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Controle de Edificações

Importante atribuição do Poder Executivo Municipal na consecução do

cumprimento das funções sociais da propriedade urbana e da cidade, propiciando um

desenvolvimento urbano equilibrado, socialmente justo, e sustentável do ponto de vista

econômico e ambiental, bem como evitando e corrigindo distorções no crescimento

urbano e seus efeitos negativos para o meio ambiente e para a qualidade de vida das

pessoas, é o controle das construções.

Quanto aos aspectos estruturais e funcionais, busca-se garantir que as

edificações sejam seguras e salubres para as pessoas e para o meio ambiente e

estruturalmente idôneas à função para qual se destina.

No que se refere à dimensão urbanística, esse controle busca assegurar que as

novas edificações se integrem em harmonia com a cidade, concretizando

progressivamente o plano de desenvolvimento urbano que foi democraticamente

elaborado.

Assim, o controle administrativo das edificações urbanas é um instrumento de

tutela preventiva de direitos difusos, sociais e individuais indisponíveis por meio do qual

se verifica se há observância às regras de ordenação de uso e ocupação do solo, editadas

para traduzir o interesse público quanto à melhor destinação dos espaços, levando em

conta as condicionantes físico-ambientais, as características socioeconômicas locais e as

aspirações de desenvolvimento do Município.

Para um eficaz exercício desse poder-dever do Município, impõe-se, no plano

institucional, a estruturação de um processo administrativo de licenciamento e

acompanhamento de construções, ampliações, reformas e demolições bem como ações

de vigilância contra obras clandestinas.

Por serem atividades que intervêm com a ordenação urbana, qualquer

construção, ampliação, reforma ou demolição precisa ser previamente licenciada pelo

Poder Público Municipal. A licença é comumente chamada de “alvará” de construção,

reforma, ampliação ou demolição.

Grandes empreendimentos/atividades como shopping centers, grandes escolas e

universidades, empreendimentos habitacionais de vulto, rodovias urbanas, loteamentos,

condomínios fechados, atividades geradoras de poluição sonora ou que emitam ondas

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eletromagnéticas e/ou gases poluentes, construções que causem impacto visual

significativo na paisagem urbana, por serem potencialmente causadoras de significativa

degradação do meio ambiente e da qualidade de vida urbana, precisam previamente

submeter a estudo de impactos no ambiente urbano, especialmente na

vizinhança(Constituição Federal, artigo 225, § 1º, IV; Lei da Política Nacional de Meio

Ambiente - Lei Nacional 6.938/1981, artigo 8º, II; Estatuto das Cidades - Lei Nacional

10.257/2001, artigo 4º, VI e artigos 36 e 37).

Trata-se de etapa do procedimento de licenciamento de empreendimento e/ou

atividade na qual se avaliarão os impactos positivos e negativos do empreendimento ou

atividade na qualidade de vida da coletividade que reside na vizinhança, abrangendo, no

mínimo, os aspectos adensamento populacional, equipamentos urbanos e comunitários,

uso e ocupação do solo, valorização imobiliária, geração de tráfego e demanda por

transporte público, ventilação e iluminação, paisagem urbana e patrimônio natural e

cultural.

Enfim, os Estudos de Impacto de Vizinhança e os Estudos de Impactos Ambientais

e seus respectivos Relatórios (EIV e EIA-RIMA) são instrumentos para se analisar se a

edificação projetada e/ou a atividade que nela se desenvolverá poderá causar efeitos

nocivos à dinâmica da cidade, como, por exemplo, adensamento excessivo além da

capacidade de suporte da infraestrutura e equipamentos, aumento de tráfego, emissão de

ruídos e/ou de gases poluentes, etc. Emerge daí o valor desses instrumentos na tutela

preventiva dos direitos à saúde, ao meio ambiente e à cidade, especialmente em suas

dimensões de direito à mobilidade urbana, saneamento ambiental, moradia e trabalho.

Mesmo previamente licenciadas, as obras urbanas precisam ser fiscalizadas

durante a sua execução, para assegurar-se de sua conformidade ao alvará expedido. O

fiscal que inspecioná-las lavrará termo de ocorrência das irregularidades que constatar,

encaminhando-o à autoridade superior, a qual, se for o caso, expedirá auto de infração e

intimará o interessado para regularizar a construção.

Depois de terminada, o Poder Público Municipal terá que verificar se a edificação

foi executada em conformidade com o projeto previamente aprovado. Confirmada a

regularidade, expedir-se-á a licença respectiva (“habite-se”, “certificado de conclusão de

obra”, “atestado de conclusão”, etc. – a terminologia varia de acordo com a legislação de

cada Município).

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Além da licença que certifica a conformidade da edificação com o projeto

previamente aprovado, podem ser exigidas, de acordo com a atividade que será

desenvolvida no local, outras licenças complementares como o alvará de funcionamento e

alvará sanitário entre outros.

Verificando-se a ocorrência de obra clandestina (sem prévia licença) ou

executada em desconformidade com a licença expedida, cumpre ao Poder Executivo

Municipal embargá-la, isto é, ordenar a paralisação dos trabalhos, interditar atividades

que se desenvolvam no local, bem como proceder à demolição compulsória nos casos em

que não for possível a regularização.

Há a possibilidade também de previsão de sanções pecuniárias (multas) pela

inobservância das regras de uso e ocupação do solo. Tudo conforme disposto na legislação

local (geralmente denominada de “Código de Obras”).

Excepcionalmente, e sem prejuízo do pagamento de multa, construções

clandestinas, mas instaladas em conformidade com os parâmetros da legislação

urbanística, podem ser regularizadas, mediante outorga de licença a posteriori.

Omissões ou atuações insuficientes do Poder Público Municipal no cumprimento

dessa função, tolerando indevidamente construções clandestinas e com irregularidades

insanáveis, concorrem para a perda de qualidade de vida, impulsionam a degradação das

cidades, gerando enormes transtornos à coletividade. Sendo assim, e por sua grande

relevância para o atendimento ao direito difuso a cidades socialmente inclusivas,

ambientalmente equilibradas e economicamente sustentáveis, o exercício da função

administrativa de controle das edificações urbanas é objeto de fiscalização pelo Ministério

Público.

1. Direito de construir e controle do uso e ocupação do solo

Decorre da noção de poder de polícia do Município o controle preventivo que

exerce o mesmo sobre o uso e ocupação do solo urbano, por meio do processo de

licenciamento, destacadamente no que tange ao parcelamento e à atividade edilícia. Tal

prerrogativa é mesmo diretriz constitucional de adequado ordenamento territorial, cara

ao art. 30, VIII.

Todavia, se já se encontra assentado o entendimento de que inexiste um ‘direito

subjetivo de parcelar’, vez que o ato de aprovação de loteamentos e desmembramentos

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pelo Poder Executivo tem natureza de autorização, sujeitando-se a juízo de conveniência

e oportunidade da Administração, embasado nas previsões do planejamento, o segundo

aspecto enseja análise mais detida do chamado ‘direito de construir’, historicamente

entendido de modo diverso pela legislação, doutrina e jurisprudência.

Na perspectiva civilística tradicional, emana o direito de construir diretamente do

direito de propriedade, como um dos poderes dominiais, impassível de sofrer qualquer

restrição externa. Já pela ótica do direito administrativo, o achatamento do ius aedificandi

pode ser interpretado como modalidade de intervenção no direito de propriedade, tendo,

como contraponto, a pretensão indenizatória do particular atingido. Ambos os vieses

foram conciliados no Código Civil de 2002, nos dizeres do art. 1.299: “o proprietário pode

levantar em seu terreno as construções que lhe aprouver, salvo o direito dos vizinhos e os

regulamentos administrativos”. Duas dimensões vêm à baila na prescrição: o direito de

vizinhança, especialmente o dito “uso anormal da propriedade” do Título III, Capítulo V,

Seção I (CC/2002), e os “regulamentos administrativos”.

