CONTROLE INSTITUCIONAL COMO ELEMENTO DE
RELEVÂNCIA PARA A AVALIAÇÃO DA CAPACIDADE
ESTATAL: CONCEITOS, POSSIBILIDADES E LIMITES
PARA O CASO BRASILEIRO
LEICE MARIA GARCIA
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Painel 40/121 A construção de modelos transversais para a gestão de serviços públicos
CONTROLE INSTITUCIONAL COMO ELEMENTO DE RELEVÂNCIA PARA A AVALIAÇÃO DA CAPACIDADE ESTATAL: CONCEITOS,
POSSIBILIDADES E LIMITES PARA O CASO BRASILEIRO
Leice Maria Garcia
RESUMO
Este artigo analisa, em caráter exploratório, a relevância da função controle
institucional para a discussão sobre capacidade estatal. Trabalhos acadêmicos afirmam a importância do tema para a adequada execução das políticas públicas, mas poucos avançam na operacionalização do conceito. A partir de revisão da
literatura e de levantamento de documentação junto à burocracia federal, busca -se: a) compreender o atual debate sobre capacidade estatal; b) verificar em que medida
os conceitos, as variáveis e os resultados da função de controle institucional estão presentes nas propostas para avaliação de capacidade estatal, e c) discutir os limites dessa discussão para o caso brasileiro, utilizando o contexto das relações
institucionais de gestão e controle dos recursos repassados na modalidade de transferências voluntárias da União para as demais esferas públicas e instituições
privadas sem fins lucrativos.
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INTRODUÇÃO
Este artigo adota o pensamento de centralidade do Estado para o
desenvolvimento das sociedades contemporâneas, notadamente nas dimensões
econômicas, sociais e ambientais. Trabalha com as premissas de limites do mercado
para promover crescimento integrado a desenvolvimento social e do dever do
Estado de desenvolver competências administrativas e políticas para auxiliar na
definição e alcance de objetivos coletivos.
Evidentemente se reconhece que são substantivas as lacunas de
efetividade do Estado e de condutas dos agentes alinhadas ao interesse coletivo.
Em alguns casos, como no Brasil, problemas se agudizam, colocando em risco
relações sociais historicamente construídas. O resultado, muitas vezes, são políticas
públicas com alcance precário de objetivos/compromissos coletivos e, no limite,
escândalos de corrupção pela ação de agentes públicos e privados que
transacionam em estruturas viciadas.
Na perspectiva de encontrar caminhos para esses desafios, autores têm
apontado para a relevância da discussão sobre como ampliar a capacidade do
Estado para favorecer o atingimento dos seus fins. O conceito ainda está em fase de
apropriação e poucos estudos, predominantemente na ciência política, tentam
escrutinar as variáveis de relevância para o seu dimensionamento.
Na administração pública, os estudos são mais escassos. Neste sentido,
este artigo se propõe breve revisão da literatura, para verificar em que medida o
controle constituído no âmbito dos próprios Estados aparece como dimensão de
relevância nos construtos de avaliação da capacidade estatal. Na sequência, por
meio de levantamento empírico, buscar-se-á aproximar a discussão do contexto da
administração pública brasileira.
A importância da proposta decorre da relevância do controle institucional
para o funcionamento do Estado. Desde a interpretação de Weber, no início do
século XX, reconhece-se que a ordem administrativa e jurídica, que direciona e
delimita a ação do quadro político e administrativo estatal, como um dos principais
fundamentos do Estado. A complexidade elevada das relações internas entre os
agentes que transacionam nessa esfera de poder faz com que o controle da
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sociedade sobre o Estado deva necessariamente ser complementado por
mecanismos de controle constituídos para incentivar os agentes públicos, eleitos ou
não, a adotarem, em suas práticas, as regras do jogo estabelecidas pelos sistemas
racionais-legais.
O texto está organizado em três i tens: no primeiro, faz-se revisão do
conceito e propostas de aferição, no segundo, verifica-se como o controle
insti tucional tem sido percebido nas propostas de dimensionamento dessa
capacidade; e no terceiro, faz-se breve análise comparativa de aferição de
habilidades administrativas em procedimentos burocráticos na União Europeia e
no Brasil.
1 REVISÃO CONCEITUAL E POSSIBILIDADES DE AFERIÇÃO DE CAPACIDADE
ESTATAL
De acordo com Luciana Cingolani (2013), o surgimento do conceito
capacidade estatal decorreu do fato de o Estado ter sido colocado na agenda da
sociologia política na segunda metade do século XX. Peter Evans (1993),
analisando a forma como o Estado tem sido abordado pelas ciências sociais,
identi fica três ondas.
A primeira onda teve como premissa a noção de que os aparelhos de
Estado poderiam e deveriam promover mudanças estruturais que provocassem o
desenvolvimento das sociedades. Considerou-se que o Estado detinha as soluções
para o atendimento das demandas sociais (modelo das sociedades desenvolvidas –
Welfare State), para o subdesenvolvimento (modelo de substituição de importações)
ou para o conflito de classes (modelo do estatismo comunista).
A segunda corresponde a um espelhamento invertido da situação
anterior, com o Estado passando a ser estudado como problema. Nessa visão, a
agenda da administração pública passa a se vincular à redução do tamanho do
Estado, com foco em variáveis macroeconômicas, eficiência administrativa e
redução de gastos públicos em contexto de reformas do Estado 1 . Além disso,
1 A primeira geração de reforma foi conduzida pela Inglaterra, tendo sido estendida à Nova Zelândia, Austrália e, em menor grau aos EUA, Canadá, Suécia, França e Itália, Chile, México e Brasil (LANE,
2000).
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assume relevância o estudo do risco de interesses individuais dos agentes públicos
prevalecerem sobre interesses coletivos, favorecendo argumentos da necessidade
de diminuição do Estado.
A terceira onda recoloca a importância do Estado. O efeito das reformas
teria permitido a constatação de que, até mesmo para contratar de forma efetiva,
são necessárias certas capacidades administrativas e políticas que muitos Estados
não detinham. Desde os anos 80, surgiram trabalhos sinalizando a necessidade de
ampliação de competências administrativas e políticas para a implementação de
políticas públicas, sendo um dos mais importantes o de Bárbara Geddes (1994), que
pesquisou o processo brasileiro de desenvolvimento.
