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Ela estreitou os olhos, respirou bem devagar. Por trás do vento uivante e do barulho
da chuva, ela pede ouvir algo. Vozes. Movimentos. O cavar de uma pá no solo. Risos
baixos.
Uma luz explodiu diretamente sobre elas, deixando tudo branco. Numa fração de
segundo antes de o trovão chacoalhar a terra, Cassie viu o que acontecia: viu as pessoas e
o que elas estavam fazendo, congeladas na luz como um quadro.
O raio foi seguido de imediato por um segundo flash. Cassie estava ciente da enorme
criatura, cruel e distorcida, que se erguia diante dela. Recuando instintivamente,
tropeçou para trás.
Então, estava bem diante dela um rosto horrendo, gritando bem na cara dela, com os
olhos vermelhos de ódio e força.
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O ESPÍRITO ESTÁ
ACORDADO E FAMINTO
Neste semestre, a misteriosa Academia Darke se mudou para
Nova York, e Cassie Bell não é mais a aluna nova e inocente. Agora
ela é forte, determinada e esconde seus próprios segredos.
Cassie foi apresentada ao mundo dos Escolhidos e, com seus
poderes surpreendentes, ela está lutando para se ajustar a um
romance perigoso e a um espírito malevolente, que exige ser
alimentado.
Quando um antigo inimigo retorna com sede de vingança,
Cassie é testada ao máximo. Será que ela conseguirá impedir que
seus amigos tenham um terrível destino? Ou acabará destruindo-os
para salvar a si própria?
Onde quer que a Academia Darke vá, a morte nunca está muito
distante...
3
Prólogo
— E aí, garota. Firme e forte?
A voz parecia familiar, apesar de um pouco abafada e distante, como se
estivesse vindo do fundo de um poço. Com dificuldade, Cassie Bell forçou os
olhos para que estes abrissem e piscou embriagada para a visão diante dela. A
mesa estava posta para treze lugares. No centro, estava um peru gorduroso —
que obviamente serviria apenas oito pessoas —, biscoitos baratos de marca
própria de supermercado e — em uma toalha de mesa de papel — linguiças
gorduchas e couve-de-bruxelas esturricada.
Natal ao estilo Cranlake Crescent. Será mesmo que há apenas três semanas
ela se deliciava com a requintada culinária francesa — em fina louça e copos de
cristais — na elegante sala de jantar da Academia Darke? Parecia ter passado
uma vida.
— Qual é o problema?
Cassie focou novamente a pessoa de cabelos claros do outro lado da mesa.
Ah, sim, Patrick, seu conselheiro. A única razão suportável da volta ao seu
antigo abrigo. Ela conseguiu sorrir.
— Não está com fome, Cassie? — disparou Jilly Beaton gentilmente da
cabeceira da mesa. — Nem parece você. Tem comido tudo o que há na casa nos
últimos quinze dias.
4
Cassie fincou as unhas nas palmas de suas mãos. Os comentários imbecis
de Jilly tinham se acentuado desde que ela retornara de Paris. Normalmente,
Cassie não entraria na dela, mas seu pavio parecia estar ficando cada dia mais
curto.
— Bem, acabei de perder meu apetite — ela retrucou, afastando sua cadeira
e se levantando. — Com licença.
— Cassie Bell, você não tem licença — começou Jilly, mas Cassie já estava
fora da sala. Patrick a alcançou na beira da escada com o rosto cheio de
preocupação.
— Cassie, o que está acontecendo? — ele perguntou. — Você tem agido de
modo estranho desde que voltou de Paris.
Cassie parou por um momento. Por onde começar? Contando a verdade
sobre a Academia? Sobre o misterioso grupo de alunos denominados Os
Escolhidos e seu segredo sombrio? Sobre os espíritos anciãos que
compartilhavam seus corpos, dando-lhes força e beleza gradativamente, mas
exigindo que eles sugassem força vital dos seus colegas de quarto? Poderia
contar a ele o que aconteceu naquele lugar escuro em baixo do Arco do Triunfo
— o ritual interrompido que tinha deixado parte do espírito que havia vivido
no corpo de Estelle Azzedine alojado em sua mente? Poderia contar sobre a
estranha e propulsora fome que vinha crescendo dentro dela desde então e,
como sabia que o peru e as linguiças não seriam suficientes para saciá-la?
Impossível.
— É que estou com saudade dos meus amigos — ela resmungou. — Sabe?
Uma expressão de alívio cobriu o rosto de Patrick.
— Claro que está. Falou com algum deles hoje?
— Li um e-mail de Isabella ontem à noite. E um de, hum... Ranjit.
— Quem é Ranjit?
— Apenas um... Um garoto que faz algumas matérias comigo — respondeu
Cassie, envergonhada. — Por quê?
O sorriso de Patrick ficou mais largo e seus olhos azuis cintilaram.
— Porque você ficou vermelha quando disse o nome dele.
5
— Ah, para com isso! — Cassie o empurrou de brincadeira.
— Ele não é seu namorado, então.
— Não, não é — ela respondeu apressadamente.
— Hum, hum.
— Não é mesmo — Cassie enrolou os dedos no suéter de cashmere que
Isabella tinha enviado como presente de Natal. — É complicado.
Ah! Isso era o mínimo que se poderia dizer. Os breves momentos
apreensivos que ela teve com Ranjit no fim do semestre não tinham sido
suficientes para que eles definissem a relação. Tudo o que ela sabia era que seu
estômago se contorcia de ansiedade toda vez que pensava nele e, que ele tinha
voltado para a Índia, a de quilômetros de distância. Ela teria que suportar a
saudade que sentia dele — saudade que parecia poder matá-la.
Absorta em suas lembranças, ela pulou quando seu celular tocou. Puxando
o aparelho do bolso da calça jeans, Cassie quase o deixou cair quando viu o
nome no display. Ela sentiu o sangue subir pelo seu rosto outra vez.
— Falando do diabo... — Patrick deu risadinhas enquanto voltava para a
sala de jantar.
Cassie ficou introspectiva devido à escolha das palavras de Patrick. Ela
ainda não entendia o que Os Escolhidos eram de fato. Deuses e monstros, Ranjit
tinha brincado cruelmente uma vez. E, qual das duas coisas ele era? Cassie não
sabia. Ela não estava certa de que ele mesmo soubesse. Afastando suas
preocupações, ela pressionou o celular em seu ouvido como se isso fosse salvar
sua vida.
— Ranjit!
Acho que ele conseguia distinguir o sorrisinho idiota no rosto dela mesmo a
meio mundo de distância.
— Cassandra — a suavidade aconchegante da voz dele fez com que ela se
esquecesse da neve congelante e da fome extrema. — Feliz Natal.
— Para você também.
Sem respirar, ela se sentou nos degraus. Era quase um crime o modo como
ela sentia falta dele. Criminoso e absurdamente inconveniente.
6
— Oh, que bom te ouvir.
— Você está bem? — ele pareceu preocupado.
— Estou bem. Bem, apenas um pouco...
— A fome está aumentando, não é?
Cassie ficou quieta por um instante. Era um alívio falar com alguém que
sabia pelo que ela estava passando. Ranjit já tinha passado por isso.
— Sim — ela disse por fim e riu vacilante. — Acertou!
— Não falta muito, Cassandra. Uma semana e meia. Você ficará bem?
— Estou bem. Sério! É que... — ela hesitou, então pensou: tome coragem,
garota. — Sinto saudades. Muitas.
— Nossa, eu também.
A veemência na voz dele foi chocante, vindo de alguém normalmente
pacato e reservado como Ranjit Singh. Ele quase parecia aliviado.
— Estou com saudades e estou preocupado com você. Ouviu Estelle outra
vez?
Cassie engoliu seco. Ranjit era o único que sabia que o espírito ancião
conversava às vezes com Cassie dentro da cabeça dela — algo inédito entre Os
Escolhidos.
— Uma ou duas vezes. Mas a bruxa velha tem estado quieta ultimamente.
Espero que ela tenha morrido de fome.
— Isso não vai rolar, Cassie.
— É, eu sei.
— Se cuida. Promete?
Ela sorriu, não pôde evitar.
— Claro que sim. E te vejo logo.
— Quanto antes melhor — ele riu baixinho. — Ouça, tenho que ir. Ligo de
novo quando puder.
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Lágrimas vieram aos olhos dela e seu estômago revirou outra vez.
— Tchau, Ranjit. Feliz Natal.
— Para você também. De novo.
Cassie fechou o celular antes que caísse em prantos. Ela cobriu o rosto com
as mãos. Oh, isso era ridículo. Ela devia ser durona. Ela suportaria isso. Fome de
comida, fome de Ranjit... Pare. Pare.
O problema era que estava faminta. Dominada por uma fome
desesperadora e intangível por muito mais do que mera comida. Mas não havia
nada que ela pudesse fazer além de esperar que o novo semestre começasse.
Então, ela talvez conseguisse algumas respostas. E, talvez, a espera ajudasse.
Afinal, quando se fica muito tempo sem comer chocolate, você para de sentir
vontade. Se aguenta ficar sem cigarros por algumas semanas, não volta a fumar.
Sim e se você parar de respirar um pouco, vai perder a necessidade de oxigênio.
Cassie ficou imóvel.
Ora ora, minha querida. Você me diverte!
Ignore-a, Cassie disse a si mesma. Ignore-a. Mas... Fácil falar. O simples som
da voz de Estelle em sua cabeça era suficiente para espalhar a fome dentro dela
com mais força ainda, fazendo com que ela quase perdesse o equilíbrio,
tropeçando para frente. Ela ouviu a porta abrir e fechar. Passos. Uma voz...
— Cassie? Você está bem? — Patrick soou preocupado.
Ela se levantou num pulo, com os punhos cerrados. Bem? Por que ele ficava
perguntando isso? Claro que ela estava bem! O modo como ele sempre a cercava
estava começando a irritar. Ele devia ficar fora disso, sabia o que era melhor
para ele. Não! O que a fez pensar isso? Patrick só estava tentando ser atencioso;
ele tinha feito tanto por ela.
O sussurro de Estelle era como o carinho de uma serpente.
E ele poderia fazer muito mais, minha querida.
Patrick parecia nervoso por causa do olhar fixo e frenético dela. Sim. Estelle
estava certa. Um bom amigo como Patrick estaria sempre à disposição. Podia
contar com ele. Ele era forte, jovem, seguro. Cheio de vida. Perfeito.
— Cassie?
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Ela estava com muita fome. Esticou os lábios em um sorriso.
— Estou bem.
Não fale. Deixe que ele se aproxime. Posso sentir o cheiro dele...
Patrick deu um passo para trás e ela pensou poder vê-lo tremendo.
— Pare de enrolar, Cassie. Seu jantar esta ficando frio.
Você parece quente o bastante para mim.
— Ok, sinto muito. Vou deixá-la em paz — ele estava dando meia-volta. —
Venha quando estiver pronta.
— PARE!
Ela se lançou da escada, quase voou para alcançá-lo. Agarrando-o pelo
colarinho, ela o puxou de volta, girando-o. Os dedos dela encontraram o
maxilar dele, segurando-o e girando-o. Ele tentou se soltar, mas não tinha
chance. Nenhuma chance. Desde o ritual, ela estava mais forte do que nunca.
Muito mais forte do que o necessário para dominar esse... Mortal. Cassie riu
bem alto.
Os olhos dele estavam tomados pelo terror e ela sentia seu hálito de pânico.
Ela podia sentir o cheiro dele novamente: oh, da vida dele! Os lábios dela
retrocederam quando viu uma silhueta atrás do painel de vidro da porta da
frente. Por um instante, seu coração pareceu parar — ficou imóvel e rosnou. Um
rosto rosnou de volta para ela, feroz e alucinado como um animal raivoso. E
então, sentindo náusea, ela sabia. Não era um monstro tentando invadir a casa.
Era seu próprio reflexo.
— Oh, meu Deus! — ela soltou Patrick tão rápido que ele caiu no chão.
Andou para trás e para longe dele. Os olhos aterrorizados dele estavam presos
nela, tão dilatados que de azuis estavam quase totalmente pretos. Ela esperava
por isso. Mas não esperava pelas palavras que sairiam da boca dele.
— Por Deus, Cassie. Você não. Você não!
O quê?
Por uma fração de segundo ela se levantou, cobrindo a boca com a mão,
encarando Patrick. Então deu meia-volta e saiu correndo. Ela não diminuiu o
ritmo enquanto subia os degraus de dois em dois, entrou bruscamente em seu
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quarto, pegou uma cadeira furiosamente e a prendeu debaixo da maçaneta.
Pronto. Isso era o mais seguro possível. Seguro para ele.
Cassie se jogou no chão, exausta. Poderia ter sido pior, ela disse a si mesma,
enquanto suas batidas cardíacas voltavam ao normal. Muito pior. Quem ela
estava tentando enganar? Havia perdido o controle. Ela podia ter machucado
Patrick. Talvez até o matado. Pressionando os punhos contra sua boca, Cassie
os mordeu até arrancar sangue. Só uns dias a mais, era tudo. Mais alguns dias e
estaria de volta à Academia. De volta ao seu misterioso diretor Sir Alric Darke.
Ele deve poder ajudá-la a lutar contra isso. Ela não veria ninguém até lá.
Mas Cassandra, querida, eu preciso ME ALIMENTAR!
A voz queixosa e zangada ecoava e quicava em todo seu crânio, que parecia
muito leve e vazio. Estava tonta de fome, mas iria controlá-la. Eram apenas
alguns dias. Apenas uma questão de tempo...
Isso mesmo! Dentro da cabeça dela — no aposento do eco — Estelle parecia
vingativa e voraz, mas triunfante. Ah sim, Cassandra, minha adorada menina!
Apenas uma questão de tempo...
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Capitulo 1
A esteira tomou vida enquanto bagagens eram jogadas sobre ela. Cassie
estava parada — espremida na multidão, confusa com o barulho pungente e
com o tumulto do JFK1 — desesperada para avistar sua mala esfarrapada para
que pudesse se mandar dali. Um homem de negócios alto e todo suado de um
lado, uma senhora que não fechava a matraca do outro, ambos empurrando e se
contorcendo, como abutres sobrevoando a esteira de malas. Nenhum deles
parecia um bom candidato para que ela pudesse se alimentar, mas nem sempre
se pode escolher...
Ah, não. Para com isso! Cassie queria chorar, mas não tinha energia para
fazê-lo. Enfiada em seu assento perto da janela — evitando olhar para o
passageiro ao seu lado — tinha visto o amanhecer atrás da Estátua da
Liberdade quando o avião fez a volta, mas ela nem ligou. Nem tinha ligado
para o simbolismo por trás disso — o amanhecer de um Novo Mundo para ela.
Não tinha se importado com a linda simetria e silhueta da cidade.
1 JFK é a abreviação de John F. Kennedy, nome de um dos aeroportos internacionais de Nova York (N.T.).
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Havia apenas desejado que o avião pousasse para que pudesse respirar um
pouco de ar puro — ar que não tivesse passado pelo pulmão de todas aquelas
pessoas e que, portanto, tinha o gosto delas. Ela apenas queria sair daquele
aglomerado de humanidade comprimido naquela aeronave como um
desorganizado bufê de força vital. Bem, pelo menos tinha conseguido controlar
seu apetite. Sete horas. Era algo para se orgulhar, não? Era uma conquista.
Claro que sim, querida! E, você estava muito certa. Estou feliz que tenhamos nos
reprimido. Comida de avião. Tão seca e sem sabor.
Cassie deixou escapar uma gargalhada contra sua vontade.
— Ei, mocinha, quer me dar licença? — o homem de negócios a empurrou
para alcançar sua mala.
Se ela não tivesse esbarrado na senhora resmungona ao lado teria caído.
Agora ela se sentia tonta, sua reserva de energia esgotada. O cheiro forte de
suor do homem era extasiante. O cheiro salgado e azedo fez suas narinas
dilatarem. Era apenas suor, mas estava infundido com a vitalidade dele. Ele era
quente e seu coração sobrecarregado batia com força: ela podia ouvi-lo, senti-lo.
O cheiro que esvaía pelos poros dele se prendia as narinas dela como... Um
prato de batatas fritas. Sim, tão bom quanto. Cassie lambeu os lábios, mirando
os lábios dele, assistindo a respiração dele entrar e sair...
Xingando, ele a empurrou para passar — batendo a mala na canela dela —
e foi embora. Ela perdeu a chance. Lágrimas escorreram de seus olhos e Cassie
não sabia se eram lágrimas de alívio ou fúria.
Perdemos! Não! Nós o perdemos! Estelle soou um pouco histérica. Encontre
alguém. Encontre alguém AGORA!
Vagamente, Cassie se deu conta de que sua própria mala tinha acabado de
passar, presa a um reconhecível elástico velho de Patrick, mas ela nem prestou
atenção. Estava faminta agora, analisando a multidão e, não se preocupava com
nada mais. Nada exceto...
Aquela! Aquela, rápido!
Atordoada, deu meia-volta e olhou fixamente para a figura que Estelle tinha
mencionado. Era jovem, forte, uma mulher. Magra, torneada e chamava atenção
pelo jeito misterioso e mediterrâneo. A figura segurava uma criança, mas a
criança foi passada para os braços do pai com um beijo, uma palavra e um
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sorriso e, agora, a figura jovem e forte ia em direção ao toalete, fazendo clack-
clack-clack com o saltinho dos sapatos.
Figura, não, pessoa! — gritou Cassie em pensamento. Pessoa! Ela é um ser
humano...
Sim, sim. Que seja. Ela! Rápido! VAMOS PERDÊ-LA!
Afastando-se rapidamente, com a fome pungente misturando-se a excitação
da caçada que pulsava em suas veias, Cassie se atirou no meio da multidão e
seguiu o clack-clack-clack.
Engraçado que ela conseguisse ouvi-los tão bem no meio do barulho, da
multidão e dos infinitos e distorcidos anúncios públicos. Era como se todo seu
ser estivesse focado no som daqueles saltos, cada nervo do seu corpo tinha
grudado naquela mulher. Um pouco a frente, a figura — pessoa — abriu a porta
do toalete. Clack-clack-clack. Cassie apressou os passos, silenciosos por estar
usando um tênis surrado. Quase lá. Quase lá!
RÁPIDO!
Sim, Estelle, nós vamos nos alimentar. Vamos nos ALIMENTAR.
— Cassie!
O cumprimento agudo perfurou sua concentração. Assim. Seus passos
decididos vacilaram.
— Cassie Bell! Queriiiida!
Um mosquito. Zumbindo, perturbando. Ela queria espantá-lo, matá-lo.
Deixe-me em paz, ela queria gritar. Eu preciso... Algo se moveu rápido em sua
direção, tirando seu equilíbrio e envolvendo-a em um aconchegante abraço que
cheirava a perfume caro.
— CASSIEEEE!
Por uma fração de segundo, Cassie lutou contra o abraço, lançando um
olhar faminto para a porta do banheiro que fechava suavemente atrás da
mulher e sua força vital. Foi então que ela caiu em si com um sobressalto quase
doloroso. O que ela havia feito? O que ela quase havia feito!
— Isabella? — quase chorando, Cassie devolveu o abraço apertado,
apoiando-se em sua melhor amiga como se ela fosse tudo o que a mantinha sã.
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Sim, essa daí, então! Essa serve! Essa serve, estou te dizendo!
NÃO! Seu rosnado interior estava feroz o bastante para calar a boca de
Estelle. Por enquanto.
— Ah, Isabella. Estou feliz em vê-la.
— E eu a você! Você saiu do voo de Londres? Ele aterrissou cinco minutos
antes do que o de Buenos Aires! Sinal de boa sorte! Maravilhoso!
A garota ainda estava falando em constantes exclamações, pensou Cassie com
carinho enquanto Isabella jogava seu longo e brilhante cabelo castanho.
— E Jake está esperando por nós! Eu mandei uma mensagem de texto para
ele. Ele esta lá fora, no terminal.
— E você parou para me dar um oi? — Cassie ergueu as sobrancelhas sem
muita força. — Estou lisonjeada que não tenha me atropelado para chegar até
ele.
Isabella tinha se apaixonado pelo belo nova-iorquino desde que ele entrou
para a Academia. Depois de finalmente terem ficado juntos no fim do semestre
passado, o casal mal tinha tido uma semana juntos antes que Isabella voltasse
para sua casa na Argentina (de primeira classe, claro). Que ela estivesse
impaciente para pôr as mãos em Jake não era nada surpreendente.
— Oh, Cassie! — Isabella sorriu, mas seus olhos escureceram um pouco
quando ela segurou os ombros de Cassie e examinou seu rosto. — Você está tão
bonita. Magra demais, né? Mas muito, muito bonita.
— Nossa, obrigada. Não vai ganhar nada com tantos elogios — ela deu um
sorrisinho fraco. A cabeça dela estava realmente inundada agora. Era o
entusiasmo, ela disse a si mesma. E o fuso horário. Que seja. Ela só precisava se
acalmar por um instante. Mas Isabella estava sorrindo novamente, ainda
borbulhando de entusiasmo.
— Mal posso esperar para estarmos todos juntos de novo! Você, eu e Jake!
Não é? Vamos, venha! — ela soltou Cassie bruscamente.
— Claro. Va... Mos...
No entanto, era mais fácil falar do que fazer — sem Isabella segurando em
seu braço. Cambaleando, Cassie sentiu seus joelhos tremerem. Ela teria caído se
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Isabella não tivesse segurado o cotovelo dela com seu braço forte de jogadora
de pólo.
— Cassie. Cassie?
Cassie franziu a testa. A voz de Isabella parecia ter ficado muito engraçada
depois do Natal. Estranha. Distante. Cada vez mais fraca. Ou talvez fosse ela
mesma. No escuro agora. Em um frio e escuro vazio. E desaparecendo...
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Capitulo 2 — Cassandra? Cassandra!
Outra voz familiar. Ela não conseguia identificá-la, mas era forte,
reconfortante. Estaria bem agora, sabia disso. Talvez porque estivesse morta.
Devia estar morta mesmo, porque o rebuliço do aeroporto tinha desaparecido e
ela estava flutuando em uma serena bolha de tranquilidade.
— Cassandra! — o tom sério era mais insistente agora. A mão deu uma
tapinha em sua bochecha e depois outro. — Cassandra, volte.
Contra sua própria vontade, ela fez força para abrir as pálpebras, gemendo.
O rosto embaçado era tão familiar quanto a voz. Ascético, impetuosamente
lindo e com a testa franzida de preocupação.
— Sir Alric...
— Isso mesmo. Acorde.
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Piscando rápido por causa da luz brilhante, Cassie fez bastante força para se
levantar, apoiando-se em almofadas. Um sofá. Um sofá de couro enorme. Por
um instante, ela pensou que realmente estivesse morta e, em uma vida pós-
morte bem agradável — porque ela não conseguia ver nada além de um infinito
céu azul. Então ela notou as paredes de vidro que a cercavam, arranha-céus
refletindo o sol da manhã e as invernosas copas de árvores do... Central Park!
Sobre as árvores, o céu era azul como um diamante, listrado pela fumaça
branca do rastro dos aviões. Ela piscou embriagada pelo que via de Nova York
com seus próprios olhos. Mais precisamente com os olhos de Sir Alric Darke.
Ela recobrou os sentidos com um pequeno sobressalto. Tentou se levantar,
mas caiu. Escutou um pequeno “ufa” de alívio e Isabella estava novamente ao
seu lado, jogando-se no sofá e abraçando-a. Cassie contemplou sem expressão o
escritório felpudo e elegante.
— Que susto você me deu! Ah, Cassie!
Pelo menos ela estava conseguindo focar melhor seus companheiros.
Isabella, obviamente — e Jake, em pé logo ao lado, parecia bem aliviado e um
pouco cauteloso com o que estava a sua volta. Quando o olhar dela cruzou com
seus carinhosos olhos castanhos, ele sorriu singelamente para ela.
— Ei, Cassie. Que bom te ver.
— Jake. Que bom te ver também.
Isso não era bem verdade. Cassie estava mais do que meramente feliz em
vê-lo — ela estava absolutamente aliviada. Semestre passado, Jake tinha
descoberto mais segredos dos Escolhidos do que era seguro alguém de fora do
grupo saber. Cassie não tinha certeza se algum dia ele voltaria para a Academia
— depois de descobrir que sua colega de classe e, antiga paixão, Katerina
Svensson, tinha assassinado sua irmã, Jéssica. A tentação de desmascarar a
instituição — que havia acobertado o crime e deixado a garota Escolhida escapar
com uma mera expulsão — deve ter sido angustiante. Ainda assim, ali estava
ele, em pé na sala do diretor.
O que o teria trazido de volta? Estar gostando de Isabella? Uma estranha
sensação de ter transferido sua lealdade fraternal para Cassie, a garota que
todos diziam parecer com sua falecida irmã? Ou ele tinha voltado para resolver
os “assuntos pendentes” que havia mencionado no fim do semestre passado?
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O sorriso debilitado que dava para Jake desapareceu quando ela se voltou
— um pouco relutante — para Sir Alric. Ele não tinha mudado — suas lindas
feições eram impressionantes como sempre. Havia uma tensão em seus olhos
acinzentados e ele não sorria, tampouco parecia zangado.
— Espera aí, como eu...? — Cassie esfregou a testa com força.
A última coisa de que se lembrava era o cheiro de suor humano, a multidão
e o calor. E de precisar tanto de algo que havia abandonado...
— Minha mala! Esqueci minha mala. Eu não...
— Está tudo bem — Isabella fez sinal com a mão. — Eu peguei para você.
— Mas como você...
— Peguei a mala certa, não se preocupe — Isabella deu uma risadinha. —
Eu reconheceria aquela coisa velha e estropiada em qualquer lugar.
Cassie sacudiu a cabeça, perplexa apenas por um instante.
— Detonada, Isabella. Minha mala velha e detonada. Mas e a segurança?
Imigração? Como você...
— Quando você desmaiou, Isabella me ligou imediatamente — explicou Sir
Alric. — Eu tenho conhecidos no Departamento de Segurança Nacional que
resolveram a questão — ele olhou cuidadosamente para Jake, como se estivesse
com medo de falar demais. — Agora, tenho certeza de que gostaria de ficar com
seus amigos, mas primeiro temos assuntos a resolver, você e eu. Isabella e Jake,
por favor. Preciso conversar com Cassandra. Em particular.
Isabella e Jake olharam incrédulos um para o outro. Cassie tentou chamar a
atenção deles com o olhar e fazer um “sim” com a cabeça, mas a simples visão
de seus amigos era suficiente para trazer de novo a fome que a perfurava como
uma lança — tirando seu fôlego pela ferocidade. Cambaleando, ela andou com
dificuldade em direção à Sir Alric. Ele pôs a mão sobre o ombro dela — no que
parecia ser um gesto carinhoso de apoio; exceto pelo fato de que os dedos dele
estavam apertando-a tão forte que a machucavam. No entanto, Cassie mal
sentia a dor — ela podia sentir a tensão de seus próprios músculos, contorcidos
por seu desespero para se alimentar e, ela sabia que Sir Alric estava, na
verdade, impedindo-a.
— Agora, Isabella, Jake. Por favor, deixem-nos a sós.
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Jake estranhou o tom grave da voz do diretor.
— Não tenho certeza... — ele começou.
— Está tudo certo, gente — Cassie esticou o braço e pegou a mão de
Isabella, apertando-a um pouco forte demais. — Ficarei bem. Vejo vocês daqui a
pouco. Prometo.
— De certeza? — perguntou Jake, encarando Sir Alric com declarada
hostilidade.
— Claro.
Na verdade, ela queria desesperadamente que eles saíssem. Ela não tinha
certeza de quanto mais tempo aguentaria sem saltar sobre um deles.
— Serio, Jake. Por favor, saia. Está tudo bem.
Respirando fundo, o jovem americano pegou a mão de Isabella.
— Estaremos do lado de fora. Até mais, Cassie.
— Tá — ela disse baixinho, apertando os dentes para forçar um sorriso. —
Oh, por favor, por favor, VÁ!
Ela olhou pela última vez as feições preocupadas de Isabella quando a porta
se fechou atrás deles e, então, fechou os olhos, tonta de fome. Cassie sentiu a
mão de Sir Alric deitando-a no sofá e ela conseguiu abrir os olhos com força a
tempo de ver Marat — o porteiro feio e sinistro — vindo em sua direção com
uma pequena maleta de couro na mão. De onde ele tinha saído tão
sorrateiramente? Ainda tonta, ela tentava se apoiar para frente.
— Você precisa se alimentar, Cassandra.
A voz de Sir Alric parecia ecoar pela sala, enquanto Marat dispunha a
maleta cuidadosamente sobre a mesinha do café feita de mogno, ao lado dela.
— Não posso.
— Você passou muitas semanas sem alimento. Está morrendo. Eu jamais
deveria ter permitido que saísse no fim do semestre, mas não esperava por isso.
Eu não entendo porque a fome cresceu tão rapidamente em você, mas cresceu.
E você deve satisfazê-la.
Sem forças para chorar, gemendo, ela colocou as mãos sobre o rosto.
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— Não posso.
— Você deve — respondeu Sir Alric veementemente. — Você acha que está
sendo altruísta, mas na verdade, está sendo autoindulgente. Sinto muito pelo
que aconteceu a você, Cassandra. Sinto muito que tenha sido trapaceada. Mas
eu tenho uma responsabilidade sobre o espírito dos Escolhidos e sobre você —
ele fez sinal com a cabeça para Marat, que passou discretamente uma chave
prata pela frente da maleta.
Sentindo-se instável, Cassie acompanhou os movimentos do porteiro. O
fecho da maleta levava um símbolo que ela reconheceu imediatamente: um
padrão de linhas entrelaçadas de pouco mais de cinco centímetros de diâmetro,
que ela já havia visto antes, marcado na pele de uns seletos alunos da Academia
Darke — além disso, estava borrado e interrompido em sua própria escápula.
Ela não sabia o que isso significava, mas sabia o que indicava. Era o símbolo dos
Escolhidos.
Marat abriu o fecho e Sir Alric se aproximou da maleta, admirando
respeitosamente os frascos de cristais dentro dela. Cada um deles estava
marcado com o símbolo dos Escolhidos e tinha sua beleza particular — mas os
conteúdos translúcidos dos frascos brilhavam como pérola líquida, refletindo
feixes de luz pelo cristal delicado. Por um instante, Cassie ficou tão fascinada
que quase esqueceu a fome voraz.
Sir Alric fez, novamente, sinal com a cabeça para o porteiro. O pequeno
frasco que Marat retirou do bolso não poderia ser mais diferente daqueles da
maleta: uma caixa branca de plástico com tampa hermética. Depois de colocar
uma luva de látex, ele abriu a tampa sem cerimônia e retirou um pacote de
plástico selado. Rasgou o pacote, retirando uma seringa descartável.
Cassie arregalou os olhos.
— O que é isso?
Sir Alric também estava vestindo luvas e, ele parecia frio e pragmático.
— Chame isso de uma medida provisória, Cassandra.
Com delicadeza, Sir Alric inseriu a seringa em um dos frascos e retirou uma
pequena quantidade do líquido perolado.
— Você deve aprender a se alimentar. Mas isso — ele disse levantando a
seringa — vai nos dar alguns dias de trégua.
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— O que é isso? — ela espiava a seringa com terror. — O que é isso? Não
vou deixar você colocar isso em mim!
Quando tentou se esquivar, Cassie sentiu mãos poderosas segurarem seus
ombros, pressionando-a contra o sofá e prendendo-a em seu lugar. Marat. Ele
tinha se posicionado por trás dela e ela não conseguia escapar. Deus, ele era
forte! Ele a segurava forte demais para escapar, mas ela ainda lutava
violentamente enquanto Sir Alric se aproximava. Por um momento, Cassie viu
remorso e compaixão no rosto dele, depois ele ficou sério.
— Fique parada. Este é o único jeito. É para seu próprio bem, Cassandra.
A voz de Sir Alric era totalmente fria enquanto ele se inclinava sobre ela,
que o chutava e se contorcia.
— E para o bem dos outros, também.
Ela sentiu o dedão dele esfregar um ponto em seu braço e, em seguida, a
picada quente da agulha.
Cassie chegou a temer que fosse ser eletrocutada. Deve ser assim que se
sente, não é? Uma corrente selvagem correndo por dentro dela, trazendo-a tão
intensamente a vida que não conseguia pensar com clareza. O frio corria em
suas veias, seguido rapidamente pelo calor — e força. Escapando das mãos de
Marat, ela se levantou com o corpo rígido, os punhos cerrados. A fome terrível
e dilacerante tinha desaparecido, como se ela tivesse sido libertada da mordida
feroz de um animal, mas sua visão estava totalmente embaçada — pontos
dançavam em frente a seus olhos quando ela perdeu o equilíbrio e, mais uma
vez, caiu sobre o estofamento de couro, apertando os olhos para tentar limpar a
visão. Quando ela tornou a abrir os olhos, Sir Alric se sentou em uma poltrona,
de frente para ela, com os cotovelos apoiados e as mãos juntas sob o queixo.
Marat e a maleta haviam desaparecido.
— E então, Cassandra. Como se sente?
A lembrança explodiu em sua cabeça. Ela se sentou, irritada.
— O que era aquela coisa? Diga-me o que era!
Ele não reagiu à fúria da menina.
— É uma solução destilada. Feita com lágrimas dos Escolhidos, há mais de
mil anos. Você acha que a ofereço a todos? Considere-se sortuda. É
extremamente poderosa.
21
Cassie respirou um pouco, absorvendo as novidades. Não eram drogas,
então. Nem veneno. Talvez algo que a ajudasse...
— Então essa é uma alternativa? Injetar essa coisa o suficiente ao invés de
me alimentar de outras pessoas? — os olhos dela se acenderam enquanto o
alívio percorria seu corpo.
— Não — Sir Alric respondeu abruptamente. — Isso foi uma exceção. O
que viu na maleta é tudo o que existe. Não há meios de ter tudo. Você vai
aprender a se alimentar. Como o resto de nós — o desespero voltou em dobro,
sua breve esperança desmoronou. Tirando vantagem do silêncio devido ao
choque, Sir Alric se levantou. — Não pode matar de fome o espírito que está
dentro de você, Cassandra. Sem as Lágrimas, teria atingido um estado crítico
em breve. Quando o desejo de se alimentar ficasse forte demais, você perderia o
controle e atacaria alguém. Essa pessoa poderia se machucar, ou até morrer. E
poderia ser qualquer um — ele parou para fazer suspense. — Inclusive Isabella
e Jake.
— Eu não sabia — ela disse com dificuldade. — Não tinha me dado conta.
— Claro que não — respondeu Sir Alric, com a voz um pouco mais branda.
— É para isso que a Academia existe, Cassandra. É meu dever ensinar novos
membros dos Escolhidos a se alimentarem de forma segura, de modo que não
haja perigo para eles ou para os que estão ao seu redor. Quando chegar a hora,
farei o mesmo com você. Mas, por enquanto, a injeção te deu um pouco de
tempo. Acho que você precisava disso. Então vou perguntar novamente: como
se sente?
— Melhor — Cassie admitiu. — Muito melhor. Posso ir agora?
— Claro. Seus amigos devem estar preocupados com você.
— Eles estão bem ali fora. Disseram que iam esperar.
Sir Alric sorriu ironicamente.
— Receio que tenha dormido a maior parte da manhã, Cassandra. Seus
amigos saíram há mais de duas horas. Eu expliquei a eles que você precisava
descansar, embora tenha precisado ser bem persuasivo com o Sr. Johnson.
Suponho que estejam em seus quartos agora. Você tem muito a discutir com
eles, especialmente com a Srta. Caruso.
— O que quer dizer? — disse Cassie, com a voz embargada.
22
— Cassandra, sua energia me impressiona. Você lutou contra a fome por
muito mais tempo do que eu esperava. Mas agora acabou o luxo de escolher.
Exceto, talvez, por um aspecto.
— Hã? — Cassie ergueu a cabeça.
— Para aprender a se alimentar da forma correta, você precisará de um
parceiro — uma fonte de vida, como preferir. É por isso que alunos comuns são
designados a ser colegas de quarto dos Escolhidos. Então, tem uma decisão a
fazer, Cassandra. Você pode mudar de quarto e ter uma nova colega, alguém
com quem tenha menos... Vínculo emocional — Sir Alric ergueu os ombros
delicadamente e fez sinal com a mão —, Ou...
— Não diga isso — ela disse sem pensar.
— Eu tenho que dizer, Cassandra, sinto muito. Você deve aprender a se
alimentar de Isabella.
23
Capitulo 3 O saguão era espetacular. Não podia ser mais diferente da Academia em
Paris, mas esse edifício de tirar o fôlego no Upper East Side2 tinha seu próprio
encanto arquitetônico — todo elegante em vidro e mármore. O prédio era de
uma altura vertiginosa, parecia até balançar enquanto Cassie admirava o teto de
vidro bem lá no alto. O céu ainda era de um azul tão reluzente que a fez sentir-
se ligeiramente tonta. O estilo clean e moderno das paredes eram apenas
suavizados pela fonte e pela folhagem no centro do saguão.
Cassie suspirou, parando para molhar seus dedos na água gelada e
contemplar a figura no centro da fonte.
— Olá, amiga — ela suspirou para a escultura de bronze. — Ainda não nos
livramos desse maldito cisne, não é?
2 O Upper East Side é um bairro do condado de Manhattan, em Nova York, entre o Central Park e o Rio
East. Ficou conhecido nos últimos anos por ser uma das áreas mais ricas de Nova York, tendo hoje um dos mais altos custos habitacionais dos Estados Unidos (N.T.).
24
Leda — como era de se esperar — não respondeu, ainda tentando
languidamente alcançar o cisne-deus sobre ela. Sob os pés de bronze da estátua,
água escorria da pedra. Plantas cresciam com rapidez, entrelaçando-se com as
pedras e transbordando sobre o lustroso mármore. E, no meio delas, claro,
estavam as orquídeas. Cassie tocou uma das pétalas pretas com a ponta de um
dedo. Os bichinhos de estimação de Sir Alric — como dizia Ranjit. Era apropriado.
Sir Alric gosta do que é bonito, raro e sombrio...
Cassie ficou surpresa ao perceber que estava contente em ver todas as
outras estátuas familiares. Sob a luz do inverno que inundava a Quinta
Avenida, as estátuas brilhavam em branco pálido de onde estavam, ao redor do
vasto saguão central: Aquiles e Heitor; Narciso; Diana e Acteão. E, aquela que
sempre lhe deu arrepio na espinha: Cassandra e Clitemnestra. Cassandra, a
garota em quem ninguém acreditava. Cassandra, que entrou em uma casa que
cheirava a sangue...
Cassie se arrepiou ao lembrar-se de quando se escondeu sob a estátua,
esperando para sentir a pontada do punhal de Keiko. Ainda assim, ali estava
ela agora: de muitas formas, parecida com a garota homicida que tinha ajudado
Katerina a assassinar a irmã de Jake. Agora ela também era uma aberração —
talvez, até mesmo um monstro como Keiko. Ela não era mais a frágil Cassandra,
a vítima indefesa. Ela estava mais próxima da sanguinária Clitemnestra.
Membro dos Escolhidos.
E, o que isso significava, ser membro dos Escolhidos? Cassie olhava para seu
reflexo na água. Lá no aeroporto, Isabella sugeriu que ela tinha ficado mais
bonita. Cassie não tinha notado nenhuma mudança, mas agora que estava
olhando mais atentamente, talvez o contorno de seu rosto estivesse mais
definido, seus olhos verde-amarelados mais brilhantes.
Mas ela sabia que tinha muito mais por trás dos Escolhidos do que rostinhos
bonitos. Ela tinha presenciado sua força super-humana e habilidades com lutas
em primeira mão. E, agora que o constante ímpeto de se alimentar não estava se
sobrepondo a todas as outras sensações, ela podia sentir um pouco dessa força
em seus próprios músculos, fazendo com que ficasse relaxada e confiante como
nunca. Beleza, força e confiança — uma combinação extasiante. Mas tudo
dependia de se alimentar. De sugar a força vital de outra pessoa inocente.
Esturricada... Era o que Isabella tinha dito quanto contou a Cassie sobre a
morte de Jéssica. O corpo dela estava danificado. Havia alguma chance de Cassie
fazer isso com Isabella sucessivamente? Não. Ela não faria — não poderia
permitir que isso acontecesse. Mas Sir Alric tinha deixado claro que Cassie tinha
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de aprender a se alimentar. Então, ela não poderia continuar a ser colega de
quarto de Isabella.
Mas ela não conseguia suportar isso. Isabella era sua melhor amiga. Sendo
assim, ela teria que aprender a se alimentar de Isabella com segurança. Mas e se
algo desse errado... Era impossível: a mente de Cassie ficava girando sem
chegar a lugar algum. Em volta dela, outros alunos estavam apressados para
começar o novo semestre — fofocando, falando mal dos outros, rindo, deixando
rastros com seus chauffeurs3 e bagagens caras. Será que ela conseguiria dividir o
quarto com uma dessas riquinhas mimadas? Não — era inimaginável e, sem
duvida, elas diriam o mesmo. Frustrada, Cassie se virou para andar. Colidiu
com um corpo receptivo que a segurou e a deteve.
— Ai, me desculpe.
— Não se desculpe.
A voz era amorosa, familiar, alegre e disparou seu coração.
— Ranjit!
Antes que qualquer outra palavra pudesse sair de seus lábios, Cassie
percebeu que eles estavam extremamente grudados aos do lindo rapaz. De
olhos fechados, ela podia sentir as mãos de Ranjit pressionarem sua cintura, a
boca dele se movimentando junto à dela. Ela sentiu-se flutuando ao ficar nas
pontas dos pés, com os dedos entrelaçados nos cabelos pretos e lustrosos dele
— puxando-o em direção a ela, pôde ouvir a respiração forte que saía das
narinas dele enquanto ele a beijava mais e mais intensamente, envolvendo-a em
seus braços com força.
Apenas quando perderam o equilíbrio e tropeçaram em um aluno do
primeiro ano atrapalhado, Cassie sentiu os braços de Ranjit se soltarem um
pouco. Muito envergonhada, Cassie se soltou e se afastou do abraço. Por um
momento ela nem conseguia falar, imagine encarar Ranjit — embora pudesse
sentir os olhares incrédulos dos outros alunos ao redor deles. E, ela com certeza
podia ouvir os comentários pouco reprimidos que explodiram pelo saguão.
— Não acredito no que estou vendo...
— Nossa. Meu Deus.
— Ele? Ele e ela?
3 Chauffeur significa “motorista” em francês (N. T.).
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— Ranjit Singh? Eu sabia que ele tinha uma queda por bolsistas, mas isso...
Ranjit limpou a garganta e Cassie finalmente olhou para o rosto dele, que
estava com um sorriso envergonhado.
— Acho que agora todo mundo ficou sabendo — ele deu uma risadinha.
Hesitando um pouco, ele esticou uma das mãos no ombro de Cassie,
levando-a para um canto longe dos olhares coletivos. Cassie não tinha pensado
que seu coração pudesse bater mais rápido do que já batia, mas seu coração
pulou novamente quando ele a tocou com delicadeza.
— É, parece que sim — ela respondeu. — Foi mal... Não sei exatamente o
que aconteceu ali.
— Hum... Nem eu — a pele marrom-dourada dele ruborizou. — Senti
saudades — ele riu. — Se é que não ficou óbvio.
Cassie não podia reprimir um grande sorriso.
— Eu também. Foi um longo Natal, hein?
— Nem me diga.
Ela se perguntou se ele não estava zombando dela de leve, mas o rosto dele
estava sereno e lindo como sempre. Havia algo mais na expressão dele também,
um impulso que combinava com o dela. Nossa, ele era um gato! A voz pelo
celular era uma coisa, mas ela tinha se esquecido da presença absolutamente
selvagem dele. Quase podia sentir o coração dele batendo mais forte e, ela
sabia, por instinto, que ele queria tocá-la de novo — quase tanto quanto ela que
ria que ele o fizesse...
Uau, Cassie!
Sem nem pensar nisso, ela deu um passo em direção a Ranjit e parou bem
na hora de cair nos braços dele outra vez. Isso estava indo rápido demais.
Depois do que havia acontecido, ela estava com um pouco de vergonha. Talvez
até um pouco assustada. A promessa de Estelle veio a sua mente.
Você nunca mais terá que sentir medo de nada, Cassandra.
Não era bem verdade. Ela conseguiu se assustar, deixando-se levar daquele
jeito em público. Ela sentiu suas bochechas avermelharem ao imaginar os olhos
da escola toda sobre ela.
27
— Cassandra? — Ranjit parecia um pouco cauteloso. Como ela, ele tinha
dado meio passo para frente antes de se conter.
— Perdão — ela sussurrou. — Parece que sua ausência fez meu coração
gostar mais de você do que eu pensava.
Ranjit sorriu.
— Sei o que quer dizer!
— Olha, talvez eu deva ir e, hum... Me arrumar. Ainda não achei meu
quarto e eu tenho que dizer “oi” direito para Isabella. Mas podemos nos
encontrar mais tarde para um café? — ela arriscou.
— Sim. Parece uma boa ideia. Às cinco?
— Seria ótimo — ela deu uma olhada no relógio. — Na verdade, que tal
quatro e meia?
Ele sorriu.
— Quatro e meia, então!
— Ótimo. Te vejo lá — quando ela sorriu e se virou para sair, Ranjit a
segurou e de repente pegou carinhosamente em sua mão. O calor da pele dele
fez o corpo dela tremer outra vez.
— Espere. Antes de ir, você está bem, né? Quando nos falamos por telefone
no Natal você parecia...
— Eu sei. Estou bem agora. Sério. Contarei tudo esta tarde.
Ele a encarou por um instante, como se para ter certeza de que ela dizia a
verdade. Por um momento pareceu que ela tinha visto, mais uma vez, o
perturbador brilho vivo e ardente dos olhos dele, mas Cassie não conseguiu
desviar o olhar. A mão dele apertava os dedos dela mais forte. O barulho do
gotejo da fonte parecia amplificado, assim como o som dos caros sapatos de
salto batendo no mármore. Então, o riso agudo de um aluno do nono ano fez os
dois pularem. Soltando a mão dela, Ranjit sacudiu a cabeça caiu em si e sorriu.
— Se é o que diz.
— É sim. Te vejo mais tarde para o café. Eu pago.
— Ok. Aonde vamos?
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— Não fique tão nervoso, riquinho — ela piscou. — Isso é Nova York, não
é? Tenho certeza de que vou encontrar um boteco podre.
A risada alta e aveludada de Ranjit ecoou por todo saguão. Deus, ela
pensou, deviam engarrafar esse som e vendê-lo para garotas solitárias em todo o
mundo.
— Ache um boteco podre então, Cassandra Bell. Te encontro aqui.
— Não se atrase — ela brincou fazendo cara de brava.
Ele sorriu.
— Não ousaria.
***
Bem, ela fez seu melhor para apresentar Ranjit ao mundano e ao sombrio,
mas isso não parecia fazer parte desta Nova York. Sir Alric de certo tinha seus
padrões e trouxe claramente a Academia para este bairro por um motivo.
Nas ruas — admirando maravilhada os prédios gigantescos, fazendo
fumaça no ar gelado com o sopro que saía de sua boca —, Cassie alegremente
deixou Ranjit assumir o controle. O café, afinal, era apenas uma desculpa para
estar a sós com ele — além de experimentar a cidade que ela não tinha visto ao
chegar. Pôde esquecer os monstros e demônios um pouco. Andando em direção
ao norte na Quinta Avenida, eram apenas um casal anônimo entre a multidão
rápida e com roupas de trabalho, ela mal conseguia decidir para onde olhar —
até porque Ranjit parecia saber bem onde estava. Ele a carregou pela East 78th
Street até a Madison Avenue e até o fino e elegante café que servia uma imensa
seleção de grãos para fregueses finos e elegantes.
— Nossa. Você é quem vai pagar, estou com medo.
