CONSERVADORISMO REACIONÁRIO E DESTRUIÇÃO CAPITALISTA DA AMAZÔNIA:
resistência das classes subalternas e a cultura profissional crítica em Serviço Social
Cristiana Costa Lima (Coordenadora da mesa)
Doutora em Políticas Públicas (UFMA). E-mail: [email protected]
Mariana Cavalcanti Braz Berger
Doutora em Políticas Públicas (UFMA). E-mail: [email protected]
Marina Maciel Abreu
Doutora em Serviço Social (PUC/SP). E-mail: [email protected]
EMENTA
A retomada do conservadorismo reacionário no mundo e sua incidência no Brasil na
reconfiguração do Estado neoliberal sob os grandes interesses do capital financeiro. Os
desafios da construção da cultura profissional crítica em Serviço Social no contexto da
flexibilização das relações de trabalho e negação de direitos sociais e do avanço do
conservadorismo reacionário. O fetiche do desenvolvimento sustentável e a resistência dos
afetados pela destruição capitalista frente aos grandes projetos na Amazônia. A
incompatibilidade da lógica do sistema capitalista com o modo de ser e de viver de qualquer
perspectiva que conviva com o meio ambiente natural. Desenvolvimento sustentável e setor
energético na região amazônica brasileira.
A RETOMADA DO CONSERVADORISMO REACIONÁRIO SOB O CONTEXTO
DAS TRANSFORMAÇÕES DO CAPITAL E SUA INCIDÊNCIA NO BRASIL
Cristiana Costa Lima1
RESUMO: Análise do avanço do conservadorismo reacionário das classes dominantes brasileiras, a partir do movimento que resultou no processo de impeachment de Dilma Rousseff, via golpe jurídico-parlamentar-midiático de Estado, ocorrido em 2016. Objetiva-se demarcar os elementos essenciais para a investigação desse processo. Parte-se do entendimento de que o intenso movimento produzido pelas transformações ocorridas no mundo, no final do século XX e início do século XXI, têm apresentado grandes desafios à compreensão dos processos históricos de desenvolvimento da sociedade, ao mesmo tempo em que provocam profundas mudanças nas forças sociais em luta. Tais transformações constituem-se expressões da atual fase do capitalismo sob a hegemonia do capital portador de juros e da ideologia neoliberal.
Palavras-chave: Imperialismo. Capitalismo Dependente. Conservadorismo reacionário. Golpe.
ABSTRACT: An analysis of the progress of reactionary conservatism of the brazilian ruling classes, based on the movement that resulted in Dilma Rousseff's impeachment process, via a legal-parliamentary-mediatic coup d'état in 2016. It aims to demarcate the essential elements for the investigation of this process. It is based on the understanding that the intense movement produced by the transformations that occurred in the world in the late twentieth century and the beginning of the twenty-first century have presented great challenges to understanding the historical processes of development of society while causing profound changes in fighting social forces. Such transformations constitute expressions of the current phase of capitalism under the hegemony of interest bearing capital and neoliberal ideology.
Keywords: Imperialism, Dependent Capitalism, Reactive Conservatism, Coup,
1 INTRODUÇÃO
As indicações presentes nesse artigo têm como referência os estudos e pesquisas
realizados pelo Grupo de Estudo, Pesquisa e Debate sobre Serviço Social e Movimento
1 Doutora em Políticas Públicas (UFMA). E-mail: [email protected]
Social (GSERMS). As análises aqui apresentadas partem do entendimento de que o intenso
movimento produzido pelas transformações ocorridas no mundo, no final do século XX e
início do século XXI, têm apresentado grandes desafios à compreensão dos processos
históricos de desenvolvimento da sociedade, ao mesmo tempo em que provocam profundas
mudanças nas forças sociais em luta.
Essas transformações nas relações sociais vêm se manifestando no Brasil desde
as Jornadas de Junho de 2013, quando emergiram um profundo acirramento da luta de
classes e um avanço do conservadorismo reacionário. Ambos constituem-se expressões da
atual fase do capitalismo sob a hegemonia do capital portador de juros (CHESNAIS, 2005) e
da ideologia neoliberal.
Assim, tendo como referência as indicações metodológicas de Antônio Gramsci,
segundo as quais, para análises das situações há que se entender “o problema das relações
entre estrutura e superestrutura” (GRAMSCI, 2002, p. 36), para que se possa chegar a uma
justa análise das forças. Para tanto, há que se “distinguir os movimentos orgânicos
(relativamente permanentes) dos movimentos que podem ser chamados de conjunturais (e
que se apresentam como ocasionais, imediatos, quase acidentais)” (GRAMSCI, 2002, p.
36).
Dessa forma, não se trata, pois, de analisar uma conjuntura conservadora frente ao
crescimento de movimentos sociais, partidos conservadores e Igrejas conservadoras; mas
significa entender que “os fenômenos de conjuntura dependem de movimentos orgânicos
[...]. Os fenômenos orgânicos dão lugar à crítica histórico-social, que envolve os grandes
agrupamentos, para além das pessoas imediatamente responsáveis e do pessoal dirigente”
(GRAMSCI, 2002, p. 36 – 37).
Eis o contexto no qual devemos nos debruçar para investigar o avanço do
conservadorismo reacionário no Brasil. Situá-lo como intrínseco ao movimento do próprio
capital em sua fase econômico-financeira de reformatação da vida cotidiana do trabalho e
de sua infoproletarização, que levam à busca de soluções imediatas para a crise do
emprego e da garantia da sobrevivência. É nesse vácuo que o conservadorismo ressurge
com força.
2 OS FATORES CONJUNTURAIS E ORGÂNICOS DE ASCENÇÃO DO
CONSERVADORISMO REACIONÁRIO NO BRASIL
Em meio a um turbilhão de acontecimentos em todo o mundo, a extrema direita
avança frente a uma crise da democracia. Processos complexos cujas causas não são
aparentes e não podem ser reduzidas a uma única variável.
Do ponto de vista conjuntural, um conjunto de fatores políticos e econômicos
podem ser elencados para “justificar” o crescimento de uma extrema direita no Brasil,
personificada na eleição de Jair Messias Bolsonaro, do Partido Social Liberal (PSL), à
Presidência da República, em outubro de 2018.
O impeachment da Presidente Dilma Rousseff, em 2016, deu-se sob um golpe no
qual a institucionalidade brasileira era posta à prova ao colocar na Presidência da República
um governo interino repleto de denunciados, investigados e condenados pela justiça,
mesmo que, do ponto de vista do discurso, o objetivo fosse combater “a organização
criminosa orquestrada pelo PT, sob o comando do seu chefe maior, Luís Inácio Lula da
Silva”.
Tendo, então, o combate à corrupção2 como aparente motivação, a mídia
tradicional, especialmente a Rede Globo de Televisão, exerce um papel fundamental na
formação do consenso e mobilização das massas no acirramento da luta de classes,
capitaneando, desde a classe trabalhadora aos segmentos da classe média, o sentimento
antipetista que emergiu sobretudo da ameaçada a esses setores trazidas pelas políticas
minimamente de fortalecimento dos setores mais empobrecidos da sociedade, a partir da
garantia do emprego e da valorização do salário mínimo – elementos que retomaremos mais
à frente.
Mas o golpe não foi orquestrado apenas pela mídia, era preciso revesti-lo de
legalidade e institucionalidade. Para isso, Ministério Público e poder judiciário –
destacadamente a chamada “República de Curitiba”, com Sérgio Moro à frente – entraram
em cena. Nesse jogo teatral, o palco trouxe ao centro o político corrupto, representando o
“mal”, e o juiz do “bem”. O ápice desse processo com vistas à convencer amplas massas da
sociedade da necessidade de passar o país a limpo, deu-se no dia 16 de março de 2016,
quando o juiz Sérgio Moro autorizou – ilegalmente, o que lhe rendeu uma reprimenda do
STF, à época – a divulgação de escutas telefônicas relativas a conversas entre Lula e Dilma
2 A cerca da corrupção, concordamos com Armando Boito Júnior (2017), que assinala que, na
sociedade capitalista, a corrupção deve ser entendida como ideologia. “A ideia de corrupção é parte integrante e fundamental da ideologia política burguesa, mais precisamente da ideologia burguesa do Estado. Ela é produzida pelo aparelho de Estado burguês (BOITO JR, 2017, p. 02). Isso ocorre porque o Estado capitalista estabelece uma distinção entre recursos públicos e privados que é apenas formal, daí se origina a corrupção, mas, na prática, os recursos do Estado estão à serviço da classe capitalista. “Os elementos que dão origem à ideologia da corrupção são eles mesmos ideológicos, [...] e estão baseados na também concepção ideológica de duas normas básicas do Estado burguês – igualdade jurídica formal e abertura formal das instituições do Estado”. (BOITO JR., 2017, p. 05).
com o propósito de provocar a comoção e o ódio da população, criando, assim, um
ambiente propício para votação do impeachment.
O ativismo político da Lava Jato preparou o espetáculo no qual toda a sociedade
brasileira parou para assistir o desfecho no dia 31 de agosto de 2016, com a cassação da
presidente Dilma Rousseff, por (supostos) crimes de responsabilidade, por pedaladas
fiscais; e por créditos suplementares sem autorização legislativa. Foi com “a substituição do
espaço público de debate pelo protagonismo dos meios de comunicação de massa”
(SOLANO, 2018, p.06) que o Brasil assistiu à farsa armada também com a participação dos
parlamentares.