Fabián Repetto (2003) afirma que a segunda geração de reformas
mostrou a incapacidade do mercado para gerar crescimento econômico de forma
integrada a desenvolvimento social. Para o autor este teria sido o momento inicial
para situar o conceito da capacidade de Estado, com significado próximo ao de
capacidade burocrática do Estado.
Fernando L. Abrúcio (1997) identifica que o Estado ganha relevância na
PSO – Public service orientation, movimento que alia os temas de propostas
anteriores com a agenda do republicanismo e da democracia e incorpora novas
demandas como accountability, participação política, equidade e justiça.
Evans (1993) afirma que a reemergência da importância do Estado
decorreu da percepção que, mesmo nos países onde ocorreram processos de
liberalização, de privatização e outras estratégias similares, gestores públicos
continuaram a ter papel de vanguarda para mudanças estruturais. Defende que a
retomada do pensamento Weberiano advém da percepção de que o problema não é
de excesso de burocracia, conforme preconizava a nova administração pública, mas
de carência de seus fundamentos2 (WEBER, 1976).
2 Corroborando com a noção de que a NGP não prescinde da estrutura burocrática, Evans (1993) e Geddes (1994) reafirmam a importância do Estado para o desenvolvimento econômico e social. O
primeiro ao analisar o sucesso econômico dos Newly Industrialized Countries (NICs) do sudeste asiático, afirma que a dinâmica dos estados desenvolvimentistas se sustenta em: 1) coerência corporativa e intervenções estratégicas, com maturidade das características weberianas de
autonomia, seletividade, recrutamento meritocrático e recompensas de carreira no longo prazo; 2) redes informais com a sociedade e com o mercado que ampliam a coerência interna da burocracia. Geddes, ao analisar a capacidade de governantes latino-americanos para implementarem políticas
de desenvolvimento, afirma que as elites burocráticas e políticas, ao disputarem recursos escassos,
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Entidades como Banco Mundial e o Banco Interamericano apoiaram
projetos voltados ao desenvolvimento institucional de países da América Latina, Ásia
e África3. O foco era a ampliação da capacidade das instituições para fortalecerem a
autoridade do Estado para execução de programas em arranjos voltados à
valorização do interesse público.
Cada uma dessas ondas originaram formulações distintas sobre
capacidade estatal. Cingolani (2013) realizou importante revisão do conceito e
construtos de aferição, citando as seguintes contribuições:
a) Charles Tilly, com o trabalho The Formation of National States in
Western Europe (1975) – é apontado pela autora como precursor do
conceito. Afirma a capacidade estatal (ou stateness) como o poder do
Estado para estimar os recursos necessários à população local e para
vencer a resistência da população para resistir à captação recursos
decorrente;
b) Skocpol, no trabalho Bringing the state back de Evans, Rueschemayer
e Skocpol (1985) – define capacidade estatal como habilidade para
implementar objetivos oficiais, ainda que em oposição ao
poder/resistência de grupos sociais ou em face de circunstancias
socioeconômicas não favoráveis;
c) Migdal, com o livro Strong States, Weak Societies (1988) – define
capacidade de Estado como a habilidade dos líderes do Estado para
constituir agências que consigam fazer com que a sociedade e o
Estado assimilem a extração de recursos, a regulação social e o
domínio territorial;
com estratégias patrimonialistas / clientelistas, acabam provocando efeitos negativos para a performance do Estado e, também, para a própria Economia. Assim, uma saída encontrada no
Brasil, por exemplo, foi a criação de estruturas paralelas, funcionando à parte das estruturas tradicionais para implementar projetos prioritários. Um exemplo citado foi o BNDES. Complementarmente ao trabalho de Evans que estudou o efeito da inserção da sociedade no
Estado como fator de ampliação da sua capacidade, Geddes verificou os ganhos de capacidade de estado em situações de ampliação de autonomia burocrática.
3 O Banco Mundial – BIRD e o Banco de Desenvolvimento – BID em projeto conjunto para avaliação
do Programa Agropecuário argentino, em 1991, contrataram Alain Tobelem para desenvolver a metodologia a ser utilizada na avaliação. Foi desenvolvido o SADCI – Sistema de Análise de Capacidade Institucional – que passou a ser utilizado por ambos os bancos em diferentes projetos
em países, particularmente, na América Latina, na década de 90 (OSZLAK e ORELLANA, 2001).
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d) Linda Weiss (1988) – afirma que se trata da habilidade do Estado para
coordenar mudanças industriais nas sociedades até o alcance das
condições para competição internacional;
e) Evans and Rauch (1999 a 2000) – estudo empírico seminal que analisa
o efeito das dimensões da burocracia weberiana no desenvolvimento
econômico;
f) DeRouen et. al (2010) – em estudo envolvendo Irlanda do Norte,
Indonésia, Burundi, Mali e Somália, capacidade estatal é entendida
como habilidade para alcançar objetivos definidos com participação
coletiva, ainda que enfrentando resistências de parcela dos atores da
sociedade;
g) Dincecco (2011) – estudando impactos da capacidade estatal na
performance econômica de longo prazo na Europa, compreende o
conceito como combinação de centralização na captação de recursos e
limitação do poder executivo por mecanismos de freios e contrapesos
institucionais;
h) Hamm, King and Stuckler (2012) – desenvolvendo estudo sobre países
do leste europeu após era soviética, entenderam capacidade estatal
como habilidade do Estado para se inserir na sociedade e realizar seus
objetivos.
No Brasil, dois trabalhos recentes abordaram o tema. Alexandre Ávila
Gomide e Roberto Rocha Pires (2014, p. 19 ), ao discutirem as novas bases para o
desenvolvimento econômico e social do Brasil, entendem arranjo institucional “(...)
como o conjunto de regras, mecanismos e processos que definem a forma par ticular
como se coordenam atores e interesses na implementação de uma política pública
específica.” Admitem que são esses arranjos que dotam o Estado de capacidade de
execução de seus objetivos.
Entendem que a capacidade estatal pode ser analisada a partir de dois
componentes, o técnico-administrativo e o político. Considera, igualmente a Evans,
que o primeiro componente deriva do conceito weberiano de burocracia,
contemplando competências dos agentes para gerir as políticas, por meio de ações
coordenadas e orientadas para resultados previamente contratados com a sociedade.
