CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO CEARÁ FACULDADE CEARENSE
CURSO DE SERVIÇO SOCIAL
ROSA MARIA VASCONCELOS MONTE
E O JOSÉ DO PENHÔ?: A VIOLÊNCIA (RES)SIGNIFICADA PELOS HOMENS PRESOS PELA LEI MARIA DA PENHA
FORTALEZA-CE 2014
ROSA MARIA VASCONCELOS MONTE
E O JOSÉ DO PENHÔ?: A VIOLÊNCIA (RES)SIGNIFICADA PELOS HOMENS PRESOS PELA LEI MARIA DA PENHA
Monografia apresentada ao Curso de Graduação em Serviço Social do Centro de Ensino Superior do Ceará, como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Serviço Social. Orientadora: Prof.ª Ms. Francis Emmanuelle Alves Vasconcelos
FORTALEZA-CE 2014
Bibliotecário Marksuel Mariz de Lima CRB-3/1274
M772e Monte, Rosa Maria Vasconcelos
E o José do Penhô?: A violência (res)significada pelos
homens presos pela Lei Maria da Penha / Rosa Maria
Vasconcelos Monte. – Fortaleza; 2014.
83f. Orientador: Profª. Ms. Francis Emmanuelle Alves Vasconcelos.
Trabalho de Conclusão de Curso (graduação) – Faculdade
Cearense, Curso de Serviço Social, 2014.
1. Violência - Gênero. 2. Família. 3. Lei Maria da Penha. I.
Vasconcelos, Francis Emmanuelle Alves. II. Título
CDU 364
ROSA MARIA VASCONCELOS MONTE
E O JOSÉ DO PENHÔ?: A VIOLÊNCIA (RES)SIGNIFICADA PELOS HOMENS PRESOS PELA LEI MARIA DA PENHA
Monografia apresentada como pré-requisito para obtenção do título de Bacharel em Serviço Social, outorgado pela Faculdade Cearense - FAC, tendo sido aprovada pela Banca Examinadora. Data de Aprovação: ____/____/____
BANCA EXAMINADORA
Prof.ª Ms. Francis Emmanuelle Alves Vasconcelos (Orientadora) Faculdade Cearense - FAC
_____________________________________________ Prof.ª Ms. Silvana Maria Pereira Cavalcante
Faculdade Cearense - FAC
Prof.ª Ms. Maria do Socorro Fagundes Psicóloga do NUAH
Dedico este trabalho aos meus pais, irmãos, ao esposo e ao meu filho, por estarem ao meu lado em todos os momentos, principalmente nos mais difíceis, sempre apoiando e incentivando a minha busca.
AGRADECIMENTOS
Agradeço em primeiro lugar a Deus, por estar sempre ao meu lado, me dando
força para enfrentar as dificuldades.
Especialmente minha família, que me deu todo apoio, principalmente no
momento da gravidez e nascimento do meu filho; uma fase difícil para qualquer
estudante. Eles me deram força e suporte para superar.
Ao meu esposo, Marcus Fábio, pelo seu carinho, colaboração, paciência,
compreensão e principalmente por ter custeado financeiramente todo o curso.
Ao meu filho, Ryan Monte de Oliveira, que seu nascimento me despertou o
amadurecimento pelos estudos e o anseio de conseguir esta conquista.
Aos meus pais, agradeço a educação desde a infância, que serviu como
alicerce para mostrar quem sou hoje.
A minha irmã, Cláudia Monte, que se empenhou nas digitações frequentes para
construção deste trabalho.
Ao meu irmão Cleyton Monte e sua esposa Leandra Maria, que por inúmeras
vezes me receberam em sua residência para elaboração e discussão dos
textos.
A minha Orientadora Francis Emanuelle, pela sua atenção e críticas nas
correções dos capítulos e mediação dos grupos de estudos semanais, onde
discutimos sobre os textos e assuntos polêmicos, me ajudando na construção
da pesquisa.
A banca examinadora, que tão prontamente aceitou o convite, caríssimas
professora Silvana Maria e psicóloga Socorro Fagundes.
As funcionárias e toda a equipe, em especial a Socorro Fagundes e Camila
Maria do NUAH, que facilitaram minha entrada no campo de pesquisa.
As minhas queridas amigas de sala, Zenilse Segundo e Fátima Monteiro, que
estiveram sempre ao meu lado nos momentos de apreensão e superação na
academia.
A todos que contribuíram direta ou indiretamente para a realização deste
trabalho, muito obrigada!
Aos professores que tiveram ao meu lado desde o primeiro semestre,
contribuindo para a minha formação acadêmica, dando exemplo de
profissionais que nos conduz em nossa pratica.
Destaco e agradeço a colaboração dos homens que concederam as entrevistas
e participaram dos grupos focais, essenciais para a realização desta pesquisa.
Sou brasileira, guerreira
Não tô de bobeira Não pague pra ver
Porque vai ficar quente a chapa Você não vai ter sossego na vida, seu moço
Se me der um tapa Da dona "Maria da Penha"
Você não escapa O bicho pegou, não tem mais a banca
De dar cesta básica, amor Vacilou, tá na tranca
Respeito, afinal,é bom e eu gosto (Maria da Penha – Alcione)
RESUMO
O tema violência contra a mulher, principalmente a partir da aprovação da Lei Maria da Penha (2006), se tornou constante nas agendas da imprensa, academia, movimentos sociais e judiciário. Verificando essas discussões, nota-se que a mulher configura-se tema central de análise. A presente pesquisa, entretanto, visa compreender a violência contra a mulher a partir da visão de homens que realizaram tais práticas. Discutindo a questão através das categorias gênero, violência e família, analisa-se a complexidade dessa problemática. Os percursos metodológicos utilizados foram a realização de pesquisa de campo, documental e bibliográfica, inserindo-se, dessa forma, entre os modelos de pesquisa qualitativa. O campo da pesquisa se deu no NUAH (Núcleo de Atendimento ao Homem), através de observação sistemática, doze entrevistas semiestruturadas e grupo focal, com homens atendidos pela instituição. A grande questão que percorreu todo o trabalho refere-se à lógica das representações dos homens inseridos em situação de violência na cidade de Fortaleza. Os resultados obtidos através desta pesquisa apontam para a deficiência de políticas públicas voltadas ao público masculino, a relação entre a prática de agressão e o uso de drogas lícitas e ilícitas, uma trajetória familiar marcada pela violência e o pouco conhecimento da Lei Maria da Penha. Palavras-Chave: Violência. Gênero. Família. Lei Maria da Penha.
ABSTRACT
The topic of violence against women, mainly from the approval of the Maria da Penha Law (2006), became constant in the agendas of the press, academia, social and legal movements. Checking these discussions, we note that the woman sets up central theme analysis. This research takes the opposite way, it aims to understand violence against women from the perspective of men who performed such practices. Discussing the issue through gender categories, violence and family, we analyze the complexity of this problem. The methodological paths were used to conduct field research, documents and literature, inserting thus between qualitative research models. The field of research took place in Nuah (of Customer Service Man Core) through systematic observation, twelve semi-structured interviews and focus groups with men served by the institution. The big question that went all the work refers to the logic of representations of women inserted in situations of violence in the city of Fortaleza. The results of this research point to the failure of public policies aimed at male audience, the relationship between the practice of aggression and the use of legal and illegal drugs, a family history marked by violence and the lack of knowledge of the Maria da Penha Law. Keywords: Violence.,Gender. Family. Maria da Penha Law.
LISTA DE SIGLAS
NUAH - Núcleo de Atendimento ao Homem
DDM - Delegacia de Defesa da Mulher
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
SUS - Sistema Único de Saúde
CPI - Comissão Parlamentar de Inquérito
PNAS - Política Nacional de Assistência Social
CNJ - Conselho Nacional de Justiça
DEPEN - Departamento Penitenciário Nacional
SEJUS - Secretaria de Justiça do Estado do Ceará
AA - Alcoólatras Anônimos
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 11
2 CAPÍTULO 1 – A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER: PERSPECTIVAS
TEÓRICAS ........................................................................................................... 17
2.1 A Violência na Contemporaneidade ................................................................ 17
2.2 As Relações de Gênero em Destaque ............................................................. 26
2.3 A Família na Sociedade: Velhos e Novos Arranjos ........................................ 35
2.4 A Lei Maria da Penha ........................................................................................ 40
3 CAPÍTULO 2 - PERCURSOS METODOLÓGICOS ............................................... 47
3.1 Definição da Metodologia ................................................................................. 47
3.2 Aproximações com o Tema e o Campo da Pesquisa ..................................... 52
3.3 Campo da Pesquisa: Núcleo de Atendimento ao Homem (NUAH) ............... 58
3.3.1 Perfil biográfico dos entrevistados .................................................................... 60
4 CAPÍTULO 3 – PERCEPÇÕES E IMAGINÁRIOS DE HOMENS EM
SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA ................................................................................ 63
4.1 Cenários e Personagens: as Entrevistas no NUAH........................................ 63
4.2 Diferentes Versões e Discursos ....................................................................... 65
4.2.1 O uso de álcool e outras drogas ....................................................................... 66
4.2.2 Relacionamento com a Família ........................................................................ 67
4.2.3 Memórias da juventude ..... …………………………………………………………68
4.2.4 Percepção da violência .................................................................................... 69
4.2.5 O Conhecimento e usos da Lei Maria da Penha .............................................. 71
4.3 Análise do Grupo Focal .................................................................................... 72
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 76
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 78
APÊNDICES ............................................................................................................. 82
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1 INTRODUÇÃO
Esse trabalho insere-se na temática da violência contra a mulher e
consiste em compreender as percepções de masculinidade, família, relações
de gênero e a Lei 11.340/06 (conhecida como lei Maria da Penha) dos homens
inseridos em contexto de violência doméstica, residentes na cidade de
Fortaleza-CE e que praticaram atos de violência contra suas companheiras.
Esses homens estão cumprindo pena pela Lei Maria da Penha, sendo que uma
das sanções consiste na participação em grupos de reflexão.
Diálogo acerca dos homens em situação de violência, tendo como
objetivo geral a compreensão das suas ações que envolvem diferentes
modalidades de violência. Os objetivos específicos dessa pesquisa consistem
na discussão sobre a violência nos relacionamentos conjugais que serão
analisados; buscar traçar um perfil biográfico desses homens (escolaridade,
faixa etária, dentre outros fatores); verificar a lógica da ressocialização desses
homens, enfocando o seu atendimento no NUAH (Núcleo de Atendimento ao
Homem).
Tomando como hipóteses iniciais de trabalho: a verificação da
suposta relação entre violência e uso de drogas (lícitas e ilícitas), se o casal
passou por alguma crise conjugal, a vinculação entre violência, ciúme e traição,
a história familiar e socialização desses personagens e a influência da cultura e
do patriarcalismo nordestinos, ou seja, como esses atores constroem
representações sociais sobre seu comportamento.
O campo de pesquisa foi realizado no NUAH (Núcleo de
Atendimento ao Homem), que está inserido no Fórum Clóvis Beviláqua, situado
na avenida Des. Floriano Benevides, 220, Água Fria, Fortaleza-Ce. De acordo
com as entrevistas, que eram realizadas nessa instituição de atendimento;
refletem-se quais fatores influenciaram os homens a cometerem violência
contra suas companheiras na cidade de Fortaleza?
O tema de pesquisa que mais me instigava e chamava atenção era
a violência contra a mulher, tendo oportunidade e curiosidade de realizar
trabalhos de campo, individuais e em equipes, debates abordando questões
pertinentes ao tema e participando de palestras. Na Semana do Serviço Social
da FAC, ocorrida em 2012, houve um mini-curso voltado para essa temática,
12
dialogando inclusive com os estudos sobre os direitos humanos. Na disciplina
de Questão Social, ofertada no 7º semestre, tive a oportunidade de apresentar
um seminário envolvendo a violência contra a mulher. No mesmo período
dessa disciplina estava construindo o meu projeto de pesquisa, facilitando
dessa forma a delimitação do objeto de pesquisa.
Outro fenômeno que também contribuiu para a escolha foi o
acompanhamento dessa realidade a partir das notícias na imprensa,
reportagens publicadas em 2014, revelam a dimensão do fenômeno; o jornal O
Povo publicou no seu caderno cotidiano uma matéria fazendo um balanço
sobre a redução no número de denúncias sobre violência contra a mulher,
ressaltando, nesse sentido o Ceará é um dos estados em que as mulheres
menos denunciam seus companheiros, contudo, a sociedade não está alheia a
essa problemática; em reportagem do jornal Diário do Nordeste, publicado no
caderno regional, destaca-se a mobilização dos movimentos feministas do
Cariri para combater essa modalidade de violência, extremamente regular
nessa região do Ceará1.
Frequentemente assistia aos programas policiais e ficava indignada
com a repercussão de casos envolvendo violência contra a mulher e nesse
momento me questionava: Por que esse fenômeno ainda persiste em pleno
século XXI? Quando as mulheres já conquistaram espaços nos mais diferentes
setores da economia e da política.
Além desses fatores de ordem acadêmica, soma-se a minha
experiência pessoal, pois também fui vítima de violência moral por parte do
meu companheiro; fato ocorrido em 1998 e que, apesar de ter repercutido na
minha vida, não sabia dimensionar as consequências desses atos, pois me
encontrava na adolescência (ETAYO, 2010). Nesse momento esse tema,
apesar de ocorrer a séculos em todas as regiões do país, não era
frequentemente discutido na sociedade brasileira. Somente em 2006 o cenário
passa por transformações sobre a percepção do problema e uma onda de
debates ganha o país.
1 Jornal O Povo, 07/08/2014, disponível em:
http://www.opovo.com.br/app/opovo/cotidiano/2014/04/29/noticiasjornalcotidiano,3243053/ce-e-o-2-estad-com-menos-denuncias-d-violencia-contra-mulher.shtml; Diário do Nordeste, 10/07/2014, disponível em: http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/cadernos/regional/ato-publico-em-juazeiro-alerta-para-indices-de-violencia-contra-a-mulher-1.1054904.
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Nunca presenciei nenhuma agressão no âmbito familiar, pois havia
um respeito mútuo entre meus pais. Uma família tradicional do século XX,
formada por um pai, o provedor do lar e a mãe, cuidadora da casa e dos filhos.
Tenho duas irmãs e um irmão, sendo notória a socialização familiar entre os
papéis feminino e masculino, as tarefas femininas eram relacionadas,
geralmente, aos serviços domésticos e a masculina, focava em acompanhar o
pai em sua jornada de trabalho, visando prover recursos para o lar.
Quando já tinha decidido realizar esse estudo, mas enfocando a
compreensão das representações das vítimas, ocorreu um fato dramático em
minha família no início de 2014, quando um parente próximo (tio) cometeu um
ato de violência contra sua esposa, chegando a ser detido pelas autoridades
policiais, encontrando-se ainda respondendo ao processo. Acompanhei de
perto todo o seu caso e esses elementos me instigavam cada vez mais.
O interesse já existia, porém quando decidi tornar essa preocupação
um objeto de pesquisa para o meu trabalho de conclusão de curso fui buscar
fontes de estudos na biblioteca e na internet, além de dialogar com professores
especialistas da faculdade e com outros alunos que iriam trabalhar a temática
da violência doméstica e familiar contra a mulher na disciplina Fundamentos de
TCC.
Neste momento compreendi que já havia uma produção
considerável abordando essa temática do ponto de vista da mulher agredida.
Então me questionei: Como tratar essa temática, plenamente do meu interesse,
mas tendo um enfoque original? Daí verifiquei que o papel do homem em
situação de violência era pouco estudado no Serviço Social e na área das
Ciências Sociais. Por isso, resolvi abordar a percepção desse homem,
buscando compreender suas representações sociais acerca da violência contra
a mulher.
Esse tema é bastante contemporâneo, debatido na sociedade civil,
movimentos sociais, imprensa, Estado e Academia. O Serviço Social não está
alheio a todo esse movimento, pois o profissional da área deve estar atento e
informado sobre os elementos que constituem a violência doméstica,
principalmente porque o Assistente Social deverá participar ativamente dos
projetos de planejamento e execução das políticas públicas sobre essa
problemática.
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Acredito também que à medida que possamos conhecer as
representações dos sujeitos envolvidos no cenário de violência doméstica,
teremos condições de produzir ferramentas para compreender esse tipo de
comportamento e modificar a realidade. Nesse sentido a minha pesquisa busca
refletir sobre o perfil biográfico do homem que comete violência contra sua
companheira.
A importância desse estudo se faz principalmente levando em
consideração a regulamentação da Lei Maria da Penha, de número 11.340, de
7 de agosto de 2006. A Lei alterou o Código Penal Brasileiro de 1940 e
possibilitou que agressores de mulheres no âmbito doméstico ou familiar sejam
presos em flagrante ou tenham sua prisão preventiva decretada. Além disso, os
homens também não podem mais ser punidos com penas alternativas, como
acontecia anteriormente, quando os acusados tinham a possibilidade de
realizar trabalhos comunitários ou pagar fiança, como penas para esse crime,
evitando dessa forma a prisão.
Apesar de a Lei estar em vigor há oito anos, os números continuam
demonstrando crescimento nos casos de violência contra a mulher. Existe uma
polêmica sobre esse fato, alguns argumentam que a Lei é ineficaz nessa
expressão da questão social, contudo, especialistas afirmam que a lei trouxe
uma maior conscientização das mulheres através das campanhas e
publicização na imprensa tendo, consequentemente, ampliado o número de
denúncias.
No Ceará, o número de denúncias de violência doméstica gera cerca
de 400 processos por mês. Érica Samires, da Delegacia de Defesa da Mulher
(DDM), afirma que o número de denúncias sobre violência doméstica só tem
aumentado com o passar do tempo2. Ela explica que a violência é a mesma e
que o aumento de denúncias significa que as mulheres estão com mais
coragem e dando mais credibilidade à Lei Maria da Penha.
Segundo Érica, por mês são registradas em média mil denúncias.
“Os casos se repetem. São geralmente crimes de ameaça, injúria e lesão
corporal”. Além disso, ela ressaltou que as medidas protetivas, como o
2 Mesmo com mil denúncias por mês, não há ninguém preso por violência contra a mulher no
Ceará. Disponível em: <http://tribunadoceara.uol.com.br/noticias/tag/violencia-contra-a-mulher/>. Acesso em: 27 mar. 2014.
15
afastamento do parceiro, podem ser solicitadas a partir do registro do Boletim
de Ocorrência. Além dessa medida, a Lei Maria da Penha estipula outras
medidas, como: proibição do agressor de contatar com a vítima e com seus
familiares, obrigação do agressor de dar pensão alimentícia provisional ou
alimentos provisórios, além de medidas que visem à proteção do patrimônio.
A juíza Rosa Mendonça, do Juizado de Violência Contra a Mulher,
afirmou que muitas vezes a própria vítima demanda a suspensão ou
arquivamento do processo, não dando continuidade ou provas suficientes para
se chegar a uma audiência. Segundo a delegada Érica, as denúncias de
ameaça e injúria necessitam de representação criminal, após o registro do BO,
“A mulher tem seis meses, a partir do dia do registro, para representar
criminalmente a denúncia. Se ela não procurar, infelizmente a demanda é
prejudicada”. Ela ainda explicou que isso não acontece com os crimes de lesão
corporal, já que mesmo que a mulher não se apresente na delegacia, em caso
de denúncia, ela e o agressor são notificados e, a partir daí, é instaurado um
inquérito policial.
