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Cristianismo e Espiritismo Leon Denis

SUMRIO

Prefcio da nova edio francesa

Introduo I. Origem dos Evangelhos II. Autenticidade dos Evangelhos III. Sentido oculto dos Evangelhos IV A Doutrina Secreta V. Relaes com os Espritos dos mortos VI. Alterao do Cristianismo. Os dogmas VII. Os dogmas (continuao). Os sacramentos, o culto VIII. Decadncia do Cristianismo IX. A Nova Revelao. 0 Espiritismo e a Cincia X. A Nova Revelao. A Doutrina dos Espritos XI. Renovao

Concluso

Notas Complementares

N. 1. Sobre a autoridade da Bblia e as origens do Antigo Testamento

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N. 2. Sobre a origem dos Evangelhos N. 3. Sobre a autenticidade dos Evangelhos N. 4. Sobre o sentido oculto dos Evangelhos N. 5. Sobre a Reencarnao N. 6. Sobre as relaes dos primeiros cristos com os Espritos N. 7. Os fenmenos espritas na Bblia N. 8. Sobre o sentido atribudo s expresses deuses e demnios N. 9. Sobre o perisprito ou corpo sutil; opinio dos padres da Igreja N. 10. Galileu e a Congregao do ndex N. 11. Pio X e o Modernismo N. 12. Os fenmenos espritas contemporneos; provas da identidade dos Espritos . N. 13. Sobre a telepatia N. 14. Sobre a sugesto ou a transmisso do pensamento

INTRODUO

No foi um sentimento de hostilidade ou de

malevolncia que ditou estas pginas. Malevolncia no a tem por nenhuma idia, por pessoa alguma. Quaisquer que sejam os erros ou asfaltas dos que se acobertam com o nome de Jesus e sua doutrina, o pensamento do Cristo em ns no desperta seno um sentimento de profundo respeito e de sincera admirao. Educado na religio

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crist, conhecemos tudo o que ela encerra de poesia e de grandeza. Se abandonamos o domnio da f catlica pelo da filosofia esprita, no esquecemos por isso as recordaes da nossa infncia, o altar ornado de flores diante do qual se inclinava a nossa fronte juvenil, a grande harmonia dos rgos, sucedendo aos cantos graves e profundos, e a luz coada atravs dos vitrais coloridos, a brincar no ladrilhado solo, entre os fiis prosternados. No esquecemos que a austera cruz estende os seus braos por sobre o tmulo dos que mais amamos neste mundo. Se h para ns uma imagem, entre das venerveis e sagrada, a do supliciado do Calvrio, do mrtir pregado ao madeiro infamante, ferido, coroado de espinhos e que, ao expirar, perdoa aos seus algozes.

Ainda hoje com viva emoo que escutamos os longnquos convites dos sinos, a voz de bronze que vo acordar os sonoros ecos dos bosques e dos vales. E, nas horas de tristeza, praz-nos meditar na igreja silenciosa e solitria, sob a penetrante influncia que nela acumularam as preces, as aspiraes, s lgrimas de tantas geraes.

Uma questo, porm, se impe, questo que muitos resolveram mediante o estudo e a reflexo. Todo esse aparato que impressiona os sentidos e move o corao, todas essas manifestaes artsticas, pompa do ritual romano e o esplendor das cerimnias no so como um brilhante vu que oculta a pobreza da idia e a insuficincia do ensino? No foi a convico da sua impotncia para satisfazer as elevadas faculdades da alma, a inteligncia, o discernimento e a razo, o que

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impeliu a Igreja para o caminho das manifestaes exteriores e materiais?

O protestantismo, ao menos, mais sbrio. Se desdenha as formas, a decorao, para melhor fazer sobressair grandeza da idia. Estabelece a autoridade exclusiva da conscincia e o culto do pensamento e degrau em grau, de conseqncia em conseqncia, conduz logicamente ao livre exame, isto , filosofia.

Conhecemos tudo o que a doutrina do Cristo encerra de sublime; sabemos que ela por excelncia a doutrina do amor, a religio da piedade, da misericrdia, da fraternidade entre os homens. Mas a doutrina de Jesus a que ensina a Igreja Romana? A palavra do Nazareno nos foi transmitida pura e sem mescla, e a interpretao que dela nos d a Igreja isenta de todo elemento estranho ou parasita?

No h questo mais grave, mais digna da meditao dos pensadores, como da ateno de todos os que amam e procuram a verdade. o que nos propomos examinar na primeira parte desta obra, com o auxlio e a inspirao dos nossos guias do espao, afastando tudo o que poderia perturbar as conscincias, excitar as ms paixes, fomentara diviso entre os homens.

verdade que esse trabalho foi, antes de ns, empreendido por outros. Mas o objetivo destes, seus meios de investigao e de crtica eram diferentes dos nossos. Procuram menos edificar que destruir, ao passo que, antes de tudo, quisemos fazer obra de reconstituio e de sntese. Consagramo-nos tarefa de destacar da sombra das idades, da confuso dos textos e dos fatos, o pensamento bsico, pensamento de vida, que a fonte

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pura, o foco intenso e radioso do Cristianismo, ao mesmo tempo em que a explicao dos estranhos fenmenos que caracterizam as suas origens, fenmenos renovveis sempre, que efetivamente se renovam todos os dias sob os nossos olhos e podem ser explicados mediante leis naturais. Nesse pensamento oculto, nesses fenmenos at agora inexplicados, mas que uma nova cincia observa e registra, encontramos a soluo desses problemas que h tantos sculos pairam sobre a razo humana: o conhecimento da nossa verdadeira natureza e a lei dos nossos destinos progressivos.

Uma das mais srias objees lanadas ao Cristianismo pela crtica moderna que a sua moral e a sua doutrina da imortalidade repousam sobre um conjunto de fatos ditos "miraculosos", que o homem esclarecido relativamente ao das leis da natureza no poderia hoje admitir.

Se milagres, acrescentam, puderam ser outrora necessrios para fundar a crena na outra vida, s-lo-o menos em nossa poca de dvida e de incredulidade? E, alm disso, a que causa atribuir esses milagres? No , como alguns o pretenderam, natureza divina do Cristo, porquanto seus discpulos igualmente os obtinham.

A questo, porm, ficar esclarecida por uma luz intensa, e as afirmaes do Cristianismo relativamente. imortalidade adquiriro mais fora e autoridade, se for possvel estabelecer que esses fatos, ditos "miraculosos", se produziram em todos os tempos, particularmente em nossos dias; que eles so o resultado de causas livres, invisveis, que perpetuamente atuam, submetidas, porm, a imutveis leis, se neles, em uma palavra, j no vemos

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milagres, mas fenmenos naturais, uma forma da evoluo e da sobrevivncia do ser.

precisamente esta uma das conseqncias do Espiritismo. Por um aprofundado estudo das manifestaes do alm-tmulo, ele demonstra que esses fatos ocorreram em todas as pocas, quando as perseguies no lhes opunham obstculos; que quase todos os grandes missionrios, os fundadores de seitas e de religies foram mdiuns inspirados; que uma perptua comunho une duas humanidades, ligando aos do mundo terrestre os habitantes do espao.

Esses fatos se reproduzem em torno de ns com renovada intensidade. Desde h cinqenta anos aparecem formas, fazem-se ouvir vozes, chegam-nos comunicaes por via tipolgica ou de incorporao, assim como pela escrita automtica. Provas de identidade, em profuso, vm revelar-nos a presena de nossos parentes, dos que na terra amamos, que foram a nossa carne e o nosso sangue, e dos quais nos havia momentaneamente a morte separado. Em suas prticas, em seus ensinos, aprendemos a conhecer esse Alm misterioso, objeto de tantos sonhos, debates e contradies. Em nosso entendimento se acentuam e definem as condies da vida ulterior Dissipa-se a obscuridade que reinava sobre tais questes. O passado e o futuro se esclarecem at o mais ntimo de suas profundezas.

Assim o Espiritismo nos oferece as provas naturais, tangveis, da imortalidade e por esse meio nos conduz s puras doutrinas crists, ao prprio mago do Evangelho, que a obra do Catolicismo e a lenta edificao dos

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dogmas mal cobriram de tantos elementos incongruentes e estranhos. Graas ao seu estudo escrupuloso do corpo fludico, ou perisprito, ele torna mais compreensveis, mais aceitveis, os fenmenos de aparies e materializaes, sobre as quais o Cristianismo repousa integralmente.

Estas consideraes melhor faro sobressair importncia dos problemas suscitados no curso desta obra e cuja soluo oferecemos, apoiando-nos ao mesmo tempo nos testemunhos de sbios imparciais e esclarecidos, e nos resultados de experincias pessoais, realizadas consecutivamente h mais de trinta anos.

Sob esse ponto de vista, a oportunidade do presente trabalho a ningum decerto escapar. Nunca a necessidade de esclarecimento das questes vitais, a que se acha indissoluvelmente ligada sorte das sociedades, se fez sentir de modo mais imperioso.

Cansado de dogmas obscuros, de interesseiras teorias, de afirmaes sem provas, o pensamento humano h muito se deixou empolgar pela dvida. Uma crtica inexorvel joeirou rigorosamente todos os sistemas. A f se extinguiu em sua prpria fonte; o ideal religioso desapareceu. Concomitantemente com os dogmas, perderam o seu prestgio as elevadas doutrinas filosficas. O homem esqueceu ao mesmo tempo o caminho dos templos e dos prticos da sabedoria.

Para quem quer que observe atentamente as coisas, os tempos que vivemos esto carregados de ameaas. Parece brilhante a nossa civilizao, e, todavia, quantas manchas lhe obscurecem o esplendor! O bem-estar e a riqueza se tm espalhado, mas acaso por suas riquezas

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que uma sociedade se engrandece? O objetivo do homem na terra , porventura, levar uma vida faustosa e sensual? No! Um povo no grande, um povo no se eleva seno pelo trabalho, pelo culto da justia e da verdade.

Em que se tornaram s civilizaes do passado, aquelas em que o indivduo no se preocupava seno com o corpo, com as suas necessidades e as suas fantasias? Acham-se em runas; esto mortas.

Voltamos a encontrar, precisamente em nossa poca, as mesmas tendncias perigosas que as perderam: so as que consistem em tornar tudo adstrito vida material, em constituir objeto e fim da existncia a conquista dos prazeres fsicos. A crtica e a conscincia materialistas restringiram os horizontes da vida. s tristezas da hora presente acrescentaram a negao sistemtica, a acabrunhadora idia do nada. E por esse modo agravaram todas as misrias humanas; arrebataram ao homem, com as mais seguras armas morais de que dispunha, o sentimento de suas responsabilidades; abalaram at s suas profundezas o prprio foro ntimo do eu.

Assim, gradualmente, os caracteres se vo abatendo, a venalidade cresce, a imoralidade se alastra como imensa chaga. O que era sofrimento se converteu em desespero. Os casos de suicdio se tm multiplicado em propores at aqui desconhecidas. - Coisa monstruosa e que em nenhuma outra poca se viu: este flagelo do sculo at as prprias crianas tem contaminado.

Contra essas doutrinas de negao e morte falam hoje os fatos. Uma experimentao metdica, prolongada, nos

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conduz a esta certeza: o ser humano sobrevive morte e o seu destino obra sua.

Fatos inmeros se tm multiplicado, oferecendo novos subsdios acerca da natureza, da vida e da ininterrupta evoluo dos seres. Esses fatos foram pela cincia devidamente autenticados. Importa agora interpret-los, p-los em evidncia e, sobretudo, deduzir-lhes a lei, as conseqncias e tudo o que deles pode resultar para a existncia individual e social.