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O segundo componente volta-se para a dimensão política, correspondendo às
habilidades dos governos para operar os canais de interlocução com os diversos
atores sociais, de forma a minimizar e resolver conflitos e para evitar a captura por
interesses específicos.
Regina Pacheco Silva (2013), ao discutir o papel que o Estado tem
assumido na economia brasileira, focaliza aspectos de organização e funcionamento
(estruturas, procedimentos, conjunto de normas e práticas institucionais) e busca
identificar potencialidades e desafios decorrentes da atual capacidade institucional.
A análise se volta para problemas de coordenação intragovernamental, voltada para
intersetorialidade e processamento de objetivos, notadamente em ambiente social
complexo formado por um emaranhado de disposições e normas que desafiam o
processo decisório dos atores.
Afirma que, em termos de estrutura macrorganizacional do aparelho do
Estado – extensão, diversificação de formatos organizacionais, ciclos de expansão e
retração, instrumentos que permitem às partes relacionarem-se entre si – a
experiência brasileira tem ido na contramão da experiência internacional recente.
Esta tem convergido no sentido da simplificação das estruturas por meio da redução
do número de ministérios ou departamentos e da concessão de flexibilidades de
gestão às organizações prestadoras de serviços públicos, em troca do compromisso
prévio com resultados a serem entregues por aquelas organizações.
Considera que, além de ampliar estruturas (aumento do número de
ministérios), o Brasil assiste a recrudescimento dos controles de procedimentos e
certo retrocesso em pequenos avanços havidos em concessão de flexibilidades.
Aponta ainda que os controles no Brasil, dirigindo-se à CGU e ao TCU, engessam a
máquina pública e dificultam a inovação, sem conseguir coibir práticas ilegais e
corrupção.
Além de apresentarem conceitos, alguns autores vincularam capacidade
estatal a habilidades passíveis de estimativa e intervenção racional e sistematizada.
Grindle (1997) indica quatro componentes fundamentais para aferição de capacidade
estatal: (1) capacidade administrativa – habilidade dos Estados para entregar bens
e serviços à sociedade; (2) capacidade técnica – habilidade dos Estados para
manejar políticas macroeconômicas e formular opções de políticas econômicas;
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(3) capacidade política – habilidade dos Estados para responder a demandas
sociais, permitindo canalização e representação de interesses sociais e
incorporando a participação social em decisões e resolução de conflitos; e (4)
capacidade institucional – habilidade dos Estados para produzir e fortalecer regras
que governam a interação política e econômica.
Repetto (2003), em trabalho para o BID, estabeleceu sua definição a
partir das contribuições de Hilderbrand e Grindle (habilidade para desempenhar
tarefas apropriadas com efetividade, eficiência e sustentabilidade), de Aunque Weiss
(capacidade transformadora do Estado) e de Migdal (capacidade dos lideres estatais
de utilizar os órgãos com a finalidade de implementarem suas decisões em prol da
sociedade). Definiu capacidade de Estado como habilidade das instâncias de
governo para implementar, através de políticas públicas, os máximos níveis
possíveis de valor social.
O autor propôs para o dimensionamento da capacidade de Estado
atributos que se relacionam com duas perguntas básicas sobre a ação
governamental: como fazer e para quê. Em relação ao como, cita:
1. Coordenação da interação dos atores: trata-se de fazer com que a
interação ocorra em função de tarefas previstas, na busca de
vantagens comparativas, tendo em vista objetivos públicos definidos;
2. Flexibilidade: possibilidade de as políticas serem alteradas em função
de circunstâncias internas e externas;
3. Inovação: capacidade de reagir a situações não usuais, resultando em
modificação total ou parcial das dinâmicas existentes ou criação de
novas;
4. Qualidade: satisfação com bens ou serviços entregues segundo
padrões considerados apropriados pela sociedade;
5. Sustentabilidade: condição de as intervenções perdurarem no tempo,
sem modificações em função de fatores conjunturais;
6. Avaliação: processo para determinar se a decisão ou ação pública
alcançou os objetivos e as metas propostas; e
7. Accountability: processo de prestação de contas de autoridades e
agentes públicos à sociedade.
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Em relação ao para quê, o autor pontua como relevantes:
1. Legitimidade: geração de consensos básicos entre os principais
atores; e
2. Equidade: busca da igualdade de oportunidades, entre as quais cabe
destacar a igualdade de acesso ao resultado das políticas públicas e
ao resultado do progresso econômico.
Anne Mette Kjær, Ole Hersted Hansen e Jens Peter Frølund Thomsen
(2002) definem capacidade estatal como habilidade para formular e implementar
estratégias para consecução dos objetivos econômicos e sociais da sociedade, mas
alertam que essa definição não fornece pistas de como o fenômeno pode ser
estudado. Isso porque não se trata de algo tangível, passível de observação em si
mesmo, mas que deve ser buscado em consequências ou pré-condições, tais como
resultado de políticas públicas, sistemas de arrecadação ou sistemas de controle.
Assim, trabalharam o tema em três níveis de habilidades com cinco atributos para
cada nível:
1. Habilidades intrínsecas de capacidade estatal – (1A) poder de
arrecadação de impostos; (1B) poder de promover a obediência aos
princípios burocráticos; (1C) sistema administrativo especializado e
diferenciado; (1D) forte controle das finanças públicas; (1E)
capacidade militar de defesa nacional.
2. Mecanismos de desenvolvimento de capacidade – (2A)
estabelecimento de arranjos e alianças corporativas para solução de
conflitos; (2 B) ampliação do poder das autoridades locais; (2C)
flexibilização do setor público; (2D) liderança política; (2 E) alianças
com atores e instituições externas.
3. Pré-condições para desenvolvimento de capacidade – (3A) estrutura
de governança gerando legitimidade, confiança e reciprocidade; (3B)
crescimento e organização do setor privado; (3C) alto nível
educacional; (3D) alto nível de organização da sociedade; e (3 E)
participação na divisão internacional do trabalho.
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Barzelay et al (2002), realizando trabalho para avaliar as reformas do
setor público da América Latina, estabeleceu cinco grandes áreas para
construir/reconstruir capacidades técnico-administrativas de Estado: a) processo de
planejamento do gasto e gestão financeira; b) função pública e relações trabalhistas;
c) organização e métodos; d) gestão de compras; e e) auditoria e avaliação.