Segundo dados disponibilizados no portal da Secretaria de
Segurança Pública e Defesa Social do Ceará, a taxa de registros na Central de
Atendimento à Mulher alcançou 140,85 denúncias por 100 mil mulheres no
Ceará durante o primeiro semestre de 2013, dados confirmados pela Secretaria
de Políticas Públicas para as Mulheres. Em comparação ao mesmo período de
2012, houve queda de 18,86%, quando a taxa foi de 173,58 denúncias.
Segundo a coordenadora da Central de Atendimento à Mulher,
Clarissa Carvalho, essa redução está relacionada à falta de campanhas sobre
o tema. “A gente percebe que qualquer campanha e divulgação aumentam as
denúncias quando acontecem e depois (quando acabam) os índices voltam a
diminuir. A gente concluiu que essas campanhas precisam ser
constantes”.3Mesmo com a diminuição de denúncias, a coordenadora destaca
que 53% dos municípios cearenses registraram alguma denúncia, ou seja,
embora a intensidade das ligações tenha diminuído, percebe-se que o serviço
não está limitado a capital cearense.
3 Ligue 180: denúncias de violências contra a mulher no Ceará caem. Disponível em:
http://tribunadoceara.uol.com.br/noticias/ceara/ligue-180-denuncias-de-violencia-contra-a-mulher-no-ceara-caem/. Acesso em: 27.03.2014
16
Esse panorama indica a importância de tentar compreender a lógica
dos relacionamentos mediados pela violência e algumas questões se colocam
como pertinentes: Por que as mulheres violentadas não dão continuidade aos
processos? Quais os motivos da redução do número de denúncias no Ceará?
Nesse sentido, desvendar a percepção do homem sobre esses atos poderá
esclarecer em parte a natureza e manutenção dessas relações.
Inicialmente, no primeiro capítulo, discutirei as principais referências
teóricas da minha pesquisa, que está centrada em textos e autores
relacionados às seguintes categorias de análise: família, violência e gênero.
Nesse sentido, farei um diálogo com autores como Pierre Bourdieu, Mary Del
Priori, Saffioti, Socorro Osterne, Adriana Piscitelli, Francis Emanuele entre
outros.
No segundo capítulo, de ordem metodológica, apresentarei as
minhas estratégias e técnicas de pesquisa, bem como os percursos, caminhos
e descaminhos enfrentados, destacando a contextualização do meu campo de
pesquisa, no caso o NUAH e apresentando o perfil dos entrevistados. No
terceiro capítulo encontra-se os elementos presentes na pesquisa de campo,
com destaque para as entrevistas, grupo focal, documentos e dados. Por fim,
nas considerações finais, farei um apanhado geral do trabalho, refletindo sobre
os principais resultados e lacunas.
17
2 CAPÍTULO 1 – A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER: PERSPECTIVAS TEÓRICAS
Nesse capítulo faço uma discussão teórica utilizando as categorias
violência, gênero e família, além de apresentar uma análise sobre a Lei Maria
da Penha, centrais para compreensão do meu objeto de estudo. A importância
desse debate reside na contextualização da violência e das relações de gênero
no Brasil, assim ressalto que a percepção dos homens está extremamente
relacionada com a cultura vivenciada em seu país e mais particularmente na
região Nordeste.
2.1 A Violência na Contemporaneidade
O termo violência remete a diversas reflexões e definições. Segundo
o dicionário Houaiss:
Qualidade do que é violento, ação ou ato de violentar, de empregar a força física (contra alguém ou algo) ou intimidação moral contra alguém; exercício injusto ou discricionário; força súbita que se faz sentir com intensidade; fúria, veemência; constrangimento físico ou moral exercido sobre alguém para obrigá-lo a submeter-se a vontade de outrem (HOUAISS, 2001, p. 2886)
A violência está presente no cotidiano das pessoas, segundo Odália,
(2004) esse fenômeno hoje faz parte do mundo dos indivíduos, sendo eles
autores da violência doméstica. Presente tanto nos lugarejos e povoados, bem
como nas maiores metrópoles, acarretando assim a violação de segurança na
vida dos cidadãos, portanto, tiveram que modificar as estruturas de seus lares,
tirando a beleza das fachadas e priorizando a segurança por conseqüência da
violência.
A violência não escolhe local, portanto reflete-se diretamente nos
lugares mais sofisticados, mas também nas periferias com maior intensidade.
Não quer dizer que nas classes com maior poder aquisitivo não exista
violência, contudo, esses fatos se tornam invisíveis, pois não contam com a
cobertura sistemática da imprensa. Indivíduos situados no topo da pirâmide
social possuem estratégias para driblar a publicização dos seus feitos,
18
construindo um imaginário em que somente os atores das classes mais pobres
cometeriam atos ilícitos.
Devemos lembrar que a violência quase nunca está sozinha,
partindo da reflexão que esses atos devem ser vistos numa perspectiva
relacional (BOURDIEU, 1989), entender o que motiva o grupo ou o indivíduo a
cometer uma ação violenta, sabendo que esta é formada por uma série de
elementos complexos, nunca podendo ser examinada isoladamente. Segundo
o sociólogo francês, ao pesquisarmos esses conflitos, devemos levar em
consideração: contextos, práticas, histórias de vida e a percepção da
sociedade ao longo do tempo sobre o problema.
Etayo (2010) afirma que a violência está presente nos momentos de
formação de grupos dentro de uma sociedade, segundo a autora, os atos de
violência são potencializados quando os indivíduos se agrupam, assim ocorre,
por exemplo, em torcidas de futebol, formação de quadrilhas, bullying e vários
tipos de assédio. Esses processos sociais, muito estudados pela sociologia,
principalmente Durkheim (2002), apontam a importância de se compreender a
força da coerção social sobre os comportamentos. A coerção não é
determinante para os atos de violência, mas certamente influencia a sua
prática.
De acordo com Minayo & Sousa (1998), a desigualdade social e a
miséria, historicamente são fatores que potencializam a violência. No Brasil,
marcado por enormes disparidades de renda e oportunidades, muitas vezes
contextos em que há redução de gastos sociais, onde políticas públicas são
deficitárias, ou seja, apesar de implementadas e amparadas por lei, não
conseguem atingir determinados públicos e setores da sociedade. Nesse
sentido, considerando um cenário de ausências profundas, algumas pessoas
acabam se inserindo em atos ilícitos e de violência. Vale salientar novamente
que não devemos relacionar de forma superficial violência à pobreza. A
realidade brasileira demonstra que esse fenômeno está presente em todas as
classes sociais.
No final do século XX, a violência se tornou mais visível aos olhos da
sociedade. É um tema muito debatido pelas duas esferas: Estado e sociedade
civil. Ambas estão constantemente discutindo e abordando estratégias para
combater essa violência cada vez mais apresentando números alarmantes.
19
Basta dizer que, segundo o IBGE (2010), a taxa de homicídios no Brasil gira
em torno de 45 mil mortos por ano, números que vêm crescendo
constantemente desde a década de 1990. Podemos compreender através
desses dados que a violência é uma ação ou uma prática destrutiva e que se
configura como um método de não resolução de conflitos, ou seja, quando a
vitima sofre uma violência, independente do tipo de prática, as sequelas são
inevitáveis. Segundo Saffioti: “a violência é uma ruptura de qualquer forma de
integridade da vitima: integridade física, integridade psíquica, integridade
sexual, integridade moral” (2004, p. 17).
Apesar de o Brasil ter progredido economicamente nas últimas
décadas, se encontrando entre as dez nações mais ricas do planeta, o país
ainda é um terreno fértil para as desigualdades sociais: faltam oportunidades
para a população como um todo; educação de qualidade no Ensino
Fundamental, qualificação profissional para os jovens, inserção no mercado de
trabalho, precarização da saúde pública, valorização dos idosos e ampliação
do mercado informal
Nesse cenário a violência acaba sendo reconhecida como uma
manifestação da questão social e um meio de resolução de conflitos. Vale
lembrar que vivemos numa sociedade capitalista, fortemente neoliberal; um
modelo civilizacional baseado no consumo. Ressaltando que a violência existe
desde o momento que o homem passou a viver em comunidade, destacando-
se a dominação masculina (BAUER, 2001).
Seguindo esse contexto, Maria Cecília Minayo (2009) descreve o
masculino ritualizado como lugar da ação, da decisão, da chefia, da rede de
relações familiares e da paternidade como sinônimo de provimento material. O
homem incorporou uma educação histórica no que se refere a relações de
poder, a ele é atribuído este papel e com essa autoridade exacerbada é
refletida na sociedade contemporânea, com alto índice de violência familiar,
que produz dados alarmantes de mulheres que sofrem agressões: “atualmente,
a cada minuto quatro mulheres são espancadas no Brasil. Existe no país o
registro de dois milhões de casos de violência doméstica e familiar por ano”
(ARRUDA, 2007, p. 6).
Para Saffioti (2008) é imprescindível fazer a distinção entre violência
e poder. A violência é uma ação realizada e nunca esquecida, enquanto o
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poder, inspirando-se em Foucault (1981), circula em diferentes direções e para
atores diversos, em constante movimento. Assim, “o homem não pode ter o
poder sobre a mulher porque ela questiona, se posiciona em determinadas
situações (FOUCALT, 1981, p. 183). Para ilustrar essa ideia vamos recorrer a
uma situação recorrente entre casais: o homem ao chegar exige o seu jantar, a
mulher, por sua vez, contando com seus motivos, questiona a exigência do
companheiro.Dessa forma:
O poder corresponde a habilidade humana, não apenas para agir, mas para agir em conserto. O poder nunca é propriedade de um individuo; pertence a um grupo e permanece em existência apenas na medida em que o grupo conserva-se unido (SAFFIOTI, 2008, p. 36).
Refletindo sobre a prática de violência chegamos a discussão sobre
a modalidade doméstica desse fenômeno, apresentada de forma brilhante nas
Convenções de Belém do Pará, 1994:
Violência doméstica e familiar que é a ação ou omissão que ocorre no espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive, as esporadicamente agregadas. É aquela praticada por membros de uma mesma família. Vale lembrar que a família fica entendida com indivíduos que são ou se consideram parentes, unidos por laços naturais ou por afinidade (...).
Na maioria dos casos o homem é o autor de violência, isto não quer
dizer que a mulher não pratique violência, pois apesar de existirem poucos
casos em que as mulheres são sujeitas ativas do crime, quase sempre
aparecem como vitimas da violência doméstica. Geralmente o autor dessa
violência doméstica é o homem que manteve relação afetiva íntima com a
vítima. Segundo o Painel SUS 2007, 63% das violências contra pessoas
adultas ocorreram dentro da residência; 30% das violências contra pessoas
adultas foram praticadas pelo cônjuge e 11% pelo ex-cônjuge (BRASIL, 2007).
De acordo com a Convenção de Belém do Pará (1994), o homem
como autor da violência pode ser qualquer tipo de homem, independente de
classe, raça, etnia, instrução escolar e idade. Porém, em maioria absoluta os
que mais violentam as mulheres são geralmente aqueles em que não recai a
menor suspeita. Isso ocorre pela dificuldade em associar a violência com o
perfil de homem com mais escolaridade, poder aquisitivo e respeitabilidade.
21
Essa visão acabou sendo construída pela mídia. Dificultando, dessa forma, a
vitima4 buscar os seus direitos.
Assim refletem-se algumas características que influenciam o homem
a praticar violência. Com frequência esses homens são filhos de pais
excessivamente autoritários e eles próprios foram vítimas de violência física na
infância. Essa característica pertence ao relatório final da CPI que investigou
esses dados (BRASIL, 1994). Outras características importantes referem-se ao
fato do homem não assumir sua prática e, em muitos casos, atribuir à mulher a
culpa do conflito.
As vítimas de violência física, moral, psicológica, ou sexuais tendem
a uma probabilidade maior de reproduzir os atos que lhe foram cometidos. Os
cientistas explicam que esses atos de reproduzir a violência sofrida é uma
estratégia de amenizar seu sofrimento. Não quer dizer que todo indivíduo que
sofre uma violência passe a ser violento.
Por isso a importância da criança não presenciar atos agressivos,
não participar dos conflitos vividos pelos adultos, evitando assim que esses
seres em formação não assimilem e naturalizem os atos vistos em seu
cotidiano. Segundo Gomes e Freire (2005), em pesquisa sobre homens que
praticaram violência, esse fenômeno tem estado presente na vida dos
entrevistados, influenciando a construção da identidade masculina; a violência
entre os seus pais também se fez presente no dia a dia.
O presente estudo permitiu identificar os elementos que interferem
na construção da identidade de homens que violentam suas companheiras e,
desta forma, perceber que o fenômeno da violência conjugal não pode ser visto
simplesmente como o homem agressor e a mulher vítima, mas sim como um
problema cujo relacionamento familiar foi marcado pela ausência de diálogo e
agressões físicas, o que caracteriza relações da violência. Outro elemento que
incide sobre a violência é o uso do álcool e outras drogas. Vale ressaltar que o
álcool e drogas não causam a violência, mas potencializa.
Estudo realizado pelos autores (FURTADO & MÉLLO, 2010) na
Delegacia de Defesa da Mulher, Associação de Alcoólicos Anônimos e no
4. De acordo com o Sistema Penal Brasileiro, a palavra vítima vem do latim victima, que
significa a pessoa ou animal sacrificado ou destinado aos sacrifícios, como pedido de perdão dos pecados humanos.
22
Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher. Nas três
instituições de pesquisa foram realizadas diversas abordagens com os homens
que, através dos seus relatos, mencionaram o uso de álcool ou outras drogas e
que essa prática os levou a cometer alguma violência contra suas esposas.
Porém a juíza Rosa Mendonça explicou que o álcool não é a causa da
violência, por que existem homens que bebem e não batem e existem homens
que batem e não bebem. Esse fato não pode ser visto como o único fator, pois
sabemos que a violência é histórica, o álcool e as drogas se mostram
presentes em relatos, porém devem ser avaliados outros fatores como a
dominação masculina e a cultura machista vivida no Nordeste.
A partir da década de 1930 até meados de 1970, as mulheres
participaram efetivamente dos movimentos sociais lutando pela
redemocratização do Brasil. A partir da década de 1970 a luta foi contra a
discriminação da mulher. A década de 1980 foi marcada pelos avanços no
combate à publicização da violência contra a mulher e a constituição federal de
1988 onde os movimentos feministas se mostraram presente para lutar pelos
direitos da mulher (VASCONCELOS, 2013).
Através das lutas e dos movimentos a mulher tem se destacado em
uma sociedade repleta de preconceitos, os resultados foram vistos de forma
positiva e satisfatória, embora se saiba que muitos desafios estão postos. É um
grito contra a injustiça e a impunidade. Desde então a mulher vem ocupando
espaços, antes só ocupados por homens, não só relacionados às profissões,
mas também no âmbito público e privado. A mulher busca se destacar e
alcançar a sua valorização. Podemos dizer que há vinte anos os filhos ficavam
obrigatoriamente aos cuidados da mãe enquanto o pai era o único provedor do
lar. Percebemos então que hoje a realidade é outra, pois é visível que
atualmente os filhos do casal são cuidados por terceiros. Contudo, o mercado
se aproveita dessa necessidade, sendo crescente o número de creches ou
escolas em períodos integrais para os cuidados diários das crianças.
A Constituição de 1988 afirma que a família é a base da sociedade e
tem especial proteção do Estado; nessa linha os direitos e deveres referentes à
sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher (Art.
226). Contudo, apesar dessas convenções e dispositivos constitucionais a
violência contra a mulher não foi reduzida. Sabendo dessa realidade, uma série
23
de movimentos sociais, associações, partidos e entidades de classes
encaparam a ideia de criminalizar essa violência. Foi assim que, em 2006
surgiu a Lei Maria da Penha.
Após muitos anos de casamento e conflitos, uma cearense chamada
Maria da Penha, sofreu duas tentativas de homicídios do seu marido. Esse fato
a fez lutar incessantemente pela efetivação dos seus direitos até que, em 2006,
foi sancionada, pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva, após uma longa
trajetória, com objetivo de solucionar ou minimizar os sofrimentos das vítimas.
A violência física é a mais conhecida, referindo-se ao ato, por parte
do homem que fere a integridade física ou a saúde da mulher de forma visível.
De acordo com a Convenção de Violência de Belém (1994), a violência física
se expressa através de tapas, chutes, socos, queimaduras, mordeduras,
punhaladas, estrangulamentos, mutilação genital, tortura e assassinato.
É uma situação constrangedora para a mulher, porque ela causa dor
física e expõe muito a vítima, pois na maioria dos casos as mulheres são
agredidas nos lugares mais visíveis do seu corpo, como a face, braços e
pernas. É comum ouvir das vitimas que sofrem violência física a intenção de
não expor a si nem aos seus familiares, principalmente, porque elas
consideram que estão inseridas numa instituição sagrada: a família5.
A violência psicológica é a ação ou omissão destinada a degradar ou
controlar as ações, comportamentos, crenças e decisões de outra pessoa
(BRASIL, 1994). O casal tende a passar por um ciclo de violência que pode se
iniciar principalmente com uma agressão psicológica ou moral (humilhações,
ridicularizações, perseguições, insultos, ameaças, constrangimentos,
chantagens e exploração). Contudo, deixa marcas na esfera sentimental e
pode ser escondida e não declarada a sociedade. Dessa forma:
O ciclo da violência é composto por três fases: a primeira é a construção da tensão no relacionamento (agressões verbais, crises de ciúmes, ameaças, destruições de objetos etc.) Na segunda fase é o descontrole e destruição (marcada por agressões agudas, quando acontecem os ataques mais graves). E, por fim, a terceira fase (o arrependimento ou Lua-de-mel), quando o autor da violência demonstra remorso, pois ele ou ela tem medo de perder o
5 .Essas informações foram extraídas de uma pesquisa, ocorrida no primeiro semestre de 2014
para a disciplina Movimentos Sociais. A investigação consistiu em visitas à delegacia da mulher de Fortaleza, onde tive oportunidade de dialogar com várias vítimas que estavam sendo atendidas naquela instituição.
24
companheiro. (SOARES, 2005). Dessa forma: Contudo, antes que ocorra o crime é possível identificar no cotidiano do casal o chamado ciclo de violência, que se repete sucessivamente. O nível da tensão na relação vai aumentando gradativamente, até que fique insuportável, e então, por um motivo aparentemente banal, o homem explode agredindo violentamente a companheira. Esta, como forma de retaliação, frequentemente sai de casa, mas acaba sempre voltando em função dos insistentes rogos do marido, que, arrependido, promete-lhe que nunca mais acontecerá de novo. Por um certo tempo, movido pela culpa e pelo medo de perdê-la, ele “veste pele de cordeiro”, e consegue fazer o papel do bom marido, mas, à medida que a tensão começa a se acumular novamente, fica muito difícil desempenhar este papel, até que há outra explosão e outra explosão e o ciclo de repete (BRAGHINI, 2000, p.19).
Por violência moral consiste no assédio moral, geralmente onde o
patrão ou chefe agride física ou psicologicamente seus funcionários com
palavras, gestos ou ações, sendo considerada qualquer conduta que configure
calúnia, difamação e injúria (BRASIL, 1994). A mulher que sofre esse tipo de
violência sendo o autor o marido, companheiro, namorado, podendo ser
inclusive, mantida em sigilo, nem sempre precisa expor seus constrangimentos
a sociedade.