No 18 Brumário de Luís Bonaparte, Marx (2011) escreve que Hegel, em suas
obras, comenta que todos os grandes fatos e todos os grandes personagens da história
mundial são encenados duas vezes. “Ele se esqueceu de acrescentar: a primeira vez como
tragédia, a segunda como farsa.” (MARX, 2011, p. 25), assim, a farsa é pior do que a
tragédia. O golpe de Estado civil-militar de 1964 no Brasil foi uma tragédia, o golpe de
Estado midiático, jurídico e parlamentar de 2016 foi uma farsa. E, para coroar a farsa, a
partir do bloco parlamentar conhecido como “bancada da BBB3”, uma maioria se constitui na
Câmara dos Deputados e no Senado Federal, articulando e executando o golpe, com um
amplo apoio da maioria dos partidos do centro à centro-direita.
O golpe contou ainda com a atuação ativa de um movimento de juventude que, das
redes (sociais) às ruas e praças, consolidou-se com um viés conservador no Brasil, a partir
das manifestações de massa ocorridas no ano de 2013, com o claro intuito de disputa
ideológica para conformação de uma nova direita no país, fundamentada em um conjunto de
ideais liberais, de negação do Estado. Várias organizações começaram a participar desse
emergente movimento liberal brasileiro, com o desenvolvimento de novas formas de
sociabilidade na sociedade civil, originadas através das novas tecnologias, principalmente
em razão da internet. Dentre essas organizações, notabilizou-se com mais força o
Movimento Brasil Livre (MBL), construído a partir de uma organização transnacional, a
Students For Liberty, que atua no Brasil através de sua versão brasileira, o Estudantes Pela
Liberdade (EPL), financiado e promovido pela Atlas Network. Além do MBL, destacou-se
também o Movimento Vem Pra Rua (VPR) e o Revoltados Online (ROL) que, juntos,
realizaram grandes manifestações populares de rua, um espaço historicamente ocupado
pelas mobilizações de esquerda.
3 A bancada BBB reúne parlamentares representantes da “Bala” – deputados ligados à Polícia Militar
e às milícias; do “Boi” – grandes proprietários de terra ligados ao agronegócio; e da “Bíblia” – de Igrejas neopentecostais, em sua maioria conservadores reacionários que empunham bandeiras homofóbicas, racistas e misóginas.
Tais organizações constituem-se como aparelhos privados de hegemonia, com a
finalidade de desempenhar um papel estratégico na conformação de uma ideologia e cultura
conservadora reacionária a fim de barrar a organização das massas rumo à garantia de
seus direitos e conquistas sociais e políticas.
Dentre esses fatores conjunturais, cabe destacar a reconfiguração social
brasileira, promovida pelos programas governamentais de transferência de renda, de
erradicação da pobreza, políticas de cotas, elevação real do valor do salário mínimo, o
aumento significativo das taxas de emprego, a expansão do crédito que modificaram a
morfologia das regiões periféricas do país, e foram capazes de elevar os rendimentos e o
padrão de consumo de muitas famílias. Essas medidas possibilitaram a afirmação de que a
classe média brasileira cresceu ou que surgiu “uma nova classe média no pais4”.
Ao nosso ver, não se trata de uma nova classe média, mas sim de uma classe
trabalhadora que passou a ter acesso a bens e consumo que antes não tinha. E, ela própria,
passa a acreditar que faz parte de uma nova classe média que se sente “traída” pelo PT ao
ver que as promessas de melhorias de suas condições de vida estavam ameaçadas, menos
pela profunda crise econômica do capital mundial e mais, muito mais, pela corrupção nos
governos petistas.
A questão é que essa nova classe trabalhadora se beneficiou com as políticas
públicas de corte social e econômica do governo do PT, mas, a classe média não foi
beneficiada com a mesma intensidade.
Assim, quando dizemos que se trata de uma nova classe trabalhadora, consideramos que a novidade não se encontra apenas nos efeitos das políticas sociais e econômicas dos governos petistas, mas também nos dois elementos trazidos pelo neoliberalismo, quais sejam: de um lado, a fragmentação, terceirização e „precarização‟ do trabalho e, de outro, a incorporação à classe trabalhadora de segmentos sociais que, nas formas anteriores do capitalismo, teriam pertencido à classe média (CHAUI, 2016, p. 18-19).
Durante o processo declínio de crescimento econômico do governo do PT,
contradições foram se gestando, o que vai contribuir para consolidação de uma cultura
conservadora reacionário. A classe média se sente ameaçada e deseja manter o seu padrão
de vida e consumo. Como ressalta Chauí (2016), a classe média, que é fragmentada e
instável, vive um sonho e um pesadelo: o sonho de ser parte da classe dominante; e seu
4 O debate em torno do crescimento da classe média brasileira nos últimos anos se deu a partir de
estudos coordenados por Marcelo Neri, presidente do IPEA nos anos de 2012 a 2014. Ele se baseia no chamado “Critério Brasil” e divide a sociedade brasileira em 4 faixas (AB, C, D e E), cuja definição se dá unicamente através da renda, ou seja, poder de consumo, posição na ocupação, investimento em educação, plano de saúde e carteira de trabalho assinada. A discussão sociológica em torno da definição de “classe média” é complexa e exige uma maior aproximação com a ampla literatura sobre a temática.
pesadelo é tornar-se proletarizada. “Para que esse o sonho se realize e o pesadelo não se
concretize, é preciso ordem e segurança. Isso torna a classe média ideologicamente
conservadora e reacionária, e seu papel social e político é assegurar a hegemonia
ideológica da classe dominante” (CHAUÍ, 2016, p. 20). Assim,
Sob o mote da corrupção com forte apelo popular, o conservadorismo reacionário como ideologia e cultura ganhou expressiva força na sociedade, confrontando o partido que havia se constituído e se desenvolvido com o discurso da ética na política penetrou, destacadamente, a classe média e, como já demonstram estudos realizados por grupos de pesquisadores, nas camadas sociais mais vinculadas ao PT, as massas populares, compreendidas em uma composição ampla de sujeitos e segmentos das classes sociais em luta no cotidiano da vida social, cabendo destacar a penetração na juventude. (LOPES, 2018, p. 07).
O conservadorismo, como expressão da luta de classes, está presente na base do
pensamento e do modo de vida das classes dominantes brasileiras, na ideologia dessas
classes, como ocorre em todas as sociedades capitalistas contemporâneas. Mas a atual
vertente reacionária ganhou força e foi fundamental no acirramento da luta de classes no
Brasil (LOPES, 2018).
Se esses são elementos conjurais importantes para esboçar uma análise sobre
fatores que vão consolidando o golpe e a chegada da extrema direita ao poder, do ponto de
vista da análise estrutural é preciso apontar o que Ladislau Dowbor (2018) chama de
“Captura do poder pelo sistema corporativo”. Segundo ele,
A expansão dos lobbies, a compra dos políticos, a invasão do judiciário, o controle dos sistemas de informação da sociedade e a manipulação do ensino acadêmico representam alguns dos instrumentos mais importantes da captura do poder político geral pelas grandes corporações. Mas o conjunto destes instrumentos leva em última instância a um mecanismo mais poderoso que os articula e lhe confere caráter sistêmico: a apropriação dos próprios resultados da atividade econômica, por meio do controle financeiro em pouquíssimas mãos. As dinâmicas de poder político, econômico e cultural estão sendo reorientadas, gerando uma nova configuração que se trata de estudar. É o pano de fundo de uma sociedade em busca de novos caminhos de gestão. (DOWBOR, 2016, p. 01).
Contudo, é importante demarcar que o giro à direita que vamos enfrentar em todo
mundo é uma expressão da atual fase do capitalismo, caracterizada pela flexibilização das
relações de produção e de trabalho sob a hegemonia do capital financeiro.
Em “A era do capital improdutivo”, Dowbor (2017) mostra que hoje, no mundo, 737
grupos controlam 80% do universo corporativo, e que nesse universo 147 grupos controlam
40%, sendo três quartos deles bancos.
Lembremos ainda que os dados do Crédit Suisse para 2016 mostram que oito famílias detêm um patrimônio igual ao da metade mais pobre da população mundial, resultado direto dos mecanismos financeiros, e o 1% mais rico controla mais da metade da riqueza mundial, ou seja, 1% tem mais patrimônio que os 99% de comuns mortais. (DOWBOR, 2017, p. 56).
A década de 1980 deve ser entendida como a era do conservadorismo. A
conclusão que chegamos é de que há um profundo movimento de todo o espectro político,
ideológico e cultural dos países do Ocidente numa inclinação à direita: “eis aí o grande
triunfo da burguesia imperialista. [...] a verdade é que nos cinco anos que vão de 1974 a
1979, tudo mudou dramaticamente na Europa e nos Estados Unidos, impondo-se um
conservadorismo cada vez mais beligerante”. (CUEVA, 1989, p. 32).
O que unifica as classes dominantes brasileiras, que são inteiramente submissas
aos Estados Unidos e aos demais estados imperialistas e que não tem nenhum
compromisso com o desenvolvimento do Brasil, é a manutenção do Brasil como parceiro
dos Estados Unidos, principalmente para garantir a tração de fluxos de capital. A questão
central posta pelos analistas da burguesia é de que o modelo econômico implantado pelo
PT, centrado no desenvolvimento a partir do mercado interno, está atrelado a uma política
de consumo de massa. À burguesia só interessa uma política de redução dos custos de
produção, obter alta taxa de lucros a baixos custos, sem ter que investir em tecnologia, em
altos salários, sem garantir direitos, enfim, o projeto burguês para o Brasil assenta-se em
relações de trabalho ainda pré-capitalistas.