Verifica-se nessas definições e propostas de dimensionamento que há
dois consensos importantes. O primeiro deles é que o Estado importa e interfere nas
condições de desenvolvimento das sociedades. O segundo é que a habilidade
administrativa do Estado é uma dimensão estratégia para a execução dos objetivos
pactuados socialmente.
Neste artigo, a partir das contribuições referenciadas, admitir-se-á que o
conceito de capacidade estatal necessariamente vincula-se à lógica da finalidade de
ação estatal e que a dimensão administrativa estará sempre presente. Assim, os
próximos itens estarão voltados a evidenciar que a função controle institucional tem
relevância para o funcionamento adequando da dimensão administrativa,
notadamente pelo seu papel para a legitimidade institucional.
2 REVISÃO SOBRE O CONCEITO DE CONTROLE INSTITUCIONAL E APLICAÇÃO PARA A ESTIMATIVA DE CAPACIDADE DE ESTADO
A interpretação de Max Weber (1999) para o Estado moderno se constitui,
ainda hoje, referência fundamental para a discussão sobre mecanismos de controle
instituídos pelo ordenamento jurídico estatal nos países democráticos. A explicação
weberiana ressalta a essência de dominação social do Estado
(...) o Estado é aquela comunidade humana, que dentro de determinado território (...) reclama para si (com êxito) o monopólio da coação física
legítima, pois o específico (...) é que a todas as demais associações ou pessoas individuais somente se atribui o direito de exercer coação física na medida em que o Estado o permita (WEBER 1999, p.526).
Pierre Bourdieu (1996) parte da interpretação weberiana para refletir
sobre as causas que levam os indivíduos a admitirem a dominação do Estado.
Define que a noção de legitimidade da dominação social foi constituída por longo
processo de construção histórica, que se encontra internalizada nas estruturas
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cognitivas dos agentes sociais. Sustenta que a legitimidade da dominação do Estado
depende da construção simbólica do interesse público, como referência obrigatória
de valores de neutralidade e de devotamento desinteressado dos agentes do Estado
ao bem comum.
Esse reconhecimento possibilita compreender que a obrigatoriedade de
referência de legitimidade e de universalidade impõe ao Estado o dever de
instituição de mecanismos que induzam os seus agentes operadores (burocratas e
políticos) a inibirem interesses pessoais/egoístas, especialmente os econômicos,
para priorização dos compromissos do Estado com a coletividade (GARCIA, 2011).
Assim, como primeira referência necessária para situar o conceito em
referência, a partir de Weber e de Bourdieu, é possível afirmar que a função
controle institucional integra o esforço sistemático e objetivo do Estado para alinhar
os interesses pessoais dos seus agentes à noção insti tuída oficialmente c omo
interesse público.
Já a segunda referência diz respeito à lógica de funcionamento das
organizações burocráticas. No sentido weberiano, significa organizar um conjunto de
meios para buscar fins específicos, utilizando como estrutura um sistema racional-
legal4. No Estado, essa estrutura corresponde ao conjunto de órgãos e entidades
denominado administração pública. Uma das características fundamentais desse
espaço social é a existência de uma ordem administrativa e jurídica que, dentre outras
possibilidades, define a forma como as escolhas são feitas e orienta a ação do quadro
administrativo, o qual também é instituído por estatuto próprio (WEBER, 1999).
As escolhas públicas e as respectivas ações são, respectivamente,
competência de políticos e de burocratas. Os primeiros são eleitos para ocuparem
cargos públicos com mandato definido, detendo, portanto, legitimidade para tomar
4 Os atributos da burocracia são: 1) a organização cont ínua de cargos é delimitada por normas; 2) a sistemática da divisão de trabalho é constituída pela atribuição de autoridade compatível com a
função e pela definição de instrumentos de coerção e limitação do uso; 3) as relações são regidas pelo princ ípio da hierarquia, em que cada cargo inferior está sob o controle e supervisão superior, havendo direito de apelação dos inferiores aos superiores; 4) especialização para exerc ício de
cargos; 5) os membros do quadro administrativo estão afastados da propriedade dos meios de produção e a administração exerce o controle sobre os membros em nome dos proprietários; 6) impessoalidade, dado que o funcionário não é dono do cargo. Perdido o cargo, outro funcionário
responde pelas funções; 7) todos os atos devem ser comprováveis por meio de documentação.
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decisões políticas. Os segundos integram o quadro permanente de funcionários
encarregados pela operacionalização das decisões políticas. Por meio dessas ações,
as metas pactuadas com a sociedade são entregues na forma de bens e/ou serviços.
Desse arranjo, alguns riscos emergem: a) as escolhas dos políticos
podem ser diversas daquelas declaradas como plataformas políticas no momento
das eleições; b) a burocracia pode exacerbar de suas funções e tomar decisões para
as quais não detém legitimidade social e política; c) políticos e/ou burocratas podem
praticar ações oportunistas em proveito próprio; e d) políticos e burocratas podem
ser ineficientes no exercício de suas funções.
Admitida a vinculação do conceito de capacidade estatal à lógica da
finalidade de ação estatal, os riscos tornam-se referências necessárias para a
reflexão sobre o tema. O quadro abaixo considera, esquematicamente, modalidades
de controles e instrumentos para enfrentamento de potenciais riscos:
RISCOS
Divergência entre plataforma eleitoral e
escolhas políticas
Exacerbação de
poder pela Burocracia
Ineficiência Corrupção
TIPO DE CONTROLE
Controle Político
Controle Social
Controle Externo
(controle burocrático)
Controle
Jurisdicional
Controle Externo e Interno, nas modalidades de
controle burocrático, controle de
resultados.
Controle social
Controle Interno e Externo, na modalidade de controle burocrático
Controle das infrações penais contra a ordem política e social pelas
agências próprias.
INSTRU-MENTOS
Eleições, imprensa livre,
ação de grupos sociais organizados.
Auditoria
Fiscalização de
entes superiores (freios e contrapesos)
Prestação de contas (freios e contrapesos)
Auditorias, Fiscalizações, Monitoramento,
Avaliação
Imprensa livre
Ação de grupos
sociais organizados
Auditoria, Fiscalização, Investigações sobre
possíveis infrações penais(descumprimento das leis do país e
tratados internacionais). Podem se valer de ferramentas tais como
“sopro do apito”, delação, quebras de sigilos etc.