A violência sexual também está presente entre os casais, se
referindo ao homem que obriga a mulher a presenciar, manter ou participar de
relação sexual não desejada ou que impeça a utilização de métodos
contraceptivos (camisinhas, tabelas e outros) (BRASIL, 1994). Entre todas as
violências, a menos discutida, porém muito frequente, é a violência patrimonial,
aquela praticada contra o patrimônio da mulher, sendo muito comum nos casos
de violência doméstica e familiar, envolve a retenção, subtração, destruição de
objetos da mulher, objetos de trabalho, bens, valores e recursos econômicos
(BRASIL, 1994).
É interessante notar os discursos articulados pelas vítimas para
justificar hematomas e escoriações, são palavras que deixam explícito uma
série de medos, vergonha e frustração e expõe toda a complexidade de
representações dessa problemática: “levei uma queda na escada”, “foi uma
tentativa de assalto”, “topei na calçada”, “me cortei acidentalmente enquanto
preparava o almoço”.6A mulher tenta resguardar sua estrutura familiar para que
não haja separação.
6. Como já foi dito anteriormente, realizei várias visitas à delegacia da mulher de Fortaleza, pois
tinha interesse na temática, fato que possibilitou o contato com essas mulheres, também contei
25
Daí a importância de instituições de apoio à mulher, como as
delegacias especializadas. Esses estabelecimentos representaram um avanço
igualitário para as mulheres, expressando a participação política para a defesa
de um grupo historicamente reprimido e discriminado, porém, ainda era preciso
avançar bastante no tocante às legislações.
Apesar das primeiras delegacias de atendimento específicos para as
mulheres terem sido criadas no ano de 1985, devemos estar cientes de que as
legislações naquela época não estavam voltadas para a violência contra a
mulher. Esses espaços possibilitam o encaminhamento pelos profissionais que
compõem as equipes multidisciplinares, oferecendo medidas para viabilizar
uma situação de conforto psicológico, segurança; saber que tem a justiça para
lhe apoiar. De acordo com Saffioti a violência doméstica:
Acontece numa relação afetiva, cuja ruptura, na maioria das vezes, exige intervenção externa. Dificilmente uma mulher consegue se desligar de um homem violento sem ajuda externa. Até que isso possa ocorrer, desenvolve-se uma trajetória oscilante, entre saídas e retorno à relação conflitante (SAFFIOTI, 2008, p. 54)
Também se destaca a necessidade de campanhas educativas e de
conscientização, através de palestras, debates, diálogos, conferências, são
caminhos e estratégias que tem o objetivo de propiciar paras as mulheres de
uma forma geral a se libertarem dessa violência e assim, consequentemente,
diminuir os números de agressões, presentes em todas as partes do mundo,
pois nada adianta ter uma infraestrutura de atendimento se a mulher não faz
valer seus direitos.
Vale ressaltar que os governos, em suas políticas públicas, não
traçam estratégias que tenham como objetivo trabalhar o comportamento do
homem, desmistificando essa dominação masculina; campanhas que poderiam
ter início logo nas escolas, para formar cidadãos mais conscientes e portadores
de uma visão menos opressora e preconceituosa.
Com a aprovação da Lei Maria da Penha inúmeros debates e
projetos foram pensados com o propósito de prevenir, coibir e punir a violência
doméstica entre casais. O caráter de enfrentamento ao fenômeno da violência
com as informações da equipe multidisciplinar (Assistentes Sociais e Psicólogos), que relatou esse tipo de discurso.
26
contra a mulher atinge mais fortemente o campo das lutas sociais. A sociedade
tem o papel de extrema importância no combate a essa violência que se
estende para as famílias, gerando conflitos na vida conjugal.
Seguindo esse contexto, o Serviço Social na contemporaneidade é
preciso refletir acerca das características atuais que foram atribuídas a
profissão. Esses são fatores históricos que levaram o profissional a construir,
reconstruir e desconstruir valores, aproximar-se e afastar-se de determinadas
teorias ou correntes, transformar e transformar-se simultaneamente
(OLIVEIRA, 2010). Uma dessas ações de reflexão foi realizada em 2004,
quando o Governo Federal deu um importante passo ao realizar a I
Conferência Nacional de Políticas Públicas para as Mulheres na cidade de
Brasília. Esta conferência reuniu cerca de 120 mil mulheres de todo o Brasil
tornando um marco relevante para a afirmação dos direitos das mulheres.
Neste encontro as mulheres apresentaram propostas para elaboração do Plano
Nacional de Políticas Públicas para as Mulheres, que expressou como principal
objetivo assegurar o direito das mulheres, afirmando-as como cidadãs.
2.2 As Relações de Gênero em Destaque
A discussão da categoria gênero é bastante complexa, e, por isso,
ao abordarmos o referente termo, procuramos chamar atenção para o
significado da representação social do ser homem e ser mulher, dos valores
que a sociedade atribui aos termos masculino e feminino, bem como fazer uma
explanação nas relações de desigualdades entre os sexos que se fizeram
presentes na sociedade desde os tempos mais remotos até os dias atuais.
De forma geral, as gramáticas normativas da Língua Portuguesa
apresentam o termo gênero como sendo a categoria flexão das palavras de
acordo com o seu sexo, ou seja, masculino e feminino. Contudo, para Teles:
A sociologia, a antropologia e outras ciências humanas lançaram mão da categoria gênero para demonstrar e sistematizar as desigualdades socioculturais existentes entre mulheres e homens, que repercutem na esfera da vida pública e privada de ambos os sexos, impondo a eles papéis sociais diferenciados que foram construídos historicamente, e criaram polos de dominação e submissão. Impõe-se o poder masculino em detrimento dos direitos das mulheres,
27
subordinando-as às necessidades pessoais e políticas dos homens, tornando-as dependentes (TELES, 2002, p. 16)
Dentro desse contexto, no Brasil, as discussões sobre gênero
ganham ênfase a partir de 1980. Entre as obras publicadas nesse período,
destacou-se o artigo de título: Gênero: uma categoria útil para a análise
histórica, da historiadora Joan Scott (1989), que até os dias atuais serve de
referência para que estudiosos que desejam explorar o assunto. Nessa mesma
linha de discussão Georges Boris relata:
Que os primeiros especialistas dos estudos do homem – ou men´s studies concordaram com a rejeição à ideia de uma masculinidade única, contestando o papel principal da biologia e dedicando-se a defender a multiplicidade humana: portanto não existe um modelo masculino universal que valha para todas as épocas e culturas. (BORIS, 2000, p. 88).
A categoria gênero passa a ser discutida junto ao movimento de
mulheres, porém, não foi uma mulher quem formulou o conceito de gênero,
sendo este elaborado por Robert Stoller, no ano de 1968. Contudo, de acordo
com Saffioti (2004, p. 131-2) mesmo que não usando diretamente o vocábulo,
foi Simone de Beauvoir, na formulação de sua famosa frase “ninguém nasce
mulher, mas se torna uma mulher” que foi considerada a precursora do
conceito.
Gênero é um conjunto de normas modeladas para seres humanos,
sendo eles homens ou mulheres, é algo que é imposto pela sociedade, ou seja,
logo quando uma criança vem ao mundo esta não se distingue pelo seu
biológico e sim, mais precisamente, pelas roupas (se rosa ou azul), escolhidas
pelos pais que, por sua vez, estão reproduzindo e modelando a criança a terem
determinados traços distintos para ser homem ou mulher. Lauretins (1987)
defende que gênero são símbolos culturais inovadores de representações. E
Saffiotti (1992) diz que é uma gramática sexual, regulando não apenas
relações homem – mulher, mas também homem-homem e relação mulher-
mulher.
O termo gênero é bastante amplo, remete a diversos sentidos,
através desse estudo estamos enfatizando a espécie o gênero humano, como
se dão as relações do homem e da mulher. Para Teles e Melo (2003), gênero
28
pode ser entendido como um instrumento, como uma lente de aumento que
facilita a percepção das desigualdades sociais e econômicas entre homens e
mulheres.
O gênero é, portanto, a diferença cultural de uma sociedade aplicada
para o sexo feminino e masculino. Mas é importante frisar que o termo gênero
não pode ser confundido com o sexo. Os indivíduos possuem características e
diferenças biológicas, anatômicas e fisiológicas, essas diferenças são dadas
pela natureza. Mulheres e homens pertencem a sexos diferentes, com isso
Saffiotti adverte:
Para o cuidado em não se originar uma dicotomia entre sexo e gênero, o primeiro situado na natureza biológica e o segundo na sociedade e na cultura. Afinal de contas não se poderia imaginar uma sexualidade biológica desvinculada do contexto social em que se exerce. Para ser mulher existe uma semelhança e atribuições para a mesma como ser dona de casa, educadora dos filhos, cuidar bem do marido, entre outros inúmeros papéis a ser seguido. (SAFFIOTI, 2007, p. 130)
O homem sempre mostrou predomínio contra a mulher em várias
sociedades ao longo da história. Tomando como referência o pensamento de
Simone de Beauvoir, a mulher, apesar das regras impostas pela sociedade,
torna-se mulher à medida que vai se articulando com essa realidade. Os
exemplos são diversos, estão no uso das cores para distinguir os sexos, nas
brincadeiras. O comércio se apropriou desse universo; é notório chegar a uma
loja de artigos infantis e encontrar estantes distintas para meninos e para
meninas. As bonecas, nesse caso, incentivam a maternidade. Há também a
aquisição de muitos objetos inseridos para estimular os afazeres domésticos,
como panelas, vassouras e fogões. Para os homens, os brinquedos remetem a
valores percebidos como da masculinidade, como a velocidade, a força, o
domínio e a liberdade, representados por carros, bolas, aviões, super-heróis e
diferentes tipos de armas.
Para entender essa relação de poder é preciso considerar o modelo
de relações socialmente construídas; podemos citar então o modelo
patriarcalista, onde a mulher está sempre no perfil de inferioridade, sujeitando-
se ao homem, que se ver ocupando um papel dominante, superior em diversas
situações. Segundo Gilberto Freyre (2005), todo o processo de colonização do
29
Brasil seguiu esses parâmetros, em que o patriarca dominava
incontestavelmente as esferas da vida social, política e econômica, em muitos
casos, fazendo uso da força contra suas senhoras.
Segundo Saffioti (1989) a mulher, embora não seja cúmplice do
patriarca, coopera inconscientemente nessas ações. A autora apresentou como
exemplo o filho que cometeu um erro e sua mãe para puni-lo lhe deu uma
surra, mas em seguida, argumentou “quando o seu pai chegar vai ser pior”, ou
seja, mesmo sem perceber a mulher, nesses casos, está reproduzindo o poder
do pai. Por que a própria mãe como educadora em formação humana, não
pode usar ferramentas para impor limites, tendo que recorrer sempre à figura
paterna como imposição de poder? A chamada “Síndrome do pequeno poder”.
É preciso também lembrar outra atribuição do patriarcalismo, a do
homem visto como sujeito ativo da sexualidade e o sexo feminino como
passivo e objeto de desejo para satisfação masculina, dessa forma, como
lembra Bourdieu:
(...) Estende-te, e eu me deitarei sobre ti. A mulher se deitou por terra, e o homem se pôs sobre ela. E ele sentiu o mesmo prazer. E disse então a mulher: “Na fonte, és tu (quem dominas); na casa, sou eu”. No espírito do homem são sempre esses últimos propósitos que contam, e desde então os homens gostam sempre de montar sobre as mulheres. Foi assim que eles se tornaram os primeiros e são eles que devem governar. (BOURDIEU, 2012, p. 28)
Os ensinamentos da Igreja exerciam uma forte pressão nessas
famílias, na relação de homem e mulher. Segundo Mary Del Priore (2010, p.
46): “o homem era superior e tinha que exercer sua autoridade. As mulheres
eram sujeitas a seus maridos, assim como a igreja era sujeita a Cristo”. O
respeito e a obediência à figura masculina era clara; “a mulher ainda na fase da
pré-adolescência passava por um adestramento da sexualidade, tendo ela uma
educação reservada e dirigida para os afazeres domésticos, em respeito
primeiramente ao seu pai e, em seguida, ao marido” (DEL PRIORE, 2010, p.
49).
A emancipação da mulher assusta os homens, segundo Falconnet e
Lefaucheur (1997), os homens se assustam com o espaço que a mulher tem
ocupado, sendo ele na política, na família, e, principalmente, profissional. A
mulher tem se destacado e ocupado espaços que antes eram exercidos
30
somente pelos homens, que é o caso de diretorias, militares, destaques em
empresas renomadas e até mesmo o cargo histórico que foi em 2010, com a
eleição da primeira mulher eleita para a função de presidenta (cargo máximo
da nação). Isso, de certa forma, causou um impacto na população e incômodos
para alguns. Pois a figura masculina é tão enfatizada na política que quando
inverte o sexo causa estranhamento. O sexo feminino é tão inferiorizado que o
machismo não consegue enxergar a capacidade humana, intelectual e a
articulação e estratégias que a mulher sobrepõe para alcançar seus objetivos.
Com o passar dos anos a mulher tem buscado se destacar na
sociedade, sendo cada vez mais atuante, dessa forma tem deixado de lado a
posição de dominada e tem sido mais atuante. Que são os casos onde a
mulher precisa se impor, tomar decisões, não esperar pelo homem, esses na
maioria das vezes acontecem quando a mulher é independente ou possui certa
autonomia.
A desigualdade entre o papel do homem e o papel da mulher ainda é
muito presente na sociedade contemporânea. A mulher não precisa ser igual
ou superior ao homem, ela precisa ter seu espaço, seu reconhecimento em
uma sociedade com traços e raízes extremamente machista. Falar em
igualdade de gênero, segundo Bandeira (2005), significa romper com um
universo restrito do não reconhecimento da alteridade do outro, da diferença,
para caminhar em direção ao espaço de equidade, emancipação e
pertencimento. A mulher se difere do homem em diversos fatores, não só nas
curvas anatômicas, biológicas, mas também nos seus traços, costumes,
hábitos, um traçado de um perfil feminino que não deve ser igualado. O que
deve ser defendido é a igualdade de oportunidades, essa não só nas relações
de gênero, mas também nas de classes e etnias, respeitando as identidades de
cada grupo (LISBOA, 2010).
Na relação entre o homem e a mulher, as desigualdades foram
social e historicamente construídas, levando em consideração que a mulher
também contribui para o que Bourdieu (2012) chama de dominação masculina.
Ressaltando que a mulher é a genitora e educadora desse homem, mas de
certa forma a mulher só reproduz o padrão de socialização socialmente
construído. Por mais que a mulher seja politizada, atuante, conhecedora sobre
os estudos de gênero, ela não consegue ser tão radical ao ponto de infringir
31
esse padrão determinado, ela se vê em conflito, pois tem receios de futuros
julgamentos. Nessa perspectiva, Boris afirma que:
O mito do homem violento é antiguíssimo e a presença da violência masculina, sem dúvida, pode ser reconhecida ao longo de toda a história da humanidade. Na Grécia antiga o herói “surge aos nossos olhos externos e, sobretudo, internos como alto, forte, bonito, solerte, destemido, triunfador” nas sociedades consideradas “primitivas” ou arcaicas, a violência é descrita como um traço essencialmente masculino. (BORIS, 2000, p. 43)
De fato é muito comum ouvirmos discursos na sociedade a respeito
da socialização dos filhos e esta é feita uma caracterização, ou seja, quando a
educação do filho foi satisfatória, o pai é parabenizado, quando essa educação
é vista como uma negação esse peso se sobrecarrega na mãe, pois foi a mãe
que não soube educar, não impôs limites. O entendimento de ser mulher, ou de
ser homem, são papéis assumidos pelo gênero feminino/masculino, são
construções advindas dentro de um conjunto de ideologias construídas social e
culturalmente. De acordo com Boris:
O núcleo de identidade do gênero é a convicção de que a atribuição e seu sexo foi correta: “eu sou macho” se define antes dos dois anos de idade, e, em geral, tende a se manter ao longo da existência do homem de forma mais ou menos persistente, caso não ocorram percalços significativos. Entretanto, a trajetória da construção de um homem não é tão tranquila quanto se poderia pensar. (...) Mas não basta ter cromossomos Y e um pênis funcional para alguém se sentir homem, pois é possível crer-se masculino a despeito de muitas anomalias ou disfunções. (BORIS, 2004, p. 3)
Essa citação expõe a identidade do homem, afirmando que não é
apenas a genitália que o faz o homem, dessa forma podemos atribuir à máxima
de Simone de Beauvoir, dizendo também que o homem se torna homem ao
longo de sua vida. A masculinidade, portanto, não é natural, sendo uma
construção social e cultural também.
O menino desde criança já pode se perceber através da
socialização, do exemplo paterno, todos os reflexos masculinos vão moldando
esse ser desde pequeno até vir a ser homem, “a ser macho”. É muito comum
ouvirmos os mais velhos falarem: “homem não chora” ou “deixa de ser fresco”,
qualquer comportamento que se desvie do padrão aceitável pela sociedade,
32
como falar com voz afeminada, logo se diz: “aprenda a ser homem”. Seguindo
nessa linha, Cecchetto destaca:
Neste sentido, emerge no contexto dos men’s studies a noção de masculinidade hegemônica como alternativa para se examinarem as relações de poder entre os sexos. A masculinidade hegemônica é definida como modelo central, o que implica considerar outros estilos como inadequados ou inferiores. Isso abre caminho para uma abordagem mais dinâmica da masculinidade: a divisão crucial entre uma masculinidade hegemônica e várias subordinadas que lhe servem de contraponto e antiparadigma. (CECCHETTO, 2004, p. 63)
Fica o questionamento, como uma criança que no auge da sua
inocência, de descobertas, brincadeiras, aprendizado, pode ser moldada para
inserir padrões de masculinidade? Esse padrão, que não deixa de ser uma
reprodução do sistema, já pode ser observado até mesmo quando a criança
está no ventre materno, e logo quando o sexo é definido, nesse momento se
inicia a compra do enxoval, de acordo com o sexo do bebê, sendo ele em
quase 100% dos casos de cor azul para meninos e de cor rosa para meninas.
Desde então, antes mesmo do nascimento, é reproduzido e
representado o gênero, e perpassa sucessivamente por todas as fases do
indivíduo. Ainda na infância são notórias as brincadeiras, o comportamento
distinto e até mesmo os brinquedos expostos nas prateleiras das lojas, estes se
diferem fácil, para os dois sexos. Na adolescência as cobranças continuam; a
sociedade não permite o desvio de conduta, caso contrário esse adolescente
sofrerá diversas discriminações.
Segundo Tiene (2004), as diferenças biológicas e genéticas entre
homens e mulheres são bastante utilizadas para justificar certas atitudes
discriminatórias entre as pessoas. Desse modo, enquanto sociedade,
construímos dois modelos específicos de comportamento, que são seguidos
por homens e mulheres, que diz respeito à preponderância do masculino e do
feminino. Consequentemente, o masculino deve possuir algumas
características específicas: ser arrojado, dinâmico, enérgico; em contrapartida,
o feminino deve ser dócil, meigo, organizado, habilidoso, higiênico e cuidadoso.