Desenrolando seu cachecol, Cassie ergueu as sobrancelhas para a tabela de
preços enquanto pediam.
29
— Vai valer a pena — ele empurrou uma xícara em direção a ela. —
Embora eu não consiga imaginar por que você colocou calda de canela em um
café tão bom.
— Humm. Bom como as Lágrimas dos Escolhidos — ela sussurrou com
satisfação, relaxando um pouco pela primeira vez. — Isso revitaliza e muito
uma garota.
Ranjit piscou surpreso.
— Sir Alric te deu as Lágrimas?
— Ah, sim — ela piscou. — Sou um caso especial.
— Uau — Ranjit sacudiu a cabeça ansiosamente. — Ele te falou...
— Que não posso fazer isso toda vez? Sim, disse. Obrigada por me lembrar
— Cassie apertou o maxilar. Acabou a descontração.
— Então agora você deve aprender a se alimentar.
— Foi o que me disseram.
— Certo... Hum...
Ranjit parecia ler o descontentamento no rosto de Cassie e tentou ganhar
tempo engolindo o café quente rápido demais. Tomando fôlego, ele recuou.
— Será Isabella?
— Não sei. Olha, temos que falar sobre isso agora?
Ranjit sorriu, desculpando-se.
— Não, foi mal.
Cassie tomou um gole de café. Ela não queria ficar irritada. Não agora, não
com ele. Com um suspiro, ela pôs a xícara sobre a mesa e passou o dedo na
borda.
— Quanto tempo acha que eu tenho para decidir?
— Algumas semanas. Talvez menos — Ranjit baixou o tom de voz a um
suspiro quando um garçom passou por eles. — Sua fome cresceu mais depressa
do que qualquer um poderia prever. É inacreditável, Cassandra — com algo
que parecia admiração, ele adicionou: — Sem precedentes.
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— Você parece Sir Alric falando — Cassie respondeu. — E não é de um jeito
bom. Ele é a única pessoa, além de você, que me chama de Cassandra. Bem,
além de...
— Estelle — Ranjit completou. — Você prefere que eu te chame de Cassie?
— Quer saber? Acho que sim.
— Então eu chamo, Cassie — com um sorriso, ele colocou sua mão sobre a
dela.
Nossa, ela pensou. Aquilo era gostoso. E forte. E compassivo. Ela lentamente
cruzou seus dedos com os dele.
— Você nunca me quis como membro dos Escolhidos, né?
— Não, não queria. Não queria você envolvida em nada disso — ele sorriu
tristemente. — Mas agora já era.
— Eu me envolveria de qualquer forma — disse Cassie, percebendo isso
repentinamente. — De um jeito ou de outro. Isabella é quem deveria ser
iniciada, não era? Ela era a candidata mais provável. Então, acho que eu seria a
fonte vital dela?
A mão de Ranjit ficou tensa. Então ele fez “sim” com a cabeça, devagar,
seus olhos percorrendo o rosto dela.
— Talvez. Mas eu teria feito o que estivesse ao meu alcance para impedir
isso também.
Cassie franziu a testa. Ela teria preferido isso ou o que estava acontecendo
agora? Se Isabella tivesse entrado para os Escolhidos — se ela tivesse pedido a
Cassie para ser sua fonte vital — o que Cassie teria feito? Ela sabia
perfeitamente bem o que teria feito. Ela teria se recusado. Sairia correndo.
Berraria pelos corredores e chamaria a polícia.
Como se estivesse lendo os pensamentos dela, Ranjit disse:
— Você sabe que pode se alimentar sem que ela saiba. Ainda que ela saiba o
que aconteceu com você, há meios de contornar...
— Não — ela disse firmemente. — Não vou mentir para minha melhor
amiga. Sir Alric disse que pode ensinar a nós duas — num murmúrio ela
completou — se ela concordar, claro...
31
— É melhor assim, Cassie. Você tem que saber como se alimentar em
segurança. E se for feito da maneira correta, não faz mal algum.
Fechando os olhos, Cassie gemeu frustrada; então sentiu a mão de Ranjit
apertar a sua mais uma vez. Ele suspirou profundamente e se virou para Cassie,
tentando sorrir.
— Olha, estou feliz por você estar aqui e por estar bem. Vamos enfrentar
isso... Juntos — ele se inclinou e a beijou gentilmente nos lábios, demorando-se
um pouco antes de se afastar. — E quanto a isso... — ele murmurou, encostando
sua testa na de Cassie.
— Sim? — ela disse com a voz rouca.
— Acho que seria uma boa ideia tentarmos levar isso devagar. Quero dizer,
eu não sei o que aconteceu no saguão, mas pareceu quase... Fora de controle?
Ele olhou cautelosamente para Cassie e ela sorriu e concordou com a
cabeça.
— Foi mesmo. Não que eu esteja reclamando.
— Nem eu. É só que, dadas as circunstâncias e... Experiências anteriores,
não quero que nada dê errado entre nós. Devemos ser cuidadosos.
Ranjit passou a mão de modo reconfortante no braço de Cassie e se virou
para terminar seu café. Cassie olhava para baixo, para sua bebida quase
intocada. Ela mal tinha pensado sobre isso, mas o jeito como ele disse
experiências anteriores e a expressão no rosto dele quando ela mencionou que
teria sido designada fonte vital de Isabella pareciam gritar. Como ela poderia
ter esquecido?
Jéssica.
A irmã de Jake tinha se envolvido com Ranjit antes de morrer. Na verdade,
ela deveria tê-lo encontrado na noite em que foi ao encontro de sua morte. A
menina que acabou sendo sugada até o último fio de cabelo por Katerina e
Keiko era a mesma que todos diziam parecer com Cassie. O simples
pensamento disso a deixava atordoada. Ok isso podia ser estranho.
— Cassie? — a voz de Ranjit a despertou do devaneio. — Nós devemos
voltar. Você parece cansada.
32
O rosto lindo dele sorrindo para ela e a mão suave sobre o ombro dela,
deixou Cassie atordoada mais uma vez — mas pelo motivo certo.
Isso é ridículo, ela pensou. Você não é Jessica. Não é a mesma coisa. Não se
convença de que não é certo antes de começar.
Forçando um sorriso, ela se levantou.
— Cansada? Vamos lá, então! Vamos apostar corrida até a Academia!
33
Capitulo 4 O corredor estava escuro. Cassie estava correndo, procurava algo
desesperadamente. Procurava alguém. Ela dobrou a esquina e estava ainda
mais escuro. Não, escuro não — dois olhos, brilhando vermelhos, estavam na
frente dela. Destacando-se na escuridão. Vindo em direção a ela. Não. Ela
estava indo em direção a eles...
Lá está ele, Cassandra! Agarre-o. Pegue-o. Ele é nosso. Não o deixe a convencer do
contrário. Nós devemos ficar juntos. Precisamos dele.
Os braços de Cassie procuravam no escuro, agarrando o vazio.
Você não quer ficar só, quer, Cassandra? Alcance-o. Agarre-o. Você não quer ficar
só. Nós queremos. Você e eu, ele e sua...
— Ranjit?
A voz de Cassie parecia um mugido animal, ecoando no espaço vazio. Ela
se jogou para frente outra vez, as mãos segurando algo. Ombros: encurvados,
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musculosos. A pele desnuda dele quase queimando sob o toque dela. Depois os
braços dele envolvendo-a, apertando-a até que ela mal pudesse respirar. As
unhas dela pareciam garras, perfurando a carne das costas dele.
Sim, Cassandra. Não o deixe ir! Não devemos deixá-lo escapar!
— Não vou.
Você não vai. Não vai? Mas você me abandonou! Por que você me abandonou,
Cassie? Tem uma parte de mim que está só, sabe? A parte que deixamos para trás.
— O quê? Estou aqui! Estelle?
Você sentiu aquele vazio, não sentiu, querida? Apenas por um instante, mas sentiu,
imagine ficar preso lá. Não é legal. Por que você está sendo tão rude? Pobre, pobre
Estelle. Você vai me deixar ficar de fora, Cassandra? Vai me deixar de lado? Nos deixar
de lado? COMO VOCÊ PODE?!
Cassie acordou num pulo, tremendo. Jogando os cobertores, suando e com
dificuldade para respirar, ela se sentou e arrumou o cabelo com os dedos.
Ainda estava escuro — o brilho fraco lá de fora vinha das luzes da cidade.
Tinha sido um pesadelo, só isso. Cassie suspirou. Com tudo o que tinha
acontecido, era de se estranhar que ela não tivesse mais pesadelos. Ela deu um
sorrisinho irônico. Às vezes, parecia que sua vida toda era um pesadelo. Não
ajudava ter Estelle dentro de sua cabeça, mexendo em seus pensamentos.
Embora tudo estivesse silencioso nesse momento, talvez a fúria do espírito
tivesse dado um tempo e Cassie poderia dormir em paz.
Ainda assim, o coração dela continuava a bater violentamente e não apenas
de medo. Tinha uma terrível sensação de tristeza, culpa e arrependimento na
boca do estômago, quase sem saber por quê.
Coitada, coitada da Estelle...
Cassie esfregou as têmporas com as pontas dos dedos, gemendo
internamente, mas sem fazer som para não acordar Isabella. Parte dela sentia
pena de Estelle. Quando o ritual que deveria uni-las para sempre foi
interrompido, parte do espírito Escolhido tinha ficado para fora do corpo de
Cassie, separado do resto. Desde então, a voz de Estelle implorava a Cassie que
a deixasse entrar. Mas ainda que soubesse como fazer isso, Cassie estava longe
de ter certeza se era o que queria. Visões fracionadas do passado da mulher —
enquanto membro dos Escolhidos — revelavam que ela era orgulhosa e forte,
35
sim, mas também vingativa, cruel e egoísta. Se Cassie se unisse completamente
a Estelle, como saberia que não seguiria o mesmo caminho?
Tateando para pegar o copo de água sobre o criado-mudo, Cassie esbarrou
com as costas da mão em um de seus porta-retratos. Irritada, ela o apanhou
para colocá-lo de lado e congelou. Algo estava errado. Ela teve uma sensação
estranha ao tocar a moldura e a aproximou de seu rosto. Mesmo com o brilho
turvo de um amanhecer artificial, suas mãos tremeram.
A moldura de metal havia derretido. Pelo menos era isso o que parecia.
Estava torcida, contorcida e distorcida — como se tivesse sido deixada muito
próxima ao fogo. Os rostos sorridentes de Patrick e das crianças de Cranlake
tinham derretido e pareciam mascaras horrendas.
Apreensiva, ela tentou alcançar o criado-mudo, que estava bem frio. Cassie
engoliu seco. Pondo os pés no chão, ela pegou outra fotografia, uma que tinha
surrupiado discretamente de Ranjit no fim do semestre anterior. Também
estava distorcida: a moldura de prata parecia que tinha ficado líquida e depois
sólida novamente no meio da noite, como cera de vela. E o rosto tímido com um
sorrisinho de Ranjit estava irreconhecível. Ela alisou a foto com pesar, lágrimas
brotando em seus olhos. O que ela havia feito?
Espere aí. O que a fazia pensar que ela tivesse feito alguma coisa? Uma
sensação, nada, além disso... Sentindo-se triste, ela xingou, mas não em voz alta.
Na outra cama, Isabella se mexeu e se espreguiçou, bocejando. Cassie mal teve
tempo de enfiar as fotos derretidas debaixo do travesseiro antes que Isabella
abrisse os olhos, piscando várias vezes. A colega de quarto bocejou e sorriu.
— Bom dia, Cassie. Humm... — ela se sentou de repente. — Ei, estamos em
Nova York!
Cassie sacudiu a cabeça. Ela se sentiu mais alegre instantaneamente. Como
Isabella conseguia ferver de entusiasmo a essa hora da manhã? Sua amiga não
havia mudado desde Paris — o que era legal, pois todo o resto havia. Fingindo
falar de forma arrastada, ela disse:
— Relaxa, amiga. São seis da manhã Só vai amanhecer daqui a uma hora.
Isabella virou os olhos.
— Cassie, esse sotaque é mais Carolina do Sul do que Bronx e até eu sei
disso. Agora... — pulando da cama, ela esfregou, as mãos empolgada. — O que
vamos fazer hoje?
36
— Hum... Além de começar as aulas, quer dizer? — perguntou Cassie.
— Sim, sim, além disso. Esta é a cidade que nunca dorme! Nós também não
deveríamos dormir!
— Uh-hum — Cassie nem pensou em mencionar que já estava adiantada
nesse departamento. — Sabe que a primeira aula é de matemática, né?
— Não. Não, não, não! Não devo pensar nisso! — lamentou Isabella.
Ela parou e depois olhou de canto para Cassie.
— Precisamos falar sobre você, Cassie.
— Ai, meu Deus — Cassie suspirou. — De novo, não. Primeiro Ranjit, agora
você também. Não podemos falar de outra pessoa?
Isabella cruzou os braços, furiosa.
— Cassie. Te dei folga ontem porque estava com seu príncipe indiano e,
falando nisso, você precisa me contar tudo depois — ela parou e piscou para
Cassie. — Mas sei que você está me escondendo algo. Desmaiou no aeroporto!
Você não parecia doente e passou mal de fome só por pular o café da manhã ou
estar preocupada. Isso tem a ver com o que te fizeram, não é? Na cerimônia dos
Escolhidos?
Cassie esfregou a nuca.
— Sim — ela murmurou.
Isabella fez “sim” com a cabeça, apertando os olhos.
— Certo. E o que você fez a respeito?
— Sir Alric tinha uma... Humm... Uma solução — Cassie deu um enorme
sorriso, esperando que uma explicação fosse saciar as dúvidas de Isabella no
momento, mesmo que não fosse a verdade. Ela precisava de tempo. Mais
tempo. — Literalmente, quero dizer. Uma solução líquida.
— Quer dizer medicamentos? — Isabella cobriu a boca com a mão. —
Cassie, não tenho certeza...
— Por favor, Isabella, não há com que se preocupar.
37
— Hã? — Isabella cruzou os braços e ergueu uma sobrancelha. — Se não há
com que se preocupar, por que você está tão triste? Te conheço bem! Por que
está nervosa e misteriosa?
— Misteriosa...
— Para com isso, Cassie Bell!
Derrotada, Cassie se aproximou e se sentou na cama de Isabella.
— Lembra do que eu te contei sobre Keiko e Alice no semestre passado?
Sobre ver Keiko como que se alimentando de Alice? Bem, é assim que os
Escolhidos se mantêm vivos — ela suspirou tristemente, tentando evitar o olhar
de Isabella. — Eles tiram energia vital de outra pessoa que não seja dos
Escolhidos. E, aparentemente, é algo que eu terei de fazer também... — Cassie
emudeceu. Ela não tinha coragem de ir além...
Isabella não respondeu. Talvez, pensou Cassie, ela estivesse lembrando da
horrível descrição de Cassie sobre Keiko sugando a vida de sua colega de quarto indefesa.
Ou da irmã de seu namorado sendo sugada completamente...
O ar parecia estalar com a tensão enquanto o silêncio se prolongava mais e
mais, mas Cassie não suportaria levantar o rosto e ver o horror e a repulsa no
rosto de Isabella. A qualquer momento, agora, estaria tudo acabado. Isabella
sairia do quarto. Ela iria até o escritório do Sir Alric e exigiria uma nova colega
de quarto. Claro que ela diria que ainda seriam amigas, mas ela nunca
esqueceria o que Cassie tinha pedido a ela. Ela nunca esqueceria
completamente...
— Tudo bem.
— O quê? — Cassie pensou não ter entendido direito.
— Eu disse tudo bem. Você vai se alimentar de mim.
Ao ver a expressão incrédula de Cassie, Isabella bateu palmas.
— Olha, eu não estou dizendo que isso é o ideal. Uma coisa é certa, eu tinha
uma imagem muito diferente dos Escolhidos antes de saber que envolvia essa
loucura toda. Mas outra coisa que eu tenho certeza é de que você não é como
Keiko. Nem um pouquinho. Ela era louca. Você é ao contrário... — Isabella
sorriu. — Bem, você tem seus momentos. Mas você é minha grande amiga,
Cassie Bell. Se for disso que precisa, então é disso que nós precisamos também.
38
Cassie não conseguia parar de encará-la.
— Isab...
Isabella a interrompeu, segurando sua mão.
— Espere aí. Alice não sabia o que Keiko estava fazendo, sabia?
— Não — Cassie cutucou uma unha roída. — Os Escolhidos têm uma bebida
especial. Ela faz com que seus colegas de quarto não se lembrem de nada. Eles
acham que assim é melhor — Cassie finalmente se obrigou a olhar o rosto de
Isabella, mas não havia repúdio nele. Ela estava acompanhando Cassie,
concentrada e séria.
— Ainda assim, você não quer me enganar, Cassie. Você me contou tudo e
isso mostra que confia em mim. Obrigada. Então serei honesta, porque também
confio em você — Isabella levantou um dedo em riste. — Você jamais deve me
dar essa bebida. Eu jamais serei enganada ou trapaceada.
— Isabella, eu não sei...
— Cassie, você precisa se alimentar. Isso é óbvio. É por isso que Sir Alric
está tão preocupado com você, não é? — Isabella agarrou as mãos de Cassie.
— Ele... Sim. Ele disse que me ensinaria, que nos mostraria como fazê-lo em
segurança.
— Bem, Sir Alric é um bom homem. Ele sabe o que é preciso e o que é ou
não, perigoso. Não se preocupe, Cassie — o sorriso de Isabella era cauteloso,
porém sincero. — Se ele nos mostrar como fazer isso direito, ficará tudo bem.
Eu serei sua... Como se diz?
Cassie hesitou.
— Minha fonte de vida. Mas espere, Isabella. E quanto ao Jake? Ele nunca
vai permitir que você faça isso.
— Jake não é meu chefe, é meu namorado — Isabella torceu o nariz. —
Você tem razão, ele não vai gostar, mas é uma decisão minha. Eu não sou
Jéssica e você não é Keiko. E, de qualquer forma, o que os olhos não veem, o
coração não sente.
— Você não pode guardar esse segredo dele, Isabella.
39
— Por que não? Uma garota tem direito a alguns segredos — Isabella
retrucou, com seus olhos escuros lampejando. — Quando chegar a hora, eu
contarei a ele. Ele entenderá.
Cassie arregalou os olhos para Isabella. Essa não era a solução perfeita? Ela
tinha sido honesta com Isabella e Isabella tinha concordado de livre e
espontânea vontade. Então, por que ela ainda se sentia tão mal?
— Tudo bem — Cassie expirou e sorriu. — Obrigada. Obrigada, Isabella.
— De nada. Só tome cuidado para não se exceder — Isabella riu. — Tenho
certeza de que minha energia vital é algo muito poderoso.
— Não há meios de eu chegar nem que seja um pouquinho perto de você até
que Sir Alric me ensine tudo o que for preciso saber sobre esse negócio de se
alimentar.
Envergonhada, Cassie mordeu o lábio, desconfortável. Como tinham
chegado ali? Isabella olhou para sua colega de quarto e deu uma risadinha.
— Sua cara merece uma foto, Cassie Bell. Ficara tudo bem. Além disso, ser
uma dos Escolhidos não é só ruim, hein? E Ranjit? Eu soube como ele te agarrou
no saguão ontem. Com certeza é um consolo! — ela riu maliciosamente e Cassie
não pôde conter o riso. — Olha — Isabella continuou, com os olhos brilhando
como se estivesse aprontando alguma —, eu gostaria que essa coisa de
Escolhidos não tivesse acontecido, mas aconteceu e você está nessa. E, vendo isso
como fato consumado, você deveria também se divertir um pouco sendo dos
Escolhidos, não é?
Cassie ia corrigi-la quando pensou: não fato consumado é bem apropriado.
— Isabella, eu não vou começar a colocar peso nos ombros dos outros.
Isabella bufou.
— Shiii! Desde o Natal não há muito de você para colocar nos outros.
Cassie sorriu ironicamente.
— E é claro que você não vai sair por aí bancando a Abelha Rainha, isso não
tem a ver com você — ela segurou os braços de Cassie e os chacoalhou. — Não
se esqueça, você ainda é você mesma.
— Espero que esteja certa.
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Isabella a ignorou.
— Ei, você pode me convidar para o tão sagrado quarto comum. E o tempo
livre extra por ser membro dos Escolhidos significa mais tempo na Madison
Avenue.
— Por que será que eu sabia que você daria um jeito de colocar compras no
meio disso? — disse Cassie, finalmente com um sorriso verdadeiro em seus
lábios. Ela se levantou decidida e se espreguiçou. — Vamos, vamos nos trocar e
tomar um café da manhã. Vou levar mais ou menos uma hora para parecer tão
bonita quanto você está agora. E, deixa eu te dizer, você nem está tão linda
assim.
Isabella jogou um travesseiro nela.
— Tonta. Bem, não é verdade. Você está bem bonita desde que tomou sua
famosa “solução”. Mas espere para ver quando começar a se alimentar de mim!
— ela se arrumou, molhando a ponta do dedo na língua e passando na
sobrancelha.
Cassie achou graça. Pegando no tornozelo de Isabella, ela começou a
arrastá-la para fora da cama.
— Vamos, garota. Você não pode evitar Herr Stolz para sempre, sabe disso.
— Verdade — Isabella jogou as roupas de cama e pulou para fora, fazendo
beiço. — Mas, por causa da minha poderosa colega de quarto, eu esperava que
pudesse.
Cassie deu uma risadinha.
— Todos nós temos problemas. Eu sou possuída por um demônio e você
tem que encarar as equações algébricas mortais do mestre da matemática.
— Sabe, Cassie? — Isabella suspirou. — Não sei o que é o pior...
41
Capitulo 5 Cassie se lembrava muito bem de como tinha se sentido no início do
semestre passado — o terror de se sentir um peixe fora d'água. Ela devia
parecer um pouco com um peixe também, levando em consideração o grupinho
de alunos novos — todos de olhos arregalados e bocas abertas. Ela conteve o
riso, sentindo pena deles, mas também se sentindo um pouco superior. Ela não
era mais a novata perdida: era quase como se ela pertencesse a esse lugar. E isso
era gostoso; gostoso de verdade.
Ela tinha perdido Isabella no meio da multidão de alunos no saguão — em
meio a cumprimentos com gritinhos animados e da irritante competição sobre
férias em locais exóticos. Enquanto andava em direção à classe de Herr Stolz,
Cassie notou pelo menos um rosto familiar. Jake estava em pé ao lado de uma
fileira de elegantes armários com teclados numéricos eletrônicos. Ele pareceu
ligeiramente nervoso quando Cassie se aproximou.
— E aí, Jake? Como vai?
42
— Hum... Oi, Cassie. Tudo bem e você? Sentindo-se melhor hoje? — ele se
aproximou e a abraçou de forma estranha, Cassie sentiu seu coração
despedaçar.
Tinha levado meses para que ela e Jake superassem a desconfiança mútua.
Então, logo depois que se tornaram amigos de verdade, aconteceu algumas
coisas. Agora, além de ser uma constante recordação de sua falecida irmã,
Cassie também era uma dos Escolhidos — parte do grupo responsável pela
morte de Jéssica. Não era para menos que houvesse tensão entre eles; os
sentimentos dele em relação a ela deviam estar quase tão confusos quanto os
dela própria. Ela apenas esperava que fosse capaz de mostrar a Jake que ele
ainda podia confiar nela — e provar isso a si mesma...
Quando eles entraram na sala de aula, Cassie desviou sua atenção para uma
garota ruiva, pálida e nervosa que tinha deixado cair o livro de matemática para
fora da porta de vidro. Um garoto alto apareceu de súbito ao lado dela, tocando
o cotovelo da ruiva de uma forma que fez a pobre criatura tremer. Ela olhou
para ele boquiaberta, enquanto o garoto devolvia os livros e só então Cassie
avistou o rosto dele. Refinadamente lindo, com um sorriso deslumbrante.
Richard Halton-Jones.
Cassie sentiu um calafrio. Obviamente, ele não tinha mudado: ainda um
incorrigível conquistador. Mostre-o a alguém — qualquer um — que ande
sobre duas pernas e essa pessoa não conseguiria se segurar. Ela havia chegado a
pensar, no passado, que isso fosse amável; agora a memória do último encontro
deles era como um soco no estômago. Tinha gostado dele, confiado nele, até
mesmo começado a acreditar que ele estava interessado nela também e olha
onde isso a tinha levado. Richard foi quem a seduzira a ir até o Arco do Triunfo
e a cerimônia da qual ela não queria fazer parte. Ela não ligava que tivesse sido
a pedido da idosa Madame Azzedine — que tinha gostado de Cassie logo de
cara e a considerado um perfeito novo hospedeiro. Se não fosse por ele, não
estaria nesse rolo.
Desviando o olhar bruscamente, ela passou por Richard e entrou na classe,
esperando que ele não a notasse. Afinal de contas, ele tinha sorte de não ter sido
expulso. Certamente, mesmo alguém tão descarado devia estar envergonhado
de estar perto dela depois do que tinha feito... Aparentemente não. A mão dele
apertou o braço de Cassie, fazendo-a parar de andar.
— Você não tem ideia — ele murmurou — do quão diferente está.
43
Ela deu meia-volta a fim de olhar para ele. Em volta deles, os últimos
alunos estavam entrando apressadamente na sala, ainda fofocando alto e
empolgados com o início do semestre, mas Herr Stolz estava em pé na frente da
sala, limpando sua garganta, batendo os dedos na mesa.
Richard o ignorou.
— Olá, Cassie.
— A aula está começando — ela disse rispidamente.
Ele ignorou isso também.
— Você está... Incrível.
— Obrigada — disse com a voz áspera.
— Ah. Você está soando diferente também.
Era coisa da cabeça dela ou tinha um toque de tristeza na voz dele? E daí?
Ao se virar, ela viu Isabella entrar rapidamente na sala e se atirar em Jake, quase
virando a cadeira dele. Isso fez surgir um sorriso, embora Cassie tivesse notado
que Jake — que estava rabiscando furiosamente em um caderno — ainda
parecia um pouco distraído. Cassie franziu a testa — depois de todo o tempo
que Isabella tinha levado para conquistá-lo, ela esperava que Jake desse um
pouco mais de atenção para sua melhor amiga. Ela se sentou em um lugar perto
dos dois.
— Senta direito, Isabella! Você vai estragar a carteira.
— Ah, Cassie! Aí está você! Não se preocupe, o corpo másculo de Jake é
forte o suficiente para segurar euzinha aqui — Isabella bateu os cílios
rapidamente para seu namorado, que enfim descansou a caneta e deu um
beijinho no nariz dela.
Olhando ao redor da sala pela primeira vez, Cassie percebeu que as
carteiras e cadeiras elegantes eram mesmo bem-feitas demais para quebrar. Os
móveis eram fantasticamente modernos em comparação aos tradicionais
móveis de madeira que preenchiam a Academia em Paris. Na verdade, os
móveis pareciam ter sido esculpidos em blocos de gelo pelo próprio Phillipe
Starck4.
4 Philippe Patrick Starck, nascido no dia 18 de janeiro de 1949, é um conceituado designer francês com
uma obra multidisciplinar que vai do design de interiores ao de bens de consumo de massa (N. T.).
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— Cassie!
Ela se virou para ver de onde o chamado tinha vindo e se deparou com um
grupinho sentado no fundo da sala, ligeiramente separado do restante dos
colegas. Alguns deles pareciam olhá-la com ódio, outros com sorrisos
cautelosos, mas todos eram, sem exceção, absolutamente lindos.
Os Escolhidos. Sua nova “família”.
Ayeesha e seu namorado irlandês Cormac — dois dos mais amigáveis —
acenavam entusiasmadamente. A garota de Barbados chamou o nome dela de
novo e apontou uma carteira vazia perto deles. Ayeesha parecia
verdadeiramente receptiva e não despertava a desconfiança de Cassie como
alguns outros. De certo ela não era uma das pessoas sombrias e encapuzadas na
cerimônia do Arco do Triunfo. De certo... Ao se lembrar do horror sinistro,
Cassie estremeceu.
— Acho que você está sendo convocada — disse Jake, o humor irônico não
pôde acobertar o tom de desdém na voz dele.
Cassie desviou o olhar apressadamente.
— Não seja ridículo. Eu não vou para lá. Vou me sentar com vocês, como
sempre.
— Ah, nós estamos honrados, Srta. Bell — Isabella usou um tom malicioso,
mas o olhar de canto de olho de Cassie a fez parar logo.
A última coisa que ela precisava era dar a impressão de que gostaria de ser
tratada diferente agora, especialmente perto de Jake — ela já estava desconfiada
de como ele se sentia em relação a ela. Cassie cutucou Jake e forçou um sorriso.
— Ah, entendi. Você quer se livrar da vela para ficar com Isabella só para
você, hein?
Jake deu uma risadinha e levantou as mãos fingindo protestar, mas seu
sorriso desapareceu quando ele viu quem se aproximava por trás dela.
— Eu acho que teremos o castiçal — ele resmungou, virando.
— Esta cadeira está ocupada?
Cassie olhou para cima imediatamente e seu coração disparou.
45
— Ranjit! — Cassie sentiu sua face ruborizar... O entusiasmo evidente em
sua voz. — Hum, oi. Não, não está ocupada.
— Ordem, por favor? — na frente da sala, Herr Stolz estava tentando, com
pouco êxito, exercer sua autoridade. — Bem-vindos de volta, todos vocês. Sr.
Singh, pode se sentar, por favor? Devemos começar.
Ranjit se desculpou calmamente com a cabeça antes de se sentar
elegantemente na cadeira ao lado de Cassie. Isabella olhou para Cassie e deu
uma risadinha; Jake permaneceu calado e sério. Ignorando o burburinho ao
redor dela — talvez nem todos na escola tivessem visto o amasso no saguão,
afinal —, Cassie abriu seu livro e passou cuidadosamente a mão para deixá-lo
aberto na página. Ela ficou vermelha quando Ranjit virou um pouco a cabeça e
sorriu para ela.
Uma pontada em sua nuca dizia que mais olhares estavam sobre ela. Ela
levantou os olhos rapidamente e se virou, esperando encontrar metade dos
Escolhidos fulminando-a pelas costas. No entanto, foi uma surpresa encontrar
apenas o olhar fixo e triste de Richard.
Richard deve ter recuperado um pouco de sua joie de vivre5 no decorrer da
aula, encorajado pelo deboche inofensivo que fazia do professor super sério.
Quando ele se aproximou de Cassie, enquanto Ranjit falava com Herr Stolz, era
só charme.
— Você está brava comigo. Está brava comigo! Cassie, doce menina, eu não
posso suportar isso. Eu vou me matar. Não, vou me jogar nas ruas. Vou vender
meu corpo por uns trocados e morrer, pálido e magro, num sótão. Eu vou me
acabar. Vou escrever poesias terríveis e desesperadas. Eu vou...
— Cala a boca, Richard — Cassie deu meia-volta, arrumando a pesada
pilha de livros em seus braços enquanto espiava por entre o empurra-empurra,
tentando enxergar Isabella e Jake. Eles já estavam fora da sala, no corredor, se
amassando. Ela tentou achar Ranjit, mas agora ele estava conversando com seu
colega de quarto, um garoto dinamarquês magro chamado Torvald.
— Por você, querida, eu me calo — Richard disse suavemente.
— Sonho com isso. Todo mundo sonha com isso.
— Eu ainda faço parte dos seus sonhos? — ele apertou a mão contra o peito
fingindo desmaiar.
5 Joie de vivre significa “alegria de viver” em francês (N. T.).
46
Cassie fez uma cara feia, brava consigo mesma. Se ela se deixasse levar pelo
papo dele, havia uma chance de acabar perdoando-o. E ele não merecia ser
perdoado.
— Sai fora, Richard. Sério. É claro que você deve ter notado que seu
fingimento não cola mais comigo — Cassie andou determinada em direção a
Isabella, parando ao lado dela com um maldoso sentimento de satisfação.
Richard ficou ao lado da porta; ela conseguia ver o reflexo dele no vidro,
parecendo perdido e verdadeiramente ferido. Bom. O pensamento em Richard
desapareceu da mente dela por causa de um choque elétrico quando Ranjit veio
e tocou gentilmente com uma das mãos a cintura dela. Ayeesha e Cormac
estavam bem atrás dele. Um pouco relutante Cassie se virou para eles e sorriu.
— Oi, gente.
— Oi, Cassie, Ranjit — disse Ayeesha quando se aproximou.
Ela se virou para Ranjit e o cumprimentou com a cabeça em sinal de óbvio
respeito. Cassie ainda não tinha compreendido totalmente a hierarquia dos
Escolhidos, mas não havia dúvidas de que ele fosse um dos poderosos. Ela sentiu
uma leve empolgação com o poder ao pensar que o namorava. Um sorriso
contraiu os lábios de Ranjit, como se ele soubesse o que ela estava pensando.
— Não fiquem por aí — continuou Ayeesha. — Subam para o quarto
comum. Nós temos que apresentá-lo a você, Cassie.
— Estamos indo para lá agora, pensei em matarmos a aula de literatura
inglesa — completou Cormac.
Cassie respirou fundo. Apesar do claro interesse de Isabella, ela meio que
esperava poder evitar o quarto comum: o exclusivo, sacrossanto quarto comum
da elite dos Escolhidos...
— Hum... Bem, eu não tenho aula à tarde, então pensei que poderia
terminar de desfazer minhas malas e tal. E não sei se é uma boa matar aula...
— Ah, não se preocupe com isso. Vamos! Venha e conheça os outros.
Converse um pouco. Conheça todos nós.
Será que ela estava pelo menos um pouco preparada para isso? Para
conversinhas com pessoas que ela talvez tenha visto por trás de capuzes
vermelhos pela última vez, deixando-a à mercê de Estelle Azzedine? Ela nem
sabia quais eram eles...
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— Vá, Cassie! — Isabella se intrometeu, sacudindo o braço dela. — Parece
divertido.
Jake olhou espumando. Seu silêncio falava muito alto para Cassie e ela
abriu a boca para declinar do convite. Mas, então, três garotas alunas do Liceu
passaram pelo saguão. Uma delas — Sara, não era? — disparou um olhar
arrogante e sussurrou algo propositadamente bem baixinho para suas amigas,
provocando um ataque de risos. Cassie não conseguiu entender direito o que
tinha sido dito, mas ela havia ouvido a palavra comum e tinha certeza absoluta
de que não se referiam ao quarto.
Sara era dos Escolhidos, Cassie sabia disso. Os olhos dela eram familiares?
Será que tinha visto aqueles olhos frios, azul-acinzentados, por dois buracos em
um capuz vermelho? Ela sentiu a raiva subir. Só havia um modo de descobrir...
— Quer saber? — Cassie falou alto para Ayeesha. — Seria ótimo, na
verdade. Vou até lá esta tarde.
— Ótimo! Nos vemos lá.
Quando Ayeesha e Cormac se afastaram, Cassie sentiu um aperto no
coração. Ela se arrependeu por ter sido impulsiva. Ela realmente não estava
pronta para enfrentar o quarto comum. Cassie olhou para Jake constrangida
quando Ranjit se voltou para ela e pegou em sua mão.
— Tenho algumas coisas para resolver também. Mas volto e te encontro
depois da sua aula de inglês e podemos aparecer por lá juntos.
Cassie sorriu ao assistir ele se afastando com passos largos e elegantes.
Como ele sabia exatamente a coisa certa a dizer? Com Ranjit a seu lado, o
quarto comum não parecia um lugar tão intimidador.
— Ugh. Socializar com os Escolhidos. Mal posso esperar.
— Cassie! O que eu disse sobre olhar pelo lado bom? Abrace as coisas boas!
Se eu tivesse a chance de matar a aula da velha e chata literatura inglesa, eu
teria agarrado com unhas e dentes! — Isabella cutucou Cassie na costela.
— Aaai! Por Deus, Isabella!
— Então... Você e Ranjit estão se dando bem, hein? — Jake disse, com uma
voz tensa. Cassie sabia que ele queria fazer essa pergunta tanto quanto ela
queria respondê-la. Ela andava ao lado deles arrastando os pés, olhando
fixamente para seus tênis surrados.
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— Oh, sim. Sei que é um pouco estranho, mas ele é um dos caras legais,
Jake. Tenho certeza disso.
— Bem, fico feliz que você tenha certeza.
Isabella deu uma olhada para Jake.
— Quero dizer, acho que você deve ter razão — ele retificou rapidamente.
Mas ele não olhou para Cassie enquanto falava. Ela sabia que ele suspeitava
há tempos que Ranjit tivesse matado sua irmã. Mesmo a confissão de Katerina,
dizendo que ela e Keiko tinham cometido o crime, não tinha sido suficiente
para convencer Jake de que Ranjit não fosse de alguma forma responsável. E
Cassie tinha de admitir que ainda havia questões sem resposta. Ranjit deveria
ter encontrado Jess na noite em que foi morta, mas Katerina tinha mandado
alguém para atrasá-lo. Quem tinha sido e quantos deles sabiam sobre o que
havia ocorrido? Cassie não tinha certeza de que queria saber a resposta — e
mesmo que quisesse, ela tinha a sensação de que Ranjit não iria dizer.
Jessica Johnson. A garota morta era como um tabu para muitos de seus
conhecidos. Às vezes parecia que ela ainda estava viva e frequentando a
Academia...
— Jake — Cassie começou.
Ele sacudiu a cabeça e a empurrou brincando.
— Ei, ignore o que eu falo. Desculpa. Acho que ainda não perdoei ou
esqueci muito bem. Mas estou aqui e é isso conta. De qualquer forma, nós
estamos sob o comando dessa linda garota aqui, que disse para relaxarmos.
Desculpe, linda — ele disse, colocando o braço sobre os ombros de Isabella
enquanto andavam pelo corredor.
— Sem problemas — disse Isabella, radiante com o elogio.
Jake limpou a garganta e passou rapidamente para outro assunto que
Cassie não estava a fim de discutir.
— Então, quando eu vou saber o que aconteceu no escritório do Darke,
hein? Eu quero saber o que ele disse. O que você fez, Cassie? O que ele fez?
— Hum...
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— Você parece bem melhor agora, isso é certo. Tem algo a ver com, hã, se
alimentar? — a voz de Jake soava normal, mas não conseguia disfarçar muito
bem a ansiedade por trás da pergunta e Cassie começou a se preocupar que ele
chegaria a conclusão certa. — Vamos, o que aconteceu? Conta logo — ele tentou
sorrir.
Cassie olhou para Isabella e notou o discreto “não” que ela fez com a
cabeça. Respirando fundo, ela mais uma vez não conseguia olhar nos olhos de
Jake.
— Sir Alric me deu um pouco de alguma coisa. Um tipo de medicamento.
Mas não uma droga.
Jake ficou em silencio por um instante agonizante. Por fim, disse:
— Um medicamento?
— Sim. Nada perigoso ou algo do tipo. É algo que os Escolhidos podem
tomar. Para evitar a fome — isso não era mentira, afinal de contas.
— Ah — ele parecia perplexo. — Então, é o negócio de se alimentar?
— Eu só tomei uma injeção e... Agora está tudo bem — atrás de suas costas,
Cassie cruzava os dedos das duas mãos.
— Mesmo? — Jake franziu a testa e depois fez uma cara estranha. — Bem,
isso é ótimo. Por que então que você não me contou? Isso parece bem objetivo.
Deus, você me deixou preocupado, sabe, com o que Keiko fez e tal.
— É. Não. Quer dizer, estou bem agora — Cassie mal podia sorrir.
Ela estava se remoendo de culpa. Ele sorriu tristemente para ela.
— Bom, estou feliz que esteja bem, de qualquer forma.
— Hum, legal.
— Isso — Isabella limpou a garganta, com um tom nervoso em sua voz. —
Está feliz agora, Jake?
Seu namorado sorriu e fez um artificial e gentil aceno com a cabeça.
— Então, eu preciso conversar com Cassie — ela apontou um dedo para
Jake e cruzou seu braço com o de Cassie. — Em particular!
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— Ei, o que eu não posso escutar? — ele perguntou queixosamente.
Isabella soltou o braço de Cassie e se enrolou no pescoço de Jake. Ela tacou-
lhe um beijo ardente na boca e depois se afastou.
— Assunto de meninas.
Isso pareceu convencê-lo. Ele levantou a mão em sinal de derrota.
— Bem, neste caso, eu definitivamente vou deixá-las. Vejo vocês mais tarde,
meninas.
Isabella sorriu e fez tchau. Quando ele saiu de vista, Cassie soltou o ar com
força.
— Ai, estou me sentindo uma merda — disse.
Isabella bateu as mãos.
— Obrigada, Cassie
— Pelo que? Por mentir para ele?
— Por ser discreta. Eu não quero que ele saiba sobre isso. Vai trazer muitas
memórias dolorosas sobre Jess.
Cassie deixou Isabella entrar primeiro no elevador.
— Uma hora ele terá que saber.
— Sim — Isabella admitiu pesarosamente. — Mas ainda não, tá?
— Quanto mais nós adiarmos...
— Por mais tempo ele será feliz. A ignorância é uma benção, não é? Então,
não vamos contar para ele ainda.
— Ok — suspirou Cassie quando a porta do elevador abriu silenciosamente
no andar delas. — Mas eu quero um favor por manter minha boca fechada.
Isabella escorregou a mão pelo braço de Cassie.
— Diga! Um pônei de polo?
Cassie gargalhou.
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— Ah, claro. Eu posso usar seu laptop um pouco, para checar meus e-mails e
tal?
— Ooh, você pede demais — Isabella jogou o cabelo dramaticamente e
depois sorriu.
Dando uma olhada pelo quarto e atirando sua mala na cama, ela pegou o
laptop.
— Aí está.
Cassie fez o login, achou sua caixa de e-mails e procurou as mensagens.
Alguns e-mails das crianças de Cranlake, incluindo algumas piadinhas infames
que a fizeram gargalhar. Além disso, nada mais do que ofertas especiais de sites
que ela havia visitado. Chato.
Havia mais uma mensagem. Embora ela tivesse esperando pela mensagem,
o nome do remetente da última mensagem da pasta a abalou. Sentindo-se
culpada, ela respirou fundo.
De: Patrick Malone Assunto: ENC: ENC: Como vai?
Vamos dar crédito ao homem, ele era persistente. Ele tinha enviado o
mesmo e-mail pela terceira vez, agora com pequenas variações. Como era Nova
York? Como tinha sido o voo? Ela estava bem? Ele não tinha notícias dela — havia algo
de errado? Ela poderia apenas responder este e-mail, melhor ainda, ligar para ele, assim
ele saberia que ela estava bem? Cassie você pode, por favor, apenas confirmar o
recebimento? Como está se sentindo?
Ela suspirou. Como ela estava se sentindo? Não estava pronta para falar.
Definitivamente, não estava pronta para confrontar o que tinha acontecido no
Natal, ou o que Patrick pudesse saber... Ela alisou gentilmente o touchpad,
guiando o cursor para a opção “excluir”.
Excluir mensagem?
Depois de hesitar por um instante, ela clicou “sim”.
52
Capitulo 6 Cassie respirou fundo. Parecia um audacioso ato de sacrilégio
simplesmente tocar a linda porta entalhada do quarto comum. Os desenhos
eram tão complexos, tão delicados, que tinha medo que pudesse quebrar a
madeira. Mas, vamos encarar a verdade: não era por isso que ela estava
hesitante. Ela olhou ansiosamente para Ranjit enquanto ele se aproximava e
colocava sua mão na reluzente maçaneta de prata.
— Relaxa. Será divertido — ele murmurou, esticando o braço para buscar a
mão dela. Ela virou os olhos e tentou sorrir. Ranjit virou a maçaneta e a porta
abriu.
Enquanto eles entravam, Cassie respirou fundo. Por que será que ela estava
esperando o mesmo quarto comum parisiense — com antiguidades e tecidos
escuros, lustres de cristal e vidraria? Esse amplo espaço — apenas um andar
abaixo do escritório de Sir Alric na cobertura — estava inundado de luz por
causa das paredes de vidro e do céu azul congelante. Os sofás de couro eram
clean e da cor marfim; a mobília era elegante e minimalista, mas visivelmente
53
cara. Os tênis dela chiavam no piso de madeira ao passo que ela cruzava o
quarto sob olhares que variavam entre amigavelmente surpresos e
violentamente hostis.
— Ei, vocês dois! — Cormac pulou e Ayeesha deu um daqueles sorrisos
radiantes. — Bom ver vocês. Venha e conheça os outros, Cassie.
Era extraordinário, ela pensou, o modo como o grande grupo dos Escolhidos estava
dividido em menores, mas muito intensos, subgrupos. As pessoas que ela esperava
que fossem estar juntas estavam juntas, classificadas de acordo com a
personalidade e educação geral — ou falta disso. O elo entre certos membros
dos Escolhidos e a divisão entre certos grupos de Escolhidos era invisível, mas
óbvio. Eles eram como pequenas galáxias girando em torno umas das outras,
mas nunca tocando uma a outra. Entre alguns grupos, o ar quase vibrava com a
tensão. Ela teve a nítida impressão também de que alguns membros de cada
grupo obedeciam a outros membros de uma maneira que não parecia ter nada a
ver com a idade.
Quaisquer que fossem as razões para as divisões, todos os habitantes do
quarto comum estavam temporariamente unidos em observar Cassie e Ranjit,
olhando as mãos dadas dos dois com interesse. Despreocupado, Cormac estava
gesticulando de maneira expansiva pelo quarto.
— Essa é Sara, claro. E você conhece Vassily e India do semestre passado e
Yusuf. Perdão, tenho certeza de que Ranjit pode te apresentar, eu acho que você
não precisa que eu te diga tudo isso — ele deu uma risadinha carinhosa. Cassie
sorriu de volta, começando a se soltar aos poucos.
Então, a porta do quarto comum abriu novamente e ela endureceu de
tensão outra vez. A voz que ela ouviu cumprimentar de forma elaborada um
grupo de alunos no canto era terrivelmente familiar.
Richard.
Surpresa, Cassie o observou: como é que ela não tinha pensado que ele
muito provavelmente estaria no quarto comum? Talvez ela tivesse esquecido de
propósito. Quando os olhos deles se encontraram, ele tirou um chapéu
imaginário sorrindo com hesitação, mas, felizmente, sem dizer nada. Ranjit
olhou para ele desconfiado. Cormac tinha voltado a se jogar no sofá felpudo ao
lado de Ayeesha e Cassie suspirou profundamente.
— Ok, acabou. Fim da experiência. Podemos ir agora? — ela falou baixo
com os dentes cerrados, como se estivesse com um largo sorriso.
54
Ranjit olhou para o rosto tenso dela e riu de maneira contagiosa. O olhar
dele prendeu o dela e Cassie paralisou, tranquilizada pelo olhar intenso dele.
Ela o encarou de volta, fascinada, quase em câmera lenta. Ranjit a abraçou e
pressionou seus lábios contra os dela. O tempo pareceu parar enquanto ela se
derretia com o beijo dele, esquecendo sua tensão, até que uma tosse alta a
lembrou de que eles ainda estavam em pé no meio do quarto. Todos os olhares
voltados para eles de novo. Cormac parecia silenciosamente entretido; Richard
parecia atingido.
— De novo não — ela disse suavemente, sorrindo encabulada. — Nós não
estamos, hum... Um pouco em evidência aqui?
— Oh. Claro, vamos, hum... — Ranjit balançou a cabeça como se fosse
limpá-la e a conduziu ao outro sofá felpudo, enfiado num canto da sala.
Assim que passaram, uma explosão de risos agradáveis começou no grupo
de Richard, mas ele não parecia participar da brincadeira. Os olhos dele ainda
estavam em Cassie, carregados de um sentimento não definido. Então eles
chegaram ao sofá e se sentaram; Ranjit passou seu braço casualmente sobre os
ombros dela e o coração dela inflou. Tentando tirar a expressão de Richard da
cabeça, Cassie limpou a garganta.
— Eu admito. Isso até que é legal — então baixou o tom de voz. — E estou
feliz em ver que eles estão tão chocados em te ver quanto a mim — ela cutucou
Ranjit de brincadeira.