Esses fatos vo despertar no ntimo das conscincias as verdades a adormecida. Eles restituiro ao homem a esperana, com o elevado ideal que esclarece e fortifica. Provando que no morremos inteiramente, encaminharo os pensamentos e os coraes para essas vidas ulteriores em que a justia encontra a sua aplicao.

Todos, por esse meio, compreendero que a vida tem um objetivo, que a lei moral tem uma realidade e uma sano; que no h sofrimentos inteis, trabalho sem proveito, nem provas sem compensao, que tudo pesado na balana do divino justiceiro.

Em lugar desse campo cerrado da vida em que os fracos sucumbem fatalmente, em lugar dessa gigantesca e cega mquina do mundo que tritura as existncias e de que nos falam as filosofias negativas, o Novo Espiritualismo far surgir, aos olhos dos que pesquisam e dos que sofrem, a portentosa viso de um mundo de eqidade, de amor e de justia, onde tudo regulado com ordem, sabedoria, harmonicamente.

E dessa forma ser atenuado o sofrimento, assegurado o progresso do homem, santificado o seu

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trabalho; a vida se revestir de maior dignidade e enobrecimento. Porque o homem tem tanta necessidade de uma crena como de uma ptria, como de um lar. o que explica que formas religiosas, envelhecidas e caducas, conservem ainda os seus adeptos. H no corao humano tendncias e necessidades que nenhum sistema negativo poder jamais satisfazer. Mau grado dvida que a oprime, desde que a alma sofre, instintivamente se volta para o cu. Faa o que fizer, o homem torna a encontrar o pensamento de Deus nas cantilenas que no bero o embalaram, nos sonhos da sua infncia, como nas silenciosas meditaes da idade adulta.

H certas horas, no pode o cptico mais endurecido contemplar o infinito constelado, o curso dos milhes de sis que na imensidade se efetua, nem passar diante da morte, sem perturbao e sem respeito.

Sobranceira s vs polmicas, s discusses estreis, h uma coisa que escapa a todas as crticas: essa aspirao da alma humana a um ideal eterno, que a sustenta em suas lutas, consola nas provaes, e nas horas das grandes resolues a sua inspiradora; essa intuio do que, por trs da cena em que se desenrolam os dramas da vida e o grandioso espetculo da natureza, oculta-se um poder, uma causa suprema, que lhes regulou as fases sucessivas e traou as linhas de sua evoluo.

Onde, porm, encontrar o homem a segura rota que o conduza a Deus? Onde haurir a inabalvel convico que, de estdio em estdio, o guiar atravs dos tempos e do espao, para o supremo fim das existncias? Qual ser, numa palavra, a crena do futuro?

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As formas materiais e transitrias da religio passam, mas a vida religiosa, a crena pura, desembaraada de todas as formas inferiores , em sua essncia, indestrutvel. O ideal religioso evolver, como todas as manifestaes do pensamento. Ele no poderia escapar lei do progresso que rege os seres e as coisas.

A futura f que j emerge dentre as sombras no ser, nem catlica nem protestante; ser a crena universal das almas, a que reina em todas as sociedades adiantadas do espao, e mediante a qual cessar o antagonismo que separa a cincia atual da religio. Porque, com ela, a cincia tornar-se- religiosa, e a religio se h de tornar cientfica.

Ela se apoiar na observao, na experincia imparcial, nos fatos milhares de vezes repetidos.

Mostrando-:nos as realidades objetivas do mundo dos espritos, dissipar todas as dvidas, destruir as incertezas; a todos franquear infinitas perspectivas do futuro.

Em certas pocas da Histria, passam sobre o mundo correntes de idias que vm arrancar a Humanidade ao seu torpor Sopros vindos do alto encrespam a imensa vaga humana, e, graas a eles, brotam da sombra as verdades esquecidas na caligem dos sculos. Elas surgem das mudas profundezas em que dormem os tesouros das foras ocultas, onde se combinam os elementos renovadores, onde se elabora a obra misteriosa e divina. Manifestam-se, ento, sob inesperadas formas; reaparecem e revivem.

Em comeo repudiadas, escarnecidas pela multido, prosseguem, todavia, impassveis, serenas, o seu caminho.

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E chega um dia em que se forado a reconhecer que essas verdades repelidas vinham oferecer o po da vida, o clice da esperana a todas as almas sofredoras e dilaceradas; que nos traziam nova base de ensinamento e, porventura tambm, um meio de reabilitao moral. Tal a situao do moderno Espiritualismo, em que renascem tantas verdades h sculos ocultas. Em seu contexto ele resume as crenas dos sbios e dos antigos celtas, nossos pais; ressurge sob mais imponentes formas, para encaminhar a um novo ciclo ascensional a Humanidade em marcha.

Prefcio da Nova Edio Francesa (1)

Dez anos sucederam publicao desta obra. A

Histria desdobrou sua trama e considerveis acontecimentos se realizaram em nosso pas. A Concordata foi denunciada. O Estado cortou o lao que o prendia Igreja Romana. Ressalvados alguns pontos, foi com uma espcie de indiferena que a opinio pblica recebeu as medidas de rigor tomadas pelo poder civil contra as instituies catlicas .

De que procede a esse estado de esprito, essa desafeio no apenas local, mas quase generalizada, dos franceses pela Igreja? - De no ter esta realizado esperana alguma das que havia suscitado. Nem soube

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compreender, nem desempenhar o seu papel e os deveres de guia e educadora de almas, que assumira.

H um sculo, vinha a Igreja Catlica atravessando uma das mais formidveis crises que registra a sua histria. Na Frana, a Separao veio acentuar esse estado de coisas e agrav-lo ainda mais.

Repudiada pela sociedade moderna, abandonada pelo escol intelectual do mundo, em perptuo conflito com o direito novo, que jamais aceitou; em contradio, portanto, quase em todos os pontos essenciais, com as leis civis de todos os pases, repelida e detestada pelo povo e, principalmente, pelo operariado, j no resta Igreja mais que um punhado de adeptos entre as mulheres, os velhos e as crianas. O futuro cessou de lhe pertencer, pois que a educao da mocidade acaba de lhe ser arrebatada, no sem alguma violncia, pelas recentes leis da Repblica francesa.

A est no limiar do sculo XX, o balano atual da Igreja romana. Desejaramos, num estudo imparcial, mesmo respeito s, investigar as causas profundas desse eclipse do poder eclesistico, eclipse parcial ainda, mas que, em futuro no remoto, ameaa converter-se em total e definitivo.

A Igreja atualmente impopular. Ora, ns vivemos poca em que a popularidade, sagrao dos novos tempos, indispensvel durabilidade das instituies. Quem lhe no possuir o cunho, arrisca-se a perecer em pouco tempo no insulamento e no olvido.

Como chegou a Igreja Catlica a esse ponto? - Pela excessiva negligncia que a causa do povo mereceu de sua parte. A Igreja s foi verdadeiramente popular e

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democrtica em suas origens, durante os tempos apostlicos, perodos de perseguio e de martrio; e o que ento justificava a sua capacidade de proselitismo, a rapidez de suas conquistas, o seu poder de persuaso e de irradiao. No dia em que foi oficialmente reconhecida pelo Imprio, a partir da converso de Constantino, tornou-se a amiga dos Csares, a aliada e, algumas vezes, a cmplice dos grandes e dos poderosos. Entrou na era infecunda das argcias teolgicas, das querelas bizantinas e, desse momento em diante, tomou sempre ou quase sempre o partido do mais forte. Feudal na Idade Mdia, essencialmente aristocrtica no reinado de Luiz XIV, s fez Revoluo tardias e foradas concesses.

Todas as emancipaes intelectuais e sociais se efetuaram contra a sua vontade. Era lgico, fatal, que se voltassem contra ela: o que na hora atual se verifica.

Adstrita, na Frana, por muito tempo Concordata, incessantemente se manteve em conflito sistemtico e latente com o Estado. Essa unio forada, que durava de um sculo para c, devia necessariamente terminar pelo divrcio. A lei da Separao acaba de o pronunciar. 0 primeiro uso que de sua liberdade, ostensivamente reconquistada, fez a Igreja foi lanar-se nos braos dos partidos reacionrios, com esse gesto provando que nada, h um sculo, aprendeu nem esqueceu.

Empenhando solidariedade com os partidos polticos que j fizeram seu tempo, a Igreja Catlica, sobretudo a de Frana, por isso mesmo se condena a morrer no mesmo dia, do mesmo gnero de morte deles: a impopularidade. Um papa genial, Leo XIII, tentou por momentos deslig-la de todo compromisso direto ou

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indireto com o elemento reacionrio; mas no foi escutado nem obedecido.

0 novo pontfice, Pio X, reatando a tradio de Pio IX, seu antepredecessor, nada julgou melhor fazer que aplicar as doutrinas do Slabo e da infalibilidade. Sob a vaga denominao de modernismo, acaba ele de anatematizar a sociedade moderna e combater qualquer tentativa de reconciliao, ou de conciliao com ela.* A guerra religiosa ameaa atear-se nos quatro ngulos do pas. 0 prestgio de grandeza que, a poder do gnio diplomtico, Leo XIII havia assegurado Igreja, desvaneceu-se em poucos anos. O catolicismo, restringido ao domnio da conscincia privada e individual, nunca mais desfrutar a vida oficial e pblica.

Qual - inda uma vez o inquiriremos - a causa profunda desse enfraquecimento da instituio mais poderosa do Universo? Em nossa opinio, h unicamente uma causa profunda capaz de explicar esse fenmeno. Acreditaro os polticos, filsofos, os sbios encontr-la nas circunstncias exteriores, em razo de ordem sociolgica. Por nossa parte, iremos procur-la no prprio corao da Igreja. De um mal orgnico que ela deperece, atingida como nela se acha a sede vital.

A vida da Igreja era o esprito de Jesus que a animava. O sopro do Cristo, esse divino sopro de f, caridade e fraternidade universal era, de fato, o motor desse vasto organismo, a pea motriz de suas funes vitais. Ora, h muito tempo o esprito de Jesus parece ter abandonado a Igreja. No mais a chama do Pentecostes que irradia nela e em torno dela; essa generosa labareda se extinguiu e nenhum Cristo h que a reacenda.

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Grande e bela, entretanto, seno benfica, foi outrora a Igreja de Frana, asilo dos mais elevados espritos, das mais nobres inteligncias. Nos tempos brbaros, era ao mesmo tempo a cincia e a filosofia, a arte e a beleza, a orao e a f. Os grandes mosteiros, as abadias clebres tornaram-se os refgios do pensamento. Ali se conservaram os tesouros intelectuais, as relquias do gnio antigo. No sculo XIII ela inspirou uma bela parte do que o esprito humano produziu de mais brilhante. Subjugava todos aqueles indivduos rudes, aqueles brbaros mal polidos, e com um gesto os prosternava na atitude da orao.

E agora j no vive, j no brilha seno do reflexo de sua passada grandeza. Onde esto hoje, na Igreja, os pensadores e os artistas, os verdadeiros sacerdotes e os santos? Os pesquisadores de verdades divinas, os grandes msticos adoradores do belo, os sonhadores do infinito cederam lugar aos polticos combativos e negocistas.

