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Nos tempos de hoje em dia Com tantos carros no mundo Tem motorista estressado Tem motorista iracundo As infrações acontecem A cada novo segundo. Os carros parecem gente De tanto espaço ocupar. Vai para trás, para a frente Faz coisas de arrepiar. Carro corre, carro pula, Carro só falta falar. Aconteceu certa noite Que os veículos falaram. Foi por causa dum acidente Em que eles se atrasaram: Um morto fechou a pista E os carros se rebelaram. Era alta madrugada De uma segunda feira. Nessa hora do descanso Vinha um carro na carreira: Atingiu um pobre homem Ao lado de uma barreira. Por causa dessa barreira Houve um fato inusitado: Ninguém encontrou o carro Que atingiu o coitado. Então surgiu a versão Que o carro estava encantado.

Quem primeiro começou A história do encantamento, Foi um carrão turbinado Que apareceu no momento. O Turbinado chegou Depois do acontecimento. Era um carrão muito quente De estourar qualquer termômetro! Vinha bêbado e correndo No mais veloz do quilômetro. Com certeza, o motorista Não passou pelo bafômetro. Freou em cima do morto Que já estava na pista. Seu carro estancou de vez E ele apurou a vista. Mas o dono adormeceu Em silêncio fatalista. Por causa disso, o carrão Passou a falar sozinho: E disse: “Que coisa é essa Estirada no caminho?” Desesperado, gritava Entre o capô e o focinho:

“Baixe a luz, meu proprietário, Que o meu farol encandeia. Você dormiu no volante E a coisa vai ficar feia. Quando a polícia chegar Vai te levar pra cadeia”.

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Mas o motorista estava Em silêncio de museu. E o Turbinado gritava: “O que foi que aconteceu? Não temas, meu proprietário, Não foi você quem bateu!” O dono, naquela hora Andava em outros caminhos, E o carro pensou: “Não ouve, Os carros falam sozinhos. Se os donos nos escutassem Seriam comportadinhos.” Lembrando o que tinha visto Se pôs a monologar: “Eu não bati nesse homem, O infrator não está. O que bateu, se encantou, Se evaporando no ar.” As lembranças lhe chegavam, Ele estava delirando: E disse: “Eu testemunhei, Eu vi o carro voando. Capotou umas cinco vezes e depois saiu rolando.” Nessa hora em que lembrava Ele viu uma centelha: Era a luz de um carro novo

Que vinha igual a uma abelha. - Aliás, não era novo: Era uma lata velha. E já chegou despeitada, Falando nada suave: “Sai da frente, Turbinado! Vê se liga a tua chave. Você é um carro novo, Mas não é nenhuma nave!” Vinha tão desembestada Que o outro teve receio. Pois ele estava parado Entre a faixa e o meio E a Lata gritou: “Se afaste, Pois não tou boa de freio!” Além do freio ser baixo, Só tinha um farol aceso. E o carrão turbinado Na condição de indefeso, Gritou: “Não posso sair, O meu dono ficou preso!” A lata freou de vez Deixou no chão um rabisco. Turbinado se assustou Depois de sentir o trisco. E a lata disse: “Você me botou num grande risco.”

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Turbinado respondeu, Também muito irritadão: “O risco é meu, que sou novo, Que cheiro à fabricação; Você só tem um farol e ainda quer ter razão.” Lata Velha não gostou, E manteve a confusão: “Eu posso ter um farol mas vinha na minha mão. Tu tás parado na pista, e isso é contravenção.” Turbinado respondeu O que já estava evidente: “Se eu estava parado é porque teve acidente. E meu dono, embriagado, não foi para o acostamento.” Lata Velha perguntou, Achando aquilo incomum: “Que acidente foi esse? Não vejo carro nenhum.” Turbinado disse: “O carro, Se encantou que nem pium!” Essa história do Encantado Deu muito no que falar. A lata velha dizia

Que ele queria enganar. E o Turbinado queria Se fazer acreditar: Ela disse: “Você mente; Me desculpe, é o que eu acho. E Ele: “Não minto não, Minha palavra é de macho. Pare de implicar comigo. O carro está lá embaixo.” A Lata olhou para baixo Na escuridão da barreira. Mas do carro do acidente, Não se via nem poeira. Enquanto isso, outro carro Vinha descendo a ladeira. Esse terceiro veículo Chegava na contramão, Pois ele vinha ao contrário Do acidente em questão. Vinha veloz, agitado, E não buzinava não. Parou fazendo mil gestos, Como quem quer dizer tudo. Mas eram gestos confusos, Mereciam certo estudo. Os outros dois entenderam Que aquele carro era mudo.