Ainda na concepção da biogenética, Benedito Medrado e Jorge Lyra explicam:
Que a genética busca provar uma relação entre a violência masculina e a constituição física dos homens. Alguns afirmam que os homens
33
supostamente carregariam em seus genes e cromossomos predisposições hereditárias que justificariam suas condutas agressivas. Outros apostam em explicações hormonais. Porém, a associação da masculinidade ao poder e à violência não se constrói exclusivamente a partir de (nem se reduz aos) determinantes biogenéticos. Ela é construída e se reproduz nas relações sociais, históricas e culturalmente datadas; se constroem na visão social do trabalho, na socialização da família, na escola, no cotidiano, em pequenas ações. (MEDRADO & LYRA, 2012)
Vale salientar que a partir dessas definições, o homem é constatado
o sexo forte, sendo superior, cabendo à mulher o sexo frágil e inferior. Tais
modelos são enquadrados socialmente, tendo base nas concepções que
trazem as diferenças como ordem natural e imutável. (TIENE, 2004). A autora
nos traz a compreensão de que, para a mulher, tanto a questão de identidade
que lhe era vedada, como a dominação do homem sobre a mulher, é dada
desde a antiguidade, e ainda, em pleno segundo milênio, não é tão diferente
em diversos lugares.
A produção teórica mostra que historicamente a mulher ocupou um
espaço na cultura da subalternidade, imposta pelo simples fato de nascer
mulher, conforme nos aponta Alves e Pitanguy:
Na Grécia, a mulher ocupava posição equivalente a do escravo no sentido de que tão somente estes executavam trabalhos manuais, extremamente desvalorizados pelo homem livre. Em Atenas, ser livre era primeiramente, ser homem e não mulher, ser ateniense e não estrangeiro, ser livre e não escravo. (ALVES & PITANGUY, 1991, p. 84)
Dessa forma, a mulher era restrita ao papel de reprodutora, e a
função diretamente doméstica, enquanto os homens ocupavam-se de
atividades mais valorosas no campo da filosofia, da política e das artes. As
identidades de ser homem e ser mulher já estavam delineadas por um discurso
naturalista, estabelecendo a dicotomia sexual e as desigualdades.
No Brasil colônia, compreendido entre 1500 a 1822, a condição da
mulher, conforme Teles (1993), era vinculado a sua situação social e sua etnia
(índia, branca ou negra). A partir dos costumes, que se davam de forma
diferenciada entre os povos indígenas é que eram definidos os papéis
exercidos pelas mulheres, logo haviam tribos em que as mulheres possuíam a
moradia e também áreas em que elas pudessem cultivar, em outras, as
34
propriedades eram exclusivamente dos homens. Se haviam aquelas que eram
escravas de seus esposos, outras eram suas companheiras. Em relação ao
casamento, era praticada a monogamia e a poligamia.
Na visão do colonizador, o homem índio servia para o trabalho
escravo e as mulheres índias como esposas, concubinas ou empregadas
domésticas. Dessa forma, os colonizadores as usavam e se apropriavam de
sua capacidade reprodutora dissociada do prazer. (TELES, 1993). As
atividades exercidas pelas mulheres eram restritas às atividades do lar e
tarefas como fiação, tecelagem, rendas e bordados. Sua posição em relação
ao homem se dava de modo subalterno, de aceitação ao que lhe era imposto.
Na relação arbitrária de dominação dos homens sobre as mulheres
era mesmo inscrita com a divisão do trabalho na realidade da ordem social
(BOURDIEU, 2012). Além do fato de que o homem não pode rebaixar-se para
executar certas tarefas designadas socialmente como inferiores, mas são
profissões reconhecidas e valorizadas, como, por exemplo, a profissão de
cozinheira e cozinheiro, de costureira e costureiro, cabeleireira e cabeleireiro,
enfim, entre outras profissões e serviços ofertados para a sociedade.
Na cultura ocidental os homens buscam constantemente se destacar
das mulheres com os privilégios da masculinidade, expressando intenso desejo
sexual e capacidade de controlar as pessoas e o mundo. Por isso é tão comum
e naturalizado os cargos de presidência e deputado serem destinados aos
homens.
O homem para conseguir alcançar seus objetivos, desenvolve ações
e pensamentos autônomos e racionais. Para o homem é preciso se lançar a
situações de risco e excitação, bem como propiciar o prazer. A partir das
construções culturais destinadas a mulher, como: a submissa, cuidadora do lar
e dos filhos, ser fiel ao marido, enfim, entre outras atribuições impostas pela
sociedade que a mulher ocupou o espaço doméstico. Viver para casa, marido e
filhos, ou seja, colocar-se sempre em último plano, vivendo a vida do outro.
(VASCONCELOS, 2013).
Contudo, estamos vivenciando o que seria a crise dos papéis
masculinos, representada pelo distanciamento do que a maioria dos homens
via como masculinidade hegemônica ou original. Como nem todos os homens
vivem a altura desse modelo é considerado o motor da chamada “crise da
35
masculinidade”. Dessa forma, conseguimos acompanhar arranjos familiares em
que o homem compartilha tarefas domésticas, antes exclusivas das mulheres,
como, por exemplo, limpeza e preparo das refeições, sendo até mais presente
na educação dos filhos.
2.3 A Família na Sociedade: Velhos e Novos Arranjos
Ao falarmos em família faz-se necessário definirmos e explicarmos
suas diversas configurações e dilemas. Podemos compreender, em linhas
gerais, que família é um conjunto de pessoas diretamente unidas por laços
afetivos, sanguíneos ou de afinidade. Parentesco são conexões entre
indivíduos estabelecidos tanto pelo casamento quanto por linhas de
descendência e o casamento pode ser definido como a união sexual entre dois
indivíduos adultos, socialmente reconhecida e aprovada (GIDDENS, 2005, p.
151). Para refletir melhor
A tendência à naturalização da família, tanto no nível do senso comum, quanto da própria reflexão científica, que leva a identificação do grupo conjugal como forma básica e elementar de toda família, é a percepção do parentesco e da divisão de papéis como fenômenos naturais, criou, durante muito tempo, obstáculos de difícil transposição para sua análise. Por esse motivo o primeiro passo para estudar a família deveria o de dissolver sua aparência de naturalidade, percebendo-a como criação humana mutável. E observando que as relações muitas vezes coincidentes que conhecemos atualmente entre grupos conjugais, rede de parentesco, unidade doméstica/residencial podem se apresentar como instituições bastante diferenciadas em outras sociedades ou em diferentes momentos históricos (AZEVEDO & GUERRA, 2000, p. 50).
Segundo Malinoviski (1963), a família que conhecemos não é uma
instituição natural, assumindo diversas configurações no que se refere a bases
biológicas e a reprodução. O modelo nuclear de família, ou seja, aquele
formado por pai, mãe e filhos, que entre nós, ocidentais, figura geralmente
como natural, só se cosolidou por volta do século XVIII.
O estudo do contexto familiar requer uma maior atenção para que se
possa compreender cada momento histórico em que a família teve sua
configuração e seus papéis alterados, pois durante um grande período a
concepção de família esteve relacionada às perspectivas da tríade pai, mãe e
36
filhos. Entretanto, esta instituição faz parte de uma construção social, inserida
numa realidade dinâmica, rompendo assim com a ideia de família como grupo
natural e imóvel, passando a ser concebida dentro de um processo histórico,
com influências econômicas, sociais, políticas e culturais.
No mundo contemporâneo há diversas concepções e configurações
de família; esta não se refere apenas às figuras do pai, da mãe, e dos filhos.
Denomina-se família o grupo constituído por todas as pessoas que moram
numa mesma residência, ou seja, a compreensão de uma família está para
além de laços consanguíneos (CAVENACCI, 1984). A diversidade das famílias
não permite elaborar uma descrição precisa sobre o termo, pois na
contemporaneidade, com as mudanças estruturais, encontramos famílias com
diferentes perfis.
A sociedade em que vivemos é muito diferente se compararmos com
algumas décadas passadas; estamos frequentemente vivendo com as
mudanças, vivenciando padrões de liberdade que estão inseridos em um
mundo marcado ao mesmo tempo por dificuldades e estranhamentos.
Há uma grande diversidade de famílias que, ao se constituírem no
âmbito doméstico, são percebidas com estranhamento por alguns; estamos
nos referindo àqueles arranjos familiares tidos com conservadores, sendo que
para eles os novos modelos de família são impactantes. Dessa forma, as novas
famílias, principalmente as formadas por casais homoafetivos são vistas com
naturalidade por alguns e com muito preconceito por outros.
As gerações anteriores não imaginavam presenciar o que vivem
hoje, enfim, o mundo da família está diferente do que há cinquenta anos.
Verificamos que muitas pessoas atualmente estão menos propensas a casar
(GIDDENS, 2005). Os casamentos também estão durando menos, uma vez
que as taxas de divórcio aumentaram significativamente na última década,
facilitando a formação de famílias com filhos de diferentes relacionamentos,
contribuindo para a ampliação de famílias reconstituídas (GIDDENS, 2005).
Dentre as diversas formas de família, podem-se citar: a família
nuclear formada por pai, mãe e filhos, já referida anteriormente, a família
ampliada, na qual se inserem avós, irmãos, tios, sobrinhos, ou seja, há
diversos membros da família reunidos, a família reconstruída, formada por
novos membros advindos de outros casamentos ou não, as famílias
37
matrifocais, formadas por uma mulher e seus filhos, sendo estes advindos ou
não de outros relacionamentos, e um companheiro, e as famílias
monoparentais, tipo de família composto por pessoas que vivem sem cônjuge
ou com vários filhos, podendo ser chefiadas tanto por homens, quanto por
mulheres – cada vez mais comum na realidade brasileira. Na pesquisa de
campo, através do questionamento em relação a suas famílias, os
entrevistados relataram diversas composições, destacando os diferentes
arranjos, revelando, portanto, a necessidade de refletirmos sobre as diversas
composições familiares.
Podemos observar que essas transformações não ocorreram
somente nos países industrializados, mas esses processos, embora de forma
desigual, estão acontecendo em sociedades do mundo inteiro. A China é um
país que vem demonstrando mudança na esfera familiar, registrando um
aumento considerável no número de divórcios (GIDDENS, 2005). Segundo a
PNAS (2004), tais mudanças tem como resultado: enxugamento dos grupos
familiares (famílias menores), uma variedade de arranjos familiares
(monoparentais, reconstruídas), além dos processos de empobrecimento
acelerado e da territorialização das famílias, gerados pelos movimentos
migratórios – estes últimos elementos sofreram alterações na última década,
notadamente a melhoria nas condições de vida de boa parte das famílias
brasileiras e a diminuição do fluxo migratório ligando Nordeste a região
Sudeste do país.
Ao longo da história a família sempre exerceu papel fundamental na
organização das sociedades, sendo considerada a base de qualquer nação
organizada. Em meio à necessidade de viver em comunidades, o homem
encontrou historicamente na família, uma rede básica de compartilhamento de
sentimentos, proteção e responsabilidade com pessoas ligadas por laços de
parentesco. De acordo com esse raciocínio, Valente discorre sobre o tema
dizendo que:
A família, independente de sua organização, contexto e história, representa a sede de vivências e experiências significativas na vida do ser humano. É nela que se inicia a história de cada um, a construção de significados, a aprendizagem adjetiva, o reconhecimento da identidade individual e coletiva, preparando o indivíduo tanto para experiências pessoais, como para o processo de
38
socialização. É a família a base de apoio para o enfrentamento de conflitos e desenvolvimento humano, representando a responsabilidade de uma geração no cuidado e preparação da outra. (VALENTE, 2007, p. 175).
Na sua forma mais clássica, a família é constituída por um homem e
uma mulher, bem como seus descendentes (PACHECO, 2008). Na atualidade,
com a diminuição da chefia do núcleo familiar como atividade masculina e a
crescente ascensão profissional da mulher, ocupando cargos antes
exclusivamente masculinos, a família assumiu inúmeras configurações, o que
tornou comuns conceitos como família monoparental (um só ascendente), ou
homoparental (ascendentes do mesmo sexo), antes vistos como verdadeiros
tabus. Vale salientar que a sociedade brasileira passou a aceitar com o tempo
os modelos monoparentais, contudo, ainda vê com preconceito velado a
formação de famílias homoparentais.
Segundo Pacheco (2008), o modelo de família dominante no período
colonial era basicamente patriarcal, cabendo à figura do homem decidir acerca
de tudo que envolvia seus integrantes, desde a instrução e profissão até a
escolha do marido ou esposa de seus descendentes. Quando a corte
portuguesa se transferiu para o Brasil, no início do século XIX, com ela veio o
modelo de família burguesa, o qual já havia se consolidado há algum tempo em
solo europeu.
Foi nesse modelo familiar, inicialmente copiado pela nobreza
brasileira, que a mulher assumiu um maior destaque, com seu papel de mãe
evidenciado. Assim, a dedicação e a atenção que a mulher concedida aos
compromissos do lar, com inúmeras tarefas domésticas, como, por exemplo,
cuidar da casa e dos filhos, funcionava como uma medida de valorização e
realização pessoal perante a sociedade, tudo dentro dos padrões do
catolicismo. Ratificando tal informação acerca do que se convencionou chamar
modelo de família nuclear, Alves explica que:
O chefe da família cuidava dos negócios e tinha, por princípio, preservar a linhagem e a honra familiar, procurando exercer sua autoridade sobre a mulher, filhos e demais dependentes. As mulheres, depois de casadas passavam da tutela do pai, para a do marido, cuidando dos filhos e da casa no desempenho das atividades domésticas. (ALVES, 2009, p. 8).
39
Não à toa o ingresso da mulher no mercado de trabalho, a atribuição
da educação dos filhos ao longo do período escolar e o desenvolvimento de
métodos de controle de natalidade ajudaram a construir o cenário propício para
as alterações mais profundas no modelo familiar brasileiro. Foi nesse contexto
que a família passou a assumir inúmeras configurações alternativas àquele
modelo tradicional composto por um homem e uma mulher e seus filhos.
Conforme Alves, hoje é possível encontrarmos.
Casamentos sucessivos com parceiros distintos e filhos de diferentes uniões, casais homossexuais adotando filhos legalmente, casais com filhos ou parceiros isolados ou mesmo cada um vivendo com uma das famílias de origem, as chamadas produções independentes, tornam-se mais frequentes, e mais ultimamente, duplas de mães solteiras ou já separadas compartilham a criação de seus filhos (ALVES, 2009, p. 10).
O desenvolvimento da tendência de redução da família resultou na
menor taxa de fecundidade da história do Brasil, a qual atingiu a média de 1,9
filhos por mulher (IBGE, 2010), enquanto tal índice já chegou a incríveis 6,28
filhos por mulher na década de 60. Mesmo considerando a existência de
métodos contraceptivos, ainda não havia uma maior conscientização e
democratização desses instrumentos, ampliando consideravelmente as
famílias. A popularização dos métodos contraceptivos passou a ocorrer
principalmente a partir da década de 1980. Dessa forma, entende-se que:
Muito se tem dito a respeito da redução da família em nossa sociedade. Realmente, tem havido nítida tendência à diminuição do número de filhos e, nesse sentido, a família tem-se tornado menor. Mas paralelamente tem-se criado também, especialmente no Brasil, certa metodologia em torno do desaparecimento de uma pretensa família patriarcal extensa e sua substituição pela família nuclear ou conjugal. (CANEVACCI, 1984, p. 354).
O autor também faz referência à união de pessoas para socialização
dos filhos sem que necessariamente haja casamento.
Quando um casal vive junto em um relacionamento sexual sem estar casado, tem se tornado progressivamente difundida na maioria das sociedades ocidentais. Se o casamento era anteriormente a base definida da união entre duas pessoas, ele já não pode ser mais considerado como tal. Talvez hoje seja mais apropriado falar em ajuntamento e desajuntamento. Um número crescente de casais em
40
relacionamentos de longo prazo opta por não casar, mas residir e criar os filhos juntos. (CANEVACCI, 1984, p.164).
Contudo, destaco que a família brasileira é uma instituição múltipla e
heterogênea, dessa forma, podemos encontrar diferentes arranjos dependendo
do contexto cultural e regional em que possamos está inseridos.
2.4 A Lei Maria da Penha
A Lei Maria da Penha trouxe para a sociedade a questão da
violência familiar e doméstica que as mulheres sofriam durante anos em seus
lares e por diversos motivos não denunciavam os autores. A Lei veio mostrar a
toda sociedade o que ocorria entre quatro paredes no lar, desmascarando
assim, o sentido do silenciar da violência doméstica. Vale ressaltar que antes
da Lei Maria da Penha essa discussão já estava em pauta em meios de
comunicação de massa, movimentos sociais como o feminista e o de mulheres,
existiam convenções e a própria Constituição Federal de 1988.
A lei contribuiu no sentido de tornar ainda mais evidente a questão,
trazer ainda mais para o âmbito público uma questão que era tida como de
natureza privada, fechada a quatro paredes e de interesse apenas do casal,
trouxe a punição de forma mais rigorosa, podendo o homem que praticou a
violência vir a ser preso, julgando os casos de violência em juizados especiais
de violência, dentre outros elementos.
Ao longo da história as mulheres foram vítimas de homens que
estavam bem próximos delas. Independente de sua classe social, etnia,
orientação sexual, a mulher sofre violência de gênero. Para muitos homens as
mulheres seriam mais frágeis físico-psicológico e financeiramente,
possibilitando-os o poder de lhes atribuir normas e, não raro, cometer atos de
violência.
Analisando a nossa Constituição de 1988, no Artigo 226, parágrafo
8, D’ Urso (2012) expõe que foi nessa carta que se estabeleceu ao que cabe
ao Estado assegurar a assistência à família nas pessoas dos seus integrantes
e criar meios para coibir a violência no âmbito de suas relações, buscando
ainda prevenir, punir e erradicar qualquer forma de agressão contra a mulher.
41
Além de estarmos diante de uma das formas de violação dos Direitos
Humanos, estabelecido originalmente na Revolução Francesa de 1789.
Antes da Constituição Federal de 1988 e da criação da Lei Maria da
Penha em 2006, as mulheres que sofriam violência doméstica e que chegavam
até o poder público desistiam do processo, porque muitas vezes eram
oprimidas a não levar a questão à tona. O homem tinha punições diferentes
dos dias atuais (DE MELO & ALMEIDA, 2002)
A Cartilha do Governo do Estado do Pará (2008) responde a
perguntas referentes ao contexto da violência contra a mulher e explica como
eram feitas as punições antes da Lei Maria da Penha. Para as infrações penais
mais simples, como os crimes de ameaça e lesão corporal leve, o autor da
violência era encaminhado ao Juizado Especial Criminal, juntamente com a
vítima, onde em uma audiência preliminar, que ocorria com um juiz leigo ou
com o próprio Juiz de Direito, presente o Ministério Público, era indagado se a
vítima queria representar contra o autor dos fatos – medida extremamente
constrangedora e perigosa, uma vez que representava risco de vida para a
vítima. Esta expressão representar significa, em outras palavras, se a vítima
pretendia autorizar o Ministério Público a propor a aplicação de uma pena ao
homem, pena esta que não seria de privação de liberdade.
Geralmente a vítima, por diversos fatores, era dependente financeira
e afetivamente do homem e muita das vezes evitava a denúncia e,
consequentemente, a punição, para evitar constrangimentos para os filhos e a
família, a mesma ficava constrangida em razão da presença do homem e
porque não tinha em seu favor tantas medidas de proteção como são previstas
na Lei Maria da Penha.
Esse sistema, obviamente, não funcionou e as agressões cessavam
por um curto espaço de tempo, vindo depois à vítima a ser novamente
agredida, pois o homem, não tendo sido punido, não era capaz de mudar o seu
comportamento. Não havia o temor da pena, muito menos ações educativas
para que o homem refletisse sobre seu ato (Cartilha conhecendo a Lei Maria da
Penha, 2006). Vale registrar também que anteriormente era a própria mulher
que entregava a intimação ao seu agressor – mais uma vez a medida a fazia
correr sérios riscos de vida.