A casa do Senhor se transformou em casa bancria e em tribuna. A Igreja tem um reino que deste mundo e nada mais que deste mundo. J no o sonho divino o que alimenta, no mais que ambies terrestres e uma arrogante pretenso de tudo dominar e dirigir.

As encclicas e os cnones substituram o sermo da montanha e os filhos do povo, as geraes que se sucedem, apenas tm por guia um catecismo esdrxulo, recheado de noes incompreensveis, em que se fala de hipstase, de transubstanciao; um catecismo incapaz de valer por eficaz socorro nos momentos angustiosos da existncia. Disso procede irreligio do maior nmero. O culto de uma determinada "Nossa Senhora" chegou a

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render at dois milhes por ano, mas no h uma nica edio popular do Evangelho entre os catlicos.

Todas as tentativas de fazer penetrar na Igreja um pouco de ar e luz e como um sopro dos novos tempos, tm sido sufocadas, reprimidas. Lamennais, H. Loyson, Didon, foram obrigados a se retratar ou abandonar o "grmio". O abade Loisy foi expulso de sua ctedra.

Curvada, h sculos, ao jugo de Roma, a Igreja perdeu toda iniciativa, toda a energia viril, toda veleidade de independncia. tal a organizao do Catolicismo que nenhuma deciso pode ser tomada, nenhum ato consumado, sem o consentimento e o sinal do poder romano. E Roma est petrificada em sua hiertica atitude qual esttua do Passado.

O cardeal Meignan, falando do Sacro Colgio, dizia um dia a um seu amigo: "L esto eles, os setenta ancios, vergados ao peso, no dos anos, mas das responsabilidades, vigilantes para que nem um til seja tirado, nem um til acrescentado ao depsito sagrado." Em tais condies a Igreja Catlica j no moralmente uma instituio viva, no mais um corpo em que circule a vida, seno um tmulo em que jaz, como amortalhado, o pensamento humano.

H longos sculos, no era a Igreja mais que um poder poltico, admiravelmente organizado, hierarquizado; enchia a Histria com o fragor de suas lutas ruidosas, em companhia dos reis e imperadores, com os quais partilhava a hegemonia do mundo. Havia concebido um gigantesco plano: a cristandade, isto , o conjunto dos povos catlicos arregimentados, unidos como um exrcito formidvel em torno do papa romano,

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soberano senhor e ponto culminante da feudalidade. Era grandioso, mas puramente humano.

Ao Imprio Romano, solapado pelos brbaros, tinha a Igreja substitudo o imprio do Ocidente, vasta e poderosa instituio em torno da qual toda a Idade Mdia gravitou. Nessa confederao poltica e religiosa tudo desaparecia, e dela unicamente duas cabeas emergiam: o papa e o imperador, "essas duas metades de Deus" .

Jesus no havia fundado a religio do Calvrio para dominar os povos e os reis, mas para libertar as almas do jugo da matria e pregar, pela palavra e pelo exemplo, o nico dogma de redeno: o Amor.

Silenciemos sobre os despotismos solidrios dos reis e da Igreja; esqueamos a Inquisio e suas vtimas e voltemos aos tempos atuais.

Um dos maiores erros da Igreja, no sculo dezenove, foi definio do dogma da infalibilidade pessoal do pontfice romano. Semelhante dogma, imposto como artigo de f, foi um desafio lanado sociedade moderna e ao esprito humano.

Proclamar, no sculo vinte, em face de uma gerao febricitante, atormentada da nsia de infinito, perante homens e povos que aspiram verdade sem a poder atingir, que procuram a justia, a liberdade, como o veado sequioso procura e aspira gua da fonte, o manancial do rio, proclamar - dizemos - num mundo assim, em adiantada gestao, que um nico homem na Terra possui toda a verdade, toda a luz, toda a cincia, no ser - repetimos - lanar um desafio a toda a

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Humanidade, a essa Humanidade condenada, na Terra, ao suplcio de Tntalo, s dilaceraes de Prometeu?

Dificilmente se reabilitar dessa gravssima falta a Igreja Catlica. No dia em que divinizou um homem, tornou-se ela merecedora da encrespao de idolatria, que Montalembert lhe dirigiu quando, ao lhe ser comunicada, no leito de morte, a definio da infalibilidade pontifcia, exclamou: "Nunca hei de adorar o dolo do Vaticano!" Ser exagerado o termo "dolo"? - Como os Csares romanos, a quem era oferecido um culto, o papa faz questo de ser chamado pontfice e rei. Que ele seno o sucessor dos imperadores de Roma e de Bizncio? Seu prprio vesturio, seus gestos e atitudes, o obsoleto cerimonial e o fausto da sua cria, tudo recorda as pompas cesarianas dos piores dias, e foi o eloqente orador espanhol, o religioso Emlio Castelar que exclamou um dia, vendo Pio IX carregado na seda, procissionalmente, a caminho de S. Pedro: "Aquele no o pescador da Galilia, um strapa do Oriente!"

A causa ntima da decadncia e impopularidade da Igreja Romana reside em ter colocado o papa no lugar de Deus. 0 esprito do Cristo retirou-se dela! Perdendo a virtude do Alto, que a sustentava, a Igreja caiu nas mos da poltica humana. J no uma instituio de ordem divina; o pensamento de Jesus no mais a inspira e os maravilhosos dons que o Esprito de Pentecostes lhe comunicava desapareceram.

Ainda mais: atacada de cegueira, como os padres da antiga Sinagoga, ao advento de Jesus, a Igreja esqueceu o sentido profundo da sua liturgia e dos seus mistrios. Os padres j no conhecem a oculta significao das coisas;

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perderam o segredo da iniciao. Seus gestos se tornaram estreis, suas bnos no mais abenoam, seus antemas j no amaldioam. Foram apeados at ao nvel comum, e o povo, compreendendo que nulo o seu poder e ilusrio o seu mistrio, encaminhou-se a outras influncias e foi a outros deuses que passou a incensar.

Na Igreja a teologia aniquilou o Evangelho, como na velha Sinagoga o Talmude havia desnaturado a Lei. I? so os cultores da letra que atualmente a dirigem. Uma coletividade de fanticos mesquinhos e violentos acabar por tirar Igreja os ltimos vestgios da sua grandeza e consumar-lhe a impopularidade. Assistiremos provavelmente runa progressiva dessa instituio que foi durante vinte sculos a educadora do mundo, mas que parece haver falido sua verdadeira vocao.

Da se deve concluir que o futuro religioso da Humanidade esteja comprometido irrevogavelmente, e que o mundo inteiro deva soobrar no materialismo como num oceano de lama? Longe disso. 0 reinado da letra acaba, o do esprito comea. A chama de Pentecostes, que abandona o candelabro de ouro da Igreja, vem acender outros archotes. A verdadeira revelao se inaugura no mundo pela virtude do invisvel. Quando em um ponto o fogo sagrado se extingue, para se atear noutro lugar. Jamais a noite completa envolve em treva o mundo. Sempre no firmamento cintila alguma estrela.

A alma humana, mediante suas profundas ramificaes, mergulha no infinito. 0 homem no um tomo isolado no imenso turbilho vital. Seu esprito sempre est, por algum lado, em comunho com a Causa

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eterna; seu destino faz parte integrante das harmonias divinas e da vida universal. Pela fora das coisas h de o homem se aproximar de Deus. A morte das Igrejas, a decadncia das religies formalistas, no constituem sintoma de crepsculo, mas, ao contrrio, a aurora inicial de um astro que desponta. Nesta hora de perturbao em que nos encontramos, grande combate se trava entre a luz e as caligens, como sucede quando uma tempestade se forma sobre o vale; mas as culminncias do pensamento continuam sempre imersas no azul e na serenidade.

Sursum corda! E de fato a vida eterna que ante ns se descerra ilimitada e radiosa! Assim como no infinito milhares de mundos so arrebatados por seus sis, rumo do incomensurvel, num giro harmonioso, ritmado qual dana antiga e nem astro nem terra alguma torna a passar jamais pelo mesmo ponto, as almas por seu turno, arrastadas pela atrao magntica do seu invisvel centro, prosseguem evolvendo no espao, atradas incessantemente por um Deus, de quem sempre se aproximam sem jamais o alcanar.

Fora reconhecer que esta doutrina bem mais ampla que os dogmas exclusivos das Igrejas agonizantes e que, se o futuro pertence a algum ou alguma coisa, h de o ser indubitavelmente ao espiritualismo universal, a esse Evangelho da eternidade e do infinito!

Fevereiro, 1910.

I - Origem dos Evangelhos

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H cerca de um sculo, considerveis trabalhos empreendidos nos diversos pases cristos, por homens de elevada posio nas igrejas e nas universidades, permitiram reconstituir as verdadeiras origens e as fases sucessivas da tradio evanglica.

Foi, sobretudo, nos centros de religio protestante que se elaboraram esses trabalhos, notabilssimos por sua erudio e seu carter minucioso, e que to vivas claridades projetaram sobre os primeiros tempos do Cristianismo, sobre o fundo, a forma, o alcance social das doutrinas do Evangelho (1).

So os resultados desses trabalhos o que exporemos resumidamente aqui, sob uma forma que esforaremos por tornar mais simples que a dos exegetas protestantes.

O Cristo nada escreveu. Suas palavras, disseminadas ao longo dos caminhos, foram transmitidas de boca em boca e, posteriormente, transcritas em diferentes pocas, muito tempo depois da sua morte. Uma tradio religiosa popular formou-se pouco a pouco, tradio que sofreu constante evoluo at o sculo IV

Durante esse perodo de trezentos anos, a tradio crist jamais permaneceu estacionria, nem a si mesma semelhante. Afastando-se do seu ponto de partida, atravs dos tempos e lugares, ela se enriqueceu e diversificou. Efetuou-se poderoso trabalho de imaginao; e, acompanhando as formas que revestiram as diversas narrativas evanglicas, segundo a sua origem, hebraica ou grega, foi possvel determinar com

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segurana a ordem em que essa tradio se desenvolveu e fixar a data e o valor dos documentos que a representam.

Durante perto de meio sculo depois da morte de Jesus, a tradio crist, oral e viva, qual gua corrente em que qualquer se pode saciar. Sua propaganda se fez por meio da prdica, pelo ensino dos apstolos, homens simples, iletrados(2), mas iluminados pelo pensamento do Mestre.

No seno do ano 60 ao 80 que aparecem as primeiras narraes escritas, a de Marcos a princpio, que a mais antiga, depois as primeiras narrativas atribudas a Mateus e Lucas, todas, escritos fragmentrios e que se vo acrescentar de sucessivas adies, como todas as obras populares(3).

Foi somente no fim do sculo I, de 80 a 98, que surgiu o evangelho de Lucas, assim como o de Mateus, o primitivo, atualmente perdido; finalmente, de 98 a 110, apareceu, em feso, o evangelho de Joo.

Ao lado desses evangelhos, nicos depois reconhecidos pela Igreja, grande nmero de outros vinha luz. Desses, so conhecidos atualmente um vinte; mas, no sculo III, Orgenes os citava em maior nmero. Lucas faz aluso a isso no primeiro versculo da obra que traz o seu nome.

Por que razo foram esses numerosos documentos declarados apcrifos e rejeitados? Muito provavelmente porque se haviam constitudo num embarao aos que, nos sculos II e III, imprimiram ao Cristianismo uma direo que o devia afastar, cada vez mais, das suas formas primitivas e, depois de haver repelido mil sistemas religiosos, qualificados de heresias, devia ter

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como resultado a criao de trs grandes religies, nas quais o pensamento do Cristo jaz oculto, sepultado sob os dogmas e prticas devocionais como em um tmulo(4).