Ele ficou vermelho e Cassie estava surpresa de ver que ele parecia um
pouco envergonhado.
— Eu acho que sim.
— Como assim? — Cassie olhou para ele intrigada.
— Depois que Jess morreu, eu mantive distância do resto dos Escolhidos. Eu
sabia que um deles devia ser o responsável, mas não sabia quem. Suspeitava de
todos eles. Eu raramente entrei no quarto comum neste último ano. Ficou meio
difícil ter amizades próximas. E eles são cautelosos comigo por outros motivos.
— Quais?
Ranjit suspirou.
55
— Os Escolhidos respeitam o poder. É como definimos a nós mesmos. E eu
sou forte, Cassie. Um dos mais fortes Escolhidos da Academia. Eu deixo as
pessoas desconfortáveis, ou com inveja.
Com um sorriso, Cassie ergueu a mão e passou os dedos pelos cabelos
negros dele.
— Você é quem diz — disse.
Ele deu um sorrisinho silencioso.
— Como eles sabem que você é tão poderoso? Como podem saber?
Ranjit olhou para ela, instigando-a.
— Você não percebe? — perguntou.
Cassie deu de ombros.
— Não.
— Tente. Olhe para os outros agora. Permita-se sentir a força deles.
Tentando não parecer óbvia, Cassie se arrumou em seu assento para que
pudesse ver o resto da sala.
— O que tenho que fazer?
— Apenas relaxe. Libere sua mente e vai acontecer.
Sentindo-se profundamente estranha, Cassie olhou com atenção para seus
colegas. Por um momento, nada aconteceu. Então, devagar, ela começou a
discernir um brilho que parecia vir de dentro de cada um deles. Uma bola de
luz que flutuava ao redor de onde estaria o coração deles.
— São lindas — ela suspirou.
— São os espíritos dos escolhidos — sussurrou Ranjit no ouvido dela. —
Quanto mais brilhante a luz, mais forte o espírito.
Algumas luzes brilhavam suavemente, outras queimavam com mais
intensidade. A luz de Cormac era suave e constante, mas a de Ayeesha era
brilhante como um refletor. A garota de Barbados devia ser muito poderosa.
Examinando o resto da sala, Cassie pôde de repente ver que a divisão dos
grupos tinha praticamente tudo a ver com poder.
56
Yusuf, que tinha o espírito quase tão brilhante quanto o de Ayeesha, estava
cercado por um trio de Escolhidos menos poderosos, como se estivessem se
apoiando nele para ter amparo e proteção. No canto oposto, um grupo de
espíritos pouco iluminados tinha se juntado, quase como se estivessem
buscando segurança no bando. Richard estava entre eles e Cassie ficou surpresa
em ver que o espírito do garoto inglês era pouco maior do que a chama de uma
vela. Estranho, ela sempre pensou que ele fosse um dos bambambãs entre os
Escolhidos...
— Agora olhe para mim — sussurrou Ranjit e seu tom carinhoso trouxe a
atenção de Cassie de volta para ele. Ela perdeu o fôlego quando viu o
deslumbrante espírito dele, que resplandecia em seu peitoral como uma estrela
cadente e eclipsava todos os outros na sala.
Ou quase todos.
Ao olhar para baixo, Cassie viu o brilho que irradiava de seu corpo pela
primeira vez — parecia tão luminoso quanto o de Ranjit, mas diferente. Ao
invés de estar concentrada em seu peito, a luz dela parecia dispersa de algum
modo. Quando ela se moveu para frente, para tocar o rosto dele, ela pôde ver
uma luz que envolvia seu braço como uma aura. Balançando a cabeça, ela
deixou a visão se dissipar.
— Eu sou diferente — ela disse baixinho.
Ranjit pegou na mão dela.
— Você é perfeita.
Cassie sentiu seu coração saltar. Ela sorriu timidamente para ele.
— Não diga isso.
— Então agora você os viu como realmente são — sorriu Ranjit. — Talvez
fosse bom conhecer alguns deles melhor. Na verdade, existem algumas pessoas
decentes entre os Escolhidos, sabe?
Ela se inclinou para frente e beijou os lábios dele maliciosamente. Alguma
coisa no olhar dele era como um ímã; ela não conseguia tirar as mãos dele.
— Eu sei que sim — ela sussurrou enfaticamente.
— Bem, se você mudar de ideia sobre isso, você já tem, pelo menos, um
pouco de afeto também pelos indecentes.
57
— Hã? — Cassie franziu a testa.
Ranjit apontou Richard com a cabeça, que estava sozinho de bobeira num
sofá de canto folheando uma National Enquirer6.
— O que você quer dizer, que eu gosto dele? — ela se afastou um pouco,
irritadinha.
— Bem, ele nunca parou de dar em cima de você, de agosto a dezembro...
— Ah, a culpa é minha, é?
Ranjit ficou tenso e, de repente, apertou um pouco os olhos.
— Não, mas você mal tirou os olhos dele desde que entramos aqui.
Ele acha que não o queremos? Queremos! Cassandra, você deve convencê-lo!
Cassie congelou com o reaparecimento da voz tão familiar dentro de sua
mente. Ao seu lado, Ranjit tirou o braço dos ombros dela quando se virou para
ficar de frente para ela.
— Admita, Cassie. É bem óbvio que ele está interessado em você. E você
gostava dele sim. Mal olhou para mim semestre passado, até você...
— Ah! — ela o interrompeu, desacreditando. — Eu gostei dele sim, até ele
me enganar, me obrigando a abrigar um maldito demônio.
E nós o agradecemos por isso, querida!
Cassie fechou bem forte os olhos por um instante, tentando ignorar as
interjeições de Estelle. Aquela mala sem alça tinha ficado quieta desde o
pesadelo, por que estava de volta agora?
Ranjit piscou os olhos rapidamente.
— Demônio? É o que você pensa? O que isso faz de mim, então?
— Ranjit, por que está agindo assim? — Cassie sibilou, virando o corpo
para confrontá-lo melhor.
Ele virou o rosto por um momento, com uma expressão furiosa, então,
depois de respirar fundo, seu olhar suavizou. Ele se aproximou e tocou o joelho
dela.
6 The National Enquirer é uma revista sensacionalista norte-americana (N. T.)
58
— Perdão, Cassie. Não quis... — Ranjit baixou o tom de voz. — Olha, me
desculpe. Talvez agora não seja um bom momento para falar disso.
Cassie olhou para a direita e para a esquerda. Depois de ter certeza de que
alguns dos sorrisinhos sarcásticos tinham retornado agora que ela e Ranjit
tinham levantado a voz um para o outro, ela entrelaçou seu braço com o de
Ranjit, hesitante.
— Ok... E se eu te perdoar?
— Ótimo. E seu eu não mencionar mais Richard Halton-Jones?
— Melhor ainda — Cassie deu um sorrisinho para ele.
Ao ficar séria, ela decidiu colocar uma pedra nisso.
— Vamos lá... O que está acontecendo hoje no universo dos Escolhidos?
— Eu acho que o plano é ver um filme. Topa?
— Sim, claro.
Assim que ela acabou de falar, um dos alunos mais velhos perto deles
levantou o controle remoto e persianas começaram a descer pelas imensas
janelas. Com um clique e um zumbido, uma tela enorme começou a descer do
teto e o projetor moderníssimo ligou.
— Tá, definitivamente o máximo — ela disse, pasma. — Talvez esse lance
de quarto comum não seja tão mau, afinal de contas.
Ao diminuir das luzes, Cassie relaxou no macio sofá de couro, tentando
esquecer a imagem do rosto de Ranjit — os olhos semicerrados e o ciúme tão
rapidamente contido. Ela nunca tinha visto esse lado dele antes. De fato, eles
tinham muito que aprender um sobre o outro. Mesmo assim, ela não estava
feliz que ele tivesse ciúmes? Por um lado era legal. Reconfortante. Teria
exagerado? Ela estava errada de ter ficado toda nervosinha com ele?
Provavelmente. Mas tinha sido apenas uma pequena discussão e ele parecia já
ter esquecido.
Suspirando, ela fechou os olhos. O escurinho aconchegante pareceu abraçá-
la e, depois de um instante, ela esqueceu o filme — esqueceu da maioria das
coisas — quando ficou concentrada em estar tão perto de Ranjit. O perfume
intoxicante que exalava da blusa dele. O subir e descer do peito dele quando
59
respirava. Sentiu seus dedos agarrarem com força os dedos dele. Se ela parasse
de analisar demais as coisas, talvez até esquecesse todas as suas preocupações...
60
Capitulo 7 Cassie falou palavrões bem baixinho e se perguntou, pela quinta vez, se
arremessar o computador por uma janela do décimo sétimo andar seria
considerado motivo de expulsão.
No início do semestre, o novo professor de ciência da computação, Sr.
Jackson, parecia ser tranquilo. Mas agora, depois de algumas semanas, ele tinha
se transformado em um monstro. O último projeto — criar uma nova seção do
site da Academia Darke — poderia ter sido divertido, além de interessante, se o
Sr. Jackson não tivesse insistido em incluir uma sequência de animações e
gráficos tão complexos. Cassie sempre foi boa em webdesign, mas ela estava farta
até de olhar para o Dreamweaver7. Os sonhos dela já eram problemáticos o
suficiente.
7 Dreamweaver é um software da Adobe usado para o desenvolvimento de sites na internet (N. R.).
61
As visitas noturnas de Estelle estavam ficando mais frequentes — três na
semana passada — e, embora o incidente dos porta-retratos derretidos não
tivesse se repetido, Cassie não conseguia parar de pensar que as duas coisas
estavam ligadas de alguma forma. Pensara em perguntar para Ranjit, mas sabia
que ele achava perturbador que Cassie pudesse ouvir Estelle e ela não queria
deixá-lo desconfortável.
Cassie suspirou, focando novamente na tela a sua frente. Talvez Jake
pudesse ajudar — o garoto parecia estar colado no seu laptop nos últimos dias,
tanto dentro como fora da classe. Ela nunca o tinha visto como um nerd dos
computadores, mas quem sabe...
Ela se levantou da cadeira de fininho e andou depressa e silenciosamente
pela sala, sem fazer barulho para evitar ser vista pelo Sr. Jackson.
— Ei, Jake, você pode...
— Cassie!
Jake quase morreu de susto. Ruborizando, ele rapidamente minimizou a
janela, mas não antes que os olhos surpresos de Cassie pudessem ler as palavras
no topo da página.
Registro dos Alunos da Academia Darke — Confidencial
— Jake, o que era aquilo? — interpelou Cassie.
— Credo, Cassie — Jake respondeu, fingindo sorrir. — Você quase me
matou.
— Você devia projetar a primeira página, não hackear o sistema de registro
da escola — Cassie suspirou incomodada quando arrancou o mouse da mão
dele. — O que está fazendo? Tentando mudar suas notas de química?
— Ei, não — protestou Jake. — Ah, Cassie... — Jake levantou as mãos para
o alto revoltado quando Cassie abriu a janela.
O estômago dela revirou. Ela se virou para Jake, mas ele estava olhando
para baixo para evitar os olhos dela.
62
— Jake, você tem ideia do problemão em que ia se meter por isso? — Cassie
disse com firmeza. — Este é o arquivo pessoal de Katerina! No que você está se
metendo?
— Deixa isso pra lá, Cassie. Não é da sua conta.
— Não é da minha conta? Ela tentou me matar, se lembra? — os olhos de
Jake flamejaram. — Sim, bem ela conseguiu matar minha irmã. Lembra disso?
Você acha que eu vou simplesmente deixar isso pra lá?
— Jake, já discutimos isso...
— Ela admitiu, Cassie! Ela nos contou que a matou e ela riu. E tudo o que
Darke fez foi expulsá-la. Isso é justo? Bem, talvez seja para os Escolhidos, mas eu
não apoio essa ideia de justiça.
Cassie sentiu um calafrio na espinha.
— Você não está pensando em ir atrás dela, está Jake? Diga que não.
— Não me faça perguntas, Cassie e, eu não mentirei para você.
— Jake, me ouça... — Cassie tentava manter sua voz o mais baixo possível.
— Prometa para mim que vai parar com isso. Por favor. Nós dois sabemos que
Katerina matou Jess, mas não há como provar, mesmo que você a encontre.
Jake suspirou amargamente.
— No momento, eu decidi apenas encontrá-la, Cassie. E é mais fácil falar do
que fazer. O endereço do arquivo fica na Suécia e eu já chequei. A família dela
vendeu a casa há um mês e partiu. Sem deixar o novo endereço.
Ela se sentiu aliviada. Com a rede de relacionamentos dos Escolhidos, com
certeza não haveria modos de Jake encontrar Katerina se ela não quisesse ser
encontrada.
— Por favor, Jake. Sei que é difícil, mas você tem que esquecer isso.
Dava para ver no olhar de Jake que ele estava desconsolado.
— Não posso, Cassie. Devo isso a Jess. Vou encontrar Katerina. Ela será
punida pelo que fez. Eu juro.
— Sr. Johnson? Srta. Bell? Não sabia que vocês estavam trabalhando juntos
nesse projeto.
63
Cassie se assustou com a voz do professor.
— Hum, não... Desculpe, Sr. Jackson, eu estava apenas perguntando para
Jake sobre editar arquivos HTML — ela disse suavemente.
— Bem, podem dizer que sou tradicional, mas acho que o comum na sala
de aula é direcionar as perguntas ao professor.
— Sim, senhor — murmurou Cassie, rangendo os dentes.
— Então, por que você não volta para seu lugar e eu vejo em que posso
ajudar?
Enquanto cruzava a sala, Cassie lançou um último olhar de suplica para
Jake, mas ele pareceu concentrado em sua própria tela. Estava determinado.
Determinado como nunca. Isso cheirava problema...
64
Capitulo 8 — Sabe, nunca tive um encontro em uma estação de trem antes — disse
Cassie.
Ranjit sorriu.
— Não sabe o que estava perdendo.
Fala sério. Cassie ficou muito contente quando Ranjit sugeriu que fizessem
juntos, um tour pela cidade um pouco mais cedo naquela tarde. Ela sentiu que a
discussão no quarto comum os havia afastado um pouco e Cassie tinha
esperanças de que a sugestão dele de passarem uma tarde a sós pudesse ser o
suficiente para mudar isso. No entanto, quando ele a levou para uma estação de
trem, ela não estava tão certa de que seria a reconciliação romântica que
esperava.
65
Por sorte, não demorou muito para ela mudar de ideia quando Ranjit a
conduziu ao Oyster Bar8. Mesmo com pouca experiência nesses assuntos, Cassie
teve uma gota de esperança de que os crustáceos pudessem propiciar um fim
de tarde afrodisíaco...
— Bom, né? — Ranjit olhou sob seus cílios longos e escuros e sorriu.
Quando ele olhou de volta para seu caro prato de frutos do mar, Cassie deu
uma olhada para as outras pessoas que jantavam. As três mulheres na mesa ao
lado estavam animadas, rindo por causa de alguma fofoca interessante. Ela
olhava para a boca das mulheres, cheirava delicadamente o perfume do hálito
delas. Suas áureas alegres eram quase mais atraentes do que as ostras, mas ela
não estava com medo de atacá-las. Ainda não. Dentro dela, a fome estava
silenciada. As Lágrimas dos Escolhidos ainda estavam fazendo efeito, graças a
Deus. Ela ainda tinha tempo.
— Você está bem, não é? — Ranjit perguntou, estendendo uma das mãos
para tocar a dela.
Ela se arrepiou.
— Totalmente.
Como se fosse para comprovar, ela engoliu outra ostra e se inclinou para
trás em sua cadeira, satisfeita. O teto sobre ela era maravilhoso: abobadado e
azulejado — e brilhante por causa da iluminação.
— Que lugar lindo.
— Sei que isso soa estranho, mas o terminal principal é ainda mais bonito
— ele riu. — Satisfeita? Vou pedir a conta e podemos subir.
Deixando o guardanapo sobre a toalha de mesa xadrez, ele fez sinal com a
cabeça para um garçom. Entregando um cartão de crédito preto e lustroso, ele
pagou sem checar o valor. Cassie deu um sorrisinho, apenas para si mesma. A
riqueza casual dos alunos da Academia Darke nunca parava de surpreendê-la.
Ranjit contornou a mesa e a ajudou a vestir o casaco, ela sorriu quando ele
colocou a mão sobre seus ombros por um segundo a mais do que o necessário.
— Ei, está tudo bem entre você e Jake?
8 Grand Central Oyster Bar & Restaurant é um restaurante de frutos do mar que fica na Grand Central
Station, em Nova York (N.T.).
66
Cassie hesitou, surpresa pela pergunta e ficou na defensiva depois do que
tinha acontecido quando ele trouxe Richard à tona.
— Sim. Por que não estaria?
— Sei lá. Eu só não o tenho visto mais andando com você como antes. Eu
sei que ele não está exatamente empolgado com a ideia de estarmos juntos. E
depois do que houve com Jess, eu posso imaginar que ele não esteja feliz com o
fato de você se alimentar de Isabella também.
Cassie xingou mentalmente a perspicácia de Ranjit. Jake estava de fato
mantendo distância desde o “papo” deles na aula de ciência da computação.
Mas quanto mais ela poderia contar para Ranjit? Ela não estava pronta para
deixar outra pessoa saber sobre a campanha solitária de Jake em fazer justiça
com Katerina, isso era certo. Ela ganhou um pouco de tempo enquanto enrolava
seu cachecol cuidadosamente. Por fim, sorriu arrependida para Ranjit.
— Sim, você tem razão. As coisas ficaram um pouco... Tensas. Mas na
verdade, ele ainda não sabe do assunto da alimentação.
Ele ergueu as sobrancelhas.
— Sério? Bem, talvez seja melhor assim. Mas por quanto tempo você acha
que consegue esconder isso dele? Jake não é burro.
— Eu sei — Cassie fez uma cara triste. — Mas nós ainda não fizemos nada,
então não é como se nós estivéssemos mentindo. E Isabella não quer que ele
saiba mesmo, de jeito nenhum.
— Sim. Eu acredito nisso — disse Ranjit. — Ainda assim, você tem uma
amiga realmente incrível.
— Ela é muito corajosa — Cassie respondeu baixinho. — Mais corajosa do
que eu seria. De qualquer forma, eu tenho uma hora marcada com Sir Alric
amanhã. Isabella e eu. Ele vai nos dar nosso primeiro... Hã, treinamento.
— Bom. Será muito mais fácil para você se acostumar com a ideia de ser
uma de nós quando estiver mais confiante para se alimentar.
Ela se mexeu desconfortável com a escolha de palavras.
— Uma de nós.
67
O lembrete de que Ranjit era tão membro dos Escolhidos quanto as sinistras
figuras escondidas na sombra, encapuzadas, durante seu ritual. Ele tinha falado
um pouco sobre a natureza obscura do espírito dentro dele, do “conflito de
personalidade” entre eles — um espírito mal em uma pessoa boa. Como Cassie
e Estelle, talvez. Será que ela estava se apaixonando por um monstro? E ele
estava?
Claro que não, querida...
Cassie ficou tensa. Enquanto eles subiam as escadas, Ranjit sentiu o
desconforto dela.
— Cassie... Sei que as coisas estão um pouco diferentes para você e que vai
levar um tempo para se acostumar, mas, eu juro, não é tão ruim.
— É fácil para você dizer, seu espírito não fica interrompendo seus
pensamentos de tempos em tempos — ela se voltou para ele e deu um
sorrisinho discreto, mas não conseguiu sustentá-lo. Ela olhou para baixo, de
repente. — Quero dizer, você tem um sentimento de unidade, mesmo que tenha
de lutar com sua natureza. Eu sou uma estranha mesmo no meio de estranhos.
E não sou como nenhum de vocês. Vocês são todos ricos, delicados,
privilegiados. Eu sou uma bolsista, pelo amor de Deus, acima de qualquer outra
coisa... — ela se calou e parou no topo da escada, respirando fundo.
As pessoas esbarravam de leve neles enquanto estavam em pé olhando um
para o outro. Ranjit esticou os braços e segurou as duas mãos dela.
— Você... — ele se inclinou em direção a ela. — Precisa parar de se
preocupar tanto. Eu posso não ser capaz de conversar com meu espírito, mas eu
ainda estou do seu lado. Eu tenho uma ideia sim, do que você está passando.
Acredite ou não, eu não estou nessa vida a passeio, apesar do que você possa
achar.
Ele parecia tentar confortá-la, mas havia certa falta de convicção na voz
dele. Ele parou por um momento, apertando seus olhos como se tentasse
reprimir um pensamento. Sem abri-los, os lábios dele tocaram os dela. Depois
do que pareceu uma eternidade, ele se afastou. Um pequeno choramingo
escapou da boca de Cassie. Ou foi apenas dentro da cabeça dela?
Finalmente, sem palavras, ele segurou a mão dela e a conduziu descendo a
escada. Por um instante, todos os pensamentos sobre os problemas deles saíram
da cabeça dela quando pararam.
68
— Oh, uau! — Cassie respirou.
Eles estavam em pé no saguão principal da Grand Central Station, sob seu
icônico relógio. Em torno deles, trabalhadores e turistas se locomoviam como
um enxame de abelhas dentro do enorme espaço, mas ela apenas olhava para as
colossais janelas arqueadas, o elegante trabalho em pedra e, acima de tudo, o
teto pintado era extravagantemente bonito. Uma vez que sua atenção estava
presa, ela não conseguia desviá-la. Ela se virou, tonta de tanto olhar para cima.
— É o zodíaco.
— Sim — Ranjit estava com a mão no cotovelo dela, apoiando-a. — Pintado
no sentido errado. Viu?
— Eu não saberia isso. É mesmo?
— Por engano, sim. A família Vanderbilt se encarregou do trabalho no
início do século passado. Quando o erro foi apontado, eles disseram que tinha
sido de propósito. Eles disseram que era como se estivesse olhando as estrelas
por cima. A visão de Deus.
Lentamente, Cassie se virou de novo, assimilando a informação.
— Gosto disso — ela murmurou. — A visão de Deus. Bem apropriado.
— Muito bem, Cassie Bell. Então agora nos já passamos pelo desconforto do
primeiro encontro...
— Hã? — desconforto era apropriado.
— Por favor, posso sair com você de novo? — as palavras dele saíram
apressadamente. — O que acha? — o sorriso tímido dele acabou com ela. — No
Dia dos Namorados?
Cassie tomou fôlego. Ela nunca tinha tido um encontro de Dia dos
Namorados antes. Na verdade, se não fosse pelos displays de corações e flores
na frente de todas as lojas, ela teria esquecido que a data estava se
aproximando.
— Ok — ela disse devagar, sentindo calor de repente.
Ele ergueu uma sobrancelha e a falsa expressão de ultraje no rosto dele a fez
cair na gargalhada.
— Desculpe. Sim. Sim, eu adoraria.
69
— Maravilha! — o sorriso dele iluminou todo seu rosto, fazendo com que
ele parecesse totalmente diferente. Cassie não pode evitar o desejo de que
pudesse deixá-lo daquele jeito mais vezes.
— Então eu posso perguntar aonde vamos?
— Não, de jeito nenhum. É surpresa.
— Ótimo — ela apertou o braço dele maliciosamente. — É como se eu não
tivesse tido surpresas o suficiente.
— Ha, ha. Ei, ainda é bem cedo. Quer dar uma olhada nos trens?
Ela escorregou sua mão até a dele enquanto caminhavam no meio da
multidão apressada.
— Então, o que temos aqui? Thomas? Percy? O Expresso Hogwarts?
Ele riu e apertou os dedos dela.
— Trens suburbanos do Metro-North9. Mas nunca se sabe. Mantenha seus
olhos bem abertos.
Eles caminharam devagar, olhando os milhares de nova-iorquinos e
turistas. Ela aproveitou o momento para desfrutar da companhia de Ranjit, sem
estar com pressa de ir para outro lugar.
— É como uma dança. Como será que essas pessoas nunca esbarram umas
nas outras?
— Nunca pensei nisso dessa forma. Você está certa, é bem impressionante.
O que mais podemos fazer aqui? Você quer dar uma olhada nas lojas?
— Ah! Já faço isso demais com Isabella! — Cassie riu ao mesmo tempo em
que um trem de partida apitou.
— Confesso que é um alívio.
Soltando a mão de Ranjit, Cassie deu um passo para trás e olhou para cima,
esticando o pescoço.
— Quem diria que uma estação de trem pudesse ser tão divertida?
9 A Metro-North Commuter Railroad Company, mais conhecida como Metro-North, é o sistema sobre
trilhos que atende a zona norte da região metropolitana de Nova York. Seus trens convergem na Grand Central (N.T.).
70
— Bem, você sabe, eles quase a demoliram... CASSIE!
Do nada, uma pessoa que estava correndo em direção ao trem que ia partir
esbarrou com o ombro empurrando Cassie com violência para o lado.
Totalmente surpreendida, ela tropeçou com um grito de espanto.
Ela estava ciente de que um trem se aproximava, do barulho ensurdecedor
enquanto cambaleava na beirada da plataforma e do som agudo do que poderia
ser um apito ou uma pessoa assustada que assistia a cena. Os braços dela se
debatiam loucamente no ar enquanto ela caía na direção dos trilhos.
Então, Ranjit a segurou com força, arrastou-a com mãos de ferro para um
lugar seguro. Quando ele agarrou o pulso dela e finalmente a puxou, ela sentiu
o vento do trem que passava em seus cabelos, a plataforma sólida debaixo de
seus pés e a força dos braços de Ranjit que a envolviam.
— Está tudo bem. Ela está bem. Obrigado — pálido de susto, ele acenou
para algumas pessoas que passavam e em segundos eles estavam sozinhos, a
multidão passando por eles outra vez. Cassie conseguia sentir os músculos dele
tremendo debaixo do casaco.
— Obrigada, Sir Galahad10 — ela disse com a voz trêmula.
— Nossa, essa foi por pouco — Ranjit a abraçou mais forte. — Quem foi o
idiota?
— Sei lá. Malditos nova-iorquinos. Atrasado para uma reunião, aposto —
Cassie conseguiu soltar um riso.
O trem em que a pessoa tinha entrado estava partindo. Ranjit deu uma
última olhada, então abraçou Cassie novamente.
— Você tem certeza de que está bem?
— Sim. Sério mesmo — ela tremia e ele apertou mais o casaco dela.
— Quer saber? Acho que já visitamos lugares demais por hoje.
— Concordo. Estações de trem, hein? Divertidas, mas perigosas também —
ela sorriu trêmula. — Vamos voltar.
10
Segundo a lenda, Os Cavaleiros da Távola Redonda foram os homens premiados com a mais alta ordem da Cavalaria na corte do Rei Artur, no Cicio Arturiano. Galahad, filho de Lancelot e considerado o mais puro dos cavaleiros, foi quem conseguiu achar o Santo Graal (N.T.).
71
Capitulo 9 Cassie não dormiu bem aquela noite. Toda vez que começava a pegar no
sono, ainda sentia o vento do trem, ouvia o agudo do seu apito. E nos cochilos
conturbados, não havia mãos para pegá-la e puxá-la de volta; ao invés disso, ela
caía, puxando Ranjit com ela. Nos sonhos, ela apenas continuava caindo,
caindo, com a voz de Estelle soando em seus ouvidos...
Mais uma vez ela acordou assustada, respirando de modo ofegante. Ainda
era noite lá fora, mas ela tateou procurando o relógio e tentou ver as horas, com
dificuldade, usando o fraco brilho da cidade. Ela gemeu. Sentindo-se
extremamente impossibilitada de dormir, sacudiu os pés para fora da cama por
medo de cochilar mais uma vez. Isso seria típico.
— Hora de levantar. Ei, parceira. Acorda, acorda.
Isabella continuou roncando até que Cassie a esmurrou e então ela tentou se
embrenhar nas cobertas novamente.
72
— Cassie, não...
— Cassie, sim. Levanta, garota. Nós temos que encontrar Sir Alric, lembra?
— Amanhã. Isso pode esperar até amanhã...
— Já é amanhã, Isabella!
Finalmente, Cassie recorreu ao truque testado e aprovado de arrastá-la da
cama pelos tornozelos. Isabella só acordou de verdade quando seus pés
tocaram o chão. Mal-humorada e sonolenta, ela abriu os olhos com dificuldade,
olhando para Cassie sob sua juba embaraçada e então tirou o cabelo de seus
olhos.
— Oh, sim. Claro. Desculpe. Temos um horário marcado, não é?
Quando ambas estavam vestidas e iam em direção ao escritório de Sir Alric,
Isabella parecia irritantemente quase tão leve e solta quanto de costume. Se ela
estava tensa, disfarçava muito bem. Cassie era quem se sentia pesada de
cansaço e a beira de um ataque de nervos.
Ao levantar uma das mãos para bater na porta, esta se abriu. Cassie
reconheceu o sorridente garoto dos Escolhidos que estava saindo do escritório.
— Oi, Paco. Oi, Louis — Isabella sorriu para o colega de quarto atrás dele.
— Bom dia! — Paco parecia animado demais àquela hora do dia. Os olhos
dele brilhavam consideravelmente e ele irradiava energia. Louis, no entanto,
estava bocejando. Ele sorriu sonolento para Cassie e Isabella.
— Você também, hein? — ele esfregou os olhos e sacudiu a cabeça.
— O quê? — disse Cassie.
— Aula extra de latim a essa hora. Um saco, né?
Cassie conseguiu apenas dar um sorrisinho e concordar com a cabeça, mas
não pôde deixar de notar a piscadinha secreta de Paco, direcionada
exclusivamente a ela. Ela o ignorou quando Sir Alric as chamou para dentro do
escritório e a porta fechou na cara dos garotos.
— Cassandra. Isabella — ele sorriu de maneira reconfortante para ambas.
— Obrigado por virem.
— Não era exatamente opcional, era? — Cassie pontuou friamente.
73
Sir Alric riu brevemente.
— Isabella, seja bem-vinda. Cassandra me disse que conversou com você
sobre... As necessidades especiais dela. E que você concordou em se tornar sua
fonte vital. Posso considerar que você ainda esteja certa de sua decisão?
Isabella sorriu com firmeza.
— É claro.
— Não são muitas as pessoas que têm o privilégio de escolher quanto a isso
— disse Sir Alric de modo sério. — Como você sabe, a maioria dos colegas de
quarto não sabem da verdadeira natureza dos Escolhidos.
— Sim, Louis, por exemplo? — Isabella pontuou, erguendo uma
sobrancelha em sinal de desaprovação. — Ele não sabe que Paco está se
alimentando dele?
— Não, ele não sabe. Mas me deixe assegurá-la de que independentemente
de a fonte vital estar ciente ou não do que acontece, se for feito do jeito certo, o
processo de alimentação é totalmente inofensivo — Sir Alric apontou para duas
cadeiras de couro escuro. — Por favor, sentem-se, as duas, e farei o possível
para responder quaisquer dúvidas antes de começarmos.
Ele se sentou de frente para elas, cruzando uma longa perna sobre a outra e
observou-as esperançosamente. O coração de Cassie disparou; ela nem sabia
por onde começar. Deu uma olhada em Isabella, mas ela parecia, súbita e
atipicamente, estar tão sem palavras quanto Cassie. Sir Alric quebrou o silêncio.
— Bem, em primeiro lugar talvez seja interessante que as duas pensem
nessas sessões da mesma maneira que pensam em suas outras aulas. O que
queremos obter aqui é um dos objetivos principais da Academia; preparar
nossos alunos para a vida fora destas paredes sagradas. Na verdade, vocês até
poderiam pensar na Academia como um campo de treinamento para todo tipo
de coisa.
— Campo de treinamento? — Cassie arriscou.
— Sim. Como você já sabe, selecionamos aqui na Academia Darke alunos
que acreditamos ter o potencial para serem hospedeiros adequados aos
Escolhidos. O ambiente acadêmico proporciona aos Escolhidos a oportunidade de
obter as habilidades e conexões pessoais necessárias para que se tornem líderes
da sociedade.
74
— E o resto dos alunos daqui são os lanchinhos? — Cassie estava ficando
menos certa dessa ideia naquele momento.
— Os outros alunos — continuou Sir Alric, sereno — têm um papel vital em
nosso mundo. E, por consequência, no mundo como um todo. Por estarem à
disposição, doarem sua energia vital, eles ajudam a nutrir nossos futuros
líderes, artistas e cientistas. E, em troca eles são beneficiários de uma
incomparável educação de excelência internacional que irá sustentá-los em
posições vantajosas em suas próprias vidas.
Cassie deixou escapar um riso melancólico.
— Vital para a humanidade...? — ela começou, mas Isabella se inclinou para
frente e levantou a mão.
— Mas por que têm que fazer isso sem nosso consentimento? E por que
cada um dos Escolhidos tem que se alimentar do seu próprio colega de quarto,
em particular? — ela perguntou, com uma expressão que era um misto de
curiosidade e preocupação.
Sir Alric juntou as mãos e começou outra vez cuidadosamente.
— Ao longo dos anos, descobrimos que o sigilo e a melhor tática. Nem todo
mundo aceitaria os Escolhidos como você fez, Isabella. Se o mundo soubesse a
verdade sobre nós, sobre nossos poderes e habilidades e o que precisamos fazer
para mantê-los, quanto tempo acha que levaria até sermos tachados de
monstros? Temidos e perseguidos onde quer que fôssemos? Não. Há segurança
no sigilo e é por essa razão que a maior parte dos membros dos Escolhidos
prefere que seus colegas de quarto não saibam o que acontece a eles.
Isabella fez “não” com a cabeça.
— Quanto a insistirmos para que cada membro dos Escolhidos apenas se
alimente de seu colega de quarto — continuou Sir Alric —, se os Escolhidos
tivessem permissão de se alimentar aleatoriamente, haveria o risco de um aluno
ser usado como fonte vital por mais de um dos Escolhidos, perdendo muito de
sua energia vital. E quando isso acontece é que se alimentar pode ser perigoso.
Mas se cada membro dos Escolhidos se alimentar apenas de seu colega de
quarto, esse perigo é evitado. É uma mera precaução, outra amostra de como
levamos a sério a segurança de vocês.
Cassie estava balançando a cabeça.
75
— Algum problema, Cassandra?
— Você faz parecer tão fácil. Mas e quanto a Keiko e Alice? E quanto ao que
aconteceu com Jess, hein? E quanto ao Escolhido que decide não seguir mais as
regras do seu assim chamado método? — ela quase cuspiu a última palavra.
— Em qualquer sociedade há aqueles que se desvirtuam do caminho das
leis. Quando isso acontece, eles são punidos.
Cassie riu incrédula. As palavras furiosas de Jake na aula de ciência da
computação ecoaram em seus pensamentos.
— Então Katerina foi punida por ter matado a irmã de Jake sendo expulsa?
Pode me chamar de irracional, mas nesse caso a punição não parece
proporcional ao crime.
Sir Alric descruzou as pernas e se levantou, endurecendo sua expressão.
Cassie sentiu uma pontada de medo junto a sua raiva e tensão.
— Entendo o que sente, Cassandra, mas nós não estamos aqui para discutir
Katerina Svensson. A punição dela foi decidida por poderes além da sua
compreensão e do meu controle. O que é mais importante agora é que você
receba treinamento adequado para se alimentar e que seja monitorada para
garantir que não cometa os mesmos erros que ela — o tom de Sir Alric soava
como uma conclusão definitiva. O tempo para as perguntas estava encerrado.
— Eu tenho outra reunião daqui a pouco, então devemos começar. Isabella, por
favor, venha até aqui — Sir Alric apontou um lugar de frente para ele. — E você
aqui, Cassandra.
Cassie assumiu a posição indicada de frente para Isabella, com as palmas da
mão suando. Isabella dava risadinhas de nervoso e fez um biquinho.
Sir Alric arqueou uma sobrancelha perfeita.
— O que está fazendo, Srta. Caruso?
Isabella olhou constrangida para Cassie e Sir Alric.
— Cassie disse que quando Keiko se alimentava de Alice era como se a
estivesse beijando. Então, eu pensei...
— O método de Keiko não é o modo pelo qual recomendamos que seja feito
esse processo. Ela tinha propensão à crueldade e a decisão dela de se alimentar
76
dessa maneira apenas refletia essa propensão. A alimentação boca a boca é mais
poderosa, mas também mais prejudicial.
— Ufa! Finalmente boas notícias! — Cassie conseguiu dar um sorrisinho. —
Sem ofensas, Isabella, mas você não é bem o meu tipo.
— Sem problemas, querida — Isabella respondeu, com uma piscadinha.
Sir Alric também sorriu e chacoalhou a cabeça.
— Não vamos nos precipitar. Cassandra segure os pulsos de Isabella, desse
jeito... — ele demonstrou, envolvendo com firmeza, com seu dedão e seu dedo
indicador, os pulsos de Cassie. Ela se aproximou e fez como ele dissera,
mexendo os pés desconfortavelmente.
— Até agora tudo bem — disse Isabella, encorajando Cassie com um aceno
de cabeça.
— Um pouco mais forte — disse Sir Alric abruptamente. Cassie apertou
mais os pulsos de Isabella, observando sua colega de quarto com atenção. Ela
podia sentir a pulsação de Isabella sob seus polegares. Sir Alric continuou.
— Agora, você deve pensar o tempo todo, Cassandra. Pense no que você
está fazendo, na importância disso. Pense tanto em Isabella quanto em você.
Nunca deixe acionar o piloto automático; é aí que você perde o controle.
Comece devagar. Está entendendo?
Ela confirmou com a cabeça, engolindo seco.
— Agora, Isabella, isso pode parecer um pouco diferente — disse Sir Alric,
com a voz calma e no mesmo tom. — Mas eu estou aqui. Você tem minha
palavra de que não ira se machucar.
— Tá — disse Isabella, parecendo desconfortável.
— Tem certeza de que quer continuar com isso? — perguntou Cassie.
— Certeza. Sério, Cassie. Confio em você.
— Sim, mas eu não tenho certeza de que confio em mim mesma — Cassie
murmurou, com a mente em Cranlake Crescent no momento em que atacou
Patrick.
— Então vou confiar em você por nós duas — o sorriso de Isabella era
vacilante, mas sua voz estava firme.
77
— Bem — disse Alric, colocando uma das mãos sobre o ombro de Cassie. —
Fechem os olhos — ele parou. — Agora, Cassandra. Respire fundo e tente
relaxar.
Cassie fez o que ele dissera, mas nada parecia acontecer.
— Mais uma vez. Concentre-se.
A voz de Sir Alric começou a desaparecer enquanto Cassie respirou fundo
uma segunda vez. Dessa vez houve uma mudança. Quando ela soltou o ar, seus
sentidos pareciam de alguma forma ter sido aguçados. Por baixo das pontas de
seus dedos, o pulso de Isabella estava golpeando, disparado. Ela conseguia
sentir a energia vital fluindo pelas veias de sua colega de quarto.
— Aí está — murmurou Sir Alric.
Agora Cassie pode sentir uma sensação de formigamento por toda sua pele,
um zumbido em sua cabeça, um brilho reluzente por trás de suas pálpebras. Ela
estava ao mesmo tempo com a cabeça vazia e totalmente, completamente alerta,
e ela se deu conta de que ainda estava inalando, seus pulmões não pareciam
nem perto de estar cheios.
— Concentrem-se — outra vez a voz de Sir Alric sobre o zumbido em sua
cabeça.
Cassie lentamente abriu seus olhos, ainda inspirando, com os dedos
enrolados com firmeza nos pulsos finos de Isabella. Piscando, ela notou que os
olhos de Isabella estavam bem apertados e que a boca dela estava ligeiramente
aberta, emitindo um suspiro quase imperceptível de seus lábios e Cassie
instintivamente sabia que o infinito fluxo de ar saindo de sua amiga e entrando
nela era a energia vital da qual ela precisava. Preenchendo-a de força...
Sim, minha querida! Isso mesmo! Me alimente, Cassandra.
Com o barulho do que parecia ser falta de ar, Cassie largou os pulsos de
Isabella e deu um passo para trás. Os olhos de Isabella se abriram devagar e ela
tossiu, esfregando os olhos como se tentasse acordar de um sono profundo. O
coração de Cassie estava disparado, não apenas descompassado pelo que ela
estava fazendo, ou pela reaparição da voz de Estelle, mas pelo imenso, quase
irresistível sopro de vitalidade. Ela nunca tinha se sentido mais viva. Era como
se seus sentidos estivessem todos hiperaguçados.
— Sim. Bom controle, Cassandra — disse Sir Alric.
78
Cassie pulou, quase surpresa por perceber que ele ainda estava ao lado
delas.
— Muito bem, vocês duas.
Cassie se voltou para Isabella com hesitação.
— Você está bem?
Isabella parou, então deixou escapar uma risadinha.
— É isso? — com a voz inundada de incredulidade.
— Isabella? Você tem certeza de que está...
— Estou absolutamente bem — disse Isabella. Ela olhou para Cassie e
sorriu, então entrelaçou sua amiga em seus braços em um forte abraço. — Viu,
eu te disse, Cassie Bell. Não havia motivo para todo aquele estardalhaço! Sem
problemas.
Cassie sacudiu a cabeça, com uma ponta de dúvida ainda em seu
pensamento.
— Sim. Isso foi... Eu acho que foi menos complicado do que eu esperava.
Ainda assim, não sei se é algo que gostaria de fazer regularmente — ela estava
um pouco tonta.
— Alimentar-se regularmente é uma obrigação, Cassie — disse Sir Alric,
sério. — Como você viu, se for feito corretamente, é um procedimento simples e
inofensivo. Mas se esperar muito, se ficar com muita fome, é aí que pode
cometer erros e perder o controle. E é então que as pessoas se machucam — ele
andou em direção à porta e colocou a mão na maçaneta. — Por um momento, as
Lágrimas dos Escolhidos vão ajudá-la a se sustentar. Conforme o efeito delas se
prolongar, você não precisará se alimentar com a mesma frequência que os
outros Escolhidos. Você foi bem hoje, mas assim que sentir a fome crescendo,
Cassandra, você deve me avisar e nos veremos de novo — Sir Alric Darke abriu
a porta. — Até lá...
79
Capitulo 10 — Estou ridícula.
— Não está, não. Está linda!
Cassie e Isabella estavam em pé em frente ao guarda-roupa espelhado,
Isabella absolutamente elegante em jeans, botas de couro e cashmere vermelho,
Cassie alisando e puxando compulsivamente a seda verde-escura do vestido
emprestado.
— Você não gosta? Não gosta do meu vestido?
— Isabella, eu adoro o vestido. É o que está dentro dele que parece uma
idiota.
— Ahhh! Você é cega e burra — Isabella jogou o cabelo. — Estou
deslumbrante querida e você parece duas vezes melhor do que eu. Claro que eu
gosto de pensar que sou pelo menos um pouquinho responsável por isso.
80
Cassie sorriu. As coisas entre Isabella e ela estavam surpreendentemente
normais desde a aula para se alimentar, para alívio de Cassie. Ainda assim, não
importava o que Sir Alric tivesse dito, ela planejava estender o prazo pelo
máximo de tempo que pudesse antes de fazer sua amiga — e ela mesma —
passar por essa estranha experiência de novo.
Ela piscou para sua imagem no espelho. Seu cabelo castanho-claro tinha
recebido um bom corte; outra cortesia de Isabella: como ela poderia pagar a
garota por essa generosidade e pelas outras? Agora na moda e bem tratado, o
cabelo tinha um brilho acetinado. Isabella tinha jogado todas as sombras e os
batons velhos, duros e quebrados no lixo e tinha feito algum tipo de mágica
com seu próprio kit de maquiagem extremamente caro. Olhar no espelho era
como olhar para uma pessoa diferente — uma versão nova e muito mais bonita
de si mesma. Ela riu com sarcasmo ao ver sua imagem e, outra vez, puxou o
vestido desconfortavelmente.
Isabella estava certa de uma coisa: tinha emagrecido demais; um espírito
invasor e um trauma subsequente fariam isso a qualquer garota. Mas a cor do
tecido destacava mesmo seus olhos. O contraste com o rico verde-escuro fazia
suas íris amarelo-esverdeadas parecerem brilhantemente claras e penetrantes.
Sua amiga suspirou exageradamente.
— Confie em mim, você está incrível, Ok? Agora calce seu Jimmy Choos11.
Você vai comemorar com seu namorado!
— Calce seus Jimmy Choos, quer dizer — observou Cassie baixinho, mas ela
sentiu uma empolgação com o glamour quando escorregou os pés para dentro
dos sapatos de salto. — Será que vou conseguir andar?
— Com estes sapatos você não anda, Cassie, desfila.
— Claro, como você disser. Eu só queria saber aonde vou vestida assim. Eu
queria ir para Coney Island com vocês.
Talvez ela até tivesse uma chance de conversar com Jake sobre as atividades
extracurriculares dele. Jake ainda estava evitando ficar sozinho com Cassie e ela
estava certa de que era para que ela não pudesse pressioná-lo a desistir da caça
à Katerina.
11
Jimmy é um premiado designer de sapatos nascido na Malásia. Atualmente, trabalha em Londres e se tornou conhecido mundialmente por produzir sapatos femininos feitos a mão (N.T.).
81
— Não seja boba, seu encontro será muito chique — Isabella chacoalhou a
cabeça e suspirou. — Embora o meu seja romântico, não é? Jake e eu vamos
caminhar pelo calçadão de braços dados. Vamos comer cachorro-quente no
Nathan's Famous12. Talvez demos uma volta no Cyclone13.
— Uh-hum, daí você terá uma desculpa para gritar e agarrar o pescoço dele.
Isabella deu um sorriso sugestivo.
— Para que mais serve uma montanha-russa? Hã! — ela emitiu um som
agudo de alegria quando ouviu alguém batendo na porta do quarto delas. — Aí
está ele!
Para falar a verdade, lá estavam os dois, embora obviamente eles não
tivessem planejado chegar ao mesmo tempo. Ranjit e Jake estavam sem graça,
mantendo a maior distância possível — a linguagem corporal deles gritava o
incômodo. Quando Isabella abriu a porta, o alívio que sentiram foi
indisfarçável.
— Oi, linda — a expressão rígida de Jake se derreteu em um enorme sorriso
quando ele abraçou e girou Isabella. — Você está maravilhosa!
— Não pareça tão surpreso! — ela o beijou sem vergonha de parecer
entusiasmada. — Devemos ir e nos comportar como turistas?
— Estou louco para ser um turista em minha própria cidade. Mesmo que eu
não possa te levar a um lugar caro — ele resmungou, olhando de relance com
certo pesar para o smoking de Ranjit.
— Ei! Estar com você não tem preço! — Isabella deu um soco no braço dele.
Nesse meio tempo, Cassie percebeu que não conseguia olhar nos olhos de
Ranjit. Ela apertou os dedos a fim de parar de ficar mexendo em seu vestido.
Oh, Deus. E se ela tivesse entendido tudo errado? E se ele tivesse vergonha de ser visto
com ela? E se...
No entanto, os sapatos dele estavam bem ali, então, tinha que olhar para
cima e sorrir. Foi quando ela soube que daria tudo certo. A expressão dele era
de alguém surpreendentemente pasmo e havia até um leve rubor nas bochechas
escuras dele.
12
Nathan's é um tradicional restaurante que serve cachorro-quente e fast food na Coney Island (N. T.). 13
Cyclone, ou The Coney Island Cyclone, é uma tradicional montanha-russa de Nova York feita de aço e madeira (N.T.).
82
— Cassie — ele respirou fundo e timidamente ofereceu a ela uma rosa
amarela. — Você está... Linda.
— Você também — ela deixou escapar antes que pudesse perceber. Mas era
verdade. O smoking devia ter sido feito a mão sob medida para ele,
perfeitamente ajustado ao seu corpo esguio. Ela podia jurar que conseguia ver
as linhas dos músculos dele por baixo do caro tecido.
— Bem, vocês... — Jake estava segurando firme a mão de Isabella, hesitante
na porta do quarto e claramente desesperado para sair. — Divirtam-se.