No entanto, o paradigma urbanístico contemporâneo caracteriza essa restrição

imposta pelo zoneamento não como limitação externa ao direito de propriedade, mas

como conformação intrínseca ao seu próprio núcleo essencial, por força da necessária

funcionalização da propriedade urbana inscrita no art. 182 da Carta Magna e que deflui,

concretamente, do Plano Diretor, o qual, em sentido material, engloba também as leis de

zoneamento.

Parece nítido, contudo, que a discussão não cessa, mas é reassentada sobre outros

termos: o sacrifício exigido chega a fulminar o núcleo essencial do direito de propriedade?

Este “núcleo essencial” depende, por óbvio, da funcionalidade do bem em suas

circunstâncias materiais, ou seja, da “aptidão natural do bem em conjugação com a

destinação social que cumpre, segundo o contexto em que esteja inserido”, nas palavras

de Celso Antônio Bandeira de Mello1, ou a “viabilidade prática e econômica do emprego

da coisa”, na expressão de Carlos Ari Sundfeld2. Como contraponto, a doutrina jus-

urbanística portuguesa, na lição de Mário Esteves de Oliveira, oferece uma alternativa de

composição ao determinar que “subjetivamente, quanto à sua titularidade, o proprietário

tem a garantia concreta e efetiva da Constituição. Já quanto ao uso objetivo da

propriedade, essa garantia é abstrata e virtual – pois, embora sejam seus os usos ou as

utilidades que dela se podem tirar, eles são apenas aqueles que possam ser tirados (ou

que não estejam proibidos de serem tirados)”3.

1 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Natureza jurídica do zoneamento: efeitos. In: Revista de Direito

Público 61/39. 2 SUNDFELD, Caros Ari. Direito Administrativo Ordenador. 1ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 93

3 OLVEIRA, Mário Esteves de. In: Revista Jurídica do Urbanismo e do Ambiente, n. 3, p. 197, 1995.

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No cenário do direito brasileiro, o Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) ofereceu

uma solução para o impasse, ao desgarrar do direito de propriedade, expressamente, o

direito de superfície e o direito de construir. Não geraria a mera regulação, em tese, do

potencial construtivo de um terreno, legitimidade para a indenização, visto que a

generalidade da comunidade, bem como cada um dos proprietários cujos imóveis tiveram

sua edificabilidade circunscrita, dela se beneficiam, individual e coletivamente. Outra

posição, ademais, tornaria qualquer política urbana inviável, especialmente aquelas de

indução ao desenvolvimento (como a variação dos coeficientes de aproveitamento para

utilização da outorga onerosa do direito de construir) e de distribuição dos ônus e

benefícios da urbanização, conforme reza o art. 2º, IX do Estatuto. Da mesma natureza, ou

seja, sem desdobramento indenizatório, é a incidência ex lege de Áreas de Preservação

Permanente, que transformam parcelas de imóveis em non aedificandi, sem atingir a

titularidade do bem.

A despeito da diretriz geral, têm os tribunais superiores decidido no sentido de que

a supressão absoluta do potencial econômico da propriedade imobiliária é expediente

análogo à expropriação indireta, inaceitável prima facie. Impõe-se sempre a comprovação

da idoneidade (adequabilidade finalística), indispensabilidade (menor ingerência possível)

e ponderação (balanceamento de direitos) nesta seara. Na dicção de José Roberto

Pimenta Oliveira: “Não se deve, pois, presumir a necessidade da medida encampada pela

norma da Administração, mesmo que fundada em elementos técnicos, pois existe o dever

administrativo de plena comprovação de sua indispensabilidade”4. O argumento técnico,

isoladamente, descamba em tecnocracia. A motivação efetiva das restrições deve ser

explicitada.

Em resumo, vale mencionar a interpretação sintetizadora de Victor Carvalho Pinto,

para quem o direito de construir e suas modulações pelo Poder Público não derivam do

poder de polícia, stricu sensu, embora possam ser objeto de fiscalização com base nele. O

direito de construir configura um bem autônomo, espécie sui generis de direito real,

inclusive averbável junto à matrícula do imóvel sobre o qual recai, e patrimonializável pelo

particular:

Em todos os institutos estudados, verifica-se a existência de ônus a serem

suportados pelos proprietários para financiar a infra-estrutura urbana. No

loteamento, são realizadas obras, transferidos terrenos e criadas servidões. Na

contribuição de melhoria, na outorga onerosa, nas operações urbanas

consorciadas e na transferência do direito de construir é feito um pagamento

em dinheiro. Em todos estes casos, o benefício auferido em troca é a aquisição

ou ampliação do direito de construir. O fato de haver uma relação

4 OLIVEIRA, José Roberto Pimenta. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito

administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 317.

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sinalagmática em todas essas situações, tendo por objeto o direito de construir,

já demonstra que seu fundamento não pode ser o poder de polícia, uma vez

que este não pode ser transacionado. (...) Estes mecanismos só fazem sentido

se aceito o princípio da patrimonialização do direito de construir.5

A despeito da lição, Maria Sylvia Zanella Di Pietro demonstra que o exercício do

poder de polícia, lato sensu, é atribuído ao Estado em geral, e não apenas à Administração

Pública, de modo que “o poder de polícia reparte-se entre Legislativo e Executivo. (...) O

Poder Legislativo, no exercício do poder de polícia que incumbe ao estado, cria, por lei, as

chamadas limitações administrativas ao exercício das liberdades públicas e indica as

medidas de polícia cabíveis para impor o seu cumprimento”6. Portanto, embora seja o

poder de polícia imanente à Administração, seu exercício toma como pressuposto os atos

de prévia legiferação, bem como o exercício do poder regulamentar do Executivo, em

verdadeira expressão de poder-dever (ou de dever-poder, na inversão pós-constitucional

envidada pela doutrina).

2. Natureza jurídica das licenças edilícias

Tendo vista tal conceituação, é preciso explorar a natureza jurídica já não do

direito de construir em si, mas dos atos da Administração Pública que permitem o seu

exercício. Diferentemente da aprovação de projeto de parcelamento do solo, a

documentação da aprovação de projetos de construção, reforma ou demolição se dá

mediante alvarás de licença, e não de autorização. Hely Lopes Meirelles bem explana

ambas as categorias:

O alvará será de licença quando se tratar de construção definitiva em terreno

do requerente; será de autorização quando se cuidar de obra provisória, em

terreno do domínio público ou mesmo particular. A diferença está em que no

caso de alvará de licença sua outorga assenta no direito do requerente à

edificação em caráter definitivo no terreno indicado, como ocorre com as

construções previstas no Código de Obras e nas leis de zoneamento; no caso de

alvará de autorização sua expedição decorre de liberalidade da Prefeitura (e

não de direito do requerente), como na hipótese da construção de uma banca

em praça pública para venda de jornais (...) Daí decorre que o alvará de

5 PINTO, Victor Carvalho. Direito Urbanístico – Plano Diretor e Direito de Propriedade. São Paulo: Editora

Revista dos Tribunais, 2005, p. 314-316. 6 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Poder de Polícia em matéria urbanística. In: MINISTÉRIO PÚBLICO DO

ESTADO DE SÃO PAULO. Temas de Direito Urbanístico. Vol 1. São Paulo: Imprensa Oficial, 1999, p. 25.