Fonte: Elaboração própria
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O primeiro risco situa-se na esfera política. Seu principal mecanismo de
controle é vertical, que ocorre por intermédio dos instrumentos de controle da
sociedade sobre o Estado, operacionalizados pelos pleitos eleitorais e pelos canais
de democracia direta e participativa.
Para os demais riscos, o controle direto da sociedade é pouco eficaz.
Maximizando fenômenos de ritualismo e corporativismo, políticos e burocratas
podem promover deslocamento de objetivos, tornando-se um fim em si mesmo e
perdendo a conexão com as finalidades que legitimam suas práticas, gerando o que
Michel Crozier (1981) denomina disfunções burocráticas. Esse deslocamento pode
ocasionar ineficiências, inclusive com riscos de utilização do Estado para fins de
rendas impróprias, sob a forma de corrupção.
Para minimizar esses riscos, o Estado organiza um conjunto de estruturas
horizontais. Como demonstrado no esquema apresentado, todos os três tipos de
riscos podem/devem ser enfrentados por mecanismos de controle institucional: a) o
controle político sobre a burocracia (controle externo), que busca assegurar o
alinhamento às decisões da esfera política e ao conjunto de regras definidas pelo
ordenamento jurídico; b) o controle dos gestores públicos (controle interno)
responsáveis pelas operações, processos e ações executadas no âmbito de suas
responsabilidades para melhorar a racionalidade das decisões gerencial e
operacional com relação aos fins desejados e para assegurar condições de
prestação de contas às entidades de fiscalização institucional.
Adam Przeworski (2001) cita Manin (1994), para afirmar que o problema
dos poderes ilimitados em cada esfera de governo, legislativo, executivo e judiciário,
nos regimes com separação de poderes, fica contornado pelos mecanismos de
freios e contrapesos. Esses mecanismos destinam-se a constranger os agentes de
cada poder a agirem segundo as regras do jogo vigentes e garantir adequada
eficácia das instituições.
Esses mecanismos de controle foram descritos por Guillermo O´Donnell
(1998) como accountability horizontal, formado por uma rede de agências que detêm
responsabilidades para realização de ações “que, vão desde a supervisão de rotina
a sanções legais ou até impeachment contra ações ou emissões de outros agentes
ou agências de Estado que podem ser qualificadas como delituosas” (O´Donnell,
1998, p. 40).
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Essas agências buscam coibir a possibilidade de os agentes públicos
deixarem de priorizar o interesse público, bem assim de agirem em desacordo com o
previsto pelo ordenamento jurídico. Então um problema central é como estruturar as
agências responsáveis pelos mecanismos de controle horizontal para maximizar as
possibilidades de alinhamento das ações dos agentes públicos aos interesses
públicos.
Porém, a discussão não se esgota com as agências de fiscalização
superior. Desde meados do século passado, as organizações públicas e/privadas se
tornaram mais complexas, de forma que as auditorias independentes passaram a
exigir delas a instituição de mecanismos de controle interno como estratégia de
segurança para emissão de pareceres. Quanto mais consistência de controle
interno, menor o risco de auditoria.
Para o setor público, a Organização Internacional de Entidades de
Fiscalização Superiores – INTOSAI indica que as organizações públicas devem
instituir adequados mecanismos de controle interno, entendendo este como
processo integrado que é efetivado por todos, gerentes e funcionários, com função de detectar riscos e prover segurança razoável para a busca do cumprimento da missão organizacional, seguindo os objetivos gerais de
executar as operações de forma organizada, ética, econômica, eficiente e efetiva; de preencher os requisitos de responsabilização (accountability); de atender às leis e às regulamentações; e de salvaguardar os recursos contra
perdas, abusos e danos. (INTOSAI, 2004, p.4).
Trata-se de visão sistêmica de controle que inclui atividades que devem
ser realizadas pela própria gestão para assegurar que as ações executadas se
alinham ao que institucionalmente foi planejado e que obedecem ao conjunto de
regras que orientam e obrigam as ações dos agentes públicos.
Interessante pontuar que as duas modalidades de mecanismos de
controle, o interno, na concepção da Intosai, e o externo, contemplam instrumentos
que são relevantes no enfrentamento de dois dos riscos já referenciados, o da
exacerbação de poder pela burocracia e o de ineficiência. Utilizam ferramentas
típicas do controle burocrático, quais sejam auditoria, fiscalização, monitoramento e
avaliação. Todas essas modalidades podem ser operacionalizadas em dois
sentidos: o da conformidade das práticas, relativamente ao ordenamento jurídico, e
o do atingimento dos resultados previstos, via de regra, com verificação do
cumprimento de metas físicas e relação custo/benefício.
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Esses mecanismos de controle também auxiliam na mitigação do risco da
corrupção, dado que ampliam o risco de detecção. No entanto, pelas características
do risco, maior eficiência assiste às agências de combate ao delito e ao crime. É
assim nos países com instituições mais consolidadas e cada vez mais, também, no
Brasil, com atuação conjugada da Polícia Federal com o Ministério Público Federal.
Tendo em vista essas referências, apresenta-se, a seguir, como os
mecanismos de controle institucional podem contribuir com dimensões de aferição
de capacidade estatal propostas no item anterior.
Autor Dimensão Relevância do controle institucional no
dimensionamento
Grindle
Capacidade administrativa
Os dois níveis de controle institucional são relevantes
para a estimativa dessa dimensão. No nível de controle interno, amplia a possibilidade de entrega do produto ou serviço, dado que assegura aos
integrantes das organizações públicas informações mais confiáveis sobre as atividades executadas. No nível do controle externo (envolvendo controle
burocrático, controle jurisdicional, agências investigativas), favorece o alinhamento das escolhas dos agentes ao interesse público, pelo aumento do risco de detecção dos desvios.
Capacidade Técnica
Dependendo do nível de maturidade das agências de
controle, pode haver análises da influência das escolhas públicas na política econômica por meio de auditorias de desempenho.
