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uso da imagem na Antropologia
Sylvia Caiuby Novaes**
Resumo
Abstract
This article attempts to analyse the
difficulties that the humanities have
with respect to visual representation,
with particular emphasis on
anthropology. It goes on to underline
the sound basis of studies on visual
representation and even the very
production of images by
anthropologists.
Résumé
Este artigo procura analisar as
dificuldades das ciências humanas,
oarticularmente da Antropologia, na
sua relação com a imagem, para, em
seguida, apontar a pertinência dos
estudos sobre a imagem e, até
esmo, da sua produção por parte
~ antropólogos.
Cet article cherche à analyser les
difficultés qu' ont les sciences
humaines, I'anthropologie en
particulier, par rapport à l'image. Il
montre, ensuite, Ia pertinence
d'études sur l'image et, même, de Ia
production de ces dernieres par des
anthropologues.
Uma primeira versão deste artigo foi apresentada sob a forma de conferência no
Museu de Antropologia do Vale do Paraíba, em [acareí, no dia 22 de agosto de
1996.
Antropóloga, professora do Departamento de Antropologia da Universidade de
São Paulo (USP), coordenadora do Laboratório de Imagem e Som em Antropologia
desta Universidade e presidente do Centro de Trabalho Indigenista.
autora dos
livros
Mulheres Hom ens e Heró is: D inâ mica e Permanência Através do C otidia no d a Vida
Bororo
(FFLCH-USP, 1986), e
Jo go de Espelhos: Im age ns da Representação de
si
Atravé s
do s Outros
(Edusp, 1993).
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Grand Di ctionnai re
Unive rsel La rouss e apud
Olgária Matos, Imagens
sem Objetos , em Adauto
Novaes (org.),
Rede
Imaginár ia: Telev isão e
Democra cia (São Paulo:
Companhia das Letras,
1991), p 36.
2
Marilena Chaui, Janela
da Alma, Espelho do
Mundo , em Adauto
Novaes (org.), O
Olhar
(São Paulo: Companhia
das Letras, 1990), p. 34.
3 Roland Barthes, O
Óbvio e
o
Obtuso : En saio sobr e
Fotog rafia Ci nema Pi ntura
Teatro e Música (Rio de
Janeiro: ova Fronteira,
1990 [1982]), p. 27.
4 Cf. Olgária Matos,
Imagens sem Objetos , cit.
s várias idéias associadas ao termo im agem talvez nos permitam entend
por que esse tipo de documento ainda não foi devidamente incorporad
como objeto de conhecimento das Ciências Humanas.
Vários autores supõem uma origem comum, no persa antigo, para in
gem e magia. Magia no grego mage ia é a arte de produzir efeitos ma-
ravilhosos pelo emprego de meios sobrenaturais e, particularmente, p -
intervenção de demônios .'
Phaó s é luz, luz dos astros, luz do dia, luz dos olhos, flama, vir à luz
nascente, vivente, ao passo que phaiós é sombrio, cinza, escuro, luto. E
portanto entre luz e trevas, vida e morte que se situam as palavras
visível. E é dessa mesma raiz que se originam palavras como fa nta .
fa ntasma fa ntástico. Marilena Chaui mostra como as palavras que se r
ferem ao mundo do visível entrelaçam visão, imaginação e palavra COIP
resultados do fenômeno da luz.
Para Barthes,
im agem
está ligada à raiz de
imitare.
nessa acepção q
a imagem é vista como representação analógica, no sentido de re-apre-
sentação, ou cópia do real. Os lingüistas se perguntam se haveria
código analógico, por oposição aos códigos digitais, como os fonemas e
linguagem gestual, estes, sim, campos insuspeitos da análise lingüísti -
Por outro lado, se para uns a imagem é um sistema muito rudimentar
relação à língua, para outros a significação não pode esgotar a riquez.:
indizível da imagem. Como dizer o indizível, como tornar inteligível aq .
que é, antes de mais nada, do domínio do sensível?