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autorização é sempre revogável sumariamente pela Prefeitura, sem qualquer

indenização, ao passo que o alvará de licença nem sempre o é.7

Tal distinção leva em conta, portanto, a existência ou não de direito subjetivo do

particular requerente. Enquanto a autorização gera esse direito, nos casos de

parcelamento, a licença apenas reconhece e consubstancia um direito preexistente,

outorgado por lei (índices urbanísticos constantes do zoneamento) e condiciona seu

exercício ao preenchimento de determinados requisitos, também previstos em normas

específicas, mormente municipais.

Porém, se a teoria é clara quanto ao tema, a prática é complexa, especialmente

quando envolvem conflito entre o interesse público e o particular. A doutrina

estabeleceu, quanto às licenças urbanísticas, princípios reitores para auxiliar na solução

desse tipo de controvérsia, tais como:

a) necessidade: o particular que deseje exercer atividade edilícia está obrigado a

licenciar a obra, nas hipóteses da lei municipal;

b) caráter vinculado: já o Poder Público, no momento de outorga da licença, esta

adstritos às exigências legais, não podendo legitimamente negá-la quando

verificados os mesmos. Alguns autores, porém, falam em certa

discricionariedade técnica do Município, inclusive na caracterização dos

requisitos legais;

c) transferibilidade: alienado o imóvel, a licença para nele edificar segue o

principal, favorecendo os sucessores ou adquirentes;

d) autonomia: à Administração não cabe discutir, para concessão da licença,

quaisquer pendengas sobre domínio do imóvel ou relativas às relações inter

privados, tampouco nelas influindo;

e) definitividade: exercida a atividade nos termos e nos prazos da licenças, isto é,

antes que a mesma caduque, gerando prescrição, o ato não pode ser

discricionariamente revisto ou revogado.

Outrossim, é de se notar que, no tocante ao conteúdo dos requisitos supracitados,

avalia-se, caso a caso, a compatibilidade da obra que se pretende encetar com os índices

urbanísticos da zona em que se situa o imóvel em questão, tais como taxa de ocupação,

recuos, taxa de permeabilidade, coeficiente de aproveitamento, gabarito, entre outros.

Por sua vez, diante de requisições para reforma ou demolição, são principalmente

aspectos funcionais de segurança e de estrutura (quando houver ampliação da edificação)

os verificados. Diretrizes técnicas, em geral, estão alocadas nos Códigos de Obras e nas

7 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 12ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 546-457.

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Posturas Municipais. Normas técnicas, tanto as institucionalizadas via ABNT, por exemplo,

quanto consensuais na comunidade científica também devem ser obedecidas:

A maioria das normas jurídicas contidas em planos, projetos, leis e decretos

urbanísticos nada mais faz senão positivar ou aplicar normas técnicas. O direito

estatal não apenas positiva normas técnicas, como também a elas faz

remissões, incorporando as formas de auto-regulação produzidas no interior da

própria comunidade profissional. O resultado dessa transformação é um

modelo institucional cujos parâmetros são distintos dos do constitucionalismo

clássico. A exigência de positivação como condição para o reconhecimento da

validade das normas técnicas ao mesmo tempo criaria problemas de inflação

legislativa, tecnificação do direito e politização do urbanismo. A remissão do

ordenamento jurídico a normas técnicas extra-estatais pode atenuar

simultaneamente todos esses problemas. Ao regular a aplicação da ciência, o

direito precisa respeitar os princípios que a regem (...)8

Em todas as situações, pontue-se, a atividade edilícia apenas poderá ser

desenvolvida quando o terreno de suporte qualificar-se como lote, isto é, porção de solo

“com frente para logradouro público em condições de receber edificação residencial,

comercial, institucional ou industrial”9. A produção de lotes pressupõe prévio loteamento

ou desmembramento, uma vez que a gleba nua ou indivisa pode receber unicamente

construções com finalidade rural típica ou, no máximo, agroindustrial. Na expressão da

doutrina:

O parcelamento do solo para fins urbanos transforma glebas rurais em lotes

urbanos edificáveis. (...) Cumpridas as exigências, o direito de construir

incorpora-se ao terreno, que passa a ser qualificado de “lote”. Tanto é assim

que o lote é considerado pela lei terreno destinado a edificação, em oposição à

gleba, que é inedificável. A restrição è edificabilidade das glebas é a técnica

empregada pelo direito urbanístico para impedir a ocupação de áreas ainda não

dotadas de infra-estrutura. A caracterização de um terreno como lote

pressupõe que ele já está apto a ser ocupado, por dispor da infra-estrutura

adequada.10

Por fim, vale observar que o Centro de Apoio Operacional já manifestou

entendimento, na Consulta n. 49/2013, no sentido de que, diante do vazio normativo

(ausência de legislação sobre parcelamento, uso ou ocupação do solo urbano), não poderá

o Município autorizar quaisquer transformações radicais do espaço urbano, sejam elas

8 PINTO, V. C. Op. cit., p. 247-248.

9 SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 334.

10 PINTO, Victor Carvalho. Direito Urbanístico – Plano Diretor e Direito de Propriedade. São Paulo: editora

Revista dos Tribunais, 2005, p. 299.

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novos loteamentos, sejam edificações fora do padrão médio de urbanização da região,

conforme a tese da vinculação situacional, importada da doutrina alemã.

3. O processo de licenciamento urbanístico-ambiental

O modelo tradicional de licenciamento urbanístico adapta-se bem a determinadas

tipologias de edificação, como as de uso residencial. O procedimento corrente, após a

concessão da licença para construir, implica tanto em controle concomitante (durante a

execução da obra, com notificações e comunicações), quanto controle

sucessivo/repressivo (ex post factum), por meio de vistorias e, enfim, da expedição do

“habite-se” (denominado Certificado de Vistoria e Conclusão de Obra, em Curitiba), ou

seja, de permissão para ocupação do edifício, estando este de acordo com os termos da

licença original. Havendo descompasso, necessária sua adequação.

Nada obstante, grande parte das construções nos centros urbanos destina-se a

finalidades próprias, tais como estabelecimentos comerciais e de recreação, dos mais

diversos portes. Nesses casos, para além da aprovação do projeto do edifício em si mesmo

– e, em geral, somente depois de concluído este –, é necessário proceder-se ao

licenciamento das atividades que nele serão levadas a cabo, potencialmente mais

impactantes no meio ambiente urbano do que a própria atividade construtiva. Tais

licenças são comumente denominadas “comerciais”, “industriais”, “alvará de localização”

ou ainda “de funcionamento” e integram também uma apreciação sobre os usos

permitidos, proibidos e permissíveis/tolerados em cada zona da cidade. A classificação

engendrada por Hely Lopes Meirelles11 é útil neste quesito:

a) usos conformes ou permitidos: exercê-los é direito subjetivo do particular,

assim como ampliar o estabelecimento/construção;

b) usos desconformes ou proibidos: os usos incompatíveis com o zoneamento

podem ser sumariamente impedidos a não ser que haja pré-ocupação em

relação à legislação restritiva, caso em que poderá o mesmo seguir

funcionando, uma vez iniciado, mas não poderá ser ampliado;

c) usos tolerados ou permissíveis: dependem de autorização do órgão

competente no Município, decorrendo de mera liberalidade precária.

