Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
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Aula 3
Análise do Filme
“O Salário do Mêdo”
A condição de proletariedade emerge com a modernidade do capital,
sendo caracterizada por uma série de traços existenciais que marcam a vida
cotidiana das individualidades pessoais de classe. O que é comum a homens e
mulheres submersos na condição de proletariedade – a “classe” do proletariado
- é o vínculo com determinadas situações históricas de precariedade salarial,
que podem assumir, por conta das circunstancias histórico-politicas da luta de
classes, forma extrema ou forma regulada. Deste modo, um proletário pode
estar inserido em formas extremas ou formas reguladas de precariedade
salarial (toda relação social de subalternidade estrutural do trabalho vivo e da
força de trabalho às determinações compositivas do capital – Estado ou
mercado – na instância da organização do trabalho, é uma relação salarial).
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Um largo contingente da “classe” do proletariado no decorrer do século
XX viveu em situações de precariedade salarial extrema. Por exemplo, mesmo
sob o período áureo do capitalismo mundial, nos EUA pós-II guerra mundial,
nas décadas de 1950 e 1960, trabalhadores proletários negros e imigrantes não-
organizados em sindicatos, viviam à margem do Welfare State. Eles eram
trabalhadores assalariados que pertenciam aos setores não-monopolistas da
economia capitalista, onde era acirrada a concorrência entre proletários que
disputavam um lugar no mercado de trabalho. Nos paises capitalistas
periféricos, como o Brasil, o contingente de trabalhadores proletários imersos
em situações de precariedade salarial extrema – com destaque para os
denominados trabalhadores assalariados “informais”, os sem-carteira de
trabalho - sempre foi maior do que aqueles vinculados às formas reguladas de
salariato. A larga “mancha” de pobreza e indigência social que caracteriza as
sociedades burguesas periféricas subsumidas ao imperialismo, expõe, com
vigor, formas extremas de precariedade salarial.
Os trabalhadores proletários submersos em situações de precariedade
salarial extrema, tendem a serem operários ou empregados pobres, negros,
índios, mestiços ou imigrantes, em geral, não-organizados em associações ou
sindicatos, trabalhadores “autônomos” ou por conta própria de baixa
qualificação profissional, submetidos ao desemprego crônico ou subemprego
recorrente, sem proteção da legislação trabalhista e, muitas vezes, da
previdência e seguridade social. Os proletários “precários” vivem, com
intensidade inaudita, a condição de proletariedade com todos os seus atributos
existenciais: subalternidade às leis do mercado (este ente abstrato que subsume
homens e mulheres ao “destino” das coisas); acaso e contingência; insegurança
e descontrole existencial; incomunicabilidade, deriva pessoal e sofrimento;
risco e periculosidade; invisibilidade social; experimentação e manipulação;
prosaísmo e desencantamento; e corrosão do caráter.
Portanto, a condição de proletariedade é uma condição histórico-
existencial, que é demarcada historicamente por situações de “regulação
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salarial” – é o que denominamos de formas de precariedade salarial, onde
podemos distinguir a precariedade extrema e a precariedade regulada. No
decorrer da história do capitalismo industrial no século XX, emergiram várias
formas de precariedades salariais (ou modos de regulação salarial)
determinados pela dinâmica da acumulação e a luta de classes.
Num determinado momento histórico, o conjunto da “classe” do
proletariado, pode estar implicado, de forma diferenciada, em diversas situações
de precariedades salariais, indo, por exemplo, da precariedade extrema, com a
condição de proletariedade se explicitando de forma intensa e ampliada; à
precariedade regulada, onde ela está coberta pela regulação politico-social e os
proletários estão organizados em sindicatos e associações, possuindo assim,
poder de barganha diante dos capitalistas e do Estado politico.
Além disso, sob determinadas circunstâncias da conjuntura,
principalmente em períodos de crise da economia capitalista, trabalhadores
proletários podem ir de uma situação de precariedade salarial para outra – isto
é, homens e mulheres proletários podem ser vítimas de um processo de
precarização do trabalho propriamente dito, que promove um “empobrecimento
relativo” de amplos contingentes da “classe” do proletariado. Nesse caso, por
exemplo, operários e empregados têm suas condições de trabalho degradadas
ou perdem benefícios salariais; ou ainda tornam-se desempregados, obrigados a
se inserirem em empregos precários ou empreitadas de risco. Deste modo, os
atributos existenciais da proletariedade, antes meramente implícitos e sob
controle relativo, tornam-se, com vigor, intensamente explícitos e marcantes.
Na verdade, a insegurança é um dos traços sócio-ontológico da condição
de proletariedade, atingindo em maior ou menor proporção, o conjunto da
“classe” do proletariado. É por ser um traço sócio-ontológico da condição do
homem que trabalho sob o modo de produção capitalista, que a insegurança
estrutural tende a caracterizar toda relação salarial. Ora, todo trabalho
assalariado – inclusive no sentido amplo da acepção – é, a rigor, trabalho
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precário, no sentido de estar sob o signo da insegurança (e subalternidade)
estrutural que marca a relação capital-trabalho.
Precariedade Extrema
Precariedade Regulada
Situações de Precariedade Salarial
Condição de Proletariedade
No filme “O Salário do Medo”, de Henri-Georges Clouzot, baseado no
romance homônimo de Georges Arnaud, temos elementos para refletir sobre a
condição de proletariedade sob a forma da precariedade salarial extrema.
A forma extrema da precariedade salarial exposta no filme – proletários
desempregados obrigados a assumirem empreitadas de risco - propicia a
intensa visibilidade dos atributos existenciais da condição da proletariedade.
Ela contribui para uma reflexão crítica sobre elementos sócio-ontológicos da
proletariedade moderna que perpassam, em maior ou menor proporção, o
conjunto dos trabalhadores assalariados.
De certo modo, todos nós somos, em maior ou menos proporção, os
“estrangeiros” do filme de Henri-Georges Clouzot (Mario, Jo, Bimba e Luigi).
Há um lastro de identidade entre nós e eles, obrigados, pelas circunstâncias da
contingencia de proletariedade, a conduzirem caminhões carregados de
nitroglicerina pelas estradas precárias do interior da Guatemala. Talvez o
mundo capitalista hoje, mais do que nunca, seja uma imensa Las Piedras. Deste
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modo, o filme de Clouzot (e o romance de Arnaud) contém uma candente
metáfora da condição de proletariedade que iremos explorar neste texto.
Num país miserável da América Central (Guatemala), quatro homens –
Mario, Jo, Bimba e Luigi - são selecionados para transportar, por uma estrada
de difícil acesso, uma imensa carga de explosivos (200 galões de nitroglicerina)
destinada a extinguir um incêndio num poço de petróleo da SOC (Southern Oil
Company). O filme “Salário do Medo” é um thriller de suspense de Henri-
Georges Clouzout, produzido em 1953 e baseado no romance homônimo de
Georges Arnaud (Clouzot fez a adaptação e os diálogos do filme).
Num primeiro momento, Clouzot nos apresenta Las Piedras, pequena
cidade do interior da Guatemala, degradada pela miséria e completo abandono,
cuja única atividade produtiva é estar próximo da exploração de petróleo da
SOC, a companhia petrolífera norte-americana (é em Las Piedras que se
encontra a sede regional da SOC). Nas primeiras cenas do filme, vislumbramos
ruas esburacadas, sem pavimentação, cheias de poças d’água estagnada, com
vira-latas transitando com indolência. É perceptível uma série de atividades de
trabalho precário, exercidos por conta própria, meras estratégias de
sobrevivência de homens e mulheres miseráveis. O calor, desemprego,
subemprego e miséria, assolam a pequena cidade imaginária de Clouzot e
Arnaud.
Na abertura do filme, Clouzot expõe a síntese cruel daquele cenário
urbano degradado onde irá se desenrolar o thriller em seus primeiros
momentos: uma criança nativa brinca com insetos numa poça de lama. Ao abrir
o filme com a cena da criança brincando com insetos numa poça de lama,
Clouzot traduz, numa imagem, o drama existencial de O Salário do Medo.
Trata-se, nesse caso, da metáfora da barbárie social que assume dimensões
catastróficas nos países capitalistas empobrecidos pelo imperialismo (o recurso
metafórico da barbárie humana, em sua forma primordial, foi utilizado também,
por exemplo, nas primeiras cenas do filme "Meu ódio será sua herança”, de Sam
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Peckinpah, de 1969, em que crianças assistem com satisfação um escorpião ser
devorado por formigas do deserto).
O thriller do filme O Salário do Mêdo passa-se num cenário de
“subdesenvolvimento” perverso, típica "República das Bananas", quintal do
imperialismo yankee. Em Las Piedras, ao lado de transeuntes miseráveis, vê-se
alguém pedindo esmolas. Uma mulher carrega uma lata d’água na cabeça,
acusando a falta de saneamento básico. Uma senhora idosa vende algum petisco
num carrinho. Aos seus pés, um vira-lata atento ao que se passa. É o cenário
pleno da exceção da modernização capitalista nas condições do capitalismo
perif’érico. Na verdadem é sob o cenário do “subdesenvolvimento” capitalista –
onde se explicita com candente intensidade a condição de proletariedade - que
se desenrola o drama existencial de homens estranhados imerso num thriller de
medo e de angústia.