Os primeiros apstolos limitavam-se a ensinar a paternidade de Deus e a fraternidade humana. Demonstravam a necessidade da penitncia, isto , da reparao das nossas faltas. Essa purificao era simbolizada no batismo, prtica adotada pelos essnios, dos quais os apstolos assimilavam ainda a crena na imortalidade e na ressurreio, isto , na volta da alma vida espiritual, vida do espao.

Da a moral e o ensino que atraam numerosos proslitos em torno dos discpulos do Cristo, porque nada continham que se no pudesse aliar a certas doutrinas pregadas no Templo e nas sinagogas.

Com Paulo e depois dele, novas correntes se formam e surgem doutrinas confusas no seio das comunidades crists. Sucessivamente, a predestinao e a graa, a divindade do Cristo, a queda e a redeno, a crena em Satans e no inferno, sero lanados nos espritos e viro alterar a pureza e a simplicidade ao ensinamento do filho de Maria.

Esse estado de coisas vai continuar e se agravar, ao mesmo tempo em que convulses polticas e sociais ho de agitar a infncia do mundo cristo.

Os primeiros Evangelhos nos transportam poca perturbada em que a J, 'idia, sublevada contra os romanos, assiste runa de Jerusalm e disperso do povo judeu (ano 70). Foi no meio do sangue e das lgrimas que eles foram escritos, e as esperanas que traduzem parece irromperem de um abismo de dores,

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enquanto nas almas contristadas desperta o ideal novo, a aspirao de um mundo melhor, denominado "reino dos cus", em que sero reparadas todas as injustias do presente.

Nessa poca, todos os apstolos haviam morrido, com exceo de Joo e Filipe; o vnculo que unia os cristos era bem fraco ainda. Formavam grupos isolados entre si e que tomavam o nome de igrejas (ecclesia, assemblia) , cada qual dirigido por um bispo ou vigilante escolhido eletivamente.

Cada igreja estava entregue s prprias inspiraes; apenas tinha para se dirigir uma tradio incerta, fixada em alguns manuscritos, que resumiam mais ou menos fielmente os atos e as palavras de Jesus, e que cada bispo interpretava a seu talante.

Acrescentemos a estas to grandes dificuldades as que provinham da fragilidade dos pergaminhos, numa poca em que a imprensa era desconhecida; a falta de inteligncia de certos copistas, todos os males que podem fazer nascer ausncia de direo e de crtica, e facilmente compreenderemos que a unidade de crena e de doutrina no tenha podido manter-se em tempos assim tormentosos.

Os trs Evangelhos sinticos(5) acham-se fortemente impregnados do pensamento judeu-cristo, dos apstolos, mas j o evangelho de Joo se inspira em influncia diferente. Nele se encontra um reflexo da filosofia grega, rejuvenescida pelas doutrinas da escola de Alexandria.

Em fins do sculo 1, os discpulos dos grandes filsofos gregos tinham aberto escolas em todas as cidades importantes do Oriente. Os cristos estavam em

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contato com eles, e freqentes discusses se travavam entre os partidrios das diversas doutrinas. Os cristos, arrebanhados nas classes inferiores da populao, pouco letrados em sua maior parte, estavam mal preparados para essas lutas do pensamento. Por outro lado, os teoristas gregos sentiram-se impressionados pela grandeza e elevao moral do Cristianismo. Da uma aproximao, uma penetrao das doutrinas, que se produziu em certos pontos. 0 Cristianismo nascente sofria pouco a pouco as influncias gregas, que o levava a fazer do Cristo o verbo, o Logos de Plato.

II - Autenticidade dos Evangelhos

Nos tempos afastados, muito antes da vinda de Jesus,

a palavra dos profetas, qual raio velado da verdade, preparava os homens para os ensinos mais profundos do Evangelho.

Mas, j desvirtuado pela verso dos Setenta, o Antigo Testamento no refletia, nos ltimos sculos antes do Cristo, mais que uma intuio das verdades superiores(6).

"As eternas verdades, que so os pensamentos de Deus diz eminente individualidade do espao - foram comunicadas ao mundo em todas as pocas, levadas a todos os meios, postas ao alcance das inteligncias, com paternal bondade. 0 homem, porm, as tem desconhecido muitas vezes. Desdenhoso dos princpios ensinados,

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arrastado por suas paixes, em todos os tempos passou ele ao p de grandes coisas sem as ver. Essa negligncia do belo moral, causa de decadncia e corrupo, impeliria as naes prpria perda, se o guante da adversidade e as grandes comoes da Histria, abalando profundamente as almas, no as reconduzissem a essas verdades."

Veio Jesus, esprito poderoso, divino missionrio, mdium inspirado. Veio, encarnando-se entre os humildes, a fim de dar a todos o exemplo de uma vida simples e, entretanto, cheia de grandeza - vida de abnegao e sacrifcio, que devia deixar na Terra impagveis traos.

A grande figura de Jesus ultrapassa todas as concepes do pensamento. Eis por que no a pode ter sido criada pela imaginao. Nessa alma, de uma serenidade celeste, no se nota mcula nenhuma, nenhuma sombra. Todas as perfeies nela se fundem, com uma harmonia to perfeita que se nos afigura o ideal realizado.

Sua doutrina, toda luz e amor, dirige-se sobretudo aos humildes e aos pobres, a essas mulheres, a esses homens do povo curvados sobre a terra, a essas inteligncias esmagadas ao peso da matria e que aguardam, na provao e no sofrimento, a palavra de vida que as deve reanimar e consolar.

E essa palavra lhes prodigalizada com to penetrante doura, exprime uma f to comunicativa, que lhes dissipa todas as dvidas e os arrastam a seguir as pegadas do Cristo.

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0 que Jesus chamava pregar aos simples "o evangelho do reino dos cus", era pr ao alcance de todos o conhecimento da imortalidade e do Pai comum, do Pai cuja voz se faz ouvir na serenidade da conscincia e na paz do corao.

Pouco a pouco essa doutrina, transmitida verbalmente nos primeiros tempos do Cristianismo, se altera e complica sob a influncia das correntes opostas, que agitam a sociedade crist.

Os apstolos, escolhidos por Jesus para lhe continuarem a misso, muito bem o tinham sabido compreender; haviam recebido o impulso da sua vontade e da sua f. Mas os seus conhecimentos eram restritos e eles no puderam seno conservar piedosamente, pela memria do corao, as tradies, os pensamentos morais e o desejo de regenerao que lhes havia ele depositado no ntimo.

Em sua jornada pelo mundo os apstolos se limitam, pois, a formar, de cidade em cidade, grupos de cristos, aos quais revelam os princpios essenciais; depois, vo intrepidamente levar a "boa nova" a outras regies.

Os Evangelhos, escritos em meio das convulses que assinalam a agonia do mundo judaico, depois sob a influncia das discusses que caracterizam os primeiros tempos do Cristianismo, se ressentem das paixes, dos preconceitos da poca e da perturbao dos espritos. Cada grupo de fiis, cada comunidade, tem seus evangelhos, que diferem mais ou menos dos outros(7). Grandes querelas dogmticas agitam o mundo cristo e provocam sanguinolentas perturbaes no Imprio, at que Teodsio, conferindo a supremacia ao papado, impe

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a opinio do bispo de Roma cristandade. A partir da, o pensamento, criador demasiado fecundo de sistemas diferentes, h de ser reprimido.

A fim de pr termo a essas divergncias de opinio, no prprio momento em que vrios conclios acabam de discutir acerca da natureza de Jesus, uns admitindo, outros rejeitando a sua divindade, o papa Damaso confia a So Jernimo, em 384, a misso de redigir uma traduo latina do Antigo e do Novo Testamento. Essa traduo dever ser, da por diante, a nica reputada ortodoxa e tornar-se- a norma das doutrinas da Igreja: foi o que se denominou a "Vulgata".

Esse trabalho oferecia enormes dificuldades. So Jernimo achava-se, como ele prprio o disse, em presena de tantos exemplares quantas cpias. Essa variedade infinita dos textos o obrigava a uma escolha e a retoques profundos. o que, assustado com as responsabilidades incorridas, ele expe nos prefcios da sua obra, prefcios reunidos em um livro clebre. Eis aqui, por exemplo, o que ele dirigiu ao papa Damaso, encabeando a sua traduo latina dos Evangelhos: D velha obra me obrigais a fazer obra nova. Quereis que, de alguma sorte, me coloque como rbitro entre os exemplares das Escrituras que esto dispersos por todo o mundo, e, como diferem entre si, que eu distinga os que esto de acordo com o verdadeiro texto grego. E um piedoso trabalho, mas tambm um perigoso arrojo, da parte de quem deve ser por todos julgado, julgar ele mesmo os outros, querer mudar a lngua de um velho e conduzir infncia o mundo j envelhecido.

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Qual, de fato, o sbio e mesmo o ignorante que, desde que tiver nas mos um exemplar (novo), depois de o haver percorrido apenas uma vez, vendo que se acha em desacordo com o que est habituado a ler, no se ponha imediatamente a clamar que eu sou um sacrlego, um falsrio, porque terei tido a audcia de acrescentar, substituir, corrigir alguma coisa nos antigos livros? Meclamitans esse sacrilegum qui audeam aliquid in veteribus libris addere, mutare, corrigere.(8).

"Um duplo motivo me consola desta acusao. O primeiro que vs, que sois o soberano pontfice, me ordenais que o faa; o segundo que a verdade no poderia existir em coisas que divergem, mesmo quando tivessem elas por si a aprovao dos maus."

So Jernimo assim termina: Este curto prefcio to-somente se aplica aos quatro Evangelhos, cuja ordem a seguinte: Mateus, Marcos, Lucas, Joo. Depois de haver comparado certo nmero de exemplares gregos,

mas dos antigos, que se no afastam muito da verso itlica, combinamo-los de tal modo (ita calamo temperavimus) que, corrigindo unicamente o que nos parecia alterar o sentido, conservamos o resto tal qual estava. (Obras de So Jernimo, edio dos Beneditinos, 1693, t. I, col. 1425.)

Assim, conforme uma primeira traduo do hebraico para o grego, por cpias com os nomes de Marcos e Mateus; , num ponto de vista mais geral, conforme numerosos textos, cada um dos quais difere dos outros (tot sunt enim exemplaria quot codices) que se constitui a Vulgata, traduo corrigida, aumentada,

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modificada, como o confessa o autor, de antigos manuscritos.

Essa traduo oficial, que devia ser definitiva segundo o pensamento de quem ordenara a sua execuo, foi, entretanto, retocada em diferentes pocas, por ordem dos pontfices romanos. O que havia parecido bom, do ano 386 ao de 1586, o que fora aprovado em 1546 pelo conclio ecumnico de Trento, foi declarado insuficiente e errneo por Sixto V, em 1590. Fez-se nova reviso por sua ordem; mas a prpria edio que da resultou, e que trazia o seu nome, foi modificada por Clemente VIII em uma nova edio, que a que hoje est em uso e pela qual tm sido feitas as tradues francesas dos livros cannicos, submetidos a tantas retificaes atravs dos sculos.

Entretanto, a despeito de todas essas vicissitudes, no hesitamos em admitir a autenticidade dos Evangelhos em seus primitivos textos. A palavra do Cristo a se ostenta poderosa; toda dvida se desvanece fulgurao da sua personalidade sublime. Sob o sentido adulterado, ou oculto, sente-se palpitar a fora da primitiva idia. A se revela a mo do grande semeador. Na profundeza desses ensinos, unidos beleza moral e ao amor, sente-se a obra de um enviado celeste.