A questão tem batido à porta da magistratura. O Tribunal de Justiça do Estado do

Rio Grande do Sul, por exemplo, assentou a hermenêutica de que “uso desconforme é

aquele que se mostra contrário ao Plano Diretor e, sem que ocorra hipótese de pré-

ocupação, autoriza o Município a negar alvará de funcionamento e, se já concedido, de

11

MEIRELLES, H. L. Op. cit., p. 525-526.

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ofício anulá-lo. Não se configura pré-ocupação se, no momento da entrada em vigor da

nova lei, não havia uso conforme a ser garantido e, sim, o uso se dera no passado e, na

hipótese, há quase dez anos. Concomitância não comprovada” (RJTJRGS 161:411).

Conforme narra Pedro Tavares Maluf, na vertente do direito comparado, a

concessão das licenças urbanísticas pode ir além, analisando, no caso do ordenamento

português, ao menos desde a introdução do Decreto-Lei n. 61/1995, a coincidência do uso

que se pretende fazer do solo com os diversos planos de ordenamento, inclusive os

regionais, quando devem ser submetidos os pedidos à autoridade central para o chamado

juízo de compatibilidade, que, porém, não feriria a repartição de poderes12.

O volume de informações e a variedade de interferências provocadas no entorno

e na urbe como um todo exige, não raro, Estudo de Impacto Ambiental e/ou Estudo de

Impacto de Vizinhança. O primeiro pode ser regulamentado nos níveis estadual e

municipal, ao passo que o segundo enquadra-se eminentemente na competência

legislativa de interesse local e não é auto-aplicável, o que obstaculiza seu emprego pela

inércia do legislador (a jurisprudência tem admitido regulamentação via decreto13)

É notória a insuficiência dos diagnósticos do chamado “meio socioeconômico” nos

estudos de impacto ambiental, mormente nos que dizem respeito a grandes

empreendimentos14. Isso, a despeito do art. 6º, I, ‘c’, da Resolução n. 01/1986 do

Conselho Nacional do Meio Ambiente, que determina a inclusão dos aspectos culturais,

históricos, urbanísticos, enfim, humanos (meio ambiente artificial), no licenciamento

ambiental:

12

MALUF, Pedro Tavares. Licença edilícia e plano urbanístico no direito português. In: DALLARI, Adilson

Abreu e DI SARNO, Daniela Campos Libório (coords.) Direito Urbanístico e Ambiental. Belo Horizonte: Editora

Fórum, 2007, p. 405. 13

"ADMINISTRATIVO. HORÁRIO DE FUNCIONAMENTO DE ESTABELECIMENTO COMERCIAL. LIMITAÇÃO. POSSIBILIDADE. 1. Prevendo o Decreto 040/05 do Município de Santa Maria que o funcionamento de estabelecimentos comerciais no horário da madrugada deve ser precedido de estudo de impacto de vizinhança, é dado ao Município, no exercício do seu poder de polícia, vedar o funcionamento de estabelecimento neste período se o estudo assim recomendar. 2. AGRAVO DE INSTRUMENTO DESPROVIDO." (TJRS. Agravo de Instrumento nº 70.014.612.550, Quarta Câmara Cível, Relator Des. Araken de Assis, julgado em 28/06/2006). 14

Inúmeros trabalhos acadêmicos têm chamado atenção para este viés. Sandra Cureau, Subprocuradora-Geral da República e coordenadora da 4ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF (Meio Ambiente e Patrimônio Cultural), conclui, entre outras coisas, que: “(...) 5. Devido ao grau de participação social ainda insuficiente e à deficiência dos estudos sobre o chamado meio sociocultural, as condições socioambientais e econômicas não estão sendo repostas, em muitos casos, de modo a permitir a reprodução do meio e do modo de vida dessas populações; 6. os estudos ambientais são insuficientes e falhos. Para a questão social, é fundamental que, além das metodologias quantitativas, sejam empregados métodos qualitativos e participativos; 7. como os diagnósticos têm sido falhos, a identificação e a avaliação de impactos socioculturais também têm sido deficientes e as propostas de medidas mitigadoras insuficientes (...)” (CUREAU, Sandra. A deficiência de avaliação do chamado meio sociocultural, nos estudos de impacto ambiental, e suas conseqüências para as a comunidades afetadas pelas grandes obras. In: GALLI, Alessandra (coord.) Direito Socioambiental. Vol. 1. Curitiba: Juruá, 2010, p. 394).

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Artigo 6º - O estudo de impacto ambiental desenvolverá, no mínimo, as

seguintes atividades técnicas:

I - Diagnóstico ambiental da área de influência do projeto completa descrição e

análise dos recursos ambientais e suas interações, tal como existem, de modo a

caracterizar a situação ambiental da área, antes da implantação do projeto,

considerando:

c) o meio sócio-econômico - o uso e ocupação do solo, os usos da água e a

sócio-economia, destacando os sítios e monumentos arqueológicos, históricos e

culturais da comunidade, as relações de dependência entre a sociedade local, os

recursos ambientais e a potencial utilização futura desses recursos.

Por esta razão, trouxe o Estatuto da Cidade o instrumento do Estudo de Impacto

de Vizinhança15, expressamente autônomo em relação ao EIA-RIMA, embora não haja

impedimento para que ambos sejam realizados simultânea ou paralelamente. Ao

contrário, a tendência vai no sentido da sua conjugação num processo único de

licenciamento urbanístico-ambiental:

A rigor, o segundo [Estudo de Impacto de Vizinhança] nem seria necessário,

pois o Estudo de Impacto Ambiental obviamente se refere também ao meio

ambiente urbano. Talvez a criação do segundo se deva ao costume ou ao

preconceito no sentido de tomar a expressão “meio ambiente” como

abrangendo apenas o ambiente natural, os recursos naturais, tais como

florestas, águas, montanhas, etc. Na verdade, o meio ambiente a ser

preservado abrange tanto os bens naturais como os bens culturais. O que deve

variar, diante do caso concreto, é a forma, a metodologia, de realização do

estudo, que será sempre um Estudo de Impacto Ambiental.16

15

Art. 36. Lei municipal definirá os empreendimentos e atividades privados ou públicos em área urbana que dependerão de elaboração de estudo prévio de impacto de vizinhança (EIV) para obter as licenças ou autorizações de construção, ampliação ou funcionamento a cargo do Poder Público municipal.

Art. 37. O EIV será executado de forma a contemplar os efeitos positivos e negativos do empreendimento ou atividade quanto à qualidade de vida da população residente na área e suas proximidades, incluindo a análise, no mínimo, das seguintes questões: I – adensamento populacional; II – equipamentos urbanos e comunitários; III – uso e ocupação do solo; IV – valorização imobiliária; V – geração de tráfego e demanda por transporte público ;VI – ventilação e iluminação; VII – paisagem urbana e patrimônio natural e cultural.

Parágrafo único. Dar-se-á publicidade aos documentos integrantes do EIV, que ficarão disponíveis para consulta, no órgão competente do Poder Público municipal, por qualquer interessado. Art. 38. A elaboração do EIV não substitui a elaboração e a aprovação de estudo prévio de impacto

ambiental (EIA), requeridas nos termos da legislação ambiental. 16

DALLARI, Adilson Abreu. Instrumentos da Política Urbana. In: Estatuto da Cidade (Comentários à Lei

Federal 10.257/2001). 2ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 84-85.