As primeiras imagens do filme O Salário do Medo expõem a aguda
precariedade das condições de vida social no lugarejo do interior da
Guatemala. Tal impressão de miséria humana está com vigor no romance de
Georges Arnaud que, como epígrafe diz-nos: “”Não queiram encontrar neste
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livro aquela exatidão geográfica que não passa de um logro: a Guatemala, por
exemplo, não existe. Eu sei-o, vivi lá.” Talvez Clouzot, ao utilizar o best-seller de
Arnoud, quisesse elaborar uma metáfora sobre a condição humana (existe certo
clima existencialista no thriller de Clouzot), ou ainda, apresentar para as
sociedades européias do centro capitalista, o lado oculto da civilização do capital
(estamos em 1953 e o Terceiro Mundo ainda era um Outro Mundo).
Mas, a presença de uma multinacional do Petróleo (a SOC - Southern Oil
Company) expõe o caráter moderno da miséria de Las Pedras (Mario, um dos
personagens do filme, irá dizer: “Onde tem petróleo, tem americanos”). Na
verdade, o Terceiro Mundo é parte compositiva de um mundo só – o mundo do
capital. A S.O.C extrai petróleo bruto, que alimenta a máquina fordista do
centro capitalista. De certo modo, o filme trata do modelo energético que irá
caracterizar o capitalismo histórico do século XX. A exploração do petróleo
moveu os interesses imperialistas no século passado. Portanto, a verdade da
precariedade social de Las Piedras está na exploração imperialista do “ouro
negro”. As múltiplas dimensões da precariedade social de Las Piedras é
expressão candente da lógica de exploração e espoliação exercida pelos países
capitalistas imperialistas sobre o Terceiro Mundo.
Assim, num primeiro momento, é importante salientar que a mediação
concreta do estranhamento social extremo que marca a pobreza dos países
capitalistas periféricos do Terceiro Mundo – como é o caso da Guatemala,
exposta no fime “O Salário do Mêdo”, é o imperialismo moderno. Em última
instância, esta é a categoria social pressuposta na trama narrativa do filme de
Clouzot. É o imperialismo moderno que aparece – nas entrelinhas do filme -
como causalidade estrutural do cenário miserável de Las Piedras e elemento de
circunstância do “destino trágico” dos anti-heróis do filme (Mario, Jo, Bimba e
Luigi).
Iremos caracterizar o imperialismo moderno como sendo uma forma
histórica de expropriação sistêmica do modo de produção capitalista em sua
dimensão sócio-territorial, opera no plano das relações econômicas, culturais e
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politicas internacionais de dominação e poder do capital entre países do
mercado mundial. O imperialismo moderno emerge nas condições históricas do
capitalismo monopolista na virada do século XIX para o século XX, marcando o
largo desenvolvimento do sistema do capital no século XX.
A expropriação (e espoliação) sistêmica instaurada pelo imperialismo
moderno no plano das relações internacionais, ocorre principalmente – embora
não exclusivamente - no plano da extração de riquezas, subutilizando a força de
trabalho local, embora haja, ao mesmo tempo, superexploração da força de
trabalho e espoliação de suas condições de vida local (expropriação primordial
como ocupação de terras e expulsão de pequenos produtores).
O imperialismo moderno é um traço estrutural do sistema mundial do
capital no século XX, estruturando relações de expropriação sistêmica e
constituindo as formas de ser do mundo burguês. Por isso, não deixa de ser
sintomático que o filme “O Salário do Mêdo”, de Henri-Georges Arnoud, tenha
como elemento categorial de fundo, a categoria de imperialismo moderno que –
indiretamente – organiza o cenário da proletariedade extrema (ao colocar a
indústria petrolífera como peça fundamental da logística narrativa, Clouzot e
Arnaud expõem o traço indelével dos interesses imperialistas: o domínio dos
recursos energéticos fundamentais para a alimentar a máquina capitalista).
O imperialismo moderno nos países capitalistas do Terceiro Mundo dá
origem a formas específicas da proletariedade moderna, marcadas com vigor –
no caso de países pobres do Terceiro Mundo - pela precariedade social em sua
dimensão extrema. A lógica social do imperialismo moderno organiza uma nova
forma de ser do proletariado no Terceiro Mundo. O movimento do capital
imperialista, cria o mundo do trabalho à sua imagem e semelhança. Nesse caso,
no filme, constitui-se a condição de proletariedade de nativos e estrangeiros
(em “Salário do Mêdo”, por exemplo, é perceptível a superexploração da força
de trabalho de parte de nativos locais – inclusive aborígenes, operários da SOC;
e a marginalização extrema do resto da população nativa (com os aborígene
alienados de suas terras e vivendo em condições extremas de miséria); além de
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um pequeno núcleo de estrangeiros em Las Piedras, excluídos de direitos
políticos e sociais.
Na verdade, é sob as condições específicas do imperialismo moderno que
se manifestam, com vigor, a natureza intrínseca da ordem sócio-metabólica do
capital, expondo-se – no plano sócio-territorial – seus traços essenciais de
desefetivação humano-genérica (por exemplo, a fome, espectro que persegue a
população miserável de Las Piedras, é sua expressão máxima).
O filme “O Salário do Mêdo”explicita a territorialização da precariedade
salarial (e social) constituída pelo capital imperialista nas bordas periféricas do
sistema mundial. Ora, no filme de Clouzot, a dimensão territorial assume uma
dimensão essencial. “Salário do Medo” é um filme geográfico. Os homens
proletários do filme não são apenas meras “carcaças do tempo” – pois para
Marx, no sistema do capital, o tempo é tudo; mas os proletários de Las Piedras
são também carcaças do “espaço cativo” do capital. De fato, Las Piedras é quase
um “presidio”, onde homens sem capacidade aquisitiva estão
irremediavelmente reclusos no espaço-tempo da miséria social. A frase “Não se
parte sem dinheiro”, dita por Mário, expressa a verdade lancinante de O Salário
de Medo. Aliás, a utopia pessoal dos personagens estrangeiros enterrados em
Las Piedras, “buraco sórdido e pestilento”, é voltar para o país de origem É, por
exemplo, o que sonha Mário, proletário francês (interpretado por Yves
Montand), que guarda em seus pertences, um bilhete do Metro de Paris (Mario
se interroga: “Por que teimamos em ficar?”). Ele divide um quarto com Luigi,
italiano de origem, pedreiro condenado pelo medico por ter cimento nos
pulmões e que, como os outros, sonha sair de Las Piedras (um detalhe: os
personagens centrais de “O Salário do Medo” não aparecem com seus
sobrenomes, o que sugere o desenraizamento total).
A imagem candente de Las Piedras (na Guatemala), com suas ruas sem
pavimentação, esburacadas, insalubres e ainda, homens e mulheres submetidos
a trabalhos precários, crianças desnudadas pela miséria crônica que abate as
populações pobres do lugarejo é a síntese concreta do mundo social periférico
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da ordem burguesa imperialista. Mas as situações de miserabilidade e pobreza
social ocultam seu conteúdo histórico candente: manifestações derivadas da
ordem social do capital, baseada no trabalho estranhado, sob o signo do
imperialismo moderno.
Dimensões sócio-territoriais da Proletariedade Moderna
Imperialismo Moderno
Condição de proletariedade
Modernidade do capital
O filme de Clouzot expõe uma das determinações reflexivas da
modernidade do capital no século XX: pobreza e imperialismo moderno. A
pobreza de Las Piedras, a sua extrema miséria social, se contrasta, como traço
antípoda, com sua riqueza bruta expressa na extração do “ouro negro” do século
XX, o Petróleo. É ele que move a máquina capitalista mundial baseada no modo
de vida fordista. Portanto, ao lado das condições miseráveis da população pobre
de Las Piedras, com sua extrema proletariedade, temos a grande empresa
moderna – a S.O.C., que explora o Petróleo. Um dos traços candentes do
capitalismo, a ordem social do trabalho estranhado, é a percepção dialética de
que, sob o capitalismo, riqueza é pobreza (como diria Marx).
Portanto, a primeira percepção critico-analítica do filme coloca o
imperialismo moderno – forma de ser do capitalismo mundial em sua etapa
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monopolista - como sendo a mediação concreta que explica a miséria social dos
povos de Lãs Piedras. É o imperialismo moderno, como produto do capital que
se mundializa, transtornando o entorno social de populações nativas,
explorando recursos naturais e degradando as condições de vida de homens e
mulheres das localidades coloniais, que explica – em última instância - a
extrema proletariedade de homens e mulheres em Las Piedras.