Ranjit limpou a garganta.
— Vocês também. Aproveitem.
Isabella estava contendo o riso.
— Feliz Dia dos Namorados — ela disse para Cassie mexendo os lábios sem
emitir som. Jake a estava puxando para fora do quarto, a porta fechou e eles se
foram.
Ranjit soltou um suspiro de alívio e Cassie deu uma risadinha.
— Cassandra Bell — ele sorriu —, vamos dar o fora daqui.
Não era longe de táxi, mas Ranjit insistiu que eles não podiam andar — não
com aqueles sapatos maravilhosos — embora Cassie quisesse apreciar o ar
fresco do inverno. Ela só percebeu que eles tinham hora para chegar quando o
táxi virou a esquina na 57th Street com a 7th Avenue.
— Ah, meu Deus — ela soltou quando desceu do táxi. — Estou no Carnegie
Hall14.
— Como se chega ao Carnegie Hall? — sorriu Ranjit. — Prática, prática...
Ela riu enquanto pegava no braço dele.
— Essa piada foi péssima.
— É uma piada muito antiga — ele deu uma olhada no relógio. — É melhor
sentarmos em nossos lugares. Vamos.
14
O Carnegie Hall é uma sala de espetáculos localizada em Midtown Manhattan, na cidade de Nova York (N. R.).
83
Cassie teria ficado feliz de se sentar atrás do pilar na fileira de trás do
mezanino, mas eles foram conduzidos a um camarote no primeiro andar, bem
na frente e com vista direta para o palco. Era uma posição tão exposta que ela
teria se sentido bem inibida se não fosse pela reconfortante mão de Ranjit sobre
a sua.
Então, a cortina subiu e ela foi levada pela música instantaneamente.
Engraçado, ela nunca tinha ouvido qualquer música de Richard Strauss em toda
sua vida — no máximo uma nota de Tchaikovsky ou Beethoven —, mas
imediatamente a música parecia pertencer só a ela. Encantada, ela mal se dava
conta dos olhares de Ranjit em sua direção, mas seus sentidos se aguçaram
demais quando as pontas dos dedos de Ranjit tocaram a mão dela.
Insanamente, lágrimas brotaram em seus olhos e ela piscou para limpá-las.
Seria estúpido chorar quando ela se sentia mais feliz do que nunca.
Ainda assim, muitos sentimentos estavam tomando vida. Ela não podia
fazer nada para evitar e, ela não queria evitar. Estava extremamente consciente
de tudo: do calor da mão de Ranjit e da picada aguda da resposta de seus
neurônios; da música, extasiando seu cérebro e suas emoções, cada instrumento
soava distintamente em sua cabeça, mas todos harmoniosos entre si. Ela podia
sentir o calor e o perfume da plateia, respirando para dentro e para fora,
algumas pessoas ocasionalmente prendendo a respiração até que a música as
fizesse soltar o ar em uma exalação apressada. Ela podia ouvir a música: a
respiração, o som da seda e o eventual rangido de um sapato de couro, o
rangido de alguém se mexendo na cadeira; o arranhão do arco sobre as cordas,
o sussurro brando de uma página de partitura sendo virada. Então, era
inevitável que ela sentisse um olhar direcionado a ela.
Ela estava sendo observada. Percebeu isso de repente. Sua testa formigava
com o olhar fixo e pela primeira vez ela esqueceu a orquestra, esqueceu o
estrondo retumbante da música. Quando ela levantou o olhar, ela sabia a
direção exata e encontrou seu observador imediatamente.
O choque a abateu de tal forma que ela ficou sem ar. Do outro lado do
auditório, no camarote oposto ao deles, quatro garotas estavam sentadas. Ela
conhecia todas: três alunas do Liceu da Academia, todas membros dos
Escolhidos. A arrogante Sara entre elas; Cassie não sabia o nome das outras duas,
uma de cada lado; apenas que elas nunca tinham sido amigáveis.
Mas o quarto rosto era um que ela conhecia muito bem. Pálido e adorável,
frio como o Ártico, mas reluzente de beleza. Uma rainha de gelo, uma loira de
84
Hitchcock. Perfeita em todos os sentidos — exceto pela cicatriz que cruzava sua
bochecha esquerda.
Cassie sentiu os dedos de Ranjit apertarem as mãos dela, questionando-a,
mas ela estava congelada demais pelo choque para responder. Apenas quando
aplausos começaram, sinalizando o intervalo, é que ela voltou a si. A explosão
de barulho despedaçou seu transe e ela se virou para ele desesperada.
— Katerina. Katerina está aqui.
Ranjit franziu a testa, mas ele não a questionou. Ele virou para onde ela
indicou com a cabeça e olhou fixamente para o camarote oposto ao deles.
Quando Katerina levantou a mão delicadamente em um aceno irônico, ele não
reagiu, mas Cassie viu os olhos deles brilharem com um fogo familiar. Era
aquele brilho escuro em espiral que ela já tinha visto, como lava derretida.
Tinha sido assustador quando ela viu a chama pela primeira vez. Dessa vez foi
reconfortante.
— Sinto muito, Cassie — a voz de Ranjit estava fria e mortífera. — Eu não
tinha a menor ideia de que ela estava em Nova York.
— Não tem problema. Sério — o coração dela dava solavancos, discordando
de suas palavras. Katerina estava em Nova York. A mente dela voou até Jake.
Ele a estava caçando por todo o mundo. O que ele faria se soubesse que ela
estava aqui, na cidade natal dele? Ao seu alcance...
A voz de Ranjit interrompeu os pensamentos dela.
— Eu tinha pedido champanhe para o intervalo no bar exclusivo para
membros — ele disse. — Mas se você preferir que fiquemos aqui...
Cassie fez “não” com a cabeça, com força.
— Eu não vou deixar que ela estrague uma noite adorável. Vamos evitá-las.
Ele apertou a mão dela.
— Vamos tentar ao máximo. Vamos.
Eles bem que poderiam ter ficado longe do caminho de Katerina e suas
amigas, mas apesar da tumultuada multidão descendo a escada, Katerina
estava claramente determinada a não ficar longe do caminho deles. Ranjit tinha
acabado de servir duas taças de champanhe no bar exclusivo quando a garota
85
loira surgiu entre o punhado de clientes abastados, com suas amigas
escoltando-a como um tipo de Guarda Pretoriana15.
— Olá, olá Bell — ela disse devagar, olhando-a de cima a baixo. — Se não é
a bolsista.
— Já chega, Katerina — Ranjit falou em voz baixa e sem alterações, mas
havia um nítido tom de ameaça implícito.
— Eu concordo plenamente. Já chega mesmo. Este tipo de gentinha
permanecer na Academia e eu ser expulsa e simplesmente... Oh, céus, como se
diz?
— Um crime — murmurou Sara.
— Gentil de sua parte, querida Sara, mas um crime pode ser divertido e
sofisticado — Katerina apenas sorriu enquanto as três garotas deram
risadinhas. — Deve haver outra palavra.
— Uma desgraça — sugeriu a morena ao lado de Sara.
Cassie tomou um gole de champanhe. O geladinho atingiu sua língua e
garganta e subiu direto para sua cabeça, mas ela não se sentia bêbada, apenas
fria e feroz. A sensação era boa. O braço de Ranjit estava ao redor de sua
cintura, protetor e atento, mas ela não sentia necessidade do apoio dele. Ela
virou outro belo gole, esvaziando sua taça.
— Meu Deus, isso não é um boteco do centro — o sotaque inglês de Sara era
impecável. — Não estamos aqui para nos embebedar e vomitar Srta. Bell.
Katerina ainda estava batendo suavemente um dedo no maxilar. Cassie
olhava para o rosto dela, fascinada pela cicatriz. Ela se recordava de tê-la
colocado lá, naquele túnel escuro, quando conseguiu escapar do distorcido
ritual dos Escolhidos de baixo do Arco do Triunfo. Pela primeira vez ela estava
efetivamente feliz. Sim, aquele tinha sido um bom momento. Na verdade, ela
gostaria de fazê-lo de novo. Bem agora.
Mas Katerina estava falando de novo, distraindo-a.
15
Guarda Pretoriana era o grupo de legionários experientes encarregado da proteção do praetorium, parte central do acampamento de uma legião romana, onde ficavam instalados os oficiais. Com a tomada do poder por Otávio Augusto, transformou-se em guarda pessoal do imperador (N. T.).
86
— Hum... Eu ainda estou tentando pensar em um termo apropriado.
Desgraça nem começa a descrever o que aconteceu no semestre passado. Sir
Alric decaiu no conceito de muita gente. Uma queda tão grande de padrões.
— Saia daqui, Katerina — Ranjit estava absolutamente imóvel, mas sua voz
era de forte ameaça.
— Ah! Eu sei a palavra — disse Sara, ignorando-o. — Vamos ver: um
espírito nobre dentro de algo tão indigno. Uma incompatibilidade. Uma
excentricidade. Nunca deveria ter acontecido, querida Katerina, assim como sua
expulsão. É uma... Aberração.
As quatro garotas suspiraram de satisfação.
— Sim — sorriu Katerina ironicamente. — É isso precisamente. Uma
aberração.
DO QUE ELA NOS CHAMOU?
A haste da taça de champanhe escapou da mão de Cassie. Ela ouviu um
rosnado estranho, mas parecia vir de longe, ou talvez de algum lugar fundo
dentro dela. Seus olhos queimavam, tão quentes e tudo tinha ficado vermelho,
como se ela estivesse olhando o mundo por um filtro escarlate. Ela percebeu o
choque no rosto de Ranjit e sabia que ele estava olhando fixamente para ela.
Ela podia ver o brilho dos espíritos das garotas também, brilhando em seus
peitos. Todos eram fortes, particularmente o de Katerina, mas ela percebeu que
não se importava. Sua própria áurea de poder a encobriu, invisível, porém
irresistível e Cassie de repente sabia que podia fazer o que quisesse com esse
poder, usando nada mais do que a força de sua mente. Ela estava
completamente parada. Não moveu um músculo. E ela levantou o corpo de
Sara visivelmente no ar.
A garota respirou fundo e gritou. Suas pernas chutando o ar, braços se
debatendo em inútil resistência, um medo abjeto em seu rosto. Cassie curtiu
aquilo. Era como se alimentar: o zumbido, o arrepio que corria nela. Ela quase
podia sentir o gosto do medo de Sara no ar. O gosto era bom. Muito bom. Ela
sorriu, friamente fascinada, enquanto os frequentadores do bar se afastavam,
silenciados senão por um suspiro ou grito. Até Katerina e suas comparsas
ficaram para trás, perplexas.
— Cassie! — gritou Ranjit. O sangue bombeando em seus ouvidos e os
gritos exaltados de Estelle pareciam abafar a voz dele.
87
Mate-a! MATE-A!
Sim. Ela estava cansada da garota patética andando atrás de Katerina como
se fosse um tipo de criada.
Ela nos chamou de aberração! Mate-a! Sim! Mate-a!
— Cassie, não!
As pessoas deixaram o bar topando umas nas outras freneticamente,
forçando para sair da área reservada para membros. Cassie os ignorou, rindo
enquanto assistia Sara se debatendo. O rosto da garota! Ridículo! Ela riu outra
vez e, ainda sem mover um dedo, arrastou a aluna do Liceu pelo ar para o outro
lado da sala. A garota foi lançada de costas, batendo com força contra a parede
oposta. Katerina rosnou de ódio e as outras meninas gritaram; mas todas
pareciam cravadas em seus lugares, relutantes em desafiar Cassie. Tinham
medo dela.
Bom para elas. Nós deveríamos tê-la atirado mais longe! Segure-a!
Cassie observou Sara. Era uma bela visão, a garota com dificuldades para se
levantar. Sim, Estelle estava certa. Segure-a. Ela devia segurá-la bem assim. Pelo
pescoço.
— Cassie, pare!
Garoto querido. Mas tão irritante! Não ouça.
Chacoalhando a cabeça para se livrar dos pedidos de Ranjit, ela segurou
mentalmente o pescoço de Sara mais apertado, comprimindo-o. A garota estava
ficando roxa, lutando para respirar, chutando o ar violentamente, colocando a
mão no próprio pescoço tentando se livrar do invisível objeto sufocador que o
envolvia. Barulhos estranhos saíam dela. Sons engasgados, sufocados,
estrangulados.
— CASSIE!
Ela sentiu braços apertando sua cintura e, de repente, alguém estava
lutando com ela, tentando afastá-la. Ela tomou fôlego para dar uma risada
desdenhosa e levantou um braço para espantá-los. No entanto, a mão que a
interrompeu tinha a mesma força que a sua.
Ranjit!
88
O choque do contato com ele fez com que ela caísse em si e ela percebeu
onde estava. Quem era. O que ela estava fazendo.
— PARE COM ISSO! — o rosnado de Ranjit era inumano, felino, mas ela
entendeu perfeitamente.
Além disso, ela já tinha parado. No silêncio do esvaziado bar exclusivo,
observado apenas por monstros como ela, Cassie olhou fixamente para Sara
toda machucada enquanto ela se contorcia, soluçando, no chão.
89
Capitulo 11 Ah, sim! Dá para correr calçando Jimmy Choos. Bem, bem rápido. Cassie se
enfiou no meio da multidão, na entrada, entre pessoas confusas que não
estavam no bar para ver o que tinha acontecido. Do lado de fora, o ar frio a
atingiu como uma tapa quando ela fugiu rapidamente cruzando a 57th Street e a
Central Park South em direção a escuridão do parque em si.
Ela continuou a correr até que os saltos altos começassem não a doer, mas a
incomodá-la. Raiva outra vez. Não. Ela não devia ficar com raiva. Tropeçando
ao parar, ela arrancou os sapatos e correu descalça. Respirando rápida e
irregularmente, com as tiras do sapato enganchadas em seus dedos. Alguma
coisa macia e fria tocou a pele de seu rosto. E mais uma vez. Ao parar, ela
titubeou por alguns segundos. O frio se transformou em umidade quando
escorreu em seu rosto.
Neve. Os flocos caíam mais rápidos e mais grossos cortando as luzes da
cidade antes de desaparecerem no escuro oásis do parque. Seus pés descalços
90
estavam congelando. Ela estava congelando. Conseguia enxergar apenas as
isoladas poças de luz em pedaços de grama branqueados e as formas
assustadoras das árvores. Ela se protegeu cruzando os braços, tremendo de
medo. Oh, Deus!
Uma silhueta se movia atrás dela e ela deu um grito agudo de medo.
— Cassie.
A voz dele estava amena e a ferocidade animal tinha acabado. Ela se jogou
nos braços de Ranjit com um suspiro de alívio.
— Vamos, Cassie. Vamos embora.
*** — Eu não sei o que é isso. Nunca ouvi falar disso — Sir Alric estava de
costas para eles. Já há vários minutos, silencioso, ele olhava para fora das
paredes de vidro da cobertura, para as luzes brilhantes de Manhattan e para a
escuridão do Central Park.
Cassie tremia. Ela mal podia acreditar que tivesse corrido naquele breu sem
ao menos pensar. A fome estava crescendo novamente; ela podia sentir. A fome
a estava corroendo desde que tinha corrido atordoada de pânico do Carnegie
Hall. O espírito estava desperto e voraz. E isso era só mais uma coisa da qual
ela não precisava, porque antes ela estava tão certa quanto Ranjit de que Sir
Alric poderia explicar o que tinha acontecido no Carnegie Hall.
Não teve essa sorte.
— Você disse que levantou Sara?
— Não, não fisicamente — sua voz estava trêmula e ela limpou a garganta.
— Mas sim, eu a levantei. Algum tipo de força. Fora de mim, mas parecia que
eu a estava controlando.
— Isso é desconcertante. E me preocupa imensamente.
91
— Preocupa você? — ela tentou sorrir.
— Sir Alric — Ranjit interrompeu. — Se você não pode explicar o que
aconteceu, ninguém pode. Deve haver algo. Algo que tenha esquecido, algo do
passado.
— Estou comovido pela sua fé em mim, Ranjit — Sir Alric soou
excepcionalmente triste. — Mas não. Nunca ouvi falar de algo assim. Eu
lembraria, acredite.
Ranjit apertou os ombros de Cassie em uma tentativa de confortá-la.
— Você tem certeza de que o ritual de união nunca foi interrompido antes?
Sir Alric olhou para a cidade novamente.
— Não. Não, Ranjit, nunca antes. E você está certo, é a única coisa que
difere Cassie: seu ritual interrompido.
— Parte do espírito foi deixada para fora — disse Cassie baixinho. — Parte
de Estelle. Ela fala sobre estar fora, no vácuo.
Sir Alric se voltou rapidamente para ela.
— Ela conversa com você? Você ouve a voz dela?
— Sim — Cassie encolheu os ombros.
— Isso não deveria acontecer — ele sussurrou, esfregando sua testa. — Isso
não deveria acontecer.
— Ela quer que eu a deixe entrar. Como você me disse no fim do semestre
passado. Você disse que ela não pararia até que se unisse completamente a
mim.
Sir Alric permaneceu em silêncio, mas confirmou com a cabeça, com a testa
franzida.
— O que está acontecendo comigo? — a voz de Cassie passou um ar de
desespero.
Os olhos de Sir Alric se encontraram com os dela.
— Eu não sei.
Desprendendo-se gentilmente dos braços de Ranjit, Cassie se levantou.
92
— Assim você está longe de me deixar confiante.
— Perdão. Há pessoas com quem eu posso falar e alguns textos antigos que
posso consultar, mas, por ora, Cassandra, eu não posso te dar respostas seguras.
— Ah, sensacional — ela cruzou os braços.
— Parte do espírito que você pensa que é de Estelle ficou para fora de você.
Ela está dividida, então talvez seu poder esteja dividido também — ele sacudiu
a cabeça em desespero. — É a única explicação que tenho, Cassandra. Quando
nos unimos a nossos espíritos, o poder que eles concedem vai para dentro de
nós, se torna parte de nós. Mas seu espírito não está inteiramente unido ao seu
corpo, então talvez você consiga projetar parte do seu poder para fora. Não
tenho certeza.
Apoiando o corpo no vidro, Cassie também olhou para as luzes brilhantes
da cidade lá fora. Então ela se endireitou, animando-se de repente.
— Então... Espere um pouco. Se parte do poder está para fora, talvez eu
possa fazer o resto sair? — ela se virou para olhar Sir Alric, empolgada. —
Posso me livrar disso e me livrar de Estelle!
Bem lá no fundo ela pensou ter ouvido um choramingo de medo, um
gemido de protesto, mas ignorou. Ranjit ficou em pé, com o maxilar tenso.
— É isso o que você quer, Cassie? De verdade?
— Claro! Você não iria querer?
Ele não respondeu, continuou apenas olhando para ela. Por um instante,
eles ficaram se olhando em silêncio.
— Cassandra — disse Sir Alric, finalmente quebrando o silêncio. — Você
deve ser extremamente cautelosa. Nós não sabemos do que você é capaz. Seja lá
que poder for esse, ele parece muito perigoso. Além disso, seu espírito não vai
querer deixá-la. Sem o seu corpo ele se perderá no vácuo para sempre. Acredite
em mim, ele vai se prender a você a qualquer custo. Quem sabe o que Estelle
pode fazer caso sinta-se ameaçada? Até que saibamos mais sobre seu poder,
você não deve de forma alguma provocá-la.
— E como exatamente eu evito provocá-la? — Cassie olhou para os dois. —
Ela pensa por si própria, devo dizer.
93
— Você pode começar controlando suas emoções — Sir Alric respondeu
bruscamente. — Foi sua fúria que disparou o poder do espírito esta noite. Não
deixe que isso aconteça de novo.
— Ah, claro, não se preocupe — ela respondeu sarcasticamente. — É fácil!
Ranjit deu um suspiro exacerbado.
— Cassie, ele está tentando ajudar.
Ela girou para encará-lo.
— Não venha dar uma de superior! “Controlar minhas emoções”? Bem,
advinha! É bem mais fácil falar do que fazer. Eu não pedi isso, então como é que
você espera que eu saiba como controlá-lo?
— Você deve tentar, Cassandra — Sir Alric pediu cansado.
— Vamos, Cassie — Ranjit disse gentilmente. Ele esticou o braço para
segurar a mão dela e ela relutou em permitir. v Não há mais nada que
possamos fazer esta noite. Vamos deixar assim, por ora. Vamos ver o que Sir
Alric descobrirá — ele acenou com a cabeça para o diretor. — Boa noite.
Cassie notou que uma sombra cruzou a expressão de Sir Alric quando ele
assistiu Ranjit colocar a mão sobre os ombros dela e conduzi-la para fora.
— Boa noite.
A porta fechou silenciosamente atrás deles. Cassie estava muito feliz em
sair do escritório da cobertura. Ranjit, no entanto, estava quieto e reservado.
Pouco surpreendente, pensou ela. Ele a tinha levado diretamente ao Sir Alric certo
de que ele explicaria tudo e os ajudaria. E olhe no que tinha dado. Sir Alric
Darke não tinha sido mais útil a eles do que o frágil poder dos Escolhidos de
Sara tinha sido a ela...
— Tem certeza de que Sara estava bem? — ela arriscou, ficando vermelha
ao recordar o motivo que a fez sair voando do Carnegie Hall.
Ranjit ergueu os ombros.
— Bom, ela estava viva.
Cassie suspirou profundamente.
— Eu queria que nada disso tivesse acontecido.
94
— Tarde demais, Cassie — ele ficou quieto por um momento, então falou
de novo, com um brilho misterioso em seu olhar. — Mas, quer saber? Seja lá
qual for a razão para isso, a verdade é que você foi magnífica hoje à noite. Tão
forte que eu... Eu não conseguia tirar os olhos de você.
Cassie ficou quieta um pouco, incerta do que essa admissão pudesse
significar, ou de como responder. Ela escolheu a verdade.
— Seja lá qual for a razão... Eu gostei de fazê-lo — ela parou. — Isso não te
assusta? Porque que me assusta.
— Sim, assusta. Mas não posso negar minha natureza — ele sacudiu a
cabeça. — Não vamos falar sobre isso agora. Você passou por muita coisa essa
noite. Devia dormir um pouco.
— Mas eu... Eu pensei que pudéssemos ficar um pouco juntos — Cassie
percebeu que estava desesperada para mantê-lo perto dela, para segurar a
presença dele um pouco mais. — Não estou cansada...
— Eu estou — mas ele a puxou do mesmo jeito, aproximando-a, quase
como se não soubesse que estava fazendo isso. — Com certeza você também
está.
— Não estou — murmurou Cassie. Os olhos dela vasculharam
urgentemente o rosto dele, levantando as mãos para acariciá-lo, sem pensar. Ele
parecia confuso, respirava pesado.
Ia dizer alguma coisa. Tarde demais. A boca dele estava de repente
encostada na dela, a língua dele encontrando a dela e fazendo suas terminações
nervosas soltarem faíscas. Por um momento o fio do desejo a deixou
imobilizada; logo ela estava correspondendo o beijo, apaixonadamente, quase
violentamente. Os braços dela se contorceram em volta do pescoço dele, quente
sob o toque dela e ela o trouxe mais para perto, tão perto que era como se seus
corpos estivessem tentando se fundir.
Sim...
A voz de Estelle dentro de sua mente, ecoando seus pensamentos mais uma
vez.
Juntos é como devemos ficar, todos nós...
De repente, Cassie sentiu os dedos de Ranjit em seus cabelos, puxando-os,
puxando com força. Ela arfou de dor, mas então ele levou sua boca ao encontro
95
da dela outra vez. Ela sugou o lábio inferior dele entre os dentes, mordendo
com força, quase tirando sangue; havia uma urgência, um ímpeto crescendo
entre eles, mas ela se sentiu impotente para quebrar o abraço deles...
— PAREM COM ISSO DE UMA VEZ!
O grito de ordem foi repentino e feroz. A cabeça de Ranjit pulou para trás,
interrompendo o contato. Cassie resmungou frustrada. Ela levou um instante
para perceber que Sir Alric estava diante deles, emoldurado na porta de seu
escritório, com os ombros tensos e os punhos cerrados.
Ranjit parecia chocado por um momento, lambendo uma gota de sangue
em seu lábio.
— Me desculpe...
Não se desculpe, querido...
— Não se desculpe — Cassie ouviu a si mesma repetir e as palavras a
trouxeram de volta à fria realidade. Ranjit tinha se desculpado com ela ou com
Sir Alric?
— Creio que ambos devam ir para seus quartos imediatamente — disse Sir
Alric rangendo os dentes.
Ranjit concordou com a cabeça, parecendo estremecido. Cassie franziu a
testa. Qual era o problema dele? Claro que era um pouco constrangedor ser
surpreendido pelo diretor num beijo, mas eles não estavam fazendo nada de
errado, estavam? Ranjit se afastou dela, deliberadamente. Ela sacudiu a cabeça e
deu um sorriso melancólico.
— Boa noite, Ranjit.
— Boa noite, Cassie — os olhos dele tinham uma sombra de anseio.
Frustrada, ela virou de costas sem olhar novamente para Sir Alric. Mas
enquanto andava pelo corredor, ela ouviu a voz grave e severa do diretor.
— Uma palavrinha antes de você ir, Sr. Singh.
Cassie olhou confusa. E viu Ranjit olhar brevemente para ela pela última
vez antes de desaparecer dentro do escritório. Sobre o que seria?
Da próxima vez, querida, nós devemos tentar mais. Isso simplesmente não será o
suficiente...
96
Capitulo 12 — Jake? O que está fazendo aqui?
Cassie tentara abrir a maçaneta silenciosamente para não acordar sua
colega de quarto, quando a porta abriu de repente, fazendo-a pular. Por que
Jake estaria saindo do quarto dela e de Isabella tão tarde da noite? Então ela se
lembrou do encontro do casal e não conseguiu evitar que um sorrisinho
cruzasse seu rosto.
— Ops. Espero não ter interrompido nada!
O rosto de Jake estava sério.
— Uh, Cassie, posso falar com você um minuto?
O coração dela disparou. Ele a estava evitando há semanas, por que queria
falar com ela agora? Será que ele descobriu sobre a alimentação? Não, ele nem
estaria falando com ela se fosse o caso. Ele sabia o que tinha acontecido com
97
Katerina um pouco mais cedo? Ela não esperava ter que lidar com esse aspecto
dos eventos da noite tão rápido...
Jake saiu do quarto e puxou a porta silenciosamente.
— Estou feliz que esteja de volta. Isabella vai precisar de alguém com ela
está noite.
— O que houve?
— Nós apenas nos assustamos um pouco na Coney Island. Está tudo bem.
Ela ficará bem depois de descansar.
Cassie franziu a testa.
— O que aconteceu?
— Talvez não seja nada — ele pareceu hesitante por um momento e então
sussurrou —, acho que todos nós estamos um pouco tensos, talvez imaginando
coisas.
— Do que você está falando?
Jake forçou um sorriso.
— Olha, apenas faça essas coisas de menina, cuide dela e eu vejo vocês
amanhã assim que puder.
— Eu achei que fôssemos todos sair juntos pela manhã para ir a China
Town! Sabe, o grande plano de Isabella de estarmos juntos e fazermos coisas
triviais? — ela sorriu, mas a expressão de Jake estava séria novamente.
— Não pela manhã. Preciso cuidar de algumas coisas — ele se inclinou e
deu um beijinho na bochecha de Cassie. — Boa noite.
Cassie ficou olhando para ele, intrigada. Esta tinha sido definitivamente
uma das noites mais estranhas da vida dela. Ela deu meia-volta e abriu a porta.
— Cassie? — Isabella se sentou na cama.
— Sim, sou eu. Você me pegou. Tentei não fazer barulho...
— Tudo bem. Eu estava acordada.
Cassie olhou para sua amiga na penumbra enquanto fechava a porta.
Isabella estava abraçando os joelhos, olhando para a parede e não para Cassie.
98
— Ei, o que está havendo? Jake me disse que aconteceu algo durante o
encontro.
— Uh... pela primeira vez, Isabella parecia ter perdido as palavras. — É...
Hã... Não foi muito conforme o planejado.
Cassie notou que Isabella estava tremendo. Sentando-se ao lado dela,
colocou um braço ao seu redor. Ela sentiu frio. Uma sensação de medo cresceu
dentro dela.
— Isabella, o que aconteceu? Vocês discutiram ou...
— Não! Nada a ver com isso — Isabella sacudiu a cabeça vigorosamente. —
Foi tudo bem, no começo. Estávamos nos divertindo, então... Ah, foi terrível,
Cassie. Sei que vai parecer loucura... — ela se calou e os olhos de Cassie se
arregalaram de preocupação por causa da expressão melancólica de Isabella.
— O que foi, Isabella?
Isabella esfregou seus braços arrepiados.
— É que... Bem, eu acho que alguém tentou me sequestrar.
— O quê? Isabella! Fala logo o que aconteceu!
Isabella soltou o ar.
— Nós estávamos no fim da fila para a montanha-russa. A fila estava muito
longa e então Jake se ofereceu para buscar um algodão-doce para mim
enquanto eu guardava nossos lugares. Depois de uns minutos, eu senti certa
mão me pegar por trás e me agarrar... — ela olhou para Cassie, com a voz se
transformando num sussurro. — Eu pensei que fosse Jake brincando comigo,
mas estavam me arrastando e outra mão cobriu minha boca. Eu não pude
gritar... Foi quando Jake voltou e viu. Ele gritou. Oh, Cassie, você devia tê-lo
ouvido! Você pensaria que ele tinha visto um fantasma, já que parecia tão
assustado. Então um segurança veio, e seja lá quem tenha sido me soltou e
correu antes que eles pudessem alcançá-lo...
— Isabella, isso é terrível!
— Se Jake não tivesse visto o que estava acontecendo... Se ele não tivesse
aparecido naquele instante, eu não sei o que teria acontecido — Isabella
estremeceu, abraçando as próprias pernas com força.
99
— Você está segura, agora — Cassie apertou os ombros dela para confortá-
la. Ela sacudiu a cabeça. — Por que alguém faria uma coisa dessas?
Isabella sacudiu a cabeça.
— Não sei. Talvez quisessem minha bolsa? Jake disse que pensava ter visto
alguém nos observando quando estávamos no carrossel, mas eu pensei que ele
estava sendo paranoico. Mas agora... Ah, Cassie, eu não quero mais pensar
nisso.
— Claro que não. Olha, você devia tentar descansar um pouco.
— Vou ficar bem, Cassie — Isabella parou, enfiou-se debaixo das cobertas e
então sorriu outra vez parecendo fraca. — Mas eu sou uma péssima amiga.
Nem perguntei sobre o seu encontro! Foi incrível?
— Bem — Cassie deu um sorrisinho. — O nosso foi bem agitado também...
— Uau — Isabella tentou claramente disfarçar a surpresa quando Cassie
terminou de relatar o que tinha acontecido no Carnegie Hall, os estranhos
poderes que tinha demonstrado e a incapacidade de Sir Alric em explicar os
fatos. Ela omitiu a parte de ele ter surpreendido ela e Ranjit se beijando.
Alguma coisa sobre a intensidade do amasso a deixava desconfortável em falar
disso. E ela tem que pedir para Isabella não dizer nada para Jake sobre Katerina.
— Cassie, eu não sei o que dizer. Que encontro! Mas tenho certeza de que
Sir Alric vai descobrir o que aconteceu.
Cassie observou sua colega de quarto por um instante. Havia um leve
reflexo de trepidação nos olhos de Isabella, mas isso era compreensível
considerando o que Cassie havia contado. Ela sacudiu a cabeça, tentando não
pensar demais sobre isso.
— Sim. Antes de isso acontecer foi incrível. Imagine você que eu estava
pensando em trocar toda a experiência por cachorro-quente em Coney Island,
mas agora não tenho mais tanta certeza.
— Engraçado como as coisas deram errado para nós duas, não é?
— Hum. Hilário — Cassie fez uma careta.
Isabella suspirou intensamente.
100
— Cassie. Vamos esquecer isso por hoje. É como você disse. Nós duas
precisamos dormir.
*** RANJIT!
Cassie estava correndo outra vez. Correndo em direção a ele, tudo coberto
por aquele aterrorizante brilho vermelho e...
RANJIT!
Pegue-o, segure-o...
EU VOU, ESTELLE! DESTA VEZ NÃO VOU FALHAR...
— Cassie? Cassie! — o rosto de Isabella apareceu, a expressão dela era um
misto de espanto e preocupação. — Ei, Cassie? Acorda, acorda! Como você diz!
Ainda com sono, Cassie tirou as cobertas e piscou para tentar enxergar sua
colega de quarto.
— Que horas são?
— Hora de acordar. Vamos. A noite toda você esteve se remexendo e se
revirando, mas esta manhã... Você dormiu como uma estátua! Eu pensei que eu
fosse difícil...
— Dormiu como uma pedra, Isabella. Uma pedra.
Cassie se sentou, com o rosto quente lembrando seu sonho. Pelo menos
Isabella parecia ter se animado depois da noite passada. Ela estava
impressionada com a capacidade da garota em separar as coisas; ela trocaria
essa habilidade pela força invisível a qualquer momento.
— Vamos — Isabela disse em um tom agudo. — Precisamos de uma
mudança de cenário. Particularmente porque aposto que você é o assunto do
momento por aqui nesta manhã.
101
— O quê? — Cassie esfregou os olhos. — Por Deus, sim. Carnegie Hall.
Isabella estava certa. Sara teria vindo correndo contar para os outros
Escolhidos sobre os poderes estranhos do mais recente membro. Cassie gemeu.
— Vamos ficar longe de todos — sugeriu Isabella. — Vamos cedo para
China Town tomar café da manhã?
— Parece uma boa ideia para mim — concordou Cassie, pulando da cama.
Ela mal estava acordada, mas já podia sentir a fome por força vital corroendo-a.
Ela se lembrou das instruções de Sir Alric sobre se alimentar com frequência,
mas tentou espantá-las. Ela não estava pronta para tentar se alimentar
novamente. Talvez um pouco de comida normal ajudasse a desviar sua mente
disso.
— Ótimo — se animou Isabella. — Vou ligar para Jake e avisá-lo.
— Uh, Isabella — Cassie se virou para sua amiga. — Jake disse que não
poderá ir esta manhã. Ele não te disse ontem à noite?
Isabella pareceu confusa.
— Não pode? Por que não?
— Eu... Ele não disse exatamente — Cassie admitiu relutante. — Ele disse
que nos encontraria mais tarde.
Pense nisso: foi um péssimo encontro. O que poderia ser mais importante
do que consolar sua namorada um dia depois de alguém ter tentado sequestrá-
la? Isabella parecia estar se perguntando o mesmo, a julgar pela expressão de
mágoa em seus belos traços. Então ela se reanimou, vestindo-se rápido e, como
de costume, ficando despretensiosamente elegante, ainda que parecesse mal ter
visto o que tinha escolhido no guarda-roupa.
— Bom, isso significa que depois de comermos podemos ir a umas lojas,
não?
— Hum... Nesse caso eu definitivamente preciso preparar meu estômago!
— Cassie pulou desajeitada para entrar na calça jeans, depois revirou a gaveta
freneticamente em busca de um suéter.
Isabella já estava se maquiando antes que Cassie tivesse escovado os dentes.
Ela estava resmungando para si mesma e comparando dois batons enquanto
Cassie a observava da pia da suíte, ao lado do banheiro. Deve ter decidido tirar o
102
incidente de Coney Island da cabeça, ela pensou. Talvez fosse o melhor a fazer. Saiu
apressada do banheiro, passando rapidamente uma escova nos cabelos.
— Quase lá. Está pronta?
— Uh-hum. Agora, onde coloquei meu bracelete? — Isabella passou a mão
pelo caos de seu criado-mudo, então parou. — Ah, não!
O grito de terror de Isabella chamou a atenção de Cassie imediatamente.
— Que foi?
Sem palavras, Isabella levantou o bracelete com um dedo. Era um de seus
favoritos: espesso e descolado, como uma linda bijuteria, mas feita de ouro
maciço 24 k. E tinha derretido.
Cassie olhava fixamente para o objeto, pendurado no dedo de Isabella. A
expressão de sua amiga era de desconsolo, mas ela não conseguia proferir
nenhuma palavra de solidariedade. Sua garganta parecia ter fechado
completamente.
— Como isso aconteceu? — lamentou Isabella, tentando forçar o ouro
deformado para entrar em seu pulso esbelto. — Devo tê-lo deixado muito perto
do aquecedor.
Ou talvez muito perto de mim, pensou Cassie sombriamente. O criado-mudo
de Isabella estava entre a cama dela e a de Cassie. E o formato distorcido do
metal era horrendamente familiar...
— Ugh! Bom, deixa para lá — Isabella jogou o bracelete destruído em cima
da cama e forçou um sorriso. — Não vou deixar isso estragar nosso dia. Vamos!
Eu provavelmente farei isso, pensou Cassie enquanto elas pegavam seus
casacos, bolsas e cachecóis e saíam. Que diabos estava acontecendo? Como ela
poderia estar derretendo braceletes de ouro maciço e porta-retratos de prata
enquanto dormia?
Ela se lembrou das palavras de Sir Alric: “Talvez você possa projetar parte do
seu poder para fora de si mesma”.
Bem, se isso tivesse a ver com seu poder, então esse poder estava se
tornando cada vez mais presente e mais forte. Será que estava atingindo os que
estavam ao seu redor? Meu Deus... Se ela pudesse destruir metal maciço, o que
ela poderia fazer com carne e osso? O que ela poderia fazer com seus amigos?
103
Capitulo 13 — Bem, com certeza foi uma mudança de cenário.
Desviando de um vendedor de peixe, Isabella cruzou seu braço com o de
Cassie animadamente.
— Bem o que estávamos precisando.
Isso era certo. Cassie estava feliz de sair da Quinta Avenida e do Central
Park — todo o arredor Upper East Side da Academia —, então foi divertido se
enfiar em uma minúscula casa de chá no Chantam Square para o café da
manhã. Depois disso, elas andaram pelo Columbus Park e vagaram sem rumo
entre o agito de vendedores e turistas na Mulberry e na Canal Street. As ruas
lotadas e a frente das lojas, ainda com as decorações do Ano Novo Chinês,
desgastadas, porém alegres. Apesar do que sentia, Cassie achou que seu humor
havia melhorado.
104
Era barulhento, tumultuado e caótico — entre o grito dos vendedores, o
barulho e o ronco dos carros e a música saindo dos restaurantes, Cassie mal
podia ouvir seus próprios pensamentos. Mais ainda, ela não conseguia ouvir os
pensamentos de Estelle. E apesar da fome crescente dentro dela, o perfume no
ar de incenso e comida sendo preparada fazia com que fosse impossível sentir o
hálito humano, até mesmo para seus sentidos aguçados.
Ela não conseguia entender como Isabella tinha ouvido seu celular, mas a
garota parou imediatamente e atendeu. Cassie não conseguia escutar nada da
conversa, mas a julgar pelo olhar de criança de sua colega de quarto, não
precisava ser um gênio para saber quem era.
— Cassieeee — disse Isabella, persuasiva, fechando o celular e desviando
de um vendedor de DVDs piratas. — Era Jake! Tudo bem se finalmente nos
reunirmos?
Cassie tomou um susto com uma pilha de pacotes de arroz embrulhados
em folhas de bambu.
— Uh, claro. Por que não estaria?
— Ah, você sabe... — Isabella sacudiu a cabeça para o vendedor de arroz e
elas continuaram. — Eu notei que tinha alguma coisa estranha entre você e Jake
nessas últimas semanas, não é?
Cassie xingou mentalmente. Isabella também, não! Por que tinha amigos
tão perspicazes...
— Bom, nós estamos guardando um segredo muito grande dele, Isabella —
Cassie respondeu sem ser honesta. — Me sinto mal com isso.
Ela não conseguia explicar o motivo real de sua tensão. Isabella iria surtar
loucamente se soubesse que Jake estava à caça de Katerina.
— Eu também, mas é para o bem dele, Cassie. Você não pode contar!
Prometa. Não deve. Se acha que ser membro dos Escolhidos está afetando sua
amizade com ele, imagine se ele souber da alimentação!
Cassie estremeceu. Ela podia imaginar muito bem.
— Sim, eu sei.
— Vai dar tudo certo. Ele adora você, Cassie. É que ele tem umas questões,
você sabe disso. Com Ranjit. E Jéssica. E...
105
Cassie deu um gemido exasperado, passando a mão nos cabelos.
— Olha, eu não posso culpar Jake por ser leal à irmã dele. Mas se ele tivesse
tentado conhecer Ranjit um pouco, teria visto que ele jamais levaria Jess até
aquela armadilha por livre e espontânea vontade. Eu consigo entender que nos
ver juntos seja difícil para ele... — ela foi reduzindo a voz. — É difícil para mim
também — ela disse, acima de tudo para si mesma.
Isabella tocou com carinho o braço dela.
— Bem, Jake e Ranjit terão que mudar de ideia uma hora ou outra. Eles têm
que... Nós temos que conseguir sair em casais! — ela sorriu, então suspirou alto
e dramaticamente, abrindo os braços de modo tão brusco que quase derrubou
uma velhinha enrugada da bicicleta. — Mas se preferir não ver Jake agora,
posso cancelar...
— Não seja boba, Isabella. Claro que vamos nos encontrar com Jake.
Isabella sorriu.
— Sabia que diria isso.
— Ah, sabia! Rainha do drama. Não chacoalhe os braços outra vez, você
quase matou uma pessoa. Onde vamos nos encontrar?
— Fora do Lincoln Center, no West Side. À uma hora — Isabella consultou
o relógio e apertou o passo, chamando alegremente pela amiga. — Nós
almoçaremos, faremos compras, terapia... Será como nos velhos tempos, Cassie!
— Já está pensando no almoço? Você me impressiona — engolindo sua
apreensão, Cassie riu. — Vamos lá, então. E não ouse chamar outro taxi. Vamos
de metrô.
*** Isabella estava correndo na frente de Cassie a cada passo — ela devia estar
louca para encontrar Jake. A garota argentina estava feliz quanto... Quanto um
106
pônei de polo em feno fresco, ou algo assim. Era muito reconfortante ver que
era possível estar tão a fim de alguém com toda a loucura que os cercava. Deu
esperanças para Cassie quanto a Ranjit.
No entanto, quando elas chegaram ao Lincoln Center e avistaram Jake
sentado na beirada da fonte — digitando em seu laptop, outra vez —, Cassie não
pode evitar ficar um pouco para trás. Ela não tinha certeza de como podia
conciliar o fato de Katerina, a assassina da irmã dele, estar pairando por essa
cidade. Jake, no entanto, pulou no mesmo momento, enfiando o laptop
bruscamente no case e deu uma corridinha. Assim que ele conseguiu se soltar de
Isabella, ele abraçou Cassie, embora houvesse uma tensão nos olhos dele que
ela não conseguia definir; como se ele estivesse escondendo algo, guardando
algo só para ele... Isabella parecia distraída.
— Agora, onde podemos comer? Ah, é tão bom estarmos juntos de novo!
Sim, pensou Cassie, ainda que estivesse faltando uma pessoa essencial. Ver
Isabella entrelaçar seus dedos aos de Jake fez com que ela percebesse quanta
falta de Ranjit estava sentindo, mesmo o tendo visto na noite passada.
Noite passada.
Ela sentiu um nó no estômago pela maneira ambígua como eles tinham
deixado as coisas, na interrupção de Sir Alric e... Do que havia acontecido antes
disso. Ela não entendia o que havia entre eles; a atração magnética que sentiam
era difícil de explicar. Ele gostava dela, não gostava? Ele deve gostar, para
arriscar o desdém de tantos membros dos Escolhidos. E a faísca entre eles — era
algo de outro mundo. Não havia razão para ter medo, havia?
— De jeito nenhum vou ficar andando atrás de você na Bloomingdale's16 a
tarde toda, enquanto você experimenta metade da loja — Jake estava dizendo a
Isabella, embora ele olhasse para Cassie como se fosse atrás dela até o fim do
mundo se ela estalasse um dedo.
— Ah, são apenas umas comprinhas. Não seja estraga prazer. Ah! Nós
tomamos café da manhã, Jake! Nos empanturramos em uma casa de chá
maravilhosa. Cheia de banquinhos vermelhos e...
— Legal. Estou feliz que tenha tido uma manhã para espairecer, depois de
tudo o que aconteceu ontem à noite.
16
Bloomingdale's é uma loja de departamentos de alto padrão pertencente ao grupo Federated Department Stares. A loja mais importante da rede e a unidade localizada em Manhattan - Nova York (N. R.).
107
— Então, se as compras não estão na programação, o que você acha que
devemos fazer, Jake? — perguntou Cassie, observando-o minuciosamente. Ele
pareceu se animar.
— Ah, sei lá... Um passeio turístico? Que tal o Chrysler Building, a Times
Square? Ou a catedral St. Patrick! Como eu disse, tem sido divertido ser um
turista em minha própria cidade. Nunca a vi desta forma.
— Eu ainda quero ver algumas lojas! — Isabella deu um soco
carinhosamente no peito de Jake, quase o derrubando. — Na verdade, olha
essas... — ela se apressou em direção à vitrine de uma loja cara e começou a
olhar o display de bolsas, com os olhos arregalados de empolgação. Cassie
andou em direção a ela com pouco entusiasmo, mas parou quando Jake
sussurrou o nome dela.
— Cassie...
Ela se virou, dando uma olhada para Isabella, então andou até ele, com o
estômago revirando. Seja lá o que fosse dizer, não seria bom. Ela parou ao lado
dele e ele a olhou fixamente com um olhar sério.
— O quê?
— Ouça, sei que vai parecer loucura, mas acho que nós podemos estar em
perigo.
Os olhos de Cassie se arregalaram.
— Perigo? O que quer dizer?
— Ontem à noite... A pessoa que tentou agarrar Isabella... — Jake respirou
fundo e passou a mão nos cabelos. — Acho que foi Katerina.
— O quê? Não, Jake...
— Olha, eu sei o que você vai dizer, que estou tão obcecado que estou
vendo coisas — mas eu enxergo bem e juro por Deus que era ela.
— Jake, não era ela — Cassie agarrou o braço dele quando ele tentou
interrompê-la. — Me escute. Eu sei que não era ela. Katerina não pode ter
estado em Coney Island com você e Isabella na noite passada.
— Como pode ter tanta certeza? — ele a interpelou agressivamente.
— Porque ela estava no Carnegie Hall. Eu a vi.
108
Isso o calou. Na verdade, por um momento, ela pensou tê-lo causado um
derrame. Os olhos de Jake saltaram em descrença quando ele tentou absorver as
palavras dela. Finalmente, ele falou.
— Por que você não me disse ontem à noite? — ele perguntou.
— Você não me deu uma oportunidade, se lembra? — ela retrucou. — Você
tinha assuntos para resolver, assuntos que não incluíam sua namorada,
obviamente.
Jake se conteve.
— Sim, eu tinha que voltar para Coney Island, caso Katerina ainda estivesse
lá. O que eu não teria que fazer se você tivesse se preocupado em mencionar
que a tinha visto do outro lado de Nova York.
Cassie se remoeu por dentro. Por que ela não conseguia manter a calma?
Jake olhou na direção de Isabella quando ela chamou.
— Só vou entrar por um segundo, pessoal...
Ele acenou e se voltou para Cassie.
— Olha, eu ia te contar sobre Katerina — ela disse, tentando primeiramente
achar as palavras. — Eu só precisava encontrar o momento certo.
— E o que aconteceu? No Carnegie Hall? Você falou com ela?
Cassie sorriu.
— Mais ou menos. Mas acredite em mim. Era ela.
Jake mordeu os lábios ansiosamente.
— Eu apostaria minha vida que era Katerina na Coney Island, mas eu acho
que devo ter imaginado coisas. A menos que os Escolhidos possam estar em dois
lugares ao mesmo tempo.
Cassie riu sem querer.
— Eu acho que não.
Jake sacudiu a cabeça.