Capacidade institucional
Muita aderência, dado que o controle institucional
integra o esforço do Estado para observação e fortalecimento da ordem institucional, notadamente pelo alinhamento que ao ordenamento jurídico
vigente.
Repetto Coordenação
Essa dimensão tem aderência a todas as modalidades de controle institucional. Os ferramentas de controle interno, notadamente procedimentos de
monitoramento, de avaliação e de fiscalização ou auditoria interna, auxiliam a ampliar a racionalidade dos processos decisórios pela diminuem a assimetria
de informações entre os que executam as ações e os responsáveis pelas atividades de gerenciamento e coordenação. O controle externo fomenta o
alinhamento à norma vigente e, pelos mecanismos de punição, amplia o custo transação de ineficiência, omissão e corrupção.
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Repetto
Qualidade; e Avaliação
As ferramentas de controle interno e a modalidade de auditoria operacional utilizada pelas agências de
controle externo podem contribuir com as duas dimensões. O primeiro, pelos trabalhos de acompanhamento da execução das metas e
verificação de cumprimento de objetivos; a segunda pela possibilidade de avaliação de processos operacionais nas ações/programas governamentais.
Accountability
As ferramentas de controle interno são fundamentais
para que os gestores cumpram, com segurança o dever de prestar contas dos atos praticados, e de responderem por eles, junto às agências estatais de
controle institucional e à sociedade.
Kjær et al
Primeiro grupo: 1A) poder de arrecadação de impostos; (1B) obediência aos princípios da
organização burocrática; (1C) sistema administrativo especializado e diferenciado;
(1D) forte controle das finanças públicas – controle interno; (1E) capacidade
militar de defesa nacional.
As ferramentas de controle interno apresentam relevância para as habilidades 1B, 1C e 1D, sendo que, neste último a própria habilidade cita o termo
“controle interno”. As habilidades 1 B, 1 C e 1 D são fortemente fiscalizadas pelo controle externo.
Terceiro grupo: (3A) governança gerando legitimidade, confiança; (3B)
crescimento e organização do setor privado; (3C) alto nível educacional; (3D) alto nível de
organização da sociedade; risco externo para o Estado; e (3 E) participação na divisão
internacional do trabalho.
Todas as modalidades de controle institucional têm relação com o atributo 3 A, pois favorece a capacidade administrativa, incentiva à obediência às
regras e inibe corrupção e desperdícios de recursos.
Barzelay et al
a) processo de planejamento de gestão financeira; b) função pública e relações
trabalhistas; c) organização e métodos; d) gestão de compras; e) auditoria e
avaliação.
A dimensão “e” abrange tanto as ferramentas de controle interno e externo.
18
3 UTILIZAÇÃO DE DIMENSÕES DE CAPACIDADE ESTATAL POR BUROCRACIAS PÚBLICAS
3.1 União Europeia
Como exemplo de aplicação em burocracia pública, traz-se o sistema
europeu de controle de aplicação de recursos em desenvolvimento regional. 5 Na
União Europeia, com base em critérios objetivos de elegibilidade, recursos podem
ser alocados para impulsionar o desenvolvimento local, contemplando regiões que
possuem PIB per capita abaixo de 75% da média da União Europeia. Para tanto, é
exigido que o País solicitante demonstre deter estrutura de gestão e controle capaz
de assegurar, tecnicamente, adequada aplicação desses recursos.
Antes de qualquer repasse de recurso, o solicitante deve apresentar
informações sobre o sistema de gestão e controle que será utilizado, devidamente
definidas em check-list técnicos. Deve abranger aspectos relativos à organização e a
procedimentos aplicados pela gestão para certificação de despesas e para garantir
que os demonstrativos sejam auditados em todos os níveis de responsabilidade. É
elaborado relatório com informações ex-ante, contemplando parecer independente de
auditoria quanto à conformidade e qualidade esperada do sistema de gestão e
controle (documento denominado compliance assessment). O sistema é baseado em
estrutura piramidal que segue o conceito de single audit, conforme figura a seguir.
Fonte: Relatório Consolidado. Projeto no DCI-ALA/2006-698 “Apoio aos Diálogos Setoriais EU – Brasil”.
5 Relatório Consolidado Ministério da Integração Nacional (2012).
19
As etapas incluem todos os organismos que participam do projeto.
Contemplam as entidades que respondem pelos trabalhos de gestão, supervisão e
auditoria, de forma a dotar a execução dos recursos de confiabilidade adequada,
segundo as normas e princípios de auditoria internacionalmente aceitos. Esta prática
estabelece um sistema único de informações de gestão e controle que é alimentado
por todos os atores que participam, em linha, da proposição, aprovação, execução e
avaliação dos projetos.
Os responsáveis têm, obrigatoriamente, de certificar a confiabilidade do
sistema, inclusive com verificação in loco. Quem executa a obra ou serviço deve
contratar auditoria independente (controle de primeiro nível). Na sequência, o órgão
que gere os recursos realiza exames, por amostragem, para testar, no momento dos
pagamentos, a confiabilidade das informações prestadas pelo executor. Em seguida,
a agência de controle do país proponente audita por amostragem todas as etapas
anteriores, de forma a responder institucionalmente pelo programas. Da mesma
forma, o Tribunal de Contas Europeu e do Parlamento audita, por amostragem, os
anteriores, para efeito de aprovação das contas apresentadas.
Como descrição geral das competências desses atores, apresenta -se o
quadro a seguir, que consolida informações das obrigatoriedades que alcançam os
gestores responsáveis.
Responsáveis Características administrativas obrigatórias
Executor
a) definição de estrutura lógica, objetivos e metas do Programa a priori do
repasse de recursos, de modo a favorecer a estruturação de adequados
processos de acompanhamento, monitoramento e avaliação; b) criação de
sistemas informatizados que se comunicam entre si e que garantem o acesso
a todos os níveis de gestão e controle; c) definição dos processos por meio de
normativos e fluxos suficientes para garantir a adequada transparência dos
procedimentos adotados; d) destinação de recurso específico para
fiscalização das ações, de modo a garantir condições para a adequada ação
de todos os níveis de auditoria.
Gestor do projeto
a) constituição de modelo racional e sistemático de gestão, contemplando
regras e procedimentos, formalizados em manuais técnicos que são utilizados
por todos os agentes que participam da execução das ações; b) adoção de
check-lists que são anexados aos pareceres técnicos nas diversas fases da
operacionalização, cujos modelos são de amplo conhecimento dos agentes.