No filme de Clouzot, este elo mediativo-concreto – a situação de
dependência imperialista - aparece com vigor na construção da situação
existencial dos “anti-heróis” de Las Piedras, os proletários estrangeiros
contratados para transportar o carregamento de nitroglicerina. É curioso que o
filme “O Salário do Mêdo” é um filme histórico-mundial – ele contém falas nos
idiomas francês, espanhol e inglês. Naquele pequeno mundo de Las Pedras está
contido o imenso mundo do capitalismo mundial em sua fase imperialista.
O que se coloca, num primeiro plano, em “O Salário do Medo”, é a
condição de proletariedade que emerge da ordem capitalista dependente
constituída pelo imperialismo na Guatemala. Talvez nestas condições sócio-
históricas específicas da dependência imperialista no Terceiro Mundo, explicite-
se, em cores vivas, a condição de proletariedade com seus traços universais-
concretos. É o que nos interessa salientar.
Clouzot (e Arnoud) nos expõe com vigor traços humanos subsumidos à
ordem estranhada do capital nas franjas do capitalismo imperialista. Trata-se da
proletariedade neocolonial das Américas. É por isso que o filme remete, num
primeiro momento, em seus interstícios narrativos, à questão indígena. Os
aborígines estão presentes, embora quase ocultos. Mas são perceptíveis cenas de
indígenas miserabilizados pela nova ordem capitalista dependente. A presença
de indígenas nativos é marcante em algumas cenas de “O Salário do Medo”. A
S.O.C não apenas espoliou suas terras (a expropriação primordial que marca a
dita “acumulação primitiva”), mas explora sistematicamente a força de trabalho
dos indígenas.
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É claro que há resistências sociais em Las Piedras à exploração da força
de trabalho nativa pela grande empresa capitalista estrangeira. É importante
lembrar que o romance (e filme) “O Salario do Medo”, surge no contexto
histórico-mundial da emergência no mundo capitalista periférico, dos
movimentos nacionais de libertação nacional e lutas pela descolonização do dito
“Terceiro Mundo”. Com a explosão no campo 6 da empresa petrolífera, com 13
vítimas, há um clima de agitação popular na pequena localidade. O sindicato de
operários da S.O.C combate a superexploração do trabalho. Por isso a grande
empresa é obrigada a recorrer a força de trabalho precária, os “vagabundos”,
proletários desempregados estrangeiros, não-organizados em sindicato, para
executar a empreitada de risco. Diz um dos gerentes da S.O.C.: “...eles não têm
sindicato. Nem família. Se voarem pelos ares, ninguém virá. Eles aceitam
dinheiro, qualquer dinheiro. Mas é arriscado. Temos que atrai-lo com uma boa
oferta. Vamos pagar por isso.”
A explosão nos poços de petróleo no campo 6 da S.O.C, ocasionou a
morte de 13 trabalhadores nativos, todos de Las Piedras. O sindicato local,
liderado por uma mulher, faz uma manifestação na sede da empresa. É o
momento em que se explicita a revolta operária contra a superexploração do
trabalho conduzida pela S.O.C. O trágico acidente desvelou as condições de
periculosidade e risco de trabalho dos proletários da grande empresa
petrolífera. Diz ela: “Eles primeiro disseram que era para nos enriquecer. Não!
Para nos transformar em miseráveis. Para mandar nossos rapazes para a
morte”. Ora, as condições de miséria social em Las Piedras favorece a
manipulação capitalista. Prometem enriquecimento. Produz-se miseráveis – de
corpo e mente.
E a sindicalista prossegue dizendo: “E ontem a catástrofe aconteceu. Não
é justo ter que sofrermos. Estamos morrendo. Os gringos, estes não morrem.
Matam seus pais e irmãos. Dá-lhes dinheiro e pronto!”. Uma voz na multidão
concorda com a agitadora: “É verdade! Mataram meu irmão. E meu marido
também. Francisco perdeu a perna na máquina. Mas lhe pagaram. Ele recebeu
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quase nada.” No romance de Georges Arnaud, a idéia da máquina imperialista
que explora o trabalho vivo dos nativos, é deveras marcante. Diz-nos ele: “O
suor, por vezes, o sangue desses homens, são necessários para o bom
andamento da máquina. Toda a noite a sofrer calor e sono para esperar um novo
dia.”
Mas, além da proletariedade indígena, marcada pela pobreza e
indigência social, o filme remete também à questão do proletário imigrante – o
trabalhador desempregado “estrangeiro” explorado ou desocupado. É a
proletariedade estrangeira, onde o proletário imigrante vive não apenas a sina
da exploração ou deriva salarial, mas um sentimento de estranhamento
peculiar: o sentimento de desterro. São homens proletários com nostalgia de
sua terra natal; proletários desenraizados condenados à despossessão radical:
estão alienados não apenas dos meios de produção da sua vida social, mas das
condições orgânicas de sua identidade humano-pessoal (por exemplo, não têm
família). No filme “O Salário do Medo”, ocorre uma inversão curiosa: os
proletários “estrangeiros” explorados de Las Piedras são homens oriundos dos
paises capitalistas imperialistas.
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Ora, no cenário social degradado de Las Piedras, vive um contingente de
homens de vários países, homens perdidos, submersos em deriva existencial,
reclusos da socialidade mercantil. São proletários desterrados, cada um com sua
história de vida marcada pela busca do Eldorado. Talvez sejam proletários
aventureiros que migram para as fronteiras da civilização do capital. São
personas do fracasso e fugitivos do velho mundo destroçado pela Segunda
Guerra Mundial. São proletários ilustrados condenados à deriva existencial
distante de sua terra natal. O lugarejo de Las Piedras é que se fosse seu
presídio, onde a falta de dinheiro aparecem como suas grades. Por isso são “
sujeitos monetários sem dinheiro”, presos na “gaiola de ferro” da
desaquisitividade monetária. Na ordem das mercadorias, a falta de dinheiro –
ou renda – é estar condenado à plena desefetivação humano-genérica. Não se
tem acesso à satisfação das necessidades necessárias, muito menos à satisfação
dos carecimentos radicais. Tornam-se meras sombras de si mesmo. Os
proletários estrangeiros desempregados se distinguem dos supostos cidadãos do
país (os nativos indígenas), por não terem nenhum direito trabalhista. Mário,
Jo, Bimba e Luigi são os proletários estrangeiros que irão transportar a imensa
carga de explosivos. Eles serão personagens principais em O Salário do Mêdo.
O drama existencial do thriller de Clouzot não apenas quer expor o lado
oculto da civilização do capital, isto é, as mazelas sociais do Terceiro Mundo,
mas o inferno existencial de homens estranhados, verdadeiros easy riders do
Primeiro Mundo. Encontramos em Las Piedras, franceses, italianos e
holandeses perdidos na miséria degradante da pequena localidade
guatemalteca. Mais uma vez, apelamos para o romance de Arnaud que nos diz
sobre os estrangeiros em Las Piedras: “...corridos de todos os países vizinhos,
inibidos pelo seu passado, enterrados num buraco sórdido e pestilento, onde
lhes era impossível viver e que não podiam deixar senão para ir muito longe: o
México, o Chile.” E Arnaud prossegue, descrevendo o que Clouzot expôs em
imagens: “Dinheiro não havia. Pouco a pouco, a anemia perniciosa roia-os,
comia-lhes os glóbulos vermelhos; a desinteria, as tripas; as febres e a
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melancolia, com o seu cortejo de drogas e cópulas, roia-lhes o cérebro. Sem
trabalho, sem dinheiro, esperavam, procurando uma improvável porta de
saída. A escolha era para eles bem simples: partir ou rebentar. Não podiam
partir e recusavam-se terminantemente a rebentar.” (o grifo é nosso) E Arnaud
prossegue, descrevendo o drama existencial-limite de homens estranhados: “As
mãos crispadas, os dentes cerrados mediam com raiva o tamanho da ratoeira
der homens em que haviam caído: ‘Não se toma o avião sem dinheiro. Não há
dinheiro sem trabalho. Não há trabalho. Não se toma avião sem dinheiro...
Apenas um homem se agüenta de pé, esgotado, sem coragem nem sangue. Não
se assaltam os cofres de uma companhia americana, quando os guardam uma
patrulha de homens valentes, criados expressamente para serem capazes de
matar um homem com um soco...Não se parte sem dinheiro.” (o grifo é nosso)
Há um preconceito local contra os proletários “estrangeiros” miseráveis.
Não é um preconceito étnico, mas sim um preconceito econômico. Como os
proletários estrangeiros desempregados não têm capacidade aquisitiva, e
portanto, status e prestígio social; eles vivem à margem e são marginalizados da
vida local. Poucos têm acesso aos empregos escassos (só os eleitores têm acesso
aos empregos registrados em Las Piedras, o que demonstra que há uma relação
promiscua entre “mercado de trabalho” e “clientelismo política”). Num certo
momento, um dos estrangeiros proletários chegou a observar: “Nunca pensei
que imploraria por emprego”.