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À divergência sobre a competência ratione materiae agregam-se as disputas entre

instâncias federativas, havendo quem, como Edis Milaré17 pugne pela possibilidade de

pluralidade de licenciamento em paralelo. Malgrado a escassez de jurisprudência sobre o

tema e a resistência dos organismos de proteção ambiental em considerar a dimensão

urbanística dos referidos impactos, o art. 10, §1º da Resolução CONAMA n. 237/199718

obriga os Municípios a apresentar aos entes estaduais ou federais competentes para o

licenciamento declaração de conformidade do empreendimento com a legislação local de

uso e ocupação do solo:

Art. 10 - O procedimento de licenciamento ambiental obedecerá às seguintes

etapas:

§ 1º - No procedimento de licenciamento ambiental deverá constar,

obrigatoriamente, a certidão da Prefeitura Municipal, declarando que o local e

o tipo de empreendimento ou atividade estão em conformidade com a

legislação aplicável ao uso e ocupação do solo e, quando for o caso, a

autorização para supressão de vegetação e a outorga para o uso da água,

emitidas pelos órgãos competentes.

Nos Estados Unidos da América, berço do EIA-RIMA, caso paradigmático foi

apreciado pela Court of Appels of New York no ano de 1986. A Associação de

Trabalhadores e Empregados Chineses ajuizou demanda contra o Município (City of New

York), alegando que as alterações no planejamento urbano da região de Chinatown,

desconsideraram que a introdução de condomínios de luxo aceleraria a retirada de

residentes e comerciantes e alteraria em demasia as características da comunidade local.

A ré respondeu que não havia previsão legal explícita de necessidade de estudo sobre

impacto social ou econômico em Manhattan. Ao final, o tribunal decidiu que “os padrões

existentes de concentração, distribuição ou crescimento da população e as características

da comunidade ou vizinhança, bem como o potencial deslocamento, em longo termo, de

residentes e comerciantes, são condições físicas que necessariamente devem ser

consideradas pela agência quando da análise do potencial do projeto em causar efeitos

significativos no ambiente”19.

17

MILARÉ, Edis. Direito do Meio Ambiente, p. 320. 18

Além de repassar-lhes a competência licenciatória, em determinadas hipóteses, como de edificação: “Art.

6º - Compete ao órgão ambiental municipal, ouvidos os órgãos competentes da União, dos Estados e do

Distrito Federal, quando couber, o licenciamento ambiental de empreendimentos e atividades de impacto

ambiental local e daquelas que lhe forem delegadas pelo Estado por instrumento legal ou convênio.” 19

Cinhese Staff and Workers Association v. City of New York, 68 N.Y.2d 359,363 (1986). Conferir: BELTRÃO,

Antonio Figueiredo Guerra. Estudo de Impacto Ambiental (EIV) e Estudo de Impacto de Vizinhança. In:

AHMED, Flávio (org.). Cidades Sustentáveis no Brasil e sua Tutela Jurídica. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2009,

p. 78.

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No tocante ao EIV propriamente, a doutrina brasileira indica que, à semelhança de

seu congênere ambiental20, sua elaboração e dados não suprimem inteiramente o juízo de

conveniência e oportunidade do administrador, já que oferece alternativas diversas a

serem por ele avaliadas, na sua correlação custo-benefício. Todavia, estabelece um grau a

mais de exigência, recaindo não sobre o conteúdo da decisão pública em si, mas sobre sua

motivação, sua reserva de consistência. O agente decisório poderá adotar uma das várias

soluções fornecidas pelo EIV, porém deverá fundamentar tecnicamente a escolha, além

de submetê-la ao crivo da população, via audiências públicas e outras formas de gestão

democrática: A participação popular, ao lado do EIV, também serve como elemento limitador

da discricionariedade administrativa, podendo vincular absoluta ou

relativamente a vontade do administrador público aos resultados proferidos na

discussão pública.21

Se o resultado das audiências públicas não atrela cabalmente a Administração,

serve para interpretar e direcionar os resultados do estudo de impacto e pode subsidiar,

inclusive, o gestor com elementos embasadores da negativa do alvará para a atividade

potencialmente lesiva, cuja concessão, classicamente, seria ato vinculado. Auxilia, assim, o

Município a adentrar no mérito técnico da questão, ampliando sua margem de apreciação

para além dos aspectos formais da licença, quase como se autorização, de fato, fosse.

Dada a quantidade de órgãos intervenientes nos processos de licenciamento (em

Curitiba, a título de exemplo, participam de qualquer licenciamento de atividades

comerciais as Secretarias de Urbanismo, Meio Ambiente, Finanças e Saúde, através da

Vigilância Sanitária, afora as instituições estaduais), é constante a discrepância de prazos e

exigências, dilatando o fluxo para regularização dos estabelecimentos e dificultando

sobremaneira a fiscalização posterior e expondo a risco a coletividade22.

Por sua vez, é de fácil observação que os gargalos normativos e a deficiência do

devido processo administrativo, nesta vertente, resulta amiúde em decisões judiciais

20

“A não vinculatividade do Poder Público deve-se ao fato de que o EIA não oferece uma resposta objetiva e

simples acerca dos prejuízos ambientais que uma determinada obra ou atividade possa causar” (FIORILLO,

Celso Antonio Pacheco e RODRIGUES, Marcelo Abelha. Manual de Direito Ambiental e Legislação Aplicável.

P. 212) 21

MENCIO, Mariana. A influência do Estudo de Impacto de Vizinhança na expedição da licença urbanística

para construção de empreendimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o meio

ambiente urbano. In: PIRES, Luís Manuel Fonseca et alli. Estudos de Direito Urbanístico. Vol 1. São Paulo:

Editor Cetras Jurídicas, 2006, p. 88. 22

A conclusão a que chegou a investigação promovida pelo Ministério Público do Estado do rio Grande do

Sul, por exemplo, sobre a tragédia ocorrida na Boate Kiss, em Santa Maria, foi exatamente a existência de

falhas reiteradas no processo de licenciamento, especialmente aquele conduzido pelo Corpo de Bombeiros,

tendo acionado quatro agentes desta corporação por improbidade administrativa:

http://www.mprs.mp.br/imprensa/noticias/id32554.html?impressao=1

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contrárias à defesa ordem urbanística, em homenagem aos princípios da segurança

jurídica e do direito adquirido.

Nem por outra razão, por ocasião do 1º Congresso de Habitação e Urbanismo do

Ministério Público do Estado de São Paulo, realizado no Município de Amaro/SP, em 2003,

foi aprovada a Tese nº 9, inserida no tema "Ministério Público e a Defesa da Ordem

Urbanística: uma visão a partir do Estatuto da Cidade", pelo Dr. Antônio Alberto Machado,

de seguinte teor:

9 - O Ministério Público, na defesa da sustentabilidade urbana, poderá

promover ação civil pública, na forma da lei municipal a que se refere o art. 36

do Estatuto da Cidade ou da legislação ambiental pertinente, a fim de condenar

o interessado na obrigação de elaborar Estudo Prévio de Impacto de Vizinhança

(EIV) e/ou de Estudo Prévio de Impacto Ambiental (EIA), quando o mesmo for

realizar empreendimento ou atividades que dependam de tais estudos prévios,

tal como exigido pelos artigos 36 a 38 do Estatuto da Cidade.

4. Conflitos de direito intertemporal

Encerrado o processo de licenciamento, resta ao Município, em primeiro plano, o

dever de fiscalizar futuras alterações no uso e ocupação do solo e nas atividades

desenvolvidas nas edificações. Nesse mister, impera o princípio do tempus regit actum,

sendo essencial avaliar o momento em que a licença (de construção ou de

funcionamento) foi expedida e o grau de urbanização/consolidação da situação fática em

jogo, antes da adoção de quaisquer medidas, sejam elas regularizadoras ou

sancionadoras.