109
— Mas, então, hoje no metrô eu tinha certeza de estar sendo seguido
novamente. Tem alguma coisa ai, Cassie. Eu e você estamos metidos nessa, eu
com Jess, e você e seu... Ritual. Mas Isabella não tem que ser envolvida.
O estômago de Cassie revirou horrivelmente. Se eu soubesse... Jake não
parecia notar.
— Prometa que não vai contar para Isabella.
— Jake, não posso fazer isso.
— Eu tenho que ter certeza de que Katerina não fará isso novamente,
Cassie. Tenho que achá-la. Tenho que ir.
— Ir aonde?
Cassie pulou quando Isabella apareceu do lado dela, passando uma sacola
enorme de loja de uma mão para outra. Jake contorceu o rosto em um sorriso
exagerado e ergueu as mãos em sinal de desculpa.
— De volta para Academia. Eu acabei de receber uma ligação — Jake
mentiu. — Chelnikov quer me ver. Eu meio que deixei de entregar alguns
trabalhos. Acho que andei um pouco preocupado.
— Seu tutor quer vê-lo num sábado? Jake, isso não é justo.
— Eu sei, mas ele insiste. Eu tenho que ir agora. Ele quer tratar de coisas da
escola, Isabella, não posso dizer não. Já tenho problemas demais com esse cara.
— Ele não tem o direito — Isabella fez o maior bico.
— Ele tem minha carreira escolar nas mãos — argumentou Jake. — Tenho
que ir. Sinto muito, linda — ele tentou sorrir, embora não tenha olhado nos
olhos de Cassie. — Você vai se divertir sem mim. Vá lá, gaste tudo o que puder.
— Claro — Isabella ergueu o queixo relutante para receber o beijo dele. —
Até mais, Jake.
Cassie enrugou a testa e não respondeu quando ele disse tchau para ela.
Havia muitas mentiras pairando no ar — algo teria que ser o ponto final. Ainda
por cima tinha que se preocupar com Jake apressando a busca de Katerina,
agora que ele sabia que ela estava na cidade...
— Chelnikov! — Isabella reclamou. — Por que isso... Aquele sargento
precisa vê-lo num fim de semana!
110
— Sei lá, mas Jake não iria se não fosse realmente importante, iria? —
Cassie disse meio envergonhada, se punindo por estar encobrindo-o. Ela não
queria dar a Isabella mais um motivo para se preocupar.
Isabella deu de ombros, resignada, e passou as mãos pelo cabelo.
— Ok, você tem razão. Não é culpa dele. Ah, por que eu fui tão ruim com
ele?
— Sai dessa — disse Cassie relutante.
Isabella cruzou seu braço com o de sua colega mais uma vez.
— Bem, vou compensá-lo depois — disse maliciosamente. — Nesse meio
tempo, uma voltinha pela Bloomingdale's deve elevar minha alma.
Talvez, pensou Cassie sombriamente. Vamos torcer para que não eleve a
minha...
111
Capitulo 14 — Foi divertido! — disse Cassie.
Ela realmente quase se sentia assim. O entusiasmo de Isabella por comprar
era contagioso e ajudou a ocupar a mente de Cassie com outras coisas, pelo
menos por um tempo.
— E aí, você está razoavelmente consolada?
— Uuuufa! — respondeu Isabella. Ela parou no saguão da Academia, bem
ao lado de Aquiles e colocou no chão sua coleção de sacolas de compras. Cassie
também suspirou, bem consciente dos olhares e sussurros dos Escolhidos atrás
dela. O acontecimento do Carnegie Hall tinha se espalhado pelo quarto comum
como um incêndio. Mikhail em particular a olhou com desdém quando passou
por ela. Se alguns dos Escolhidos não a tinham recebido bem antes, ela temia
pensar como eles se sentiriam em relação a ela agora.
112
Alongando os braços, Isabella dobrou e arrumou uma sacola aberta. Os
olhos brancos de Aquiles brilharam em direção a sacola.
— Ele não aprova — observou Cassie, apontando o jovem guerreiro de
marfim com o polegar.
— Isso me diz tudo o que eu preciso saber — Isabella torceu o nariz. — Ele
é um homem sem coração. Veja como ele trata o pobre Heitor — ela acariciou
suavemente o frio braço de marfim de Heitor, erguido em protesto inútil contra
sua morte iminente. — Sim, me considero consolada. Bergdorf Goodman17 foi
um triunfo em particular.
— Garotas, vocês têm sido muito malcriadas.
Por um milésimo de segundo, Cassie imaginou que fosse Aquiles falando,
até que viu Richard. Ele estava preguiçosamente apoiado na estátua, com uma
das mãos no bumbum musculoso de Aquiles. Um grupo de meninas dos
Escolhidos olhava para ele e depois para Cassie, com óbvia descrença e
hostilidade. Richard pareceu ignorá-las.
— Richard! — Isabella o beijou nas bochechas, antes de olhar com vergonha
para Cassie. — É o sujo falando do mal lavado, eu acho. Você não estava ontem
na Gucci quando deveria estar na aula de literatura francesa?
Richard riu maliciosamente.
— Touché! Casaco fabuloso, bela Isabella. Cassie, você está maravilhosa
como sempre.
Ela lhe deu um sorriso amarelo com os dentes cerrados, mas permaneceu
silenciosa como uma pedra. Era o máximo que ela podia fazer para não
estrangulá-lo. A presença de Isabella era tudo o que a impedia. E se ele viesse
todo culpado e arrependido? Ela não confiava nele desde que pudesse atirar...
Ela interrompeu seus pensamentos. Depois dos eventos da noite passada, essa
não era uma metáfora muito confortável.
Richard desenrolou um cachecol de cashmere de seu pescoço e baixou o tom
de voz.
— Cassie, querida, você vai ter que me perdoar um dia.
— Eu acho que não — Cassie retrucou.
17
Bergdorf Goodman é uma luxuosa loja de departamentos na Quinta Avenida. Em Nova York (N. T.).
113
— Bem — ele ergueu a mão para cumprimentar uma aluna nova do Liceu,
alta e aparentemente tímida, que ruborizou e sorriu enquanto tirava a longa
franja loira dos olhos. — Acho que essa é minha deixa.
— Ah, Richard — censurou Isabella, seguindo o olhar dele. — Você é
impossível.
— Ao contrário, sou bem previsível. E, ah não, lá vem Daniel outra vez —
suspirou Richard ao avistar um garoto israelense, alto e forte, vindo em direção
a eles. — Ele me persegue, senhoritas. Uma ficada sem importância e agora ele
não me deixa em paz. Uma vez almofadinha, sempre almofadinha... Adeus —
com uma última piscada galante para a loira Liceu, Richard sumiu rapidamente
de vista, deixando Daniel com um olhar de ódio.
— Ele nunca vai mudar — disse Isabella, fazendo “não” com a cabeça.
Ela olhou cautelosamente para Cassie.
— Você acha que vai conseguir perdoá-lo um dia?
— Não.
Quando elas chegaram ao elevador, pareceu como um refúgio dos
comentários e dos observadores. Cassie pressionou o botão com um suspiro de
alívio.
— Será que Ranjit está por aqui?
— Se Ranjit estiver por aqui, tenho certeza de que ele vai te achar —
brincou Isabella, arrastando suas muitas aquisições pelo quarto e jogando tudo
em cima da cama. — Ei, o que é aquilo?
— Boa pergunta Cassie soltou sua sacola bem menor no chão, olhando para
o pergaminho sobre seu travesseiro. Tinha as bordas douradas, o que era uma
novidade, mas estava amarrado por uma fita preta familiar. Um arrepio de
medo subiu por sua espinha. Nada de bom parecia vir dessas mensagens
sinistras. Por que a Academia não podia usar e-mails como todo mundo?
— Vai, abre logo!
Relutante em até mesmo tocar o pergaminho, Cassie cuidadosamente
quebrou o selo de cera que prendia a fita. Desenrolando a mensagem com a
ponta de uma unha, ela leu tudo em silêncio.
114
Isabella tinha se esquecido completamente de Bergdorf Goodman. Ela
estava observando Cassie com uma curiosidade insuportável.
— Vai! Me conta!
Cassie franziu a testa.
— É do Conselho dos Anciãos. Seja lá o que isso for.
— Parece bom — Isabella hesitou, então olhou incrédula para Cassie. —
Não é?
— Não. Estou sendo convocada para uma reunião com o Conselho na
próxima semana. Comparecer não é opcional.
Com raiva, Cassie jogou o convite no chão e Isabella o pegou
cautelosamente para ler por si própria.
— É bem rude, não é?
— É. Bom, eu acho que posso adivinhar do que se trata.
As garotas se olharam e nenhuma delas estava sorrindo. Elas disseram em
uníssono:
— Carnegie Hall.
***
— Cassie, oi — o rosto de Ranjit se iluminou quando ele levantou a cabeça
da pilha de livros em sua mesa. Não tinha sido difícil encontrá-lo: metido em
um canto silencioso da enorme biblioteca, lendo atentamente livros antigos que
pareciam não pertencer àquele lugar supermoderno e lustroso. Mas a expressão
dele fechou quando olhou para a expressão dela. — O que houve?
Cassie queria jogar o pergaminho, ela odiava até mesmo tocá-lo, mas
conseguiu colocar o papel enrolado cuidadosamente na frente dele, sobre o
livro aberto. Os olhos dele se arregalaram.
115
— O Conselho dos Líderes.
— Você já recebeu um desse? — ela ergueu uma sobrancelha, perplexa.
Ranjit sacudiu a cabeça.
— Não. Mas reconheci o estilo — ele passou o dedo pela borda dourada do
pergaminho.
— Chegou hoje. Enquanto eu estava fora, claro.
— Entendi — ele se sentou novamente, então olhou para ela, procurando
com os olhos. — Como você está, Cassie? Desculpa por não ter te acompanhado
até o quarto ontem... E por como as coisas aconteceram no geral. Vou te
recompensar, prometo — ele sorriu brevemente e lançou um olhar de
desculpas. — Eu tenho dito isso para você com certa frequência.
Cassie sorriu.
— Estou bem. Acho que estou começando a ficar com um pouco, hã, de
fome, mas nada que não consiga controlar — percebendo o olhar dele de
preocupação, ela continuou, esperando distraí-lo. — Então, o que Sir Alric te
disse ontem à noite? Aulinha básica de orientação sexual?
— Mais ou menos isso... — ele murmurou.
— Sério? — a voz de Cassie não escondeu a surpresa.
— O quê? Hã, não — disse Ranjit, como se tivesse sido distraído por outro
pensamento. — Não, não era nada. Eu acho que ele apenas queria me
repreender, como o mais velho é o mais sábio de nós. Eu acho que estávamos
dando um showzinho lá — ele deu um risinho malandro.
— Acho que sim... — ela sussurrou, inclinando-se para beijá-lo breve e
cautelosamente, antes de puxar uma segunda cadeira de uma carteira vazia na
frente e sentar-se ao lado dele. — De qualquer forma, desculpe por eu ter
conseguido arruinar o Dia dos Namorados.
Ranjit escorregou a mão e colocou sobre a dela.
— Você não o estragou. Deixa disso. Uma coisa é certa, nunca tive um
encontro como aquele. Eu não cheguei a te agradecer apropriadamente pela
experiência memorável! — ele sorriu.
116
Cassie sabia que ele estava apenas tentando animá-la, porém, ela não
conseguiu retribuir o sorriso dele.
— Mas é sobre isso que será a reunião, não é? Carnegie Hall?
Ele suspirou e fez “sim” com a cabeça, sério.
— Eu não vejo outro motivo. Cassie... — tomando fôlego, Ranjit desenrolou
o pergaminho e leu. — Você deve saber que isso é muito, muito raro. Os
Anciãos quase nunca se reúnem, que dirá- encontrar um aluno. O Conselho é
formado pelos mais importantes Escolhidos e o trabalho deles não deixa muito
espaço para cuidar dos seus semelhantes. Além disso, a maioria deles levaria
uma vida muito, hã, esquisita, caso seu segredo vazasse.
Cassie torceu o nariz.
— Você quer dizer que eu posso reconhecer alguns dos Anciãos?
— Ahhh, tenho certeza que irá. A menos que nunca tenha assistido ao
noticiário em sua vida.
— Agora estou definitivamente assustada — ela esfregou as têmporas. — O
que eles querem exatamente?
Ele olhou cuidadosamente a prateleira de livros sobre o ombro esquerdo
dela.
— Descobrir o que aconteceu, acredito.
— Mas eu não sei o que aconteceu, Ranjit. E mais ainda, nem Sir Alric sabe.
O que eles esperam que eu diga a eles?
— Não sei — Ranjit apertou os dedos dela, mas ainda não exatamente
olhando-a nos olhos. — Mas tenho certeza de que dará tudo certo, Cassie. Eles
não são temíveis ou déspotas.
— Não todos — ela respondeu bruscamente.
— Você vai ficar bem — ele disse novamente. — Eu estarei lá. Vou com
você.
— Você vai? — ela se iluminou instantaneamente. — Você pode fazer isso?
— Há muitas coisas que eu posso fazer que você não sabe — ele ergueu
uma sobrancelha. — Você tem direito a um Partidário. É o que serei. Não vou
117
deixar que vá sozinha — ele soou determinado demais, como se tentando
convencer outra pessoa além dela. Ela inevitavelmente sentiu uma onda de
alegria por causa dele. Ao se levantar, ela o abraçou por cima da pilha de livros.
As promessas dele trouxeram lágrimas inesperadas aos olhos dela: e ela não
queria muito que ele visse.
— Obrigada, Ranjit.
— Sem problemas — ele respirou. Então ela sentiu seus pés saírem do chão
e percebeu que ele a tinha levantado como se ela não pesasse nada. Colocando-
a de volta ao chão, do lado dele da mesa, o corpo dela pressionado ao dele, ele a
beijou devidamente. Não era urgente como o da noite passada, apenas caloroso
e reconfortante. Depois de um momento, ele se afastou, com um olhar que ela
interpretou como de alívio. Sorrindo apoiada ao peito dele, ela murmurou:
— Você estará lá com certeza?
— Já disse. Não vou deixá-la sozinha.
Não, ele não deve nos deixar!
A voz rude assustou Cassie. Ela se afastou, chocada.
Tem certeza de que ele não deixará? Você confia nele?
— Claro que confiamos! — ela sibilou.
— Cassie? — Ranjit franziu a testa para ela. — O quê?
— Nada. Desculpa — ela disse rapidamente. Ao olhar para cima, ela se
deparou com o olhar ansioso dele.
Podemos confiar que ele não nos deixará?
Sacudindo a cabeça para tentar perder Estelle, ela forçou uma risadinha,
subiu nas pontas dos pés e o beijou rapidamente.
— Eu tenho que ir.
— Não se preocupe, Cassie. Ok? Você não tem com que se preocupar.
— Claro — ela deu um falso sorriso brilhante. — Trata-se apenas do
Conselho dos Líderes, certo?
Ranjit riu baixinho.
118
— Certo. Vejo você daqui a pouco.
Ela apertou a mão dele uma última vez, então saiu apressadamente, antes
que Estelle dissesse qualquer outra coisa. Ranjit tinha dito que ela não devia se
preocupar e, ela acreditava nele. Ela acreditou na palavra dele. Ela tinha
confiado nele. Não tinha?
Quando Cassie contornou as pilhas de livros, notou uma figura familiar se
distanciando de uma das mesas em direção à porta, com muitos arquivos
debaixo do braço. Jake. Ela quase chamou por ele, desejando passar-lhe um
sermão sobre ter abandonado Isabella naquele dia mais cedo, mas ele já tinha
saído. Debaixo da mesa dele, no entanto, ela pôde ver um único pedaço de
papel que tinha caído no chão. Cassie agachou para pegá-lo. Era uma página de
um pequeno plano, impressão de um arquivo de computador, que estava bem
claro. O título por si só era suficiente para fazê-la estremecer:
Altamente Confidencial - Inquérito da morte de Jéssica Marie Johnson
Mas o que tirou o fôlego de Cassie foram as quatro palavras escritas no selo
bem no topo da página:
Federal Bureau of Investigation18
— Jake — ela sussurrou para si mesma. — O que você fez?
18
O Federal Bureau of Investigation (“Escritório Federal de Investigação” em português) é mais conhecido pela sigla FBI; um órgão equivalente à Polícia Federal no Brasil (N. T.).
119
Capitulo 15 A insônia estava fazendo a fome crescer. Além do estresse, Cassie pensava.
Depois de uma noite sem dormir, Cassie se sentia grogue e fraca — ela faltou à
aula pela primeira vez em sua carreira na Academia Darke. Signor Poldino
aceitaria a desculpinha qualquer de uma dor de cabeça, ela pensou, gemendo
enquanto se jogava de volta aos travesseiros. Confrontar Jake sobre os arquivos
do FBI teria que esperar.
Para convencer Isabella foi necessário um pouco mais do que ela disse para
o professor de artes, mas assim que sua colega de quarto foi persuadida a deixá-
la em paz e ir para a aula, Cassie suspirou profundamente de alívio. Ela rolou
na cama e puxou as fotografias derretidas que estavam debaixo do colchão.
Sentando-se com as pernas cruzadas sobre a cama, olhou atentamente para as
fotos mais uma vez.
Ela mal podia compreender a lista de problemas que a confrontava: os
porta-retratos derretidos e depois o bracelete de Isabella; o Carnegie Hall e as
consequências do novo poder dela; o terrível incidente com Isabella na Coney
Island; Jake e toda a bagunça com Katerina; Ranjit; e, é claro, a cereja do bolo: a
120
reunião com o Conselho dos Líderes. Tudo parecia desmoronar sobre ela, no
que ela havia se tornado. Ela nunca tinha se sentido tão deprimida e
desamparada.
O clima não estava ajudando. Pela janela, uma massa de nuvens e neve
cinzenta cobria a cidade e flocos de neve cinza caíam aleatoriamente, grudando
no vidro. O dia parecia refletir o modo como ela se sentia. Ela precisava saber
de muita coisa e não tinha ninguém para quem perguntar. Sacudindo as pernas
para fora da cama, ela olhou pela janela de vidro cristalino. Sir Alric, ela pensou.
Ele tinha prometido pesquisar o estranho poder dela e talvez já tivesse
encontrado mais informações. Ela sabia que não aguentaria nem mais um dia
sem perguntar, de jeito algum.
Quando ela saiu do elevador, a porta do escritório estava aberta.
Inexplicavelmente nervosa, ela se aproximou. Sir Alric estava apoiado na frente
de sua mesa, conversando com alguém na porta de frente para ele. Tudo o que
ela conseguia ver do visitante era a parte de trás da cabeça, que parecia familiar
— estupidamente familiar, porque era óbvio que ela estava enganada. Não
poderia ser ele. Não em Nova York. Ao mesmo tempo, ela começou a sentir seu
coração disparar.
Simplesmente não podia ser ele... Podia?
Ela sacudiu a cabeça uma vez, rapidamente e com força. Sir Alric de
imediato olhou para cima, percebendo o movimento. Ela pôde notar a surpresa
se instalar no rosto dele, além de algo parecido com irritação. Ele não esperava
por ela. Ela estava interrompendo. Cassie ergueu a mão com hesitação — em
parte para cumprimentá-lo, em parte para indicar que esperaria, mas ele não
tomou conhecimento. Ao invés disso, ele estalou os dedos uma vez para
alguém que ela não podia ver e um secretário apareceu.
— Sir Alric está ocupado agora — o jovem homem deu um sorriso
medíocre e fechou a porta com força na cara dela.
Cassie olhou embasbacada, boquiaberta.
— Eu espero — disse com raiva.
Havia algumas cadeiras de design impecável no canto da antessala, mas
Cassie as ignorou, bem como as revistas e as prateleiras de livros. Ela apenas
conseguia andar para frente e para trás, de cara feia, enquanto os minutos
passavam. A terrível certeza de que ela conhecia sim o visitante estava
crescendo. De que ele era quem ela pensava que fosse. Por que mais Sir Alric
121
teria reagido da forma como reagiu? A fúria borbulhava dentro dela e ela
tencionava o maxilar por causa disso. Talvez ela não conhecesse o sábio e gentil
Sir Alric tão bem, afinal de contas. Quando a porta se abriu, virou-se com os
olhos em chamas. Mas não era Sir Alric nem seu secretário...
Era Patrick Malone.
Cassie olhou fixamente para seu velho amigo, seu mentor, o principal
responsável por ela ser quem era agora. Patrick sorriu ansiosamente.
— Cassie.
Ela respirou fundo.
— O que você está fazendo aqui?
— Eu... Eu tinha que conversar com Sir Alric sobre uma coisa. Não... Dava
para esperar. Cassie, como você está? — ele levantou a mão.
Ela não pegou. Ela podia sentir seus dedos tremendo e não queria
demonstrar quão assustada e irritada estava.
— Não sei o que está fazendo, mas...
— Cassandra — Sir Alric estava de repente atrás dele. — Patrick estava de
partida.
— Por que ele esteve aqui?
— Por que você não entra e falamos sobre isso?
— Sim, Cassie. Vá em frente — Patrick não estava mais sorrindo. — Sir
Alric vai explicar — ele olhou para o homem mais velho.
Cassie franziu a testa, olhando do rosto nervoso de Patrick para as feições
sem expressão de Sir Alric Darke. Ela abriu a boca para dizer não, mas então a
curiosidade foi maior. Ela fez “sim” com a cabeça, silenciosamente.
Sir Alric fez gesto para que entrasse, enquanto o jovem secretário
acompanhou Patrick até a saída. Era evidente que ele queria mantê-los
separados, mas embora o secretário tivesse passado rapidamente por Cassie,
sem ao menos olhar para ela, Patrick parou para abraçá-la. Ela permaneceu sem
se mover, determinada a não abraçá-lo de volta. Ela já estava sentindo o
doloroso tormento dos segredos que ela não conhecia. Sir Alric fechou a porta
com força assim que Patrick a atravessou.
122
— Pois não, Cassandra. Por que não se senta? — Sir Alric se sentou à mesa,
mas girou a cadeira em 45 graus, de maneira que ela visse seu perfil e olhou
para o horizonte da cidade. A frieza desdenhosa dele era perturbadora: ela
esperava um pouco de contribuição. Ela teve que respirar fundo mais uma vez
antes de falar e permaneceu em pé.
— Patrick — ela lambeu os lábios e engoliu. — O que ele está fazendo aqui?
— Por que ele não viria? Ele tem tentado entrar em contato com você desde
o início do semestre — Sir Alric girou a cadeira para olhar para ela. — Não
obteve respostas, pelo que parece. Naturalmente, ele estava preocupado com
você.
Cassie mordia a parte interna das bochechas.
— As mensagens dele não chegaram até você, eu suponho.
— Sim, chegaram — ela disse.
— Entendi.
— Olha, eu não queria falar com ele, tá? Eu não estava pronta.
Fechando os olhos, ele massageou a parte superior do nariz.
— Por que não?
— Porque ele sabe. Sobre a escola. Sobre tudo. Sobre os Escolhidos. Não sabe?
Mais uma vez, Sir Alric girou para ver a cidade.
— Sim.
— E ele sabe que sou... Dos Escolhidos?
— Sim. É por isso que ele está preocupado. Isso não te ocorreu, Cassandra?
Ela mordeu o lábio para evitar xingá-lo. A arrogância deste homem! Ele
estava sendo obtuso ou ele realmente não entendia como isso a fazia se sentir?
— Como Patrick sabe?
Sir Alric suspirou intensamente.
— Ele sabe, Cassandra, porque ele mesmo foi aluno daqui.
123
Cassie se sentou. Por longos segundos ela não conseguiu falar.
— Como você acha que ele sabe de nós? Por que você acha que ele sugeriu
que você se inscrevesse para estudar aqui dentre tantos lugares?
— Sim, por quê? — Cassie se levantou prontamente. — Por que ele faria
isso? Ele sabia de você e dos Escolhidos? Ele sabia tudo sobre esse lugar, é o que
está me dizendo. E ainda assim, ele me mandou para cá? — havia uma dor em
seu peito, sufocando-a.
— Sente-se, Cassandra — Sir Alric lançou um olhar, depois virou de novo.
Engraçado, ela pensou amargamente enquanto se sentava, como ele parecia não
conseguir encará-la.
— Estou esperando — ela disse calmamente.
Ele juntou as mãos com os dedos esticados e, enfim, voltou-se
adequadamente para ela.
— Patrick a enviou porque ele sabia o que oferecemos aqui: o que você
tinha a ganhar. Ele sabia que você se encaixaria em nossos padrões
educacionais, ele sabia que você se beneficiaria imensamente de um tempo na
Academia. Acredite, ele pensou bastante e durante muito tempo antes de te
mandar para cá. Mas ele te mandou.
Cassie se sentiu tonta. Ela colocou as mãos uma de cada lado da cabeça.
— E veja o que me aconteceu — ela suspirou. — Como ele pôde?
— Porque ele não previu isso. Nenhum de nós antecipou isso. Ele pensou
que seria impossível, que não havia chances de você se tornar uma Escolhida. Ele
fez com que eu prometesse escolher sabiamente sua colega de quarto, que você
tivesse a melhor companhia possível. Eu fiquei muito feliz em prometer isso.
Isso acabou acontecendo para melhorar as coisas, eu acho.
Ela esfregou a testa.
— Sim. Isso, sim.
— Veja bem, Patrick era colega de quarto de um membro dos Escolhidos.
Erik era um bom membro dos Escolhidos e um ser humano melhor ainda.
Patrick o respeitava imensamente e o sentimento era mútuo. Assim como você e
Isabella, Erik se recusou a enganar Patrick. Ele se alimentava de Patrick com seu
124
total conhecimento e consentimento e nunca houve nenhum dano. A relação
deles era a mais perfeita possível entre um Escolhido e sua fonte vital.
A maneira casual como ele tinha dito isso fez descer um arrepio de terror
pela espinha de Cassie.
— Patrick sabia que você estaria em segurança. Com a melhor das garotas
como colega de quarto, você estaria protegida, seria privilegiada e, ele sabia,
por experiência própria, que nenhum mal te aconteceria. Acima de tudo, ele
pensava que não havia chance alguma, a menor possibilidade, de você se tornar
membro dos Escolhidos. Patrick também era bolsista. Ele sabia que deveria ser
impossível.
— E então veio Estelle — suspirou Cassie. Sentindo todo o corpo dormente.
Sir Alric concordou com a cabeça solenemente.
— Há algo mais que deseje saber?
Ela sacudiu a cabeça devagar.
— Não. Não quero saber nada mais. Exceto...
Ele a observou em silêncio, aguardando.
— Este cara, Erik. O colega de quarto de Patrick. Você disse que ele era um
bom ser humano.
— Ah, sim. Erik Ragnarsson morreu.
Cassie tentou absorver a resposta. Não, ela não perguntaria mais nada. Ela
não queria saber.
— Eu achei melhor que eu explicasse ao invés de Patrick. Por causa de seu...
— ele parou. — Estado volátil. Você gostaria de conversar com ele agora?
Ela sacudiu a cabeça violentamente.
— Não! Não, eu não quero vê-lo.
— Muito bem — Sir Alric inclinou a cabeça. — Então tudo o que resta, Srta.
Bell, é você me dizer por que veio me procurar em primeiro lugar.
Deus. Ela quase tinha esquecido. Com a mão tremula, Cassie retirou o
pergaminho de bordas douradas do bolso. O caro pergaminho mal estava
125
enrugado. Considerando o que tinha acabado de acontecer, os Anciãos
pareciam bem menos importantes. Ela mal se importava com isso. Não. Não,
tinha que se importar. Tinha que saber. Cassie apertava os dentes.
— Você sabe algo sobre isso?
Sir Alric olhou de relance para o convite.
— Sabia que tinha recebido.
— Você sabia? Você sabia que isso ia acontecer? Antes de eu receber, então?
— Sim.
Cassie ficou olhando para baixo, para o pergaminho em suas mãos.
— Você contou para eles? Para os Anciãos, quero dizer. Sobre mim?
— Claro.
Ele soou tão razoável que ela queria bater nele.
— Por quê?
Sir Alric sorriu.
— Desde os acontecimentos no Carnegie Hall, eu falei várias vezes com
meus colegas do Conselho para ver se eles podiam me dar alguma explicação
para os poderes que você manifestou.
— E eles deram? — Cassie sentiu um nó na garganta. — O que você
descobriu?
— Nada. Temo que não possa te dar mais informações, Cassandra. Eu
estudei vários livros. Nada até agora fez muito sentido.
— Então por que o Conselho quer me ver? O que você não está querendo
me dizer?
Em meio ao silêncio, ouvia-se apenas Cassie mexer ansiosa no pergaminho
em suas mãos. Por que Sir Alric parecia tão controlado, tão perfeitamente
calmo? Ela estava começando a odiá-lo. O ritmo do coração dela começou a
acelerar conforme ela ruborizava de irritação.
— Acredito ter dito tudo o que posso — Sir Alric se levantou. — Mais
alguma coisa, Cassandra?
126
Ele era tão alto. O poder irradiava dele. Ela lembrava ter pensado nisso na
primeira vez que o viu. O quanto ela havia ficado impressionada. Quão
intimidada. Agora não mais.
Agora não mais!
Ela se levantou.
— Você não pode me controlar.
— O que você disse? — a voz de Sir Alric estava perigosamente calma.
Ela andou em direção a ele.
— Sou mais forte do que pensa, Alric — ela sibilou.
Ele apertou os olhos. Um músculo debaixo do olho dele fisgou.
— Não me subestime! — os lábios dela cerraram-se.
— Cassandra... — a voz de Sir Alric era um leve resmungo, mas a expressão
dele era de cautela.
A sala estava vermelha outra vez. Mas enxergar tudo tingido de carmim
não era tão assustador dessa vez. Significava poder. Ela gostava disso. Como ele
ousava tratá-la daquela maneira? A fúria formigava em sua espinha, tremia
como uma áurea fora de seu corpo.
— Cassandra!
Ela não respondeu. Ao invés disso, riu. Ela olhou selvagemente ao redor da
sala. Era como ele. Pura elegância. Puro bom gosto. Puro controle! Ela mostraria
para ele...
Expandindo, sua áurea de poder se espalhou por toda a sala. Através do
reflexo do vidro colorido de uma luminária magnífica, a lâmpada brilhava mais
intensamente e depois mais. A luz mudava de cor à medida que se
intensificava. Agora, o brilho insuportável estava vermelho-sangue e claro
como um laser, brilhante com energia. Sir Alric exclamou de horror e tentou
pegá-lo.
Tarde demais. A lâmpada explodiu em uma chuva de vidro fino, dando um
banho na mão e no braço dele.
— Cassandra!
127
O tom dele tinha mudado completamente. Havia raiva agora, um rangido
ameaçador. Olhando para ele, ela viu os próprios olhos dele ficarem
intensamente vermelhos; primeiro as pupilas, depois se expandiram até que
todo o globo ocular brilhasse escarlate. Deus, mas ele era tão forte! A luz do
espírito dele queimava no peito como um sol intenso.
Era como ela via. De repente, ela sabia. Monstruoso. Cassie apertou tanto os
dentes que isso doía. A áurea ao seu redor piscou.
Machuque-o! Machuque-o! Como ele ousa nos tratar assim!
Cassie fechou os olhos com força.
MACHUQUE-O!
— NÃO! — ela rosnou. Ela apertou mais os punhos; podia sentir as unhas
perfurando suas próprias mãos. Sir Alric estava em pé absolutamente imóvel,
mas ela sabia que ele estava pronto para dar o bote. Pronto para se defender?
Pronto para atacar?
Ataque!
— Não!
Lentamente, tremendo e puxando o ar, ela sentiu seus pulsos soltarem, seus
músculos relaxarem. Quando ela fechou os olhos e abriu de novo, o filtro
vermelho havia se dissipado e ela podia vê-lo de modo claro mais uma vez. Os
olhos dele permaneceram vermelhos por um momento, então foram lentamente
retornando a sua cor cinza habitual.
— Controle-se — ele murmurou. Ainda era um rosnado, porém menos
agressivo. — Bom.
Sem tirar os olhos dela, Sir Alric tirou com a mão os estilhaços brilhantes de
vidro em sua manga. Ele tinha cortado o dedo, Cassie notou. Havia sangue. Ela
se recompôs, tentando reprimir o prazer que tinha sentido nisso. Respirando
com força, ela esperou até ter certeza de que podia andar sem titubear. Então
ela se virou, tremendo e saiu da sala, fechando a porta firmemente atrás dela.
128
Capitulo 16 Posso te ajudar, minha querida. Você está fraca. Não quero que adoeça, minha doce
Cassandra. Deixe-me ajudá-la. Vamos nos unir. Não me deixe aqui fora, não quando eu
posso salvá-la. Podemos salvar uma a outra...
— Ah, meu Deus — murmurou Cassie. — Estelle...
— Cassie! — Isabella puxou o braço de Cassie. — Você está sonhando de
novo. Falando sozinha. Acorda!
Cassie fez força para abrir os olhos. Um pouco de luz do sol invadia o
quarto pela janela com vista para o Central Park. Horas passaram desde que
tinha saído cambaleante da sala de Sir Alric, fraca de fome. Isabella deve ter
voltado da aula.
— Isabella?
— Cassie, qual é o problema? O que posso fazer?
129
Como sempre, sua colega de quarto estava efervescendo de energia e Cassie
se deu conta de que se inclinava em direção a ela ávida por se alimentar.
Esticou uma das mãos para agarrar Isabella, mas não a alcançou e caiu
desastradamente no chão.
— Cassie? Cassie! — Isabella se agachou ao lado dela. — Oh, Cassie, você
está doente! Vem, deixe-me te ajudar...
— Não! — Cassie foi para trás, se apertando entre a cama e o criado-mudo,
e levantou a mão, espalmada, para proteger sua amiga. — Não, Isabella, não!
Estou... Acho que preciso me alimentar.
Isabella hesitou, olhando para a mão espalmada de Cassie. Então ela
apertou a mão da amiga, levantou-a e segurou nos ombros dela. Cassie resistiu,
dura de medo. A qualquer momento agora... A qualquer momento...
Isabella colocou as duas mãos no rosto de Cassie e estava com uma
expressão séria.
— Então você deve se alimentar. Vamos lá.
Cassie observou enquanto sua colega de quarto estendia os braços.
— N-não!
— Cassie, você está horrível. Por favor? — Isabella apertou os pulsos contra
as mãos de Cassie, mas ela os afastou rapidamente.
Isabella sacudiu a cabeça, preocupada e brava.
— Olhe para você! Sua pele está fina como papel. Seus olhos, sem brilho.
Você não devia ter esperado tanto. Vamos. Vamos até o escritório de Sir Alric.
Ele vai ajudar.
— De jeito nenhum — Cassie fez “não” com a cabeça rapidamente. — Não
vou até ele de jeito nenhum.
— Mas, Cassie, por quê?
— Não vou... Te explico depois — Cassie colocou as mãos na garganta. —
Ai meu Deus, Isabella. Estou com tanta sede.
— Tome, pegue aqui — Isabella levou o jarro d'água até os lábios de Cassie.
Ela engoliu desesperadamente, mas não estava ajudando. — Espere aqui. Não
se mexa — fez Cassie segurar o jarro com força e saiu correndo do quarto.
130
Cassie tinha tornado toda a água, enchido o jarro outra vez e estava dando
largos goles novamente quando Isabella retornou. Trouxe Ayeesha, que ficou
pasma quando botou os olhos em Cassie.
— Meu Deus! Cassie, o que você tem? — ela exclamou.
— Ela precisa se alimentar — Isabella cruzou os braços. — Agora. Ayeesha,
você pode nos ajudar? Ela só fez isso uma vez antes.
— Uma vez? Cassie, você só se alimentou uma vez? — os olhos da garota de
Barbados se arregalaram de horror. — O que você tem feito consigo mesma?
— Ela fica nervosa de me usar para se alimentar — disse Isabella
emburrada. — Ela tem se segurado.
Ayeesha ficou surpresa quando se deu conta do que Isabella dizia. Olhando
fixamente para ela por uns instantes, ela se virou e olhou bem para Cassie.
— Você não acha que Isabella devia tomar um drinque também?
Por um momento, Cassie não conseguiu entender qual era a dela. Então ela
se lembrou da bebida que os Escolhidos oferecem a seus colegas de quarto para
que não se lembrem da alimentação.
— Está tudo certo, Ayeesha — ela sussurrou sem forças. — Ela sabe.
Concordou com isso.
— Sério? — Ayeesha ainda parecia cautelosa. — Talvez devêssemos chamar
Sir Alric...
— Não! — a voz de Cassie estava rouca e grossa.
— Ok. Vou ajudá-la, então. Você se lembra do que aprendeu?
Isabella rapidamente fez “sim” com a cabeça para as meninas.
— Sim. Cassie, vamos — ela esticou os braços em direção a Cassie mais
uma vez e, mesmo atordoada, Cassie teve certeza de que a mão de sua amiga
estava tremendo um pouquinho.
Ayeesha pôs a mão no ombro de Isabella para reconfortá-la.
— Agora, Cassie. Segure-a.
131
Cassie cambaleava, sentindo-se tonta. Isabella sorriu um pouco nervosa e
fechou os olhos quando Cassie apertou os dedos em forma de anel em seus
pulsos.
Ela podia sentir o sangue de Isabella pulsando sob as pontas de seus dedos
e o ar entrando e saindo dos lábios semiabertos de sua colega de quarto.
Moveu-se para frente bruscamente, diminuindo a distância entre elas, mas
então sentiu um toque de advertência em seu braço.
— Cuidado — sussurrou Ayeesha. — Mantenha o controle.
— E se não conseguir? — Cassie se sentia desordenada.
— Vou te parar, acredite em mim. Mas você consegue manter o controle.
Sabe que consegue, já fez isso antes. Vá devagar.
Quando fechou os olhos e respirou fundo, Cassie sentiu uma violenta onda
de fome. Mas os dedos de Ayeesha apertaram seu braço com mais força e o
lembrete físico a ajudava a se conter.
Cassie sentiu um raio repentino de absoluto êxtase quando o ar contínuo
começou a sair de Isabella, enchendo seus próprios pulmões e borbulhando em
todo seu corpo. A força de Isabella era tremenda, tão vital! Toda aquela energia
efervescente e interminável... Corria pelas veias dela, arrepiando até a ponta
dos cabelos. Ela quase riu, sentindo-se tonta. O sangue pulsava em suas orelhas
e ela se sentia poderosa e viva novamente. Apertando os pulsos de sua amiga
com mais força, ela sugava a força vital, divertindo-se.
Um som a distraiu momentaneamente. Uma batida na porta? Os olhos de
Cassie abriram e ela olhou para o lado por um instante, ainda sugando a força
vital de Isabella, mais rápido agora...
— Quem é? — perguntou Ayeesha, franzindo a testa. Ela soltou um pouco
o braço de Cassie quando sua atenção se dispersou.
— Sou eu. Jake — uma pausa. — Quem é?
Os olhos de Isabella se arregalaram, horrorizados. Cassie viu a reação de
choque, mas não parou de sugar, levando o ar que estava entre elas direto a
seus pulmões.
— Espere um momento, Jake — disse Ayeesha.
132
Não, claro que Jake não devia saber. Ayeesha não devia deixá-lo entrar. Em
algum lugar no meio do delírio, Cassie percebeu que tinha que dizer isso a ela.
Pare e diga a ela, agora mesmo. Mas ela não conseguia parar, ainda não...
Rápido! Rápido!
Isabella estava recuando, puxando para tentar escapar do controle de
Cassie. Ela estava entrando em pânico por causa de Jake, claro.
Não ligue para ele! Não ligue para nada disso. Continue!
De repente, o pânico e o terror nos olhos de Isabella eram diferentes. Ela
estava se debatendo, lutando e um barulho horrível de falta de ar vinha do
fundo de sua garganta.
Faça ela se calar e ficar parada!
A garota estava lutando agora. As veias no pescoço dela pulsavam. Mas
não era o suficiente. Ela precisava de mais...
— Não! Não!
SIM! Me de mais dela! Nós estamos FAMINTAS, Cassandra! Junte sua boca a
dela e tome TUDO!
— NÃO! Não posso...
SEGURE-A! NÃO DEIXE QUE ELA SAIA!
— Estelle, não... Ela É minha melhor amiga!
Ela não é sua melhor amiga. EU SOU!
— Cassie? Cassie! — a voz de Ayeesha passou pelo cérebro dela quando
sua atenção se voltou para a alimentação. — Cassie, pare neste minuto!
Ignore-a!
Dedos esmagavam o braço de Cassie, rasgando-o. E a raiva surgiu e ela
sugou mais vida para compensar. A fúria vermelha correu pelo corpo dela.
— CASSIE! — os dedos de Ayeesha afundaram no pulso dela,
machucando-a.
133
Foi quando a porta abriu com tudo.
— Que diabos?
O choque a tirou do transe e Cassie quebrou o vínculo. Isabella tropeçou,
respirando com dificuldade, batendo um joelho. Depois caiu se apoiando com
os cotovelos.
— Chega, pelo amor de Deus. Chega — Ayeesha afastou Cassie de Isabella
e a chacoalhou com força.
— O que está havendo? Isabella? Cassie!
As três se voltaram para Jake — Ayeesha sem graça, Isabella pálida e
abalada, Cassie ainda sentindo o prazer da energia. As pontas dos dedos dela
formigavam, o cérebro dela formigava. Ela se sentia como se pudesse voar pelo
telhado.
O rosto de Jake era uma máscara de indignação e fúria.
— Você... Se alimentou dela? É o que estava fazendo? Você SE
ALIMENTOU DELA?
Cassie nunca tinha visto Jake pálido daquele jeito, com os punhos cerrados.
Ela esfregou a boca, respirando intensamente.
— Como você pôde? — as palavras dele não eram mais que um resmungo,
pingando veneno.
— Jake, já chega! — Isabella estava sem ar, mal conseguindo ficar em pé.
— Isabella? Você está bem?
Isabella forçou para sorrir abalada, esfregando os pulsos.
— Bem, Jake, estou bem. Não esquenta.
— Mas... Você tem noção do que ela estava... — a voz de Jake sumiu e ele
quase caiu, batendo contra a parede quando percebeu o que estava
acontecendo. — Meu Deus, Isabella... Você concordou com isso?
— Sim. Sim, Jake. Olha, sinto muito, eu...
Ele se virou para Cassie, enfurecido.
134
— Como pôde? Depois de Jess? Depois do que viu Keiko fazer com Alice?
Você fez isso com sua amiga?
— Keiko? Keiko não era como o resto de nós! — Ayeesha interrompeu
muito brava. — Keiko era sádica! Ela gostava de machucar enquanto se
alimentava. E Alice não se lembrava mesmo!
— Que diferença isso faz? Fique fora disso! — gritou Jake. – Você é um
monstro... Como ela! — ele apontou um dedo para Cassie.
Cassie o ignorou. De repente, ele não fazia diferença. Tudo o que importava
era...
— Isabella. Você tem certeza de que está bem? Eu... Eu te machuquei?
— É sério. Estou bem, Cassie. Jake, por favor...
— Que se dane, Isabella. Você não se importa com o que eu penso, com o
que isso significa para mim...
— Jake, isso não é verdade!
— Ah, não? Você deixou essa sugadora de vidas se alimentar de você e nem
ia me dizer? Tudo bem. Pelo menos sei onde estou pisando.
— Jake, por favor! — Isabella implorou. — Ela não me machucou. Ela
jamais vai me machucar!
Ele falou sem mover muito os lábios.
— Você consegue dizer isso olhando nos meus olhos? Esqueça isso, Isabella.
Mas não se esqueça, jamais, do que eles fizeram com minha irmã.
Dito isso, ele se virou e saiu do quarto como um raio.
135
Capitulo 17 Se ela já não estava bem antes, agora estava total mente infeliz. Cassie tinha
a terrível sensação de que jamais veria Jake de novo. Ainda que temerosa, ela
esperava que ele entrasse na sala de aula. Ele nunca a perdoaria. Nunca.
Ela mal conseguiu sorrir quando Ranjit chegou e se sentou a seu lado. Ela
podia sentir as olhadas perplexas dele, mas não conseguia tirar os olhos da
porta. O coração dela quase pulava cada vez que a porta se abria, mas quando a
aula de matemática começou, ainda não havia sinal de Jake. Palavras e dígitos
flutuavam para dentro e para fora de suas orelhas, passando despercebidos.
Quando a aula terminou, ela estava tão preocupada que juntou seus livros e
saiu sem pensar.
— Cassie — Ranjit estava correndo atrás dela. — Ei, o que houve? Eu fiz
alguma coisa errada?
136
Ela hesitou.
— Você? Claro que não.
— Então, qual é o problema?
Ao se virar, ela analisou bem a expressão dele. O rosto lindo dele parecia
ansioso.
— Perdão. Ranjit, sinto muito. É o Jake.
Ranjit fez uma expressão de cautela.
— O que tem ele?
— Ele nos flagrou enquanto eu me alimentava de Isabella na sexta-feira.
Não o vimos desde então. Ele não tem vindo às aulas nem tem ficado no quarto.
Cassie mordeu o lábio. Dizer isso em voz alta a fazia lembrar de como a
situação era horrível.
— Que droga!
— É mesmo — triste, ela se apoiava em um pé depois noutro. — Primeiro
Katerina reaparece, depois isso...
— Ei, escute, talvez seja melhor se ele der um tempo da Academia, para
esfriar a cabeça. Quero dizer, ele devia sentir que tinha algo entre você e
Isabella. Não deve ter sido um choque tão grande. Ele só precisa de um tempo
para se acostumar.
Cassie sentiu a raiva subir.
— Acostumar? Não consigo ver isso acontecendo de verdade. Ele se
acostumou com o fato da irmã ter tido sua vida sugada de dentro dela? — algo
queimava nos olhos dela, uma pontada de calor que já estava se expandindo.
Ranjit esfregou a testa com o punho.
— Desculpa. Desculpa, isso foi insensível. Não quis dizer...
— Foi algo estúpido de se dizer — ela retrucou.
— Ok. Cassie, ele vai voltar. Ele tem que voltar.
137
— É? Você não conhece Jake — piscando intensamente para tentar se livrar
da névoa vermelha que encobria sua visão, Cassie deu meia-volta e andou
depressa.
Uma vez que estava longe do cerco de Ranjit, o calor em seus olhos
diminuiu e ela conseguiu pensar com clareza outra vez. Por um momento, ela
pensou que ele não a seguiria e a culpa e o remorso a invadiram. Então, ouviu
os passos apressados dele atrás dela.
— Cassie, por favor, me perdoe. Estou tentando ajudar.
Ela se sobressaltou; com medo de olhar para ele. E suspirou.
— Eu sei. Ranjit, me desculpe também. Não sei por que surtei. Estou tão
estressada com a reunião do Conselho chegando e agora Jake...
— Está tudo bem — ele colocou a mão no ombro dela, depois tocou o rosto
dela carinhosamente. Ela pegou a mão dele e o levou até um canto mais calmo.
— Bem — ela disse olhando com incerteza para o lindo rosto de Ranjit —,
tem outra coisa sobre Jake. Ele sabe que Katerina está em Nova York. Ele tem
tentado encontrá-la. Ele quer justiça em nome de Jess. Acho que ele deve ter
hackeado o sistema do FBI para pegar alguns arquivos sobre a morte dela. Ele
tem alguma ideia louca de conseguir que Katerina seja julgada.
Ranjit congelou.
— Ele fez o quê? Cassie, isso é sério. Você tem que contar para Sir Alric. Nós
precisamos lidar com isso antes que Jake faça algo do qual nos arrependeremos.
— Algo de que nos arrependeremos? É com ele que estou preocupada.