Paquito Hernandez, cidadão local, dono do bar “Corsário Negro”, onde se
aglomeram os proletários “estrangeiros” do filme, explicita em sua fala, a carga
de preconceito contra os proletários estrangeiros desempregados. Diz ele em
certo momento: “Vocês são preguiçosos”. Ou ainda: “Só servem para
vagabundear”. Em certos momentos, ao expulsa os estrangeiros desempregados
do bar, chega a ameaçar com a chamada da policia local: “Desapareçam ou
chamo a polícia”, ou ainda, “saia daqui, seu maldito!”; “você é um vagabundo”;
“a imigração vai verificar você”; e “onde está aquele preguiçoso?”. Enfim, as
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alcunhas de “bando de vagabundos” e “preguiçoso” explicitam a carga ideológica
contra os proletários marginalizados pela ordem social burguesa.
Ora, Paquito Hernandez é a representação do canalha colonizado,
comerciante nativo que venera os endinheirados, seja ele, cidadão local ou
estrangeiro. Por exemplo, ao chegar no bar “Corsário Negro”, de taxi, o ex-
mafioso M. (lê-se Mister) Jo, francês bem vestido, aparentemente endinheirado,
é bem-recepcionado por Hernandez (um dado curioso: o nome do taxi que
conduz M. Jo até o “Corsário Negro” denomina-se, por ironia, “Napoleon
Buenaventura”).
É Mário – interpretado por Yves Montand – que recepciona M. Jo e
apresenta para ele a realidade social de Las Piedras. Hernandez, dono do
Corsário Negro, os acusa de “bandos de vagabundos”. Mas, Mário contesta a
imputação de “vagabundos” a homens proletários que não têm sequer a
oportunidade de terem um emprego decente: ora, como são vagabundos, se não
nos oferecem sequer oportunidade de trabalho?. Diz Mário sobre Las Piedras e a
sina dos proletários estrangeiros desempregados: ““Não temos trabalho aqui. Só
uma coisa ou outra. Só o bastante para comer e beber.” M. Jo pergunta a seguir:
“Por que não vai embora?”. Mário responde: “Iria se pudesse. O problema é que
isto dá trabalho.” M.Jo assevera: “Algum trem?”. Mário: “Não”. M. Jo:
“Estradas?”. Mário: “Acabam na refinaria” (ora, a vida social da pequena
localidade de Las Piedras gira em torno da grande empresa petrolífera – todas
as estradas acabam sempre na refinaria de petróleo da S.O.C). E Mário observa:
“A passagem é cara. Caracas é perto. E depois é quente. Ir longe custa 300
dólares. Aqui não temos trabalho. Começaram aquele prédio há uns dois anos.
Mas desistiram. Tem sol.” E arremata: “Aqui é como uma prisão. Fácil de entrar.
Mas não de sair. Morre se entrar”.
Na verdade, o que se percebe é que a sina dos proletários desempregados
é serem prisioneiros de seu território precarizado. Como homens proletários
sem capacidade aquisitiva, têm “pés-de-chumbo”, sendo reclusos de um espaço-
tempo cativo do capital. Em “Salário do Medo”, os proletários desempregados,
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miseráveis à beira da fome, estão reclusos no espaço-tempo da proletariedade
extrema. São individualidade monetárias sem dinheiro, condenados à perpétua
deriva existencial (Bernardo, um dos proletários desempregados, possui o visto
para entrar nos Estados Unidos, mas não tem dinheiro para a passagem. Diz ele:
““Cem dólares salvariam minha vida”. Mais tarde, imerso na deriva pessoal, sem
saída, cometeria suicídio). Embora não tenham intenção de ficar, ficam por
mera inércia de sua existência alienada que os prende ao território estranhado.
Ao passar um enterro, Mário observa para M. Jo: “Aqui está a prova. Ele
não pôde agüentar Tudo por causa da febre. Não são só os mosquitos. São
aranhas, também. E tem os insetos. Você fica com manchas nos pulsos. Mas
tudo isso é nada. Há uma doença crônica A fome. É ela quem mata a maioria de
nós”.
Ao observar que os americanos têm cemitério próprio, Mário demonstra
que a desigualdade social imprime sua marca na organização da morte. Na
verdade, os americanos ligados a S.O.C têm seu próprio habitat urbano – casas,
uma cantina, cemitério - “Tudo pré-fabricado”, observa Mário. M. Jo, ex-
mafioso francês, surpreende-se com a presença de americanos em Las Piedras.
É nesse momento que Mário diz: “Onde tem petróleo, tem americanos.”
Como salientamos, “Salário do Mêdo” é um filme de territórios cativos,
com homens proletários condenados ao não-lugar do território estranhado.
Para eles, Las Piedras pode ser uma cidade ou um presidio. Mário, um dos
estrangeiros, guarda, como um souvenir saudoso, o bilhete do Metro de Paris,
que, um dia, o conduziu ao porto. “Meu último bilhete. Levou-me até o trem, ao
navio e aqui estou. E aqui estou. Este custava um franco. Agora custa mil
dólares para voltar. Os preços subiram”.
A condição de proletariedade extrema é marcada por espaços
desterritorializados e territorializações estranhadas. O metabolismo do capital
reordena espaço-tempos que delimitam trajetos sociais das individualidades de
classe. Os dramas pessoais de proletários desempregados, imersos em sua
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18
deriva pessoal, aproximam-se das narrativas de reclusos perpétuos (como no
filme “Pappilon”). É interessante que, no filme “Segunda-feira ao sol”, de
Fernando Leon de Aranoa (Espanha, 2000), operários metalúrgicos
desempregados, num momento de descontração, cantam num barzinho com
karaokê, a música “Volare” (voar). Eis o sonho das individualidades de classe
desefetivadas em sua capacidade humano-generica de deslocar-se no espaço-
tempo social.
Um dos personagens centrais do filme “Salário do Medo” - M. Jo,
(interpretado por Charles Vanel, prêmio de melhor ator no Festival de Cannes
em 1953), é um ex-gangster francês, velho amigo do americano O’Brien,
diretor-geral da SOC em Las Piedras. Talvez esteja fugindo da França (diz em
certo momento: “Tive que ir às pressas ao Aeroporto. Comprei um bilhete de 50
doláres”). M. Jo chega a Las Piedras no Aeroporto de San Miguel, obtendo visto
de turista.
É curioso a relação entre o francês M. Jo e o norte-americano O’Brien –
um representa a face decadente do velho colonialismo francês; e o outro, a face
emergente do novo imperialismo norte-americano.
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19
Enquanto o mafioso M. Jo se insere no sistema de dominação e poder do
capital, utilizando-se de meios escusos de coerção e violência, ao velho estilo
colonial, o gerente da S.O.C. O’Brien, empregado do alto escalão da grande
empresa moderna, adota sempre – com cuidado - procedimentos burocráticos
(O’Brien diz para M. Jo: “Não fique aborrecido comigo. Agora sou o chefão.
Somos amigos, mas na frente dos outros seja educado. Chame-me de ‘Senhor’.
Entendeu?”). Por exemplo, ao ser chantageado por M. Jo, que, visando
extorquir dinheiro do velho amigo, ameaça explodir as tubulações de gás da
S.O.C., O’Brien apenas alerta que os guardas de segurança da empresa estão
atentos e agem com crueldade. Ao reclamar a O’Brien por não ter conseguido a
vaga na empreitada de transportar a nitroglicerina com caminhões, o gerente da
S.O.C observa que ele – Jo - não tem mais idade para isso, mas caso alguém
desista, pode ocupar a vaga.
M. Jo, o velho gangster, explicita um sentimento de racismo de cariz
colonialista. Ele busca se distinguir dos demais proletários estrangeiros
desempregados – ele se impõe com seu terno branco e postura autoritária.
Embora esteja sob a mesma condição de proletariedade dos estrangeiros
desempregados, M. Jo – que se torna amigo de Mário – procura se impor sobre
os demais, nutrindo preconceitos contra a sina miserável de homens proletários
que estão na mesma condição que ele - “sujeitos monetários sem dinheiro”.
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
20
Por exemplo, ao ser abordado pelo jovem Bernardo, que lhe pede ajuda
em dinheiro para comprar passagem para os EUA, M. Jo assevera: “Suma
daqui! Você é uma peste”. A personalidade autoritária – como o fascista –
constrói seus preconceitos íntimos com a matéria-prima de seus medos
interiores. M. Jo repugna em Bernardo o que ele sabe que é, no seu próprio
íntimo: um homem proletário fracassado, sem capacidade aquisitiva, uma
“peste” no mundo social do capital.
Como velho colonialista, M. Jo cultiva também preconceitos contra os
proletários nativos pobres. Em seu íntimo, sente repugnância com a pobreza. É
marcante a cena de recepção que crianças miseráveis pedintes dão a M. Jo, logo
que ele chega a Las Piedras. É nesse momento que ele conhece Mário.
M. Jo observa, no bar “Corsário Negro”, com respeito aos pobres nativos:
“Multiplicam-se como coelhos”. M. Jo leva a supor que seja a idiossincrasia
reprodutiva que explicaria a condição de miséria dos nativos. Na verdade, o
velho mafioso decadente carrega em sua alma colonialista, o medo da multidão
de pobres miseráveis que rondam como um espectro a ordem burguesa. Em Las
Piedras, a presença dos excluídos é candente, ocupando o cotidiano dos
estrangeiros desempregados.
