Transcript
  • 5/24/2018 Dial tica Da Depend ncia

    1/40

    MIA> Biblioteca> Marini> Novidades

    Primeira edio: Ensaio datado de 1973. No mesmo ano o autor escreveu um textocomplementar, guisa de post-scriptum, segundo ele "para esclarecer algumas questes edesfazer certos equvocos que o texto tem suscitado."Traduo: Marcelo Carcanholo, Universidade Federal de Uberlndia MG. Post-scriptumtraduzido por Carlos Eduardo Martins, Universidade Estcio de S, Rio de Janeiro, RJ.Fonte:Editora Era, Mxico, 1990, 10a edio (Ia edio, 1973). O post-scriptum conforme:Revista Latinoamericana de Cincias Sociales,Flacso, (Santiago de Chile), n 5, junho 1973.Verso digitalizada conforme publicado em "Ruy Mauro Marini: Vida e Obra", EditoraExpresso Popular, 2005. Orgs. Roberta Traspadini e Joo Pedro Stedile. Este documentoencontra-se em www.centrovictormeyer.org.brTranscrio:Diego GrossiHTML:Fernando A. S. Arajo

    Sumrio

    1. A integrao ao mercado mundial

    2. O segredo da troca desigual

    3. A superexplorao do trabalho

    4. O ciclo do capital na economia dependente

    5. O processo de industrializao

    6. O novo anel da espiral

    7. Post-scriptum

    [...] o comrcio exterior, quando se limita a

    repor os elementos (tambm enquanto a seu

    valor), no faz mais do que deslocar as

    contradies para uma esfera mais extensa,

    abrindo para elas um campo maior de

    atuao.

    Marx, O Capital

    Acelerar a acumulao mediante um

    desenvolvimento superior da capacidade

    produtiva do trabalho e aceler-la por meio

    de uma maior explorao do trabalhador, so

    dois procedimentos totalmente distintos.

    Marx, O Capital

    Em sua anlise da dependncia latino-americana, os pesquisadores

    Dialtica da Dependncia http://www.marxists.org/portugues/marini/1973/mes/dialetica.ht

    1 de 40 16/06/2014 17:20

  • 5/24/2018 Dial tica Da Depend ncia

    2/40

    marxistas incorreram, geralmente, em dois tipos de desvios: a substituio dofato concreto pelo conceito abstrato, ou a adulterao do conceito em nome deuma realidade rebelde para aceit-lo em sua formulao pura. No primeiro caso,o resultado tem sido os estudos marxistas chamados de ortodoxos, nos quais adinmica dos processos estudados se volta para uma formalizao que incapaz de reconstru-la no mbito da exposio, e nos que a relao entre o

    concreto e o abstrato se rompe, para dar lugar a descries empricas quecorrem paralelamente ao discurso terico, sem fundir-se com ele; isso temocorrido, sobretudo, no campo da histria Econmica. O segundo tipo dedesvio tem sido mais frequente no campo da sociologia, no qual, frente dificuldade de adequar a uma realidade categorias que no foram desenhadasespecificamente para ela, os estudiosos de formao marxista recorremsimultaneamente a outros enfoques metodolgicos e tericos; a consequncianecessria desse procedimento o ecletismo, a falta de rigor conceituai emetodolgico e um pretenso enriquecimento do marxismo, que na realidade

    sua negao.

    Esses desvios nascem de uma dificuldade real: frente ao parmetro domodo de produo capitalista puro, a economia latino-americana apresentapeculiaridades, que s vezes se apresentam como insuficincias e outras nem sempre distinguveis facilmente das primeiras como deformaes. No acidental portanto a recorrncia nos estudos sobre a Amrica Latina a noo de"pr-capitalismo". O que deveria ser dito que, ainda quando se traterealmente de um desenvolvimento insuficiente das relaes capitalistas, essa

    noo se refere a aspectos de uma realidade que, por sua estrutura global e seufuncionamento, no poder desenvolver-se jamais da mesma forma como sedesenvolvem as economias capitalistas chamadas de avanadas. por issoque, mais do que um pr-capitalismo, o que se tem um capitalismo suigeneris,que s adquire sentido se o contemplamos na perspectiva do sistemaem seu conjunto, tanto em nvel nacional, quanto, e principalmente, em nvelinternacional.

    Isso verdade, sobretudo, quando nos referimos ao moderno capitalismo

    industrial latino-americano, tal como se tem constitudo nas duas ltimasdcadas. Mas, em seu aspecto mais geral, a proposio vlida tambm para operodo imediatamente precedente e ainda para a etapa da economiaexportadora. bvio que, no ltimo caso, a insuficincia prevalece ainda sobrea distoro, mas se desejamos entender como uma se converteu na outra luz desta que devemos estudar aquela. Em outros termos, o conhecimento daforma particular que acabou por adotar o capitalismo dependente latino-americano o que ilumina o estudo de sua gestao e permite conheceranaliticamente as tendncias que desembocaram nesse resultado.