20
Agente nacional
a) certi ficação das despesas, devendo assegurar que as informações dos
responsáveis pela gestão estão adequadas e fidedignas em relação aos
procedimentos realizados; b) a utilização de normas, de amplo conhecimento,
que definem modelos, procedimentos e condições específicas que devem ser
seguidos na elaboração dos relatórios específicos; c) verificação da
conformidade às normas definidas e difundidas pelo órgão nacional da
documentação apresentada pelos executores.
Agente nacional
de fiscalização
a) realização de auditorias anuais de conformidade nos sistema de gestão e
controle de cada agente nacional responsável pela execução de programas
financiados pela UE. Como o sistema de controle é baseado em estrutura
piramidal que segue o conceito de single audit, a estratégia é de supervisão;
b) em casos de novos projetos, a entidade de fiscalização tem prazo definido
para apresentar à Comissão Europeia a estratégia de auditoria a ser aplicada.
Tribunal de
Contas Europeu
a) realização de auditorias de avaliação da utilização dos fundos da UE, para
verificação da conformidade das operações financeiras, da economia,
eficiência e eficácia das ações executadas; b) realização de reuniões de
contraditório com os agentes, para discussões sobre achados e possíveis
recomendações; c) publicação das opiniões dos gestores lado a lado das
conclusões das equipes de auditoria para julgamento da corte do Tribunal.
Pela descrição, os repasses estão condicionados à comprovação de
capacidade de gestão e controle dos estados membros, na busca de condições
administrativas favoráveis ao cumprimento das metas definidas em contexto de
utilização regular dos recursos descentralizados.
3.2 Caso brasileiro
No Brasil, por força da CF/1988 e legislação infraconstitucional, a
administração federal uti liza mecanismos de descentralização de recursos 6
6 Existem três modalidades de transferências: constitucionais, legais e voluntárias. Segundo a Lei de Responsabilidade Fiscal, as transferências de recursos que não tenham como origem determinação
constitucional ou legal ou que não se destinem ao Sistema Único de Saúde são denominados transferências voluntárias. A finalidade é sempre a realização de obras e/ou serviços voltados ao interesse público. Tais repasses são destinados à realização de ações de competência dos órgãos
repassadores que legalmente podem ser objeto de execução por outros entes da federação, entidades privadas sem fins lucrativos ou mesmo outros órgãos federais. Essas transferências são mediadas pelo interesse comum entre as partes envolvidas e pela definição normativa do
modus operandi da operacionalização da política, que devem guardar coerência com o marco regulatório da Administração Pública Federal, notadamente no que diz respeito à despesa pública. Os instrumentos atuais são convênios, contratos de repasse, termos de parceria e termos de
execução descentralizada. À exceção do termo de parceria previsto na Lei no 9.790/1999 6 e
regulado pelo Decreto no 3.100/1999, as demais modalidades são atualmente reguladas pelo
Decreto no 6.170/2007, modificado Decreto 8.180/2013, e pela Portaria Interministerial MP/MF/CGU
no 507, de 28 de novembro de 2011.
21
para governos locais ou entidades privadas sem fins lucrativas para execução de
políticas públicas.
O Decreto 6.170/2008, regulamentado pela Portaria Interministerial
MPOG/CGU/MF n. 507/2011, define as regras para a execução descentralizada de
recursos federais, por meio de transferência voluntária. Esses normativos trazem
como dever do concedente a aferição da qualificação técnica e capacidade
operacional do órgão/ente candidato a receber recursos federais.
O art. 4 da PI afirma que os órgãos que pretenderem realizar
transferências de recursos financeiros deverão definir critérios de elegibilidade e de
prioridade de “forma objetiva, com base nas diretrizes e objetivos dos respectivos
programas (...) considerando (...) a aferição da qualificação técnica e da capacidade
operacional do convenente.”
O art. 90 afirma que é obrigatória a utilização dos indicadores de
eficiência e eficácia na verificação desse atributo seleção de entidades privadas.
O art. 26 define que, na análise do Plano de Trabalho de entidades privadas, “será
avaliada sua qualificação técnica e capacidade operacional para gestão do
instrumento, de acordo com critérios estabelecidos pelo órgão ou entidade
repassador de recursos”.
Para analisar como os órgãos públicos avaliam essa dimensão, fez-se
pesquisa junto aos 10 ministérios que mais repassaram recursos por transferência
voluntária, conforme a seguir7. Como esses 10 ministérios responderam por 90% dos
ajustes de transferências voluntárias feitos no período e por 85% dos valores
7 Ajustes/Repasses de 2010 a 2014: elaboração própria com dados do SICONV de março de 2015.
QTD $ milhão
Total de repasse federal 65.826 50.529
Ministério da Saúde 9.066 8.603
Ministério das Cidades 11.704 5.929
Ministério do Turismo 9.348 5.116
Ministério do Desenvolvimento Social e
Combate à Fome 2.659 4.337
Ministério da Integração Nacional 2.607 4.046.
Ministério do Esporte 6.867 3.852
Ministério da Agricultura, Pecuária e
Abastecimento 9.859 3.115
Ministério da Justiça 1.910 2.985
Ministério do Desenvolvimento Agrário 3.958 2.429
Ministério da Educação 1.500 2.396.
Subtotal 59.478 42.813
% Sub/Total 0,90 0,85
22
repassados, o que for detectado nesses órgãos terá relevância. Assim, foi
encaminhado questionário para os Assessores Especiais de Controle Interno desses
ministérios, sendo que sete apresentaram as respostas ao pedido de preenchimento.
Das respostas dos Assessores, apresentadas no quadro a seguir, é
possível identificar que não há, na administração federal, entendimento homogêneo
ou tratamento sistematizado do conceito e de métodos para aferição. Como as
visões são muito divergentes para uma questão que é técnica, o mais provável é
que falte homogeneidade inclusive em cada ministério. É ainda possível inferir que,
predominantemente: a) os processos seletivos para repasse de recursos ocorrem
quando legalmente obrigatório (entidades sem fins lucrativos); c) a aferição da
qualificação técnica e capacidade operacional não é percebida como exclusiva para
entidades privadas sem fins lucrativos; c) os ministérios responsáveis pelos
repasses não estabelecem estratégias de monitoramento e fiscalização da execução
dos recursos repassados em função da qualificação técnica e capacidade
operacional dos executores.