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Turbinado lhe pediu Que tivesse disciplina: “Eu não entendo os seus gestos, Nem aqui e nem na China!” A Lata disse: “Ele é mudo Porque não possui buzina. Ficou pertinho do Mudo, E se pôs a observar. E ele fazia sinais De quem queria falar. A lata entendeu que ele Tinha um recado pra dar: “Eu sei, a sua buzina faz tempos que está quebrada. Isso é ruim, pois o seu dono comete grande burrada. A buzina é infração quando está desmantelada.” Turbinado concordou, Mas não entendia nada. Disse: “Mudo, seja lento, não venha com presepada.” Os gestos do Carro Mudo Falavam de capotada. E outras coisas dizia A respeito do acidente. Que viu do retrovisor

quando estava lá na frente. Sua linguagem, porém Não era muito evidente. “Ele não sabe o que diz!” - Gritou logo o Turbinado. “Eu disse mais de mil vezes, e não estou enganado, que o carro desse acidente agora está encantado!” Depois acusou o Mudo De ser um carro cafona. Disse para a Lata Velha: “Esse Mudo é uma zona”. A Lata disse: “Lá vem Uma moto bem doidona...” De fato estava chegando A moto que era pirada. Não tinha nem capacete, portanto já vinha errada. Falava com muitas gírias E era outra turbinada. Seu nome era Motodoida, Sempre dizia brum-brum. E disse: “Saiam da frente, Senão atropelo um! Sou dois fervendo, tou quente; Saiam do meio – brum-brum!”

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O Turbinado gritou: “Ela vem dispirocada.” A Lata Velha também Respondeu muito irritada: “Eu acho que essa moto Deve estar alcoolizada.” Motodoida viu o morto, Mas ficou indiferente. Tentou fazer ziguezague Para prosseguir em frente. E disse: “Eu não sou culpada, Se aqui teve um acidente”. Ela quis passar à força, Os dois gritaram: “Não pode.” Ela disse ao Turbinado: “Me deixa passar, meu bróde. Se tu não sair da frente, Vou te arrancar o bigode.” A Lata disse: “Não fuja, Aqui você não engana.” A moto implorou: “Me ajude, Lata Velha, minha mana. A polícia vem aí e eu não quero entrar em cana.” A Lata Velha, porém, Não quis nem saber do assunto. Ela foi ao Turbinado,

Falou baixinho, bem junto: “Abra caminho, eu prometo Não esmagar o defunto”. Veio então o Carro Mudo, Dando uma de juiz, Sinalizando pra ela, Fez uns gestos de quem diz: Você, maluca, aqui Não passa nem por um triz! A Motodoida, porém, Não achou aquilo lindo. E perguntou para o Mudo Se ele estava lhe agredindo: O Mudo disse, com um gesto, Que ela vivia fugindo. Lata Velha traduziu Essa linguagem tão bela: “O Mudo só está dizendo, Que você não tem cautela; Faz curvas, faz piruetas, Avança na passarela”. “Diz que a sua vida é torta, Empina a roda, sem meta; E que você se comporta, Como se fosse um atleta. Disse a moto: “Eu não tou morta, Pois eu não sou bicicleta!”

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O Mudo fez novos gestos, Foi assim que se expressou Dizendo pra Motodoida, Que a hora dela chegou. Mas a moto reagiu: “Tu também és infrator.” E disse ainda: “Esse Mudo, ele pensa que me empedra... Mas brum-brum, eu não sou tola, Nenhum de vocês me medra. Quem, aqui, não tiver erros, atire a primeira pedra!” Dessa vez o Carro Mudo Fez uma cara de aborto. Lata Velha traduziu Seu gesto de desconforto: Lembrou para aquela moto Que havia na pista um morto. Motodoida concordou, Pra respeitar o defunto. E disse: “Vamos agir, Mas primeiro eu lhes pergunto: Quem era que estava aqui quando ele virou presunto?” E prosseguiu seu inquérito: “Quero que fique explicado.” Quis saber se foi o Mudo