A burguesia aposta na superexploração do trabalho. É também uma burguesia
rentista, que transforma seus ativos e seus bens em capital financeiro para especular nos
bancos e ganhar recursos gigantescos. É preciso atrair capital estrangeiro através de
privatizações, concessões, redução de direitos. A política externa brasileira baseia-se em
preservar a lógica rentista, colocar o desenvolvimento do país atrelado à atração de capitais
internacionais e, sobretudo, fazer com o pacto colonial funcione: o Brasil se acomoda à sua
condição de agroexportador de comodittes agrícolas e minerais e resume-se a importador
de produtos industriais. Configura-se, assim, uma cadeia de interesses da burguesia
agroexportadora e dos bancos.
Para que o Brasil permaneça de joelhos ao império é necessário impedir a chegada
ao poder de grupos desenvolvimentistas comprometidos com a defesa das nossas riquezas.
A atual fase do capitalismo sob a ideologia neoliberal e a hegemonia do capital financeiro
mantém os traços do subdesenvolvimento!
Antes de mais nada é preciso destacar que a Lava Jato abriu caminhos para a
entrega da Petrobrás para os americanos e para o capital internacional. Os Estados Unidos,
no interesse obstinado por controlar as reservas mundiais de petróleo, criam guerras ou
motivam intervenções golpistas na política interna dos países, como fizeram no passado e
como estão fazendo agora com a Venezuela – que detém a maior reserva petrolífera da
América do Sul.
É essa movimentação orgânica do capital que serve de arcabouço para as
movimentações conjunturais que propiciam a emergência de movimentos sociais
intrinsicamente vinculados aos interesses do capital, por ele financiados, e sob sua lógica e
cartilha econômica direcionados. Ir à raiz desse processo é pressuposto para elaborar uma
correta avaliação dos movimentos de juventude, religiosos neopentecostais e de lideranças
que emergem à extrema direita. Se isso, estamos fadados à derrota. Nem subestimar, nem
superestimar o adversário que colocou a roda da história para girar. No caso brasileiro, para
trás...
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mesmo sob um clima de ameaça à liberdade de cátedra, ao financiamento da
pesquisa na área das humanas e sociais, ao ataque ao ensino da Filosofia e da Sociologia,
não nos cabe qualquer recuo. Aprofundar a investigação desse fenômeno é condição
necessária para propor alternativas para seu enfrentamento. O papel dos intelectuais no
campo do pensamento crítico é elaborar reflexões que apontem as características desse
processo, buscando errar o mínimo possível nas caracterizações construídas. O movimento
do capital e sua expressão política – à extrema direita – é um fenômeno mundial, que se
enraíza nos principais países. No Brasil, não será diferente, embora sob condições mais
difíceis, visto que alcançaram o posto de comando da principal economia regional do
continente sul-americano.
REFERÊNCIAS
CHESNAIS, François. O Capital Portador de Juros: Acumulação, Internacionalização, Efeitos Econômicos e Políticos. In: A finança Mundializada. CHESNAIS, François (org). São Paulo, Boitempo, 2005. CHAUI, Marilena. A nova classe trabalhadora brasileira e a ascensão do conservadorismo. In: Por que Gritamos Golpe? Para entender o impeachment e a crise política no Brasil. Ivana Jinkings, Kim Doria, Murilo Cleto (org.). São Paulo: Boitempo, 2016.
CUEVA, Agustín. (Org.) Tempos conservadores. Trad. Fátima Murad. São Paulo: Editora HUCITEC, 1989.
DOWDOR, Ladislau A captura do poder pelo sistema corporativo. http://dowbor.org/2016/06/a-captura-do-poder-pelo-sistema-corporativohtml/ Acesso em 29/04/2018. _________________. A era do capital improdutivo: Por que oito famílias tem mais riqueza do que a metade da população do mundo?São Paulo : Autonomia Literária, 2017. GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere. Volume 3. Maquiavel. Notas sobre Estado e Política. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2002. LOPES, Josefa Batista. Luta de Classe e o Avanço do Conservadorismo Reacionário no Brasil: resistência da classe trabalhadora e popular e a incidência no Serviço Social da ascensão do PT à Presidência da República ao golpe de Estado de 2016 Projeto de Pesquisa apresentado ao CNPQ, 2018. SOLANO, Esther. Crise da democracia e extremismo de direita. Análise Nº 42/2018. Friedrich-Ebert-Stiftung. Escritório Brasil, 2018 MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011.
OS IMPACTOS DA EXPANSÃO DO SETOR ELÉTRICO NA AMAZÔNIA BRASILEIRA: o
fetiche do desenvolvimento sustentável
Mariana Cavalcanti Braz Berger5
RESUMO: Este texto analisa o fetiche do desenvolvimento sustentável e os impactos para os grupos sociais afetados pela destruição capitalista frente aos grandes projetos na Amazônia. A lógica do sistema capitalista é incompatível com o modo de ser e de viver de qualquer perspectiva que conviva com o meio ambiente natural para sobrevivência e manutenção própria. Nesse sentido, problematizamos o conceito de desenvolvimento sustentável, considerando o setor elétrico na região amazônica brasileira, a atuação do Movimento dos Atingidos por Barragens como expressão de resistência e as lutas sociais.
Palavras-Chave: fetichismo, desenvolvimento sustentável, amazônia, hidrelétrica.
ABSTRACT: This work analyses the texture of the sustainable development as a fetish. It considers the impacts of the destruction caused by the implementation of large capitalist projects for the traditional people at Amazon region. The capitalism is incompatible with their customs, whom lives together with nature and uses its resources to survive and self-sustain. Therefore, the concept of sustainable development is addressed, considering the electrical sector at the Brazilian amazon, the social struggle and the resistance of the Movimento dos Atingidos por Barragens.
Keywords: fetichism, sustainable development, amazon, hydroelectric.
1 INTRODUÇÃO
Na Amazônia brasileira, as hidrelétricas têm sido construídas no cerne de um
projeto do grande capital que afirma a promoção do desenvolvimento sustentável. A análise
dos impactos ambiental, social e econômico provocados por esses empreendimentos nos
oportunizam ultrapassar o campo abstrato por onde circula, muitas vezes, o debate sobre o
desenvolvimento sustentável.
5 Doutora em Políticas Públicas (UFMA). E-mail: [email protected]
Diante da propagada necessidade de expansão da geração de energia elétrica para
o desenvolvimento capitalista contemporâneo, analisamos o fetiche6 do desenvolvimento
sustentável na particularidade da Amazônia no projeto nacional de expansão hidrelétrica.
Situamos o conceito oficial de desenvolvimento sustentável com destaque para a
sua vinculação aos interesses da manutenção do capital, considerando-o uma estratégia de
saída para crise (estrutural) capitalista, em seu aspecto ambiental. A Amazônia brasileira
representa um território que possui atrativos para cobiça da exploração e usurpação dos
recursos naturais pelos empreendimentos capitalistas, entre os quais o setor elétrico,
causando drásticos impactos no modo de ser e viver da população brasileira, sobretudo, dos
grupos sociais que sobrevivem desses recursos.
Desse modo, problematizamos a expansão da geração de energia elétrica na
Amazônia, considerando as racionalidades em confronto, os conflitos e as violações de
direitos humanos para a classe trabalhadora.
2 A INCONCILIÁVEL PROTEÇÃO AMBIENTAL NO MODO DE PRODUÇÃO
CAPITALISTA: O FETICHE DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
Em seus estudos, Marx desvendou que as “relações de produção não surge[m] de
„hábitos‟, mas da estrutura interna da economia mercantil. O fetichismo é não apenas um
fenômeno da consciência social, mas da existência social” (RUBIN, 1987, p. 73). O
pensador alemão utilizou a expressão fetichismo ao tratar de um aspecto central do modo
de produção capitalista, segundo o qual as relações sociais que definem esse modo de
produção adquirem um certo caráter fantasmagórico e misterioso, que escapa aos homens
apesar de ter sido produto do agir humano.
Daí o nosso pressuposto de que sob a dominância do capital todas as relações
sociais são fetichizadas, desde a mercadoria. O fetichismo é inerente ao capitalismo e
impregna toda a sociedade, garantindo “a penetração do poder-sobre capitalista no núcleo
do nosso ser, em todos os nossos modos de pensar, em todas as nossas relações com as
outras pessoas” (HOLLOWAY, 2003, p. 80) e transforma essas relações em relações entre
coisas.
Na sociedade capitalista as relações entre as pessoas estabelecem-se pelas coisas
e através das coisas e os recursos naturais adquirem pelo agir humano características
6 O significado do termo fetiche em português remete a magia, feitiço, algo sobrenatural.
sociais específicas e cada vez mais valiosas, tanto quanto todas as coisas de interesse do
mercado. Ao reproduzir o caráter fetichizado e pretensamente neutro da relação do capital
com o meio ambiente natural, as estratégias de enfrentamento impulsionadas pelo grande
capital à questão ambiental estão direcionadas ao propósito de reforçar as suas bases
hegemônicas e converter em seu próprio benefício os efeitos drásticos da produção
capitalista.
