Depois do “Eureca!” Milton Gamez Suzana Barelli
Colaboração para a Folha
Certas invenções brasileiras mudaram o mundo, mas seus inventores não receberam o devido
crédito até hoje. O exemplo mais notório é o de Alberto Santos Dumont, criador do meio de
transporte mais espetacular de todos os tempos. Os céus de Paris são testemunha de que ele é
o verdadeiro pai da aviação, mas pergunte a um norte-americano quem inventou o avião e a
resposta será outra: foram os irmãos Wright, é claro.
Outros casos interessantes envolvem estrangeiros que viveram no Brasil e que aqui fizeram
coisas geniais. O artista francês Hercule Florence inventou a fotografia, nos idos de 1833, na
Vila de São Carlos, atual Campinas (SP). Na mesma época, quem levou a fama foi seu
compatriota Joseph Niépce, que, ao lado de Louis Daguerre, conduziu experimentos
fotográficos semelhantes na França. Mais recentemente, em 1972, o alemão Andreas Pavel
criou, em sua casa, em São Paulo, um "pequeno equipamento de fixação corpórea para a
reprodução de eventos auditivos em alta qualidade", o stereobelt. Em 1979, a Sony lançou o
walkman, um fenômeno que foi comprado por 200 milhões de pessoas. Até hoje, a invenção
do aparelho portátil de música é atribuída a Abo Morita.
Dos três episódios, o único com final feliz (ou menos infeliz) foi o último. No ano passado,
depois de gastar US$ 3 milhões (aproximadamente R$ 8 milhões) em batalhas judiciais contra
a Sony durante mais de 25 anos, Pavel fez um acordo com a indústria japonesa e recebeu uma
polpuda indenização. Como seu invento poderia ter inspirado outros aparelhos que hoje fazem
muito sucesso -como o iPod e os celulares com música-, Pavel poderá ganhar ainda mais
dinheiro no futuro. O que fez a diferença, no seu caso, foi o registro de uma patente do
stereobelt na Itália, em 1977, e outras na Alemanha, na Inglaterra e nos Estados Unidos, no
ano seguinte. Essa é, portanto, a primeira lição que os inventores modernos devem aprender
se querem usufruir dos benefícios econômicos de sua criação: antes de anunciar ao mundo
uma boa idéia, é preciso garantir os direitos de propriedade industrial sobre ela. Ou seja, obter
uma patente, um documento que, por um tempo determinado (até 20 anos), assegura a
reserva de mercado ao inventor.
"O inventor precisa ser discreto e tomar precauções legais antes de divulgar ou tentar vender
seu invento", diz Dalva Lucia Maffia, titular do Sedai (Serviço Estadual de Apoio a Inventores),
de São Paulo. Caso contrário, alguma pessoa ou empresa poderá se apropriar da invenção
antes mesmo que o legítimo dono possa dizer "Eureca!".
O registro da patente no Inpi (Instituto Nacional da Propriedade Industrial) e nos órgãos
congêneres dos outros países é tão importante quanto a própria criação. Com sede no Rio de
Janeiro, o Inpi é ligado ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior e
recebe mais de 20 mil pedidos de patente por ano.
Preparar uma patente é uma arte. E preciso dizer o máximo sobre o invento e seu ineditismo
e, ainda assim, revelar o mínimo sobre o seu "pulo do gato". "Ela tem de ser bem redigida para
garantir os direitos do inventor", diz Maffia, que acompanha atualmente mais de mil pedidos
de patentes. Muitos inventores afoitos começam a negociar a venda de sua criação antes de
sair a concessão da patente, com base somente no protocolo do pedido. É uma política
perigosa, alerta Antônio Abrantes, examinador de patentes na área eletrônica no Inpi. "O
direito do inventor só está realmente garantido por lei quando a patente é concedida", afirma.
Sigilo absoluto é o nome do jogo. Nada que um contrato devidamente registrado em cartório
não resolva. "É fundamental preparar acordos de confidencialidade antes de mostrar as
invenções a terceiros", alerta Dalva Maffia. Também é preciso tomar cuidado com pessoas,
empresas e associações inidôneas, que oferecem assessoria ao inventor e cobram taxas
indevidas ou abusivas. Checar se existem processos contra tais assessores nos órgãos de
defesa do consumidor e na Justiça pode evitar futuras dores de cabeça (o Tribunal de Justiça
de São Paulo permite consultas pela internet).