Ao lado, porm, dessa potente destra, a frgil mo do homem se introduziu nessas pginas, nelas enxertando dbeis concepes, ligadas bem mal aos primeiros pensamentos e que, a par dos arroubos da alma, provocam a incredulidade.

Se os Evangelhos so aceitveis em muitos pontos, , todavia, necessrio submeter o seu conjunto inspeo

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do raciocnio. Todas as palavras, todos fatos que neles esto consignados no poderiam ser atribudos ao Cristo.

Atravs dos tempos que separam a morte de Jesus da redao definitiva dos Evangelhos, muitos pensamentos sublimes foram esquecidos, muitos fatos contestveis aceitos como reais, muitos preceitos, mal interpretados desnaturaram o ensino primitivo. Para servir s convenincias de uma causa, foram decotados os mais belos, os mais opulentos ramos dessa rvore de vida. Sufocaram, antes do seu desabrochar, os fortalecedores princpios que teriam conduzido os povos verdadeira crena, que eles hoje em dia inda procuram.

O pensamento do Cristo subsiste no ensino da Igreja e nos sagrados textos, mesclado, porm, de vrios elementos, de opinies ulteriores, introduzidos pelos papas e conclios, cujo intuito era assegurar, fortalecer, tornar inabalvel a autoridade da Igreja. Tal foi o objetivo colimado atravs dos sculos, o pensamento que inspirou todos os retoques feitos nos primitivos documentos. A despeito de tudo o que na Igreja resta de esprito evanglico, verdadeiramente cristo, foi o suficiente para produzir admirveis obras, obras de caridade que fizeram a glria das igrejas crists e que protestam contra o fato de se acharem associadas a tantos ambiciosos empreendimentos, inspirados no apego ao domnio e aos bens materiais.

Seria preciso grande trabalho para destacar o verdadeiro pensamento do Cristo do conjunto dos Evangelhos, trabalho possvel, posto que rduo para os inspirados, dirigidos por segura

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por segura , mas labor impossvel para os que s por suas prprias faculdades se dirigem nesse Ddalo em que com as realidades se misturam as fices, com o sagrado o profano, com a verdade o erro.

Em todos os sculos, impelidos por uma fora superior, certos homens se aplicaram a essa tarefa, procurando desembaraar o supremo pensamento das sombras em torno dele acumuladas.

Amparados, esclarecidos por essa divina centelha que para os homens apenas brilha de um modo intermitente, mas cujo foco jamais se extingue, eles afrontaram todas as acusaes, todos os suplcios, para afirmar o que acreditavam ser a verdade. Tais foram os apstolos da Reforma.

Eles foram, em sua tarefa, interrompidos pela morte; mas do seio do espao ainda sustentam e inspiram os que se batem por essa grande causa. Graas aos seus esforos, a noite que pesa sobre as almas comea a dissipar-se; raiou a aurora de uma revelao muito mais vasta.

com o auxlio dos esclarecimentos trazidos por essa nova revelao, cientfica e, ao mesmo tempo, filosfica, j espalhada em todo o mundo sob o nome de Espiritismo, ou moderno Espiritualismo, que procuraremos escoimar a doutrina de Jesus das obscuridades em que o trabalho dos sculos a envolveu. Chegaremos, assim, concluso de que essa doutrina simplesmente volta ao Cristianismo primitivo, sob mais precisas formas, com um imponente cortejo de provas experimentais, que tornar impossvel todo monoplio, toda reincidncia nas causas que desnaturaram o pensamento de Jesus.

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111 - Sentido oculto dos Evangelhos Uma certa escola atribui ao Cristianismo em geral, e

aos Evangelhos em particular, um sentido oculto e alegrico. Alguns pensadores e filsofos chegaram mesmo a negar a existncia de Jesus, vendo nele, nas suas palavras, nos fatos da sua vida, uma idia filosfica, uma abstrao a que foi dado um corpo, para satisfazer a tradio que ao povo judeu anunciava um salvador, um Messias.

Na sua opinio, no passaria a histria de Jesus de um drama potico, representando o nascimento, a morte, a ressurreio da idia libertadora no seio do povo hebreu escravizado, ou ainda uma srie de figuras imaginadas para tornar perceptvel s massas o lado prtico e social do Cristianismo, a associao dos tipos divino e humano em um modelo de perfeio, oferecido admirao dos homens.

Aceita semelhante tese, os Evangelhos deveriam ser considerados fbulas, invenes. O poderoso movimento do Cristianismo teria tido como ponto de partida uma impostura. H nisso uma evidente exagerao. Se a vida de Jesus no mais que uma fico, como pde ser acolhida por seus contemporneos, a princpio, e depois por uma longa srie de geraes?

Quais seriam, pois, os verdadeiros fundadores do Cristianismo? Os apstolos? Eram incapazes de tais concepes. Com exceo de Paulo, que encontrou uma

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doutrina j constituda, a incapacidade deles evidente. A personalidade eminente de Jesus se destaca, vigorosamente, do fundo de mediocridade dos seus discpulos. A menor comparao faz sobressair impossibilidade de semelhante hiptese.

No foi difcil, nos Evangelhos, distinguir as adies dos cristo-judeus, as quais denunciam claramente a sua origem, e formam contraste flagrante com as palavras e a doutrina de Jesus(9). Da resulta um fato evidente, e que autores imbudos, a esse respeito, de idias supersticiosas e acanhadas, eram incapazes de inventar uma personalidade, uma doutrina, uma vida, uma morte como as de Jesus.

Nesse mundo judaico, sombrio e exclusivista, em que reinavam o dio e o egosmo, a doutrina do amor e da fraternidade s podia emanar de uma inteligncia sobre-humana.

Se as Escrituras no fossem, em seu conjunto, seno um amontoado de alegorias, uma obra de imaginao, a doutrina de Jesus no teria podido manter-se atravs dos sculos, em meio das correntes opostas que agitaram a sociedade crist. Construo sem alicerce, ter-se-ia desagregado, desmoronado, batida pelo furaco dos tempos. Entretanto, ela ficou de p e domina os sculos, a despeito das alteraes sofridas, a despeito de tudo o que os homens fizeram para desfigur-la, para submergi-la nas vagas de uma interpretao errnea.

A crena num mito no teria sido suficiente para inspirar aos primeiros cristos o esprito de sacrifcio, o herosmo em face da morte; no lhes teria proporcionado os meios de fundar uma religio que dura h vinte

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sculos. S a verdade pode desafiar a ao do tempo e conservar a sua fora, a sua moral, a sua grandeza, no obstante os esforos de sapa que procuram arruin-la. Jesus , positivamente, a pedra angular do Cristianismo, a alma da nova revelao. Ele constitui toda a sua originalidade.

Alm disso, no faltam testemunhos histricos da existncia de Jesus, posto que em reduzido nmero.

Suetnio, na histria dos primeiros Csares, fala do suplcio de "Christus". Tcito e ele mencionam a existncia da seita crist entre os judeus, antes da tomada de Jerusalm por Tito.

O Talmude fala da morte de Jesus na cruz, e todos os rabinos israelitas reconhecem o alto valor desse testemunho(10).

Em caso de necessidade, o prprio Evangelho, s por si, bastaria para fornecer a prova moral da existncia e da elevada misso do Cristo. Se numerosos fatos apcrifos nele foram mais tarde introduzidos, se as supersties judaicas ali se encontram sob a forma de narrativas fantasistas e obsoletas teorias, duas coisas nele subsistem, que poderiam ser inventadas e apresentam um carter de autenticidade que se impe: - o drama sublime do Calvrio e a doce e profunda doutrina de Jesus.

Essa doutrina era simples e clara em seus princpios essenciais; dirigia-se multido, sobretudo aos deserdados e aos humildes. Tudo nela era feito para mover os coraes, para arrebatar as almas at ao entusiasmo, iluminando, fortalecendo as conscincias. Todavia, ela manifesta os sinais de um ensino oculto.

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Jesus fala muitas vezes por parbolas. Seu pensamento, de ordinrio to luminoso, mergulha por vezes em meia obscuridade. No se percebem, ento, mais que os vagos contornos de uma grande idia dissimulada sob o smbolo.

o que ele prprio explica por estas palavras, quando, citando Isaas (cap. VI, 9), acrescenta: "Eu lhes falo por parbolas, porque a vs outros vos dado conhecer os mistrios do reino dos cus, mas a eles no lhes concedido." (Mateus, XIII, 10 e 11.)

Evidente que havia duas doutrinas no Cristianismo primitivo: a destinada ao vulgo, apresentada sob formas acessveis a todos, e outra oculta, reservada aos discpulos e iniciados. E o que, de resto, existia em todas as filosofias e religies da antiguidade.(11).

A prova da existncia desse ensino secreto se encontra nas palavras j citadas e nas que mencionamos a seguir. Logo depois da parbola do semeador, que se acha nos trs evangelhos sinticos, os discpulos perguntam a Jesus o sentido dessa parbola e ele lhes responde:

A vs outros concedido saber o mistrio do reino de Deus; mas, aos que so de fora, tudo se lhes prope em parbolas; Para que, vendo, vejam e no vejam e ouvindo, ouam e no entendam. (Marcos, IV, 11 e 12; Lucas, VIII, 10.). So Paulo o confirma em sua primeira Epstola aos Corntios, captulo III, quando distingue a linguagem a usar com homens carnais ou com homens espirituais, isto , com profanos ou com iniciados.

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A iniciao era indubitavelmente gradual. Os que a recebiam eram ungidos e, depois de haverem recebido a uno, entravam na comunho dos santos. o que torna compreensveis estas palavras de Joo:

"Vs outros tendes a uno do Santo e sabeis todas as coisas. Eu no vos escrevi como se ignorsseis a verdade, mas como a quem a conhece." (1 Epstola de So Joo, cap. II, 20, 21 e 27.)(12).

Ao tempo de sua controvrsia com Celso, Orgenes defendeu energicamente o Cristianismo. Em sua vigorosa apologia, fala muitas vezes dos ensinos secretos da nova religio. Tendo-a Celso argido de possuir um cunho misterioso, refuta Orgenes essas crticas, provando que, se em certos assuntos especiais s os iniciados recebiam um ensino completo, a doutrina crist, por outro lado, em seu sentido geral era acessvel a todos. E a prova - disse ele - que o mundo inteiro (ou pouco falta) est mais familiarizado com essa doutrina que com as opinies prediletas dos filsofos.

Esse duplo mtodo de ensino - prossegue ele, em sntese - , ao demais, adotado em todas as escolas. Por que fazer por isso uma censura unicamente doutrina crist? Os numerosos Mistrios, por toda parte celebrados na Grcia e noutros pases, no so por todos geralmente admitidos?

O fundador do Cristianismo no separava a idia religiosa da sua aplicao social. O "reino dos cus" era, para ele, essa perfeita sociedade dos espritos, cuja imagem desejaria realizar na Terra. Mas ele devia ir de encontro aos interesses estabelecidos e suscitar em torno de si mil obstculos, mil perigos. Da, um novo motivo

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para ocultar no mito, no milagre, na parbola, o que em sua doutrina ia ferir as idias dominantes e ameaar as instituies polticas ou religiosas.