42
Foi a partir da Constituição de 1988 que as mulheres tiveram seus
direitos ampliados, enfatizando desta forma a luta do movimento feminista nas
últimas décadas. Martini (2009) afirma que os direitos das mulheres que foram
reconhecidos, eram os direitos humanos e o de cidadania plena. A conquista
desses direitos ocorreu pelas mobilizações das próprias mulheres e através de
ações que foram direcionadas ao Congresso Nacional.
A criação da Lei Maria da Penha - Lei 11.340/2006 ocorreu com um
início de uma história trágica em 1983, quando a Sra. Maria da Penha Maia
Fernandes, biofarmacêutica, mãe de três filhas, foi vítima de duas tentativas de
homicídios por parte de seu companheiro, que disparou um tiro de revólver
enquanto ela dormia, forjando que seria um assalto – somente um ano depois
do acontecido a polícia, após finalizar a investigação, apontou-o como culpado.
Nessa ocasião, Maria da Penha teve uma lesão irreversível e ficou
paraplégica com outras sequelas e, na segunda vez, o agressor tentou
eletrocutá-la enquanto tomava banho, foi uma luta árdua de mais de vinte anos
para ver punido o culpado. (D’ Urso, 2012). Vale ressaltar, que a lei somada à
bravura e o empenho dessa mulher lutadora de direitos, foi uma conquista em
conjunto com os movimentos feministas que lutavam há décadas pelos direitos
das mulheres, numa sociedade altamente machista. Segundo o estudo
apresentado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2007, 92 mil
mulheres foram assassinadas em todo o mundo nos últimos trinta anos. Deste
número 43,7 mil foram mortas apenas na década de 1990.
O Brasil ocupa o sétimo lugar no ranking mundial dos países com
mais crimes praticados contra as mulheres. Segundo o relatório, o Espírito
Santo apresenta a taxa de homicídio mais alta do país, com 9,8 homicídios a
cada 100 mil mulheres. No Piauí, foi registrada a menor taxa, com 2,5
homicídios para cada 100 mil mulheres.
Seis7 em cada 10 brasileiros conhecem alguma mulher que foi vítima
de violência doméstica. Dentre esses fatores, o Machismo (46%) e o
alcoolismo (31%) são apontados como principais fatores que contribuem para a
violência. 94% conhecem a Lei Maria da Penha, mas apenas 13% sabem seu
conteúdo. A maioria das pessoas (60%) pensa que, ao ser denunciado, o
7http://www.compromissoeatitude.org.br/alguns-numeros-sobre-a-violencia-contra-as-mulheres-no-
brasil/
43
agressor vai preso. 52% acham que juízes e policiais desqualificam o
problema.
Esses dados se expressam nas palavras de todos os entrevistados,
onde revelam que em mesas de bares, ou em conversas informais, os homens
falam sobre a Lei Maria da Penha, mas quando se questiona o que se sabe
sobre essa lei, eles afirmam que só conheceram na prática.
Segundo a pesquisa citada anteriormente, embora a maioria
absoluta dos entrevistados (94%) declare conhecer a Lei Maria da Penha (Lei
nº 11.340/2006), apenas 13% sabe qual é o teor da legislação. Por exemplo:
60% dos entrevistados pensam que, ao ser denunciado, o autor da violência
doméstica é automaticamente preso. Sobre a pesquisa Realizada pelo Instituto
Avon/Ipsos em 2011, a Pesquisa Percepções sobre a Violência Doméstica
contra a Mulher no Brasil entrevistou 1,8 mil pessoas de cinco regiões
brasileiras. Trata-se do segundo estudo realizado pelo Instituto Avon. O
primeiro foi feito em 2009, em parceria com o Ibope.
De acordo com a Pnad8, 43,1% das mulheres já foram vítimas de
violência em sua própria residência. Entre os homens, esse percentual é de
12,3%. Ainda segundo os números da Pnad de 2009 incluídos no anuário, de
todas as mulheres agredidas no país, dentro e fora de casa, 25,9% foram
vítimas de seus cônjuges ou ex-cônjuges. Dados da Secretaria de Políticas
para as Mulheres apontam ainda que o número de atendimentos feitos pela
Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180 cresceu 16 vezes de 2006 para
2010. Em 2006, foram feitos 46 mil atendimentos. Já no ano passado, foram
734 mil. Desse total, 108 mil atendimentos foram denúncias de crimes contra a
mulher. Mais da metade desses crimes eram casos de violência.
Veja, a seguir, um quadro comparativo das principais alterações de
como o agressor era tratado antes e depois da Lei Maria da Penha:
Quadro 1 - Quadro comparativo antes e após a Lei Maria da Penha
ANTES DA LEI MARIA DA PENHA DEPOIS DA LEI MARIA DA PENHA
Não existia lei específica sobre a
violência doméstica
Tipifica e define a violência doméstica e
familiar contra a mulher e estabelece as
8http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2011-07-04/quarenta-e-tres-por-cento-das-
mulheres-ja-foram-vitimas-de-violencia-domestica-segundo-anuario
44
suas formas: física, psicológica, sexual,
patrimonial e moral.
Não tratava das relações entre
pessoas do mesmo sexo.
Determina que a violência doméstica
contra a mulher independe de
orientação sexual.
Nos casos de violência, aplica-se a lei
9.099/95, que criou os Juizados
Especiais Criminais, onde só se
julgam crimes de "menor potencial
ofensivo" (pena máxima de 2 anos).
Retira desses Juizados a competência
para julgar os crimes de violência
doméstica e familiar contra a mulher.
Esses juizados só tratavam do crime.
Para a mulher resolver o resto do
caso, as questões cíveis (separação,
pensão, guarda de filhos) tinha que
abrir outro processo na vara de
família.
Serão criados Juizados Especializados
de Violência Doméstica e Familiar
contra a Mulher, com competência cível
e criminal, abrangendo todas as
questões.
Permite a aplicação de penas
pecuniárias, como cestas básicas e
multas.
Proíbe a aplicação dessas penas.
A autoridade policial fazia um resumo
dos fatos e registrava num termo
padrão (igual para todos os casos de
atendidos).
Tem um capítulo específico prevendo
procedimentos da autoridade policial, no
que se refere às mulheres vítimas de
violência doméstica e familiar.
A mulher podia desistir da denúncia
na delegacia.
A mulher só pode renunciar perante o
Juiz.
Era a mulher quem, muitas vezes,
entregava a intimação para o agressor
comparecer às audiências.
Proíbe que a mulher entregue a
intimação ao agressor.
Não era prevista decretação, pelo
Juiz, de prisão preventiva, nem
flagrante, do agressor (Legislação
Penal).
Possibilita a prisão em flagrante e a
prisão preventiva do agressor, a
depender dos riscos que a mulher corre.
A mulher vítima de violência
doméstica e familiar nem sempre era
informada quanto ao andamento do
seu processo e, muitas vezes, ia às
audiências sem advogado ou defensor
público.
A mulher será notificada dos atos
processuais, especialmente quanto ao
ingresso e saída da prisão do agressor,
e terá que ser acompanhada por
advogado, ou defensor, em todos os
atos processuais.
A violência doméstica e familiar contra
a mulher não era considerada
agravante de pena. (art. 61 do Código
Penal).
Esse tipo de violência passa a ser
prevista, no Código Penal, como
agravante de pena.
45
A pena para esse tipo de violência
doméstica e familiar era de 6 meses a
1 ano.
A pena mínima é reduzida para 3 meses
e a máxima aumentada para 3 anos,
acrescentando-se mais 1/3 no caso de
portadoras de deficiência.
Não era previsto o comparecimento
do agressor a programas de
recuperação e reeducação (Lei de
Execuções Penais).
Permite ao Juiz determinar o
comparecimento obrigatório do agressor
a programas de recuperação e
reeducação.
O agressor podia continuar
frequentando os mesmos lugares que
a vítima frequentava. Tampouco era
proibido de manter qualquer forma de
contato com a agredida.
O Juiz pode fixar o limite mínimo de
distância entre o agressor e a vítima,
seus familiares e testemunhas. Pode
também proibir qualquer tipo de contato
com a agredida, seus familiares e
testemunhas.
Fonte: Observatório Lei Maria da Penha. Disponível em: <http://www.observe.ufba.br/lei_aspectos>.
A violência contra a mulher não poderia ser tratada somente no “foro
íntimo”, ou seja, numa perspectiva familiar, no âmbito tido como privado. A
violência é crime, sendo assim é preciso que cada vez mais a mulher se
posicione e conheça seus direitos. A lei 11.340/06 mais conhecida como Lei
Maria da Penha, representa um avanço no enfrentamento à violência e ao
mesmo tempo uma conquista dos grupos feministas.
Essa Lei é resultado da desconstrução das representações sociais
da violência contra as mulheres, a qual deixa de ser um crime de menor
potencial ofensivo e passa a ser um crime contra a vida e os direitos humanos
das mulheres. (BARBOSA, 2008). Desde então a lei, quando entrou em vigor
em 2006, deixou para trás a versão de que o autor de violência pagaria na
justiça com cestas básicas e prestação de serviços comunitários; estas
determinações eram previstas pela Lei 9.099/95 anterior à Lei Maria da Penha.
Barbosa (2008) utiliza seu conhecimento para desmistificar alguns equívocos a
respeito do homem autor de violência.
O estudo citado anteriormente ocorreu em São Paulo, entre os anos
de 1998 a 2001, pelo autor e também filósofo Sergio Barbosa que tinha como
metodologia trabalhar com homens em grupo de reflexão, com a participação
de 15 homens com encontros semanais com a duração de até seis meses. O
grupo tem o mérito de refletir sobre temas do cotidiano dos homens,
46
compartilhando o rompimento do silêncio e da solidão masculina. O projeto foi
pioneiro no Brasil e o trabalho realizado com homens autores de violência foi
de grande relevância para romper com o ciclo da violência contra a mulher.
Primeiro Barbasa (2008) ressalta que não se deve utilizar o termo
agressor, explicando que nenhuma pessoa é agressiva 24h por dia e a
expressão rotula e estigmatiza, ou seja, o homem que agride, ele comete
violência, mais ele também é uma pessoa que vive na sociedade, que forma
família, namora, trabalha. Desta forma ele não pode ser visto somente como
agressor.
O segundo equívoco, analisado por Barbosa (2008), refere-se à
recuperação, pois não há o que recuperar e sim construir para homens e
mulheres: formas de socialização de respeito às diferenças. E, por fim, o
terceiro equívoco, é o do tratamento; onde o autor detectou que, não só na
pesquisa realizada por ele, como em estudos em diversas regiões, há a
possibilidade de afirmar que não existem homens doentes (nem físico, nem
mentalmente).
Não é uma patologia, não consta no CID - Classificação
Internacional de Doenças (BARBOSA, 2008). Quando a uma agressão e a
violência é um sintoma de patologia, esta deve ser tratada, mas não pode ser
relacionada com o machismo e a violência de gênero. No próximo capítulo,
intitulado percursos metodológicos, começaremos a verificar, empiricamente,
como a pesquisa foi realizada, ressaltando os maiores desafios dessa
empreitada.
47
3 CAPÍTULO 2 - PERCURSOS METODOLÓGICOS
Os aspectos metodológicos, no que se refere à pesquisa social,
transcorrem por múltiplos caminhos e variados procedimentos que dão suporte
para que o pesquisador encontre a melhor maneira de entrar num determinado
universo e consiga enxergar além da aparência apresentada inicialmente. O
amadurecimento da visão do pesquisador é um dos passos relevantes para
retratar seu objeto de estudo em sua substância.
Logo nos surge a compreensão de que o fenômeno social analisado
requer que o pesquisador tenha disponibilidade de tempo, com um olhar e um
ouvir qualificado, para que as relações socialmente estabelecidas sejam, de
fato, entendidas em sua essência, uma vez que se torna totalmente relevante a
participação dos sujeitos envolvidos, suas aspirações, seu modo de pensar
sobre a problemática analisada e, não somente, o posicionamento do
pesquisador.
3.1 Definição da Metodologia
A natureza desta pesquisa é qualitativa, logo buscamos analisar os
sentidos e os significados relacionados à violência contra a mulher na
perspectiva dos homens que respondiam à Lei Maria da Penha, pois havia o
interesse de se trabalhar com o entendimento e as causalidades que levam o
homem a cometer violência e traçar, entre os entrevistados, um perfil
biográfico. Sendo assim, não se trata de uma escolha, mas sim de uma
consequência própria desta pesquisa. Por conta disso, dialogamos com
Martinelli, pois, segundo a autora, é a partir da pesquisa qualitativa que
podemos:
Trazer à tona o que os participantes pensam a respeito do que esta sendo pesquisado, não é só minha visão de pesquisador em relação ao problema, mas é também o que o sujeito tem a me dizer a respeito. Parte-se de uma perspectiva muito valiosa, porque à medida que se quer localizar a percepção dos sujeitos, torna-se indispensável e este é um outro elemento muito importante, o contato direto com o sujeito da pesquisa (...). Se quisermos conhecer modos de vida, temos que conhecer as pessoas (MARTINELLI,1999, p. 21).
48
Continuando com a perspectiva da autora, entendemos o quão
importante é esse contato direto com os sujeitos da pesquisa, pois, através
dessa aproximação, é que será possível entender como são formadas as
relações construídas pelo grupo em questão, percebendo além da objetividade
necessária, o fenômeno histórico subjetivo que irá favorecer uma visão crítica
para descortinar verdades aparentes, permitindo uma reflexão crítica sobre o
assunto, nos concedendo nossos olhares que apontam para outros tantos
questionamentos.
É através da pesquisa qualitativa que o pesquisador faz a mediação
entre o real, o sujeito e a coletividade, compreendendo profundamente o
estudo do fenômeno. Minayo (2007) explica que:
A pesquisa qualitativa responde a questões muito particulares. Ela se preocupa, nas ciências sociais, com um nível de realidade que não pode ser quantificado. Ou seja, ela trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis (MINAYO, 2007, p. 21).
Ou seja, a pesquisa qualitativa trata o fenômeno estudado pelas
suas particularidades, vai além de dados numéricos, pois estuda
especificamente cada detalhe. E nos concede novas possibilidades de
continuar pesquisando, sempre atualizando e produzindo novos conhecimentos
dentro das subjetividades e nos permite ainda contribuir com outros
pesquisadores que tenham o mesmo objeto de estudo e que pretendam
enriquecer e lançar outras discussões, tentando responder as indagações
postas.
A pesquisa, conforme Minayo (2009) caracteriza-se por ser um
trabalho artesanal, sendo fundamentada numa linguagem que é construída
num ritmo peculiar, embasada em conceitos, posições, hipóteses, métodos e
técnicas. Esse ritmo é chamado de ciclo de pesquisa. Destarte, para atender o
processo de trabalho científico, decidimos seguir as etapas da pesquisa
qualitativa, que é delimitada em três passos: (1) Fase exploratória, que
necessita da atenção e do tempo do pesquisador, é uma fase em que o
pesquisador entra em contato com o tema (escolhendo, delimitando,
elaborando perguntas de partida e explorando o tema a partir de leituras
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iniciais, documentários, filmes; (2) Trabalho de campo, fase na qual aplicamos
as técnicas metodológicas escolhidas: observações simples e entrevistas, por
último, seguiram o passo (3) análise e tratamento do material empírico e
documental. (MINAYO, 2009).
A presente pesquisa percorreu todas essas fases do ciclo,
delineadas por Minayo (2009). Inicialmente, com a revisão de literatura sobre
as categorias violência, gênero e família, posteriormente, observação simples
da dinâmica de grupo e atendimento dos homens do NUAH e, por último,
análise dessas observações e relação com a fundamentação teórica.
Entendemos que a realidade é um desafio histórico inacabável, por
isso, se fez necessário ter uma postura crítica; conveniente para
compreendermos a complexidade da realidade social em que se encontra o
fenômeno analisado. Na busca por respostas que fossem capazes de absolver
a essência das falas dos sujeitos, sem, contudo, transformá-las em respostas
fechadas, face a dinâmica da realidade, nos debruçamos em três tipos de
pesquisas sendo elas: bibliográfica, documental e de campo.
Iniciamos com a pesquisa bibliográfica para que fossem expostos
estudos sobre as categorias que compõem o objeto de estudo: gênero,
violência e família. Através dela procuramos nos aproximar e dialogar com os
autores que colaboram com a nossa pesquisa, sejam por meio de livros ou
artigos científicos, que nos deram suporte a partir de leituras para fundamentar
e possibilitar nossos estudos. A indicação das obras mais essenciais foi
realizada pela orientadora, disponibilizando todo seu material para leitura, além
disso, possuía artigos e livros que frequentemente eram citados em sites de
busca e por professores em semestres anteriores. Portanto:
A pesquisa bibliográfica é desenvolvida a partir de material já elaborado, constituído principalmente de livros e artigos científicos (...). A principal vantagem da pesquisa bibliográfica reside no fato de permitir ao investigador a cobertura de gama de fenômenos muito mais ampla do que aquela que poderia pesquisar diretamente. Esta vantagem se torna particularmente importante quando o problema requer dados muito dispersos pelo espaço. (GIL, 1999, p. 65).
Na pesquisa documental faz-se uso de documentos como objeto de
análise, questionando aspectos concernentes à produção do documento, seus
objetivos, usos e contradições (MINAYO, 2004). A análise documental é de
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suma importância para a presente pesquisa, pois através dessa técnica estou
conseguindo compreender a legislação sobre o tema, os projetos e convenções
já realizados, o material informativo e histórico produzido pelo NUAH. Um
passo importante que venho seguindo desde o início da pesquisa é coletar e
organizar os documentos encontrados nas visitas que realizo, com destaque
para as estatísticas produzidas pelo NUAH, projeto de implementação do
NUAH, fichas de atendimentos e todo o arcabouço legal acerca da violência,
como Lei Maria da Penha, Convenções e Constituição federal de 1988.
Para compreender o trabalho de campo salientamos que, a pesquisa
foi realizada no NUAH, Núcleo de Atendimento ao Homem, autor de violência
doméstica. A pesquisa se dá por ter ocorrido um estudo empírico no Núcleo
com atendimento aos homens autores de violência que são os protagonistas da
pesquisa. Segundo Gondim,
É altamente recomendável, para elaboração de projetos de pesquisas que incluirão trabalho de campo, que se realiza um levantamento empírico pré-liminar, por meio de observações sobre a instituição, o grupo ou as pessoas que se quer estudar (GONDIM, 1987, p. 34).
Trazemos novamente Minayo para corroborar á importância do
trabalho de campo, pois, segundo ela:
O trabalho de campo é (...) uma porta de entrada para o novo, sem, contudo, apresentarmos essa novidade claramente. São as perguntas que fazemos para a realidade, a partir da teoria que apresentamos e dos conceitos transformados em tópicos de pesquisa que nos forneceram a grade ou a perspectiva de observação e de compreensão (MINAYO, 2009, p. 25)
Partindo desse pressuposto, entendemos que estamos no campo
em que se estabelece um relacionamento entre o pesquisador e os sujeitos da
pesquisa, e então, buscamos entender a realidade que, estando na teoria, se
apresenta para a gente de forma mais reveladora através das ações, falas,
silêncios, gestos, e tudo o que compõe o universo dos sujeitos observados.
Tendo isso em vista que é na fase de campo, a primeira técnica
utilizada para subsidiar a coleta de dados foi a observação simples, pois,
embora ela me permita observar de forma espontânea e/ou informal, ela está
51
pautada no víeis científico, nos possibilitando alcançar os fatos que acontecem
na realidade, interpretando-os.