Que atropelou o coitado. Mas o Turbinado disse: “Quem bateu, tá encantado”. E antes que explicasse Essa versão esquisita, Um outro carro chegava lá na pontinha da pista. O Mudo acenou dizendo: Está chegando visita. Esse carro parou longe, pois era muito medroso. Tinha traumas de acidente Por isso era manhoso. Quando viu a congestão, Já foi ficando nervoso. Os outros não entenderam Sua estranha reclusão. Ninguém sabia por quê Ele estava paradão: A moto gritou: “Vem cá! Ninguém aqui é ladrão.” Distante, ele respondeu: “Deus me livre, não vou não! Sou um carro bem doente, E não entro em confusão. De batida, eu fico longe. Já sou muito amassadão.”

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Ele espirrou e tossiu Como quem tem resfriado. E disse que aquela tosse Não lhe deixava curado, Que bateram em seus pulmões Há muito tempo passado. “Brum-brum-brum, não fique assim...” (Era a moto lhe dizendo). - O amassadão respondeu Com o corpo todo gemendo: “Eu tive outras batidas E sempre escapei fedendo.” Depois disso, começou A recuar pelo pé... A Motodoida falou: “Esse cara é um mané! Brum-brum, eu não acredito Que ele vai voltar de ré.” O amassadão escutou Aquela ofensa tão dura. Andou de costas e disse: “Sou um doente sem cura. Percebo que este lugar está me dando tontura.” A Lata Velha implorou: “Não dá ré, Amassadão. A tua traseira vai

Se enfiar num caminhão. Quem anda em pista de ré comete contravenção.” O Turbinado falou: “Deixa o cara, ele quer ir.” Lata Velha discordou, E o Mudo quis se exprimir. Foi quando a moto gritou: “Espera, que eu vou aí!” O Amassadão foi dizendo Daquele lugar remoto: “Por favor, não chegue perto, eu não posso nem ver moto. Só de ouvir o barulho, já penso que é terremoto.” Gritava pelos pulmões, Com medo de um acidente: “Eu tenho as minhas razões, São traumas da minha mente; Ainda tenho as lesões De uma moto, antigamente...” Motodoida lhe acalmou, Com seu famoso brum-brum. Foi mostrando aqueles carros, Apontando de um a um: “Percebe aqueles malucos? Correto não há nenhum...”

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“Eles fecharam o asfalto, Lá não passa nem atum. Mas nós dois, embora errados, Temos algo em comum...” - O amassadão reagiu: “Não venha com zumzumzum.” Motodoida resistiu, Fez a proposta indecente: “Você, assim como eu, Está querendo ir em frente; Qualquer iniciativa Vai ter que partir da gente...” Propôs que saíssem juntos Acelerando de vez: “Vamos avançar correndo Para afastar os três. Se a gente ficar aqui, Vamos parar no xadrez.” O amassadão respondeu: “Motodoida, não me enrole. Não quero bater nos três. Eu não arrisco, sou mole. Já tive tantas batidas que estou parecendo um fole.” “Eu sinto dores nos rins, Nas tripas, nos espinhaços; Quebrei costelas e pés,

E quase perdi os braços... Eu vivo no lanterneiro De tanto sofrer amassos.” “Já fiz plásticas na boca Esta boca que sorria; Meu nariz é remendado por causa de cirurgia...” - A moto, irritada, disse: “Tu tens muita hipocondria!” Motodoida retornou Dizendo: “Eu agora torço Que você quebre a bacia E também quebre o pescoço! Seu chato, você precisa Tomar banho de sal grosso.” O Amassadão, outra vez Se pôs a retroceder. A motodoida gritou: “Um feitiço eu vou fazer; Estou mexendo os pauzinhos para um fusca te bater!” Quando mal abriu a boca Lá vinha um fusca-zebu. O amassadão se assustou Que chega ficou azul. A moto disse: “Eu falei. Tenho praga de urubu.”

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Era um fusca feminino De pintura cor de rosa. Seu nome era Fusquetinha, E era muito vaidosa. O amassadão, quando a viu Entrou logo em polvorosa: “Mas o que danado é isso? Cuidado, senão eu morro! Por favor, não bata em mim, Pois você não é o Zorro. Pise no freio depressa. Ai-ai-ai, meu Deus, socorro!” Ele correu sem querer Para perto dos demais, Quebrando aquela recusa De alguns instantes atrás. E disse aos três: “Esse fusca Tem partes com o Satanás.” Fusquetinha chegou lá Parando meio de lado. E começou a brigar Com aquele carro amassado. Ela disse: “Me agradeça por eu não ter lhe esmagado.” O amassadão chorou Pela sua displicência. E disse: “Ô que desgraça!