Os conflitos dessa espécie, em geral, apresentam tintura intertemporal, qual

ocorre com a superveniência de legislação contrária aos termos do alvará expedido (seja

em relação à obra em si, seja em relação ao zoneamento da região), ou quando da

emergência de posterior projeto de intervenção urbanística de interesse público

(alargamento de vias, por exemplo). O déficit de planejamento municipal, associado às

mudanças sumárias das normativas urbanísticas, acarreta em sérios problemas dessa

ordem, o que é elucidado por Toshio Mukai da seguinte maneira:

A questão mais aguda neste aspecto configura-se do seguinte modo: uma lei

que venha a modificar o zoneamento existente pode encontrar alguém que,

tendo obtido alvará de construção ao tempo da lei anterior, tenha iniciado a

construção antes do advento da nova lei; supondo-se que a alteração

promovida pela lei nova implique a mudança da zona, ainda assim, nessa

hipótese, haverá direito adquirido do proprietário de levantar sua construção

até o final. Esse o entendimento do STF no que diz respeito ao assunto.

Contudo, ainda nessa mesma hipótese, se a obra ainda não tiver sido iniciada,

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quando do advento da nova lei, o alvará poderá ser cassado, indenizando-se as

despesas efetivamente realizadas com o projeto da obra ou decorrentes da

obtenção do alvará. Essa também a orientação do STF sobre o assunto.23

Enquanto o ato jurídico de autorização de parcelamento do solo se aperfeiçoa com

o registro imobiliário24, o direito de construir integra definitivamente o patrimônio do

particular (direito adquirido) somente com os atos executórios fáticos, ou seja, com os

marcos iniciais da obra em si. E os precedentes diversos homenageiam o primado da

segurança jurídica:

EMENTA: Licença de construção – Revogação. Fere o direito adquirido a

revogação de licença de construção por motivo de conveniência, quando a obra

já foi iniciada. Em tais casos, não se atingem apenas faculdades jurídicas – o

denominado ‘direito de construir’ – que integram o conteúdo do direito de

propriedade, mas se viola o direito de propriedade que o dono do solo adquiriu

com relação ao que já foi construído, com base na autorização válida do Poder

Público. Há, portanto, em tais hipóteses, inequívoco direito adquirido, nos

termos da Súmula 473 (STF. RE 85.002-SP. Rel. Min. Moreira Alves. RTJ

79/1016).

EMENTA: Direito de construir - Mera faculdade do proprietário, cujo exercício

depende de autorização do Estado - Inexistência de direito adquirido à

edificação anteriormente licenciada, mas nem sequer iniciada, se

supervenientemente foram editadas regras novas, de ordem pública, alterando

o gabarito para construção no local.

(...) a licença anteriormente concedida não está imune à superveniência de

regras novas editadas no interesse público, alterando o gabarito para a

construção no local (STF. Agravo Regimental em Agravo de Instrumento

135.464-0/RJ. Relator: Ministro Ilmar Galvão. Julgamento: 05 de maio de 1992)

23

MUKAI, Toshio. Direito urbano e ambiental. 3ª edição. Belo Horizonte: editora Fórum, 2006, p. 346. 24

“EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. SUSCITAÇÃO DE DÚVIDA PELO OFICIAL. LOTEAMENTO. REGISTRO DE PARCELAMENTO. APROVAÇÃO PELA ADMINISTRAÇÃO. ATO JURÍDICO PERFEITO. DIREITO ADQUIRIDO. I – O ato de aprovação, pelo chefe do Poder Executivo Municipal, de pedido de parcelamento de solo urbano para fins de loteamento, não materializa ato jurídico perfeito, pois o ato administrativo ‘aprovação’ tem natureza discricionária e precária, podendo ser revisto pela administração a qualquer tempo, quando não materializado o ato que se pretendia efetuar. II - Ainda que a legislação vigente à época não prescrevesse prazo para o competente registro (Decreto Lei nº 58/37), a partir da edição da disposição normativa que previu tal formalidade, esta passou a ser exigível dentro do prazo ali estabelecido. Extrapolado tal lapso temporal, não têm os interessados o direito inconteste de inscrever o referido empreendimento no registro público a qualquer tempo, pois tal providência poderia, em última análise, inclusive, vir a macular princípios basilares da Administração, além do ordenamento legal vigente com relação ao parcelamento urbano e leis ambientais ligados a interesses coletivos da mais variada espécie. APELO CONHECIDO E IMPROVIDO” (STF. AI 738125 GO. Relator: Min. GILMAR MENDES. Julgamento: 10/09/2013, fls. 365/366).

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A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça25 tem-se atualizado na mesma

toada, ainda que sobrevindo a restrição de instância federativa diversa. Em não se

havendo dado início à obra, possível a sua interdição:

Administrativo. Licença para construir deferida pela autoridade municipal.

Restrição superveniente da legislação estadual. Obra ainda não iniciada. Se a

obra ainda não foi iniciada, a restrição é válida. Precedentes do Supremo

Tribunal Federal. Recurso Especial não conhecido (STJ – Segunda turma. Resp.

n. 103.298/PR. Rel. Min. Ari Pargendler. Data do Julgamento: 17.11.1998).

Se a mutação legal superveniente não tem o condão de atingir as licenças

anteriores exaradas legitimamente, muito menos surtirá efeito a alteração da posição dos

tribunais ou da orientação da própria gestão municipal sobre matéria correlata: “a

alteração de jurisprudência administrativa não atinge os atos administrativos já

praticados”26, o que se confirma em recente aresto do Tribunal de Justiça do Estado do

Maranhão:

CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA CONTRA

ATO JUDICIAL. TERCEIRO. CABIMENTO. SÚMULA Nº 202 DO STJ. SENTENÇA

QUE JULGOU PROCEDENTE AÇÃO CIVIL PÚBLICA DECLARANDO NULAS AS LEIS

MUNICIPAIS Nºs.5389/2010 E 5.391/2010, QUE ALTERARAM A LEI Nº

3.253/1992, QUE DISPÕE SOBRE O ZONEAMENTO, PARCELAMENTO, USO E

OCUPAÇÃO DO SOLO URBANO DO MUNICÍPIO DE SÃO LUIS, POR AUSÊNCIA DE

ESTUDOS TÉCNICOS, DE PUBLICIDADE, DE TRANSPARÊNCIA E DE PARTICIPAÇÃO

POPULAR EM SEUS PROCESSOS LEGISLATIVOS, RECONHECENDO

INCIDENTALMENTE OFENSA À CF, E CONTRARIEDADE AO ESTATUTO DA CIDADE

(LEI FEDERAL Nº 10.257/2001) E À LEI MUNICIPAL Nº 4.669/2006, QUE

DISCIPLINA O PLANO DIRETOR DO MUNICÍPIO DE SÃO LUIS. LEIS DE EFEITOS

CONCRETOS. ALEGAÇÃO DE INADEQUAÇÃO DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA.

