Ciência do Cuidado.
38
4.2.1 – Cuidado
Cuidado é fundamento, estrutura, conceito, paradigma epistemológico e
unidade epistêmica de significado: este é o conceito e ao mesmo tempo a sua
definição, a partir dos quais várias coordenadas de pesquisa e de prática
devem ser (re)criadas e desenvolvidas.
O fundamento, a estrutura, o conceito, o paradigma e unidade de
significado epistemológico cuidado impede o vício de agregar ao substantivo
cuidado qualquer adjetivação. Apesar disso, como tipo epistêmico, coordenadas
de pesquisa e de prática manter-se-ão as expressões seguintes e outras
posteriormente criadas:
4.2.2 - Trajetórias e memórias
Trajetórias referem-se às vivências e às experiências das pessoas, elas
mesmas formadoras de comunidades, povos, comunidades, sociedades e
estados. Trajetórias são o mar empírico de história ou, em suma, história.
Memórias são a historiografia, a fixação, de algum modo, daquelas
vivências e experiências, dadas primariamente no corpo das pessoas até as
grandes objetivações do pensamento humano.
Não existindo vida humana, pessoa humana sem corpo, a historiografia
dessa vida e pessoa dá-se no corpo; portanto, todas as realizações humanas são
memórias de corpo, oriundas de trajetórias de corpo; daí, utilizo-me da
expressão trajetórias e memórias de corpo.
39
4.2.3 - Corpo
Corpo da Ciência do Cuidado é o infragmentável corpo próprio, biológico,
emocional, psicológico, cultural, político, lingüístico, social, em suma, histórico.
Esse corpo histórico é fonte e mediação de conhecimentos e saberes,
estudáveis mediante as memórias nele fixadas.
Do ponto de vista biológico comumente considera-se o corpo constituído
por carne (músculos), veias, artérias, nervos, órgãos. É o organismo animal.
A carne, no homem e na mulher, apesar da comum animalidade a
quaisquer animais, é além de um lócus; é uma composição étnica e histórica,
expressão de memória étnica.
A memória étnica da carne humana faz do corpo mais do que um
organismo animal; portanto, na Ciência do Cuidado, o vocábulo corpo restringe-
se ao homem e à mulher como fundação do humano e síntese carne-memória
étnica.
O corpo é expressão menêmica de cultura e história formadas por ele; é
memória étnica da carne, escritura que faz a história, forma a cultura,
expressão e reflexão da história e cultura escriturada por ele mesmo.
A cultura não está impressa no corpo; a cultura expressa o corpo que a
cria e é por isto que cultura é memória de corpo.
O corpo é memória étnica de cultura, tão só e totalmente de cultura; não
é representação da cultura porque, ao contrário, é expressão formadora da
mesma. Entretanto, a cultura pode ser representação de memórias de corpo.
Corpo é carne-memória étnica do humano, vivo, pulsante, carne-sangue,
origem e fim da cultura criada.
40
4.2.4 - Pessoa
Pessoa é a unidade de vida histórica e corpórea e que se forma pessoa
humana na convivência e coexistência com outras unidades de vida, ao longo da
trajetória de vida; o desenvolvimento da pessoa humana supõe ou pressupõe o
desenvolvimento da racionalidade, da afetividade, da sociabilidade, da
responsabilidade, da autonomia, da sensibilidade.
4.2.5 – Ambiente
Ambiente é o contexto e o espaço íntimo e externo em que nascem e
vivem, coexistem e convivem pessoas e coletividades,
Todo ambiente é ambiente histórico que engloba ambiente físico, social,
psicológico, familiar, íntimo, natural.