Este é, certamente, o ponto em que nos deveríamos deter. Herdeiras
uma tradição racionalista e positivista, as Ciências Humanas, e
Antropologia em particular, acabam relegando para outras catego .
do conhecimento aquelas áreas em que a esfera do sensível par
sobrepor-se
do inteligível. Para os filósofos de tradição raciona lista, com
Descartes, a imagem é fonte de ilusão e engano. A consolidação da raci -
nalidade e da possibilidade de um conhecimento positivo implicav
necessariamente, o abandono das paixões, da visão e da imaginação .. -
busca da ordem, de uma ordem que levasse a conseqüências e resultad -
deveria impor-se sobre o acaso, a impermanência, as mutações. Daí a _
paração que se seguirá entre o sensível e o racional, já que apenas o int
lecto nos permitirá garantir se percebemos as coisas, se estamos dormin
imaginando ou alucinando.
A Antropologia acompanhou de perto todo o desenvolvimento da F -
tografia e do Cinema, utilizando-se desses registros desde o momen;
em que se tornaram disponíveis. A primeira exibição comercial
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cinema é de 1895,e já em 1898Haddon e Rivers levam uma câmara de
filmar em sua famosa expedição a Torres Straits. Filmes etnográficos
-o realizados desde o início do século XX,sendo clássicos, na década
e vinte, os realizados por Robert Flaherty. N anook of the North o famoso
filme de Flaherty sobre a vida entre os esquimós, aparece em 1922,no
esmo ano em que é publicado
Argonauta s do Pacifi co Ocident al
de
_lalinowski. A coincidência não se restringe às datas. Os dois autores
- vestem na tentativa de reconstrução da sociedade como totalidade
articulada e integrada, dotada de sentido próprio. Para ambos, a história
everia emergir do próprio material de pesquisa e o importante era
captar o chamado ponto de vista do nativo. Flaherty e Malinowski
abalham com uma perspectiva fixa, em que o presente etnográfico é
atizado, não se percebendo a mudança e o movimento. Apesar da
~ istência no ponto de vista do nativo, ambos atrelam a interpretação
escrição dos fatos e acabam apresentando sua própria visão sobre os
- uimós e os trobriandeses.
_.a década de quarenta, os trabalhos de Margaret Mead e Gregory Bate-
: n procuram aprofundar as possibilidades de trabalho com a imagem
~ campo antropológico, mas não chegam a influenciar seus seguidores,
ar dos bons resultados apresentados. O valor do trabalho documen-
obre recursos imagéticos e não-textuais continua sendo pouco ex-
rado e mesmo contestado em vários círculos acadêmicos, a partir da
uposição de que os textos escritos teriam uma riqueza informativa
rior à da
imagem.
Um antropólogo mestre das imagens como [ean
uch é certamente mais reconhecido e apreciado por cineastas (vide
influência notável sobre a Nouvelle Vague e sobre Jean-LucGodard
e pecial) do que por seus colegas antropólogos. Aqui no Brasil,Pierre
zer é muito mais conhecido e respeitado como fotógrafo do que como
opólogo e profundo conhecedor de religiões afro-brasileiras como o
domblé.
eles que não reconhecem a riqueza informativa da imagem certa-
te não se detiveram na análise da importância das ilustrações dos
o de Hans Staden (1557)e Jean de Léry (1578)sobre os tupinambás,
- esenhos e quadros a óleo de Eckhout do século XVIIsobre tupis e
_uias, a obra dos ilustradores que acompanhavam os naturalistas em
expedições pelo Brasil desde o final do século XVIII,as ilustrações
- Debret sobre o cotidiano da corte portuguesa no Brasil, as fotografias
- es de Edward Curtis sobre os índios norte-americanos, a obra do
afista Thomas Reis, que acompanhou Rondon em suas expedições
interior do Brasil.
o quando incluem vasta e belíssima iconografia em seus livros, an-
_ 'logos contemporâneos se perguntam se as imagens nos revelam os
io ou nossos antigos fantasmas . A crítica da Antropologia
uzida pelos pós-modernos, que nos leva a ver os trabalhos elaborados
- antropólogos não como retratos fiéis de uma realidade específica,
- como textos de autores que se utilizam de determinada fraseologia,
, oras e imagens mentais, parece não ter sensibilizado os que ainda
com a imagem de modo tangencial.
o diz Geertz/ para quem a Antropologia está muito mais do lado do
---em o literário do que do discurso científico,não é o argumento teórico
109
5
Uma das raras exceções
nessa área é o livro de
Thekla Hartmann,
Con tr ib u iç ão d a Icon ografia
para o Conhec im ent o de
Ín di os Brasi leiros do Sé culo
X IX
Série Etnologia, vol. 1
(SãoPaulo: Museu Paulista,
1975).Mais recentemente,
os Ca dern os de Antropologia
e Im ag em publicados pelo
Núcleo de Antropologia e
Imagem da Universidade
Estadual do Rio de Janeiro
(UERJ),trazem
contribuições importantes,
mostrando as múltiplas
questões que a imagem
apresenta para a
Antropologia.