Não passo de uma excrescência. Que sina, estou assustado. Aumentei minha doença.” A fusquetinha, zangada Respondeu esbaforida: “Nos trinta anos que tenho Nunca tive uma batida! Mas hoje eu ia batendo a primeira vez na vida.” “Ando com zelo, no esmero, com responsabilidade. De acidente, sou virgem, apesar da minha idade. Nunca relei nem garupa. Mas hoje, por sua culpa, quase perco a virgindade.” Lata Velha questionou Aquela história dos trinta: “Você só tem trinta anos? Fale a verdade, não minta. Eu sei que estás conservada, Mas estás usando cinta.” Fusquetinha disfarçou Ajeitando a vestimenta. Mas disse: “Eu botei a menos Pra esconder meus quarenta. Na verdade, eu sou de Mil

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Novecentos e Setenta.” De toda forma, esnobou, Toda cheia de razão: “Sou velha, mas sou correta, Nunca andei na contramão. E nos meus quarenta anos Jamais tive uma infração.” O amassadão se vingou, Dizendo logo esta prosa: “Ela fala que é certinha Mas veio bem perigosa. Isso aí não é um fusca, É um diabo cor de rosa.” O turbinado escutava Sem dar nenhuma importância. Mas quando abriu sua boca Acusou-a de arrogância, E disse pra Fusquetinha: “Tu tens muita petulância.” Fusquetinha respondeu Já se sentindo ferida: “Lamento muito, meu bem, se não fui compreendida. Eu quis apenas dizer que sei zelar pela vida.” Falou com dignidade,

E ainda desabafou: “De uma coisa, fiquem certos: Eu, arrogante, não sou! O arrogante é quem erra mas não assume que errou.” E encerrando o assunto de forma muito sutil, O fusquinha conservado Lançou este desafio: “Me digam, quem de vocês A Lei do Trânsito cumpriu?” Houve um silêncio total. A lata achou um absurdo. O amassadão passou mal, Turbinado fez-se surdo. Motodoida disse Xau, Só quem falou foi o Mudo. Falava, é claro, com gestos, Um recado para o fusca. Mexia os dedos das mãos, Mas não dizia nerusca. Somente ele sabia Qual era essa sua busca. Fusquetinha, vendo aquilo, Fez um semblante bicudo. Ela disse: “Ai que gracinha! Então esse carro é mudo?”

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Lata Velha respondeu: “Mas ele sabe de tudo.” O fusca falou pra ele: “Você é um carro sem medo. Você não fala, mas tenta desenredar esse enredo. Eu sinto que você quer Nos revelar um segredo.” Ouvindo isto, o Mudo Ficou meio que absorto. Finalmente o tal fusquinha Entendeu seu desconforto. O segredo do mudinho Tinha tudo a ver com o morto. O Turbinado, porém Já se sentindo esgotado, Repetiu aquela história De um certo carro encantado: “Não batam na mesma tecla. Ninguém aqui é culpado.” Motodoida se irritou: “Este papo está um porre! A polícia vai chegar. Por que a gente não corre? O homem já morreu mesmo. Quem já tá morto, não morre.”

Ao terminar o que disse, Foi chegando a viatura. A lata velha exclamou: “Mas que boca, criatura! A moto roncou: “Brum-brum! Quero ver quem se segura.” Os carros se aperrearam, A viatura já vinha. Todos se desesperaram, Com exceção do fusquinha. O fusca era o único Que só andava na linha. O Mudo se recolheu Numa espécie de abandono. O Turbinado bateu, Chamando pelo seu dono. Mas lembrou que ele bebeu E depois pegou no sono. O amassadão gemia, Como se fosse um tatu. A moto se escondeu, A lata disse: “Foi tu! Quem mandou abrir a boca, Sua praga de urubu?” A viatura parou De forma muito decente.