SENTENÇA QUE AFETA A ESFERA JURÍDICA DE TERCEIROS, DECLARANDO NULOS

OS ATOS PRATICADOS SOB A ÉGIDE DAS DITAS LEIS, ALCANÇANDO OS ALVARÁS

25

Quanto às demais Cortes de Justiça: “subsiste a licença de estabelecimento comercial dada anteriormente à declaração de zona residencial” (48 RDA 114:287). Da mesma forma, no Tribunal Bandeirante: “EMENTA: Zoneamento - Estabelecimento industrial para exploração de pedreira regularmente licenciado pela municipalidade - Lei posterior doMunicípio alterando o zoneamento da cidade - Não pode o Poder Público, ‘manu militari’, interromper o funcionamento de estabelecimento industrial, regularmente licenciado de acordo com os usos conformes, sob pena de se ferir direito adquirido (...) não há dúvida de que o interesse público deve prevalecer sobre o particular, mas também é manifesto que aquele não pode ser sacrificar, arbitrariamente, o direito do particular (...) se a Prefeitura pretender a imediata cessação de qualquer atividade desconforme, mas com pré-ocupação da zona, deverá indenizar cabalmente o seu exercente, amigavelmente ou mediante desapropriação” (RT 548:232 e ss.). 26

SILVA, Carlos Medeiros. Parecer: ‘Licença para Construir – Ato Administrativo – Revogação – Ilegalidade e

Inoportunidade – Modificação da Jurisprudência Administrativa – Respeito às Situações Constituídas’. RDA,

109, p. 269.

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DE CONSTRUÇÃO JÁ CONCEDIDOS ÀS EMPRESAS CONSTRUTORAS COM OBRAS

EM ANDAMENTO E A COMERCIALIZAÇÃO DE IMÓVEIS. VIOLAÇÃO AO

PRINCÍCIO DA SEGURANÇA JURÍDICA. (TJMA. Câmaras Cíveis Reunidas.

Mandado de Segurança n. 29167/2012. Relator: Desembargador Jamil de

Miranda Gedeon Neto. Julgamento: 05 de abril de 2013).

Pode-se afirmar que a previsão in abstracto da legislação de uso e ocupação do

solo sobre um determinado terreno gera legítima pretensão do particular de explorar o

potencial edificatório (direito de construir) ou as atividades (direito de livre iniciativa) nela

estabelecidos, conquanto apenas a licença fixará in concreto tais potencialidade, tornados

atos juridicamente perfeitos e acobertados pelo direito adquirido a partir de seu efetivo

exercício (início da obra ou do funcionamento do estabelecimento).

No que toca à revisão voluntária das licenças conferidas pela Administração

Pública, a doutrina reconhece importante distinção entre anulação e revogação. Dado o

caráter vinculado das licenças urbanísticas, “sua outorga com infringência de exigências

legais lhes imputa vício de legalidade, que as torna inválidas – invalidade de que a

Administração poderá conhecer de ofício, a fim de rever seu ato, com sua anulação”27. De

outra sorte, “a revogação é ato de controle do mérito. Dar-se-á quando sobrevier motivo

de interesse público que desaconselhe a realização da obra licenciada, tal como: a)

mudança das circunstâncias (...) b) adoção de novos critérios de apreciação (...) c) erro na

sua outorga”28. Da figura do erro de outorga, contudo, não se infere erro de direito, mas

sim, equívoco de natureza técnica, imputável ao agente público avaliador do projeto. Por

conseguinte, somente “a revogação que gerar prejuízo para o titular da licença provocará

a obrigação de indenizá-lo por parte da Administração”29. Entre outras variáveis, despesas

realizadas com a obra e o projeto da construção poderão indicar a extensão do dano

material do particular.

Sobre as demais fatispecie para extinção das licenças urbanísticas, avultam: a)

caducidade por inércia do particular (não execução em prazo hábil) e b) a cassação por

execução em desacordo com o alvará.

5. Medidas regularizadoras versus medidas sancionadoras

Quando a irregularidade na obra ou atividade, todavia, não tem origem em

equívoco da Administração, mas inteiramente na postura dos administrados, enseja-se

controle corretivo e/ou repressivo do Poder Público. A linha é tênue para identificar quais

as medidas adequadas à situação fática, se de regularização, eventualmente conjugada

27

SILVA, J. A. Op. cit., p. 448. 28

SILVA, Idem, p. 449. 29

SILVA, J. A. Idem, p. 450.

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com reparação/compensação, ou sancionadoras strictu sensu, como os embargos e a

demolição. O primeiro consiste na “paralisação dos trabalhos por ordem da autoridade

pública competente, quando o particular não observa normas técnicas ou administrativas

na execução da construção ou a executa sem prévia licença”. Já a demolição, “sendo a

mais rigorosa sanção administrativa, somente cabe sua aplicação, com bastante

prudência, em casos extremos”30:

Em se tratando de obra licenciada, a ordem de demolição somente será

expedida após processo regular, com direito de defesa, no qual se desconstitua

a licença (por anulação ou cassação) e, não sendo efetuada a demolição pelo

próprio interessado, caberá a demolição compulsória. Tratando-se de obra

clandestina, a demolição é efetivada mediante ordem sumária da

Administração.31

Sendo esta a faceta mais ostensiva do poder de polícia municipal, a efetividade das

sanções administrativas encontram uma série de entraves:

- ausência ou obscuridade da regulamentação legal

- baixa capacidade institucional: frágil estrutura suficiente para o adequado

desempenho das tarefas de fiscalização

- leniência/omissão na autuação e aplicação das sanções

- deficiência/morosidade no devido processo administrativo

- sobreposição de competências entre agentes de entes federativos diversos e de

órgãos distintos, em cada um deles

Se a tendência dos licenciamentos é a unificação, quanto possível, também parece

ser esta a da fiscalização. A fragmentação dos procedimentos, contudo, dificulta delimitar

a quem incumbe a atribuição final de aplicar as medidas pertinentes e a judicialização é

constante, tanto por parte da Administração, quanto dos administrados. Claro está que a

inobservância da interdição (que não configura sanção, mas medida acautelatória em

situações de risco iminente, como ameaça de ruína de prédio), da ordem de embargo ou

de demolição submete-se ao tipo do art. 330 do Código Penal (crime de desobediência).

Isto posto, as conseqüências administrativas frustram-se em face da divergência da

literatura.

De um lado, autores como Hely Lopes Meirelles defendem que a auto-

executoriedade das sanções administrativas estendem-se à viabilidade de imposição

direta pelo Município, inclusive com emprego de força, sem necessidade de autorização

30

MUKAI, Toshio. Op. cit., p. 389. 31

MUKAI, T. Idem, ibidem.

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judicial32. De outro giro, parte da doutrina, ainda que menos contemporânea, versa que

“os atos de polícia edilícia ou sanitária, no sistema brasileiro, não são executáveis

diretamente e por força da própria administração de que provêm, mas sujeitos a controle

preventivo do órgão jurisdicional”33. Julgados há em ambos os sentidos, assomando

coerente a argumentação, uma vez mais, de Toshio Mukai:

No nosso entender, nada impõe (nem a Constituição Federal) a obrigatoriedade

do controle prévio do judiciário nas demolições determinadas pela

Administração, já que o poder de polícia das construções, inerente ao Poder

Público, pressupõe, evidentemente, a aplicação de sanções, sejam elas

pecuniárias ou não. Retirar do Executivo tal possibilidade é esvaziar o exercício

do poder de polícia que lhe é inerente, e transferir tal faculdade ao Poder

Judiciário é infringir o princípio da independência e harmonia dos poderes (...)34