6
Manuela Carneiro da
Cunha (org.), História dos
Índi os no Bras il
(SãoPaulo:
Companhia das Letras,
1992),p 20.
7 Clifford Geertz, Works
an d L ive s: th e Anthropo log ist
as Author (Stanford:
Stanford University Press,
1988).
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Ver, por exemplo, Peter
Ian Crawford, F ilm as
Ethnography
(Manches ter:
Manchester University
Press, 1992); e Peter
Loizos, In no va tio n in
E th no gr ap hic F ilm. F rom
In no ce nc e to S elf
Cons ci ou sn es s: 1 955 198 5
(Manchester: Manchester
University Press, 1993).
Sylvia Caiuby Nova
que nos convence, nem mesmo a elegância conceptual com que o:
antropólogos nos apresentam determinada realidade. Os textos conven-
cem-nos pelo fato de demonstrarem que o autor esteve lá, deixou-
impregnar por determinada cultura, por um período de tempo específie
Mas essa experiência biográfica e sensível acaba sendo encoberta pela
necessidade de construção do texto científico, e o antropólogo autor acab
por se transformar em autoridade científica.
A Antropologia se dedica hoje a um sem-número de temas. Mas são ra-
ríssimos os trabalhos que se detêm, por exemplo, na análise da enorm
quantidade de material fílmico a que somos submetidos. Alguns poue :
antropólogos analisam filmes documentários produzidos para um públi-
co bastante restrito. São praticamente inexistentes as análises sobre :
assim chamados filmes de ficção, como se eles nada tivessem a dizer sobr
nossa realidade, estilos de vida, capacidade de moldar o comportament
etc. Esses filmes são extremamente interessantes para a análise antropo-
lógica, na medida em que, tais como os rituais, condensam valores d
uma dada sociedade, os conflitos típicos de determinadas relações o-
ciais, estereótipos e práticas sociais do nosso cotidiano. Filmes revelarr
não apenas aspectos de uma realidade retratada nas imagens, mas igual-
mente o olhar daquele que produziu aquelas imagens.
Imagens, tais como os textos, são artefatos culturais.
nesse sentido qu
a produção e análise de registros fotográficos, fílmicos e videográfie _
podem permitir a reconstituição da história cultural de grupos sociais
bem como um melhor entendimento de processos de mudança social,
impacto das frentes econômicas e da dinâmica das relações interétnicas
Arquivos de imagens e imagens contemporâneas coletadas em pesq .
de campo podem e devem ser utilizados como fontes que conectam
dados à tradição oral e à memória dos grupos estudados. Assim, o us
da imagem acrescenta novas dimensões à interpretação da história
tural, permitindo aprofundar a compreensão do universo simbólico, q
se exprime em sistemas de atitudes por meio dos quais grupos sociais
definem, constroem identidades e apreendem mentalidades. Não é mai,
aceitável a idéia de relegar a imagem a segundo plano nas análises d
fenômenos sociais e culturais.
Se um dos objetivos mais caros à Antropologia sempre foi o de contrib
para uma melhor comunicação intercultural, o uso de imagens, mui
mais que o de palavras, contribui para essa meta, ao permitir captar
transmitir o que não é imediatamente transmissível no plano lingüístie
Certos fenômenos, embora implícitos na lógica da cultura, só podem e -
plicitar no plano das formas sensíveis o seu significado mais profund
A fotografia, o cinema, a televisão, a publicidade são hoje element _
presentes no nosso cotidiano de modo cada vez mais intenso. Agimos
interagimos com as imagens sem percebermos o quanto elas impregn
o mundo contemporâneo transmitindo e moldando valores fundamer-
tais da nossa cultura. Essas imagens não falam por si sós, mas expressar::-
e dialogam constantemente com modos de vida típicos da sociedade q
as produz. Nesse diálogo elas se referem a questões culturais e políti
fundamentais, expressando a diversidade de grupos e ideologias preser-
tes em determinados momentos históricos. Por meio da análise des
imagens, podemos também melhor entender as mudanças e transfor-
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mações por que passaram os diferentes grupos sociais e as tendências
artísticas que inspiram tais imagens.