Apesar dos ciclos de crises, o capital vem demonstrando “êxito” em conseguir
formas de aumentar a produtividade do trabalho, a qual possui o propósito de produzir mais
mercadorias. Contudo, reconhecendo suas contradições em todas as esferas da vida social,
propõe “paliativos temporários”, como o desenvolvimento sustentável, com o objetivo de
centralizar o debate ambiental em temas superficiais. As saídas propostas à crise ambiental
vão em direção ao que Mészáros (2002, p. 613) denominou de “as falsas dicotomias –
como, por exemplo, „crescimento e colapso catastrófico ou equilíbrio global por meio de
crescimento zero‟ – como resultado de sua incapacidade de questionar o círculo vicioso do
sistema reificado do capital orientado para a riqueza”.
Ao mesmo tempo que se expandiram estudos e discussões a respeito do meio
ambiente natural, emergiu, posterior à Segunda Guerra Mundial, e tornou-se objeto
ideológico do Ocidente o debate sobre desenvolvimento. A concepção de desenvolvimento
capitalista encara a história como uma sucessão de etapas, na qual todos os países devem
seguir as respectivas fases: subdesenvolvidos, em desenvolvimento e desenvolvidos.
A ideia de acrescentar ao substantivo desenvolvimento o adjetivo sustentável
adveio da ideologia hegemônica do capital apresentada pelos países de capitalismo central
e suas organizações internacionais, como se fosse possível conciliar crescimento
econômico com a preservação dos recursos naturais. Na definição oficial estabelecida no
Relatório Nosso Futuro Comum, desenvolvimento sustentável significa o atendimento às
necessidades da atual geração sem comprometer as necessidades das gerações futuras
(WCED, 1987).
A formulação desse conceito é decorrente de um processo no qual o debate
ambiental alcançou visibilidade na agenda pública por meio de reuniões e acordos
internacionais. A crescente percepção da crise ambiental na década de 1960 resultou no
ano de 1968 na criação do Clube de Roma, “uma associação informal e internacional”, a
partir da qual “um grupo formado por „cientistas, educadores, economistas, humanistas,
industriais e funcionários públicos de nível nacional e internacional‟” (SANT‟ANA JÚNIOR;
MUNIZ, 2009, p. 259) produziram um relatório denominado Limites do Crescimento,
publicado quatro anos depois.
O debate levantado pelo Clube de Roma e pela I Conferência Mundial sobre o Meio
Ambiente Humano, realizada no ano de 1972 em Estocolmo, através da Organização das
Nações Unidas (ONU), direcionava para os “principais problemas ambientais” por eles assim
tratados e considerados: industrialização e crescimento urbano e populacional. Eventos
como estes contribuíram para introduzir os assuntos ambientais na agenda de negociações
e para criar instituições, documentos e encontros de proporção mundial voltados à proteção
ambiental, como o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) indicado
pela Conferência Mundial (SILVA, 2010).
No ano de 1983 foi criada a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento (CMMAD)7 que se reuniu quatro anos depois na Noruega. O produto de
maior visibilidade dessa Comissão, presidida na época pela primeira ministra Gro Harlem
Brundtland, foi o Relatório Nosso Futuro Comum, conhecido também como Relatório
Brundtland. Com mais de 30 anos de existência, destacamos a principal demanda do capital
posta no relatório: possibilitar a relação entre desenvolvimento econômico e conservação do
meio ambiente - expandida para toda a humanidade indistintamente - atrelada inclusive à
superação da pobreza nos “países em desenvolvimento”, de forma que proporcione
crescimento contínuo aos “países desenvolvidos”.
Segundo os apologistas do capital, o crescimento populacional e as aglomerações
humanas são as causas da questão ambiental em decorrência do impacto que exercem
sobre os recursos naturais do planeta Terra. O conceito vem gerando um apelo de
enfrentamento à questão ambiental, mas suas raízes estão situadas em um grupo bem
definido e alinhado com o projeto neoliberal e com a defesa das políticas de ajuste
macroeconômico.
Embora desde os anos 1970 tenham surgido negociações em todo o mundo com o
propósito de promover novas modalidades de desenvolvimento, sob ideais ecológicos, como
a proposta do desenvolvimento sustentável, a questão ambiental não galgou as mesmas
ações e estratégias nos diferentes países. Resultando em ideais, teorias, políticas e
atividades diferenciadas, consequentemente, com “soluções” sociais e tecnológicas
variadas.
Assim, enquanto a preocupação ambiental era discutida nos países de capitalismo
central, no Brasil não havia legislação à proteção do meio ambiente e o governo brasileiro
adotava publicamente, como na I Conferência Mundial sobre o Meio Ambiente Humano, o
7 Esta comissão possuía como atribuições preparar a segunda conferência, e recebe na língua inglesa a denominação World Comission Environment and Development (WCED). Sant‟Ana Júnior e Muniz (2009, p. 260) chamam atenção à introdução do vocábulo desenvolvimento no seu título, “sinalizando para a perspectiva de associação entre preocupações ambientais e o desenvolvimento”.
posicionamento de atrair indústrias potencialmente poluidoras. O padrão de
desenvolvimento ignorava a degradação ambiental, reforçando o processo de concentração
de riquezas, que promove nos países de capitalismo periférico um “desenvolvimento que
desenvolve a desigualdade” (GALEANO, 2009, p. 19).
Nesse rumo, o território da Amazônia tem sido objeto de exploração do suposto
desenvolvimento, o qual se manifesta por meio da incompatibilidade entre produção
capitalista e preservação ambiental.
3 A EXPANSÃO DO SETOR ELÉTRICO NA AMAZÔNIA BRASILEIRA: DEMANDA DOS
GRANDES PROJETOS CAPITALISTAS
Na Amazônia brasileira existe uma natureza viva de esplendor que convive com
conflitos, violência, exploração, devastação e miséria. Consideramos importante a
compreensão das contradições dessa realidade para romper com as fantasias a respeito da
região. A Amazônia expressa, portanto, a unidade na diversidade.
A perspectiva de que a Amazônia é um território grandioso e desconhecido remete
historicamente à preocupação com a “segurança nacional”, o que justificaria a necessidade
de ser controlado. Entretanto, nem é o território um vazio nem são os recursos tão
desconhecidos. A respeito dos recursos da floresta existe o conhecimento acumulado por
pesquisadores e pelas populações locais, como a prática dos sistemas agroflorestais e o
conhecimento da medicina que contribui com a elaboração de remédios nos laboratórios. O
denominado saber tradicional subsidia tecnologias avançadas, como a biotecnologia
(GONÇALVES, 2005).
Os conflitos sociais vinculados à apropriação desigual das terras são expressões da
desigualdade política e econômica da sociedade brasileira. Na particularidade da Amazônia,
apesar da propagação da disponibilidade de terras, os conflitos demonstram a ganância, a
histórica distribuição desigual e que existe muita terra para poucos latifundiários.
A Amazônia cumpre função estratégica para expansão do capital, estando
vinculada às dinâmicas externas de possibilidades da acumulação capitalista através da
extração de matérias-primas, seja no contexto de predomínio da empresa seringalista; nos
denominados períodos desenvolvimentistas e desde a falência desse padrão aos dias
atuais. Em todos esses períodos históricos, definida como uma inserção subordinada ao
capital, fortemente determinada pelas demandas exógenas, fundada em uma racionalidade
econômica que se apropria objetivamente da natureza como mercadoria.
Sobre os processos de acumulação primitiva permanente, afirmou Brandão (2010,
p. 48) que, no Brasil “todas as heterogeneidades estruturais e as diversidades produtiva,
urbana, social e ambiental estiveram subordinadas à lógica econômica da valorização fácil e
rápida, isto é, de natureza imediatista, rentista e patrimonialista”. Desse modo,
historicamente o desenvolvimento capitalista brasileiro possui um conjunto de rupturas e
conflitos que marcam um “complexo processo de desenvolvimento desigual de seus
espaços regionais e urbanos” (BRANDÃO, 2010, p. 50).
O padrão de desenvolvimento imposto e efetivado pelo grande capital em
articulação com o Estado e instituições multilaterais de crédito foi reforçado no território
amazônico nos períodos de ditadura empresarial-militar (1964-1985) quando também se
intensificaram os equívocos da noção da Amazônia como “vazio demográfico”, reserva de
recursos e fronteira a ser ocupada. Ruiu a política que dava sustentação às velhas
oligarquias regionais e as populações de trabalhadores tiveram que se defrontar com os
“novos” colonizadores.
Com o discurso de promover o desenvolvimento dessa região, os militares iniciaram
a construção de grandes programas e projetos: a Transamazônica; a Polamazônia
(Programas de Polos Agropecuários e Agrominerais da Amazônia); as hidrelétricas de
Coroacy Nunes (Amapá), Tucuruí (Pará) e Balbina (Amazonas); o complexo mínero
metalúrgico (Programa Grande Carajás8 e Albrás-Alunorte) e o projeto de celulose de Jari.
O Relatório de Estudos de Caso da Comissão Mundial de Barragens sobre a Usina
Hidrelétrica Tucuruí (CMB, 2000, p. 12), indaga: “Como explicar a concepção e a
implantação de rodovias e de uma grande usina hidrelétrica em plena selva, pouco habitada
e conhecida, e baseada em uma economia extrativista?”. As indústrias eletrointensivas de
capital privado subsidiadas pelo governo brasileiro, em associação aos capitais nacionais,
procuraram territórios onde a legislação ambiental fosse frágil ou inexistente, já que as
entidades ambientalistas dos países centrais estavam incorporando a pressão quanto ao
caráter poluidor dessas empresas - também as do ramo de papel e celulose, altamente
consumidoras de água e energia -, o que levou à redefinição da localização dessas plantas
em função dos subsídios dos governos e do restrito rigor da legislação ambiental.