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A todos cumprimentou: “Boa noite, minha gente. Quem é que vai me explicar como foi esse acidente?” Não responderam na hora. Houve um silêncio profundo. Ninguém ousava falava, Num medo de vagabundo. Um gato tinha comido A língua de todo mundo. A polícia olhou o morto E viu que o homem já era. Viu os detalhes do rosto Redondo que nem esfera. Nos lábios, um dente exposto; Na cabeça, uma cratera. Viatura disse: “Poxa! Que coisa subterrânea! A pele está muito roxa, Tem escoriação cutânea. Pelo que estou percebendo, a morte foi instantânea.” Voltou-se então para os carros, Saiu do estado de choque. Pediu que se apresentassem, E já veio dando um toque:

“Quem estiver amassado, Venha pra cá, se coloque.” O amassadão foi falar, Depois de ouvir o remoque. E disse: “Vou me lascar: Não tenho nem parachoque! Se for pra me examinar, pode chamar o reboque.” “Finalmente alguém falou” - Foi dizendo a viatura. Pro amassadão olhou, Examinando a pintura. E disse: “Valha-me Deus! Esse carro é uma verdura!” O amassadão pensou: “Que cara inconveniente!” Mas nada disse, ao contrário: Quis sair rapidamente. Então pediu: “Me libere, Pois sou um carro doente.” Falou que era deprimido, Sofria muito de tédio. Além do mais, era a hora De tomar o seu remédio. A viatura pensou Que ele estava com assédio.

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Respondeu a viatura: “Todos, aqui, são iguais. Vai recuando, meu caro. Recolha-se ali atrás.” - O amassadão se afastou, Sentindo dores renais. O carro policial Com toda a bola da vez Falou firme e disse: “Agora Quero ouvir todos vocês...” - O fusca pediu licença Para falar pelos seis. Viatura permitiu Que Fusquetinha falasse. E Fusquetinha, sutil Veio defender a classe. Disse que ninguém bateu, Mas havia um outro impasse. Mas que impasse era esse? - Viatura quis saber. O fusca disse que ali Ninguém tinha o que temer. E disse que o Turbinado Poderia esclarecer. Turbinado não gostou De ser assim apontado. Viatura perguntou

Se ele bateu no coitado. Ele disse: “Bati não. Quem bateu, tá encantado”. Tinha falado bem triste, Com certa cara de choro. A polícia quis saber Se ele escondia um tesouro. Ele gritou: “Não vi nada. Só escutei o estouro.” Insistente, a viatura Torturava o Turbinado: “Se você não bateu nele, se ninguém tinha chegado, quem foi então que bateu nesse pobre desgraçado?” Turbinado repetiu Sem se sentir abalado: “Eu não sei dizer quem foi. O carro está encantado.” - Depois disso, respirou Pra deixar tudo explicado: “Não preciso lhe enganar, Vou lhe dizer a maneira: O carro vinha na frente, Bem na minha dianteira; Capotou, voou no céu, Depois caiu na barreira!”

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A viatura pediu Que todos mexessem as pernas; Rodassem para a barreira E ligassem suas lanternas; Focassem as luzes pra baixo E desligassem as internas: Os carros obedeceram Acendendo seus faróis, Apontaram para baixo Desse precipício atroz. Pareciam doze luas Ou quem sabe, doze sóis. A altura da barreira Não era muito comum: Os focos lá não chegavam, A moto disse: “Brum-brum”. A viatura falou: “Não vejo carro nenhum”. O Carro Mudo, então Abordou a viatura. Fez gestos incompreensíveis, Mexendo até na cintura. Mas ela não entendeu Os sinais da criatura. A lata velha pediu Ao pobrezinho do carro, Que se expressasse com calma

Sem fazer gesto bizarro: “Vai devagar, Carro Mudo, Porque o santo é de barro”. O Mudo fez uns sinais De quem tem a solução. Descrevia o acidente Com os detalhes de então. Na verdade, ele fazia A reconstituição. Traduzindo aqueles gestos A lata velha explicou: “O Mudo está nos dizendo Que ele primeiro passou; Mas que viu esse acidente Pelo seu retrovisor...” A viatura pensou, Andou pra lá e pra cá... De repente, decidiu Fazer o Mudo falar: E disse: “Quem de vocês pode a buzina emprestar?” O Mudo, ao ouvir aquilo Deu pulos de alegria. Era uma ideia brilhante Que a polícia trazia! O Mudo teve a certeza Que agora falaria.