Para entendermos melhor esse processo, ressaltamos que foram
realizadas idas antecipadas ao local de pesquisa, e esse ato possibilitou mais
segurança como pesquisadora e proporcionou uma melhor relação com a
equipe que atua na instituição. A observação simples de acordo com Gil (2008,
p. 102): “É muito útil quando é dirigida ao conhecimento de fatos ou situações
que tenha certo o caráter público ou que pelo menos se situe estreitamente no
âmbito das condutas privadas”.
Antes de entrevistar qualquer homem, observei toda a estrutura do
(NUAH), bem como os funcionários e estagiários que marcaram presença
constante, principalmente os da área da psicologia e os próprios homens que
são o foco da pesquisa. Como nos esclarece Gil (1999): “A coleta de dados por
observação é seguida de um processo de análises e interpretação, o que lhe
confere sistematização e o controle dos procedimentos científicos”. Essa fase
aconteceu durante os meses de agosto, setembro e outubro de 2014.
Dessa forma, para levantar dados qualitativos foi empregada a
técnica de entrevistas com roteiro semiestruturado (consta roteiro no
Apêndice), que são questões que buscam focar em determinado tema, com
perguntas abertas, norteadas por um roteiro previamente elaborado, que
contemplava perguntas pessoais, como também sobre o relacionamento do
autor da violência com a vítima, sua percepção sobre violência, e o que
entendia a respeito da Lei Maria da Penha. Recorremos à explicação de Gil,
afirmando que:
A entrevista é das técnicas de coletas de dados mais utilizadas no âmbito das ciências sociais. Psicólogos, sociólogos, pedagogos, assistentes sociais, e praticamente todos os outros profissionais que tratam de problemas humanos, valem-se dessa técnica, não apenas para coleta de dados, mas também como voltados para diagnósticos e orientações (GIL, 2008, p.109).
A entrevista é um recurso metodológico que objetiva, com base em
referencial teórico definido pelo pesquisador/orientador, obter respostas para
uma questão específica a partir da experiência subjetiva do sujeito. Para
Trivinos (1987, p. 146), a entrevista estruturada se caracteriza pela formulação
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de questões que se apoiam em teorias e pesquisas relacionadas à temática do
estudo. O autor afirma que a entrevista semiestruturada: “favorece não só a
descrição dos fenômenos sociais, mas também sua explicação e a
compreensão de sua totalidade”. (TRIVINOS, 1987, p. 152).
A coleta de dados exigiu uma atenção especial com relação às
questões éticas; de acordo com as normas da resolução 196/96 para pesquisa
com seres humanos. Nesse sentido, torna-se de fundamental importância
destacar que os participantes só foram considerados como pesquisados
quando assinaram o termo de consentimento (consta em Apêndice) de que
aceitariam participar da pesquisa, contando com alguns imprevistos e a não
permissão de alguns; nem todas as entrevistas foram gravadas, porém,
buscou-se manter os sentidos das falas em seu contexto inicial. Os
entrevistados tiveram garantia de sigilo na identificação e nas informações
dadas, considerando que os depoimentos só têm sentido como parte do
conjunto global das informações.
Para registrar as informações colhidas durante essa etapa, utilizou-
se um diário de campo, ferramenta bastante comum na etnografia, que
consiste no registro das observações cotidianas e uma reflexão sobre as
mesmas. Nele foram anotadas informações acerca do horário de
funcionamento, atendimento aos homens, dinamicidade nas execuções de
tarefas principalmente da psicóloga e da advogada com presença constante no
núcleo. Todas as entrevistas foram devidamente transcritas e cada depoimento
foi conservado de acordo com o que foi dito e escutado. Salienta-se que, para
não se utilizar a identificação dos entrevistados, serão utilizados nomes de
planetas.
3.2 Aproximações com o Tema e o Campo da Pesquisa
A trajetória precursora da aproximação com o tema desta
elaboração científica tem seu marco a partir da disciplina de Pesquisa em
Serviço Social I que, segundo a matriz curricular do curso de Serviço Social da
Faculdade Cearense - FaC, tivemos como procedimento avaliativo a
construção de um projeto de pesquisa, no qual o objeto de estudo escolhido
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fosse relativo ao interesse do graduando em conhecer/pesquisar uma
determinada área das expressões da questão social.
Nesse sentido, começou-se a estudar as mulheres em seu percurso
histórico contra a violência, assim como a sua inferioridade e submissão em
relação ao homem. O estudo sobre essa temática também se deu pelo fato de
ter sido uma vítima de violência moral na fase de adolescência como citado
anteriormente na introdução. É nesse momento que acredito que o interesse
pelos estudos de gênero (a qual me estimulou as leituras e as investigações),
não acontece por acaso, tem que haver algo de impactante, que chame
atenção, impulsionando a curiosidade.
Enquanto estudante do Serviço Social, um curso que nos mostra as
contradições da sociedade, possibilitando assim a criticidade, ou seja, não nos
posicionamos como juízes, mas tentamos entender a totalidade da situação.
Desse modo, enquanto sujeito político – social, gostaria de entender as
práticas discriminatórias e ofensivas em relação às mulheres, onde elas mais
pareciam objeto de manipulação do que, propriamente, seres detentores de
direitos e liberdade.
O que mais me inquietava era o fato da mulher, em pleno século
XXI, ainda ter que passar por tantas situações de constrangimentos e
humilhações, principalmente por violências diversas que lhe deixavam marcas
profundas de difícil cicatrização. Minhas reflexões se remetiam a diversos
questionamentos como, por exemplo: O que leva o homem a cometer uma
agressão contra a esposa, companheira, namorada ou ex? Por que as
mulheres se submetem a essas humilhações, minimizando o seu ser enquanto
mulher?
As hipóteses eram diversas como: O comportamento machista,
enraizado no homem, principalmente de uma cultura nordestina, tendo como
um bordão ilustre, Luiz Gonzaga, que se referia a uma de suas músicas,
“Cabra macho, sim senhor”, uma frase que ficou marcada na memória de
muitos. Outras hipóteses se referiam: ao uso de álcool e outras drogas, aos
conflitos constantes do casal, a socialização do homem na sociedade, enfim,
essas e outras reflexões me instigavam a desvendar esses fatos no olhar mais
apurado como pesquisadora.
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No decorrer da construção do Projeto de Pesquisa, observei um
senso comum muito arraigado na nossa cultura brasileira de que a mulher, em
muitos casos, no seu próprio ambiente familiar e no espaço de trabalho e
demais locais de convivência, decide aceitar as práticas de violência e não
questionar a sua minimização reproduzida na dinâmica social. No exercício de
desconstrução que a pesquisa exige, não compreendia o porquê desse
descaso, onde muitas decidiam calar e ceder, de modo a serem, inclusive,
agredidas e a não se manifestarem contra os abusos sofridos.
Frente a isso, aprisionadas à ideia de ter que atender os mandos do
indivíduo macho, fosse pai ou companheiro, a partir de estudos e pesquisas,
observou-se que algumas mulheres reproduzem essa lógica dominante, onde o
homem é quem tem voz e força. Nós, mulheres, também somos passíveis de
praticar dominação masculina sobre outras mulheres. Esse poder do homem
com a mulher se dá através, da dominação masculina, como explica Bourdieu
(2012); daí então o despertar pela investigação com o tema.
Mesmo concluindo o projeto exigido pela disciplina, ficaram
inúmeras questões a serem desvendadas e eu sentia a necessidade de que
esses questionamentos precisavam de maior embasamento teórico e
depoimentos dos próprios sujeitos envolvidos na dinâmica da violência:
homens e mulheres. O grande objetivo sempre foi ir além da teoria e
compreender o que acontecia e, principalmente, motiva os atos de violência.
Desde esse momento aguçou-me o interesse pela temática, então
passei a ler com mais frequência assuntos relacionados à violência doméstica,
observava com mais atenção os noticiários que reportavam notícias de
violência contra as mulheres, participava de seminários e eventos, como
palestras, conferências, debates, oficinas, entre outros; não só ofertados pela
faculdade, indo além dos muros da Academia, experiências que me
despertaram e instigaram a entender esse cenário.
Desse modo, recordo que, em um dos seminários apresentados em
sala de aula, foi realizada uma abordagem da mulher em busca da conquista
de direitos e da sua afirmação enquanto sujeito político, perpassando por
conflitos, acorrentadas pela tensa divisão entre homens e mulheres, na qual,
aqueles formavam ordens de resistência para não aceitação da mulher no
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cenário público, sob a argumentação desta não ter capacidade para atuar em
espaços exteriores ao doméstico (ALVES & PINTANGUI, 1985).
Além disso, uma das maneiras de resistir à mobilização das
mulheres e mantê-las sob o comando machista é a prática da violência, tomada
como expressão da questão social, que também advém de contextos
históricos. Assim, as mulheres que fugiam às regras impostas eram duramente
reprimidas por atos de agressões, justificados pela “desobediência”
(OSTERNE, 2011).
O contato maior com a violência se deu através de uma pesquisa
realizada no segundo semestre de 2013, quando tive a oportunidade de
conhecer a Delegacia da Mulher, localizada no Centro de Fortaleza. Foi exigida
pela professora a realização de uma experiência de cunho etnográfico, a visita
a uma instituição de sua preferência, onde poderia ser abordado qualquer tema
da realidade social; logo escolhi a violência contra a mulher, definindo a
Delegacia como o campo de observação. Tendo assim a oportunidade de
conhecer a estrutura e a dinâmica da instituição. O enriquecimento da pesquisa
se deu quando abordei várias mulheres que ali estavam para prestar queixas,
com o sentimento de amarguras, medo, fragilidade, angústias, enfim, traziam
relatos diversos pontuando a violência doméstica.
No início do semestre de 2014, cursando a disciplina de
Fundamentos de TCC, foi exigida uma atividade, que seria conhecer o campo
no qual o aluno gostaria de realizar sua pesquisa para o trabalho de conclusão
de curso. Naquele momento minhas reflexões começavam a ganhar novos
contornos. De acordo com a minha insistência e curiosidade pelo tema
exposto, havia algo que não se encaixava, como se faltasse alguma coisa ou
peça para montar o quebra cabeça, pois nas minhas idas a biblioteca
observava que ali havia inúmeras monografias a respeito de violência na
perspectiva da mulher.
Embora perceba que cada pesquisador tenha um olhar diferenciado,
a pesquisa tendo o mesmo tema e o mesmo campo, por sua vez elas não se
igualam, pois se diferem através da percepção do pesquisador. Paralelo à
disciplina, observava um fato relevante que ocorria na minha família com um
parente muito próximo, que constantemente praticava violência contra sua
esposa; fatos esses que não me permitiam só observar, como também, na
56
maioria dos conflitos, participar entre os momentos de conflito até a
reconciliação.
Essa observação participativa era algo que me faltava de certa
forma, foi um link para um pesquisa diferenciada, ou seja, nesse momento
compreendi que havia poucos estudos relacionados ao homem, formulei uma
pergunta e esta ficou gravada na minha memória: por que os homens agridem
as mulheres?
Esse era o objeto sujeito que faltava, como não queria me repetir,
pois tive a oportunidade de conversar anteriormente com as vítimas, nesse
momento então decidi entender e desvendar a outra ponta, que seria o homem
inserido em contexto de violência. Desse modo, tomada a decisão, parti para
conhecer e aproximar-me do campo; as dúvidas eram relevantes a respeito da
presença do homem na delegacia; esse foi o primeiro percurso.
Chegando à delegacia da mulher, observando a presença feminina
constante, busquei informação junto à Assistente Social, que estava informada
de toda aquela realidade. A mesma me esclareceu sobre a ausência
masculina, pois aquela instituição destinava seu foco à mulher, que ia àquele
estabelecimento prestar queixas contra seus agressores. Dialogamos e durante
o percurso tive a chance de falar sobre minha pesquisa.
Com a exposição dos fatos, a Assistente Social me encaminhou
para que fizesse uma visita ao Juizado da Mulher, localizado na Avenida da
Universidade, pois, segundo a profissional, aquela instituição tinha o contato
com o homem, de modo que o processo era encaminhado da delegacia para o
juizado, e lá ele teria que comparecer para audiências e esclarecimentos
estando privado de liberdade ou não.
Em maio de 2014 fui ao Juizado, insistindo na minha segunda
alternativa de campo de pesquisa. Ao chegar à recepção, onde fica um birô e
um policial militar, que por sua vez logo me abordou: “- Em que posso ajudar?”.
Nesse momento, indaguei sobre a possibilidade de falar com alguém
responsável a respeito de uma pesquisa e logo me identifiquei como estudante
de Serviço Social. De uma forma atenciosa o policial pediu para que eu
retornasse em outra ocasião, pois a assessora da juíza não se encontrava;
estava em uma reunião externa.
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No dia seguinte, ao sair da Faculdade Cearense, dirigi-me
novamente ao Juizado, com o objetivo de falar com a assessora. Ao chegar à
recepção o mesmo policial do dia anterior, já sabendo do que se tratava, logo
me encaminhou até a sala da requerida. A partir dali, tive a oportunidade de
explicar sobre o objeto a ser estudado, que no caso seria o homem, pois na
maioria das vezes é o que agride. A mesma me convidou para retornar e
conhecer a dinâmica da instituição na quinta-feira seguinte, quando teria a
oportunidade de entender aquela realidade no dia de audiências com os réus
presos, onde mencionou que essa primeira observação seria importante,
porém não teria acesso nem contato com esses presos.
Aceitei o convite e retornei na manhã da quinta-feira, por volta das
9h. Sentei em uma das cadeiras expostas no espaço da recepção e observei
atentamente. Por sua vez uma família que estava ao meu lado, entre elas uma
mãe e a esposa do réu, demonstrando muita aflição e ansiedade na espera do
carro (micro-ônibus), que fazia o percurso dos presídios, recolhendo os
detentos até o Juizado para aguardar a audiência com a juíza e a vitima; por
alguns instantes começou uma correria em direção à porta de saída, pois havia
chegado o transporte. De fato foi tudo tão rápido, porém as expressões dos
familiares eram de muita dor e tristeza, choro, gritos, inconformados por verem
seus parentes algemados, numa situação tão delicada e constrangedora.
Passei um longo período do dia observando e fazendo anotações para concluir
a atividade exigida pela disciplina de Fundamentos de TCC.
Ao concluir as observações, dirigi-me até a sala da psicopedagoga,
agradeci e naquele momento então ficou a esperança para o retorno no
próximo semestre, com o objetivo de conclusão da pesquisa. Passado e
concluído o semestre começa o processo da procura do orientador, tendo a
sorte de ter o retorno imediato da referida orientadora. Desde então iniciou todo
o processo para a conclusão da disciplina.
Levando em conta que, teriam sido válidas as visitas ao Juizado da
Mulher, retornei para entregar o ofício à responsável e fiquei aguardando o
retorno por email. Essa espera foi marcada por dias ansiosos para uma
resposta positiva, após uma semana retornei ao Juizado para manter contato e
resposta a respeito do oficio. Logo me deparei com uma funcionária, que, por
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sua vez, pediu para aguardar enquanto pedia autorização à juíza para
permissão da pesquisa.
A mesma chamou-me até sua sala no intuito de explicar a negação
do pedido, pelos fatores de risco que teria que me submeter e, de fato, a
instituição não poderia se responsabilizar. Logo de imediato comuniquei a
orientadora sobre o imprevisto, e ela se prontificou a conseguir outro campo de
pesquisa. Foi feito o contato com a referida instituição, o Núcleo de
Atendimento ao Homem Autor de Violência Contra a Mulher – NUAH, onde já
conhecia como um terreno fértil, para pesquisar o homem.
O contato foi respondido de forma positiva e logo me apresentei ao
Núcleo para expor meus interesses de pesquisa, desse modo ficou definido o
campo das observações. Outras dificuldades foram encontradas no decorrer da
pesquisa, tendo em vista que não poderia somente me debruçar sobre as
leituras para obter esse objetivo. Além de estudante, também exerço outros
papéis como: esposa e mãe; vale ressaltar que é uma criança com quatro anos
de idade que, por sua vez, precisa de cuidados constantes e atenção. Além de
ter que exercer todas as tarefas domésticas, que tomam muito tempo, outro
fator, considerado como desperdício de tempo e energia, era a reforma da
minha casa, a qual se estendia desde o início do ano. Essa reforma era muito
desejada, pois, por todo esse período, me encontrava na casa de meus pais,
gerando grande incômodo, me deparando com meus pertences (todos
encaixotados), ainda embalados, desde o ano anterior - entre eles o
computador, que me fez muita falta, pois tinha que recorrer a terceiros para
facilitar a digitação ou até mesmo recorrer ao serviço de lan houses.
3.3 Campo da Pesquisa: Núcleo de Atendimento ao Homem (NUAH)
Segundo registros extraídos num documento da própria instituição, o
NUAH é um projeto que integra o Programa de Fomentos às Penas e Medidas
Alternativas, do Departamento Penitenciário Nacional – DEPEN, convênio com
a Secretaria de Justiça do Estado do Ceará – SEJUS-CE. Executado pela Vara
de Execução de Penas Alternativas e Habeas Corpus, constituindo-se como
um núcleo de atendimento ao homem que praticou algum tipo de violência de
gênero no âmbito doméstico e familiar contra a mulher. Dessa forma:
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O NUAH foi idealizado por duas profissionais da Equipe Multidisciplinar do Juizado da Mulher de Fortaleza. Percebia-se a demanda de um serviço especializado para o atendimento do homem e um dos trabalhos pilotos que procurava suprir esta carência, como já referido, era o Espaço de Atenção Humanizada ao Homem de Violência Contra a Mulher. O NUAH era um projeto vinculado á Vara de Execução de Penas e Medidas Alternativas e Habeas Corpus – VEPAH, do Fórum Clovis Bevilácqua. (VASCONCELOS. 2013 p. 62).
A criação deste Núcleo se deu para proporcionar o desenvolvimento
de uma prática específica para o homem, mas visa também atingir direta e
indiretamente as mulheres e sobre tudo, a família. Considerando que a
responsabilização e reflexão sobre a violência cometida pelo homem devem ir
além do processo judicial. A partir da violência doméstica cometida no
passado, pretende-se criar a oportunidade de que o homem comece a construir
relações domésticas e familiares saudáveis e sem violência.
Segundo informações coletadas junto às funcionárias do Núcleo, a
instituição tem como histórico o seguinte contexto. Após anos de luta, da
constatação de estatísticas alarmantes de violência e, principalmente, desde a
criação da Lei Maria da Penha em 2006, o combate à Violência Doméstica e
Familiar Contra a Mulher vem se tomando uma política pública prioritária no
país. No entanto, diante da complexidade que envolve os conflitos familiares,
constatou-se a necessidade da criação de serviço para o homem autor de
violência doméstica. Atualmente há uma rede de apoio que atende as mulheres
vitimas de violências. Em contrapartida, no Estado do Ceará há uma carência
de trabalhos socioeducativos oferecidos aos homens autores de violência
doméstica.
De acordo com o quadro de informações exposto na sala do núcleo,
os objetivos do NUAH são: 1)Desenvolver atividades socioeducativas,
relacionadas à responsabilização e sensibilização de homens autores de
violência contra a mulher, a fim de afastá-los do contexto da violência; 2)
Prevenir e estimular o rompimento do ciclo da violência, atuando de forma
integrada com as instituições que compõem a rede de enfrentamento à
violência contra a mulher. 3) Diminuir os casos de reincidência de violência
doméstica contra a mulher.