"Há muita picaretagem nesse mercado", alerta o advogado Newton Silveira, sócio da firma de
propriedade intelectual Cruzeiro!Newmarc e professor da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo.
O inventor deve procurar assessoria somente de sociedades de advogados registradas na OAB
(Ordem dos Advogados do Brasil) ou agentes de propriedade industrial cadastrados no lnpi, diz
Silveira. "Fora disso, é exercício ilegal da profissão.”
Com maior ou menor cuidado, o fato é que há muita gente inventando coisas interessantes no
Brasil. Muitas até ganham algum dinheiro com isso. Curioso sobre o destino das invenções que
passam por sua mesa e pela de seus colegas no Inpi, Abrantes catalogou por conta própria
centenas de inventos no site Inventa Brasil. Figuram em sua Galeria de Inventores Brasileiros
nomes como Carlos Prudêncio e Carlos Moretzsohn, criadores da urna de votação eletrônica
para o TSE (Tribunal Superior Eleitoral), e Sharlene Serra, inventora do xadrez para cegos.
Existem vários tipos de inventores. O cientista, que trabalha sozinho, em empresas ou
universidades; o autodidata criativo, que supera a falta de conhecimentos técnicos com a
ajuda de terceiros; o considerado maluco, apelidado de "professor Pardal". Há os sonhadores e
os pragmáticos, os ingênuos e os desconfiados. Algumas características são comuns a todos
eles. "Os inventores independentes sempre acham que suas criações são as melhores do
planeta. Eles têm certeza de que vão ficar milionários e sempre suspeitam que todo mundo
quer roubar sua invenção", diz Maffia, que trabalha com desenvolvimento tecnológico e
patentes há mais de 30 anos.
Hoje, a maioria dos inventos apresentados ao Inpi são simples, com baixo conteúdo
tecnológico. Os melhores inventos e inovações são encaminhados pelas empresas. Isso revela
que o perfil médio do inventor individual brasileiro é mais parecido com o professor Pardal do
que com Leonardo da Vinci, o gênio renascentista que, além de magnífico pintor, esbanjava
conhecimentos de anatomia, perspectiva, geometria, matemática, hidráulica, arquitetura e
mecânica e era um grande inventor de máquinas civis e militares.
Embora não sejam cientistas nem gênios, alguns inventores tiveram boas sacadas e
conseguem viver de suas idéias. Poucos conseguem enriquecer com seus inventos, como fez
Adriano Sabino, inventor da bóia-espaguete (sua empresa, a Toy Power, hoje fabrica mais de
40 brinquedos aquáticos). Mas há quem consiga ganhar dinheiro o suficiente para continuar
inventando.
É o caso, por exemplo, de Armando Monteiro, que inventou o Sombreiro, uma engenhosa
cobertura para estacionamentos, e o Forhands, um lavabo inteligente que está sendo instalado
em lojas da rede Wal-Mart (leia mais à pág. 14). Ou de Roberto de Sá Gonçalves, criador de um
aparelho para economizar combustível, o Qmeter Mix. Os dois patentearam seus inventos e
montaram negócios próprios que deram certo.
Outro inventor que começou a trilhar esse caminho e tem certeza de que vai enriquecer é
Rubens José de Oliveira Filho, autor do projeto Safira, um sistema de reciclagem da água para
lavadoras de roupas. Ele fechou sua oficina de consertos para se dedicar com exclusividade ao
invento.
As taxas de licenciamento de produtos para as empresas não costumam ser divulgadas pelas
partes envolvidas. Segundo Abrantes, do Inpi, o inventor recebe entre 5% e 10% do
faturamento bruto da empresa com o novo produto -o que pode significar de 40% a 50% do
lucro líquido do invento. O licenciamento é uma opção viável para inventores que não querem
ou não têm condições de fabricar e vender seu produto por conta própria.