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Mas os carros não gostaram Dessa ameaça canina. O amassadão disse logo: “Não me deixem sem buzina! Eu já sou muito doente, Minha saúde é mofina.” E Fusquetinha também Falou com muita moral: “Tenho ciúme da minha, pois é toda original. Eu não dou minha buzina, nem por bem e nem por mal.” Lata Velha se esquivou, Com sua vergonha pouca. Falou que a sua buzina Estava gasta e rouca: “Mas eu sugiro a corneta dessa moto porra-louca.” Motodoida reagiu Com sua desculpa incrível. Disse que não dava certo Essa sugestão horrível: “Minha buzina é de moto, vai ficar incompatível.” A viatura, tranquila Deu um basta no fervor. Disse: “Calma, pessoal,

Eu só pedi um favor. Como ninguém se habilita, então eu vou ter que impor!” Houve muita apreensão. Todos queriam saber Como seria a escolha, Se era possível dizer... A polícia decidiu Que o Mudo ia escolher. Explicou ao Carro Mudo A regra do tal fom-fom: “Você, Mudinho, decide O que lhe parece bom: Cada um vai buzinar e você escolhe o som.” O Festival começou Cada um com seu roncado. A viatura mandou Começar com o Turbinado. Esse carro buzinou, Depois passou para o lado. Viatura disse: “Agora É a vez do Amassadão.” Mas este carro alegou Que sofria do pulmão. Ele disse: “Eu não buzino, Pois sofro de secreção.”

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Mas buzinou assim mesmo, Pois a polícia exigiu. O Amassadão, com raiva Soltou somente um fiu-fiu. Foi a buzina mais feia Que no festival se ouviu. Depois dele, foi a vez Da senhora Lata Velha. Soltou um som arranhado Que dizia Rééélha-Rééélha... Parecia o chiado De um churrasco na grelha. Veio a vez de Fusquetinha, Que andava silenciosa. Quando ela acionou, Buzinou bem caprichosa: Fusquetinha fez pibite, Toda metida a gostosa. Depois de todos os carros, Chegou a vez da doidona. Viatura olhou a moto Com uma cara cafona. E mandou que Motodoida encerrasse maratona. Depois que a moto apitou, Com um apito que fere, A viatura gritou:

“Atenção, moçada, espere: O Mudo vai nos dizer qual a buzina prefere.” O Mudo, sem perder tempo, Escolheu o Turbinado. Apontou para esse carro Com seu dedão esticado. O Turbinado, com raiva, Respondeu com este recado: “Oh, seu Mudo desgraçado! Grande filho da mãe nua! - Tinha que ser logo eu, Nessa escolha tão crua? Mas tua hora vai chegar: Eu vou te amaldiçoar No catimbó da perua!” A viatura lhe disse Que deixasse de contenda. E já foi mexendo nele Com a sua chave de fenda. O Mudo só aguardava Com uma alegria tremenda. E com martelo, alicate Todo mundo ajudava. E a buzina, aos poucos Já se desparafusava. Durante essa cirurgia

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O Turbinado gritava: “Vocês estão me estuprando, Não me matem de asfixia! Seu mudo ingrato, você há de me pagar um dia! Uma praga eu vou jogar: Tu vais te degenerar com ferrugem e maresia!” Depois de dizer aquilo Perdeu a sua alegria. A buzina se soltou, Tirando a sua energia. A polícia disse: “Pronto, Terminou a cirurgia.” O Turbinado ficou Abandonado e trombudo. Os carros se afastaram E recomeçaram tudo: Pegaram a peça completa E colocaram no Mudo. A viatura, orgulhosa Se pôs a cantarolar: “Pronto, pronto, conseguimos, Já está a funcionar! O milagre aconteceu, Nosso mudo vai falar!”