As obscuridades do Evangelho so, pois, calculadas, intencionais. As verdades superiores nele se ocultam sob vus simblicos. A se ensina ao homem o que lhe necessrio para se conduzir moralmente na prtica da vida; mas o sentido profundo, o sentido filosfico da doutrina, esse reservado minoria.

Nisso consistia a "comunho dos santos", a comunho dos pensamentos elevados, das altas e puras aspiraes. Essa comunho pouco durou. As paixes terrenas, as ambies, o egosmo, bem cedo a destruram. A poltica se introduziu no sacerdcio. Os bispos, de humildes adeptos, de modestos "vigilantes" que eram a princpio, tornaram-se poderosos e autoritrios. Constituiu-se a teocracia; a esta, pareceu de interesse colocar a luz debaixo do alqueire e a luz se extinguiu. O pensamento profundo desapareceu. S ficaram os smbolos materiais. Essa obscuridade tornava mais fcil governar as multides. Preferiram deixar as massas mergulhadas na ignorncia, a elev-las s eminncias intelectuais. Os mistrios cristos cessaram de ser explicados aos membros da Igreja. Foram mesmo perseguidos como hereges os pensadores, os investigadores sinceros, que se esforavam por adquirir novamente as verdades perdidas. Fez-se a noite cada vez mais espessa sobre o mundo, depois da dissoluo do Imprio Romano. A crena em Satans e no inferno adquiriu lugar preponderante na f crist. Em vez da

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religio de amor pregada por Jesus, o que prevaleceu foi religio do terror.

A invaso dos brbaros havia poderosamente contribudo para fazer surgir esse estado de coisas. Ele fez voltar sociedade ao estado de infncia, porque os brbaros invasores, no ponto de vista da razo, no passavam de crianas. Do seio das vastas estepes e das extensas florestas, o mundo brbaro se arremessava sobre a Civilizao. Todas essas multides, ignorantes e grosseiras, que o Cristianismo aliciou, produziram no mundo pago em decadncia e no meio novo, em que penetravam, uma depresso intelectual.

O Cristianismo conseguiu domin-las, submet-las, mas em seu prprio detrimento. Velou-se o ideal divino; o culto se tornou material. Para impressionar a imaginao das multides, voltou-se s prticas idlatras, prprias das primeiras pocas da Humanidade. A fim de dominar essas almas e as dirigir pelo temor ou pela esperana, estranhos dogmas foram combinados. No se tratou mais de realizar no mundo o reino de Deus e de sua justia, que fora o ideal dos primeiros cristos. Depois, a profecia do fim do mundo e do juzo final, tomada ao p da letra, as preocupaes da salvao individual, exploradas pelos padres, mil causas em suma, desviaram o Cristianismo da sua verdadeira rota e submergiram o pensamento de Jesus numa torrente de supersties.

Ao lado, todavia, desses males, justo recordar os servios prestados pela Igreja causa da Humanidade. Sem a sua hierarquia e slida organizao, sem o papado, que ops o poder da idia, posto que obscurecida e

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deturpada, ao poderio do gldio, tem-se o direito de perguntar o que se teria tornado a vida moral, a conscincia da Humanidade. No meio desses sculos de violncia e trevas, a f crist animou de novo ardor os povos brbaros, ardor que os impeliu a obras gigantescas como as Cruzadas, fundao da Cavalaria, criao das artes na Idade Mdia. No silncio e na obscuridade dos claustros o pensamento encontrou um refgio. A vida moral, graas s instituies crists, no se extinguiu, a despeito dos costumes brutais da poca. A esto servios que preciso agradecer Igreja, no obstante os meios de que ela se utilizou para a si mesma assegurar o domnio das almas. Em resumo, a doutrina do grande crucificado, em suas formas populares, queria a obteno da vida eterna mediante o sacrifcio do presente. Religio de salvao, de elevao da alma pela subjugao da matria, o Cristianismo constitua uma reao necessria contra o politesmo grego e romano, cheio de vida, de poesia e de luz, mas no passando de foco de sensualismo e corrupo. O Cristianismo tornava-se um estgio indispensvel na marcha da Humanidade, cujo destino elevar-se incessantemente de crena em crena, de concepo em concepo, a snteses sempre e cada vez mais amplas e fecundas.

O Cristianismo, com os seus doze sculos de dores e trevas, no foi uma era de felicidade para a raa humana; mas o fim da vida terrestre no a felicidade, a elevao pelo trabalho, pelo estudo e pelo sofrimento; , numa palavra, a educao da alma; e a via dolorosa

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conduz com muito mais segurana perfeio, que a dos prazeres.

O Cristianismo representa, pois, uma fase da histria da Humanidade, a qual lhe foi incontestavelmente proveitosa; ela, a Humanidade, no teria sido capaz de realizar as obras sociais que asseguram o seu futuro, se no se tivesse impregnado do pensamento e da moral evanglicos.

A Igreja, entretanto, delinqiu, trabalhando por prolongar indefinidamente o estado de ignorncia da sociedade. Depois de haver nutrido e amparado criana, tem querido mant-la em estado de submisso e servilismo intelectual. No libertou a conscincia seno para melhor a oprimir.

A Igreja de Roma no soube conservar o farol divino de que era portadora, e, por um castigo do cu, ou antes, por uma justa retroao das coisas, a noite que ela queria para os outros fez-se nela prpria. No cessou de opor obstculos ao desenvolvimento das cincias e da filosofia, a ponto de proscrever, do alto da cadeira de So Pedro, "o progresso - essa lei eterna - o liberalismo e a civilizao moderna" (artigo 80 do Slabus).

Foi, por isso, fora dela e mesmo contra ela, a partir de um certo momento da Histria, que se operou todo o movimento, toda a evoluo do esprito humano. Foram necessrios sculos de esforos para dissipar a obscuridade que pesava sobre o mundo, ao sair da Idade Mdia. Fizeram-se precisas a Renascena das letras, a Reforma religiosa do sculo XVI, a filosofia, todas as conquistas da Cincia, para preparar o terreno destinado nova revelao, a essas vozes de alm-tmulo que vm

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aos milhares e em todas as regies da Terra, atrair os homens aos puros ensinamentos do Cristo, restabelecer sua doutrina, tornar compreensveis, a todos, as verdades superiores amortalhadas na sombra das idades.

IV - A Doutrina Secreta

Qual a verdadeira doutrina do Cristo? Os seus

princpios essenciais acham-se claramente enunciados no Evangelho. a paternidade universal de Deus e a fraternidade dos homens, com as conseqncias morais que da resultam; a vida imortal a todos franqueada e que a cada um permite em si prprio realizar o reino de Deus, isto , a perfeio, pelo desprendimento dos bens materiais, pelo perdo das injrias e o amor ao prximo.

Para Jesus, numa s palavra, toda a religio, toda a filosofia consiste no amor:

"Amai os vossos inimigos; fazei o bem aos que vos odeiam e orai pelos que vos perseguem e caluniam; para serdes filhos de vosso Pai que est nos cus, o qual faz erguer-se o seu sol sobre bons e maus, e faz chover sobre justos e injustos. Porque, se no amais seno os que vos amam, que recompensa deveis ter por isso?" (Mateus, V, 44 e segs.). Desse amor o prprio Deus nos d o exemplo, porque seus braos esto sempre abertos para o pecador:

"Assim, vosso Pai que est nos cus no quer que perea um s desses pequeninos."

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O sermo da montanha resume, em traos indelveis, o ensino popular de Jesus. Nele expressa a lei moral sob uma forma que jamais foi igualada.

Os homens a aprendem que no h mais seguros meios de elevao que as virtudes humildes e escondidas.

"Bem-aventurados os pobres de esprito (isto , os espritos simples e retos), porque deles o reino dos cus. - Bem-aventurados os que choram, porque sero consolados. - Bem-aventurados os que tm fome e sede de justia, porque sero saciados. - Bem-aventurados os que so misericordiosos, porque alcanaro misericrdia. - Bem-aventurados os limpos de corao, porque esses vero a Deus." (Mateus, V, 1 a 12; Lucas, VI, 20 a 25.)

O que Jesus quer no um culto faustoso, no umas religies sacerdotais, opulentas de cerimnias e prticas que sufocam o pensamento, no; um culto simples e puro, todo de sentimento, consistindo na relao direta, sem intermedirio, da conscincia humana com Deus, que seu Pai:

" chegado o tempo em que os verdadeiros adoradores ho de adorar o Pai em esprito e verdade, porque tal quer, tambm, sejam os que o adorem. Deus esprito, e em esprito e verdade que devem adorar os que o adoram."

O ascetismo coisa v. Jesus limita-se a orar e a meditar, nos stios solitrios, nos templos naturais que tm por colunas as montanhas, por cpula a abbada dos cus, e de onde o pensamento mais livremente se eleva ao Criador.

Aos que imaginam salvar-se por meio do jejum e da abstinncia, diz:

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"No o que entra pela boca o que macula o homem, mas o que por ela sai."

Aos rezadores de longas oraes: "Vosso Pai sabe do que careceis, antes de lho

pedirdes." Ele no exige seno a caridade, a bondade, a

simplicidade: No julgueis e no sereis julgados. Perdoai e sereis perdoados. Sede misericordiosa como vosso Pai celeste misericordioso. Dar mais doce do que receber.

Aquele que se humilha ser exaltado; o que se exalta ser humilhado.

"Que a tua mo esquerda ignore o que faz a direita, a fim de que tua esmola fique em segredo; e ento teu Pai que v no segredo, te retribuir."

E tudo se resume nestas palavras de eloqente conciso: "Amai o vosso prximo como a vs mesmos e sede perfeitos como vosso Pai celeste perfeito. Nisso se encerram toda a lei e os profetas." Sob a suave e meiga palavra de Jesus, toda impregnada do sentimento da natureza, essa doutrina se reveste de um encanto irresistvel, penetrante. Ela saturada de terna solicitude pelos fracos e pelos deserdados. a glorificao, a exaltao da pobreza e da simplicidade. Os bens materiais nos tornam escravos; agrilhoam o homem a Terra. A riqueza um estorvo; impede os velos da alma e a retm longe do "reino de Deus". A renncia, a humildade, desatam esses laos e facilitam a ascenso para a luz.

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Por isso que a doutrina evanglica permaneceu atravs dos sculos como a expresso mxima do espiritualismo, o supremo remdio aos males terrestres, a consolao das almas aflitas nesta travessia da vida, semeada de tantas lgrimas e angstias. ainda ela que faz, a despeito dos elementos estranhos que lhe vieram misturar, toda a grandeza, todo o poder moral do Cristianismo.

*

A doutrina secreta ia mais longe. Sob o vu das parbolas e das fices, ocultava concepes profundas. No que se refere a essa imortalidade prometida a todos, definia-lhe as formas afirmando a sucesso das existncias terrestres, nas quais a alma, reencarnada em novos corpos, sofreria as conseqncias de suas vidas anteriores e prepararia as condies do seu destino futuro. Ensinava a pluralidade dos mundos habitados, as alternaes de vida de cada ser: no mundo terrestre, em que ele reaparece pelo nascimento, no mundo espiritual, a que regressa pela morte, colhendo em um e outro desses meios os frutos bons ou maus do seu passado. Ensinava a ntima ligao e a solidariedade desses dois mundos e, por conseguinte, a comunicao possvel do homem com os espritos dos mortos que povoam o espao ilimitado.