Aos poucos, compõe-se o perfil autocrático do velho gangster M. Jo, que
rejeita ouvir também as músicas nativas (observe-se, por exemplo, a cena em
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21
que M. Jo desliga o rádio do “Corsário Negro” que tocava uma rumba
guatemalteca). M. Jo possui também traços de misogenia, dizendo a Mário
(assediado por Linda, jovem empregada do Corsário Negro): “Mulheres são
perda de tempo” (é interessante que, logo a seguir, quase como um castigo, um
jeep da S.O.C, ao passar por uma poça d’água, espirra lama em M. Jo,
manchando seu distinto terno branco).
Num primeiro momento, M. Jo aparece como o ex-gangster autocrático,
que se impõe sobre o grupo local de proletários estrangeiros desempregados
com gestos de preconceito e protagonismo. No bar “Corsário Negro” – como
salientamos - impede a audição de músicas nativas e ameaça Luigi com arma de
fogo. Diz: “Ter arma de fogo não é o bastante. Tem que ter coragem” (Luigi
retruca: “Não sou assassino”). Ainda como homem de coragem, M. Jo – que irá
dividir com Mário, a direção do caminhão carregado de nitroglicerina – procura
incentivar o amigo, tirando-lhe o medo. Diz ele: “Não se preocupe. Estarei com
você”.
Como no velho estilo colonialista, M. Jo, ex-gangster francês, impõe-se
pela força das armas de fogo, coagindo adversários através do cultivo do medo
em sua forma concreta, o medo pessoal inscrito na pessoa do chefão. Ele é a
pura representação da velha ordem colonialista que, após a Segunda Guerra
Mundial, iria se decompor (a França em 1953 ainda possui colônias na
Indochina). Esta velha ordem colonialista iria dar lugar à nova ordem
imperialista – o imperialismo moderno – sob a égide dos Estados Unidos da
América. Na verdade, altera-se a forma de coação sistêmica da nova ordem do
capital que surge sob o imperialismo moderno.
Logo adiante, iremos verificar que o homem de coragem, que se impôs
sobre os companheiros de proletariedade no “Corsário Negro”, é um homem
dominado pelo medo – um tipo de medo o apavora: o medo difuso e abstrato,
medo tão impessoal quanto a natureza do mercado. Na verdade, a odisséia de
risco transtorna M. Jo, transformando-o num covarde. Mário irá exclamar: “Um
Al Capone de tipo acovardado”; e Luigi irá dizer, “Valentão de meia-tigela”.
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O transporte de nitroglicerina pelas precárias estradas do interior da
Guatemala inscreve no imaginário de M. Jo, um outro tipo de medo. Não é o
medo concreto que ele conhece, medo da imposição pessoal do chefe que se
utiliza da arma de fogo e coragem para coagir adversários. O medo que M. Jo irá
experimentar na empreitada de risco do carregamento de nitroglicerina é o
medo abstrato da pura extinção que pode chegar a qualquer momento, sem
deixar rastro; medo da morte insólita, sem face distinguível Este é o medo
abstrato que permeia o mundo social do imperialismo moderno e da sociedade
burguesa de riscos, onde o que se impõe como mecanismo coercitivo das
individualidades de classe é o mercado com sua lógica da contingencia, acaso e
risco. O velho M. Jo pertence a outra configuração sócio-metabólica do poder do
capital. Por isso ele estranha – e se transtorna – com as novas condições de
risco.
Ora, o escritor Georges Arnaud – e Henri-Georges Clouzot, no filme “O
Salário do Mêdo” - irá sugerir uma verdadeira fenomenologia do medo . É
interessante esta passagem do romance de Arnaud. Diz ele: “E que cor tem o
medo? Com certeza nem sempre é azul? Branco? Cinzento? Mesclado de rosa e
verde? O medo é um líquido incolor, inodoro e insípido.” E mais adiante irá
dizer: “O medo. O medo está presente, maciço e estúpido e não se esconde. Fogo
no rabo e não se pode correr.” E Arnaud prossegue dizendo: “A coragem está em
continuar, quando se começa a ter consciência. Aí está a diferença entre os dois
homens.” Arnaud faz referência a Mário e Jo. Desde que o caminhão de
explosivos sai de Las Piedras, Jo, o tipo chefão mafioso, entra num clima de
pavor e medo.
Ora, como salientamos acima, há medos e medos. Há medos concretos e
medos abstratos. Cada ordem social destila seu próprio medo. Há o medo antigo
e o medo moderno. Há o medo destilado pela ordem social do estranhamento e
o medo social destilado pela ordem social do fetichismo. O que Clouzot (e
Arnaud) nos sugere é que existem diferenças cruciais entre o medo de Jo e o
medo de Mário.
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23
A empreitada de risco no filme “O Salário do Medo” - dirigir caminhões
carregado com nitroglicerina em estradas esburacadas – destila no espírito
humano um tipo preciso de medo. É o que podemos considerar como sendo o
medo moderno, o medo que emerge com a nova ordem de mercado, esta
entidade abstrata, sem face distinguível mas que conduz irrmediavelmente –
como as estradas esburacadas no interior da Guatemala - o “destino” das
individualidades de classe.
Como nos disse Arnaud, nesse caso, “o medo é um líquido incolor,
inodoro e insípido.” Ou ainda: “O medo está presente, maciço e estúpido e não
se esconde. Fogo no rabo e não se pode correr.” É o medo que Mário conseguiu
enfrentar com coragem. O medo de Mário, nos disse o escritor francês em seu
romance, é “um medo em tudo nada racionado, um medo preciso que deixa ao
espírito todo o seu poder, toda a sua vivacidade para fugir às ratoeiras.” Mário –
ao contrário de Jo – conseguiu digerir a natureza do medo moderno, o que lhe
permitiu correr os riscos colocados pela nova empreitada.
Como salientamos acima, M. Jo é um homem do poder de outra
configuração sócio-metabólica do capital. Diante do medo moderno, ele se
acovarda. Não conseguiu ter coragem diante do adversário abstrato, a Morte
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24
sem face. O medo que Mário, Jo, Luigi e Bimba sentem é um mero liquido
incolor, inodoro e insipido. Na verdade, a iminência do risco oculta sua
abstração. Nesse caso, o medo é simplesmente um medo. Não apenas medo do
desconhecido estranhado, mas um desconhecido estranhado fetichizado,
intransparente – “presente, maciço e estúpido”.
M. Jo não possuía capacidade de resiliência – como diriam os ideólogos
da nova pedagogia do capital. Não conseguiu traduzir em atitudes pro-ativas os
desafios postos pela empreitada de risco. Diante do medo moderno, M. Jo
surtou e entrou em pânico. É “essa forma de pânico que nunca mais se esquece”,
como nos diz Arnaud em seu romance (o termo “resiliência”, utilizado hoje
pelos pedagogos do capital, surgiu na física e significa a capacidade humana de
superar tudo, tirando proveito dos sofrimentos, inerentes às dificuldades. Tem
sido trabalhado em todas as áreas como saúde, finanças, indústria, sociologia, e
psicologia).
Ao assumirem a empreitada de risco, Mario, Luigi e Bimba eram levados
pela expectativa do dinheiro. Ao procurar convencer M. Jo a luta contra sua
covardia, Mario exclamava: “Há dois mil dólares nos esperando”. E Jo
retrucava: “Eu preciso continuar vivo.” Era o pragmatismo de Mário – talvez um
dos elementos compositivos da sua resiliência, que não o deixava desistir. Ele
disse: “Agora é muito tarde para desistir. Quando tive medo você disse: Não se
preocupe, eu estou com você. Nós temos que continuar. Já foi loucura aceitar o
emprego. Foi você que me convenceu. Volte pra lá e me oriente”. Mas M. Jo era
incompetente para enfrentar a nova natureza do risco que apresentava a morte
como um ente abstrato, onipotente e onipresente – mas intransparente e oculto.
Mario revolta-se contra M. Jo: “Seu rato sujo e nojento. O chefão morrendo de
medo. Um Al Capone do tipo acovardado. Você e sua febre malária. Está morto
de medo. Você é um maricas.”
Por outro lado, a incompetência de M. Jo diante da empreitada de risco
possui um caráter pessoal vinculada a experiencias pretéritas. Há um lastro de
experiencias passadas que o impedem de ser resiliente. Enquanto capacidade
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humana, a resiliência é uma construção onto-genética das individualidades
pessoais. Exige-se uma determinada formação humana para efetiva-la. Por isso,
hoje, por exemplo, a necessidade das grandes empresas em reestruturarem os
coletivos de trabalho, extirpando gerações de operários e empregados que
guardam ainda, em si e para si, experiencias vividas e experiencias percebidas
inadequadas para as empreitadas de risco do novo (e flexível) mundo do
trabalho.