De fato, o Mudo falou Com esnobismo e gingado: “Não me chame mais de mudo, isso é coisa do passado. O mudo agora da vez é o carro turbinado.” E cheio de molecagens Começou a buzinar. Fazia muito fom-fom, “Ai fom-fom, que bom falar...” - O Mudo, fofo e fom-fom Saiu pra comemorar. Ele estava indo embora, Sem ninguém desconfiar... E disse: “Fom-fom, adeus, Aqui não posso ficar... Eu agradeço o presente, Fom-fom, eu vou me mandar.” O Turbinado, sem fala, Fez sinais advertindo. Acenava, dava pulos, Mas todos estavam rindo. Ele queria avisar Que o Mudo estava fugindo. Foi então que a lata velha Começou desconfiando. E disse pra Viatura

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O que estava interpretando: “O Turbinado nos diz que o Mudo está debandando.” A coisa então ficou séria, A Viatura correu. Tomou a frente do Mudo, Depois do freio que deu. Perguntou: “Meu caro Mudo, O que foi que aconteceu?” A Mudo, agora falante, Pois não era mudo mais, Pediu desculpas e disse: “Como pude ser capaz?... - Eu fiquei tão empolgado, Que vos deixei para trás.” Viatura acreditou Que ele falava verdade. E jamais desconfiou Que o Mudo era covarde. De toda forma, cobrou A sua fidelidade: “Você tem um compromisso Que agora eu quero lembrar. O segredo do acidente, Você tem que revelar. Você ganhou a buzina para que possa contar.”

O Mudo, muito espertinho, Para não perder a glória, Se pôs a representar Num joguinho de memória, Um santo nele baixou Para contar esta história: “Eu vinha muito tranquilo daquelas bandas da praia... Estava indo pra casa, voltando de uma gandaia... O que vi, eu vou contar; Não sou de fugir da raia...” “Eu vi, fom-fom, este homem, quando desceu e subiu... É triste, fom-fom, lembrar Do momento em que caiu... Eu passei, fom-fom, mas vi Que um carro lhe sucumbiu...” A viatura, inquieta, Não gostou da enrolação: “Não me venha com fom-fom. Não venha com embromação. Eu quero saber quem foi O carro da colisão!” O santo, dentro do Mudo Fez um mexido danado. O Mudo se concentrou,

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Ficou de olho trocado. Com a voz bem rouca, falou Sobre o tal carro encantado: “O Turbinado nos disse aqui, a todo momento, que o carro se desmanchou na forma de encantamento... E eu digo: esse carro está No desaparecimento...” A viatura endoidou, E lhe gritou um esporro: “Não me faça de idiota, Não pense que sou cachorro. Me responda: você viu O carro cair do morro?” O Mudo fez um silêncio, Como quem fica modorro. Mas de repente se abriu, Falando tudo num jorro: “O carro nunca caiu... O carro, fom-fom, fugiu em omissão de socorro!” Os veículos disseram: “O caso está revelado”. Mas o carro da polícia, Um tanto desconfiado, Quis entender a mentira

da versão do Turbinado: “Muito bem, já entendi. Você foi muito gentil. Mas por quê o Turbinado O tempo inteiro mentiu?” - O Mudo então respondeu, Numa defesa gentil: “Turbinado não mentiu, ele ficou num martírio. O que o Turbinado viu foi miragem, foi delírio. - Fom-fom, ele se enganou: Ele bebeu, se drogou e se esqueceu do colírio.” O Turbinado pulou E reagiu ferozmente. Gesticulava dizendo: “É mentira, minha gente!” Eu tenho outra verdade Pra mostrar que o Mudo mente.” Apesar de tanto esforço Nada conseguiu dizer. Ou seja: ninguém ali Conseguia lhe entender. De toda forma, a polícia Falou com este parecer: “Turbinado, eu não lhe entendo.

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Você não tem disciplina. Você nunca vai ser mudo, nem aqui e nem na China! - Mas tua hora voltou: Fique de quatro, que eu vou te devolver a buzina.” Os olhos do Turbinado Se encheram de euforia. Mas ele não se exaltou, Guardou a sua alegria. Já o mudinho, coitado, Chorava desesperado, No tempo da cirurgia: “Amigo, não faça isto. Tem pena da minha sina. O meu dono é pobrezinho, Não pode comprar buzina. Turbinado tem quantia; Ele está na garantia E o seu pai tem uma mina.” Viatura respondeu Que ele tinha uma infração: “Quem teve infração aqui, vai sofrer autuação... Mas vou fazer uma permuta: eu vou te livrar da multa pela colaboração!” “Menos mal”, pensou o Mudo,

E aproveitou a indulgência: “Agradeço a solução, Me serviu de advertência. Mas antes que eu perca a fala, te peço outra clemência...” A viatura falou Enquanto estava a agir: “Fala logo, enquanto é tempo, que a buzina vai sair.” - Ele pediu: “Me libere, Agora mesmo daqui”. Ganhou o cara no papo, Recebendo esta sentença: “Não vejo problema nisso. Por mim, não faz diferença: Você já fez sua parte e eu lhe dispenso a presença.” A buzina foi tirada Sem haver nenhum estorvo. E aquele antigo mudo Tornou-se mudo de novo. A polícia o liberou Dizendo: “Eu te absolvo.” O Mudo não quis conversa, Se aproveitou da medida. Se despediu de um a um, Ligou o motor de partida.