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Tendo como ações desenvolvidas os atendimentos
psicosociojurídicos ao homem, grupos de sensibilização e reflexão,
atendimento aos presos pela Lei Maria da Penha e Encaminhamentos a rede
sócio assistencial do Estado do Ceará.
3.3.1 Perfil biográfico dos entrevistados
A seguir apresento as principais características dos doze homens
entrevistados no decorrer da pesquisa. Esses pontos referem-se: à idade,
escolaridade, religião, profissão, uso de drogas e conhecimento sobre a Lei
Maria da Penha. O roteiro dessas entrevistas (Apêndice) traz as questões que
foram apresentadas.
- (01) Marte: 21 anos, reside no Álvaro Wayne com cinco parentes,
tendo ensino médio incompleto, trabalha e sua profissão é técnico em
manutenção de portão automático. Solteiro, tem um filho, faz uso de álcool e
estava sob efeito no momento da agressão. É católico, já tinha ouvido falar na
Lei Maria da Penha e a menciona como uma lei severa.
- (02) Plutão: 36 anos, reside no Autran Nunes com cinco parentes,
tendo ensino fundamental incompleto, trabalha atualmente como taxista. É
solteiro, tem oito filhos, religião indefinida; a prisão ocorreu em junho. Fez uso
de álcool no momento da agressão. Esse é o segundo processo que responde
na justiça, já ouviu falar na Lei Maria da Penha, refere-se a uma lei que só
beneficia a mulher.
- (03) Vênus: 41 anos, reside no Carlito Pamplona, com três
parentes, tem o ensino médio completo, trabalha e sua profissão é vendedor
ambulante, solteiro, dois filhos, é católico, faz uso de álcool e estava sob efeito
no momento da agressão.
- (04) Saturno: 36 anos, reside no Cristo Redentor com dez
parentes, tendo ensino médio completo, atualmente trabalha como zelador,
solteiro, tem uma filha, faz uso de álcool e outras drogas. Estava sob efeito de
álcool no momento da agressão. Não tem religião, esse é o terceiro processo
que responde na justiça por violência.
- (05) Urano: 49 anos, reside no Centro com seis parentes, tem dois
filhos, casado, sem escolaridade, trabalha como servente de pedreiro,
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apresentando religião evangélica. Estava sob o efeito do álcool no momento da
agressão. Deixou a bebida alcoólica após se tornar evangélico.
- (06) Júpiter: 30 anos, reside no Centro com quatro parentes, tendo
ensino médio completo, trabalha atualmente como motorista, solteiro, tem uma
filha, não faz mais uso de álcool, mas estava sob efeito no momento da
agressão. Tornou-se evangélico após a prisão. Já tinha ouvido falar da Lei
Maria da Penha, que segundo ele é uma lei que veio para proteger as
mulheres.
- (07) Sol: 39 anos, reside no Couto Fernandes, com seis parentes,
trabalha de auxiliar de Serviços Gerais, possui o Ensino Fundamental
incompleto, casado, tem cinco filhos, é mórmon, não faz mais uso de álcool,
mas estava sob efeito no momento da agressão.
- (08) Netuno: 31 anos, morador do Aracapé, reside com a esposa,
possui o Ensino Fundamental incompleto, trabalha como cortador de linhas,
não tem religião, fez uso de álcool no momento da agressão e ainda consome
bebida alcoólica.
- (09) Mercúrio: 49 anos, morador da Maraponga, reside com três
parentes, possui o Ensino Médio completo, solteiro, pai de dois filhos, trabalha
como motorista comercial, católico, estava sob efeito do álcool no momento da
agressão e, após iniciar a participação no A.A, abandonou esse tipo de vício.
- (10) Terra: 30 anos, reside no Conjunto João Paulo, reside com
cinco parentes, solteiro, tem dois filhos, possui Ensino Fundamental
incompleto, trabalha de segurança em uma Igreja evangélica, estava sob efeito
de álcool no momento da agressão, mas abandonou o vício após se tornar
evangélico.
- (11) Cometa: 65 anos, reside sozinho na Barra do Ceará, tem uma
namorada, possui o Ensino Fundamental incompleto, católico, trabalhava de
tramitador de processo, contudo, foi demitido após retornar da prisão. Estava
sob o efeito de álcool no momento da agressão e persiste no vicio.
- (12) Meteoro: 38 anos, mora sozinho no Monte Castelo, solteiro,
tem três filhos, Ensino Fundamental incompleto, católico, trabalha de garçom.
Consumiu álcool no momento da agressão e ainda continua utilizando bebida
alcoólica.
62
A média de idade dos homens entrevistados é de 35 anos, residem
em bairros da periferia de Fortaleza, apresentam baixa escolaridade e,
consequentemente, se ocupam de trabalhos informais e/ou manuais de baixo
rendimento. Todos, no momento da ação violenta, fizeram uso, principalmente,
de bebidas alcoólicas. A maioria se considera evangélico e ao serem
questionados sobre a Lei Maria da Penha, poucos conhecem seus usos e
funções. No próximo capítulo analiso essas informações, relacionando-as com
as categorias estudadas no início do texto.
63
4 CAPÍTULO 3 – PERCEPÇÕES E IMAGINÁRIOS DE HOMENS EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA
Nesse capítulo, apresento o contexto das entrevistas e dos grupos
focais realizados no NUAH, bem como ressalto a visão, a história da instituição
e o papel de seus funcionários. Ao analisar as entrevistas, faço uma discussão
sobre os principais aspectos e situações relatados pelos homens. O capítulo
está distribuído da seguinte forma: inicialmente, apresento os cenários e
personagens do NUAH, em seguida, discuto, em cada uma das subseções, os
elementos mais relevantes das entrevistas e, por fim, relato as experiências
dos grupos focais realizados na instituição com os homens.
4.1 Cenários e Personagens: as Entrevistas no NUAH
Observei que era frequente os homens que participavam do grupo
no horário da tarde, em sua maioria chegavam sempre adiantadas, por volta
das 13h; entregavam sua identificação e aguardavam sentados fora da sala até
o momento de serem convidados a entrar na sala para o encontro do grupo.
O grupo começava sempre por volta de 13h30, quando não havia
nenhum imprevisto, como ajuste de som, datashow, organização de água e
copos à disposição dos homens, além da arrumação da sala – sempre em
forma de semicírculo. A reunião era mediada pela “Irmã Socorro”, membro da
Igreja Católica, vinculada à Pastoral Carcerária, que fazia um trabalho social
voluntário, trabalhando especificamente com esse público.
Irmã Socorro, uma senhora de aproximadamente 50 anos, mediava
o grupo sempre na companhia de uma auxiliar, que por sua vez iniciava o
grupo com uma atividade de relaxamento físico, fazendo uso de dinâmicas de
grupos e músicas instrumentais. Irmã Socorro tinha como finalidade abordar
em suas temáticas principais a discussão do perdão, pensar antes de cometer
atos, renunciar as tentações, evitar o uso de todo tipo de droga e
principalmente o fato de não rescindir, buscando fazer com que todas as
pessoas do grupo, refletissem sobre suas vidas e práticas.
Eram realizadas diversas dinâmicas ao longo do encontro para que
houvesse uma maior interação e participação, embora fosse notória a
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participação dos homens do grupo. Eles gostavam de falar, externavam suas
experiências e perspectivas, destacando o discurso de arrependimento da
violência – formado, principalmente, após a detenção.
Lembro que entre as dinâmicas realizadas, uma foi marcante. A
ideia era que o homem se colocasse no lugar da mulher, vítima de violência. A
mediadora solicitou que todos os homens da sala colocassem uma cadeira
vazia diante de si. Eles tiveram que imaginar que na cadeira vazia havia a
companheira agredida e recordar todos os atos da violência. Logo após, foram
convidados a sentar na cadeira vazia e de fato se colocar na posição da
pessoa vítima daquelas agressões. Encerrada a dinâmica foram estimulados a
externar suas opiniões sobre a atividade. Destacaram as dificuldades nos
relacionamentos vivenciados e extravasaram sentimentos. A emoção foi geral –
um dos momentos mais emblemáticos da minha experiência do grupo.
Grande parte dos integrantes demonstrou no grupo e nas entrevistas
arrependimento por suas práticas, contudo, um dos membros, conhecido como
vingador, externava um rancor extremo, não se comovendo com as atividades
e insistindo na legitimidade dos seus atos. Na dinâmica citada anteriormente, o
Vingador se recusou a participar, argumentando que não gostaria de recordar o
passado muito menos se colocar na posição de sua antiga companheira.
Também apresentava uma inclinação persistente em assassinar o seu ex-
sogro, devido a uma dívida financeira e a um suposto envolvimento desse
senhor na vida do casal.
O grupo era formado por treze homens que eram encaminhados ao
NUAH por determinação judicial. Embora fosse obrigatório, eram recorrentes
falas abordando o prazer de fazer parte do grupo, destacando a ideia de que o
homem não possui voz em casos de violência contra suas companheiras. Lá,
segundo observação realizada no grupo, eles tinham vez – fenômeno que não
ocorria na Delegacia. É interessante notar que os membros relatavam que,
inicialmente, frequentavam devido a essa decisão judicial, contudo, após o
terceiro ou quarto encontro já haviam encontrado laços e apoio que
extrapolavam a burocracia da justiça.
Dos treze componentes do grupo, somente dois se mostravam mais
retraídos e tímidos; estes só falavam quando questionados pela mediadora.
Enfim, se diferenciavam dos demais que tinham uma necessidade de falar e
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expressar seus sentimentos. Vale destacar que a participação ativa dos
membros já se constitua em uma das etapas de ação do grupo: a terapia.
O clima entre eles no grupo era de cordialidade e, em alguns casos,
até companheirismo. Fato que não excluía eventuais discordâncias entre os
membros. Como ocorreu na questão sobre a importância do trabalho de suas
companheiras. Enquanto a maioria afirmava ser inviável a mulher exercer uma
profissão fora de casa, outros, a bem dizer a minoria, diziam que as mulheres
deveriam exercer suas profissões e contar com o apoio do homem.
Em média os homens tinham 35 anos, se disseram evangélicos,
religião que conheceram e passaram a adotar após a experiência no presídio.
A minoria tinha o Ensino Médio concluído, sendo que os homens do grupo
geralmente tinham o Ensino Fundamental incompleto.
Em sua maioria estavam solteiros, fato consolidado após as
denúncias de agressão. A partir da observação do grupo, percebi que eles se
sentiam sozinhos, muitos haviam retornado ao lar materno – encontrando no
grupo um conforto psicológico e apoio, fundamentais para esse momento de
suas vidas.
O encontro sempre se encerrava às 16h. Em alguns encontros era
solicitado um intervalo de aproximadamente dez minutos. Quando finalizava a
reunião todos retornavam a sala do NUAH para assinar a lista de presença e
receber seu documento que haviam entregado no início. É importante
mencionar que os homens deviam participar de todos os encontros no intervalo
de seis meses, com uma regularidade quinzenal, tendo que apresentar no final
doze assinaturas para receber o certificado de participação – documento
apresentado no Juizado de Violência contra a Mulher. Caso houvesse algum
imprevisto, fazia-se necessário que o homem comparecesse e apresentasse
uma justificativa acompanhada de uma declaração oficial. No período analisado
pela pesquisa, registrei a assiduidade e pontualidade de todos os integrantes
do grupo.
4.2 Diferentes Versões e Discursos
Nos próximos tópicos analiso detidamente os principais elementos
destacados nas doze entrevistadas, traçando uma série de relações com as
66
categorias discutidas no capítulo 1, notadamente: violência, relações de gênero
e família.
4.2.1 O uso de álcool e outras drogas
O uso do álcool foi verificado em todas as falas dos entrevistados,
levando em consideração que o álcool e as drogas ilícitas não podem ser
analisados como causadoras da violência, pois segundo a Juíza do Juizado de
Violência Doméstica e Família Contra a Mulher, Rosa Mendonça, o álcool não
é a causa da violência, porque existem homens que bebem e não batem e
existem homens que batem e não bebem. Confirmando essa tendência, já
discutida no primeiro capítulo, Furtado e Mello (2010) chegaram às mesmas
conclusões ao analisar três instituições em Fortaleza como, Delegacia de
Defesa da Mulher, Juizado de Defesa da Mulher e o AA.
Foram realizadas diversas abordagens com os homens que, através
dos seus relatos, mencionaram o uso de álcool e/ou outras drogas, enfatizando
que esse consumo os levou a cometer algum tipo de violência contra suas
companheiras. Vale ressaltar que tanto a minha pesquisa como a investigação
realizada pelos autores citados anteriormente foram estudos realizados com
um grupo pequeno de homens. Porém, essas análises, de caráter científicos,
são de grande importância para verificar a complexidade da relação entre
drogas e violência.
Durante a pesquisa pude observar e concluir que as minhas
hipóteses tinham relevância e as mesmas foram comprovadas. Principalmente
ao que se refere ao álcool, pois o homem se utiliza deste argumento para criar
coragem ou até mesmo minimizar seu ato através da bebida, usando a
conhecida frase que diz: “Só fiz porque estava bêbado”. Dessa forma, caso não
tivessem ingerido a bebida, segundo eles, certamente não tinham tais atos de
violência. Nesse tipo de situação, percebi que os homens geralmente atribuem
o seu comportamento transgressor a um fator externo, no caso, o uso de
drogas.
Porém depois de dialogar com inúmeros autores relacionados ao
assunto, sabemos que esses discursos e comportamentos estão relacionados
com a reprodução de um contexto histórico que produziu e construiu o
67
machismo, cultura enfatizada entre os homens do Brasil, com maior ênfase na
cultura nordestina. Nesse sentido, algumas falas são fundamentais para
visualizar a relação álcool e violência, ressaltando três que enfatizam a
utilização de drogas na trajetória desses homens e na prática da violência:
Eu já fiz muita coisa errada, já me meti num monte de rolo por aí, mas em relação a bebida eu sempre gostei de tomar uma cervejinha. E em relação às drogas, comecei na maconha, eu achava que não era nada demais fumar um cigarro desses, aí teve um dia que eu vi vários amigos cheirando, tive vontade de sentir aquele prazer também, aí quando me dei conta já estava viciado, porque eu fazia qualquer coisa pra conseguir uma pedra (Marte, 21 anos) Eu estava num bar, aí já tava cheio de problemas, de cabeça quente, aí essa cumade chegou, aí começou a me esculhambar ela falou, falou e eu calado, mas na hora que ela me chamou de corno sem vergonha ai eu fiquei doido, taquei a lata de cerveja que estava com ela na mão rebolei na cabeça dela, eu até vi que ficou saindo sangue , mais ela ficou lá fazendo zoada e eu fui pra casa. (Vênus, 41 anos). Eu só bebi nesse dia mesmo. Eu cheguei do trabalho e passei num barzin que tinha lá perto de casa, aí tinha uns amigos meus e eles ficaram naquela “bebe aí cara só um copinho”. (Sol, 39 anos)
Todos eles fizeram uso de bebidas alcoólicas antes de violentar
suas companheiras. Esses homens deixaram bem claro que só cometerem
esses atos porque estavam alcoolizados. Porém, como pesquisadora, ao
analisar esse contexto sob a luz das discussões realizadas no primeiro
capítulo, percebi que o álcool não foi o agente causador dessas situações,
apenas potencializou uma intenção ou mesmo uma situação de conflito.
4.2.2 Relacionamento com a Família
Nessa parte é importante destacar a multiplicidade de arranjos
familiares presentes entre os entrevistados. Como foi analisado no capítulo 1,
existe na sociedade contemporânea uma gama de modelos familiares, dessa
forma, nas doze entrevistas realizadas notamos famílias reduzidas, formadas
por casais e casos de grupos familiares estendidos, que incluíam avós, avôs,
tios, sogras e cunhadas, como ficou claro nessas respostas sobre quantas
pessoas residem com o entrevistado: “ Meu pai, irmã, duas sobrinhas o homem
que ela vive eu e minha mãe também” (Marte, 21). “Pai, mãe, irmã, cunhado,
sobrinhos, só sei que são dez” (Saturno, 36 anos). “Só eu e a minha esposa”
(Netuno, 31 anos)
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Como foi dito anteriormente, após a agressão realizada, os que não
conseguiram a reconciliação, retornaram para o convívio familiar, voltaram para
seu lar materno, ou seja, viver na casa dos pais a principio parece ter sido a
única solução. Os homens ressaltavam em suas falas que o fato de ter voltado
a morar com os pais, foi de não ter para onde ir, ter sido preso foi uma situação
extremamente constrangedora, tendo sido algo que modificou suas vidas e
principalmente a rotina de cada um, pois alguns perderam o emprego pela
quantidade de faltas e ainda por cima enfrentam humilhações diárias na
comunidade em que vivem e através de alguns parentes.
4.2.3 Memórias da juventude
Neste momento recordo que na fala de um deles fica perceptível o
grande esforço para, como pai, comprar para seu filho brinquedos, não pelo
fato de existir brinquedos modernos que não tinham em sua época, mas,
principalmente para desfrutar de momento alegres de ter a felicidade de ganhar
um brinquedo, para algum parece ser bobagem, mas para quem teve uma
infância marcada pela pobreza e pela escassez até de alimentos era muito raro
ter com que brincar, só tinha mesmo os carrinhos artesanais, feitos de latas de
óleo Pajeú e doces (feitas de alumínio), entre outros brinquedos feitos a mão
utilizando o material disponível, como bolas feitas a partir de meias usadas.
Quanto aos relatos da adolescência, foram mais recorrentes as falas
relacionadas ao trabalho, no qual a maioria deles falaram que tiveram que
iniciar muito cedo, dando início mesmo na infância, precisavam trabalhar para
ter que ajudar e manter a família, lembrando as necessidades financeiras.
Vários entrevistados relataram, com frequência, a relação que tiveram com
atos de violência. Quando questionados sobre o relacionamento dos seus pais,
em sua maioria respondia que presenciavam agressões, praticadas pelos seus
respectivos pais, tendo como marcas simbólicas alguns termos: “peias”,
“gritarias” e “faca”.
A ideia de que esses homens já vivenciavam a violência na
juventude, foi uma das hipóteses que se confirmaram no estudo de campo.
Isso não quer necessariamente que o filho que ver seu pai cometendo
agressão também vai ser um homem agressivo, isso não justifica a prática da
69
violência, nem todo o filho tem o mesmo comportamento do pai, não é pelo fato
do pai ter uma determinada profissão o filho tenha que seguir seus passos.