Muitos inventores seguem o caminho da produção própria. Essa opção exige que o inventor
seja também um empreendedor, capaz de atrair pessoas, tecnologia e capital suficiente para
viabilizar um empreendimento. É uma jornada longa e penosa. O crédito é escasso e caro, e o
Brasil tem poucos incentivos para os inventores individuais. O Sebrae (Serviço Brasileiro de
Apoio às Micro e Pequenas Empresas) não tem um programa nacional específico para eles,
mas suas incubadoras de empresas regionais podem oferecer apoio àqueles que tenham
patentes e queiram transformar suas idéias em negócios.
Em São Paulo, o Sedai, único órgão público de assistência gratuita aos inventores, foi
gradativamente esvaziado nos últimos anos. O acompanhamento de processos existentes no
Inpi e o apoio aos inventores na redação de pedidos de patente ocorrem na base da teimosia
pessoal de Dalva Maffia, com a ajuda de uma secretária.
No mundo dos inventores, é preciso ter mesmo muita obstinação. Alguns projetos levam anos
para sair do papel. O Eletroherb, um equipamento de eletrocução de ervas daninhas, de
grande utilidade na agricultura orgânica (elimina o uso de herbicidas), está sendo desenvolvido
desde 1988 e até hoje não vingou.
O projeto começou na Unesp (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho) de
Sorocaba (SP) -algumas universidades e instituições ligadas ao ensino, como a Fapesp
(Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), apóiam inventores acadêmicos por
meio de programas voltados à inovação tecnológica e à propriedade intelectual. As primeiras
patentes do Eletroherb já caíram em domínio público, mas nem por isso o invento foi
esquecido. Em 2000, o engenheiro eletrônico Constantino Augusto Henrique Schwager entrou
na ayyou Brasil, empresa que encampou o projeto. Introduziu melhorias técnicas e obteve
mais uma patente, em 2002. Hoje, ele se prepara para lançar a versão comercial do produto.
Dois dos quatro inventores da primeira máquina -os engenheiros agrônomos Augusto Eira e
Femando Almeida- são sócios minoritários da empresa. "Estamos em busca de um novo
parceiro", afuma Schwager. No fundo, Schwager está diante do mesmo dilema enfrentado por
todos os inventores: o sucesso comercial de uma invenção é o que vai definir se ele vai entrar
para a história como um visionário, um inovador, ou se será apenas lembrado como mais um
fracassado, um romântico sonhador.
"Só há inovação quando há percepção de valor pelo mercado. O invento precisa gerar
resultado econômico, pois vivemos num sistema capitalista", afirma Moisés Simantob,
coordenador do Fórum de Inovação da Fundação Getúlio Vargas. Muitas vezes, o processo de
inovação acaba sendo prejudicado pela falta de preparo do inventor e pela postura predatória
de muitas empresas.
O inventor independente precisa falar a linguagem do mundo dos negócios, proteger o direito
de propriedade de sua criação e garantir um longo contrato de prestação de serviços de
assessoria à empresa no desenvolvimento de seu produto. "Ele tem de passar de inventor a
gestor-inovador", defende Simantob.
Inventoras natas, as crianças precisam ser estimuladas desde pequenas para que possam
continuar criativas na vida adulta, defende o consultor de marketing industrial José Carlos
Teixeira Moreira. Sua fé nos pequenos inventores é tamanha que ele criou uma escola só para
eles, o Ateliê Tempo & Espaço, com unidades na Vila Madalena (zona oeste de São Paulo) e em
Cotia (SP). No ateliê, monitores estimulam meninos e meninas de 5 a 14 anos, como o garoto
Alex a realizar seus inventos.
O Ateliê Tempo & Espaço existe há 22 anos. Em 1984, um de seus alunos foi o garoto
Francesco Grazzini, que se interessou por aulas de manutenção de motocicletas e criou
pequenas engenhocas. Hoje, Grazzini é engenheiro de desenvolvimento aeronáutico da
Embraer (Empresa Brasileira de Aeronáutica). É um especialista em cálculos estruturais de
aeronaves. Nesse campo, ele continua inventando.
"Diariamente lidamos com pequenas invenções. São elas que movem o desenvolvimento
tecnológico. Graças a elas, a invenção de Santos Dumont transformou-se no que é hoje",
afirma Grazzini.
Como se vê, quase cem anos depois do histórico vôo do 14 Bis, a saga do Brasil na história da
aviação ainda não acabou.
Veículo: Jornal Folha de S.P
Data: 29/03/2005