A imagem, pela especificidade de sua linguagem, é mais flexível do que
o texto, no sentido de acomodar, em sua estrutura narrativa, múltiplos
ignificados, e é, portanto, um elemento essencial para que se possa
analisar como esses significados são construídos, incutidos e veiculados
elo meio social. Além disso, o modo como as imagens são recebidas
elo espectador implica uma negociação de sentido que transcende a
_rópria imagem e que se realiza no contexto da cultura e dos textos
culturais com que ela convive. A imagem, assim, aponta para esses
te tos, podendo ser lida, ela própria, como um texto. Apesar de as
agens fílmica, fotográfica e videográfica estarem impregnadas de
r íduos do real, elas não são uma extensão da realidade, mas sim uma
criação interpretativa fruto de um imaginário social e que, ao mesmo
- mpo, engendra outros, que podem até mesmo virem a se transformar
realidade.
emos pensar na fotografia como algo que tem a ver com um efeito
ísico-químico, algo ligado a um tempo de viagens, a questões sociais,
- entificações de pessoas, coisas, eventos ocorridos. E é exatamente essa
ção
tão privilegiada da fotografia com a realidade que deveria aproxi-
--la da Antropologia, que tanto se esforçou por registrar, documentar
analisar a realidade social. A máquina de fotografar sonhos ainda não
inventada, embora uma foto possa evocar exatamente a magia e o
-stério daquilo que se registra com a câmara, o que dificilmente o texto
tífico consegue realizar. Podemos descrever textualmente a vibra-
_ Z
majestade e dignidade dos participantes do maracatu. Mas uma
- zrafia como a de Pedro Ribeiro (ver na página seguinte) nos diz
- ivamente muito mais.
sz-elhoe memória. Espelho não apenas do que fotografamos, mas de
a realidade social que engloba aquele que seleciona, através da ob-
a,a cena a ser registrada. Mas também memória: de como eram nos-
filhos, como se parecem conosco quando tínhamos aquela idade, me-
=:Iiri.:lSde espaços distantes que visitamos.
ografia explícita essa mistura feliz de informação acaso estética e
ção
Ela fala claramente, neste sentido, não apenas sobre o objeto
afado, mas, de modo igualmente evidente, sobre a cultura e estilos
-ida de quem opera a câmara. Se as imagens produzidas são
-entes, podem ser igualmente eloqüentes os silêncios e ausências de
.:e:ermi·nadasimagens. A Guerra do Golfo é o exemplo mais clássico de
algumas imagens podem negar determinadas imagens. Imagens
diversas das tiradas durante a Segunda Guerra e que permitiram
ração de um sem-número de filmes sobre o holocausto. Nem na
rra do Golfo nem na Segunda Guerra o olhar que registrou as cenas
olhar ingênuo.
a Antropologia captar a natureza desse olhar que registra, procu-
svendar, através dessas imagens, um pouco do elemento represen-
um pouco daquele que o registrou. Cabe às universidades e aos
=::..;;,c~e timular esse tipo de empreendimento, para que não mais con-
- - com as imagens sem nos darmos conta do que elas significam.
9 Halla Beloff,
Cam era
Culture (Oxford: Basil
Blackwell,1985).
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Foto: Pedro Ribeiro. Caboclo
de Lança de maracatu
rural. Domingo de
carnaval, fevereiro de
1988,em Abreu de Lima,
região metropolitana de
Recife,PE.
Sylvia Caiuby o
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- da imagem na Antropologia
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liografia
os de Antro pologia e Imagem nº 1: Antropologia e Cinema: Pr imeiros Contactos
(1995); nº 2: Antropolo gia e Fotografia (1996); nº 3: Con strução e Aná lise de Ima
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