8 A descoberta de minério na Serra do Carajás, em 1967, impulsionou a exploração de jazidas minerais da região (ferro, cobre, manganês, entre outras) e em articulação com o complexo Albrás-Alunorte demandaram a construção da hidrelétrica de Tucuruí, com a missão não declarada de dar suporte para esses dois projetos (MARQUES, 2007).
O discurso oficial que reforçava (e reforça) a necessidade de construção de
hidrelétricas no país alega que há escassez de energia e ganha novas facetas a partir dos
anos 1990, quando o setor elétrico passou por uma reestruturação. O Plano Nacional de
Energia Elétrica aprovado nessa década teve como base a implantação de grandes
hidrelétricas.
Na década seguinte a demanda pela expansão das usinas hidrelétricas identificou,
a partir dos estudos de inventários hidrelétricos das bacias da Região Hidrográfica
Amazônica, “mais de 30 aproveitamentos hidrelétricos planejados nas bacias hidrográficas
dos Rios Tapajós, Teles Pires, Juruena e Jamanxim” (ANA, 2015, p. 19). Esse potencial
hidrelétrico considerado não aproveitado determinou nos planos de expansão que sejam
construídas grandes hidrelétricas na região Amazônica, associadas às hidrelétricas de
pequeno e médio porte nas demais regiões do país.
O Plano Decenal de Expansão de Energia 2024 prevê: “nas bacias da região Norte
e Centro-Oeste, os inventários hidrelétricos apontam projetos importantes que poderão ser
viabilizados nos próximos anos” (BRASIL, 2015, p. 87). Destarte, para a região Norte,
segundo a projeção desse plano, “ocorrerá a maior expansão hidrelétrica, devido à entrada
em operação de grandes empreendimentos” (BRASIL, 2015, p. 86), como “as usinas de
Belo Monte e São Luiz do Tapajós, com 11.233 MW e 8.040 MW de potência total,
respectivamente. Esses dois empreendimentos, somados, correspondem a 68% da
expansão hidrelétrica” (BRASIL, 2015, p. 84).
As construções de usinas hidrelétricas, sobretudo nessa região, são muito
controversas. Becker (2012, p. 785) faz uma indagação, que denomina de questão ética
para a sociedade e para o governo, “será tão grande o crescimento do consumo nos
próximos dez anos a ponto de necessitar de tantas hidrelétricas?”.
A “escolha” da Amazônia para realizar a expansão capitalista não é aleatória, está
de acordo com as diretrizes que o sistema lhe concebe, qual seja: de território propício para
acumulação de capitais (nacional e internacionais). Os seus recursos naturais servem de
alavanca para a instalação de megaprojetos na região, reservando-lhe o lugar na Divisão
Internacional do Trabalho como exportadora, sobretudo, dos setores: pecuária, minério,
energia, madeira e grãos.
Contudo, ocorre causando drásticos impactos para o modo de ser e viver da
população inserida na região com destruição da vida, dos recursos naturais e violação de
direitos humanos.
4 OS IMPACTOS PARA OS GRUPOS SOCIAIS AFETADOS PELAS USINAS
HIDRELÉTRICAS NA AMAZÔNIA BRASILEIRA
A potência das usinas construídas aumentou significativamente, desde o final do
século XIX e início do XX, no mundo e no Brasil. A usina hidrelétrica Itaipu foi superada na
potência gerada pela Central hidrelétrica Três Gargantas no rio Yang-tzé, na China
(BENINCÁ, 2011). Essas obras interrompem o fluxo normal dos rios causando impactos
diversos. Quando o objetivo é transformar a água em energia os conflitos se acirram,
opondo os interesses entre as empresas e as populações locais (a serem expulsas
compulsoriamente) e os recursos naturais.
A complexidade dos projetos se manifesta na grandiosidade da obra, nos impactos
causados e também nos confrontos (de forças desiguais) inseridos na região diante do
antagonismo entre o controle dos recursos e potenciais naturais; a resistência em
permanecer no território e a reivindicação das medidas de compensação e mitigação sofrida
pelos afetados. A resistência a esses empreendimentos se expressa no contraponto e na
necessidade de desmontar a simulação e a perversidade das estratégias da
sustentabilidade, posto que a razão dos empreendedores difere da representada pelos
grupos sociais; fundada em um saber ambiental, questiona a racionalidade do capital
dominante na lógica das empresas.
A racionalidade do capitalismo em sua essência é irracional, já que prescinde dos
ciclos naturais e da vida ao mesmo tempo que, para satisfazer-se, os convertem em forças
destrutivas. Desse modo, Leff (2009, p. 308) argumenta que a racionalidade econômica
impõe restrições à racionalidade ambiental, de que há entre elas uma contradição dialética
e, portanto, é necessário para consolidação dessa a transformação da racionalidade
econômica.
As pessoas são impactadas de formas e em momentos diferentes e em todas as
etapas: antes, durante e depois da construção do empreendimento. Desde o anúncio da
obra9, passando pelos efeitos no decorrer da execução e com o enchimento e operação do
reservatório.
Concordamos com o entendimento do Movimento dos Atingidos por Barragens
(MAB) de que atingidos não são apenas os diretamente afetados pelas obras das
barragens, mas toda a população do país. São considerados impactados diretos e indiretos
9 Grupos e comunidades sentem-se ameaçados pelos projetos de barragens, independente das possibilidades concretas de sua implantação.
os trabalhadores no canteiro de obras, nas instalações funcionais e residenciais, nas
estradas e nas linhas de transmissão, bem como os comerciantes, os professores da escola
inundada pelas águas, os trabalhadores que pagam pelas altas tarifas de energia e que
arcam com os investimentos públicos através do BNDES para essas obras (BENINCÁ,
2011). Em todos os aspectos, atingida é a sociedade brasileira, vez que “todo mundo
consome energia, então afeta todos os brasileiros.
A política energética do Estado brasileiro privilegia as multinacionais, que degradam
o meio ambiente, alteram a vida das pessoas e absorvem grandes somas de lucro, pois a
energia no Brasil para os consumidores individuais é uma das mais caras do mundo10.
A forma como têm sido construídas as hidrelétricas em nosso país resultam
há anos em nefastas violações de direitos humanos. Na luta árdua para abrir as
negociações e serem cumpridos os acordos com as empresas, os atingidos são duramente
violentados e criminalizados ao lutarem por seus direitos. As organizações e movimentos
sociais denunciaram a condenação de militantes do MAB em Tucuruí11:
A hidrelétrica de Tucuruí, construída ainda no regime militar, é um dos símbolos desse modelo e guarda um histórico de repressão à luta dos atingidos e violações de direitos que perduram até hoje, em que aqueles que foram atingidos viram suas condições de vida piorarem e que ainda são obrigados a lutar por direitos básicos.
O modo de produção capitalista desde sua origem sempre combinou processos de
violência entre os métodos da acumulação do capital, expressos por meio do “domínio de
bens públicos, assenhorear-se e apoderar-se de propriedades e patrimônios públicos e
privados em nome do progresso geral da sociedade são práticas regulares em toda a
história do capitalismo” (BRANDÃO, 2010, p. 45). Além disso, afirma Brandão (2010, p. 48),
os métodos de acumulação do capital são diversos, como:
A expropriação e supressão de camponeses, de atividades domésticas e de produções e distribuições solidárias. A geração de uma massa redundante de proletários destituídos de propriedade. Os subterfúrgios e mecanismos de exploração (territorial, de classe, de atributos naturais etc.). O uso do território e de seus recursos minerais, água, energia etc. até exauri-los. A apropriação do espaço urbano (de sua intra e interurbanidade) como locus privilegiado da acumulação espoliativa. Estes e muitos outros são mecanismos permanentes de expropriação, sustentados muitas vezes por Estados e organismos internacionais.
10 Segundo informações disponíveis em: http://www.valor.com.br/empresas/4340030/brasil-ocupa-5-lugar-em-ranking-internacional-de-tarifa-de-energia 11
Disponível em: http://www.sddh.org.br/sddh/index.php/item/1284-nota-das-organizações-e-movimentos-sociais-contra-a-condenação-de-militantes-do-mab-em-tucuruí-pa
Na particularidade dos atingidos por barragens que sofrem esses processos de
violência, existem muitas denúncias por eles realizadas, no entanto, são quase sempre
noticiados ideologicamente como “baderneiros”, “desocupados”, “radicais”, os quais têm sido
criminalizados. Enquanto expressão do movimento concreto, destaca-se uma outra
ocorrência em Tucuruí, que retrata a violência cometida contra a população, quando em
2009 foram presos dezoito militantes do MAB, como se tivessem cometido crimes. O ato
político no qual participavam era de protesto diante dos acordos não cumpridos com a
Eletronorte e, como tal, não poderiam ser enquadrados como presos comuns (BENINCÁ,
2011).
Os empreendedores do setor com interesse em construir barragens contratam
consultorias para elaborar o Estudo de Impacto Ambiental e o Relatório de Impacto
Ambiental, para os quais realizam levantamento físico e biótico do território e das espécies,
definem as áreas alagadas e quem é ou não atingido. Também constam os valores irrisórios
das indenizações e a forma de “pagamento”, se em dinheiro, carta de crédito ou
reassentamento. A estratégia das empresas consiste em propor negociações com as
famílias ou com as comunidades afetadas, assim, tendem a fracionar as suas contestações
com o objetivo de “desmobilizar, neutralizar ou extirpar as resistências” (BENINCÁ, 2011, p.
62).