4.2.6 - Enfermagem
Enfermagem é disciplina científica, prática social e profissão
tecnicamente fundamentada em princípios científicos, profissionalizada a
partir da capacidade ou da ação humana de cuidar; é área e fundamento
assistencial da Ciência do Cuidado e fundamentada por esta, historicamente
determinada e caracterizada pela atenção e assistência às situações humanas
de não cuidado ou a expressões e impressões de não cuidado, ou seja,
situações, expressões e impressões desencadeantes ou mantenedoras,
manifestas ou potenciais, diretas ou indiretas de não cuidado; Não cuidado
refere-se a agravos-riscos-danos-males e fragilidades, carências e
sofrimentos, aos agravos e fragilidades, carências e sofrimento do corpo das
pessoas, comprometedores, em qualquer grau, da condição humana de qualidade
41
de vida do corpo e qualidade de vida social, seja de pessoas individualmente
consideradas ou de coletividades.
4.2.7 - Cuidado de enfermagem
Cuidado de Enfermagem é expressão da Enfermagem Aplicada e não
restrita à especialidade de Enfermagem Hospitalar, significando um conjunto de
ações (ações de cuidado), desenvolvidas em situações de cuidado e dirigidas à pessoa
sadia ou adoecida, às demais pessoas a ela ligadas, às comunidades e aos grupos
populacionais com a meta de promover e manter conforto, bem estar e segurança, no
maximo limite de suas possibilidades profissionais e institucionais.
4.2.8 - Assistência de enfermagem
Assistência de Enfermagem é expressão da Enfermagem Aplicada e
restrita à especialidade de Enfermagem Hospitalar, significando um conjunto de
ações (ações de enfermagem), desenvolvidas em situações de enfermagem e dirigidas
à pessoa hospitalizada e demais pessoas a ela ligadas com a meta de promover e
manter conforto, bem estar e segurança, no maximo limite de suas possibilidades
profissionais e institucionais.
4.2.9 – Conforto
A Teoria do Conforto de enfermagem como meta permanente do cuidado
de enfermagem é defendida pela Escola de Enfermagem da Universidade
Federal de Santa Catarina.
Conforto é experiência de um estado ou qualidade pessoal ou coletiva
envolvendo sensações de bem estar, ou seja, sensações de proteção, de
segurança, de comodidade, de integridade, objetivadas inclusive nos ambientes,
42
nos espaços e nos contextos em que nascem, vivem, morrem pessoas e
coletividades.
4.2.10 - Bem estar
Bem estar é um estado ou situação íntima e externa conseqüente à
qualidade de vida na dimensão histórica de pessoas e comunidades. Dimensão
histórica significa e inclui dimensão física, emotiva, mental, espiritual, social,
política, econômica, cultural.
O Sistema de Classificação de Diagnósticos de Enfermagem, NANDA,
define bem estar como estado ou qualidade de estar saudável, especialmente
quando o estar saudável resulta de esforço intencional.
4.2.11 - Qualidade de vida
Qualidade de vida (QV) é o conceito atual do que Florence Nightingale
denomina de condições ecossanitárias de ambientes, espaços e contextos onde
nascem, crescem, vivem, convivem, adoecem e morrem pessoas, grupos,
comunidades, povos, em sua dimensão histórica. QV nas políticas públicas
envolve direito ao trabalho, à moradia, à educação, à alimentação, ao lazer, à
saúde.
4.2.12 - Autocuidado
Teoria criada por Dorothea Orem e publicada em 1971 com o título
"Nursing: concepts of practice".
O objetivo da Teoria do Autocuidado (AC) é prover a pessoa de Poder de
AC, ou seja, capacidade para cuidar de si determinada por um processo de
autocuidado.
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Na prática do AC, cinco atribuições ou cinco papéis deverão ser
desenvolvidos:
-manutenção do autocuidado;
-prevenção do não cuidado;
-autodiagnóstico;
-automedicação e autotratamento;
-participação nos serviços de atenção à saúde e aos agravos à saúde.
A Teoria do AC compõem-se de três teorias: Teoria do AC propriamente
dita, Teoria dos Déficits de AC ou Necessidades de Autocuidado e Teoria dos
Sistemas de Autocuidado.