Disse Arnaud no romance: “Foi por ter experimentando esse medo, e
talvez só uma única vez, que o velho Jacques [Jo, no filme de Clouzot] se
transformou naquele frangalho desesperado.” No filme “O Salário do Medo”,
M. Jo e Mário travam um dialogo interessante. Diz Jo: “Se você soubesse o que
já passei...” E Mário observa: “Mas agora você só serve para atacar pelas costas.
Não gosta de correr riscos”. E Jo assevera: “Sei o que isto significa. Você se
arrisca imprudentemente. Você não tem imaginação. Vejo cada feixo e cada
buraco. Morri mil vezes desde ontem a noite. Vejo a explosão. E me vejo
partindo em pedaços. Eu tenho um cérebro na cabeça. “ E Mário faz gracejo: “Se
tivesse coragem também...” Jo conclui: “Vai acabar pendurado numa árvore.
Como as folhas mortas.”
Na verdade, a imaginação de Jô, sua prévia-ideação, lastreada em
experiencias pretéritas, diante da situação de risco extremo, destroça seu
espírito e o transtorna. Mario retruca outra vez: “Ele está com medo. Um
valentão de meia-tigela.”. Entretanto, o que Mario não sabe é que M. Jo
trabalhou numa salina, num campo de concentração nazista durante a II Guerra
Mundial. Naquela situação de risco concreto, onde a morte presente tinha uma
face distinguível, o medo assumia uma forma concreta (talvez Bimba
compreendesse o medo de Jô, pois também tivera a experiência do terror
nazista. Diz: “Se for comparar, isto aqui é uma piada.”) Por isso, M. Jo dissera
para Mário: “Se você soubesse o que já passei”. Portanto, as experiências
passadas tornaram M. Jo incompetente para a empreitada de risco.
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26
A percepção do risco é mesclado pelas lembranças do tempo passado e
pelas expectativas do tempo futuro. O medo que se origina de situações de risco
é um afeto intenso que paralisa o sujeito, expondo seus fantasmas íntimos. É o
que Clouzot sugere em “O Salário do Medo”. O medo de Jo é o medo do tempo
passado e das lembranças do terror, dos fantasmas íntimos e das incógnitas
existenciais. Ele tem em seu passado uma terrível experiência de presença
constante com a morte – uma morte estranhada, mas não uma morte
fetichizada, intransparente e opaca, como aquela que persegue as empreitadas
de risco da vida moderna neoliberal. O que significa que o medo que Jo sente é
de outra natureza, pois é impregnado de terror pretérito que o persegue no
inconsciente. Nesse trajeto do risco supremo de morte, Jô se desestrutura e
torna-se um covarde, um frangalho desesperado, como nos diz Arnaud.
Portanto, a natureza do medo que nasce de situações de risco é
determinada pelo corte geracional. O que implica dizer que M. Jo e Mario são
homens proletários que carregam, em si e para si, experiencias vividas e
experiencias percebidas diferenciadas. Mario e M. Jo pertencem a gerações
diferentes. Mário é mais novo que M. Jo. Antes do comboio partir, ele diz para
M. Jo: “Estou com medo. Tenho medo de não ser bom o suficiente.” O medo de
Mário é o medo egoísta, o medo do sujeito heróico, que está diante de sua
provação irremediável. Seu medo é não conseguir provar que não é bom o
suficiente. Enquanto o medo de M. Jo é o medo do tempo passado, o medo de
Mário é o medo do tempo futuro, das expectativas que alimenta a respeito de si.
É o medo que a juventude proletária cultiva hoje sob a nova precariedade
salarial.
Num certo momento, M. Jo observa: “Sabe para que você é pago, rapaz?
Para ter medo. É a sua parte da tarefa. Você dirige e eu me preocupo.” Ora, as
empreitadas de risco do novo (e precário) mundo do trabalho remuneram
operários e empregados para terem medo – mas exigem, ao mesmo tempo,
coragem e capacidade de resiliência para o enfrentamento dos riscos sistêmicos
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
27
Por outro lado, Luigi e Bimba não demonstram sentir medo. Mas eles o
sentem. É perceptível em suas expressões de pavor e terror. Mas eles a
dissimulam. Por exemplo, Bimba demonstra uma atitude de indiferença
cautelosa. A experiência de vida incrustou nele certa sabedoria do risco de
morte. Tal como M. Jo, Bimba estivera também em campo de concentração
nazista. Ele sabe o que é sentir o gosto da desefetivação humano-genérico plena.
Diz-nos: “É possível envelhecer em poucos meses. É só estar no lugar certo e na
hora exata.”
Na verdade, o tempo de vida do homem é marcado pela intensidade de
seus afetos íntimos – o medo é o mais intenso e desgastante. Ele corrói a alma.
Se Bimba adota uma atitude reflexiva, quase perene, como um condenado à
morte caminhando para o cadafalso, Luigi se expressa com gestos de ousadia
provocadora, como na cena do filme em que, pouco antes de chegarem ao
aterro, Luigi xinga uma placa de aviso com o símbolo da morte que indica zona
de perigo.
Ora, diante do risco e periculosidade extrema, cada individualidade
pessoal faz um acerto de contas íntimo com seus fantasmas interiores. As
situações de risco expõem cada um a respostas singulares. O risco explicita,
através das respostas ou atitudes pessoais diante da possibilidade de nos
tornarmos meramente o Nada, dimensões ocultas do nosso Ser, constituído por
experiencias vividas e experiencias percebidas.
Luigi, que sofre de doença pulmonar – possui cimento nos pulmões –
restando-lhe talvez poucos anos de vida, enfrenta a empreitada de risco com
ousadia singular. Na cena do filme em que eles explodem a pedra, Luigi corre,
tentando apagar o pavio da dinamite, demonstrando coragem singular (em
contraste com M. Jo que está paralisado pelo medo da morte. “Ele está
parecendo um cadáver ambulante”, diz Luigi).
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28
É irônico que, logo no começo do filme, Luigi e M. Jo tenham se
enfrentado no “Corsário Negro” e o velho gangster tenha dado à Luigi uma lição
de coragem. Naquele momento, M. Jo provoca Luigi, apontando-lhe uma arma,
e a seguir, dá-lhe a arma para que Luigi demonstre se tem coragem de atirar.
Diz Jo: “Ter arma não é o bastante. Tem que ser corajoso”. Luigi não consegue
puxar o gatilho. Diz Luigi: “Não sou assassino”. Ele não tem coragem de atirar
num homem. Entretanto, mais adiante, no decorrer da empreitada de risco,
Luigi demonstra coragem de enfrentar a Morte que o espreita a todo momento.
Ao contrário de M. Jo que cai paralisado de medo, Luigi demonstra que – nas
empreitadas de risco, onde a periculosidade é recorrente e o adversário que nos
desafia é tão abstrato, quanto onipresente, estar vivo não é o bastante. Tem que
ser corajoso.
A coragem é um valor crucial para a afirmação das individualidades
pessoais de classe nas condições do metabolismo social do risco. É o modo de
dar respostas efetivas à situações de negação de si, desfetichizando objetivações
estranhadas. O filme “Salário do Medo” expõe dimensões do medo e dimensões
da coragem. A coragem de M. Jo é a coragem de apontar uma arma e atirar. É a
coragem do assassino que se afirma negando o Outro. É a coragem como vicio e
afeto espúrio. A coragem que afirma um poder estranhado.
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Por outro lado, a coragem de Luigi é a coragem de enfrentar o risco que
se coloca nas empreitadas da vida. É a coragem como virtude, que visa superar
obstáculos, como a pedra no meio do caminho do “comboio da morte”. É a
coragem da “negação da negação” – mesmo que no plano pessoal de afirmação
heróica da individualidade de si e para si.
Na verdade, a coragem é condição de qualquer virtude, pois é ela que
subsidia – na prática - a alma humana com forças para a negação da negação.
Implica decisão e não apenas raciocínio A coragem afirma a singularidade
pessoal – toda coragem é pessoal (o que explica porque na ordem do capital –
que é a ordem da despersonalização – corrói-se a formação de homens com
coragem no sentido de virtú, isto é, a qualidade do homem que o capacita a
realizar grandes obras e feitos, o pré-requisito da liderança.
Na ordem estranhada do capital, amesquinha-se a coragem reduzida a
dimensões particularistas do ser. Ela perde o sentido de virtú, que diz respeito a
lideranças coletivas capaz de realizar utopias humano-comunitárias. A liderança
que os manuais de administração de empresas salientam é a liderança (e a
coragem) amesquinhada ao particularismo das prerrogativas egoístas da
acumulação privada do capital. Perde-se a dimensão de enfrentamento coletivo-
histórico (ou mesmo individual-singular) do desconhecido estranhadoe
fetichizado.
A ordem do capital é a ordem da mediocridade pessoal que instiga a mera
conformação às reiterações sistêmicas. É claro que a coragem pode servir para
tudo – para o bem ou para o mal. Mas a discussão da coragem que
apresentamos possui um sentido histórico-concreto: a coragem é qualidade
pessoal imprescindível para a “negação da negação”, isto é, para a ação coletiva
(e pessoal) capaz de desfetichizar o mundo estranhado do capital.