As ações executadas pelos empreendimentos ocorrem no sentido de minimização
dos impactos. Por outro lado, reforçam a negligência do poder público no âmbito dos
investimentos sociais, alimentando o jogo de interesses entre governo e empresas privadas
(CAMARGO; HASHIZUME, 2008). Os governantes possuem interesses nessas grandes
obras por causa do pagamento dos royalties, com a destinação de elevadas cifras para
prefeituras, governos estaduais e federal.
A construção dos empreendimentos, em todas as etapas, implica várias
transformações para a região, como: a grande demanda por moradias; a pressão sobre o
mercado imobiliário; serviços públicos saturados; confrontos entre a população local e os
migrantes; violência contra os indígenas; destruição do patrimônio cultural e arqueológico;
desgaste dos recursos naturais (fauna e flora); perda na qualidade de vida da população,
entre outros.
Embora estejam revestidos da proposta de impulsionar o desenvolvimento na
região Amazônica, a preocupação por parte dos empreendedores e do Estado tem sido
inexpressiva com relação às necessidades básicas da população, pois desconsideram os
impactos sociais e ambientais.
Nas regiões onde foram construídas as barragens aumentou o número de pessoas
vivendo em condições precárias. A opção por esse projeto hidroenergético resulta em
agravantes das expressões da questão social acirradas pelo conflito capital e trabalho, uma
vez que as famílias ficam sem trabalho, terra, comida e um local para plantar. Essa
realidade demonstra a incompatibilidade com o discurso governamental de combate à
pobreza e a proteção ao meio ambiente natural.
O Relatório da Plataforma Dhesca Brasil denunciou no ano de 2008 as seguintes
violações de direitos humanos no complexo do Rio Madeira, em Rondônia:
Exclusão da bacia do Madeira do âmbito dos estudos sobre impactos ambientais e violação do princípio da autodeterminação dos povos e soberania dos países; Caracterização insatisfatória sobre necessidade do empreendimento e ausência de análise sobre alternativas de menor impacto; Ofensa aos princípios democráticos e ao direito humano à informação e participação; Violação dos Direitos dos Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais; Ofensa ao direito humano ao meio ambiente equilibrado e à proteção à biodiversidade; Ofensa ao Direito Humano à Saúde: risco de contaminação por mercúrio; proliferação da malária; ausência de estudos sobre qualidade da água; Ofensa ao direito à alimentação segura, trabalho, acesso à terra e moradia adequada; Agressão ao Patrimônio histórico-arquitetônico (ZAGALLO; LISBOA, 2011, p. 2).
A revolta ocorrida na hidrelétrica Jirau (Rondônia), em 2011, imprimiu maior
visibilidade às violações de direitos humanos, as quais se aprofundaram nos últimos anos
devido aos impactos com a chegada dos empreendimentos hidrelétricos. Os bens públicos
pertencentes ao país, a exemplo dos rios, estão sendo privatizados para acumulação da
riqueza em benefício de poucos. Por outro lado, para os que dependem dessas águas para
sobreviver, restam os impactos causados pelos Projetos de Grande Escala.
Resulta da política energética do governo brasileiro, que prioriza a fonte
hidroenergética na Amazônia, o atendimento aos interesses do capital ao preço da
destruição da vida biótica e do modo de ser e viver da população, sobrepondo-se à
dignidade humana e criminalizando os movimentos de resistência dos trabalhadores e a luta
social.
Embora a luta dos grupos sociais, constituídas em grande parte por populações
ribeirinhas, agricultores, indígenas, pescadores, entre outros, seja caracterizada pelo
governo brasileiro e empreiteiras como obstáculo ao desenvolvimento, possui um sentido
que transcende a condição de violação e degradação, às quais estão diretamente
submetidos, sendo uma luta de toda a sociedade brasileira. Resistência e luta que cobra
dignidade humana e questiona as injustiças e desigualdades; a exploração do meio
ambiente e a racionalidade econômica.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Amazônia ocupa posição de destaque na Divisão Internacional do Trabalho a
partir do término da Segunda Guerra Mundial, como fornecedora de bens primários, no
contexto em que o Brasil aderiu ao projeto capitalista sob a ideologia desenvolvimentista. O
incentivo à industrialização consistia em uma das facetas do desenvolvimentismo,
considerado como meio de superação do subdesenvolvimento. No entanto, no projeto de
industrialização estava delimitada a posição dos países periféricos, produtores de bens de
consumo duráveis e com uma força de trabalho de baixo custo para agilizar a acumulação.
Ademais, visava atender aos interesses da dependente burguesia nacional e internacional,
adquirindo espaço para o projeto capitalista imperialista.
A lógica que prioriza a expansão da geração de energia elétrica na Amazônia tem
demonstrado o quanto as condições de vida dos grupos sociais são afetadas e
secundarizadas frente ao interesse primordial de concretizar o domínio do capital privado
sobre uma questão que é estratégica, que é a questão da energia. Ainda mais sob o
discurso de defesa do meio ambiente, no que consiste o fetiche do desenvolvimento
sustentável.
Desse modo, consideramos que o desvelamento do fetiche do desenvolvimento
sustentável contribui para ruptura com a lógica produtivista; com os imperativos do mercado
em proporção mundial e com a possibilidade de conciliação da preservação do meio
ambiente em um sistema dominado pela ganância e lucro.
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A CULTURA PROFISSIONAL CRÍTICA EM SERVIÇO SOCIAL NA SOCIEDADE
BRASILEIRA SOB O AVANÇO DO CONSERVADORISMO REACIONÁRIO: as tensões e
desafios entre o horizonte do Estado de Bem-Estar e a necessidade histórica da
emancipação humana
Marina Maciel Abreu12
RESUMO: Aborda-se a formação da cultura profissional crítica em Serviço Social no Brasil, no âmbito do projeto profissional crítico desde o final dos anos 1970, hoje inflexionado pelo aprofundamento da questão social e fortalecimento do conservadorismo reacionário na sociedade e na profissão. Destacam-se elementos histórico-conceituais a partir do movimento de reconceituação da profissão no país; e apontam-se duas direções societárias desse processo: o horizonte do Estado de Bem-Estar e a necessidade histórica da emancipação humana. Indicam-se tensões e desafios pertinentes ao avanço da cultura profissional crítica emancipatória tendo a intervenção profissional como dimensão definidora.
Palavras-chave: cultura profissional do Serviço Social, emancipação humana, conservadorismo reacionário, educação popular.
ABSTRACT: It addresses the formation of critical professional culture in Social Work in Brazil within the framework of critical professional project since the late 1970s, today inflexed by the deepening of the social question and strengthening of reactionary conservatism in society and profession. Historical-conceptual elements stand out from the movement of reconceptualization of the profession in the country; and two societal directions of this process are pointed out: the horizon of the Welfare State and the historical necessity of human emancipation. It is indicated tensions and challenges pertinent to the advancement of the emancipatory critical professional culture with professional intervention as defining dimension.
Keywords: professional culture, social work, human emancipation, reactionary conservatism.
1 INTRODUÇÃO
A pretensão neste texto é expor elementos de problematização da cultura
profissional crítica em Serviço Social, no Brasil, no quadro de tensões que se adensam com
12
Doutora em Serviço Social (PUC/SP). E-mail: [email protected]
o agravamento da questão social desde os anos 1990 e avanço do conservadorismo
reacionário na sociedade e na profissão, que inflexionam a intervenção profissional no
mercado de trabalho e demais dimensões constitutivas da profissão, como totalidade
histórica.
Parte-se de que a intervenção profissional, “dimensão primeira definidora da
natureza e identidade da profissão” (LOPES,ABREU,CARDOSO,2016), e, portanto a
principal referência da formação da cultura profissional, sofre na atualidade profundas
inflexões no mercado de trabalho, reconfigurado pelas transformações societárias sob a
orientação do neoliberalismo, como projeto econômico e como cultura – sociabilidade13
(GRAMSCI,2001) -, hegemonizado, pelo capital financeiro mundializado. São
transformações provocadas principalmente pelas estratégias de “flexibilização” das relações
de produção e trabalho, que impõem a retirada de direitos e acentuam a repressão e a
violência do controle político-ideológico sobre o trabalho e toda a sociedade. Trata-se de
estratégias, mediadas pelo Estado que agravam a questão social, com o aprofundamento
das desigualdades cujo enfrentamento via políticas sociais privilegia a assistência como
principal estratégia e mecanismo de controle político-ideológico da pobreza, hoje principal
espaço de intervenção do Serviço Social. Essas contradições tendem a ser ocultadas
ideologicamente e impõem mudanças culturais, mediante processos interventivos no campo
das práticas educativas nos quais se insere o Serviço Social. Forja-se, assim, uma
conjuntura econômica, política e cultural adversa ao avanço da intervenção profissional sob
a orientação do projeto profissional crítico do Serviço Social - o projeto ético-político
profissional - que se explicita e ganha hegemonia desde final dos anos 1970, em
permanente busca de vinculação às lutas democráticas e emancipatórias das classes
subalternas.