Olha, sei que você não tem muitos amigos, então talvez você não entenda... —
Cassie parou rápido quando viu a expressão dele mudar e a magoa cruzar seu
rosto. Ela respirou fundo. Deus, o que estava dizendo? A última coisa que ela
queria fazer era magoar Ranjit. Não podia ficar nervosa, não agora. Ela
precisava apenas ter certeza de que ele tinha entendido. Baixando o tom de voz,
ela recomeçou. — Não quis dizer isso. Me desculpe. Mas, Ranjit, por favor, isso
é importante. Você não pode contar para ninguém sobre Jake. Eu só preciso
conversar com ele. Explicar as coisas.
— Cassie, isso vai além de amizade. Jake ser pego vasculhando o sistema do
FBI e acabar falando dos Escolhidos ou da Academia pode trazer sérias
138
consequências para todos nós — ele a encarava tentando provar seu ponto de
vista.
— Eu não me importo com isso. O que acontece com a Academia não tem
nada a ver com isso.
Ranjit sacudiu a cabeça. Ele também parecia estar se esforçando para ficar
calmo.
— Cassie, o destino da Academia a envolve também. Você precisa se
lembrar disso.
Cassie pegou as duas mãos dele.
— Só um pouco de tempo. Se eu não conseguir persuadi-lo a parar com
isso, contarei para Sir Alric — ela continuou olhando para ele e o olhar dele era
um misto de emoções.
— Ok, Cassie. Não vou dizer nada. Eu juro.
O olhar dele era reconfortante e, ela expirou profundamente.
Você tem certeza de que esse é o melhor modo de encaminhar as coisas, Cassandra,
minha querida? Nós devemos fazer tudo o que pudermos para mantê-lo do nosso lado.
Não devemos deixá-lo escapar...
Cassie fingiu não ouvir as palavras de Estelle. Ela não aguentava mais suas
interjeições.
— Obrigada, Ranjit. Muito obrigada. Olha, nos vemos amanhã, Ok?
— Sim. Te encontro no seu quarto uma hora antes da reunião do Conselho.
— Ok. Ótimo, sim, claro — dessa vez foram lágrimas que picaram os olhos
dela. Como ela podia sonhar em duvidar dele? Cassie se inclinou e o beijou.
Ele a segurou quando ela se afastava e a puxou de volta, pressionando seus
lábios com mais força contra os dela. Depois que o coração dela deu um salto,
ela fechou os olhos e se entregou ao toque dele — mas não completamente.
Quando ele se afastou e sorriu em adeus, ela parou por um instante, chocada,
mas de forma agradável. Eles dariam certo. Seja lá o que estivesse fora de
controle e, que tivesse os levado a emoções extremas, eles estavam conseguindo
contornar. Eles conseguiriam.
Foi quando ela avistou Sir Alric.
139
Ele estava observando os dois, ela pensou e um arrepio desceu por sua
espinha. Sua sensação de bem-estar se dispersou rapidamente, o olhar dele era
nebuloso, mas calculista.
— Cassandra. Posso falar com você um momento? — Sir Alric se dirigiu a
ela.
Ah, não. Tinha muito com que lidar agora e ela já tinha recebido
desaprovação suficiente. O relacionamento dela e de Ranjit não era, em
absoluto, da conta dele. Com um olhar insolente e um “não” com a cabeça,
Cassie deu meia-volta e saiu.
*** Pelo canto dos olhos, Cassie assistia Isabella digitando em seu telefone por
baixo da carteira. Ela estava fazendo de novo. Logo Madame Lefevre iria vê-la
e, então, iria até ela. Há um limite para o que Madame Lefevre pode aceitar.
Ainda assim, Cassie conseguia entender que Isabella assumisse o risco. Elas
não tinham notícias de Jake desde o fim de semana — nenhum telefonema,
nenhuma mensagem. A expressão de sua amiga era mais desesperada a cada
ligação perdida.
— Então vemos que Simone de Beauvoir tem muito a dizer sobre a
humanidade e relacionamentos, até mesmo para o mundo do século 21 e é por
isso que devemos ouvir, prestar atenção ao que ela nos diz, porque é muito
mais do que ganharemos com mensagens de texto semianalfabetas durante nossa
aula.
Uau. Cassie engoliu seco, mas Isabella nem tinha ouvido o aviso da
Madame. Quando a mulher foi discretamente até ela e estalou os dedos
pedindo o celular, Isabella quase teve um treco.
— Você pode pegá-lo de volta no fim da aula — disse Madame Lefevre
brevemente. — Desta vez.
140
Triste, visivelmente relutante, Isabella passou o telefone para a palma da
mão estendida da Madame e seu olhar cruzou com o de Cassie. Cassie podia
apenas tentar enviar mensagens telepáticas de apoio. Madame não era a
professora mais rigorosa da escola; Isabella não estava sendo nada discreta.
Ainda assim, Cassie não sabia por que Madame Lefevre tinha se
incomodado a ponto de confiscar o celular — não era por isso que Isabella iria
se concentrar em Simone de Beauvoir pelos vinte minutos restantes. Ela torcia
os dedos debaixo da carteira, olhando fixamente para o livro, mas sem enxergá-
lo e disparando olhares ansiosos para a janela com vista para Manhattan. Ela
certamente não estava aprendendo nada.
Cassie esperou por Isabella enquanto ela tomava uma bronca pós-aula e
quando Madame Lefevre, enfim lhe entregou o celular, ela saiu correndo da
classe, discando freneticamente.
— Chamada perdida. De novo! Por que o telefone dele está desligado?
— Não sei — o que mais podia dizer?
Ela mal podia dizer a Isabella que não se preocupasse. Jake estava mais do
que furioso.
— Sinto muito, Isabella.
— Não é culpa sua — Isabella deu uma tapinha no braço dela. — É minha.
Eu disse que você podia se alimentar, não disse? Fui eu que entrei em pânico. É
tudo por causa... — lágrimas brotaram dos olhos dela. — Tudo porque eu insisti
em não contar para Jake. Eu não quis que você mentisse para mim, mas aí eu
menti para ele. Percebe? A culpa é minha.
Isso fez Cassie se sentir ainda pior.
— Isabella você não deve...
— Eu acho que ele foi para casa dele no Queens19.
O olhar dela estava distante.
19
Queens é um dos cinco distritos que formam a cidade de Nova York, quase tão grande em área territorial quanto Manhattan, Bronx e Staten Island juntas. O Queens é também um dos 62 condados (Condado de Queens) do Estado de Nova York. Tem uma população de pouco mais de 2,2 milhões de habitantes (N.T.).
141
— Eu só não sei por que ele não quer nem falar comigo. E estou com medo
de que se eu aparecer na casa dos pais dele, ele fique ainda mais irritado...
Talvez eles nem me deixem entrar.
— Espere, Isabella, você quer ir até a casa dele? Não sei se é uma boa ideia
agora — ela estava um pouco em pânico.
Cassie tinha a esperança de falar com Jake antes que Isabella o visse. Sua
colega de quarto ainda não estava ciente de que Jake sabia que Katerina estava
em Nova York. Ela precisava saber exatamente o que Jake estava planejando e
não queria Isabella mais envolvida do que já estava. Cassie devia isso a ela.
— Talvez não seja. Mas tenho que tenho que tentar, não tenho?
Isabella parou, respirando com dificuldade. Passou a mão nos olhos.
— Ainda assim, estou muito preocupada. Os pais dele não estavam felizes
com a volta dele para a escola. Claro que isso fez com que ele se sentisse mal.
Mas ele voltou assim mesmo e isso tem um pouco a ver comigo. Eu sei que a
alimentação, além do fato de eu ter mentido, foi a gota d'água. Não é? Ele
deixou a escola e voltou para casa. E eu acho que ele nunca mais vai voltar!
Tudo culpa minha! — ela lamentou.
— Isabella, acalme-se. Ele vai voltar.
— Não, Cassie. Ele não vai voltar por vontade própria. Se eu ao menos
pudesse falar com ele, pedir desculpas, fazê-lo compreender.
— Isabella...
— Depois da aula. Vou vê-lo. É isso, está é a única solução.
Cassie suspirou.
— Era nisso que você estava pensando ao invés de Simone de Beauvoir.
— Depois corro atrás de Simone — o fogo estava de volta aos olhos de
Isabella. — Mas, nesse meio tempo, acho que ela entenderia.
Cassie sacudiu a cabeça.
— Ok. Bem, você não vai sozinha. Vou com você.
142
*** Cassie olhava para o céu vespertino, ainda cristalino e deslumbrante como
no dia em que cruzaram a Ponte do Brooklin e admiraram a vista da cidade,
mas agora algumas nuvens cinzentas de gelo estavam pairando sobre o
horizonte.
— Vai nevar logo. Tem certeza de que sabe onde...
— Lá! — Isabella se inclinou para falar com o taxista. — No fim desta rua.
Cassie espiava os prédios decadentes pela janela do táxi.
— Tenho a impressão, de que eles não ficarão felizes em nos ver.
— Não estou nem aí se ficarão ou não. Tenho que falar com Jake — Isabella
procurava em sua agenda de couro Gucci. — Agora me deixe encontrar o
número exato... Ah, aqui! Aqui, senhor, por favor! — o repentino grito agudo
de Isabella fez o motorista balbuciar um palavrão. Ele parou o táxi de repente,
Isabella pagou rapidamente e desceu. Cassie saiu logo depois dela.
— Segure a porta, por favor — Isabella pediu ao senhor de idade que saía
do prédio. Ele olhou um pouco duvidoso, mas Isabella se aproximou e sorriu
docemente. Ele acenou com a cabeça e permitiu a passagem.
— Qual é o número? — perguntou Cassie.
— 518 — disse Isabella, seria novamente.
O prédio tinha vários andares e não parecia ter elevador. Essa era, de fato,
uma Nova York diferente. A escadaria cheirava a comida e a pintura estava
descascada em alguns lugares. As paredes eram finas o suficiente para que a
audição aguçada de Cassie escutasse um casal discutindo no terceiro andar. Era
um mundo totalmente diferente da Academia Darke, mas parecia amigável de
alguma forma: barulhento, aconchegante e caseiro. Do lado de fora do
apartamento dos pais de Jake havia plantas bem cuidadas e um capacho gasto
que dava as “boas-vindas”.
— Se pelo menos fosse verdade — Cassie murmurou.
143
Isabella a ignorou. Respirou fundo, bateu e quase imediatamente a porta
pintada em suave azul celeste se abriu.
— Querido, graças a Deus você voltou... Oh! — a mulher que encarava
Isabella obviamente esperava que fosse outra pessoa, porque ela parou e fechou
a boca no meio da frase.
Ela era muito bonita. Bem, pensou Cassie lembrando-se de Jake, claro que era
— mas havia uma sombra debaixo de seus olhos avermelhados e do rosto tenso
de tanta ansiedade. O cabelo castanho claro estava preso em um rabo de cavalo
e ela mordia os lábios.
— Perdão. Achei que era... Minha nossa... — a mãe de Jake parou outra vez
quando seu olhar preocupado avistou Cassie.
Os olhos dela se fixaram por um momento desconfortável, como se ela não
pudesse acreditar no que via. Então ela sacudiu a cabeça.
— Peço desculpas. É que você... Você se parece muito com minha filha.
Cassie se viu dando um passo para trás. Ela olhou para baixo, engolindo
seco
— Sou amiga de Jake. Cassie. E esta é Isabella.
Reconhecimento, seguido pelo desconforto, parecia passar pelo rosto da
Sra. Johnson.
— Ah, Isabella. Namorada de Jake... Ele falou sobre você.
— Janice? — veio uma voz de dentro do apartamento. — Quem é?
Um instante depois, um homem apareceu ao lado da Sra. Johnson. Ele com
certeza era o pai de Jake: alto e bonito, mas seus grandes olhos castanhos
também estavam turvos de preocupação. Ele também pareceu surpreso em ver
Cassie e Isabella à porta.
— Isso mesmo, sou a namorada de Jake — Isabella continuou.
Ela respirou e estendeu a mão.
— Prazer em conhecê-la, Sra. Johnson. Sr. Johnson. Hã, podemos entrar?
Confusa, a mãe de Jake tocou a mão estendida de Isabella por um instante,
olhando para o marido. Então, eles olharam para Cassie desconsoladamente.
144
— Não, eu... Não é um bom momento, sinto muito...
Isabella deu um passo para frente.
— Por favor, Sra. Johnson. Não tomaremos muito do seu tempo. Só
queremos falar com Jake um instante. Ele está?
Sra. Johnson suspirou vacilante.
— Não, não está. Ele mal saiu de casa no fim de semana. Estava
trabalhando no computador o tempo todo. Então, esta tarde ele saiu feito um
furacão. Disse que tinha achado o que estava procurando, mas que tinha que
voltar para a Academia. Alguma coisa sobre ser rastreado. Ouça, o que está
acontecendo? Jake não nos contaria, mas ele estava claramente preocupado com
você, Isabella. Ele parecia achar que você corria algum tipo de perigo, que o que
houve com Jéssica poderia acontecer com você.
— Ele disse isso? — Isabella engoliu seco.
— Sim! — retrucou a Sra. Johnson. — O que ele quis dizer? Olha, se vocês
souberem de algo têm que nos contar.
Cassie olhou para Isabella, mas o rosto dela estava subitamente calmo e ela
respondeu:
— Sinto muito, Sr. e Sra. Johnson. Jake e eu tivemos uma discussão e eu
acho que ele deve ter compreendido mal algumas coisas. Acho que é melhor
irmos. Desculpe termos incomodado.
Ela sorriu educadamente e se virou antes que os pais de Jake pudessem
dizer mais alguma coisa. Cassie ouviu a porta dos Johnson bater enquanto elas
desciam as escadas em direção a rua coberta de neve. A neve caía outra vez.
Quando olhou para a janela do apartamento, Cassie viu a persiana se
movimentando, viu pela última vez o semblante desconfiado do Sr. Johnson.
— Precisamos de um táxi — disse Isabella, procurando carros amarelos pela
rua, determinada. — Precisamos encontrar Jake. Algo não está certo, algo além
de ele ter visto você se alimentar de mim, por que mais ele sairia outra vez do
apartamento dos pais?
— Isabella, tenho que te contar uma coisa... — a voz de Cassie ficou presa
na garganta, mas não havia o que fazer. Segredos e mentiras os levaram até essa
encrenca. Não havia mais motivos para guardar segredos. Cassie respirou
fundo. — Acho que não somos as únicas que procuram por ele.
145
Capitulo 18 Isabella empalideceu visivelmente e então soltou um grito agudo.
— O FBI?
O taxista lançou um olhar irritado pelo retrovisor.
— Shii!
— Cassie, não acredito que não tenha me contado isso!
Cassie respirou fundo, tentando evitar o olhar incrédulo de sua amiga. Ela
limpou a garganta, estava desconfortável.
— Me perdoe, Isabella. Devia ter contado sobre o documento, mas eu não
quis te preocupar antes de ter a chance de falar com Jake. Mas então ele nos
interrompeu e tudo simplesmente...
146
Isabella colocou a mão sobre a dela. Cassie percebeu que ela estava
tremendo.
— Ok, Cassie. Não importa agora. Tudo o que importa é que falemos com
Jake para descobrir o que está acontecendo.
Conseguiram um táxi depois de sinalizarem desesperadamente por dez
minutos, mas pareceu uma eternidade até que, enfim, descessem na Academia.
Quando entraram no saguão, Cassie olhou para as portas de vidro e seu coração
parou. Dois homens fortes, de expressão fechada, vestindo ternos idênticos e
óculos escuros, saíam de um sedã prateado. Entraram sem pedir licença,
passaram pelas meninas e se dirigiram aos elevadores. O corte do terno era
mais largo na área das axilas, notou Cassie. Ela havia assistido séries policiais
suficiente para saber que isso significava que estavam armados.
— O quarto de Johnson é no terceiro andar — sussurrou um dos homens ao
seu parceiro quando este pressionou o botão do elevador.
— Droga — Cassie sussurrou, mostrando os homens com a cabeça. —
Isabella, nós temos que ir para o quarto do Jake agora.
— Vamos pela escada — Isabella já começava a correr. Elas subiram os
degraus de dois em dois e chegaram ofegantes ao quarto de Jake em questão de
segundos.
— Jake! — Isabella esmurrou a porta com tanta força que Cassie pensou
que ela fosse quebrá-la. — Jake, você está aí? Por favor, Jake, abra.
Quase para o espanto delas, a porta se abriu. Jake estava diante delas, com
uma expressão de revolta.
— Esqueça, Isabella, não posso conversar agora.
— Jake, ouça... — Cassie começou.
— Você? Não, obrigado — Jake conseguiu passar por elas.
— O FBI — ela disse sem pensar. — Eles sabem que você tem acessado os
arquivos deles.
— Eu sei disso — retrucou Jake. — Eles foram até a casa dos meus pais está
tarde. Foi por isso que voltei para cá.
— Sim, mas eu acho que eles estão aqui agora.
147
Jake congelou.
— O quê?
— Por favor — continuou Cassie —, não acho que temos muito tempo...
Antes que ela pudesse terminar, o elevador apitou e passos começaram a
ecoar pelo corredor.
— Alguém está vindo — Isabella disse baixinho. — Jake!
— Saiam daqui, as duas. Vou resolver isso.
Os passos estavam se aproximando, chegando perto do fim do corredor.
Cassie agarrou o braço de Isabella.
— Ele está certo, Isabella, vamos! — e começou a arrastar sua amiga para a
direção contrária dos passos.
— Jake... — Isabella começou, esticando o braço brevemente para tocar a
mão dele antes que Cassie a arrastasse de volta para escada de emergência. De
lá, elas ouviram os passos chegarem até a porta de Jake.
— Jacob Johnson? — entoou uma voz grave e séria. — FBI. Você está preso.
* * * Cassie sabia que nada melhoraria a tristeza de Isabella, mas desde os
acontecimentos da tarde ela se recusava a comer e não deu um passo fora do
quarto delas. Ela precisava de comida — Cassie sabia como as coisas parecem
ruins quando se está faminto...
Um saco cheio de pães quentinhos aquecia suas mãos através das luvas e o
cheiro era delicioso. Ela estava quase passando pela porta de vidro da
Academia quando avistou uma pessoa familiar encostada em uma limusine na
esquina da rua. Richard. Ela reconheceria aquela silhueta em qualquer lugar.
148
Ele viu Cassie e no mesmo momento se endireitou. Do jeito que a luz da rua
brilhava sobre ele era impossível ver sua expressão, mas o carro saiu de
imediato dali, parecendo roncar maliciosamente de satisfação ao passar por ela.
Cassie congelou. Os vidros eram escuros, mas um deles estava abaixado,
onde Richard estava inclinado e o passageiro não estava com pressa para
levantá-lo. Enquanto o vidro subia, Cassie olhou fixamente. Um rosto sorriu
para ela com uma frieza assustadora: um rosto pálido e adorável. Uma mão
erguida de modo suave para tirar o cabelo loiro claro do rosto, revelando a
familiar cicatriz brutal. Foi quando o vidro preto fechou, silenciosamente, e o
carro sumiu noite afora do East Side.
— Cassie! — o chamado de Richard era de alguém em pânico.
Deixando cair o saco de pão, Cassie foi irritada ao encontro dele, com uma
névoa vermelha encobrindo sua visão por um instante.
— Cassie, veja, não é o que você pensa...
— Bem quando eu acho que você não pode me enojar ainda mais, Richard
— ela retrucou —, você acha um jeito de se aprofundar.
Cassie sentiu o calor subir pelo seu pescoço e o brilho peculiar expandir-se
para fora dela, como no Carnegie Hall.
Sim, Cassandra, faz muito tempo desde a última vez que nos deixou brincar...
— Cassie? — a voz de Richard tinha um tom de incerteza agora, mas sua
postura era cautelosa, estava preparado para se defender.
Ela sabia que, se olhasse para Richard mais uma vez, ela iria fazer algo de
que os dois se arrependeriam. Esforçando-se ao máximo, ela se virou e o brilho
desapareceu.
— Você não vale a pena.
Disse baixinho, para ela mesma. Mas teve a sensação de que, ainda assim,
ele tinha escutado.
149
Capitulo 19 Ranjit estava atrasado.
Cassie checou o relógio pela vigésima vez. Isabella finalmente tinha
decidido dar uma caminhada para espairecer. O quarto delas estava calmo e
silencioso, enquanto Cassie andava rápido de um lado para o outro. Ela devia
encontrar os Líderes em 25 minutos e gostaria de ter tido um pouco mais de
tempo para falar com Ranjit primeiro, para acalmar os nervos. Pelo menos não
estava tão aflita com o iminente confronto — estava muito ansiosa para saber
onde Ranjit estava agora. Tinha tentado entrar em contato com ele para contar o
que tinha acontecido com Jake, mas ele não atendia o telefone e não estava em
seu quarto.
Não era comum ele quebrar sua palavra. Será que tinha acontecido alguma
coisa? Ela sentiu um arrepio de medo. Pelo jeito que as coisas iam
ultimamente... Ela olhou o relógio mais uma vez e os minutos passavam de
modo implacável. Será que tinha feito algo, dito algo? Eles tinham discutido
150
sobre como lidar com a questão de Jake ontem, mas Ranjit tinha entendido e
estava tranquilo em relação a isso. Além disso, o caso agora tinha sido resolvido
por eles. E a maneira como ele a tinha beijado não deixava dúvidas de como
estavam as coisas entre eles.
Mas ele era tão enigmático. E um pouco impenetrável, às vezes. Será que ele
tinha descoberto algo sobre o poder dela, algo que o estivesse atrasando? De
qualquer forma, podia ao menos telefonar. Todo aquele papo de estar lá por ela,
mas onde que e ele estava, então, na única vez que ela realmente precisava
dele? Cassie sentiu sua raiva revirando.
Talvez você não esteja o segurando forte o bastante, minha querida. O que foi que
eu disse para você...?
— Agora não, Estelle — Cassie disse por entre os dentes.
Sua fúria foi dissipada por um barulho na porta. Cassie suspirou de alívio.
Tudo bem, agora ela poderia perdoar e esquecer: ele tinha chegado e não
importava que estivesse atrasado. Ela abriu a porta.
Piscando, Cassie olhou fixamente. Ao invés de Ranjit, ela estava frente a
frente com Marat, o porteiro baixinho e grosseiro. Aquele que tinha se deliciado
ao segurá-la enquanto Sir Alric injetava as Lágrimas. E tinha a sensação de que
o prazer dele não estava em ter salvado a pele dela.
Marat acenou com a cabeça e deu um passo para trás.
— Agora? Tenho que ir agora? — Cassie olhou para seu relógio em pânico.
Marat fez que sim com a cabeça silenciosamente e parecia não haver meios
de discutir. Com um último olhar pesaroso para seu quarto, Cassie vestiu seu
casado, fechou a porta e o seguiu. Ranjit ia ter que alcançá-los. Era provável que
soubesse para onde estavam indo. Isso a fez lembrar.
— Aonde estamos indo?
Ficou sem resposta.
— É longe?
O porteiro sacudiu a cabeça devagar.
— Você é uma mina de informações.
151
Enquanto ela seguia Marat para fora da Academia e pela Quinta Avenida,
sentiu um enorme frio na espinha.
Ranjit, ela pensou, por favor, venha...
A neve caía outra vez, mas não eram os flocos densos e macios que pelo
menos deixavam a cidade bonita. Era fina, tipo granizo e derretia logo que caía.
O vento estava forte. Cassie não queria enrolar — entrou no carro preto assim
que Marat abriu a porta, agarrando-se ao colete de lã de Isabella para se
confortar.
Marat não estava brincando sobre não ser longe. Ele desceu a Quinta
Avenida e passou pelo Central Park, mas apenas até a 42nd Street. Nervosa,
olhando pela janela do carro, Cassie desejou desesperadamente que pudesse
estar lá fora entre as luzes e a multidão apressada, até mesmo com a neve
caindo, se isso significasse não ter que enfrentar os Líderes, sozinha.
Sozinha. Ela não devia estar sozinha. “Você tem direito a um Partidário”,
Ranjit tinha dito. “Não vou deixá-la ir sozinha...”.
Mas, até então, ele tinha deixado. Ele a tinha deixado à mercê da situação e
ela estava sozinha. Tudo bem. Não seria a primeira vez que teria que se virar
sozinha. Estava tudo certo. Se ao menos isso não a assustasse tanto.
Marat tinha parado o carro. Cassie não queria que ele saísse e abrisse a
porta, não queria sair do calor com cheiro de couro do carro, mas não havia
escolha. Entre os flocos de neve e galhos das finas árvores, ela avistou uma
majestosa fachada de mármore, cheia de pilares, arcos e refletores: a Biblioteca
Pública de Nova York. As coisas ficavam mais estranhas a cada minuto. Marat a
conduziu entre dois leões enormes de marfim e enquanto o seguia
ansiosamente, ela o ouviu falar pela primeira vez.
— Paciência e Coragem — ele sussurrou e deu uma gargalhada, da qual ela
não gostou nem um pouco.
Era disso que ele achava que ela precisava? Não, ela constatou: ele estava
falando dos leões. Ela olhou nervosa para eles lá atrás. Pareciam firmes e quase
amigáveis, apesar do tamanho. De qualquer forma, ela preferia enfrentar dois
enormes felinos ao que a esperava lá dentro... Desejem-me sorte, ela disse
mentalmente aos leões e então seguiu Marat pelas portas que balançavam para
dentro de um magnífico hall de entrada.
152
O interior era espetacular. Tamanha elegância a fazia recordar da Academia
Darke de Paris mais do que de qualquer outro lugar em Nova York: as vastas
escadarias, as colunas de mármore brancas, as altas janelas arqueadas, os tetos
pintados. Seria de tirar o fôlego, se ela ainda tivesse algum sobrando. Do jeito
que estava, sentia-se pequena e vulnerável.
Marat estava gostando do desconforto dela nesse tour misterioso, ela sabia
disso. Cassie, nesse meio tempo, estava se sentindo cada vez mais intimidada
pela altura dos tetos de marfim e pelas esplêndidas pinturas de deuses e
criaturas míticas. Não ajudava que elas a fizessem lembrar o encontro com
Ranjit na estação de trem. Deus, onde é que ele estava? Basta! Ela disse a si
mesma. Não se preocupe com Ranjit! Ele chegaria lá a tempo. Ela sabia que sim:
ele tinha prometido.
Havia muitas pessoas circulando, mas nenhuma desafiou Marat enquanto
ele a conduzia pelos corredores e fileiras de mesas para leitura. Ninguém a
notou, nem mesmo os seguranças, mas ela viu Marat cumprimentar um deles
discretamente com a cabeça enquanto a levava cada vez mais para o fundo da
biblioteca. Agora, menos pessoas estavam no local. Luzes brilhavam, mas nos
cantos e corredores a escuridão era densa. O labirinto de corredores parecia
infinito, parecia que ela jamais encontraria a saída. Cassie estremeceu.
Finalmente, Marat chegou até uma grande porta de madeira. Sem hesitar,
abriu a porta e a conduziu para dentro de uma enorme sala escura, fechando a
porta atrás dela com uma pancada. Era tão esplêndida quanto todo o resto da
biblioteca, coberta de madeira e iluminada por castiçais presos as paredes, mas
ela não conseguia parar para admirar a lareira de mármore ornamentado ou as
imensas tapeçarias. Uma enorme e linda mesa entalhada estava à frente dela,
com vinte ou mais pessoas sentadas do outro lado da mesa em cadeiras
douradas. Velas em castiçais de prata cintilavam luz sobre os rostos na
penumbra, de forma que Cassie podia ver apenas flashes de seus semblantes:
uma orelha, uma maçã do rosto proeminente, um nariz de tucano. No entanto,
o que ela podia enxergar melhor era o brilho dos olhos deles, todos fixos nela.
Conforme sua própria visão se ajustava à pouca luz, ficava mais difícil
respirar. Mesmo obscurecidos pela sombra, alguns desses rostos eram
familiares. Duas mulheres de beleza arrebatadora e um homem foram
reconhecidos de imediato como atores. Também havia rostos que ela realmente
não conhecia, mas esse não era o caso, sem dúvida — o famoso empresário e
aquele estilista. Ela até conhecia a senadora que tinha se candidatado à última
eleição presidencial. E o ministro do gabinete britânico, ele não estava em Nova
York para um encontro comercial? Pelo menos era o que tinha sardo no jornal...
153
Eles a observavam em silencio. Será que esperavam que ela falasse? Ok, ela
já tinha brincado assim antes, uma ou duas vezes na vida, mas isso era bastante
enervante. Uma cadeira tinha sido disposta de frente para eles; ela não esperou
por um convite e se sentou. Cruzou os tornozelos. Descruzou-os outra vez.
Estudando as expressões dos rostos impassíveis, ela olhou duas vezes ao
avistar Sir Alric Darke. Ele movimentou a cabeça minimamente para
demonstrar reconhecimento, mas ela nunca o tinha visto com uma expressão
tão severa. Era assustadora e curiosa... E ainda havia algo familiar na mulher
branca e loira ao lado de Sir Alric, bem de frente para Cassie, no centro da
mesa. Tinha traços bem marcantes e, provavelmente, os olhos mais frios que
Cassie já tinha visto. Provavelmente. Ela havia visto um olhar parecido antes...
A voz que finalmente quebrou o silêncio era seca, calma e assustadora.
— O Conselho dos Líderes é chamado a se reunir. Brigitte Svensson
presidirá.
154
Capitulo 20 — Então, Srta. Bell. Talvez você pudesse explicar o... Episódio recente?
Cassie cruzou os tornozelos novamente e enfiou as mãos debaixo dos
joelhos. Pronto. Isso talvez os fizesse parar de tremer. E isso fazia com que ela
se sentasse um pouco projetada para frente, de forma que ela não pudesse
recuar da frente da mãe de Katerina. Só pode ser ela. O nome, a beleza gélida, o
ódio esvaindo de todos os poros. A menos que Katerina tivesse envelhecido
durante a noite, Brigitte Svensson só podia ser a mãe de sua rival.
— Episódio? — Cassie protelou.
— Shiii! Não perca nosso tempo. O incidente no Carnegie Hall.
Esperando algum apoio moral, Cassie procurou Sir Alric, mas ele nem
olhava para ela. Estava examinando uma das tapeçarias como se nada daquilo
tivesse a ver com ele. Ela sentiu outra vez a amarga facada da traição.
155
— Eu não sei o que aconteceu — ela respondeu brevemente.
— É mesmo? — a voz incutia um tom de ironia. — Talvez você queira dizer
que não sabe o que aconteceu além da perda de controle em público, uma
exposição que pôs em risco toda a existência dos Escolhidos e de um ataque
quase fatal a outro membro? — Brigitte olhava sorrindo desdenhosamente para
Sir Alric, mas ele não reagiu. Cassie começava a odiá-lo. — Sim, eu posso
entender como algo assim escapa do que passa pela sua mente.
— Quis dizer — disse Cassie com os dentes fechados —, que eu não sei
como aconteceu. Não foi intencional.
— Como eu disse, uma completa perda de controle — Brigitte suspirou e se
dirigiu a seus colegas Líderes. — Nossas ressalvas com relação a este membro
se concretizaram. Todos vocês se lembrarão de que a garota Bell foi considerada
hospedeira potencial no fim do ano passado. A proposta foi vetada, como
podemos ver, por uma boa razão. Ela não é e nunca foi material para os
Escolhidos. Se não fosse por uma terrível violação da lei dos Escolhidos, ela agora
seria material perfeitamente adequado para alimentação. Nada, além disso.
O homem ao lado de Brigitte se inclinou para frente, sob a luz e Cassie viu
olhos azul-acinzentados, uma covinha característica no queixo. Ela puxou o ar
silenciosamente, como se tivesse tomado um soco no estômago. Aquele rosto:
ela o tinha visto por apenas um segundo, mas não o esqueceria. Era um dos
homens do FBI que tinham ido até a Academia prender Jake.
— A garota é um perigo para si mesma — ele falou arrastado. — E para o
resto de nós.
— Ela é inexperiente, Vaughan, só isso — alguém interrompeu e Cassie
olhou agradecida para a mulher de cabelo preto. — A iniciação dela foi
irregular e ela não recebeu treinamento adequado. É só isso. Deem uma chance
a ela.
Eu nunca, pensou Cassie, nunca mais vou dizer uma só palavra negativa sobre
seus filmes.
— Poderíamos pensar em repetir a cerimônia — disse o ministro do
gabinete. — Isso já foi tentado antes?
— Claro que não — retrucou Vaughan. — Nunca foi necessário. Não há
precedentes.
156
— Então, sugiro abrirmos um precedente — o tom frio do homem britânico
sugeria que não havia cordialidade alguma entre ele e o americano.
— Como? — o senador ergueu os ombros. — Estelle Azzedine está morta e
enterrada.
Mas o espírito dela está vivo e vibrante.
Cassie pulou quando ouviu a voz de Estelle, mas ninguém do Conselho
pareceu notar. No entanto, Brigitte estreitou os olhos. A atriz de cinema falou
novamente.
— Pensem assim, algo deu errado. Não sabemos o quê. Mas, de fato, o caso
dela é muito fascinante. Ao invés disso, não deveríamos estar analisando como
podemos ajudar? Afinal, nada disso aconteceu por culpa da Srta. Bell.
— Isso é irrelevante — disse outra mulher. — A culpa não está em pauta
aqui. Ela é claramente perigosa. Não estamos aqui para oferecer terapia em
grupo para que ela possa se adaptar; precisamos lidar com esse problema de
modo rápido e decisivo.
— Não vamos nos precipitar. Analisando-a... Habilidade pode ter grande
significância para todos nós — talvez aquele ministro tivesse um sentimento de
aliança nacional.
— Seja isso verdade ou não, não podemos assumir o risco.
— Mas você vai assumir o risco de puni-la? Uma pessoa inocente?
— Longe de ser inocente.
— O incidente no Carnegie Hall foi um desastre...
— Não, a redução de danos funcionou. Foi encoberto. Doações nos lugares
certos.
— E da próxima vez? E a próxima?
— JÁ CHEGA!
O grito de Brigitte ecoou, facilmente abafando as vozes em discussão e o
silêncio cobriu toda a sala. Cassie engoliu pensativa. Brigitte prolongou o
silêncio até ser possível ouvir o ar estalar e quando falou de novo, a voz dela era
suave e fresca como a neve.
157
— Não se pode duvidar de que ela seja perigosa. Não se pode duvidar de
que ela não consiga se controlar. Temos responsabilidades, senhoras e senhores,
não apenas com nossos companheiros Escolhidos, mas com o público em geral.
Por favor, imaginem a repercussão quando ela matar alguém outra vez — ela
fez uma pausa dramática para que essas palavras pudessem ser
compreendidas. — Ela atacou um membro dos Escolhidos, na frente de outras
pessoas. Ela também foi responsável, permitam-me lembrar ao Conselho, por
uma agressão no semestre passado que deixou minha filha brutalmente
marcada. Proponho que expulsemos a Srta. Bell da Academia...
— Eu apoio Brigitte.
Brigitte olhou para o homem do FBI com certo incômodo.
— Obrigada, Vaughan, mas tenho mais uma proposta para o Conselho: que
a Srta. Bell, para sua própria segurança e a nossa, seja encarcerada
indefinidamente no Confinamento.
Cassie levantou num pulo, o ar que inspirava quebrou o terrível silêncio.
Que diabos era o Confinamento?
— O que vocês...
— Por favor, sente-se, Srta. Bell. Você não vai melhorar sua situação com
mais uma demonstração da sua incapacidade de se controlar.
— Mas... — Cassie olhou desesperadamente para a fileira de Líderes.
Nenhum deles olhava em seus olhos, nem mesmo seus defensores de outrora.
— Vocês não podem me colocar na prisão, não é...
— É certo, justo e razoável. O Confinamento não é uma prisão. Não da
maneira como você pensa em uma — Brigitte deu um forte suspiro. — As coisas
poderiam ter sido bem piores para você. Fique grata pela piedade do Conselho
— ela levantou um martelo prateado. — Agora, se o Conselho concorda
unanimemente, eu, por meio deste...
— Espere.
Brigitte hesitou, com o martelo suspenso, seu rosto escureceu de raiva.
Cassie sentiu o ar sair de suas narinas com muita força e todos os músculos dela
tremeram. Ela soltou o corpo na cadeira. Sir Alric falou. Enfim.
— Brigitte está certa em um aspecto. Nós não sabemos do que Cassandra é
capaz. Nenhum de nós sabe e eu me incluo nisso — ele girava ponderadamente
158
uma caneta com os dedos, seus olhos sérios encontraram os de Cassie. — Mas
me permitam respeitosamente sugerir que esse fato isolado faz do
Confinamento um lugar inadequado para ela viver.
— Mas... — Vaughan estava vermelho.
Sir Alric ignorou o homem do FBI.
— Ela seria mais bem monitorada em um ambiente onde estivesse sob total
supervisão de Escolhidos experientes. Onde o poder dela possa ser mensurado e
controlado e, se necessário, servir a nosso favor, ao invés de permanecer restrito
e vir a ser usado contra nós. Onde ela possa ser ensinada a ter o autocontrole
que claramente lhe falta. Eu proponho ao Conselho que apenas escolha um
lugar apropriado para mantê-la — ele pausou e olhou para cada membro do
Conselho. — Na Academia. Sob minha supervisão e controle. Pelos próximos
anos.
Murmúrios entre os Líderes, mas Cassie não conseguia distinguir nenhum
deles: apenas que alguns eram furiosos e negativos, alguns tranquilizadores e
solidários. A cabeça dela estava zumbindo. Será que o homem poderia ter
deixado sua intervenção para um pouco mais tarde? Por outro lado, o timing
dele havia sido bastante eficaz... Mas Brigitte não estava disposta a desistir.
— Ah, Sir Alric — ela disse, com a voz transbordando contentamento. —
Talvez você devesse ficar sob supervisão e controle. É sua responsabilidade
manter os alunos da Academia na linha e longe dos holofotes. E você parece ter
falhado consideravelmente nesse caso.
Sir Alric deu um sorrisinho, mas Cassie podia jurar ter visto faíscas no
fundo dos olhos dele.
— Até o acontecido no Carnegie Hall, nenhum de nós tinha ideia alguma
de que os poderes de Cassandra fossem tão... Peculiares. Eu não poderia ser
considerado responsável por falhar em perceber a ameaça que escapou da
sabedoria de todo o Conselho. Tenho muitos talentos, Brigitte, porém, a
habilidade de prever o futuro não é uma delas. Minha proposta permanece a
mesma.
A voz de Brigitte tremeu por conta da fúria de ter sido contrariada.
— São duas propostas diante do Conselho, então. Devemos votá-las.
159
O rosto de Sir Alric não demonstrava emoção quando começaram a votar.
Cassie não conseguia olhar para ele, então ela encarou o chão com insistência.
Covardemente, talvez, porém melhor do que assistir as expressões nos rostos
dos Líderes, que tentavam contar os votos contra ou a favor dela. Quando
Marat terminou de juntar os votos e estes foram contados e recontados e, depois
contados uma terceira vez, Cassie estava tonta por causa do suspense e do
medo.
— Por um voto... — Brigitte parou.
Cassie ergueu a cabeça imediatamente a fim de olhar para ela. A mulher
estava apertando os dentes e com os lábios entreabertos.
— Por um voto, o Conselho decreta que Cassandra Bell voltará para a
Academia Darke — ela bateu o martelo tão forte que Cassie ficou
impressionada por a mesa não ter rachado ao meio.
Marat estava ao lado dela. Tinha acabado. Ao se levantar, Cassie lançou um
olhar de gratidão para Sir Alric, entretanto, mais uma vez, ele a ignorou. Não
havia nada a fazer além de recolher o que havia restado de sua dignidade e
seguir Marat em silêncio. Não tinha por que tentar conversar com o bruto
homem baixinho. Ele parecia mais carrancudo do que nunca. Desapontado,
talvez.
Foi apenas quando a porta fechou atrás deles que Cassie ouviu a voz de
Brigitte levantar-se mais uma vez, sentimentalóide e com sotaque e, suspeitava
Cassie, alto o suficiente para que ela ouvisse claramente.
— Passemos agora para o próximo item da agenda — uma batida de
martelo. — O garoto Johnson.
160
Capitulo 21 O garoto Johnson?
Cassie parou de andar, enquanto Marat seguia na frente dela pela sala de
leitura. O lugar ainda estava à meia-luz e as prateleiras eram altas à sua direita
e à sua esquerda.
Jake.
Olhando furiosamente o que estava a sua frente, Marat deve ter levado um
tempo para perceber que os passos dela tinham cessado. Ele estava a dez
metros de distância quando enfim se virou. Por um instante, eles se encararam
com cautela. Marat deu um passo em direção a ela.
— Preciso ir ao banheiro! — disse Cassie. Antes que Marat pudesse reagir,
ela se virou e correu para a escuridão entre as prateleiras de livros. Tinha que
voltar para aquela sala.
161
Há uma coisa sobre os Escolhidos, ela pensou com reconhecimento: ela tinha
ficado rápida. Rápida e ágil com os pés. O coração dela pulava quando ela
mudava de direção e corria entre as prateleiras. No meio da escuridão, ela
parou. Podia enxergar Marat, entre as pilhas de livros, procurando-a. Ela
esperava que o som de seu coração não estivesse tão alto quanto parecia.
Esquivando-se por entre as prateleiras, ela corria e andava devagar
alternadamente, em silêncio. Quando avistou o sinal familiar para a Sala dos
Membros do Conselho, ela não podia mais ouvi-lo. Prendeu a respiração e
espreitou em um canto, mas não havia mais sinal de Marat. Quase fácil
demais...
Respirando de novo, com o coração disparado, ela andou lentamente em
direção a Sala do Conselho. Estava mesmo certa de tê-lo despistado e duvidava
que o porteiro fosse correndo aos Líderes para contar que ela tinha conseguido
escapar dele: que tipo de problemas isso causaria para ele? Com um pouco de
sorte, ele descontaria fazendo-a voltar sozinha para a Academia, já que ela não
tinha outra opção.
Cassie colocou o ouvido contra a porta — grata mais uma vez por abrigar
um espírito dos Escolhidos e pelo efeito disso em sua audição. Ela podia
distinguir claramente as vozes alteradas dos Líderes e tinha chegado a tempo
para ouvir a decisão final. Bem a tempo, mas graças a Deus tinha conseguido.
— Silêncio para a leitura da decisão! — novamente a voz de Brigitte, fria e
triunfante dessa vez. — Por dezessete votos a mais, o Conselho decreta que Jake
Johnson seja removido da custódia Federal dentro das próximas 24 horas e seja
colocado no Confinamento.
O quê? Cassie não podia crer no que estava ouvindo.
— Tendo resolvido todos os assuntos e sem o surgimento de mais questões,
eu declaro encerrado o Conselho dos Líderes — o som agudo do martelo de
prata fez arrepiar até o último fio de cabelo de Cassie.
Rapidamente, ela se escondeu na sombra, rezando para que ninguém
olhasse para trás quando saísse. Ainda bem que tinha adquirido a prática de
passar despercebida por corredores escuros em Cranlake Crescent. Nenhum
dos Líderes a notou espremida contra a parede do lado oposto às luzes dos
castiçais. Provavelmente, nenhum deles jamais tenha imaginado que alguém
ousaria escutar atrás da porta a elegante reunião do Conselho.
162
O coração dela quase saiu pela boca ao vê-los passar tão perto. Além dos
Líderes que ela já tinha reconhecido, havia outros. Pessoas de poder, pessoas de
influência. Pessoas que tinha visto em capas de revistas nas bancas de jornal.
Jesus, ela pensou. Se eles se voltassem contra ela como... Eles se voltaram contra Jake.
Eles o colocaram no Confinamento.
Não é uma prisão, Brigitte tinha dito. Não da maneira como você pensa que
é. Oh, Cassie achava que era exatamente da maneira como ela pensava. Nem
todos tinham saído da sala. Pelo menos dois estavam faltando e, eram os dois
que realmente não podiam vê-la. Enquanto Cassie se esforçava para
permanecer imóvel, mal respirando, ouviu a voz suave e fria de Brigitte.
— Então, Vaughan, as providências de sempre foram tomadas?
— Tudo pronto. O garoto seguira para o Confinamento imediatamente. A
partir de agora, o Conselho não precisa mais se preocupar com o assunto.
Cassie parou de respirar completamente. O que quis dizer com “o Conselho
não precisa mais se preocupar”?
— Bom — disse Brigitte. — E não se preocupe... O sistema é à prova de
falhas. Em todos os anos em que estive no controle do Confinamento, os Líderes
nunca se deram ao trabalho de checar quem estava lá. Tirei dúzias deles. Anos
se passarão até que alguém se de conta de que o garoto não esta lá. Se é que vão
notar.
— Ainda assim, ficarão furiosos — Vaughan não soou preocupado; na
verdade, Cassie detectou algo parecido com uma risada.
— Talvez. Mas não mais do que estou. A agressora da minha filha recebeu
um mero tapa hoje à noite — a voz de Brigitte titubeou de raiva. — Se aquele
garoto Ranjit não tivesse se intrometido, minha filha teria conseguido se livrar
da idiota mestiça por ela mesma e, além disso, teria feito parecer um acidente
de modo impecável.
Cassie cobriu a boca com a mão para impedir que o som saísse. O
“acidente” na Grand Central Station. Tinha sido Katerina? E agora a certeza de
Jake de que Katerina tinha tentado sequestrar Isabella na Coney Island não
parecia mais tão ridícula. Poderia ter sido Brigitte? As duas eram parecidas o
suficiente para serem confundidas a distância.
— Você vai trazer o garoto para o chalé está noite, como de costume? Faz
muito tempo que o Solo Vivo não é alimentado. Jogar aquele garoto
163
bisbilhoteiro lá será um tipo de vingança para o que aqueles pivetes fizeram
com minha Katerina — em um murmúrio suave, ela complementou —, além
disso, eu tenho sido muito boazinha, Vaughan. Tenho direito a um agrado...
Um arrepio desceu por toda a espinha de Cassie e ela teve que se esforçar
para ficar absolutamente imóvel. O Vivo o quê?
O Solo Vivo, Cassandra!
A voz de Estelle estava com um tom estranho. Era ceticismo? Empolgação?
Terror?
— O que é isso, Estelle? O que é o Solo Vivo? — Cassie suspirou.
A voz de Estelle era um murmúrio gutural:
Há prisões muito, muito piores do que o Confinamento, minha querida...
164
Capitulo 22 Cassie nem pegou o elevador. Atravessando o hall da Academia em
disparada, ignorou o olhar dos outros alunos, arrancou as luvas e o cachecol
enquanto corria. Abrindo a porta da escada de incêndio com um empurrão,
subiu os degraus de dois em dois. Era mais rápido. Pelo menos, era o quanto ela
conseguia correr. E ela precisava correr, descarregar a raiva terrível e o medo.
O quarto de Ranjit ficava no quinto andar, mas ela chegou lá quase sem
fôlego. Era Estelle novamente. Ela estava começando a perceber o quanto
dependia de Estelle. O quanto ela precisava e gostava daquela presença
poderosa.
Ela nem bateu. Quando entrou com tudo, Ranjit estava tirando sua camisa e
o chuveiro estava ligado. Não vestia nada além da calça jeans de marca; ele a
encarou espantado. O sorriso dele, quando saiu, era forçado, tentava esconder
outra coisa.
165
— Então tá. Isso é inesperado, mas legal... — ele parou rapidamente assim
que notou a expressão furiosa de Cassie.
Ela puxou um pouco de ar.
— O que aconteceu com você?
— A reunião com o Conselho. Sei que foi hoje à noite...
— E onde você estava, Ranjit? Esperei por você!
Torcendo sua camisa cara, ele a amassava com os dedos. Lançou um olhar
para a porta por cima dos ombros dela, então olhou para ela outra vez.
— Aconteceu... Apareceu uma coisa. Algo que significava que eu não podia
ir, Cassie. Queria te contar, de verdade, mas se...
— Isso não é suficiente! — ela estava brava demais para chorar. — Você
prometeu. Você disse que estaria lá!
— E eu queria, mais do que qualquer coisa. Por favor, Cassie, você tem que
acreditar em mim. Mas eu...