    Mas aqui, como sempre, a verdade tem um duplo sentido: se certo que oestudo das formas sociais mais desenvolvidas lana luz sobre as formas maisembrionrias (ou, para diz-lo com Marx, "a anatomia do homem um a chave

    Dialtica da Dependncia http://www.marxists.org/portugues/marini/1973/mes/dialetica.ht

    2 de 40 16/06/2014 17:20

  • 5/24/2018 Dial tica Da Depend ncia

    3/40

    para a anatomia do macaco")(1), tambm certo que o desenvolvimento aindainsuficiente de uma sociedade, ao ressaltar um elemento simples, torna maiscompreensvel sua forma mais complexa, que integra e subordina esseelemento. Como assinala Marx:

    [...] a categoria mais simples pode expressar as relaes dominantes

    de um todo no desenvolvido ou as relaes subordinadas de umtodo mais desenvolvido, relaes que j existiam historicamente

    antes de que o todo se desenvolvesse no sentido expressado por uma

    categoria mais concreta. S ento, o caminho do pensamento

    abstrato, que se eleva do simples ao complexo, poderia corresponder

    ao processo histrico real.(2)

    Na identificao desses elementos, as categorias marxistas devem seraplicadas, isto , realidade como instrumentos de anlise e antecipaes de

    seu desenvolvimento posterior. Por outro lado, essas categorias no podemsubstituir ou mistificar os fenmenos a que se aplicam; por isso que a anlisetem de ponder-las, sem que isso implique em nenhum caso romper com alinha do raciocnio marxista, enxertando-lhe corpos que lhe so estranhos e queno podem, portanto, ser assimilados por ela. O rigor conceitual emetodolgico: a isso se reduz em ltima instncia a ortodoxia marxista.Qualquer limitao para o processo de investigao que dali se derive j notem nada relacionado com a ortodoxia, mas apenas com o dogmatismo.

    1. A integrao ao mercado mundial

    Forjada no calor da expanso comercial promovida no sculo 16 pelocapitalismo nascente, a Amrica Latina se desenvolve em estreita consonnciacom a dinmica do capitalismo internacional. Colnia produtora de metaispreciosos e gneros exticos, a Amrica Latina contribuiu em um primeiromomento com o aumento do fluxo de mercadorias e a expanso dos meios depagamento que, ao mesmo tempo em que permitiam o desenvolvimento do

    capital comercial e bancrio na Europa, sustentaram o sistema manufatureiroeuropeu e propiciaram o caminho para a criao da grande indstria. Arevoluo industrial, que dar incio a ela, corresponde na Amrica Latina independncia poltica que, conquistada nas primeiras dcadas do sculo 19,far surgir, com base na estrutura demogrfica e administrativa construdadurante a Colnia, um conjunto de pases que passam a girar em torno daInglaterra. Os fluxos de mercadorias e, posteriormente, de capitais tm nestaseu ponto de entroncamento: ignorando uns aos outros, os novos pases searticularo diretamente com a metrpole inglesa e, em funo dos

    requerimentos desta, comearo a produzir e a exportar bens primrios, emtroca de manufaturas de consumo e quando a exportao supera as

    importaes de dvidas.(3)

    Dialtica da Dependncia http://www.marxists.org/portugues/marini/1973/mes/dialetica.ht

    3 de 40 16/06/2014 17:20

  • 5/24/2018 Dial tica Da Depend ncia

    4/40

    a partir desse momento que as relaes da Amrica Latina com os centroscapitalistas europeus se inserem em uma estrutura definida: a divisointernacional do trabalho, que determinar o sentido do desenvolvimentoposterior da regio. Em outros termos, a partir de ento que se configura adependncia, entendida como uma relao de subordinao entre naesformalmente independentes, em cujo marco as relaes de produo das

    naes subordinadas so modificadas ou recriadas para assegurar a reproduoampliada da dependncia. A consequncia da dependncia no pode ser,portanto, nada mais do que maior dependncia, e sua superao supenecessariamente a supresso das relaes de produo nela envolvida. Nestesentido, a conhecida frmula de Andr Gunder Frank sobre o "desenvolvimentodo subdesenvolvimento" impecvel, como impecveis so as concluses

    polticas a que ela conduz(4). As criticas que lhe so dirigidas representammuitas vezes um passo atrs nessa formulao, em nome de precises que sepretendem tericas, mas que costumam no ir alm da semntica.