23
N. Assertiva
Conc
ord
o
tota
lmente
Conc
ord
o
Dis
cord
o
Dis
cord
o
tota
lmente
01 A seleção de convenentes ou parceiros só é feita quando
obrigatória legalmente, isto é, aplicável para repasses a entidades
privadas sem fins lucrativos.
1 3 3
02 A aferição de qualificação técnica e capacidade operacional é
restrita a entidades privadas sem fins lucrativos.
2 5
03 A qualificação técnica e capacidade operacional é declaratória,
não sendo objeto de aferição pelas áreas técnicas.
5 1 1
04
A aferição/declaração da qualificação técnica e capacidade
operacional dos convenentes e dos parceiros é uma etapa a ser
cumprida quando da aprovação do ajuste e não afeta a relação
posterior entre o concedente e o convenente.
2 3 2
05 As áreas técnicas detêm adequadas metodologias para a aferição
da qualificação técnica e capacidade operacional, com critérios
objetivos e sistematizados.
3 1 3
06 Propostas de entidades sem fins lucrativos são rejeitadas em
função de insuficiência de qualificação técnica e capacidade
operacional.
2 2 3
07 Propostas de entes públicos são rejeitadas em função de
insuficiência de qualificação técnica e capacidade operacional.
1 1 5
08
Planos de monitoramento da utilização dos recursos são
estabelecidos considerando o resultado da aferição (ou da
declaração) da qualificação técnica e capacidade operacional dos
convenentes e dos parceiros.
2 3 2
09
As áreas técnicas responsáveis pelas políticas detêm razoável
capacidade operacional para exercer o monitoramento e a
fiscalização de forma a favorecer ao uso adequado dos recursos
repassados.
3 4
10 O Ministério publicou normativo que define o conceito a ser
utilizado e estabelece procedimentos para a aferição da
qualificação técnica e capacidade operacional (*).
3 4
(*) Em caso de existir normativo próprio, encaminhar juntamente com o formulário respondido.
24
Para identificar o contexto e o sentido das respostas, foi realizada
entrevista por telefone com um dos assessores. Foi possível identi ficar certa
insegurança em fornecer uma resposta válida para todo o ministério, dado que há
diferenças entre unidades internas na condução do tema. Porém, foi ressaltado o
esforço das áreas técnicas do ministério para selecionar parceiros de forma que a
execução possa ser efetiva e com regularidade na aplicação dos recursos. Como
estratégias mais utilizadas, foram citadas: a) conhecimento das áreas técnicas
(experiência) sobre os parceiros locais, o que permite identi ficar quais têm tradição
de boa execução e quais têm problemas; b) para repasses específicos, muitas
vezes é publicada portaria definindo os cri térios de participação e condições
operacionais mínimas.
Vale ressaltar que três ministérios afirmaram ter publicado normativos para
a aferição da qualificação técnica e capacidade operacional, sendo que um único
ministério encaminhou cópias dos normativos. Nesses normativos, a expressão
completa qualificação técnica e capacidade operacional não foi localizada, mas consta
de um manual de análise de projetos, a seguinte minuta de declaração
O CONVENENTE apresentou as ARTs (…) assinadas pelo engenheiro Civil (…). Sendo assim, supõe-se que o CONVENENTE tem capacidade técnica para executar o objeto deste convênio, desde que seja realizado na forma
(...) dos Projetos (..) e outros documentos técnicos mencionados (...).
Observa-se que, diferentemente das exigências da União Europeia,
objetivas e sistematizadas, encontra-se exemplo de regulamento da relação entre as
partes que utiliza linguagem indefinida, “supõe-se”, o que traz insegurança ao
processo decisório e aos resultados da política pública.
CONCLUSÃO
A revisão conceitual realizada indica que a discussão sobre capacidade
estatal tem relevância e deve merecer atenção não apenas da academia, mas da
própria burocracia que administra os assuntos do Estado. Trata-se de pensar o
papel do Estado e constituir metodologias para prever a possibilidade de alcance
dos objetivos pactuados com a sociedade, utilizando pré-condições estruturais do
ente estatal. Evidentemente devem ser considerados os limites atuais e creditar à
reflexão futura avanços mais substantivos na temática.
25
Ao trabalhar as dimensões propostas para aferição, demonstrou-se que
as ferramentas de controle institucional podem ocupar posição estratégica. Os
mecanismos de controle constituem ferramentas importantes do Estado para ampliar
a probabilidade de consecução das suas finalidades, em contexto de manutenção da
legitimidade de dominação social que caracteriza este ente.
Da descrição feita para o caso dos repasses da União Europeia aos
países membros, vis a vis a situação no governo federal brasileiro ao realizar
repasse aos estados, municípios e entidades privadas, emergem diferenças
relevantes, notadamente quanto à objetividade das regras e ao efeito que elas
produzem.
Enquanto na União Europeia as regras são claras e as obrigações
restringem possibilidades de assimetria de informações pelo uso intensivo de
auditorias, na modalidade single audit, no caso brasileiro não há objetividade no
conceito utilizado e nos métodos de aferição ou de controle. As percepções díspares
entre os assessores dos ministérios são indicativo de que a ausência de
formalização conduz a personalismo e/ou formalismo na aplicação da norma.
Vigoram métodos intuitivos e esforços pessoais para a realização das atividades
previstas, resultando em contexto de risco para a execução descentralizada de
políticas públicas. Corre-se o risco de constituir controles formais que não agregam
a segurança necessária ao alcance das finalidades a que se propõe o Estado.
Porém, considerando experiências de sociedades institucionalmente mais
avançadas, como as da União Europeia, a saída parece não se encontrar na
diminuição de controles burocráticos, como propugnam os que defendem a
supremacia ou exclusividade do controle por resultados. O desafio pode estar em
tornar a gestão e o controle institucional, inclusive o burocrático, mais
consistentes/efetivos a fim de que possam auxiliar na ampliação da capacidade do
Estado brasileiro.
26
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28
___________________________________________________________________
AUTORIA
Leice Maria Garcia – Controladoria-Geral da União.
Endereço eletrônico: [email protected]