No âmbito da construção do projeto ético-político profissional - impulsionado em
sua origem pelo movimento organizativo e lutas das classes subalternas/trabalhadora, e
outros setores progressistas da sociedade, por melhorias das condições de vida e
democratização das relações entre Estado e sociedade civil, na luta contra a ditadura civil-
militar (1964-1985), assim como pelo avanço do pensamento crítico marxista nas ciências
sociais e a repercussão de processos revolucionários no continente latino-americano em
que a vitória da revolução cubana em 1959 é a maior expressão -, criaram-se,
contraditoriamente, condições objetivas e subjetivas da formação da cultura profissional
13
Cultura como sociabilidade, ou seja, modo de pensar e agir dos sujeitos em suas inserções nas relações sociais sob um determinado padrão de produção e trabalho, enquanto elemento integrante da luta entre hegemonias políticas, como se pode entender com base nas lições gramscianas. (GRAMSCI,2001).
crítica. Como se sabe, esse projeto emerge no bojo do Movimento de Reconceituação do
Serviço Social na América Latina - deflagrado na segunda metade dos anos 1960 como
expressão do “despertar para questões cruciais no exercício da profissão na sociedades de
capitalismo dependente profundamente desiguais, como as sociedades latino-americanas”
(LOPES, 2016,p.213). Sintetiza um conjunto de esforços coletivos na construção de uma
alternativa profissional crítica adequada às demandas particulares no continente, mediante a
qual esses profissionais adquirem condições para participar de forma consciente na história
do mundo, da profissão e de si mesmo - base da constituição da consciência e da cultura
profissional crítica.
Os recuos democráticos e civilizatórios que marcam as primeiras décadas do
século XXI em todo o mundo, aprofundados no Brasil a partir de 2016 com o golpe
parlamentar-jurídico-midiático através do impeachment da Presidente Dilma Rousseff (2015-
2016) e o atual governo de extrema direita de Jair Bolsonaro, eleito em 2018, impõem
retrocessos profissionais mediados pelas inflexões que ocorrem em dois planos: nas bases
matérias e subjetivas da produção e reprodução social, que fragmentam e enfraquecem a
organização e lutas das classes subalternas enquanto sujeitos da emancipação; no
recrudescimento da ideologia conservadora neoliberal, como pensamento único,
disseminado em todas as instâncias da vida social e o ataque ferrenho ao pensamento
crítico marxista com ênfase à análise gramsciana, cuja atualidade é inegável para aqueles
que se empenharam e se empenham “na crítica radical da sociedade burguesa e nos
processos práticos-políticos de libertação nacional, de luta anti-imperialista e construção
socialista.” (NETTO, 2012,p.7).
Nestas indicações sobressaem-se dois eixos, a partir dos quais este texto está
estruturado. O primeiro eixo traz elementos histórico-conceituais configuradores da
formação da cultura profissional crítica no Serviço Social como questão na atual conjuntura,
cujas medições apontam para duas direções societárias que consubstanciam tendências da
cultura profissional14, identificadas entre o horizonte do Estado de bem-estar, portanto, no
limite da emancipação política; e, a necessidade histórica da emancipação humana –
culminância de uma nova ordem societária alternativa, contraposta à ordem do capital. O
segundo eixo recoloca atuais condições da intervenção profissional no mercado de trabalho,
cuja ênfase na assistência, em detrimento da saúde e previdência que formam o tripé do
tardio sistema de seguridade brasileiro -, tende a reforçar a individualização e a
despolitização da questão social e dos sujeitos envolvidos em contraposição à teleologia da
14 Em trabalhos anteriores (ABREU,2018; LOPES &ABREU, 2018) discute-se as tendências da
cultura profissional, demarcadas entre a cultura da assistência, do direito e a cultura crítica emancipatória.
intervenção profissional orientada pelos valores ético-políticos orientadores do código de
ética profissional de 1993 que aponta para a perspectiva emancipatória.
2 CULTURA PROFISSIONAL NO SERVIÇO SOCIAL: elementos histórico-conceituais
O nexo ideologia/política/economia, núcleo formador da cultura/sociabilidade se
impõe como eixo importante para pensar a cultura profissional em Serviço Social, cuja
intervenção no enfrentamento de sequelas da questão social, como dito, é mediada e realiza
mediações no movimento contraditório das classes sociais na formação da cultura.
Seguindo esse ponto de vista, a intervenção profissional desde sua origem
constitui-se como atividade de natureza educativa vinculada às estratégias de controle
político-ideológico pela via da persuasão tendo em vista a difusão/inculcação ideológica por
meio de ações de ordem material e ideológica em espaços de vida e trabalho de segmentos
das classes subalternas diretamente envolvidos nos processos interventivos e, assim, incide
na reprodução física e subjetiva desses segmentos e na própria constituição do Serviço
Social como profissão. A intervenção profissional inscreve-se, portanto, no campo das
práticas sociais formadoras de subjetividades e condutas individuais e coletivas, na luta de
hegemonias políticas, na medida em que, como acentua Gramsci (1999,p.399), “toda
relação de „hegemonia‟‟ é necessariamente um relação pedagógica(...)”.
A constituição da cultura profissional crítica em Serviço Social, reafirma-se, tem
como referência histórica a explicitação e conquista da hegemonia do projeto profissional
crítico no final dos anos 1970, que representa o acúmulo do debate acadêmico-profissional
e da articulação de forças dos assistentes sociais de todo pais, mobilizados incialmente pela
Associação Nacional de Assistentes Sociais (ANAS), Sindicato Nacional, antes Comissão
Executiva Nacional de Articulação das Entidades Sindicais e Pré-Sindicais (CENEAS) no
impulso do movimento do novo sindicalismo de cunho classista e anticapitalista dos
trabalhadores brasileiros e de movimentos organizativos urbanos e rurais que eclodem
naquela conjuntura. Nos anos 1980 esse processo avança com a criação do Partido dos
Trabalhadores (PT), da Central Única dos Trabalhadores (CUT), do Movimento dos
Trabalhadores sem Terra (MST), a mobilização pelas eleições diretas para Presidente da
República e o processo constituinte que culmina com a promulgação da Constituição
Federal, em 1988, em que muitas reivindicações da classe trabalhadora foram incorporadas
como direitos15. Apontava na sociedade brasileira “a perspectiva de construção de uma nova
sociedade, no bojo do processo de busca de resposta pelas classes subalternas aos
problemas históricos do país, que para muitos militantes e estudiosos, colocara-se como
possibilidade concreta” (ABREU; LOPES,2004); São processos que representaram fortes
referências no movimento de autocrítica e construção do projeto profissional crítico do
Serviço Social no Brasil e da cultura profissional.
Dois eventos simbolizam esse momento de ruptura com projeto profissional
tradicional conservador sob a influência e dependência teórica do Serviço Social norte-
americano. São eles: O III Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais (IIICBAS/1979) é
conhecido como o “Congresso da Virada; e a XXI Convenção da Associação Brasileira de
Ensino do Serviço Social, então ABESS, hoje ABEPSS. Esses processos marcam o
redirecionamento do movimento de reconceituação no país, antes, em primeiro momento,
atrelado ao tecnicismo para atender demandas do projeto de modernização conservadora
da ditadura militar, portanto em direção contrária a formas radicalizadas de ruptura ao
projeto tradicional como se encaminhavam em outros países do continente, entre os quais
são exemplares as experiências na Argentina, Uruguai e Chile. Nesses países o processo
de crítica e renovação apontava, como assinala Acosta (2014) para mudanças radicais16 das
bases de sustentação sócio-ocupacional (ou seja, o lugar na divisão sociotécnica do trabalho), assim como também os supostos teóricos e meta-teóricos nos quais se fundamentava o Serviço Social até esse momento (que então passava a ser chamado de „tradicional‟). Esta pretensão de refundar, sobre novas bases, o Serviço Social, expressou-se até na mudança do nome do Serviço Social, que passou a ser chamado de „Trabalho Social‟. (ACOSTA,2014,p.182).
A direção ético-política do projeto profissional crítico brasileiro encontra-se
sintetizada no Código de ética profissional/1993, cujos princípios fundamentais indicam
balizamentos importantes para a análise da cultura profissional crítica a partir da
15
Tais processos apontavam na sociedade brasileira “a perspectiva de construção de uma nova sociedade, no bojo do processo de busca de resposta pelas classes subalternas aos problemas históricos do país, que para muitos militantes e estudiosos, colocara-se como possibilidade concreta” (ABREU; LOPES,2004); portanto, em sentido contrário à tendência regressiva do movimento operário nos países centrais, duramente atingidos pelo aprofundamento da crise mundial do sistema capitalista 16
Essa tendência de renovação profissional Acosta (2014) com base em Neto (2011) fora interrompida “violentamente pela emergência das ditaduras militares dos anos setenta nos países onde o processo de mobilização político-social estava mais avançado (Chile, Argentina, Uruguai), fazendo parte de uma estratégia contrarrevolucionária mais ampla promovida pelos EUA. O caso do Brasil é muito diferenciado, em razão de a ditadura ter começado precocemente (em meados dos anos sessenta), tendo se constituído em um ensaio da solução “contrarrevolucionária preventiva”, por parte do imperialismo dos EUA, para enfrentar o processo de crescente mobilização social. (NETTO, 2011).
intervenção, dentre os quais o destaque para os seguintes: “reconhecimento da liberdade
como valor ético central e das demandas políticas a ele inerentes- autonomia, emancipação
e plena expansão dos indivíduos sociais”; “defesa do aprofundamento da democracia,
enquanto socialização da participação política e da riqueza socialmente produzida”;
“posicionamento em favor da equidade e justiça social, que assegure universalidade de
acesso aos bens e serviços relativos aos programas e políticas sociais, como a gestão
democrática”; “opção por um projeto profissional vinculado ao processo de construção de
uma nova ordem societária, sem dominação-exploração de classe, etnia e gênero.” (CFESS,
2001). Esses princípios desdobram a questão da emancipação em dois planos distintos: em
relação à conquista da emancipação política e à conquista da emancipação humana. Tem-
se que a emancipação política no limite da conquista dos direitos, não é para Marx “a última
forma de emancipação humana, mas é a última forma de emancipação (...) no interior da
sociedade mundial, até aqui” (MARX,2010,p. 41), corresponde à última forma da
emancipação no marco histórico da democracia burguesa, cuja expressão mais avançada é
o padrão societário do Estado de Bem-Estar, sustentado no fordismo/keynesianismo, no pós
Segunda Guerra Mundial, vigorou durante os chamados 30 anos “gloriosos” (1945/1975),
quando se esgotam as condições históricas de sustentação desse padrão. Segundo Marx
(2010, p.54), toda a emancipação política é “a redução do homem, por um lado, a membro
da sociedade civil, a indivíduo egoísta independente; por outro lado, o cidadão, pessoa
moral.” Nessa condição, a classe trabalhadora em seu processo de organização e luta
contraposta a ordem do capital pode constituir-se força social e política e almejar a
emancipação humana, como projeto de superação das condições materiais e subjetivas da
ordem do capital e instauração da uma nova ordem societária, na qual será consumada a
emancipação humana
Só quando o homem individual real retoma em si o cidadão abstrato e, como homem individual – na sua vida empírica, no seu trabalho individual, nas suas relações individuais -, se tornou ser genérico; só quando o homem reconheceu e organizou as suas „forces propres‟ como forças sociais, e, portanto, não separa mais de si a força social na figura da força política–[é] só então [que] está consumada a emancipação humana.(MARX, 2010,p.54).