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Apenas o Turbinado Não teve sua despedida. Esse mesmo Turbinado Fazia inúmeros sinais. Implorava: “Não permitam Que o mudo nos deixe atrás...” Porém ninguém entendia As suas linhas gerais. Nessa hora, o Carro Mudo Já tinha dobrado a esquina. O Turbinado avisava, Gritava feito menina. Mas os carros se ocupavam Em lhe repor a buzina. E quando enfim repuseram, Saíram todos de perto. A viatura falou Que a cirurgia deu certo. Mas Turbinado gritou: “Fom-fom, você liberou aquele malandro esperto!” Todos perguntaram juntos: “Por que essa afobação?” Ele disse: “Eu avisei, Ninguém me deu atenção. Vocês deixaram fugir o carro da colisão.”

De novo falaram juntos, Como um coro pessimista: “O que foi que você disse? Repita a história, repita!” - O Turbinado explicou: “Foi o Mudo quem causou esse acidente na pista!” A viatura, valente Fez dele o grande acusado. E disse: “Você sabia, Então você é culpado! Ficou protegendo o mudo Com essa história do Encantado.” O Turbinado explicou A sua história do além: “Eu tive medo, confesso, Pois tenho erros também. O bom senso meu pediu. Não sou de entregar ninguém.” A sirene da ambulância Foi ouvida nessa hora. O amassadão deu um grito: “Valei-me, Nossa senhora, É o carro do hospital! Só de ouvir, passo mal, Permita que eu vá embora!” A polícia disse: “Vá. Já fiz sua autuação.

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Aliás, todos vocês, Já liberados estão. Eu anotei vossas placas, E todos responderão.” Apenas a fusquetinha Teve total isenção. Pois era o único carro Sem registro de infração. E ela disse a todo mundo: “Que eu lhes sirva de lição.” O carro turbinadão Não pôde ser liberado. A viatura lhe disse, Com o seu motor já ligado: “Vou precisar de você. Me acompanhe, eu vou prender aquele mudo safado”. Disse isto e foi embora Com o Turbinado na frente. Já os outros, nesta hora Fizeram um pacto decente: Cada carro prometeu Ser agora diferente. “Meus queridos, venham cá”, - Foi dizendo a fusquetinha: “Eu quero propor um acordo Para a gente andar na linha”.

- A moto falou: Brum-brum, Prometo ser corretinha”. O fusca gritou um lema Em respeito à vida humana: De não correr, não ter pressa, Para nunca entrar em cana. O amassadão fez valer: Prometeu não mais sofrer Com tanta batida insana. Fusquetinha disse ainda: “Eu conto com todos vós.” Lata Velha prometeu Consertar seus dois faróis. A moto gritou: “Cacete! Vou exigir capacete De todos os motoboys!” Um a um, foram saindo Imbuídos de virtude. O fusca gritou feliz: “Isso se chama Atitude! O lema, a partir de agora, Será PARE, PENSE, MUDE!” E buzinavam felizes Andando todos na mão. E despertavam a cidade, Cantando esta canção: “Por mim, quem quiser que corra.

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Eu mesmo não corro não...” A ambulância chegou No local do ato insano. Uma vida retornou, Pois este foi outro engano... A vida é linda, é uma glória! Até que enfim, nesta história Vai falar um ser humano:

Para vocês, da ambulância:

Atenção, eu estou vivo!

Resta em mim uma esperança,

Eu ainda sobrevivo!

Para vocês, do hospital,

Eu peço a minha saúde.

Neste Pare, Pense, Mude

Saibam que há um sinal...

Eu repito: há um sinal!

Me levem deste local,

Uma vida não tem preço.

Depois eu me refloresço,

Este não foi meu final.

Tarcísio Pereira.