Já para Maria Sylvia Zanella Di Pietro, são atributos tradicionais do poder de polícia

exercitado pela Administração a discricionariedade, a auto-executoriedade e a

coercibilidade. A segunda pode, ainda, ser desdobrada em exigibilidade (faculdade de

tomar decisões executórias sem consulta preliminar ao Judiciário, cumpridas

indiretamente pela aplicação de penalidades ou pela substituição ao particular, dele

cobrando posterior ressarcimento) e executoriedade (poder de impor tais decisões por

meios diretores de coação). Nem todos os atos administrativos gozariam de auto-

executoriedade, mas tão somente aqueles assim previstos em lei e depois de

procedimento administrativo. Em casos de urgência, procedimentos especiais seriam

admissíveis, desde que o emprego da força não seja desmedido, cabendo

responsabilização cível e/ou penal. A característica central da auto-executoriedade é

“inverter o ônus de ir a juízo”, vez que os atos da Administração gozam de presunção de

legitimidade35. Quanto às medidas repressivas, em espécie, a autora deslinda o seguinte

rol:

a) anulação/cassação de alvará: ato unilateral, mas que exige garantia do

direito ao contraditório e ampla defesa;

b) embargo de obra: deve estar previsto em lei, caso contrário, apenas o

Poder Judiciário poderá expedir a ordem. Poderá ser feita a interdição

32

“O embargo da obra pela Prefeitura deve ser precedido de notificação da fiscalização para a devida correção das irregularidades verificadas, e se não foram corrigidas nas condições e prazos estabelecidos justifica-se a interdição dos trabalhos por meios diretos do próprio Município, e até emprego de força policial requisitada, se houver resistência do embargado” (MEIRELLES, H. L. Op. cit., p. 458). 33

SANTOS, Moacyr Amaral. Ações cominatórias no direito brasileiro. São Paulo: Max Limonad, 1958, p. 688. 34

MUKAI, T. Op. cit., p. 390. 35

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op. cit., p. 26-28.

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compulsória desde que prevista em lei. Se não houver previsão, admitir-se-

á a medida apenas diante de risco iminente aos moradores ou vizinhos;

c) demolição de obra: cabível quando a construção for clandestina, com força

auto-executória. Porém, se verificado que a mesma, a despeito de ausência

de licenciamento, atende aos requisitos urbanísticos da lei, proceder-se-á à

notificação para regularização, e não à sua derrubada. Quando se tratar de

edificação ruinosa, a demolição encontra fundamento no art. 188, II, do

Código Civil (Não constituem atos ilícitos: (...) a deterioração ou destruição

da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de remover perigo iminente),

observados os meios proporcionais ao fim.36

A despeito da communis opinio em torno da natureza extrema da demolição

(medida de ultima ratio), nem sempre é fácil distinguir em que cenários a regularização de

uma edificação é viável. A suspensão das atividades comerciais ou industriais, é certo, não

gera o mesmo nível de transtorno, traduzível, mesmo assim, patrimonialmente. A

derrubada de uma construção, porém, a depender de seu uso – e mormente quando sirva

ela de habitação – pode confrontar a dignidade da pessoa humana em patamares

inaceitáveis. Trata-se, em suma, de conflito entre um interesse difuso (ordem urbanística)

e um interesse individual/coletivo indisponível (moradia digna).

Nessas oportunidades, a solução será sempre casuística, com influxo do princípio

da proporcionalidade-razoabilidade e mediante ponderação sobre o tipo de intervenção

(regularização ou demolição) de menor potencial lesivo: “tal como a atividade tipificante

que responde pela configuração in abstracto das infrações e sanções administrativas, a

atividade tipificadora e sancionadora in concreto assujeita-se às injunções normativas do

princípio da razoabilidade-proporcionalidade”37.

Em situações excepcionais, contudo, há que se reconhecer o influxo da teoria do

fato consumado, na vertente da estabilização dos efeitos dos atos viciados38. O decurso do

tempo e a consolidação do processo de urbanização podem tornar a situação fática de tal

modo inalterável, sua modificação a fórceps tão prejudicial a direitos fundamentais, que o

benefício social será maior em se tolerando a sobrevivência no ordenamento jurídico, de

36

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Idem, p. 33. 37

OLIVEIRA, José Roberto Pimenta. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito

administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 485. 38

“(...) após um certo lapso de tempo, diante de determinadas circunstâncias fáticas e jurídicas, há a

estabilização do vício – ou seja, o que era um ato inválido passa a ser ato irregular – e a conversão do dever

de invalidar em dever de sanar – quer dizer, o sistema exigia a edição de um ato invalidante, mas passa a

exigir a edição de um ato redutor, convertedor ou convalidante (...)” (MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos

dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 452).

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um ato administrativo (licença ou autorização) eivado de irregularidade, ainda que

insanável, como uma espécie de prescrição urbanística.

O mesmo se pode afirmar de determinados tipos de obras, a rigor, clandestinas,

desde que configurado interesse social. O “interesse social”, evidenciado pela ocupação

por população de baixa renda ou outros grupos sociais vulneráveis, é modalidade de

cláusula geral urbanística trazida pelo Estatuto da Cidade e consolidada pela Lei

11.977/2009, a permitir a flexibilização de parâmetros e índices urbanísticos (como os de

uso e ocupação do solo), para regularização fundiária. Enquanto o primeiro diploma

define, entre os instrumentos político-jurídicos do art. 4º, V, as Zonas Especiais de

Interesse Social (alínea ‘f’), o último diploma menciona, expressamente, a regularização

fundiária de interesse social:

Art. 47. Para efeitos da regularização fundiária de assentamentos urbanos,

consideram-se:

(...)

VII – regularização fundiária de interesse social: regularização fundiária de

assentamentos irregulares ocupados, predominantemente, por população de

baixa renda, nos casos:

a) em que a área esteja ocupada, de forma mansa e pacífica, há, pelo menos, 5

(cinco) anos;

b) de imóveis situados em ZEIS; ou

c) de áreas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios

declaradas de interesse para implantação de projetos de regularização

fundiária de interesse social;

Ora, a regularização de um assentamento precário, logo, fora dos padrões

urbanísticos apontados no zoneamento, é aceita pelo direito brasileiro com fundamento

no primado da moradia digna, admitindo-se, por conseguinte, não o saneamento de

infrações administrativas (construções clandestinas), mas a flexibilização dos

regulamentos administrativos (e, nos termos do art. 54, mesmo dos regramentos

ambientais, atendidos alguns critérios) para que tais edificações deixem a irregularidade. É

dizer, altera-se a norma e se anistiam as infrações anteriores, mas não se convive com a

sanção impune, ignorando-a. Resta discutir, contudo, se as novas edificações promovidas

pós-regularização fundiária necessitarão de licenciamento (quiçá em modalidade

simplificada), o que parece razoável. As ZEIS, instituídas por lei ou decreto) não são

espaços de exceção, de não-direito, mas territórios com parâmetros particulares de uso e

ocupação do solo, que ainda possibilitam a conferência a ser empreendida pela

Administração Pública.

Destarte, é preciso alertar para o emprego indiscriminado das medidas de

regularização, que não podem sobrepor-se à própria legislação, especialmente em

Page 22: Controle de Edificaçõesurbanismo.mppr.mp.br/arquivos/File/Poder_de_policia.pdfcapacidade de suporte da infraestrutura e equipamentos, aumento de tráfego, emissão de ruídos e/ou

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benefício de pessoas físicas ou jurídicas sem qualificação de hipossuficiência, qual se

verifica correntemente para condomínios de alto padrão, loteamentos fechados, hotéis

em terrenos de marinha e áreas de preservação ambiental ou grandes empreendimentos

como shoppings, sob pena de perversão da lógica e dos objetivos do planejamento

urbano.


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