— Eu não quero ouvir. Eu não quero ouvir o que era mais importante, Ok?
Só quero que você saiba — ela engoliu seco —, que talvez você não me veja
mais.
Ranjit sentou na cama, tirando o cabelo dos olhos enquanto olhava para ela.
O quarto estava cheio de vapor, mas ele não se mexeu para desligar o chuveiro.
Quando ele falou, sua voz estava abalada.
— O que houve?
— Brigitte Svensson presidiu o Conselho — disparou Cassie. — Eu não fui
para o Confinamento por um voto.
— Cassie. Meu Deus, Cassie. Não sabia que era ela. Não me disseram...
Ouça...
— Não! Não quero ouvir. Você me deixou passar por isso sozinha. Então,
agora, você me deve algumas respostas, Ranjit. O Confinamento. O que é?
— O Confinamento... — ele ficou em pé, andando pelo quarto. Ela não
conseguiu deixar de olhar: desviou o olhar para o peitoral molhado e nu dele.
166
Ontem ela teria pulado nele como um tigre. Ontem ela o teria devorado vivo,
no bom sentido. Mas agora ela se sentia entorpecida pela angústia em seu peito.
— O Confinamento, Ranjit.
Ele olhou constrangido para Cassie.
— Eles não te explicaram?
— Pareceu uma prisão para mim, mas minha modesta compreensão do que
é uma prisão não esclarece o que é o Confinamento. Você pode me explicar?
— É... Ouça, você não terá que ir para lá, certo? Apenas tente tirar isso da
cabeça.
— Eu não terei que ir! — gritou; lágrimas brotavam de seus olhos. — Mas
Jake terá!
— Jake? — Ranjit passou a mão em seus cabelos negros, molhados pelo
vapor.
— Sim, Jake! Ele foi sentenciado ao Confinamento. Eu os ouvi! Voltei
escondida para lá depois que me mandaram embora e os ouvi!
— Você ouviu por trás da porta? O Conselho?
— Pode apostar que sim! — ela suspirou. — Ranjit, você tem que me ajudar
agora. O que vamos fazer?
Rapidamente, como se estivesse tomando uma decisão, ele segurou os
braços dela e olhou em seus olhos.
— Nada. Não vamos fazer nada, Cassie. Não podemos ir contra o Conselho.
Por uma fração de segundos, ela ficou estupefata.
— O quê?
— Me ouça. O que o Conselho te disse é verdade; o Confinamento não é
uma prisão, é mais como um hotel de luxo. É onde os Líderes colocam as
pessoas que sabem demais sobre os Escolhidos e não podem confiar que a pessoa
manterá sigilo. Jake não será um prisioneiro. Ele será um hóspede, Cassie, um
hóspede dos Escolhidos.
Ela olhou fixamente para ele, sem conseguir acreditar no que ouvia.
167
— Um hóspede para sempre? Um hóspede que não pode escolher quando
partir?
— Bem, sim, mas...
— Isso é ser um prisioneiro, Ranjit!
Sem palavras, ela se jogou na cama. Hesitante, ele se aproximou tocando o
queixo dela. Os dedos dele tremiam, como se ele estivesse relutante em tocá-la,
mas não pudesse evitar. Apesar do vapor, ela se arrepiou.
— Cassie, não há nada que possamos fazer. Sinto muito.
Ela não conseguia olhar para ele, então se concentrou novamente em seu
peito definido e musculoso. Não significou nada; ela não sentiu nada. Devia ser
o choque.
Ela disse baixinho:
— Não te disse o pior.
— O quê? O que mais pode haver?
— Brigitte. E um homem chamado Vaughan. Ele é do FBI. Isabella e eu o
vimos levar Jake. Mas ele também é um Escolhido. Um dos Líderes. Eles estão
planejando trair o Conselho.
Ranjit riu.
— Gostaria de vê-los tentar.
— Pode ter certeza de que irão! Já o fizeram antes! Escutei o que Brigitte
está planejando para Jake também. Eles têm todo um esquema. Parece terrível,
Ranjit. Terrível. Ela leva pessoas do Confinamento para algo chamado Solo
Vivo.
Ranjit perdeu o ar e seu rosto ficou pálido. Então ele sacudiu a cabeça com
força.
— Não. De jeito nenhum, Cassie. Você ouviu errado.
— Não ouvi, não!
— Então eles estavam blefando! Se gabando! Se exibindo! Não vai
acontecer, Cassie. Por favor, você tem que confiar em mim.
168
Os olhos dele imploravam. Ela abriu a boca para falar “claro que confio”,
mas as palavras não saíram.
— Não me importo se você não acredita em mim. Ela com certeza tem algo
planejado para Jake e não é o Confinamento. Temos que...
— Não, não, Cassie, escute. Você não deve se envolver nisso. Sério, estou
com muito medo por você — ele a envolveu carinhosamente com um braço. —
Brigitte não fará nada com Jake, não contra a vontade do Conselho. Mas ela é
extremamente poderosa. É em você que ela vai mirar.
— Ela já mirou! Ou Katerina mirou, tanto faz. Grand Central? Foi ela que
tentou me empurrar nos trilhos.
— O quê?
— Esqueça. Olha, Ranjit, nós apenas temos que ajudar Jake. Por favor. Se o
tirarmos do Confinamento, então talvez...
— Você não pode interferir em assuntos do Conselho, Cassie.
— Não, mas você pode! Ranjit, já vi o jeito como olham para você aqui, os
outros Escolhidos, até mesmo Sir Alric. Você é poderoso, deve ter alguma
influência.
— Não. Não, Cassie, não posso. A decisão final é do Conselho. Nenhum de
nós pode ir contra eles.
Ela não podia acreditar no que estava ouvindo.
— Você podia tentar.
— Talvez sim, mas não vou. Jake é um perigo para nós. Ele sabe demais. Ele
pode nos expor a qualquer momento. Fazer com que fechem a Academia. Não
quero ser parte disso — ele virou para o lado para poder olhar nos olhos dela.
— Não quero isso mais do que o Conselho quer.
Ela levou um segundo ou dois para absorver as palavras de Ranjit, que
ardiam como chumbo quente. Então, puxando o ar profundamente, ela tirou o
braço dele do ombro dela, empurrou-o e se levantou.
— É isso, não é? É por causa do Jake. Você quer se livrar dele. Só pode ser
isso!
— Não. Não é isso.
169
— É! Pelo modo como está agindo, eu não ficaria surpresa se tivesse sido
você quem deu a dica ao FBI sobre os arquivos, levando o seu coleguinha
Vaughan direto até ele.
— Pare com isso. Seja realista, Cassie! — Ranjit reagiu, ficando em pé para
confrontá-la. — O que você sabe? Você acabou de se tornar uma Escolhida, ou
meio-Escolhida pelo menos! Você é uma de nós agora. Você tem alguma ideia do
que aconteceria se a Academia fechasse? A Academia é o acordo dos Escolhidos
com o mundo. É como os espíritos encontram novos hospedeiros! É como
ensinamos controle aos hospedeiros! Sem a Academia, os Escolhidos se
rebaixariam ao caos e a assassinatos aleatórios. É isso que você quer, Cassie? Se
Jake destruir a Academia, ele não destruirá os Escolhidos. Ele irá lançá-los
livremente para o mundo, descontrolados. Ele destruirá mais vidas do que você
pode imaginar.
Cassie estava branca. Ela sentiu como se estivesse vendo-o verdadeiramente
pela primeira vez.
— Você destrói vidas. Nós as destruiremos! Não é o Jake e sobre os
Escolhidos. Por que o Jake, ou qualquer outro inocente, deve ser punido pela
nossa existência?
— Porque não há punição para os Escolhidos! — ele gritou. — Como se
pune um espírito imortal? Como? Sinto muito por Jake, mas não há nada que eu
possa fazer. Ele não teve sorte, só isso!
— Como a irmã dele? — provocou Cassie.
— Não ouse trazer isso a tona, Cassie. Não ouse de forma alguma! — dava
para ver a fúria tomar conta da expressão de Ranjit, os olhos dele se estreitaram.
— Na verdade, vou dizer como punir um espírito imortal. Dividindo-o!
Deixando metade dele no vácuo!
O silencio entre eles era elétrico. Cassie podia ouvir seu próprio coração
batendo e tinha certeza de que podia ouvir o dele. No ombro dele, ela viu a
marca familiar dos Escolhidos começar a ficar vermelha.
— Como você ousa? — ela gritou.
Estou ao meio! Dividida! Ele COMPREENDE! Eu te disse, minha querida, ele é
um de nós! Segure-o, pegue-o...
— Estelle!
170
Sua força aumentou tão de repente que ela quase tropeçou, como se Estelle
a tivesse empurrado fisicamente para cima de Ranjit. Quando levantou a
cabeça, seus lábios estavam retraídos e o mundo estava tingido de vermelho
escarlate.
Ranjit estava agachado, como se estivesse pronto para se defender. Mas ele
também estava inclinado em direção a ela, pronto para atacar. Não, atacar, não.
Apenas pular sobre ela, agarrá-la, possuí-la...
As íris dele começaram a ficar avermelhadas. Conforme o vermelho se
intensificava, espalhava-se também pelo branco dos olhos. Aquela cor vista
através da névoa, era o vermelho mais intenso que ela podia imaginar. Ele
deixou escapar um rosnado faminto e ansioso.
— NÃO!
Ranjit colocou as mãos sobre o rosto. Seu corpo todo tremia, como se
estivesse com febre, mas de alguma forma, de alguma forma ele recobrou o
controle. Quando ele tirou as mãos do rosto, seus olhos não estavam mais
brilhando em vermelho.
Eles ficaram em pé por um bom tempo, tremendo, os dois ofegantes.
Quando Ranjit falou novamente, a voz dele não era mais alta que um suspiro,
quase como se falasse consigo mesmo.
— Foi um erro muito grande. Muita, muita estupidez. Eu deveria saber.
— Saber o quê? — ela estava atordoada, sem equilíbrio.
Ranjit olhou para ela.
— Eu não deveria ter feito isso. Eu jamais deveria ter me envolvido com
você, Jess!
Ela pulou para trás como se ele a tivesse golpeado. Oh. Deus.
A expressão do rosto dele mudou imediatamente ao perceber o engano. Ele
ficou quase tão acometido quanto ela. Quando ele ergueu a mão para tocá-la,
ela o impediu bruscamente.
— Cassie...
— Você não vai me ajudar — ela disse num tom de voz incomum. — Você
nem sabe quem eu sou.
171
— Cassie. Sinto muito, eu...
— Eu mesma vou lidar com isso. Sempre lidei. Adeus, Ranjit.
Ela deu meia-volta e saiu rapidamente do quarto, mas ele segurou a porta
antes que ela batesse. Ela ouviu a voz dele soar atrás dela pelo corredor, mas
podia também ser um cachorro latindo.
— Por favor! Sinto muito! Não se envolva, Cassie! Deixe isso para lá! POR
FAVOR!
172
Capitulo 23 Ela mal podia enxergar. Devia haver algo embaçando sua visão e ela não
podia parar para esfregar os olhos. Tinha que continuar correndo ou iria se
desintegrar.
— Cassie, oh!
Ela esbarrou em um obstáculo. Grande, sólido, quente. Um ser humano.
Livros se esparramaram pelo chão e braços a envolveram apenas para impedi-la
de cair no chão também.
— Caramba, Cassie Bell.
— Richard! Me solta!
— Nem a pau. Posso morrer atropelado.
173
Ela empurrou os braços dele para se livrar.
— Sai da frente.
— Cassie, qual é o problema?
— Como se você ligasse. Sai da minha frente ou, me perdoe, vou...
— Olha, Cassie, sobre aquela noite, quando você me viu fora...
— Eu disse sai da frente! — ela empurrou a mão dele e esfregou o rosto
ferozmente, tentando lutar contra suas lágrimas. Ótimo. A primeira vez que ela
conseguia ficar brava ao invés de chateada.
— Vai, Cassie, me diz o que aconteceu. Eu... Eu sei sobre sua reunião com o
Conselho.
Cassie gargalhou incrédula.
— O quê? Contar meus problemas para o cachorrinho de estimação de
Katerina? Para você ir correndo falar para vossa senhoria?
— Cassie, meu anjo — ele disse suavemente, nem um pouco envergonhado
—, sou amigável com todo mundo e converso com todos. Você viu como sou
fraco em comparação aos outros. É uma estratégia de sobrevivência. Não vou
me desculpar por isso.
— Puxa, como você é diplomático — ela torceu o nariz furiosamente,
tentando passar por ele. Mas ele não se movia.
— Pegue o meu lenço — ele o estendeu com um floreio: Hermès, claro. Ela
tinha ficado relutante em usá-lo, mas então ele continuou com uma piscadinha.
— Pelo amor de Deus, não vá assuar o nariz na manga da blusa, bolsista.
Ela assuou o nariz com força na seda.
— O que está havendo, Cassie?
— Olha, preciso ir, Ok? Não estou aqui para encher sua máquina de fofoca.
Obrigada — ela enfiou o lenço arruinado nas mãos dele.
— Ei — havia algo de muito diferente na voz dele. — Tem a ver com Jake?
Ele soou fora do comum... Sério. Hesitando, ela deu meia-volta, franzindo
um pouco a testa.
174
— Sim — ela voltou lentamente para perto dele, suspeitosa. — Sim. É o
Jake. O que você sabe sobre isso?
— Sei que ele foi preso. Todo mundo sabe — ele hesitou e baixou a voz. —
Katerina armou para ele, sabe. Ela e a mãe dela. Ela me disse. Ele seguiu os
rastros que elas deixaram até que ele incriminasse a si mesmo de tal forma que
pudessem prendê-lo. Ele será levado para o Confinamento, claro, mas Sir Alric
não será enganado por muito tempo. Ele vai tirar Jake de lá, você vai ver.
Cassie sorriu com desdém.
— Para alguém que fala com todo mundo, você sabe bem pouco do que está
acontecendo.
— O que quer dizer? — pela primeira vez Richard parecia desconfortável.
— Você não acha que ele vai para o Confinamento?
— Sei que não vai.
— O que você ouviu?
— Não vou mais falar sobre isso.
— Cassie! — a voz de Richard estava mortalmente séria. — O que foi?
Ela deu uma volta, desesperada.
— Para o Solo Vivo, tá? A mãe de Katerina está levando Jake para algum
tipo de chalé onde ela poderá jogá-lo ao Solo Vivo.
Ela se virou, mas em um piscar de olhos ele estava na frente dela outra vez,
segurando em seu braço. O rosto dele estava absolutamente pálido.
— Você tem certeza? — ele suspirou, apavorado. — Isso é... Katerina nunca
mencionou isso. Cassie, sinto muito, olha, se isso é verdade, acho que deve
saber... — de repente, ele parou de falar e endureceu, então sorriu fazendo cara
de santo. — Bem, ouça, querida, da próxima vez que você e o rajá brigarem,
você sabe onde me encontrar — ele disse bem alto.
— O quê? — Cassie ficou boquiaberta. — Fale, Richard, o que você ia dizer?
— Ah, aí você já está querendo demais — seu jeito indiferente estava de
volta, mas havia algo por trás disso. Cassie olhou a sua volta. No fim do
corredor, estavam Sara e outra garota dos Escolhidos. Elas estavam olhando
atentamente para ela e Richard.
175
— Se você sabe o que está havendo, Richard, por favor, me diga — ela
murmurou por entre os dentes cerrados.
— Humm... Posso ser comprado, mas sou terrivelmente caro.
Ela olhou dentro dos olhos dele, mas eles estavam encobertos, reservados.
O que havia com ele? Em um minuto, ele queria ajudá-la, provavelmente por
causa da culpa, no outro, estava impenetrável, leviano, mantendo sua reputação
para aquelas cretinas Escolhidas. Medo, talvez. Era mais provável que estivesse
tentando salvar sua pele. Ele sabia de algo. Ela estava certa disso. Mas ele não
iria dizer e ela não tinha tempo para disputa de forças. Fazendo um gesto
desdenhoso com as mãos, ela saiu andando.
— Cassie? — ele chamou.
— O quê? — ela retrucou e se virou. — Não desperdice meu tempo,
Richard. Não tenho muito.
— Este é seu — ele enfiou o livro na mão dela e saiu andando.
Surpresa, apesar de sua agitação, ela começou a gritar para ele.
— Eu não derrubei nenhum...
Tarde demais. Ele já tinha ido.
***
— Isabella, não temos muito tempo. Vamos, temos que descobrir para onde
estão levando Jake.
— Mas eu pensei que ele estava sob custódia...
— Vamos! — Cassie enfiou o livro de Richard em sua mochila; podia
entregar para ele mais tarde.
Depois, agarrou Isabella com uma mão e o casaco de cashmere dela com a
outra e levou os dois.
176
— É pior do que pensávamos.
Isabella vestiu seu casaco desajeitadamente, com a voz trêmula.
— Meu Deus, Cassie. O que foi?
— Vai dar tudo certo — disse Cassie —, só temos que encontrar Jake o mais
rápido possível. Vamos, temos que ir.
— Cassie, pare. Pare! — Isabella enrolou o cachecol no pescoço e pegou seu
celular e o dinheiro sobre a cômoda. — Isso não está fazendo sentido!
— Você tem razão — Cassie admitiu. — Mas preciso pensar, não consigo
pensar direito neste lugar. Vamos sair daqui.
— Está bem, vamos. Aí você me conta tudo.
Cassie agradeceu silenciosamente pela praticidade de Isabella enquanto
elas corriam pela escada de incêndio. Isabella não sabia o que Cassie tinha em
mente, mas ela não perdeu tempo perguntando. Ela confiava em Cassie. Deus,
essa sensação era tão boa. Em especial depois da traição de Ranjit... Cassie
estremeceu, mas espantou a sensação.
— Assim que estivermos fora do prédio podemos começar a planejar. Eu só
não quero estar perto de nenhum Escolhido. Não há um deles em quem eu possa
confiar.
— E o Ran...
— Nenhum deles.
*** Lá fora nas ruas, respirando o ar congelado, Cassie sentiu uma onda de
alívio. Graças a Deus. Ela pensou que fosse sufocar.
— Certo, vamos, Cassie. Manda! — Isabella disse ofegante assim que elas
passaram pelas portas da Academia. — Algo está muito errado. Você tem que
me contar.
177
Não demorou muito para que Cassie resumisse a reunião do Conselho.
Isabella ouviu em silêncio, mas Cassie quase podia senti-la pegando fogo.
Quando Cassie chegou na parte da sentença de Jake, Isabella suspirou alto.
— Mas eles... Isso é obsceno! Eles não podem encarcerar alguém para
sempre; não é possível.
— É sim — Cassie contou para ela muito brava. — Mas ouça, nem isso é o
bastante para Brigitte. Ela tem algo a mais planejado, Isabella. Algo pior, algo
que nem o Conselho sabe.
— O quê?
— Eu gostaria de saber — ela esfregou seu rosto gelado com as mãos
cobertas por luvas. — Mas tem algo a ver com um chalé e algo chamado o Solo
Vivo.
Isabella empalideceu.
— Isso parece... Cassie, isso parece horrível.
— Sim. E eu tenho um pressentimento de que o Richard sabe algo sobre
isso.
— Richard? — deu para ver o ar saindo da boca de Isabella. — Me conta.
— Não posso, ele não me contou. Em um segundo, ele estava falando
direito, no outro, ele se afastou e se enfiou em sua concha como um caramujo.
— O que Richard disse? — Isabella ficou olhando para o outro lado da rua,
para a escuridão dentro do Central Park.
— Nada. Eu te disse.
— Richard sempre parece não dizer nada — Isabella estava com o olhar
parado, pensativo e ela parecia atipicamente racional.
Cassie suspirou profundamente. De repente, tudo parecia difícil. Se pelo
menos o maldito Ranjit fosse bom, tudo poderia ter sido bem diferente.
— Eu te disse. Ele fechou a boca, então eu saí fora. Ah, e aí ele enfiou um
livro na minha mão, mesmo tendo sido ele que derrubou e antes de eu devolvê-
lo ele sumiu.
— Ele... Ah! — Isabella bateu as mãos. — É isso. É isso. Onde está o livro?
178
— Aqui — Cassie mostrou sua mochila. — Mas eu te disse que não é meu,
é...
— Pessoa de pouca fé! — Isabella tirou o livro das mãos de Cassie quando
ela o tirou da mochila. Era um antigo guia da cidade de Nova York. Ao folhear
o livro, Isabella deu um grito agudo de triunfo e colocou o livro na cara de sua
amiga. A página em que ela tinha aberto estava marcada com uma dobra.
— Cassie! Você não percebeu? Richard te contou para onde estão levando
Jake!
179
Capitulo 24 — Uma arma. Precisamos de uma arma — Cassie puxou Isabella de volta
para a Academia. — Algo que sabemos que funcione contra os Escolhidos.
— Uh-hum. Você não está pensando no... Punhal de Keiko?
— Sim, estou.
Boa garota! É exatamente disso que precisa, você verá!
Olhando para Isabella, Cassie decidiu não dizer que o demônio dentro da
cabeça dela estava dando palpites em sua estratégia. O estranho punhal que
eles tinham conseguido enfiar na garota homicida dos Escolhidos tinha parecido
dar conta muito bem de Keiko no semestre passado. Jake pegou o punhal
quando ele e Isabella a resgataram no Arco do Triunfo. Cassie não estava certa
da importância da arma, mas pela reação agitada de Estelle, pensou que devia
180
haver algo de muito poderoso nele. E elas precisariam de toda ajuda que
pudessem ter.
Sim! Encontre-o, Cassandra. Encontre-o!
— Sim, sim. Cale a boca, Estelle.
Ei! Você vai precisar de mim em breve.
Isabella estava sacudindo a cabeça.
— Mas você nem sabe onde...
— Está no quarto de Jake — disse Cassie, decidida. — Se ele conseguiu
escondê-lo antes que Vaughan o pegasse, deve estar em algum lugar por lá.
Elas correram de volta para o saguão da Academia e Cassie apertou
insistentemente o botão do elevador, que parecia demorar uma eternidade para
chegar. Quando as portas enfim se abriram no terceiro andar, o lugar estava
silencioso. Soltando o ar de alívio, Cassie avançou lentamente pelo corredor.
— Vamos, não tem ninguém por perto.
Isabella a seguiu cautelosamente.
— Você acha que o punhal ainda está lá? A polícia interditou o quarto
depois que ele foi levado.
— As faixas existem para ser cortadas — Cassie puxou as fitas presas sobre
a porta de Jake e tentou a maçaneta. — Me dê seu grampo de cabelo.
— Como você... Ok — erguendo os ombros, Isabella tirou um grampo de
prata do seu cabelo e observou Cassie colocá-lo dentro da fechadura.
— Vamos, vamos... — Cassie sacudia sua chave de fenda improvisada
impacientemente.
— Vem vindo alguém!
Cassie balbuciou um palavrão. Ela estava tão focada na fechadura que não
tinha ouvido os passos que se aproximavam. Ela se deu conta de que
reconheceria esses passos furtivos em qualquer lugar... Marat.
181
Não havia para onde ir. Cassie hesitou por um instante, então Isabella bateu
em sua mão e a levou para o outro lado do corredor. Impetuosamente ela bateu
em outra porta.
Conforme os passos de Marat se aproximavam, Isabella murmurou bem
baixinho alguma coisa em espanhol, mas seu rosto se iluminou com um enorme
sorriso ao abrir da porta.
— Perry! Querido! — antes que ele pudesse bater a porta na cara dela, ela
entrou no quarto arrastando Cassie. — Aqui estamos!
Cassie pensou por um momento; Perry Hutton era colega de quarto de
Richard. Ela deu uma olhada em sua volta, mas nem sinal dele. Então sorriu
docemente para o repugnante Perry.
— Que diabos... Olha, Isabella...
— Eu errei o dia do encontro?
— Que encontro? Do que você está falando? Você não é meu tipo, querida.
E o que ela está fazendo aqui?
Isabella manteve o sorriso, mas sua voz ficou bem aguda quando fechou a
porta atrás delas.
— Fique quieto, Perry. Sairemos daqui em um minuto.
— Vocês sairão daqui agora!
— Expulsando uma Escolhida? Ah, Perry, querido, você é tão corajoso!
Isso o calou. Os olhos de Perry brilhavam inquietos na direção de Cassie.
— Claro, Isabella. Está bem.
Cassie colocou o ouvido contra a porta. Os passos tinham parado por um
intervalo longo demais, mas agora os pés se arrastavam novamente em direção
ao elevador no fim do corredor.
— Olha, você pode ir? Por favor? — Perry estava ficando impaciente. —
Estou esperando uma amiga.
Cassie se inclinou sobre a porta mais uma vez, ouviu um “pim” e depois o
silencioso escorregar da porta do elevador. Ela pegou no braço de Isabella.
182
— Vamos. Boa sorte com sua amiga, Peregrino.
Ele ficou roxo do pescoço para cima e abriu a boca, mas as meninas já
estavam do lado de fora e Isabella tinha fechado a porta com tudo na cara
perplexa e zangada dele.
Isabella deu uma risadinha.
— Pomposo bundão.
— Nisso você tem razão. Rápido, Marat já foi.
Cassie colocou o grampo dentro da fechadura. Uma virada decisiva e, a
porta se abriu.
— Puxa. Essa foi mais fácil do que tirar brinquedo da mão de criança.
— Doce. Bom, já fiz isso antes — no entanto, enquanto Cassie se agachava
para passar pela faixa e fechava a porta, ela sentia seu coração bater mais forte
de medo. Ela não conseguia espantar a preocupação de que Marat pudesse
voltar e encontrá-las. O cara era como um fungo: ele aparecia em qualquer
lugar onde não fosse bem-vindo.
O quarto de Jake estava arrumado e limpo. Se Vaughan e seu colega do FBI
vasculharam o local, tinham sido bem cautelosos. Mas Cassie não achava que
eles o tivessem feito. Eles tinham mais interesse em tirar Jake da Academia e
jogá-lo no Confinamento. Rapidamente, Cassie passou sua mão entre o colchão
e o estrado da cama e, então, começou a caçar atrás da escrivaninha, da cômoda,
da cabeceira.
Isabella também estava procurando freneticamente, tirou os livros da
prateleira, revistou as gavetas.
— Eu não sei por onde começar. Se estiver aqui, Jake deve tê-lo escondido
muito bem. Que péssimo.
Muito bem. Encontre-o, Cassandra! Encontre-o!
— Estou tentando — ela sussurrou. Tirou uma gaveta para fora da
escrivaninha de Jake, virou-a de cabeça para baixo e canetas, clipes de papel e
cadernos se espalharam pelo chão. Nada de punhal.
ENCONTRE-O!
183
Estelle estava ficando bem agitada. Totalmente imóvel, Cassie cerrou os
punhos e apertou os dentes. Ela podia sentir a energia borbulhar, o calor que
subia da base de sua espinha e que saía de seus olhos flamejantes. Não! Não, ela
não deve...
Onde está, Cassandra? ONDE ESTÁ?
— Oh meu Deus — Isabella estava olhando para ela, mas a atenção de
Cassie estava no espelho da parede ao lado do guarda-roupa. Algo estava
chamando a atenção dela para aquilo...
Pelo filtro vermelho, Cassie olhava fixamente para o espelho e a áurea
brilhante que crescia em volta dela chegou até lá. A moldura era pesada, de aço
maciço, mas começou a derreter diante dos olhos dela. A moldura deformou-se
e entortou, enquanto o vidro prateado escorria como uma calda, escorregando
junto com a moldura até que a imagem das garotas virasse, de repente, uma
versão deformada de seu reflexo.
Cassie colocou a mão sobre o rosto de horror, piscando desesperadamente
para tirar o filtro vermelho de seus olhos. Ela respirou fundo, então correu para
o espelho, passou a mão pela moldura derretida e pelo vidro distorcido, por sua
própria imagem distorcida. A superfície do vidro parecia tremer debaixo dos
seus dedos. Franzindo a testa, ela tirou o espelho da parede e percorreu com os
dedos a parte de trás da moldura. Alguma coisa estava precariamente colocada
na parte superior e quando seus dedos o tocaram, o objeto caiu imediatamente
no chão.
— Aqui está ele — suspirou. Ela levantou o punhal, admirando o cabo com
elaborado entalhe.
— Ok — Isabella entortou a boca de desgosto enquanto olhava a lâmina
brutal. — O que acabou de acontecer?
Cassie desviou o olhar da lâmina por um momento.
— Você... Você se importa se não falarmos sobre isso? — com delicadeza,
ela tocou as figuras contorcidas com o dedão: as sereias, as cariátides, um tipo
meio felino, meio cobra. Ela podia jurar que tinham respondido ao toque dela,
se mexendo e se esticando... Ela sentiu como se o punhal fosse parte de sua
mão, da sua pele e, em algum lugar dentro de sua cabeça, ela ouviu Estelle dar
um profundo suspiro de prazer.
Não é lindo?
184
Cassie se arrepiou e colocou o punhal dentro de seu casaco.
— Eu não gosto desta coisa — disse Isabella.
Levemente irritada, Cassie evitou o olhar de Isabella.
— Precisamos dele.
— Mas você conseguiria usá-lo?
Cassie não respondeu.
*** O ar de fora estava elétrico por causa da tempestade iminente: Cassie podia
sentir o gosto da carga no ar, sentir as pontas dos cabelos levantarem-se.
Quando elas driblaram o trânsito e chegaram a entrada do Central Park na 79th
Street, ela pede sentir o punhal dentro do seu casaco, o calor dele contra seu
corpo. Isabella estava certa. Ela estaria realmente pronta para isso? Será que ela
realmente usaria o punhal se precisasse?
— Por aqui, Cassie! — a voz apressada de Isabella estava cheia de
ansiedade.
Cassie sacudiu a cabeça para se livrar de suas dúvidas e correu atrás de sua
amiga para dentro do parque escuro, com apenas alguns flashes de luz que
refletiam dos postes da 79th Street Transverse20. Ela conhecia esse caminho:
tinha passado por ali de dia, há duas semanas atrás, quando tinha ido patinar
no Wollman Rink21 com Ranj... Agora não, ela pensou, expulsando-o de seu
pensamento.
Ela se convenceu de que não tinha medo de passar por debaixo da ponte
East Drive na escuridão. Por que teria? Ela pensou. E do outro lado viu o que
20
A 79th
Street Transverse corta o Central Park (N.T.). 21
O Wollman Rink é uma famosa pista de patinação no gelo localizada no Central Park, no lado oeste do zoológico. Essa pista fica aberta de novembro a março e são cobrados ingressos de entrada (N. T.).
185
parecia ser água. Um distante flash de luz fez o Turtle Pond22 brilhar como um
espelho por um instante, então, a escuridão caiu novamente. Ela pôde sentir a
chuva fria em sua face, mas quando o vento apertou, ela não diminuiu o ritmo.
Isabella estava sem fôlego, ficou um pouco para trás, mas Cassie sentiu que
podia correr para sempre.
— Falta muito? — ela perguntou.
— É logo ali! — tropeçando ao parar bruscamente, Isabella a agarrou. — É
isso! O Swedish Cottage. É um teatro de marionetes.
*** Uma bandeira americana e outra sueca estavam penduradas no telhado da
grande construção em madeira, ensopadas e voando por causa do vento. Cassie
deixou escapar um sorriso, mas não de alegria. Ela devia ter imaginado que
Brigitte não levaria Jake para uma de suas propriedades. Além disso, ela não
conseguia imaginar que a família de Katerina tivesse algo menor do que uma
mansão.
Cassie sentiu seus músculos tencionarem quando ela se aproximou
sorrateiramente do chalé por entre as arvores.
— Parece silencioso — ela murmurou.
Estava chovendo forte no momento, as gotas de chuva ardiam como gelo
em sua pele. O chalé não estava aceso, mas ela pôde perceber uma luz fraca
atrás dele. Ela estreitou os olhos, respirou bem devagar. Por trás do vento
uivante e do barulho da chuva, ela pede ouvir algo. Vozes. Movimentos. O
cavar de uma pá no solo. Risos baixos.
Uma luz explodiu diretamente sobre elas, deixando tudo branco. Numa
fração de segundo antes de o trovão chacoalhar a terra, Cassie viu o que
acontecia: viu as pessoas e o que elas estavam fazendo, congeladas na luz como
um quadro.
22
Viveiro de tartarugas (N.R.).
186
O raio foi seguido de imediato por um segundo flash. Cassie estava ciente
da enorme criatura, cruel e distorcida, que se erguia diante dela. Recuando
instintivamente, tropeçou para trás.
Então, estava bem diante dela um rosto horrendo, gritando bem na cara
dela, com os olhos vermelhos de ódio e força.
Não dava tempo de reagir. Lançada para o ar por uma rajada de vento,
Cassie sentiu que flutuava pelo ar elétrico e, ao cair, sua cabeça bateu forte
contra o chão duro. Enquanto lutava para se reerguer, outro raio lampejou
rapidamente sem aviso e caiu em uma árvore perto dela.
Cassie teve um momento de clareza quando viu um galho quebrar e cair
sobre ela. E, então, as luzes se apagaram por completo.
187
Capitulo 25 Recobrar a consciência foi como tomar uma tapa na cara. Tentando ficar em
pé, Cassie sentiu o pesado galho de árvore prendê-la ao chão. Reunindo toda
sua força, ela conseguiu tirá-lo de cima de si, mas sentiu uma dor quente e
perfurante ao respirar fundo. Pelo menos uma costela estava quebrada. Ela
tossiu e respirou com dificuldade quando a dor a atingiu mais uma vez. A
chuva uivava ao redor dela; trovões, mais distantes agora, estalavam no céu.
— Garota tonta. Bolsista tonta e estúpida, pensou que era páreo para nós,
mesmo com seus poderes estranhos. E, a voraz Mãe Natureza tinha que dar sua
deixa também. Aquele raio quase te acendeu como uma árvore de Natal.
Não reconheceu as botas pretas caras, mas ela conhecia a voz.
Katerina.
Desesperada, Cassie tentou dar socos, mas os pés diante dela foram
ligeiramente para trás. A manobra evasiva da garota sueca revelou silhuetas
188
atrás dela. Elas pareciam humanas e ainda assim... Não. Havia algo distorcido
sobre as figuras: tão distorcidas quanto a forma grotesca de Katerina.
Ah, Cassie reconhecia aquilo, sim. Tinha visto aquilo antes, no Arco do
Triunfo; Katerina deixou sua verdadeira face maligna de Escolhida aparecer. Os
lábios retraídos, os olhos vermelhos, os dentes que não tinham sido tratados por
nenhum ortodontista... No entanto, a garota ainda era estilosa. Chique, apesar
da calma com que segurava Isabella inconsciente debaixo de um braço
musculoso.
— Deus, vocês três tem uma sorte extraordinária — Katerina riu. — Eu
tentei me vingar da forma mais elegante, mas no final tudo se resume a
pancadaria e galhos voadores.
— Isabella! — Cassie tentou alcançar sua amiga. — Não a machuque!
— Não se preocupe com sua coleguinha de quarto, querida. Vou tomar
conta dela — os lábios cinzentos se alongaram. — De uma vez por todas.
Com um rosnado de raiva, Cassie tentou se esticar e agarrar Isabella, mas
Katerina se esquivou com uma facilidade visível. Ela deu um chute com um dos
pés que calçavam os sapatos caros que pegou na têmpora de Cassie e a fez
cambalear para trás.
Droga, se ela ao menos pudesse se concentrar, superar essa dor... Cassie
piscou com força e sacudiu sua cabeça, zonza. Ela tinha certeza de que conhecia
as duas pessoas atrás de Katerina; ela os tinha visto recentemente.
Impulsionando o corpo para frente mais uma vez, ainda incapaz de ficar em pé
direito, ela semicerrou os olhos para enxergar através da chuva torrencial e das
sombras em movimento.
Katerina virou as costas para Cassie com desdém e seguiu em direção a
seus comparsas, com Isabella pendurada em seus braços como uma boneca de
pano. Ao engatinhar desesperadamente — cravando as unhas na grama
lamacenta, piscando para tirar a chuva de seus olhos —, ela viu as pessoas na
distância com mais clareza. A mais alta tinha cabelo loiro platinado, mais curto
que o de Katerina, mas ainda assim igual. A outra pessoa tinha estrutura larga e
musculosa. Cabelo curtinho, lábios carnudos, os olhos eram claros e cruéis.
Aqueles traços eram tudo o que os distinguia de um pesadelo. Mas ela
definitivamente os conhecia.
Brigitte e Vaughan, seus torturadores do Conselho.
189
Cada um deles carregava uma tocha que queimava ferozmente, apesar do
vento uivante e da chuva cortante. Tonta e boquiaberta, Cassie assistia as
chamas cintilarem e faiscarem. As chamas pareciam vivas: contorciam-se,
faiscavam com vida. Ela viu olhos, caudas, asas, caninos... Criaturas se
remexendo nas chamas. As figuras em chamas rodopiavam na escuridão,
iluminando outra forma, que mal se movia, deitada no solo encharcado.
— Jake!
Com um grito raivoso de desespero, Cassie se arrastou para frente. Ela não
se importou com Brigitte e Vaughan; ela nem se importou com Katerina. Ela
precisava resgatar seus amigos.
Cassie abriu a boca para gritar o nome deles, mas um choramingo de dor
foi tudo o que escapou de seus lábios. Ela olhava fixamente, sentindo-se
impotente, enquanto Brigitte chutava a costela de Jake e ele reprimia os
gemidos. Cassie tentou se mover de novo, mas ela não tinha força em seus
membros.
Katerina jogou sua carga ao lado de Jake. Isabella parecia morta.
— Estou emocionada — disse a garota sueca com a voz fina. — Que amável
a adorada Sara ter me avisado que estavam vindo, garotas. E, por sorte, pois
Richard deveria estar observando vocês todos para mim, mas ele parece ter
mudado de lado. Terei que lidar com ele mais tarde. Ainda assim, talvez as
coisas não tenham terminado tão mal. Agora vocês, Os Três Mosqueteiros,
podem ser todos por um — ela lançou um olhar de desprezo para Cassie e deu
uma gargalhada impiedosa.
— Comovente, não? — rosnou o desfigurado Vaughan, rindo
escancaradamente.
Cassie viu seus dentes reluzirem a luz de um raio.
— Sim, bem, não podemos separar os dois pombinhos — disse Katerina
suavemente, olhando para Isabella e Jake. — Não se preocupem, queridos, vocês
serão dados juntos ao solo como alimento. Infelizmente, sua amiguinha mestiça
terá que morrer de um jeito mais tradicional. Nós não vamos deixar que nos
acusem de ter contaminado o Solo Vivo com um único pedacinho de Escolhido,
como ela, vamos?
190
Com um pé, Katerina rolou o corpo de Jake outro metro pelo solo e Brigitte
e Vaughan ergueram suas tochas. A luz flamejante iluminou parte de uma
sombra que era mais profunda do que qualquer uma das outras.
— Meu Deus — Cassie sussurrou.
Jake estava na beirada de um buraco negro na terra. Havia algo estranho
sobre a cova, algo maligno. Cassie engatinhou para mais perto. A terra molhada
dentro do buraco tinha um tom de carmim, um brilho. Vermelho sangue. Ela
piscou para tirar a chuva dos olhos.
Cassandra, o que foi que eu te disse?
— O que, Estelle? — a voz de Cassie estava muito fraca, afogada pelo
barulho da chuva. — O que você me disse? Eu devia ter escutado, sua vaca
velha?
Claro que sim, querida. Havia um estranho pesar na voz de Estelle junto a
incontrolável empolgação. O Solo Vivo, minha querida. A prisão mais cruel de todas.
Séculos de enterros alimentando-o, alimentando aqueles que ousam usar o seu poder...
Agora ela podia ver, mas tudo o que ela queria fazer era olhar para o outro
lado. Fugir. A terra dentro do buraco não era apenas terra; havia corpos
também, emaranhados, que se moviam e se debatiam, incontáveis corpos.
Membros, torsos, cabelos desgrenhados e encharcados de sangue. Quando a
pilha de corpos se mexeu, uma mão se ergueu desesperada pelo ar. Então, com
um grito abafado, o braço foi arrastado para baixo outra vez.
— Eles não estão mortos — sussurrou Cassie, enquanto a dor agulhou sua
cabeça e fez todo o corpo dela tremer. Ela ficou enjoada. — Eles não estão
mortos!
Sim, minha querida. Sim. Agora você compreende.
E ela compreendia...
Isabella e Jake seriam enterrados vivos.
191
Capitulo 26 — Uma educação cara é algo excelente — havia um riso cruel por trás da
voz de Brigitte quando ela ergueu sua tocha. — Mas há algo conhecido, querida
Senhorita Caruso, como Informação Demais. E é isso que você tem — ela deu
uma tapinha no corpo prostrado de Isabella.
— E, além disso, é claro que há Jake — sorriu Katerina. — Pobre e
intrometido Scooby. Você não sabe que a curiosidade matou o gato?
Jake a ignorou, com os braços envolvendo Isabella para protegê-la.
— Em breve, ele terá tempo de sobra para refletir sobre todos os arquivos
que se empenhou tanto para conseguir — rosnou Vaughan. — Você realmente
achou que tinha conseguido invadir o site do FBI sozinho? Nós só precisávamos
de uma desculpa para prendê-lo, seu inútil. Foi fácil demais. Nós plantamos
aqueles arquivos, assim como vamos plantá-lo neste solo. Quer chamar seu
192
advogado outra vez, filho? — o lábio dele se converteu em um sorriso
debochado.
A voz de Jake era um rosnado grave e determinado.
— O Conselho vai fazer vocês pagarem, seus animais. E quando eles
descobrirem o que fizeram, eles farão meu trabalho por mim — ele encarou
Katerina, com ódio queimando em seus olhos. — Você vai pagar por ter matado
minha irmã.
— Temos que começar — Brigitte rosnou com uma urgência frenética. —
Ignore o garoto. O que o Conselho não sabe não fere seus delicados princípios.
Ela agarrou o cabelo de Isabella, enrolando-o em volta de seus dedos
deformados e cinzas, arrastando-a para a beirada do buraco. Imobilizado por
um mata-leão, Jake, que mal conseguia respirar, foi arrastado por Vaughan para
o mesmo lugar de Isabella. Com a mão que estava livre, Brigitte alcançou o
poço, gemendo enquanto o brilho vermelho acariciava sua pele.
— O poder! É divino, eu já posso sentir!
Katerina e Vaughan observaram-na, com a respiração difícil de
empolgação.
— Os mortos de séculos... Sinta-os, filha! Sinta a energia deles! Alimente-se
do Solo, preservado para sempre, vivo para sempre, para nós! — ela ergueu a
voz a um grito histérico e vibrante. — Nós somos os verdadeiros Escolhidos! Não
há fraquezas em nós, nem um pingo de misericórdia. Apenas nos temos força
para alimentar o Solo Vivo e nos alimentarmos dele. Sinta este poder! Como o
Conselho pode renunciar a isto? COMO? — Brigitte titubeou quando empurrou
Jake para a beira do poço, zonza de ansiedade. — Peguem a mestiça — ela
disse, ainda encarando com fascinação o buraco na terra. — Nós lidaremos com
ela em seguida.
Cassie não conseguia se mexer.
Se quiser acabar com isso, querida, não tem muito tempo...
— O que posso fazer?
Use o Solo, Cassandra. Vire o poder deles contra eles mesmos! A energia está toda
lá; toda dentro do Solo. Você apenas tem que ir lá pegá-la!
193
Não era uma decisão consciente. Não era um pensamento real. Seguindo a
sugestão de Estelle, Cassie respirou fundo e, ignorando a dor pungente,
simplesmente fechou os olhos e deixou a fúria assumir o comando.
Sua impotência tinha sido esquecida, sua exaustão, atolada pela energia que
circulava, fervia por suas veias e seus nervos, enquanto ela levava a energia do
Solo que pairava no ar para dentro de seus pulmões. Era mais poderoso do que
qualquer outro tipo de alimentação, mais poderoso até mesmo do que as
Lágrimas. Ela mal ficou surpresa ao sentir sua costela quebrada começar a se
curar. A escuridão ficou vermelha e mais rápida e mais forte do que antes, a
Cassie do Carnegie Hall estava de volta. Com um rosnado estridente, ela saltou
e ficou em pé.
— PAREM!
Os três monstros se voltaram para ela, momentaneamente chocados.
— Oh, você nunca aprende? — Katerina deu um rosnado feroz, mas foi
Vaughan quem saltou nela primeiro.
Tolo pobre e patético!
Cassie riu, apertando os braços contra o corpo. Ela não tinha se movido um
milímetro em direção a ele, quando sentiu a força romper seu corpo e sair,
expandindo-se para além dela, golpeando Vaughan, parando-o no meio do
caminho.
ISSO! Mostre a ele! ELE PEDIU POR ISSO!
Ela ouviu Vaughan gemer de dor e medo ao longe. Ele estava a metros de
distância, tentando livrar seu pescoço, afrouxar a força invisível que apertava
seu pescoço.
Inútil.
Ela sorriu. Ele estava berrando com a voz rouca, desperdiçando o ar que
deveria respirar. Mostrando os dentes, ela o empurrou para trás. Os pés e as
pernas dele chutavam e se debatiam no chão, mas ele não conseguia impedi-la
de empurrá-lo para trás, e mais para trás, até a beira do buraco. Então, Cassie o
ergueu no ar e o lançou contra o atemorizante e remexido túmulo aberto.
Vaughan deixou escapar um grito do âmago, tateando a beira do buraco
aberto, tentando segurar nas paredes de terra vermelha. Mas ele não conseguia
manter seus pés apoiados, não naquele redemoinho de corpos vivos. Quando
194
ele tropeçou, mãos encharcadas de sangue o tocaram, agarraram suas pernas,
seus braços, seu pescoço. Por longos segundos, Cassie assistiu enquanto ele
lutava, os gritos dele ficavam cada vez mais suaves e abafados enquanto ele era
engolido pela carne humana do poço.
Mas então veio um estrondo, como um terremoto debaixo da terra. O
buraco começou a fechar, o brejo sangrento borbulhava violentamente. Parecia
que a entrada de Vaughan não era bem-vinda...
— NÃO! — o grito de Brigitte perfurou a noite. — Ele vai destruí-lo!
Ela se lançou contra a terra aberta, tentando alcançar desesperadamente a
mão de Vaughan, agarrando em vão no ar. Mas era tarde demais. Ele tinha ido.
E com um tremor, a terra se fechou, unindo-se como a cicatriz de uma ferida.
Brigitte e Katerina caíram no chão, perplexas. Para Cassie, no entanto, era como
se um fio tivesse sido puxado da tomada. A força estava esvaindo-se dela. De
repente, inexplicavelmente fraca, ela caiu de joelhos.
O Solo!
— Estelle...? — Cassie murmurou, mal conseguindo falar. — O que está...
Acontecendo?
Você o arruinou, minha querida. Ele não pode receber um dos Escolhidos sem
consequências desastrosas. Acabou. O Solo e a energia dele acabaram.
Péssimo timing.
Unidas, mãe e filha se viraram e se lançaram em direção a Cassie, gritando
de fúria, cabelos loiros platinados arrepiados pela energia estática da
tempestade.
Você está muito fraca. Querida, doce Cassandra...
— Por Deus, Estelle. Me ajude.
Ah, Cassandra. Você tem outra opção se me permitir, claro. Se você ao menos me
deixasse...
— Não consigo me mexer — ela respirou com dificuldade. — Estelle...
O quanto você quer isso, querida? Viver, quanto quer? Você vai permitir isso? Eu
adoraria que sim... Não quero que nós morramos...
195
Lágrimas escorreram sobre as bochechas de Cassie, pingando em sua boca.
Ela tentou ficar em pé, mas não tinha a força necessária. Conseguia apenas se
agachar, esperando que elas a destruíssem.
— Por favor, Estelle! ME AJUDE!
É simples, querida. Sempre foi. Apenas deixe-me entrar. O resto de mim. DEIXE
ENTRAR!