Da o amor ativo, no somente pelos que sofrem na esfera da existncia terrestre, mas tambm pelas almas que em torno de ns vagueiam atormentadas por dolorosas recordaes. Da a dedicao que se devem as

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duas humanidades, visvel e invisvel, a lei de fraternidade na vida e na morte, e a celebrao do que chamavam "os mistrios", a comunho pelo pensamento e pelo corao com os que, Espritos bons ou medocres, inferiores ou elevados, compem esse mundo invisvel que nos rodeia, e sobre o qual se abrem esses dois prticos por onde todos os seres alternativamente passam: o bero e o tmulo.

A lei da reencarnao acha-se indicada em muitas passagens do Evangelho e deve ser considerada sob dois aspectos diferentes: volta carne, para os Espritos em via de aperfeioamento; a reencarnao dos Espritos enviados em misso a Terra. Em sua conversao com Nicodemos, Jesus assim se exprime: "Em verdade te digo que, se algum no renascer de novo, no poder ver o reino de Deus." Objeta-lhe Nicodemos: "Como pode um homem nascer, sendo j velho?" Jesus responde: Em verdade te digo que, se um homem no renasce da gua e do esprito, no pode entrar no reino de Deus. 0 que nascido da carne carne, e o que nascido do esprito esprito. No te maravilhes de te dizer: importa-vos nascer outra vez. 0 vento sopra onde quer e tu ouves a sua voz, mas no sabes de onde vem nem para onde vai. Assim todo aquele que nascido do esprito." (Joo, III, 3 a 8)

Jesus acrescenta estas palavras significativas: "Tu s mestre em Israel e no sabes estas coisas?"

0 que demonstra que no se tratava do batismo, que era conhecido pelos judeus e por Nicodemos, mas

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precisamente da reencarnao j ensinada no "Zohar", livro sagrado dos hebreus (l3).

Esse vento, ou esse esprito que sopra onde lhe apraz, a alma que escolhe novo corpo, nova morada, sem que os homens saibam de onde vem, nem para onde vai. a nica explicao satisfatria. Na Cabala hebraica, a gua era a matria primordial, o elemento frutificado. Quanto expresso Esprito Santo, que se acha no texto e que o torna incompreensvel, preciso notar que a palavra santo nele no se encontra em sua origem e que foi a introduzido muito tempo depois, como se deu em vrios outros casos (14). preciso, por conseguinte, ler: renascer da matria e do esprito.

Noutra ocasio, a propsito de um cego de nascena, encontrado de passagem, os discpulos perguntam a Jesus:

"Mestre, quem foi que pecou? Foi este homem, ou seu pai, ou sua me, para que ele tenha nascido cego?" (Joo, IX, 1 e 2).

A pergunta indica, antes de tudo, que os discpulos atribuam a enfermidade do cego a uma expiao. Em seu pensamento, a falta precedera a punio; tinha sido a sua causa primordial. a lei da conseqncia dos atos, fixando as condies do destino. Trata-se a de um cego de nascena; a falta no se pode explicar seno por uma existncia anterior.

Da essa idia da penitncia, que reaparece a cada momento nas Escrituras: Fazei penitncia , dizem elas constantemente, isto , praticai a reparao, que o fim da vossa nova existncia; retificai vosso passado,

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espiritualizai-vos, porque no saireis do domnio terrestre, do crculo das provaes, seno depois de haverdes pagado at o ltimo ceitil.(Mateus, V, 26).

Em vo tm procurado os telogos explicar douto modo, que no pela reencarnao, essa passagem do Evangelho. Chegaram a raciocnios, pelo menos, estranhos. Assim foi que o snodo de Amsterd no pde sair-se da dificuldade seno com esta declarao: "o cego de nascena havia pecado no seio de sua me (15).

Era tambm opinio corrente, nessa poca, que Espritos eminentes vinham, em novas encarnaes, continuar, concluir misses interrompidas pela morte. Elias, por exemplo, voltara a Terra na pessoa de Joo Batista. Jesus o afirma nestes termos, dirigindo-se multido:

"Que saste a ver? Um profeta? Sim, eu vo-lo declaro, e mais que um profeta. E, se o quereis compreender, ele o prprio Elias que devia vir. - 0 que tem ouvidos para ouvir, oua." (Mateus, XI, 9,14 e 15)

Mais tarde, depois da decapitao de Joo Batista, ele o repete aos discpulos:

E seus discpulos o interrogam, dizendo: Porque, pois, dizem os escribas que importa vir primeiramente Elias? - Ele, respondendo, lhes disse:

"Elias, certamente, devia vir e restabelecer todas as coisas. Mas eu vo-lo digo: Elias j veio e eles no o conheceram, antes lhe fizeram quanto quiseram. - Ento, conheceram seus discpulos que de Joo Batista que ele lhes falara." (Mateus, XVII, 10, 11, 12 e 15).

Assim, para Jesus, como para os discpulos, Elias e Joo Batista eram a mesma e nica individualidade. Ora,

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tendo essa individualidade revestido sucessivamente dois corpos, semelhante fato no se pode explicar seno pela lei da reencarnao.

Numa circunstncia memorvel, Jesus pergunta a seus discpulos: Que dizem do filho do homem.

E eles lhe respondem: "Uns dizem: Joo Batista; outros, Elias; outros,

Jeremias ou um dos profetas." (Mateus, XVI, 13, 14; Marcos, VIII, 28)

Jesus no protesta contra essa opinio como doutrina, do mesmo modo que no protestara no caso do cego de nascena. Ao demais, a idia da pluralidade das vidas, dos sucessivos graus a percorrer para se elevar perfeio, no se acha implicitamente contida nestas palavras memorveis: "Sede perfeitos como vosso Pai celeste perfeito"? Como poderia a alma humana alcanar esse estado de perfeio em uma nica existncia?

De novo encontramos a doutrina secreta, dissimulada sob vus mais ou menos transparentes, nas obras dos apstolos e dos padres da Igreja dos primeiros sculos. No podiam estes dela falar abertamente. Da as obscuridades da sua linguagem.

Aos primeiros fiis escrevia Barnab: Tanto quanto pude, acredito ter-me explicado com

simplicidade e nada haver omitido do que pode contribuir para vossa instruo e salvao, no que se refere s coisas presentes, porque, se vos escrevesse relativamente s coisas futuras, no compreendereis, porque elas se acham expostas em parbolas.(Epstola catlica de So Barnab, XVII, l, 5).

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Em observncia a esta regra que um discpulo de So Paulo, Hermas, descreve a lei das reencarnaes sob a figura de "pedras brancas, quadradas e lapidadas", tiradas da gua para servirem na construo de um edifcio espiritual. (Livro do Pastor, III, XVI, 3, 5).

"Porque foram essas pedras tiradas de um lugar profundo e em seguida empregadas na estrutura dessa torre, pois que j estavam animadas pelo esprito? - Era necessrio, diz-me o senhor, que, antes de serem admitidas no edifcio, fossem trabalhadas por meio da gua. No poderiam entrar no reino de Deus por outro modo que no fosse despojando-se da imperfeio da sua primeira vida."

Evidentemente essas pedras so as almas dos homens; as guas (16) so as regies obscuras, inferiores, as vidas materiais, vidas de dor e provao, durante as quais as almas so lapidadas, polidas, lentamente preparadas, a fim de tomarem lugar um dia no edifcio da vida superior, da vida celeste. H nisso um smbolo perfeito da reencarnao, cuja idia era ainda admitida no sculo III e divulgada entre os cristos.

Dentre os padres da Igreja, Orgenes um dos que mais eloqentemente se pronunciaram a favor da pluralidade das existncias. Respeitvel a sua autoridade. So Jernimo o considera, "depois dos apstolos, o grande mestre da Igreja, verdade, diz ele, que s a ignorncia poderia negar". S. Jernimo vota tal admirao a Orgenes que assumiria, escreve, todas as calnias de que ele foi alvo, uma vez que, por esse preo, ele, Jernimo, pudesse ter a sua profunda cincia das Escrituras.

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Em seu livro clebre, "Dos Princpios", Orgenes desenvolve os mais vigorosos argumentos que mostram, na preexistncia e sobrevivncia das almas noutros corpos, em uma palavra, na sucesso das vidas, o corretivo necessrio aparente desigualdade das condies humanas, uma compensao ao mal fsico, como ao sofrimento moral que parece reinarem no mundo, se no se admite mais que uma nica existncia terrestre para cada alma. Orgenes erra, todavia, num ponto. E quando supe que a unio do esprito ao corpo sempre uma punio. Ele perde de vista a necessidade da educao das almas e a laboriosa realizao do progresso.

Errnea opinio se introduziu em muitos centros, a respeito das doutrinas de Orgenes, em geral, e da pluralidade das existncias em particular, que pretendem ter sido condenadas, primeiro pelo conclio de Calcednia, e mais tarde pelo quinto conclio de Constantinopla. Ora, se remontamos s fontes(17), reconhecemos que esses conclios repeliram, no a crena na pluralidade das existncias, mas simplesmente a preexistncia da alma, tal como a ensinava Orgenes, sob esta feio particular: que os homens eram anjos decados e que o ponto de partida tinha sido para todos a natureza Anglica.

Na realidade, a questo da pluralidade das existncias da alma jamais foi resolvida pelos conclios. Permaneceu aberta s resolues da Igreja no futuro, e esse um ponto que se faz preciso estabelecer.

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Como a lei dos renascimentos, a pluralidade dos mundos acha-se indicada no Evangelho, em forma de parbola:

"H muitas moradas na casa de meu Pai. Eu vou a preparar-vos o lugar, e, depois que tiver ido e vos tiver preparado o lugar, voltarei e vos levarei comigo, a fim de que onde eu estiver, vs estejais tambm." (Joo, XIV, 2 e 3)

A casa do Pai o infinito cu; as moradas prometidas so os mundos que percorrem o espao, esferas de luz ao p das quais a nossa pobre Terra no mais que mesquinho e obscuro planeta. E para esses mundos que Jesus guiar as almas que se ligarem a ele e sua doutrina, mundos que lhe so familiares e onde nos saber preparar um lugar, conforme os nossos mritos.

Orgenes comenta essas palavras em termos positivos: "O Senhor faz aluso s diferentes estaes que

devem as almas ocupar, depois que se houverem despojado dos seus corpos atuais e se tiverem revestido de outros novos."

V - Relaes com os Espritos dos mortos

Os primeiros cristos comunicavam-se com os Espritos dos mortos e deles recebiam ensinamentos. Nenhuma dvida possvel sobre esse ponto, porque so abundantes os testemunhos. Resultam dos prprios textos dos livros cannicos, textos que conseguiram

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escapar s vicissitudes dos tempos e cuja autenticidade indubitvel (18).

O Cristianismo repousa inteiramente em fatos de apario e manifestao dos mortos e fornece inmeras provas da existncia do mundo invisvel e das almas que o povoam.

Essas provas so igualmente abundantes no Antigo e Novo Testamento. Num como noutro, encontram-se aparies de anjos (19) dos Espritos dos justos, avisos e revelaes feitos pelas almas dos mortos, o dom de profecias (20) e o dom de curar (21). Em o Novo Testamento so referidas as aparies do prprio Jesus, depois do seu suplcio e sepultura.

A existncia do Cristo havia sido uma constante comunho com o mundo invisvel. O filho de Maria era dotado de faculdades que lhe permitiam conversar com os Espritos. Estes, muitas vezes, tornavam-se visveis ao seu lado. Seus discpulos o viram, assombrados, conversar um dia no Tabor com Elias e Moiss (22) .