CONCEITOS DA TEORIA DO AC:
a) AC: autocuidado é a atividade iniciada e desempenhada pela pessoa com o
auto-objetivo de manter a vida, a qualidade de vida e o bem-estar.
b) Ação de AC: capacidade ou poder da pessoa para assumir o AC.
c) Fatores condicionantes básicos para a Ação de AC: idade, sexo, estado de
desenvolvimento e de saúde, crenças e valores sócio-culturais, estrutura e
funcionamento dos serviços de atenção à saúde, questões familiares,
padrões de vida, questões ambientais, adequação e disponibilidade de
recursos.
d) Demanda Terapêutica de AC: totalidade das deliberadas ações de AC a
serem implementadas para atender exigências ou requisitos de AC.
e) Requisitos, exigências ou Necessidades de AC: condições básicas a serem
atendidas para alcançar os objetivos das Ações de AC.
Os Requisitos de AC podem ser:
44
- Requisitos Universais de AC, relacionados com os processos naturais ou
quimiobiofísicos da vida;
- Requisitos de Desenvolvimento de AC, relacionados a expressões mais
particularizadas ou especializadas dos requisitos universais ou a novos
requisitos originários de alguma situação ou acontecimento da vida
cotidiana;
- Requisitos de AC no desvio de saúde, relacionados às situações ou condições
de agravos à saúde ou, ainda, derivados de atenção médica àqueles agravos.
TEORIA DO DÉFICIT OU NECESSIDADES DE AC
Déficits de AC são as necessidades de AC da pessoa,indicativos de
quando os terapeutas do corpo e do cuidado são necessários à pessoa ou
comunidade para a implementação do AC
Cinco métodos de ajuda são preconizados para atenção aos Déficits de
AC: agir por ou fazer por; orientar; apoiar; prover ambiente propício ao
desenvolvimento; ensinar.
Da interconexão entre os cinco métodos de ajuda nascem os Sistemas
de Enfermagem.
TEORIA DOS SISTEMAS DE AUTOCUIDADO
Ação de autocuidado, exercida para cuidar das demandas terapêuticas
de AC e superar os déficits de AC, desenvolve-se por três sistemas:
-sistema totalmente compensatório, quando a pessoa não dispõe de meios para
alcançar a demanda terapêutica de AC, sendo que esses meios são providos
pela enfermeira;
45
-sistema parcialmente compensatório, quando a demanda terapêutica de AC é
satisfeita tanto pela pessoa cuidada quanto pela pessoa cuidadora;
-sistema educativo de apoio, quando a pessoa tem meios para satisfazer suas
demandas terapêuticas de AC e necessita do apoio do terapeuta para a tomada
de decisões, controle de comportamentos, aquisição de conhecimentos e
habilidades.
O Processo de Cuidado na Teoria do AC se desenvolve com os seguintes
passos:
1o.) avaliação dos déficits de AC;
2o.) planejamento dos sistemas de autocuidado;
3o.) implementação dos sistemas de autocuidado;
4o.) avaliação e controle do cuidado de enfermagem prestado.
4.2.13 - Não cuidado
Não cuidado é a rede de discursos, ações, processos, conhecimentos e
saberes criadores e mantenedores de condições e situações ecossanitárias de
ambientes, espaços e contextos inadequadas, insatisfatórias, danosas ao
conforto, ao bem-estar, à segurança, ao desenvolvimento de pessoas,
comunidades, povos e sociedades.
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4.3 – CONCEITOS CENTRAIS A SEREM DEFINIDOS PELA
ANTROPOLOGIA DO CUIDADO
4.3.1 – Arte
4.3.2 – Cuidado
4.3.3 - Arte de Cuidado
4.3.4 – Autocuidado
4.3.5 - Não cuidado
4.3.6 - Memória de cuidado
4.3.7 - Memória de não cuidado
4.3.8 – Etnia
4.3.9 - Formação sócio-étnica
4.3.10 - Configuração histórico-étnica
4.3.11 - Expressão étnico-social
4.3.12 - Construção sócio-étnico-ideológica