Soava mais alto do que nunca aquela voz. E reverberava dentro da cabeça
dela. E ela estava certa. O que mais ela poderia fazer? O que mais?
ENTRE! ENTRE! ENTRE! ENTRE!
A resposta de Cassie foi menos que um sussurro.
— Sim...
Era como se todo seu corpo tivesse sido acometido por uma força
gigantesca que não parava ao tocar nela e passava direto pela pele, rumo a seus
ossos e sua carne. Ela ouvia o grito de Estelle de triunfo. Então o silêncio; um
silêncio ensurdecedor.
O espírito estava dentro dela.
Cassie estava selada em uma bolha. Pelo que pareceu muito, muito tempo,
havia apenas paz e espanto. Ela sentiu os músculos de sua face se moverem,
mudarem. Suas formas se contorceram, exageradamente. Mas ela não sentiu
medo.
É isso, então? É só isso. Eu gosto disso... Dessa força? Sim...
Como se fosse um sonho em câmera lenta, Cassie alcançou sua jaqueta e
fechou a mão ao redor do punhal. Ele estava vivo: assim como ela. Debaixo de
seus dedos, as criaturas reviravam em êxtase. O poder esvaía-se deles, girava
dentro do sangue dela, corria de volta para o punhal e para fora de novo, em
um circuito vibrante e elétrico. Ela não riu, não tinha pressa em se vangloriar;
apenas de lutar. Ela sentiu todos os seus músculos enrijecerem enquanto
Brigitte e Katerina se lançavam contra ela, mas ela mal percebeu os
horripilantes gritos de ataque delas. Tudo parecia se mover devagar. Cassie
estava repleta de poder, afogando-se nele. Ela e seu espírito. Todo o poder,
unidas.
196
Ela saltou no ar, pulando sem fazer esforço em suas adversárias e seu corpo
era mais uma força da natureza do que um ser humano. Seus punhos batiam
em Katerina rápidos como raios, fazendo com que ela desse uma pirueta no ar.
Sua outra mão era um trovão, batendo contra o peito de Brigitte e a mulher
cambaleou para trás, encarando atônita o punhal que Cassie segurava.
Ela saltou sobre Brigitte outra vez com muita facilidade. O punhal estava
vivo, as criaturas do cabo cantavam para ela. Ela percebeu que havia um
padrão nos movimentos das criaturas: tudo fazia sentido. As criaturas estavam
em harmonia. Maravilhada com o movimento delas, ela avançou sobre o
monstro loiro.
Mas, dessa vez, Brigitte estava pronta. Ela se desviou do ataque de Cassie e
se moveu com rapidez em volta dela, rápida como um raio, dando um golpe
certeiro na nuca de Cassie. Cassie foi lançada para frente, sacudindo a cabeça
vigorosamente para desembaralhar sua visão, confusa pelo impacto.
— Você pensou que seria assim tão fácil, bolsista? — Katerina provocou,
saltando para atacá-la. — Ah!
Cassie impediu que o pé da garota demoníaca atingisse seu queixo.
Segurando a perna de Katerina, ela a lançou alto no ar, urrando com força. No
entanto, antes que ela pudesse finalizar o ataque, Brigitte estava em suas costas,
com os braços em volta do pescoço de Cassie, sufocando-a. Cassie se atirou no
chão e ouviu o vento sair dos pulmões de Brigitte. Os braços dela ficaram
frouxos e Cassie, pulando, deu um golpe, socando o punho no meio da cara de
Brigitte; depois enfiou fundo a lâmina do punhal no ombro de Brigitte. Ela
uivou de agonia.
— Mãe! — gritou Katerina.
Virando-se para enfrentar o ataque da filha, Cassie golpeou com o punhal e
bateu com o seu cabo na cabeça de Katerina. Grunhindo de dor, a garota caiu,
quase inconsciente, no chão lamacento. Raios se acendiam, cruzando outra vez
as nuvens e trovões reverberavam, enquanto Cassie debruçava-se sobre
Katerina e erguia a lâmina para o alto.
Os olhos dela queimavam e tudo estava vermelho novamente. Ela gostava
da sensação. Ela adorava a sensação. A cabeça de Cassie estava zunindo, seus
pensamentos eram uma bola de fúria.
— Eu devia acabar com você, sua vaca. Você tentou nos matar. Tentou
matar todos nós!
197
Nós? Jake e Isabella. E eu e...
Cassie piscou com força, tentando minimizar a raiva em ebulição para que
pudesse pensar direito. Quem mais Katerina tinha tentado prejudicar? Ela
respirou profundamente e olhou para o céu. A chuva gelada pingava em seu
rosto, lembrando-a de sua vulnerabilidade. Mortal.
Humana...
— Estelle! — ela se assustou.
Meu Deus. Estelle estava toda dentro dela. Dentro de seu corpo e mente.
Unindo-se. Tornavam-se uma só. Completavam a tarefa que o ritual tinha
iniciado. Logo ela seria parte de Cassie para sempre. A menos que... Fechando
os olhos, ela se concentrou em sua vontade. Não no poder super-humano, pensou
Cassie, apenas na força de sua própria mente. Sua própria alma. Ela começou a
sentir a mudança, algo se movimentava, mudava de lugar. Enquanto lutava
mentalmente, expulsando a força de dentro dela, uma voz familiar retornou.
Cassandra? Pare! O que está fazendo?
— Isso não está certo — disse Cassie. — Não posso permitir que isso
aconteça, Estelle! Não deveria ter deixado...
NÃO!
Mantendo os olhos fechados, com força, Cassie apertou os dentes quando
começou a sentir sua pele tremeluzir, quente com a energia que ela tentava
expulsar.
Cassandra! Pare! Não faça isso comigo! Quero ser uma só!
— Sinto muito — Cassie disse pesarosa. — Sinto muito mesmo!
A cabeça dela girou e, de repente, o calor em sua pele se dissipou. Tinha
conseguido. A força estava fechada, dividida mais uma vez. Cassie estava
ofegante e enfim abriu os olhos enquanto gotas frias de chuva se misturavam as
suas lágrimas quentes.
E de algum lugar de dentro veio um grito de lamento, dor e tristeza.
198
Capitulo 27 Mais uma vez, a energia de Cassie tinha se esgotado. De repente, ela estava
tremendo, assustada e sozinha na escuridão. Instintivamente, ela levou as mãos
ao rosto. Estava de volta ao normal.
Ela se afastou com dificuldade dos corpos deformados de Katerina e
Brigitte. Na frente dela, o vulto do Swedish Cottage parecia uma ameaçadora e
gigantesca criatura, com sua bandeira balançando ferozmente e ela estava com
medo outra vez.
Não fique com medo! Deixe-me voltar e não haverá razão para ter medo!
— Estelle? — ela sussurrou com uma voz vacilante. — Não posso deixar
que isso aconteça de novo.
Mas Cassandra, minha querida, agora que você sentiu as possibilidades...
— Não, Estelle, me desculpe, não posso...
199
Tudo bem, querida. Sem desculpas. Mas agora você sabe. Você sabe como deveria
ser! Você vai me deixar entrar um dia, Cassandra. E será para sempre.
Atrás de Cassie, alguém falou um palavrão baixinho. Ela deu meia-volta
para ver Jake ajoelhado ao lado de Isabella, esfregando as mãos dela e beijando
seus lábios gelados como uma espécie de Príncipe Encantado bem despojado.
— Jake? Ela está bem? — ela se jogou no chão do lado dele.
— Deixe-a em paz! — ele gritou nervoso e assustado. — Ela está voltando a
si.
— Ok — sussurrou. Ela encarou o punhal em suas mãos, agora inerte e
inanimado. Sangue brilhava na lâmina. Ela sentiu náusea e a arma escapou de
suas mãos e caiu no chão.
Houve um barulho e Cassie se virou. Brigitte estava ajudando a filha a se
levantar, ambas olhando para Cassie com terror. Elas pareciam tão
ridiculamente comuns agora: sangrando, sujas de lama e ensopadas até o
último fio de cabelo. Cassie não conseguia nem reunir forças para se zangar. Ela
assistiu, sem sentir nada, a dupla cambalear pela escuridão do Central Park.
Mas algo chamou ainda mais sua atenção para o meio das árvores densas por
onde elas desapareceram. O poço do Solo Vivo tinha desaparecido
completamente agora. O solo estava curado, não havia marcas no gramado
ensopado.
— Jake — ela sussurrou fechando os olhos. — Vamos dar o fora daqui.
***
Jake e Cassie carregaram a grogue Isabella para fora do parque. Jake insistia
que o lado oeste era mais perto. Ele parecia desesperado para sair do Central
Park e começou a tremer violentamente quando chegaram às ruas.
Efeito retardado, Cassie pensou.
200
Finalmente, eles saíram do parque, ensopados pela chuva e entraram, sem
saber muito bem aonde iam, em um beco estreito. Jake respirava ofegante.
— Que diabos aconteceu aqui? — ele perguntou. Ele estava pálido e com
olheiras, mas sua voz tinha um tom de acusação.
— Eu impedi que você fosse enterrado vivo, foi isso que aconteceu —
Cassie mal tinha energia para falar mais alto do que um suspiro.
Ele ficou olhando para ela, enojado.
— O que você é, Cassie?
O que ela era? Ela não sabia, não se importava. Ela sentia um enorme peso
em sua cabeça e um maior ainda no estômago. O que ela tinha feito?
— Você matou Vaughan. O cara do FBI? E daí... — ele ficou quieto.
— Eu não tive intenção.
— Mas você matou, Cassie. Matou.
— Jake, agora não. Eu não consigo pensar — afastando-se dos dois, Cassie
esfregou o rosto com força, respirava curta e rapidamente.
De repente, ela não queria mais olhar para eles. Será que havia rastros de
vermelhidão em seus olhos?
— Jake, deixe-a em paz — a voz de Isabella os surpreendeu, e eles se
viraram. Ela parecia exausta, mas falava com clareza. — E você? O que
Vaughan e Brigitte fizeram? Eles te machucaram?
— Não. Na verdade, não. Eles me pegaram enquanto eu estava dormindo.
Antes que eu soubesse o que estava acontecendo, eles me levaram para o
parque — mais uma vez ele deu um passo em direção a Cassie. — Você sabia o
que ia acontecer? Por que você estava com o punhal? Você pegou no meu
quarto, não foi? Você sabia o que eles iam fazer conosco, Cassie? É algo que
todos vocês, aberrações, sabem, sua louca... — ele parou de falar, tremendo com
o que Cassie pensava ser uma mistura de medo e repulsa.
Ela sabia? Ela sabia o que iria acabar fazendo? Talvez... Talvez ela quisesse isso.
Do contrário, por que tinha se empenhado tanto em achar o punhal, em
fazer tudo como Estelle mandou? Passando as mãos no cabelo, Cassie gemeu
baixinho, mas isso pareceu mais um rosnado. Ela ainda sentia como se estivesse
201
carregando um tijolo na cabeça, que não parecia pertencer a ela. A voz
intimidante de Jake parecia muito, muito distante. Nada importava a não ser o
redemoinho do vazio que crescia dentro dela, girando ate deixar um vazio cada
vez maior.
— Preciso me alimentar — ela sussurrou quando suas pernas cederam e ela
caiu.
*** Ela não conseguia se concentrar. Ela sabia vagamente que estava sendo
carregada pelo beco, apoiada em uma parede de tijolos entre uma escada de
incêndio e as lixeiras de um restaurante. Uma mão gentil colocou a cabeça dela
para trás e segurou o rosto dela.
— Ela está mal, Jake — a voz de Isabella parecia vir de um poço muito
profundo.
— E daí? Isabella, deixe-a aí. Vamos.
— Não, Jake. Não.
Silêncio, no qual Cassie pode ouvir sua própria respiração, rápida, vazia e
faminta. Os dedos dela procuravam no ar, tentavam alcançar Isabella, mas
apenas arranhavam inutilmente o pavimento.
— Espere, o que você vai...? Não! De jeito nenhum, Isabella!
— Eu te disse antes, Jake — o tom de Isabella era determinado. — Fique
fora disso. Isso não tem nada a ver com você.
Escute, escute, pensou Cassie embriagada. Fique fora disso, Jake...
— De forma alguma. Não vou permitir que faça isso!
— Você não pode me impedir. Tire suas mãos de mim!
Para Cassie, a discussão parecia durar uma eternidade. Até mesmo seu
próprio corpo parecia distante, ainda que o centro da fome fosse intolerável. Ela
202
estava começando a desejar, sem querer, que tivesse deixado Jake naquela
inimaginável cova rasa...
— Ok, Ok. Desculpa. Vamos, Isabella, por favor!
— Jake, não! Nós poderíamos ter morrido se não fosse por Cassie!
— Você poderia ter morrido por causa dela!
— Você acha? — a voz de Isabella era tensa. — Deixa eu te dizer: Jake
Johnson, nada disso é culpa de Cassie. Ela é o que é, mas ela também é nossa
amiga. Ela daria a vida por nós! Temos que ser justos. Estou disposta a arriscar a
minha por ela.
— Isabella, você acha que posso suportar isso? Eu te amo! Eu te amo. Não
faça isso.
Uma pausa.
— Jake... Eu também te amo. Mas se não vai ficar aqui e me ajudar, ajudar
nós duas, dane-se você — as palavras dela eram duras, mas a voz de Isabella
estava trêmula de emoção.
Jake ficou encarando as duas, desacreditado, amor e ódio brigavam nos
olhos dele. Ele deu um passo para frente e, por um momento, Cassie pensou
que as palavras de Isabella tinham sido suficientes para persuadi-lo. Então ele
fechou sua expressão, deu meia-volta e foi embora. Um instante depois, ele
tinha desaparecido na calada da noite.
Isabella assistiu ele partir silenciosamente. Então se ajoelhou na frente de
Cassie, afrouxou o colarinho do casaco, cobriu a boca com suas mãos frias e
aproximou seus lábios dos de Cassie.
Não, não, assim não, é muito perigoso...
Mas Cassie não conseguia se controlar. Os dedos dela se debatiam entre os
fios de cabelo sedosos de Isabella. Debilitada, ela ergueu a cabeça e resmungou.
A descarga de energia a atingiu como uma corrente de alta voltagem. A boca de
Isabella estava pressionada contra a dela e Cassie se inclinou para frente,
sugando com muita força. A energia era incrível, irresistível, mas aquele
redemoinho de fome dentro dela estava sugando sem hesitação. Isabella foi
ficando cada vez mais pálida.
203
Mas Cassie estava determinada dessa vez. Ela não perderia o controle de
forma alguma. O sacrifício de Isabella a fazia ter certeza de que não permitiria
isso. Um pouco depois, ela se forçou a parar. Tinha terminado. Ela ficou muito,
muito feliz quando acabou.
— Jake... — Cassie disse com a voz rouca.
— Eu sei. Tudo bem — disse Isabella, triste.
Envergonhada, Cassie se apoiou para ficar em pé. Mas se sentia fisicamente
mais forte do que nunca. Ela puxou Isabella do chão e a abraçou bem forte, com
lágrimas nos olhos.
— Obrigada — gaguejou.
Isabella apertou sua amiga com força para responder. Quando falou, sua
voz estava embargada de emoção.
— Ele vai voltar, não vai?
Cassie respirou fundo.
— Eu não sei, Isabella — ela disse honestamente. — Eu não sei.
204
Capitulo 28 — O Conselho dos Líderes é convocado a se reunir. Sir Alric presidirá.
A atmosfera na Sala do Conselho não poderia ser mais diferente do que da
última vez que ela se sentara ali, nervosa e sozinha. Dessa vez, Cassie estava em
pé, relaxada, mas determinada. Ela se sentiu confortável com a extrema
elegância da sala e não estava intimidada pela fileira de Líderes sentados atrás
da enorme mesa. Eles pareciam menores dessa vez.
Estudando os rostos enfileirados, o olhar dela cruzou com o de cada um
deles. Algumas pessoas, mesmo as mais familiares, demonstravam ansiedade.
Tal reunião não tinha precedentes, pelo que Sir Alric tinha dito para ela. Isso
devera ser interessante...
— Você não pode começar a reunião até que Brigitte e Vaughan cheguem
aqui — uma senadora se opôs, batendo uma elegante caneta tinteiro em uma
agenda de couro.
205
— Brigitte Svensson e Andrew Vaughan não participarão deste Conselho —
Sir Alric ignorou o espanto com o qual tinham recebido essa notícia. — Por
razões que deixarei claras, acho que devo dizer que eles pedem desculpas.
— Então, vamos ouvi-las — disse com sotaque de um super astro de
Hollywood. — Do que se trata?
Cassie olhou para ele com frieza, sem se intimidar pelo seu famoso
sorrisinho perverso.
— Estou aqui para protestar sobre sua última decisão.
Uma supermodelo ruiva trocou olhares com a pessoa a seu lado.
— Você quer dizer a decisão relacionada ao garoto Johnson?
— Isso seria sobre Jake, sim.
— Posso perguntar — murmurou o ator —, o que você tem a ver com isso?
Ou, na verdade, como você ficou sabendo disso?
Cassie respirava tranquilamente, ignorando sua última pergunta. Ela estava
determinada a não perder o controle e arrancar os olhos do homem.
— Em primeiro lugar, ele é meu... — uma pequena pausa. — Ele é meu
amigo. Em segundo lugar, ele é inocente. Em terceiro, o que vocês fizeram foi
errado.
Enquanto absorviam as palavras dela, trocaram algumas opiniões
sussurradas e até mesmo soltaram uma risada brusca ou duas. A senadora
sorriu de modo irônico e se recostou em sua cadeira.
— Eu realmente não acredito que uma vira-lata, parcialmente Escolhida,
recém-convertida possa compreender os assuntos extremamente complexos que
envolvem este caso. Sir Alric, eu acho que sua convocação para esta reunião do
Conselho foi profundamente mal pensada. A reunião deveria ser encerrada de
uma vez por todas. Somos pessoas muito ocupadas.
Vira-lata? Quanta insolência!
Cassie sentiu sua espinha enrijecer pela indignação que compartilhavam,
mas ainda assim ela quase riu com o tom mortificado de Estelle. Hora de
mostrar as garras.
206
— Na verdade, os assuntos não são tão complexos assim. Acho que até
mesmo um político seria capaz de entender o que eu tenho a dizer.
— Como é que é? — a senadora enrubesceu.
A supermodelo riu discretamente e Estelle também.
É isso aí, minha querida.
— Quantos de vocês — perguntou Cassie — checaram Jake no
Confinamento?
— A checagem não é necessária, minha querida — disse um cardeal com
um pequeno sorriso. — Ele está perfeitamente a salvo lá. O Confinamento não é
um lugar desagradável. De forma alguma.
— Então, não é nada parecido com o Solo Vivo?
Isso os calou. O cardeal ficou vermelho como sua batina.
— Minha querida Senhorita Bell — ele tossiu. — A simples menção disso é
uma blasfêmia. O uso do Solo Vivo foi banido há séculos. Não vamos mais
ouvir sobre isso.
— Bem, até ontem à noite ele estava perfeitamente em uso — disse Cassie
de modo calmo — e, vocês quase condenaram Jake Johnson a ele.
O tumulto era satisfatório.
— Como você ousa...
— Darke, isso é inaceitável.
— Eu exijo uma explicação!
— Então, Cassandra — murmurou Sir Alric tranquilamente —, você vai
explicar?
Cassie olhou para ele em agradecimento, mas a expressão dela endureceu
enquanto ela observava a fileira de Líderes.
— Brigitte e Vaughan têm enganado muitos de vocês — ela disse friamente.
— Eles têm levado prisioneiros do Confinamento para o Solo Vivo há anos.
Posso mostrar onde isso acontecia. Assim, vocês poderão constatar a veracidade
dos fatos. Se puderem enfrentá-los.
207
— É mesmo? — disse o ator. — E você pode provar?
— Se não acreditam em mim — replicou Cassie, apontando um dedo —,
perguntem a ele.
Todos os olhos da sala se voltaram de Cassie para os lindos traços de Sir
Alric. Ele limpou a garganta.
— Cassie chegou até mim com essa história ontem à noite. Não é necessário
dizer que fiquei chocado como o resto de vocês, mas visitei o lugar que ela
descreveu. Sinto dizer que ela contou a verdade. Há corpos humanos debaixo
daquele solo. Eu também estive no Confinamento — ele parou. — E está vazio.
Temo que todos os que foram designados para lá tenham sido dados como
alimento ao Solo Vivo, aqui em Nova York.
Ninguém se moveu; ninguém disse nada. A supermodelo empalideceu e
até mesmo a senadora tinha fechado os olhos e estava cobrindo a boca com as
mãos.
— Meu Deus... — suspirou o velho cardeal.
Sir Alric olhou fixamente para Cassie.
— Cassandra, posso garantir a você que nenhum destes líderes estava a par
da abominação que você presenciou. Espero que acredite nisso.
— Estou tentando — Cassie apertou bem as mãos atrás de suas costas,
enfiando as unhas nas palmas de suas mãos. — Mas mesmo que isso seja
verdade, mesmo que vocês não soubessem do Solo Vivo, ainda assim são
responsáveis. Votaram para mandar Jake, cujo único crime era saber demais
sobre os Escolhidos, para o Confinamento junto com Deus e sabe mais quem.
Mas vocês nunca se deram ao trabalho de checá-los, não é? Não queriam saber.
O que os olhos não veem, o coração não sente. Então Vaughan e Brigitte
puderam fazer tudo o que quiseram com eles.
Dezenove pares de olhos prestavam atenção nela. Ela apertou ainda mais as
mãos para que elas não tremessem.
— E tem mais... O Confinamento? É uma prisão. Não me importa o quão
chique seja, é uma prisão para inocentes e isso é errado. Vocês querem proteger
o segredo dos Escolhidos? Bem, o negócio é o seguinte: arrumem outro jeito de
fazê-lo. Eu exijo o fechamento do Confinamento. Agora. Se eu souber que
alguém desapareceu, se algo acontecer com Jake Johnson, ou qualquer outro
208
inocente, eu serei a responsável pelo Gran Finale dos Escolhidos. Vocês
entenderam? Eu gritarei a plenos pulmões. Irei a polícia. Irei ao FBI. Irei a CNN
e a Fox News e ao New York Times e ao Washington Post e, que se dane, eu irei a
National Enquirer.
Sem ar, de tanta raiva, ela forçou sua voz a se acalmar. Seus olhos estavam
avermelhados. Já deu. Ela não devia deixar as coisas irem tão longe... O poder
borbulhava como uma reação física debaixo de sua pele, mas agora ela o estava
controlando e não ao contrário.
— Não me importo quão influentes vocês sejam, ainda há muitas pessoas
influentes que não são Escolhidos. Eu irei até eles e contarei tudo. Contarei a
todas as pessoas normais. Porque existem algumas, sabem? Indivíduos normais,
decentes, que não tem que roubar força vital de outras pessoas.
— E você — o ator de Hollywood a relembrou delicadamente —, não é uma
delas.
— Não — ela retrucou. — Mas me lembro de como era ser. Me lembro de
quem eu era. Acho que têm a ver com ser vira-lata.
— Se afundarmos, você sofrerá conosco, Srta. Bell — a voz da senadora era
fria.
— Talvez sim, senadora. Mas farei assim mesmo. E sei o que estão
pensando: que vocês poderiam me colocar no Confinamento. Me trancafiar.
Bem... — Cassie forçou um sorriso, reunindo toda sua audácia. E isso não era
tão difícil já que ela podia ver que pelo menos dois deles estavam visivelmente
com medo dela. — Vocês podem me colocar no Confinamento, mas podem me
manter lá?
Com calma, fazendo uma força mínima, Cassie pegou delicadamente a
caneta tinteiro dos dedos paralisados da senadora e a quebrou ao meio. A
senadora deixou escapar um suspiro. O restante dos Líderes parecia abismado.
Que tal esse controle, Sir Alric? Ela estava enganada ou havia uma pitada de
orgulho nos olhos de granito dele? Sir Alric Darke bateu o martelo de metal,
muito delicadamente, de forma que ele soou o mais agradável dos sons.
— Então, senhoras e senhores, podemos iniciar a votação?
209
Capitulo 29 Cassie levantou o celular enquanto ele vibrava silenciosamente em sua mão.
Ainda assim, ela estudou o que apareceu no display.
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Outra vez ela percorreu o teclado com o dedão. Mais uma vez ela
pressionou Apagar. Ela rolou em sua cama e espiou Isabella no escuro. Tinha
levado horas para enfim pegar no sono. Cassie não tinha tido tanta sorte. Toda
vez que fechava os olhos via o que poderia ter acontecido se ela não tivesse
parado Katerina e Brigitte a tempo. Se não tivesse pegado o punhal. Se não
tivesse ouvido Estelle...
210
Estelle estava lá quando precisou dela. Quando chegou a hora da verdade,
foi Estelle a quem ela recorreu. Então o que aquilo queria dizer para Cassie? Ela
era um monstro, assim como as pessoas das quais ela tinha tentado proteger
seus amigos? Ela nem tinha certeza se poderia chamar Jake de amigo agora.
Pelo menos parecia claro que ele não aceitaria bem. Desde que ele as tinha
deixado naquele beco, não havia sinal dele. Ele tinha desaparecido tanto quanto
o punhal dos Escolhidos. Cassie tinha procurado no Swedish Cottage quando
voltou lá com Sir Alric, mas a arma tinha desaparecido. Claro que qualquer
pessoa que tivesse passado por ali podia ter pegado, mas, de alguma forma,
Cassie sabia que tinha sido Jake.
Por que ele tinha voltado para buscar o punhal? Aquele lembrete de tudo o
que ele odiava? Para tentar matar Katerina? Ou ele estava pensando que talvez
precisasse usar contra a própria Cassie, no futuro? O futuro... Cassie suspirou.
Quem pode saber como será?
Eu. Eu sei...
Desde que Cassie tinha permitido que ela entrasse completamente em seu
corpo e mente, havia um novo tom de tranquilidade na voz de Estelle. Como se
ela tivesse certeza de que, ao final de tudo, Cassie iria deixá-la entrar para
sempre.
— Isso não vai acontecer, Estelle.
Cassie estava determinada. Mas o que significava abrir mão disso? O que
ela estava perdendo? A incrível sensação de poder que a união tinha trazido
ainda ressonava na mente de Cassie, como a memória de uma droga. Era como
lutar a cada instante contra o desejo. Mas ela lutaria.
Ela não podia se arriscar a machucar Isabella, perdendo o controle,
causando mais danos. Ela não gostava do que tinha se tornado. Do que tinha
chance de se tornar.
Mais cedo ou mais tarde, você vai ter que ceder, minha querida!
Cassie pulou ao ouvir a leve batida na porta. Jake? Ela quase se atirou na
porta, olhando para sua cara borrada no espelho do armário. Pelo menos os
olhos dela tinham voltado a ser respeitavelmente verde-amarelados.
Ao abrir a porta, ela teve que se segurar ao ver quem estava plantado ali.
— Ranjit.
211
Ela teve que manter sua respiração constante, mesmo sendo muito difícil.
Alguma coisa se contorcia no peito dela, mas ela controlou seu anseio e
manteve distância.
— Cassie. Oi — o lindo rapaz indiano fechava e abria as mãos.
Ela nunca o tinha visto tão nervoso e triste. Não que ela tivesse facilitando
as coisas para ele. Preocupada com Isabella, ela saiu para o corredor e fechou a
porta atrás dela.
— Estou surpresa em vê-lo aqui.
Ele suspirou magoado.
— Cassie... Me desculpe. Por tudo.
— Você soube da história, então?
— Conversei com Sir Alric — ele olhou para suas mãos. — E ele conversou
comigo.
— Voltamos ao normal, então. Estão falando pelas minhas costas. Minhas
orelhas ficarão vermelhas como meus olhos.
— Você não acha que eu queria, ou melhor, precisava saber o que
aconteceu? — os olhos dele brilharam e, por um instante, os olhos âmbar
ficaram tingidos de vermelho escarlate.
Analisando-o, Cassie fez “sim” com a cabeça, pensativa. Engolindo seco,
Ranjit deu um passo para trás.
— Tenho certeza de que você queria saber, Ranjit. Claro que você teria visto
tudo em primeira mão se estivesse por perto para nos ajudar — ela engoliu
seco.
Mesmo agora, apesar de tudo, a última coisa que ela queria fazer era
magoá-lo. Mas ele precisava ser magoado; ela tinha sido magoada por ele. Era a
vez dele.
— Sinto muito — a expressão dele era solene. — Mas isso não significa que
eu pudesse ter feito as coisas de outro jeito.
— Todo mundo tem uma escolha, Ranjit. Todos têm livre-arbítrio. Somos
humanos, afinal.
212
Ele sorriu tristemente.
— Isso é uma questão de opinião.
Cassie cruzou os braços, olhou para cima.
— Por que está aqui?
— Para te pedir... Para tomar cuidado. Por favor, Cassie. Não quero que
nada te aconteça.
— É um pouco tarde para isso — ela sacudiu a cabeça amargamente.
— Estou falando do Conselho. Dos líderes. Você não sabe do que eles são
capazes, Cassie.
— Deixe-me ver, onde escutei isso antes? — ela colocou um dedo em seu
queixo. — Ah, sim. Isso foi o que eles disseram sobre mim.
— Estou falando sério. Eles tiveram que aceitar suas exigências desta vez;
eles não podiam negar que o que Brigitte e Vaughan estavam fazendo era
errado, mas os Líderes não gostam de ser contrariados, Cassie. Por favor, tenha
cuidado. Pelo seu próprio bem — ele parou. — E pelo meu.
— Entendi. É uma questão de autopreservação.
Com um suspiro, Ranjit escorregou o corpo pela parede e sentou no chão,
descansando os braços sobre os joelhos. Depois de um momento de hesitação,
Cassie se sentou ao lado dele.
— Ranjit — ela cutucava uma cutícula, falando em voz baixa. — Por que
está aqui? De verdade?
Ela sabia a resposta que queria; que ele dissesse que estava errado, que ele
nunca deveria tê-la abandonado. Que ele a amava. Ela precisava que ele
dissesse isso.
Ranjit virou o rosto para olhar nos olhos dela. Isso deixou o rosto e os lábios
dele tão perto. Ela podia sentir o cheiro dele. Da pele, do cabelo, a essência dele.
Cassie se esforçou para controlar a respiração. Inspirar, expirar, inspirar,
expirar. Sem ofegar, agora. Ela se sentiu perigosamente vulnerável sob o olhar
dele.
— De verdade? — ele disse. — Verdadeira? Por que eu queria, eu precisava
te ver. Quase morri de saudades. Por Deus, eu gostaria que não tivesse que ter
213
feito o que fiz. E eu quero me explicar, para que talvez, apenas talvez, você não
me odeie tanto — ele hesitou, implorando com os olhos.
Cassie concordou com a cabeça.
— Diga.
Ele virou a cabeça para olhar para o chão outra vez.
— E eu preciso te dizer por que não podemos mais ficar juntos.
Aquelas palavras doeram tanto, e tão inesperadamente, que ela fez uma
pausa.
— Certo.
Ele respirou fundo.
— Eu queria estar com você na reunião do Conselho. Estava pronto na noite
da reunião. No meu quarto. Quase saindo para te buscar. E...
Ela suspirou. Por que ele esperava que ela facilitasse as coisas para ele?
— E?
— E Sir Alric veio me ver.
— Sei. Então, você me deixou sozinha porque teve uma reunião mais
importante.
— Você não entende! — ele retrucou. — Ele me disse o que estava
esperando que acontecesse naquela noite, na reunião do Conselho. Ele me disse
que teve que lutar com unhas e dentes para não te mandarem para o
Confinamento.
— Ele fez isso mesmo? — Cassie ergueu uma sobrancelha. — Não pareceu.
— Eu acho que é verdade. Ele disse que teve que convencer os Líderes de
que podia te controlar. Que ele podia te monitorar dentro da Academia, te
restringir, te treinar. E... — Ranjit respirou fundo. — E que ele não poderia fazer
isso se eu estivesse ali com você.
Cassie mordeu uma unha.
— O quê? Por quê?
214
— Porque não deveríamos estar juntos, Cassie.
Quando ela finalmente soltou o ar, suspirou abalada.
— Entendo. Bom, nesse caso não há mais nada para explicar. Sir Alric disse,
então...
— Cassie, não é assim. Por favor, escute. Há... Há muito que explicar. Não é
que eu não... Não é que eu não goste de você. Eu gosto muito... Muito. Não é
que eu não queira desesperadamente ficar com você.
Cassie deixou escapar uma risadinha irônica.
— Difícil entender o que é, então.
Com tristeza, ele passou a mão nos cabelos.
— São nossos espíritos, Cassie. Você também deve sentir. O modo como são
as coisas entre nós? Tão voláteis? Num segundo queremos arrancar os cabelos
um do outro, no outro queremos arrancar as roupas um do outro? E o que
aconteceu da última vez que estivemos juntos? Lembra? Acha que você tem
dificuldade para se controlar? Bem, eu também. Especialmente perto de você.
Ela mordeu o lábio, olhando atenciosamente para o perfil atormentado dele.
— Sim — ela hesitou.
— Cassie, Sir Alric explicou isso para mim na noite em que me chamou de
volta ao seu escritório, depois de ter nos visto juntos. Eu não quis acreditar nele.
Tentei ignorá-lo. Discuti. Mas o que ele disse é verdade. Se pensar nisso, saberá
que é verdade. Trazemos a tona o pior de nós, Cassandra — ele sacudiu a
cabeça com muita tristeza.
— Sim, é verdade, Ranjit — ela ficou em pé, de repente, desesperada para
não chorar na frente dele. Para não agarrá-lo, implorar para que não a deixasse.
Cassie tinha dificuldade para se controlar...
— Não, nós, quero dizer, o que está dentro de nós. Nossos espíritos trazem
o pior de nós, foi o que Sir Alric me disse. Deus, estou fazendo tudo errado... —
ele respirou frustrado. — Ficaremos cada vez pior, Cassie. Vamos instigar um
ao outro. Somos como antagonistas de uma história. Sabe o que mais ele disse?
— Surpreenda-me.
215
— Que se eu tivesse aparecido na reunião do Conselho — ele disse
concentrado —, ele deixaria que você fosse mandada para o Confinamento.
— Ele disse o quê?
— Ele disse que não teria escolha. Que se eu insistisse em te apoiar, ele teria
que mudar o voto dele em favor da sua condenação. Para a sua proteção e dos
outros. Então, que opção eu tinha?
Ela pôs as mãos na cabeça.
— A opção de lutar por mim?
— Ah, Cassie, você não percebe? — ele tocou o cabelo dela e foi como tomar
um pequeno choque. — Eu tentei. Mas não podia ignorar o fato básico de que
ele estava certo.
— Você não tem mais que explicar nada — ela bateu na mão dele e deu um
passo para trás, com a voz trêmula, embora não quisesse demonstrar isso. —
Ficarei bem sozinha, Ranjit. Sempre fiquei. Foi um grande erro ficar dependente
mais uma vez. Não tem a ver comigo — ela se afastou deliberadamente dele. —
Afinal de contas, apesar dos nossos espíritos, você nunca esteve lá por mim.
Não estava lá quando realmente precisei de você e agora sei que nunca estará,
porque é um grande covarde. Você não luta. Apenas foge e se esconde! — ela
sacudiu a cabeça, furiosa. — Mas se quiser, vá em frente. Corra para sua vida
imortal.
Ficando em pé, desengonçado, ele olhou fixamente para ela, mas não
conseguia se mexer.
— Vá, Ranjit. Saia daqui — ela pôs a mão na maçaneta, girando-a
desajeitadamente, agarrou o frio metal para fazer sua mão parar de tremer. — E
não desperdice suas preocupações comigo. Parece que sou o diabo disfarçado.
Aproximando-se da porta, ela observava a expressão chocada e devastada
dele. Ela se obrigou a ver isso, para provar sua imunidade. Ela não desviou a
atenção do lindo olhar dele, não até que finalmente tivesse fechado a porta na
cara dele. Não até que pudesse encostar a testa na madeira e deixar as lágrimas
pingarem no chão.
No entanto, apenas por um momento. Ela não ia sucumbir às lágrimas. Não
havia nada pelo que chorar. Nada. Ela não precisava dele. Ela podia tomar
216
conta de si mesma. Ela podia até mesmo ignorar a voz dentro dela, implorando
e apelando a ela.
Não pode ser isso. Não pode ter acabado. Não pode ser o fim... E então sua
própria voz interior, triste e queixosa, falou subitamente:
Entendo. Você deixá-los ir. Nós os deixarmos ir. Bem, talvez não precisemos deles
afinal de contas...
— Estelle? — ela sussurrou. — Tem certeza?
Uma sensação reconfortante de cordialidade escorreu por sua espinha,
espalhando-se como um abraço. As pontas do dedo dela formigaram; os olhos
dela queimaram. Calor, conforto, poder...
Sim, Cassandra, meu amor, tenho certeza agora. Podemos enfrentar isso. Você é
forte. Mais forte do que ele. Eu te escolhi bem. E sempre estarei do seu lado! Sempre.
Sim, pensou Cassie, eu sei disso agora.
E é claro que isso não é o fim, minha querida. Estamos apenas começando...
Fim
217
DESCUBRA O QUE IRÁ
ACONTECER EM…
Darke Academy 03 - ALMAS DIVIDIDAS
Isto não era uma tarefa.
Yusuf Ahmed sorria para a garota sentada no sofá de veludo, havia muito
mais do que o desejo prosaico de um garoto por uma garota em seus olhos
famintos. Tocando o maxilar dela, ele deslizou seu dedo gentilmente pela linha
do queixo dela: provocando a si próprio e a ela, sentindo a fome crescer e
permitindo que crescesse.
— Outro raki23? — ele mostrou a garrafa.
— Acho que bebi o suficiente — ela disse com um tom de voz provocador.
Ele sorriu discretamente.
Sim, ele pensou. Sim, acho que já foi o suficiente.
Yusuf deu um pequeno passo para trás, apreciando a satisfação masoquista
de prolongar a espera. Ele estava faminto, mas não tão faminto a ponto de
apressar a situação.
Olhando para a janela aberta e a noite agradável, ele se deixou embriagar
por tamanha beleza: a lua no estreito de Bósforo; as luzes de um navio de
cruzeiro que piscavam como um brilhante colar de diamantes... Alta e nebulosa
na noite quente, a cúpula e as torres da Mesquita Azul cintilavam como cristal.
Isso o fez lembrar vagamente da Sacre Coeur, no último outono em Paris,
quando tudo tinha mudado. Quando as coisas tinham começado, pela primeira
vez em tanto tempo, a dar errado para os Escolhidos. Quando aquela bolsista
órfã e imunda da Cassie Bell tinha aparecido na Academia e sido
surpreendentemente escolhida por Estelle Azzedine. Depois foi enganada e se
23
O raki é um licor derivado da uva e com sabor de anis. É considerada a bebida nacional da Turquia (N.T.).
218
tornou a nova hospedeira que a velha senhora precisava para abrigar seu
poderoso espírito.
Ele gostaria que nunca tivesse se envolvido... Embora ele ainda se
lembrasse com alguma apreciação do frisson da empolgação de fazer parte da
cerimônia, da sensação de pertencer, de arrogância, de poder. Ele se lembrou
vividamente da fúria da menina Bell, enquanto eles a deixavam à mercê de
Estelle e, também lembrou da inesperada pena e do medo que sentiu. Porque
tinha dado errado tão rápido. O ritual de união tinha sido interrompido; parte
do espírito de Estelle se uniu a Cassie, mas a outra parte estava presa num
vácuo. E os Escolhidos saíram tão impressionados, como se uma bomba tivesse
explodido no meio deles
Yusuf sacudiu a cabeça. Um novo semestre estava começando e a garota
Cassie parecia ter se estabelecido como uma dos Escolhidos. Ele estava feliz, na
verdade. Todos estavam contentes. Ou a maioria deles... Então, quem saberia
que bons ventos trariam para os Escolhidos? Incluindo para ele?
Fechando os olhos, ele inalou o perfume de ar quente com flores noturnas,
brisa do mar, fumaça de petróleo e carvão. Meu Deus, ele ia amar Istambul. Era
o último semestre dele na Academia e ele sentia um grande sentimento de
remorso misturado com antecipação. O futuro brilhava diante dele: riqueza,
sucesso e influência. Como poderia ser diferente? Mas ainda assim, ele sentiria
falta da camaradagem, dos segredos, do poder de ser um dos Escolhidos dentro
da Academia. Tinha sido divertido.
Uma mão suave tocou o braço dele. Yusuf se virou para a garota, de repente
sentindo dor por causa da beleza da noite e pelo anseio da fome. Ela piscou. Os
olhos dela já estavam distantes e sem foco e o sorriso tremia nos lábios dela
como se ela tivesse quase esquecido que estava ali.
Bom...
Ele colocou seu copo na mesa e colocou o rosto dela entre suas mãos. Ela
era adorável, com a pele dourada, o rosto em forma de coração e enormes olhos
escuros. Os lábios dela abriram um pouco e ela deixou escapar um pequeno
som: podia ser desejo ou o atordoamento, mas ele nem se importou. Ela tinha
bebido o que ele tinha oferecido. Ela não se lembraria.
Por um instante a mais, ele hesitou. Alimentar-se dessa forma era proibido
por ser perigoso demais. Mas por esta mesma razão, a empolgação tornava
tudo irresistível. E Yusuf era experiente. Ele era forte e habilidoso. E nossa, ele
estava com fome.
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Segurando firme o rosto dela, ele trouxe os lábios dela para perto dos seus
com determinação. Ele sentiu momentaneamente o simples prazer do contato
humano. Então, dentro de seu peito, o espírito pulsava e a energia jorrou em
suas veias. Os olhos dele se arregalaram e ficaram avermelhados.
Conforme a garota gemia fraquinho em protesto, ele se forçava a se afastar
e a manter o controle. Ele não a machucaria: não era desse jeito que ele marcava
pontos. Ele a soltou um pouco, mas intensificou o beijo, sentindo a energia vital
levar prazer as suas terminações nervosas. Ah, isso é que era se alimentar, isso
era satisfação, isso era felicidade.
Os sentidos dele se aguçaram, olfato e paladar repentinamente afiados. Ele
podia ouvir a batida da cidade, o pulsar dos motores dos navios cruzeiros. Ele
podia ouvir passos suaves. E então um suspiro disse o nome dele.
— Yusuf Ahmeeeed...
Será que ele tinha entendido mal? Soltando a garota, ele ficou imóvel,
escutando atentamente. Ele tinha escolhido bem este lugar: este quarto isolado,
com cantos e arcos românticos, sobre o restaurante na Cidade Velha em
Istambul. Ele tinha pagado o dono extremamente bem para dar a entender
perfeitamente que não queria ser atrapalhado.
Como eles sabiam o nome dele? Era alguém que o conhecia da Academia...?
Ele estremeceu só de pensar. Era o tipo de problema que ele queria evitar bem
na reta final de sua carreira escolar. Alimentação não autorizada, de uma
maneira proibida? Não era impossível que ele fosse expulso, como Katerina
Svensson depois da situação com a garota Bell. Sir Alric levava suas regras
muito, muito a sério...
Silêncio, todos os sentidos em alerta, ele se virou para a escuridão além do
arco da janela. Ele se aproximou e ficou prematuramente imóvel enquanto seus
olhos procuravam pela noite. Debaixo dele havia um pátio e a varanda se
estendia por três lados dele, envolvida pelas sombras. Ali. Na parede de
azulejos rachados, uma sombra passou correndo rapidamente.
Alguém o estava espiando. Alguém que sabia o nome dele. Provocando-o:
um aluno do Liceu, um dos Escolhidos mais poderosos! O espírito dentro dele se
acendeu, mas desta vez de raiva. Como ousam!
Ele tinha saciado sua fome e agora o momento romântico tinha se perdido:
mais uma razão para jogar sua fúria contra o intruso. Ele tocou a face da garota.
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Gradualmente, gentilmente, ela voltou a si, focando a visão, a boca se curvando
em um sorriso mais determinado.
— Você não vai me beijar?
Se você soubesse, ele pensou friamente.
— Perdão, habibi. Recebi uma mensagem de texto, é uma emergência. Você
tem que ir.
Era delicioso contemplar o bico de mau-humor que ela fez. Ele riu.
— Te vejo amanhã à noite. Vou te recompensar, Ok?
— Ah, sim. Você certamente irá — ela piscou. Escorregando um dedo pelo
peito dele para se despedir, ela soprou um beijo tentador e se foi.
Yusuf deu um último suspiro de desejo, mas seus músculos já estavam se
preparando para a caçada. Leve e ligeiro, ele saltou pelo arco e pela sacada
instável. A figura obscura tinha tido tempo de sobra para escapar, mas apenas
quando pulou para o pátio, Yusuf viu a pessoa começar a correr.
Idiota, ele pensou.
A pessoa conseguiu manter vários passos de vantagem enquanto corria
pelos becos de Sultanahmet; passos que eram quase tão silenciosos e leves
quanto os do próprio Yusuf. Estava ficando escuro e vazio conforme eles
avançavam pelas ruas, os sons da cidade abafados pela distância, como se ele
tivesse perseguido a sombra até um lugar com outro fuso horário. Ninguém por
perto.
Diminuindo o ritmo, ele percebeu espantado que a figura estava subindo os
degraus da Basílica de Santa Sofia. Aquilo era um mausoléu? Parado, Yusuf não
sentiu medo. Ele se aproximou da entrada e percebeu que não havia ninguém
dentro da cripta, fechada para restauração. Mas, quando ele entrou, o lugar não
estava escuro, contrariando suas expectativas. Sobre ele, um teto Bizantino em
forma de cúpula brilhava refletindo as luzes de centenas de velas.
Velas...?
Ele parou, orelhas de pé. Todas as portas enfeitadas que davam para a saída
estavam abertas. Yusuf estava muito alerta. Além do enorme átrio, o lugar era
um labirinto de arcos e passagens e quem quer que fosse estava se escondendo.
E era muito bom nisso.
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Yusuf se deixou empolgar por essa caçada clandestina. Não seria uma noite
desperdiçada. Um oponente era quase tão excitante quanto uma namorada. Ele
ia dar uma lição nesse Zé-ninguém. Ah! Movimento rápido no canto do olho
dele. Ali, depois do arco com o dourado gasto e lascado. Yusuf se moveu,
rápida e silenciosamente como um gato.
A antessala era pequena, com arabescos incrustados e mosaicos azuis
desgastados e o brilho da luz da vela não penetrava na escuridão além dos
pilares. Não havia saída: era uma armadilha. Yusuf parou, sorrindo
ironicamente. Hora de virar a mesa e desmascarar esse perseguidor insolente.
— Mostre-se — a voz dele clara e assertiva, ecoou pelo corredor de arcos —
em resposta, recebeu apenas o silêncio. Ele virou o corpo, olhando cada canto,
cada sombra. — Não há para onde ir. Assuma — nada ainda. O ar cintilando o
dourado estava pesado com a quietude. — Quem é você? Revele-se agora.
Um movimento, um som detrás dele. Podia bem ser uma pegada, mas
estava perto. Perto demais. Yusuf deu meia-volta rapidamente, pronto para
atacar, furioso com a audácia. O olhar dele encontrou o brilho de um sorriso, e
depois outro ainda mais sinistro.
— Você? O que é que...
Yussuf cambaleou para trás, levantando suas mãos de pânico. Ele nem teve
tempo de gritar. Não pôde correr. Não pede fechar seus olhos aterrorizados. Ele
apenas sentiu, pela primeira e última vez, um terror devastador e paralisante
quando a pessoa o atacou. Então, todas as velas do lugar se apagaram e o
mundo de Yussuf ficou na mais completa escuridão.
Continua...
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Gabriella Poole é o pseudônimo da autora
Gillian Philip. Ela vive na Escócia com o marido
e dois filhos, seu labrador (Cluny), dois gatos
psicóticos (Ghost e Darkness) e quatro peixes
estressados.
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