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
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Na odisséia do medo, há momentos de concorrência entre os parceiros
do risco extremo e também há parceria e cooperação entre eles. Por exemplo,
logo no começo da viagem dos dois caminhões carregados de nitroglicerina, as
“equipes de trabalho” concorrem uma com a outra. Apesar do risco extremo,
uma equipe pressiona a outra para prosseguir adiante.
O trajeto do pavor oculta vários obstáculos que as equipes têm que
superar – a região dos corais, onde a pista não está boa e exige-se certa
velocidade para evitar que o caminhão trepide muito e a nitroglicerina exploda:
“A 40 milhas por hora você vai voar sobre a areia. Mas você precisa ganhar
velocidade. Abaixo de 30 vai vibrar e caba tudo”.
Outro obstáculo é o velho aterro, onde os caminhões têm que manobrar
para pegar o retorno para a estrada. A imensa pedra caída no meio da estrada é
outro obstáculo às equipes de trabalho.
Finalmente, a equipe de trabalho que resta – Mário e Jo (Luigi e Bima
foram pelos ares – literalmente) tem que enfrentar o obstáculo final: atravessar
a poça de óleo aberta pela explosão do outro caminhão carregado de
nitroglicerina. Enfim, a narrativa do filme “O Salário do Mêdo” demonstra que a
empreitada de risco é constituída de vários desafios prementes às equipes de
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trabalho que buscam cumprir sua Meta: a entrega dos 200 galões de
nitroglicerina no campo 6 da S.O.C.
Ao atravessarem o coral, as equipes de trabalho agem por conta própria,
concorrendo entre si. Ao enfrentarem o aterro, cada equipe prova sua
habilidade em manobrar o caminhão e envolver o parceiro da equipe da
superação do obstáculo (Mário enfrenta a covardia apavorada de M. Jo). Mas é
a situação de transpor a pedra no meio da estrada que vai exigir cooperação e
parceria. Na verdade, a imensa pedra aproximou novamente Mário e Luigi. Eis
o paradoxo: os parceiros do risco extremo cooperam para conseguirem cumprir
seu trabalho estranhado. Após explodirem a pedra que obstaculizava o
caminho, temos no filme o único momento de alegria e companheirismo entre
Mário, Luigi e Bimba (M. Jo paralisado pelo mêdo, mantém-se à margem da
confraternização ocorrida entre eles).
Apesar das situações de risco extremo e da morte sempre à espreita, os
proletários do risco sonham e imaginam não apenas a morte, mas a realização
de seus desejos pessoais. Aliás, a coragem e a negociação íntima que a
impulsiona como afeto necessário para superar os obstáculos que se encontram
no caminho do comboio da morte, é permeada de utopias pessoais, sendo
alimentada – caso a Meta seja cumprida – pelos US$ 2.000 de salário pela
empreitada de risco.
É a utopia da plena aquisitividade capitalista que fascina os sujeitos
monetários sem dinheiro. É com as gratificações e bônus de produtividade que
as empresas alimentam as utopias pessoais que tecem os consentimentos
espúrios da nova precariedade salarial (É Mário que exclama para Jo: “Há
2.000 dólares nos esperando”. Logo antes de irem pelos ares - literalmente –
Luigi e Bimba têm um dialogo de sonho e esperança. Luigi pergunta a Bimba:
“Quer dar uma fumada?”. E retruca: “Bimba, por que está assim tão triste? Não
vai mais misturar cimento. Seremos ricos...isso se não morrermos. Se
morrermos acaba tudo. Mas se vivermos, será muito bom ir embora. “ Bimba,
mais pessimista observa: “Ir para onde? Para ver outros mosquitos? Há o
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32
suficiente neste lugar. Os de casa não são melhores”. E Luigi, sonhador, diz:
“Com esse dinheiro voltarei para a bela Itália. Vou comprar uma cantina e me
casar com uma linda garota.”). Entretanto, os sonhos e utopias pessoais de
proletários do risco extremo são tão precários quanto suas condições trabalho.
O caminhão de Luigi e Bimba explode ao ter solavanco na estrada.
Em dois momentos do filme, Henri-Georges Clouzot, num toque
existencialista, expõe a atitude de homens proletários diante da morte. Por
exemplo: antes dos caminhões partirem para sua empreitada do medo, Mário
aparece para tomar seu posto de motorista bem vestido. Ele nos diz: “Até
quando te mandam para a guilhotina, tem que se vestir bem.” Mais tarde,
Bimba, antes de ir pelos ares, junto com Luigi, devido a explosão do caminhão,
se barbeia. É quase um pressentimento do destino trágico. Luigi pergunta: “Por
que se barbeia?”. Bimba relata uma história familiar: “Antes de ser enforcado,
meu pai me pediu para tomar um banho. Isto é uma tradição na família. Gosto
de limpeza. Ao ser um cadáver, eu quero estar apresentável.” Segundos depois
do diálogo entre Bimba e Luigi, ocorre a explosão da carga de nitroglicerina, que
não deixaria nenhum rastro deles. Não haveria cadáveres apresentáveis.
A cena da explosão no filme “O Salário do Medo” é deveras sugestiva. O
caminhão de Mário e M. Jo estão logo atrás – mas distantes – do caminhão de
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Luigi e Bimba. Enquanto Mário dirige, Jo manipula tabaco. A câmera se fixa nos
dedos de Jo manipulando o tabaco. De repente, uma corrente de ar espalha o
tabaco - o ar deslocado pela explosão do caminhão de Luigi e Bimba. Foi o
tabaco ao vento que nos avisou que Bimba e Luigi não existem mais (é só depois
que vemos, ao longe, um cogumelo de fumaça da explosão do caminhão). Os
proletários do risco tornaram-se pó levado pelo vento.
Estupefato, M. Jo observa, de imediato: “Luigi não existe mais”. Ele está
apavorado. Vislumbra a morte diante de si. Logoa diante, ao observar o estrago
da explosão do caminhão de Luigi e Bimba na vegetação. Mário diz: “Parece
marca de avião que levantou vôo”. Jo assevera: “Foi o que aconteceu.
Levantaram vôo”. Nada restou do caminhão de Luigi e Bimba. M. Jo encontra a
piteira de Bimba (“Foi o que sobrou deles”, observou ele).
O filme “Salário do Mêdo” contém candentes sugestões existencialistas. É
importante salientar que a França de 1953 estava imersa no clima existencialista
do pós-guerra, com Jean-Paul Sartre e Marcel Camus. O romance homônimo de
Georges Arnoud continha tal espírito existencialista, expressando o mote
clássico do existencialismo ateu sobre a condição humana: o homem é um ser
jogado no mundo e destinados à morte.
O problema do existencialismo é considerar um traço ontológico o que é
uma derivação histórico-concreta. A alienação não é uma condição humana, no
sentido metafisico, mas a condição de uma forma histórica de homem: o homem
proletário. Na verdade, a precariedade salarial no filme “O Salário do medo” é a
precariedade do trabalho estranhado capitalista em sua dimensão extrema. A
empreitada de risco – ou a odisséia do medo – teve uma origem histórico-
concreta: foi convocada por uma corporação capitalista do petróleo, com
homens proletários desempregados e desterritorializados num país miserável da
América Central sob o signo do imperialismo moderno.
No local da explosão do caminhão de Luigi e Bimba, abriu-se uma cratera
de óleo bruto, que escorre da tubulação que estava ao largo da estrada. É na
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poça de óleo que o caminhão de Mario e M. Jo se atola. Ao colaborar com Mário
– que dirige o caminhão – para tentar retirá-lo do atolamento na poça de óleo,
M. Jo tem sua perna esmagada pelo caminhão. Apesar do trágico acidente,
Mário consegue desatolar o caminhão, conduzindo-o para a estrada. Nas cenas
finais, na boleia do caminhão, Mário dirige, tendo ao seu lado, quase ao seu
colo, agonizante, M. Jo. (é mais uma cena sugestiva do filme “O Salário do
Mêdo”: homens sujos enegrecidos pelo óleo bruto tentando ir adiante e chegar a
seu destino).
Enquanto dirige o caminhão, Mario ouve a agonia do velho M. Jo que diz:
“Não sou perigoso. Não sou mais. Sentiu o cheiro, É minha perna. Sou eu
mesmo. Cheiro a cadáver. Posso sentir que estou apodrecendo. Olhe as minhas
unhas. Estão roxas. Está chegando o fim.” Nesse momento, M. Jo é a
personificação da angústia existencialista. Está condenado ã morte. Cai a noite.
Eles estão próximos do campo 6 da S.O.C. onde está o poço de petróleo em
chamas.
O último diálogo entre Mário e M. Jo contém elementos da metafisica
existencialista. Para tentar reanimar Jo, Mário tenta busca divagar sobre o
passado e lembranças de sua terra distante. O passado reminiscente é visado
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para levantar o ânimo do homem que agoniza. Mário pergunta ao amigo
agonizante: “Onde morava em Paris?”. Jo diz: “Eu morava na Rua Galande”.