Porém, o filho tende a reproduzir alguns tipos de comportamento, mesmo
indiretamente e inconscientemente, pois ele acaba naturalizando a violência e
formando uma convicção masculinidade extremamente machista, como pode
ser percebido nesses trechos das entrevistas:
O relacionamento com a minha mãe é ótimo, ela fez tudo pra mim, mais com meu pai é péssimo. Já respondi outro processo por causa de agressão, por ter quebrado o violão na cabeça do meu pai... Agente nunca se entendeu... Eu me sinto muito revoltado porque teve isso que aconteceu na minha infância eu nunca esqueci foi quando fui estuprado. (Saturno, 36 anos) Minha infância foi marcada com muita necessidade, muita fome, é só isso que eu lembro, tinha dia que nós só comia quando meu pai trazia um peixinho lá da Lagoa da Parangaba, ele ia a pé, era muito longe da casa que a gente morava, tinha que ir cedo pra da tempo e comer na hora do almoço. (Urano, 49 anos) Assim, é porque eu sou filho adotivo, então sempre me senti rejeitado, não tinha aquele amor de mãe de sangue, entende? Como era de interior pequeno todo mundo se conhecia e eu ouvi falar que era filho de mulher lá que era errada. (Meteoro, 38 anos)
Esse era um dos temas que conseguia extrair inúmeras informações
que se referiam a trajetória dos entrevistados, enfatizando a vida na
adolescência e a relação com os pais; alguns relataram os fatos de imediato,
mas os demais fizeram uma retrospectiva, lembrando vários momentos. No
geral, pude perceber que a infância não foi muito prazerosa, pois foi recorrente
nas falas o argumento da falta das brincadeiras, tendo que renunciar esse
momento para realizar outras atividades. Segundo eles, tinham que deixar de
lado as brincadeiras para assumir compromissos de adulto, como, por
exemplo, deixar de brincar de bola para vender coco na praia, não participar
das brincadeiras na rua, para acompanhar seu pai ajudando nas vendas da
feira.
4.2.4 Percepção da violência
Ao serem impelidos a narrar o ato da agressão e justificar os motivos
de tal fato, os homens disseram que a culpa estava na mulher, algum tipo de
comportamento desaprovado por eles havia motivado a agressão. Colocavam-
se como homens pacíficos e ordeiros, nunca haviam se inserido em conflitos
70
anteriormente – foi algo excepcional. Poucas vezes percebi uma fala de
arrependimento, sendo que muitos naturalizavam a violência, acreditavam até
que a mulher não precisava ter feito denúncia – o problema poderia ter sido
resolvido entre o casal. Um dos discursos mais frequente se referia à questão
de conflito entre casal é “coisa de família, para ser resolvido em casa e não
pela justiça”.
Os níveis de violência são dos mais distintos, empurrões, chutes,
arranhões, bofetes, puxões de cabelo, surras, pedradas e agressões verbais.
Interessante notar que os homens do grupo foram unânimes ao informar que
em suas relações nunca tinha ocorrido conflitos violentos. Esses tipos de
violência foram narrados com detalhes pelos entrevistados, como veremos a
seguir:
Eu cheguei em casa de manhã, já tinha bebido todas, porque tava com raiva dela, fiquei sabendo que ela tava me traindo com o vizinho que era viúvo e ela tava indo pra lá direto beber com ele. Nesse dia, a gente começou a brigar eu disse uns nomes com ela e ela não pode ter raiva, porque corre logo pra pegar uma faca. Aí na hora da confusão ela deu uma facada nas minhas costas e eu, pra me defender, peguei uma pedra e taquei na cabeça dela. Ela se levantou e com a faca na mão ainda me furou na perna. (Meteoro, 38 anos). Eu só dei uma tapa e depois um empurrão, foi só isso mesmo. Aí os homi chegou botou as pulseira em mim, e me levou para delegacia, passei mais de três meses presos. (Urano, 49 anos). Nesse dia umas de tarde e fui até o trabalho dela, mais eu tava consciente de tudo que tava fazendo. Eu dei uma porrada nela, mas não foi nada demais, eu só me fudi porque ela tava com a medida protetiva. (Plutão, 36 anos)
É interessante destacar que analisando as entrevistas e observando
as discussões do grupo e as conversas entre eles no corredor, verifique que
alguns elementos foram marcantes: um dos tópicos mais persistentes na fala
deles foi o acompanhamento de atos de violência por programas policiais como
Barra Pesada e Cidade 190, que são transmitidos poucas horas da realização
do grupo. Quando se viam, antes das discussões, em conversas informais no
corredor, questionavam se o outro tinha assistido aquele caso ou investigação
da policia, apontando para uma forte cultura da violência midiática entre os
homens.
71
4.2.5 O Conhecimento e usos da Lei Maria da Penha
Essa Lei, sancionada em 2006, podemos dizer que é uma lei recente,
muito comentada pelos homens. De acordo com o estudo realizado no 1º
capitulo: 82% das pessoas já ouviram falar da lei, mais somente 18% sabem do
seu conteúdo. Isso se comprovou no grupo, pois, quando eram questionados
sobre a Lei Maria da Penha, relatavam que tinha ouvido falar em mesa de bar,
em grupos de amigos ou em conversas informais no trabalho e na família.
Enfim, em sua maioria sabiam da existência da lei, porém só vieram a
conhecer o conteúdo real desse dispositivo jurídico quando estavam
vivenciando suas consequências. Um fenômeno também muito corriqueiro
presente entre os integrantes do grupo foi a avaliação negativa dessa lei, que,
segundo os entrevistados, só beneficiaria a mulher:
É uma lei injusta, só a mulher que tem razão, o cara mesmo é visto como um vagabundo; deveria ter uma lei pra beneficiar o homem como José do Penhor, aí ficava Maria da Penha pra mulher e o José do Penhor pra o homem. (Plutão, 36 anos) Uma lei que nasceu para defender a mulher e ela tem toda moral pra acabar coma vida do homem, como a senhora pode ver no meu caso, ela me deu duas facadas, fiquei internado, passei por uma cirurgia, porque perfurou meu pulmão e ainda fui preso, isso é muito injusto. (Meteoro, 38 anos) Já tinha visto falar, mais agente nunca sabe como é a lei na prática, quando eu vim saber já tava pagando ela. É uma lei severa, a vida da gente vira um inferno, nunca mais quero passar por isso, sei que sou muito novo, ainda vou ter outra mulher, mas não quero saber de confusão, quando a mulher vier brigar comigo eu dou é as costas. (Marte, 21 anos).
É importante lembrar que essa lei foi criada para ambos os sexos. A
mulher que cometer qualquer ato de violência responderá juridicamente pelos
seus atos, dessa forma, contrariando a percepção dos homens entrevistados,
que se sentem injustiçados e não concordam com as novas penalidades, a
justiça em tese combate veementemente todas as formas de violência. Após
muitas décadas os movimentos feministas e, mais recentemente, o caso Maria
da Penha, apontam para uma realidade brasileira: em situações de violência
doméstica, envolvendo casais, a mulher geralmente é alvo de atos violentos
cometidos por seu companheiro; um fenômeno também histórico-cultural.
72
4.3 Análise do Grupo Focal
O grupo focal ocorreu na quinta-feira, dia 13 de novembro de 2014.
Foi realizado nas dependências do NUAH, nos turnos da manhã e da tarde, ou
seja, com públicos diferentes. Na manhã o grupo ficou reunido das 9 às 11h. A
mediação foi realizada por mim e por uma psicóloga, que está pesquisando o
núcleo. Estiveram presentes nove homens de diferentes idades e perfis. A
tarde foi realizado um novo grupo focal, com um público diferente, a reunião foi
mediada somente por mim. O encontro da tarde ocorreu das 14 às 16h. Treze
homens marcaram presença nessa atividade.
Os homens que participaram do grupo focal estavam aparentemente
tranqüilos, vestidos com roupas comuns, participaram ativamente das
discussões. Três dinâmicas ocorreram pela manhã e três à tarde – as
atividades seguiram a mesma lógica e cronograma. Como citado
anteriormente, o grupo sempre inicia com uma atividade de relaxamento
corporal, com o objetivo de aliviar tensões e obter uma maior reflexão e
concentração. Essa prática ocorreu com a utilização de músicas instrumentais,
o som foi ampliado no início e, logo após a atividade ficou um som ambiente.
A primeira dinâmica foi utilizada massa de modelar. Alguns até
lembraram os tempos da infância. A proposta da atividade consistia em que
cada integrante do grupo modelasse uma figura que representasse algo
significativo e marcante em suas vidas e, finalizado o trabalho, deveriam
justificar sua escolha. Um modelou uma cobra, justificando que já foi mordido
por duas cobras ao longo da vida; na infância quando brincava no quintal de
casa e na vida adulta, quando, segundo ele, provou o veneno da mulher – nas
duas situações o integrante se sentiu um sobrevivente.
Outro homem modelou uma bola, representando a infância perdida.
Quando foi justificar seu molde, se emocionou e narrou a infância difícil, vivida
na periferia de Fortaleza – quando faltava tudo, inclusive, a bola para brincar
com os amigos. Um dos integrantes modelou uma mulher, representando a sua
mãe, ao justificar aquele símbolo, reviveu momentos tristes, afirmando que era
constantemente espancado pela mãe, além de ser privado de todo e qualquer
tipo de carinho materno.
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Por fim, ainda na primeira dinâmica, um homem modelou uma
criança e disse que ali estava sua filha. Fruto de seu primeiro casamento. Há
catorze anos não se viam, mesmo assim recordava da infância da menina e
dos momentos inesquecíveis de brincadeiras e carinhos que realizava com sua
filha. Os laços foram rompidos e a única informação que tem de sua filha é o
fato dela ter casado, ser mãe e residir na cidade de Natal-RN. Vale ressaltar
que ao justificar seu desenho, esse homem chorou, demonstrando muita
saudade de sua família.
Na segunda dinâmica foi entregue uma revista para cada integrante.
Essa atividade consistiu em propor que os homens escolhessem nas revistas
duas figuras (uma masculina e outra feminina) e, em seguida, narrar os seus
ideias do que é ser homem e do que é ser mulher. Vários elementos
interessantes surgiram a partir dessa dinâmica.
Um deles selecionou a imagem da presidente Dilma Roussef,
representando a autoridade e emancipação da mulher. E, como figura
masculina, selecionou uma foto do Papa Francisco, afirmando que um homem
deve resguardar um lado espiritual e deve ter liderança, assim como o líder
máximo da Igreja Católica.
Outro homem selecionou a imagem formada pelo ator e diretor
Márcio Garcia, sua esposa e filhos, em momento de laser numa praia do litoral
paulista. Segundo esse homem, Márcio Garcia porque estava com a família
reunida e que ela o ajudava muito, principalmente por ele ser uma figura
pública, ela tinha que ser muito compreensiva e evitar ciúmes.
Um dos momentos mais marcantes dessa dinâmica foi quando um
homem apresentou duas imagens que para ele são as representações ideais
dos mundos masculino e feminino. Para simbolizar a mulher escolheu uma foto
da apresentadora Ana Maria Braga cozinhando e disse que assim deveriam ser
todas as mulheres – ganhar o homem pela barriga, fazendo sempre comidas
deliciosas. Já para representar o homem, mostrou uma foto publicitária de uma
marca famosa de cerveja, em que um grupo de homens bebia num bar; para
ele a mulher deve compreender que o homem precisa desses momentos de
descontração, pois são muitas as responsabilidades e se o homem não tiver
um momento de alegria a tensão se torna insuportável.
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Finalmente, outro homem selecionou uma foto com uma reprodução
do Cristo Redentor do Rio de Janeiro. Para esse homem essa imagem
representava todo um ideal de liberdade, paz e amor – afirmando que tanto
homens como mulheres só seriam felizes se seguirem os caminhos do senhor.
A partir dessa dinâmica abriu-se um espaço para debater sobre
diversas temáticas – constituindo a terceira dinâmica.
Essa atividade consistiu na realização de vários questionamentos
sobre a diferença entre ser homem e ser macho, o papel do homem e da
mulher o que significa família, a percepção sobre a Lei Maria da Penha, qual
deveria ser a punição para casos de violência contra a mulher, percepções
sobre os ditados populares: “em briga de marido e mulher não se mete a
colher”, “tem mulher que gosta de apanhar” e “na mulher não se bate nem com
uma flor”.
Para os integrantes do grupo a principal diferença entre ser homem
e ser macho está reside no fato de que o homem é portador de
responsabilidades, um cidadão ciente dos seus deveres, provedor da família e
o macho é aquele que procura se envolver em conflitos, irresponsável,
arrogante, indiferente à família e, principalmente, aos anseios dos filhos, sendo
sua marca principal a violência e a brutalidade.
No que tange aos papéis sociais do homem e da mulher,
argumentaram que todo homem tem que ter uma profissão para garantir a
sobrevivência da família, ter caráter, liberdade, respeito e moral, enquanto a
mulher deve ser paciente, amorosa, bonita, compreensiva, cuidar bem da casa,
do marido e dos filhos e ter respeito próprio.
A família, para os homens que participaram desses grupos focais,
representa a base e estrutura de tudo, pois sem família o ser humano fica
perdido, configura-se no alicerce de suas vidas e que está sempre nos
momentos mais difíceis.
Quanto a Lei Maria da Penha, os homens disseram que essa lei
surgiu para beneficiar exclusivamente a mulher, desestrutura a família e, o
mais frequente na fala desses homens, com esse dispositivo a mulher tem vez
e voz para destruir a vida de qualquer um. A percepção é de que a lei é injusta,
pois a versão do homem não é levada em consideração.
75
Segundo os grupos focais, a punição atual é muito rígida,
transformando qualquer cidadão em um criminoso. Dessa forma, a justiça
deveria rever as punições e estabelecer penas mais brandas, como serviço
comunitário e participação em grupos educativos, tais como esses que ocorrem
no NUAH. Para eles o sistema prisional não educa ninguém, pelo contrário,
fortalece mágoas e vinganças.
No que se refere a percepção sobre os ditados populares citados
acima, as falas deixam claro o tipo de representação que os homens estudados
possuem sobre a vida privada. No ditado “em briga de marido e mulher não se
mete a colher”, foram unânimes em concordar com esse provérbio, pois os
conflitos entre casais devem ser resolvidos somente no âmbito doméstico,
sendo excluído qualquer tipo de interferência da família, vizinhos e agentes da
lei. Quanto ao ditado “mulher gosta de apanhar”, afirmaram que o homem
mesmo quando agride a mulher o seu intuito é apenas punir o comportamento
e não ferir fisicamente a sua companheira; mesmo assim, disseram que
existem mulheres que gostam de ser violentadas.
No último ditado debatido, intitulado “na mulher não se bate nem
com uma flor” argumentaram que esse provérbio deve ser relativizado, pois
tem mulheres que por serem arrogantes e agressivas merecem sim uma
punição para aprenderem a respeitar o homem, nesses casos elas não
merecem flores, mas sim espinhos.
Enfim, como pesquisadora, percebi que essas experiências no
NUAH contribuíram positivamente para a minha formação acadêmica e
pessoal. Através da leitura dos autores apresentados ao longo do texto,
discussões e análises dessa temática, consegui relativizar várias informações
apresentadas pelos homens que por mim foram entrevistados. Algumas valem
a pena mencionar. Primeiro, não podemos construir uma visão mecanicista e
superficial ao vincular a violência desses homens a formação que tiveram na
juventude. Ao fazer isso, estaremos sendo apenas deterministas, sem
compreender a complexidade do fenômeno, que, como abordado, tem uma
forte inspiração numa cultura da masculinidade extremamente machista e
patriarcal. O mesmo raciocínio vale para o consumo de drogas lícitas e ilícitas,
pois dizer que quem bebe se torna automaticamente violento, incorreríamos
numa tese simplória.
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pesquisa apresentada a meu ver oferece uma importante
contribuição para a discussão sobre a violência contra a mulher. Ao longo do
texto, tentei compreender os elementos que estão presentes na cultura da
masculinidade, contexto histórico brasileiro, arranjos familiares e
transformações a partir da Lei Maria da Penha. A ideia de pesquisar a
percepção do homem se mostrou muito satisfatória, uma vez que possibilitou
uma visão mais ampliada e complexa sobre a temática. É importante lembrar
que são poucas as pesquisas que tratam desse enfoque na área das Ciências
Humanas.
Vale destacar que a presente investigação refere-se a discussões
realizadas a partir de um grupo reduzido, contudo, o diálogo com os autores no
capítulo 1 demonstrou que vários aspectos aqui discutidos estiveram presentes
em vários estudos, tais como: a relação entre drogas e violência, os papéis do
homem na sociedade, trajetórias familiares conflituosas, os modelos de
relacionamento conjugal e as percepções sobre a Lei Maria da Penha.
É importante frisar como Assistente Social a pouca efetividade de
políticas públicas que trabalhem na perspectiva do homem, uma vez que esse
sujeito não é violento todo o tempo e muito menos sua vida se reduz a um
momento de agressão. São seres humanos, plenos de direito e que devem ser
atendidos e reconhecidos pelo Estado. A violência de todos os tipos nunca é
justificável, contudo acredito que para combater todo e qualquer tipo de
violência o primeiro passo é compreender a lógica das representações dos
sujeitos envolvidos nesse ciclo.
Basta ressaltar que esses homens têm uma história, repleta de
violência familiar, representações machistas e uma cultura fortemente
patriarcal, apesar das transformações na sociedade contemporânea. Uma das
falas desses homens me chamou atenção justamente por destacar que deveria
haver mais grupos de reflexão, contudo, não apenas em momentos de sanção
judicial, mas também em escolas, na família, comunidade, ou seja,
complementando essa proposta desse integrante do grupo, temos que
construir uma nova cultura nas relações de gênero. Cabe a cada de um nós um
papel fundamental nessa caminhada. Não devemos esquecer que uma dos
77
objetivos do Serviço Social é combater diferentes modalidades de
desigualdades, portanto, a violência contra a mulher deve está na pauta do dia
dos Assistentes Sociais em diferentes lugares e contextos.
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REFERÊNCIAS
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82
APÊNDICES
APÊNDICE A – Roteiro Modelo de Entrevista
Roteiro de Entrevista
1. Qual o seu nome?
2. Qual a sua idade?
3. Qual o bairro onde o senhor reside?
4. Quantas pessoas residem com o senhor? E qual o grau de parentesco?
5. Qual a sua escolaridade?
6. O senhor trabalha?
7. Qual a sua profissão?
8. Qual o seu estado civil?
9. O senhor tem filhos?
10. Qual a sua religião?
11. O senhor faz uso de álcool ou outras drogas?
12. O senhor estava sob efeito de alguma droga no momento da agressão?
13. O senhor pode falar como ocorreu o fato?
14. Como era o relacionamento dos seus pais?
15. O senhor lembra algum fato na sua infância ou na adolescência que lhe
marcou?
16. O senhor conhece amigos, parentes ou alguém próximo que responde a
Lei Maria Penha?
17. O senhor já tinha ouvido falar da Lei Maria da Penha antes do ocorrido?
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APÊNDICE B – Termo de Consentimento
TERMO DE CONSENTIMENTO
CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO -TCLE
Convido o Sr. à participar do estudo que estou desenvolvendo sobre a
violência doméstica, que tem como objetivo compreender a percepção do
homem autor da violência e elaborar um perfil biográfico dos cumpridores de
penas alternativas do município de Fortaleza- CE, sob a orientação da mestre
Francis Emmanuelle Alves Vasconcelos.
Está pesquisa será realizada por mim, Rosa Maria Vasconcelos Monte,
aluna do curso de Serviço Social da Faculdade Cearense, matriculada sob o nº
09003058. Solicito, portanto, sua contribuição para este estudo. Nesta
entrevista, serão realizadas algumas perguntas para elaboração de um perfil
biográfico, bem como sua opinião a cerca da violência contra a mulher no
âmbito da relação conjugal.
A participação da pesquisa não envolve risco, visto que a identidade do
Sr será preservada, enquanto sua colaboração será de grande importância
para aprofundamento do estudo e a contribuição para essa temática, até hoje
pouco desenvolvida. Sua adesão como informante será declarada através da
assinatura deste Termo de Consentimento. Se optar por não querer responder
alguma pergunta ou desistir da entrevista, será concedido seu direito sem que
haja nenhuma retaliação.
Atenciosamente,
Rosa Maria Vasconcelos Monte (Pesquisadora)
(Entrevistado)