Em tese tais perspectivas representam direções do projeto ético político profissional
e refletem processos concretos em curso na sociedade, traduzindo compromissos e horizontes
diferenciados da intervenção profissional no movimento histórico. Uma direção demarca os
compromissos profissionais com as lutas das classes subalternas no âmbito da defesa dos
direitos civis, sociais e políticos, da democracia e justiça social, atualmente, como dito, centradas
na luta pelo direito a assistência, tardiamente no horizonte a experiência do chamado Estado de
Bem-Estar, muitas vezes, apresentada como o fim último da intervenção profissional. A outra
direção afirma o compromisso profissional com o fortalecimento das lutas das classes subalternas
na perspectiva da superação da ordem burguesa e construção de uma nova sociedade e
conquista da emancipação humana, que para alguns intelectuais, contrariando a direção apontada
no código de ética profissional, significa o superdimensionamento da função histórica da profissão
na sociedade.
Entretanto, na conjuntura atual, o agravamento da questão social com o
aprofundamento das desigualdades, como dito, tendo a assistência como principal
estratégia de enfrentamento e mecanismo de controle político-ideológico da pobreza, e
principal espaço de intervenção do Serviço Social, justifica-se a preocupação de pesquisa
sobre a formação da consciência e cultura política dos assistentes sociais a partir dessas
direções, nas condições atuais da intervenção profissional.
3 INDICAÇÕES DE TENSÕES E DESAFIOS DA CULTURA PROFISSIONAL CRÍTICA
EMANCIPATÓRIA: a intervenção como referência de análise
A cultura profissional gesta-se no cotidiano contraditório da intervenção profissional
no emaranhado de uma multiplicidade de situações práticas mediante as quais o/a
assistente social se move no campo minado da política e da ideologia na concretização de
diversos e contraditórios projetos interventivos voltados ao atendimento de necessidades
das classes sociais, embora o público alvo seja sempre amplos e crescentes segmentos
pauperizados da classe subalterna. Nesses projetos o/a assistente social se insere pela
mediação do mercado de trabalho que expressa
necessidades sociais, interesses e condições de trabalho, historicamente determinadas, das instituições empregadoras que orientam o exercício profissional dos assistentes sociais como seus funcionários, sejam essas instituições públicas privadas, de natureza mista, ou as chamadas ONGs.” (LOPES, ABREU,2018).
A formação da cultura profissional crítica como já indicado no item anterior é
impulsionada por dois vetores que se entrecruzam e se confundem na dinâmica da intervenção
profissional entre a luta pela defesa, garantia e ampliação de direitos e a perspectiva da
construção de nova e superior cultura no processo de superação da ordem capitalista fundada na
necessidade histórica da emancipação humana. Expressam a capacidade do profissional de
inserção crítica nos processos concretos enquanto intelectuais profissionais e a consciência de
classe como trabalhadores/as assalariados, explorados.
A partir dessas direções, demarcam-se tendências da cultura profissional crítica entre
a cultura profissional do direito no Serviço Social que tem suas bases e ganha força no meio
profissional com a participação ativa dos assistentes sociais no processo constituinte e na
luta pela garantia de direitos conquistados na CF/1988, com ênfase nos valores de justiça
social e democracia liberal; e a cultura profissional crítica na perspectiva da emancipatória,
com ênfase nos processos concretos de organização, luta e resistência da classe
trabalhadora, como sujeito da emancipação.
Sem dúvidas, a primeira tendência se sobressai desde a Constituição/1988, com o
fortalecimento do ideário da justiça social e da democracia participativa, e o avanço dos
desdobramentos legais-institucionais e jurídicos na garantia dos direitos conquistados, que
contribuem para fortalecer e ampliar a intervenção profissional no campo sócio-jurídico e
também consubstanciam o discurso e práticas de defesa do direito e da cidadania, nas
diferentes áreas de atuação. Essa tendência deriva do processo histórico da profissão no
país, que vem se consolidando nas últimas quatro décadas, em vinculação à luta dos
trabalhadores por direitos e liberdades democráticas, marco histórico no movimento de
construção do projeto profissional crítico (este projeto, embora eivado de polêmicas, ainda
que tenha a assistência em seu núcleo central, vincula a profissão aos interesses e lutas da
classe trabalhadora e à necessidade histórica de emancipação das classes, na
especificidade da sociedade brasileira. (LOPES&ABREU,2018). Assim, contraditoriamente,
embora, as lutas no âmbito do direito à seguridade, com centralidade na luta ao direito à
assistência em um contexto de ampliação da pobreza, sejam legítimas e necessárias frente
ao aprofundamento das desigualdades sociais, mantém a reprodução dos trabalhadores
fora das relações salariais e reforça a dependência material e a submissão político-
ideológica em relação às condições de subsistência física. Contribui, assim, para a produção
de um modo de vida sustentado na exploração e na dominação de classes que favorece a
reatualização da histórica cultura profissional da assistência – leito da construção da
identidade tradicional do Serviço Social. Essas questões tensionam a formação da
identidade profissional como profissionais críticos, que tende a se manter arraigada a uma
consciência do que é possível na sociedade capitalista, ou seja, uma maneira de ser “de
homens reprimidos pelas condições alienadas e reificadas da sociedade de mercado”.
(MÉSZÁROS,2002,p.1008).
A cultura profissional da assistência, está assim imbrica-se na cultura profissional
do direito e transmuta a ordem de prioridade dos termos, na medida em que a luta pelo
direito se converte em luta pela assistência como direito. Tende a ser superdimensionada
no âmbito profissional por força da sua centralidade no sistema de seguridade e ênfase da
atuação do assistente social em relação aos demais profissionais que integram as de
implementação do sistema único de assistência social (SUAS). Nessa tendência prevalece a
noção do pobre em detrimento do sujeito trabalhador, que depende da política de assistência para
sua reprodução e de sua família. A assistência a partir da Constituição Federal de 1988, como
dito, institucionaliza-se como direito social, a ser garantido a “todos que dela necessitar”
(BRASIL,CF/1988) e como “dever do Estado e da sociedade.” (BRASIL,LOAS,1993), ao
mesmo tempo em que, sob tal demarcação, dissimuladamente, reatualiza-se e se fortalece
o assistencialismo, pela mediação da sociedade civil; embora metamorfoseado em direito,
só pode ser assistencialismo, robustecido pela reiterada “filantropia
estatal.”(OLIVEIRA,1998).
A necessidade histórica da emancipação das classes sociais, como missão
histórica das classes subalternas, trabalhadora, requisita o fortalecimento de uma pedagogia
própria - de resistência e emancipatória – necessária na formação política e ideológica dessa
classe na formação de uma nova superior cultura, em que a educação popular vem sendo
retomada como estratégia. Entretanto, há que se mencionar, como acentua Oliveira (2003),
o enfraquecimento dessas classes enquanto como força política e social na medida em que
foi erodida pela reestruturação produtiva e pelo trabalho abstrato-virtual, ao mesmo tempo
em que perde força a perspectiva emancipatória dos trabalhadores e toda a humanidade
com a derrocada das experiências socialista no século XX, notadamente a da União
Soviética no final dos anos 1980 e avançam as forças conservadoras e do retrocesso em
todo o mundo.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A discussão sobre a formação de cultura profissional remete a luta pela
emancipação, embora um eixo central polêmico no âmbito do projeto ético político
profissional, ainda está a ser aprofundado a partir do pensamento crítico marxista, como
necessidade da construção de estratégias de resistências na sustentação desse projeto no
enfrentamento do avanço do conservadorismo na sociedade e na profissão.
Há que se considerar, portanto, que a formação da cultura profissional crítica é um
processo complexo que reflete as contradições e a necessidade de resistência e
sustentação do projeto profissional crítico nucleado na intervenção na relação orgânica com
a formação e demais dimensões constitutivas da profissão como totalidade histórica: a
produção de conhecimento e a organização política (LOPES, ABREU, CARDOSO, 2016);
processo que traduz os nexos político-ideológicos que a profissão estabelece com os
movimentos contraditórios das classes sociais na formação da cultura como parte da luta
pela hegemonia.
REFERÊNCIAS
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