“Lembra da tabacaria que ficava na esquina?”, retruca Mario. “É claro. Ao lado
da loja de ferragens.”, observa Jo. E diz ainda: “No meu tempo havia uma
cerca”. Mário confirma: “Está certo. Primeiro havia uma cerca.” De repente,
emerge o mistério nas reminiscências de Jo. Confessa que nunca soube o que
havia lá atrás daquela cerca.
Na verdade, a cerca que habita o tempo passado de Jo é a prefiguração da
sua incógnita existencial. Possui um denso significado existencial. É a
objetivação imaginária do mistério que marca as lembranças do tempo perdido
irrecuperado. É traço de experiência vivida singular e experiencia percebida
como representação onírica. Para Jo, a cerca era mais que uma cerca. Era o
síntese concreta do Mistério que nos faz viver, apesar da ordem social de rsico
extremo. O velho gangster era um homem de imaginação. Ora, Mário não sabe
nada disto. Para ele, aquele cerca, era apenas uma mera cerca que havia na Rua
Galande. Ele responde para Jo que não havia nada atrás daquela cerca: “Nada.
Apenas um terreno vazio.”
Mário desencantara, para o amigo que agoniza, o mistério da vida.
“Apenas um terreno vazio” – eis o cosmo desencantado da vida burguesa. Após
ouvir a resposta de Mário, Jo parece agonizar. O desencantamento do mundo
reminiscente o abalara com certeza. “Está bem?”, pergunta Mario preocupado.
”Estou bem”, diz Jo submerso no passado distante. Vislumbra em seu delírio a
Rua Galande: “É uma rua comprida”. E diz: “Estou sem ar”. Mario tenta
incentivá-lo: “Agüente! Estamos quase chegando!”. Mas Jo agoniza:“Estou
tentando lembrar-me. Aquela cerca...o que poderia haver por trás dela.” Mário
reitera: “Não havia nada. Realmente nada”. As últimas palavras do homem
moribundo são: “Não há nada!”.
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Ora, o que a cerca da Rua Galande poderia significar para M. Jo?
Estamos no universo das experiencias singulares que marcam a vida pessoal. M.
Jo era um homem burguês decadente, espécime do mundo desencantado do
poder do capital – um mundo social sem mistérios, manipulado pela força das
armas. Mas, em seu íntimo, alimentava um mistério quase delirante que – no
seu inconsciente – dava um sentido à vida prosaica: o que havia por trás da
cerca da Rua Galande.
Conduzindo o caminhão carregado de nitrogliceribna, Mario é o único
que consegue chegar vivo ao objetivo. No seu colo, jaz o velho amigo M. Jo,
morto. Mário cumpriu com sucesso, a Meta. Desfalece de cansaço e acorda no
dia seguinte, disposto a retornar para Las Piedras com US$ 4.000 no bolso
(recebe também, em cheque, a parte de M. Jo). Diz ele: “Quero chegar antes que
o banco feche”.
No dia seguinte, Mário se apressa para chegar a Las Piedras. Diz ele:
“Quero chegar antes que o banco feche”. O gerente do campo 6 da S.O.C. oferece
a Mário um motorista para leva-lo a Las Piedras: “Está cansado. Tem um chofer.
Ele vai dirigindo.” Entretanto, Mário dispensa o serviço. Diz ele: “Obrigado.
Tenho medo quando alguém dirige.”
Ao saber que Mário sobrevivera à odisséia do risco extremo, Linda se
alegra e dança “Danúbio Azul”, a valsa vienense de Johann Strauss II com
clientes do “Corsário Negro”. De certo modo, a valsa de Strauss celebra a vitória
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do homem burguês diante das adversidades do mundo natural. É uma ode à
belle époque do progresso da civilização burguesa na virada do século XIX para
o século XX. Ao som de Strauss, Mário "dança" com o volante do caminhão na
íngreme estrada, livre da carga de nitroglicerina, desprezando os riscos
contingentes. Entretanto, de repente, numa curva da estrada, ele perde o
controle da máquina e o caminhão cai no despenhadeiro abaixo. Mário morre
sem conseguir descontar o cheque de US$ 4.000.
A tomada derradeira do filme são as mãos de Mário, morto, segurando o
pequeno ícone de seus sonhos: o bilhete do Metro (Georges Arnoud conclui seu
romance dizendo: “ Vítima do próprio entusiasmo, do seu entusiasmo de viver,
Sturmer [ou Mario, no filme] ficou agarrado ao volante.”).
É interessante um paralelo com o filme "2001 – Uma Odisséia no
Espaço". No filme clássico de Stanley Kubrick, a valsa “Danubio Azul”, de Johan
Strauss glorifica o Homem que conseguiu ir além do espaço-tempo por meio dos
avanços da tecnologia espacial. A valsa dos artefatos espaciais é uma cena
clássica do filme "2001 – Uma Odisséia no Espaço". Em Clouzot, a valsa de
Strauss acompanha, como fundo musical, a dança do caminhão, máquina
suprema conduzida pelo “sujeito burguês” heróico (Mario), em seu caminho de
volta a Las Piedras (portanto, na cena final de “O Salário do Mêdo”, de 1953,
Clouzot nos dá uma sugestão magistral: a morte do sujeito heróico burguês
através do descontrole da máquina).
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Ao cumprir a Meta, Mário, seguro de si, imaginava estar livre das
contingências do risco. Ora, a sociedade do capital é a sociedade do risco que
perpassa não apenas a produção de mercadorias ou o processo de trabalho
propriamente dito, mas a totalidade social. O risco nos espreita em cada
momento da vida cotidiana. Ele está no trabalho e cotidiano que nos estressa;
na alimentação que nos contamina, no complexo urbano dominado pelos
automóveis que nos avassala, na degradação ambiental que desequilibra o
ecossistema; nas relações humanas fetichizadas...Enfim, como diz o poeta: “São
demais os perigos desta vida”.
Mário é vítima não apenas da imprudência, mas da contingencia das
coisas do mundo social do capital. A máquina – o caminhão - não responde aos
seus comandos numa curva. O que Clozout sugere é que o homem burguês,
seguro de si, perdeu o controle da máquina. A máquina voltou-se contra ele. O
caminhão aparece, neste momento, como a máquina-fetiche, coisa que possui
vida própria.
Talvez, Mário seja a personificação do sujeito humano, o Prometeu
existencialista, ou o homem proletário iludido pelo cumprimento da Meta (ou
pela posse da capacidade aquisitiva), que, após conseguir realizar seus intentos
heróicos – conduzir a carga de explosivos por um trajeto difícil – retorna cheio
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de si para o lar, acreditando que conseguiu livrar-se das misérias do mundo
social estranhado. É a máquina descontrolada que irá lembrar-lhe da sua sina
trágica – diriam os existencialistas, ou então, da sua condição de precariedade
humano-social.
Um detalhe: existe uma questão de gênero no filme “O Salário do Mêdo”.
Por um lado, temos a submissão de Linda a Mário (ela é empregada de
“Corsário Negro”, mulher branca, interpretada por Vera Clouzot, mulher
brasileira do diretor francês). Linda é a namorada apaixonada que corteja
constantemente Mario. Existe uma relação de carinho, aversão e manipulação
entre os dois. Na verdade, a única paixão de Mário é partir de Las Piedras e
voltar para Paris.
Entretanto, em “O Salário do Medo”, a mulher não aparece apenas como
sexo submisso e instrumentalizado pelos homens. Embora ela não se insurja
contra a opressão do macho, ela dirige a insubmissão contra a exploração de
classe. É importante destacar a presença de uma mulher como líder sindical. Ela
aparece protestando contra as mortes de nativos na explosão do poço de
petróleo da S.O.C. Entretanto, a mulher sindicalista é um personagem
secundário e totalmente periférico na narrativa de Clouzot.
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Além da misoginia de M. Jo e do machismo de Mario, é importante
destacar a presença homossexual de Bimba, um holandês declaradamente
homossexual (interpretado por Peter Van Eyck). De certo modo, os pequenos
detalhes inscritos sobre gênero e sexualidade no filme “O Salário do Mêdo”, com
seus desvios estranhados – da misoginia ao machismo – e afirmação de novas
identidades sexuais (a homossexualidade), sugerem a precarização da
identidade masculina no mundo do capital, com homens proletários
estranhados de si, em todos os sentidos, homens em processo de desefetivação
que só confiam (e têm prazer) na força e rudeza da vontade de si, traços de auto-
afirmação precária da identidade do macho.
Giovanni Alves
(2009)
Questionamentos
1. Identifique no filme elementos visuais (e narrativos) que demonstram
a presença do imperialismo moderno no thriller “O Salário do Medo”.
2. Faça um mapeamento dos riscos presentes na sociedade burguesa do
capitalismo global.
3. Quais os elementos compositivos da condição de proletariedade que
estão presentes no filme “O Salário do Medo”?