Nos momentos crticos, quando uma questo o embaraa, como no caso da mulher adltera, ele evoca as almas superiores e com o dedo traa na areia a resposta a dar, do mesmo modo que em nossos dias o mdium, movido por fora estranha, traa caracteres na ardsia.

Esses fatos so conhecidos, relatados, mas outros muitos, relacionados com essa permuta assdua com o invisvel, permaneceram ignorados dos homens, mesmo daqueles que o cercavam.

As relaes do Cristo com o mundo dos Espritos se afirmam pelo constante amparo que do Alm recebia o divino mensageiro.

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Por vezes, apesar da sua coragem, da abnegao que inspira todos os seus atos, perturbado pela grandeza da tarefa, ele eleva a alma a Deus; ora, implora novas foras e atendido. Grandioso sopro lhe bafeja a mente. Sob um impulso irresistvel, ele reproduz os pensamentos sugeridos; sente-se reconfortado, socorrido.

Nas horas solitrias, seus olhos distinguem letras de fogo que exprimem as vontades do cu (23) soam vozes aos seus ouvidos, trazendo-lhe resposta s suas ardentes preces. a transmisso direta dos ensinos que deve divulgar, so preceitos regeneradores para cuja propagao baixara a Terra. As vibraes do supremo pensamento que anima o Universo lhe so perceptveis e lhe incutem esses eternos princpios que espalhar e que jamais se ho de apagar da memria dos homens. Ele percebe celestes melodias e seus lbios repetem as palavras escutadas, sublimes revelao, mistrio ainda para muitos seres humanos, mas para ele confirmao absoluta dessa constante proteo e das intuies que lhe provm dos mundos superiores.

E quando essa grande vida terminou, quando se consumou o sacrifcio, depois que Jesus foi pregado cruz e baixou ao tmulo, seu Esprito continuou a afirmar-se por novas manifestaes. Essa alma poderosa, que em nenhum tmulo poderia ser aprisionada, aparece aos que na Terra havia deixado tristes, desanimados e abatidos. Vem dizer-lhes que a morte nada . Com a sua presena lhes restitui a energia, a fora moral necessria para cumprirem a misso que lhes fora confiada.

As aparies do Cristo so conhecidas e tiveram numerosos testemunhos. Apresentam flagrantes

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analogias com as que em nossos dias so observadas em diversos graus, desde a forma etrea, sem consistncia, com que aparece Maria Madalena e que no suportaria o mnimo contacto, at a completa materializao, tal como a pde verificar Tom, que tocou com a prpria mo as chagas do Cristo (24). Da esse contraste nas palavras de Jesus: "No me toques" - diz ele Madalena - ao passo que convida Tom a pr o dedo nos sinais dos cravos: "Chega tambm a tua mo e mete-a no meu lado".

Jesus aparece e desaparece instantaneamente. Penetra numa casa a porta fechadas. Em Emas conversa com dois dos discpulos que o no reconhecem, e desaparece repentinamente. Acha-se de posse desse corpo fludico, etreo, que h em todos ns, corpo sutil que o invlucro inseparvel de toda alma e que um alto Esprito como o seu sabe dirigir, modificar, condensar, rarefazer a vontade (25). E a tal ponto o condensa, que se torna visvel e tangvel aos assistentes.

As aparies de Jesus depois da morte so mesmo a base, o ponto capital da doutrina crist e foi por isso que So Paulo disse: "Se o Cristo no ressuscitou, v a vossa f." No Cristianismo no uma esperana, um fato natural, um fato apoiado no testemunho dos sentidos. Os apstolos no acreditavam somente na ressurreio; estavam dela convencidos. E por essa razo que a sua prdica adquiria aqueles tons veementes e penetrantes, que incutia uma convico robusta. Com o suplcio de Jesus o Cristianismo era ferido em pleno corao. Os discpulos, consternados, estavam prestes a se dispersarem.

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O Cristo, porm, lhes apareceu e a sua f se tornou to profunda que, para a confessar, arrostaram todos os suplcios. As aparies do Cristo depois da morte asseguraram a persistncia da idia crist, oferecendo-lhe como base todo um conjunto de fatos.

Verdade que os homens lanaram a confuso sobre esses fenmenos, atribuindo-lhes um carter miraculoso. O milagre uma postergao das leis eternas fixadas por Deus, obras que so da sua vontade, e seria pouco digno da suprema Potncia exorbitar da sua prpria natureza e variar em seus decretos.

Jesus, conforme a Igreja, teria ressuscitado com o seu corpo carnal. Isso contrrio ao primitivo texto do Evangelho. Aparies repentinas, com mudanas de forma, que se produzem em lugares fechados, no podem ser seno manifestaes espritas, fludicas e naturais. Jesus ressuscitou, como ressuscitaremos todos, quando nosso esprito abandonar a priso de carne.

Em Marcos e Mateus, e na descrio de Paulo (l Cornt., XV), essas aparies so narradas do modo mais conciso. Segundo Paulo, o corpo do Cristo incorruptvel; no tem carne nem sangue. Essa opinio procede da mais antiga tradio. A materialidade s veio mais tarde, com Lucas. A narrativa se complica ento e enfeitada com particularidades maravilhosas, no intuito evidente de impressionar o leitor (26).

Esse modo de ver, como em geral toda teoria do milagre, resulta de uma falsa interpretao das leis do Universo. O mesmo sucede com a idia do sobrenatural, que corresponde a uma concepo deficiente da ordem do mundo e das normas da vida. Na realidade, nada

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existe fora da Natureza, que a obra divina em sua majestosssima expanso. O erro do homem provm da acanhada idia que ele faz da Natureza e das formas da vida, limitadas para ele esfera traada pelos seus sentidos. Ora, nossos sentidos apenas abrangem poro muitssimo restrita do domnio das coisas. Alm desses limites que eles nos impem, a vida se desdobra sob aspectos ricos e variados, sob formas sutis, quintessenciadas, que se graduam, se multiplicam e renovam at ao infinito.

A esse domnio do invisvel pertence o mundo fludico, povoado pelos Espritos dos homens que viveram na Terra e se despojaram do seu grosseiro invlucro. Subsistem eles, sob essa forma sutil de que acabamos de falar, forma ainda material posto que etrea, porque a matria afeta muitos estados que no nos so familiares. Essa forma a imagem, ou antes, o esboo dos corpos carnais que esses Espritos animaram em suas vidas sucessivas. Passam eles, mas a forma permanece, como a alma, de que o organismo indestrutvel.

Os Espritos ocupam diferentes posies em harmonia com a sua elevao moral. Sua irradiao, brilho, poder, so tanto maiores quanto mais alto houverem subido na escala das virtudes, das perfeies, e quanto maior tiver sido a sua dedicao em servir a causa do bem e da Humanidade. So esses seres, ou Espritos, que se manifestam em todas as pocas da Histria e em todos os meios, tendo como intermedirios sensitivos especialmente dotados, e que, conforme os

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tempos, se denominam adivinhos, sibilas, profetas ou mdiuns.

As aparies que assinalam os primeiros tempos do Cristianismo, como as bblicas pocas mais longnquas, no so fenmenos isolados mas a manifestao de uma lei universal, eterna, que sempre presidiu s relaes entre os habitantes dos dois mundos, o mundo da matria grosseira, a que pertencemos, e o mundo fludico invisvel, povoado pelos Espritos dos que denominamos to impropriamente os mortos (27).

Apenas em poca recente foi que essa ordem de manifestaes pde ser estudada pela Cincia. Graas s observaes de numerosos sbios, a existncia do mundo dos Espritos foi positivamente estabelecida e as leis que o regem foram determinadas com certa preciso.

Conseguiu-se reconhecer a presena em cada ser humano, de um duplo fludico que sobrevive morte, no qual foi reconhecido o envoltrio imperecvel do Esprito. Esse duplo, que j se desprende durante o xtase e o sono, que se transporta e opera a distncia durante a vida, torna-se, depois da separao definitiva do corpo carnal, e de um modo mais completo, o instrumento fiel e o centro das energias ativas do Esprito.

Mediante esse invlucro fludico que o Esprito preside a tais manifestaes de alm-tmulo, que j no so segredo para ningum, desde que comisses cientficas lhe estudaram os mltiplos aspectos, chegando a pesar e fotografar os Espritos, como o fizeram W Crookes com o Esprito de Katie King, Russell Wallace e Aksakof com os de Abdullah e John King (28).

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provvel que o dom das lnguas, conferido aos apstolos, oferecesse analogias com o fenmeno que, sob o nome de xenoglossia, atualmente conhecemos. A luz dica de Reichenbach e a matria radiante explicam a aurola dos santos; as chamas ou "lnguas de fogo", que apareceram no dia de Pentecostes, reproduzem-se hoje em dia nos fatos comunicados ao Congresso Espiritualista de 1900 pelo Doutor Bayol, senador pelo Distrito das Bocas do Rdamo (29), e finalmente as vises dos mrtires so fenmenos da mesma ordem que os em nosso tempo observados no momento da morte de certas pessoas (30). Assim, tambm, o desaparecimento do corpo de Jesus do sepulcro em que fora depositado, pode explicar-se pela desagregao da matria, observada h alguns anos em sesses de experimentao psquica (31). Durante muito tempo no viram nisso os homens seno fatos miraculosos, provocados pelo prprio Deus ou por seus anjos, opinio cuidadosamente alimentada pelos padres, a fim de impressionar a imaginao das massas e torn-las mais submissas ao seu poder.

Nas Escrituras encontramos freqentes exemplos dos erros de que foram objeto esses fenmenos. Em Patmos, Joo v aparecer um gnio que, a princpio, ele quer adorar, mas que lhe afirma ser o Esprito de um dos profetas seu irmo (32) Nesse caso, foi dissipado o erro; o Esprito deu a conhecer a sua personalidade; em quantos outros casos, porm, no foi ele mantido? o mesmo que se d com a interveno, to freqente, dos anjos da Bblia. preciso nos pr em guarda contra as tendncias dos judeus e dos cristos no sentido de atribuir a Deus e aos seus anjos fenmenos produzidos

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pelos Espritos dos mortos, e a cujo respeito competia nossa poca fazer a luz, restabelecendo-os em sua verdadeira categoria.

Na poca de Jesus, a crena na imortalidade estava enfraquecida. Os judeus achavam-se divididos a respeito da vida futura. Os cpticos saduceus aumentavam em nmero e influncia. Vem Jesus. Torna mais amplas as vias de comunicao entre o mundo terrestre e o mundo espiritual. Aproxima a tal ponto os invisveis dos humanos, que eles se podem novamente corresponder. Com mo possante levanta o vu da morte e surgem vises do mago da sombra; no meio do silncio fazem-se ouvir vozes; e essas vises e essas vozes vm afirmar ao homem a imortalidade da vida.

O Cristianismo primitivo afeta, pois, esse carter particular de ter aproximado as duas humanidades, terrestre e celeste; tornou mais intensas as relaes entre o mundo visvel e o mundo invisvel. Efetivamente, em cada grupo esprita, as pessoas se entregavam a evocaes; havia mdiuns falantes, inspirados, de efeitos fsicos, como est escrito no captulo XII da primeira epstola de So Paulo aos Corntios. Ento, como hoje, certos sensitivos possuam o dom da profecia, o dom de curar, o de expelir os maus Espritos (33).

Na Epstola citada, S. Paulo fala tambm do corpo espiritual, impondervel, incorruptvel: "O homem colocado na terra como um corpo animal, e r