    Entretanto, e a reside a debilidade do trabalho de Frank, a situao colonialno o mesmo que a situao de dependncia. Ainda que se d umacontinuidade entre ambas, no so homogneas; como bem afirmouCanguilhem, "o carter progressivo de um acontecimento no exclui a

    originalidade do acontecimento".(5) A dificuldade da anlise terica estprecisamente em captar essa originalidade e, sobretudo, em discernir omomento em que a originalidade implica mudana de qualidade. No que serefere s relaes internacionais da Amrica Latina, se, como assinalamos, esta

    desempenha um papel relevante na formao da economia capitalista mundial(principalmente com sua produo de metais preciosos nos sculos 16 e 17,mas sobretudo no 18, graas coincidncia entre o descobrimento de ouro

    brasileiro e o auge manufatureiro ingls),(6)somente no curso do sculo 19, eespecificamente depois de 1840, sua articulao com essa economia mundial se

    realiza plenamente.(7)Isto se explica se considerarmos que com o surgimentoda grande indstria que se estabelece com bases slidas a diviso internacional

    do trabalho.(8)

    A criao da grande indstria moderna seria fortemente obstaculizada seno houvesse contado com os pases dependentes, e tido que se realizar sobreuma base estritamente nacional. De fato, o desenvolvimento industrial supeuma grande disponibilidade de produtos agrcolas, que permita a especializao

    de parte da sociedade na atividade especificamente industrial.(9)No caso daindustrializao europeia, o recurso simples produo agrcola interna teriabloqueado a elevada especializao produtiva que a grande indstria tornavapossvel. O forte incremento da classe operria industrial e, em geral, da

    populao urbana ocupada na indstria e nos servios, que se verifica nospases industriais no sculo passado, no poderia ter acontecido se estes nocontassem com os meios de subsistncia de origem agropecuria,proporcionados de forma considervel pelos pases latino-americanos. Isso foi o

    Dialtica da Dependncia http://www.marxists.org/portugues/marini/1973/mes/dialetica.ht

    4 de 40 16/06/2014 17:20

  • 5/24/2018 Dial tica Da Depend ncia

    5/40

    que permitiu aprofundar a diviso do trabalho e especializar os pasesindustriais como produtores mundiais de manufaturas. Mas no se reduziu aisso a funo cumprida pela Amrica Latina no desenvolvimento do capitalismo: sua capacidade para criar uma oferta mundial de alimentos, que aparececomo condio necessria de sua insero na economia internacionalcapitalista, prontamente ser agregada a contribuio para a formao de um

    mercado de matrias primas industriais, cuja importncia cresce em funo domesmo desenvolvimento industrial.(10) O crescimento da classe trabalhadoranos pases centrais e a elevao ainda mais notvel de sua produtividade, queresultam do surgimento da grande indstria, levaram a que a massa dematrias primas voltada para o processo de produo aumentasse em maior

    proporo.(11)Essa funo, que chegar mais tarde a sua plenitude, tambma que se revelar como a mais duradoura para a Amrica Latina, mantendo todasua importncia mesmo depois que a diviso internacional do trabalho tenhaalcanado em novo estgio.

    O que importa considerar aqui que as funes que cumpre a AmricaLatina na economia capitalista mundial transcendem a mera resposta aosrequisitos fsicos induzidos pela acumulao nos pases industriais. Mais alm defacilitar o crescimento quantitativo destes, a participao da Amrica Latina nomercado mundial contribuir para que o eixo da acumulao na economiaindustrial se desloque da produo de mais-valia absoluta para a de mais-valiarelativa, ou seja, que a acumulao passe a depender mais do aumento dacapacidade produtiva do trabalho do que simplesmente da explorao do

    trabalhador. No entanto, o desenvolvimento da produo latino-americana, quepermite regio coadjuvar com essa mudana qualitativa nos pases centrais,dar-se- fundamentalmente com base em uma maior explorao dotrabalhador. esse carter contraditrio da dependncia latino-americana, quedetermina as relaes de produo no conjunto do sistema capitalista, o quedeve reter nossa ateno.

    2. O segredo da troca desigual

    A insero da Amrica Latina na economia capitalista responde sexigncias da passagem para a produo de mais-valia relativa nos pasesindustriais. Esta entendida como uma forma de explorao do trabalhoassalariado que, fundamentalmente com base na transformao das condiestcnicas de produo, resulta da desvalorizao real da fora de trabalho. Semaprofundar a questo, conveniente fazer aqui algumas precises que serelacionam com nosso tema.

    Essencialmente, trata-se de dissipar a confuso que se costuma estabelecerentre o conceito de mais-valia relativa e o de produtividade. De fato, se bemconstitui a condio por excelncia da mais-valia relativa, uma maiorcapacidade produtiva do trabalho no assegura por si s um aumento da

    Dialtica da Dependncia http://www.marxists.org/portugues/marini/1973/mes/dialetica.ht

    5 de 40 16/06/2014 17:20

  • 5/24/2018 Dial tica Da Depend ncia

    6/40

    mais-vala relativa. Ao aumentar a produtividade, o trabalhador s cria maisprodutos no mesmo tempo, mas no mais valor; justamente esse fato o queleva o capitalista individual a procurar o aumento de produtividade, j que issopermite reduzir o valor individual de sua mercadoria, em relao ao valor que ascondies gerais de produo lhe atribuem, obtendo assim uma mais-valiasuperior de seus competidores ou seja, uma mais-valia extraordinria.

    Dessa forma, essa mais-valia extraordinria altera a repartio geral damais-valia entre os diversos capitalistas, ao traduzir-se em lucro extraordinrio,mas no modifica o grau de explorao do trabalho na economia ou no setorconsiderado, ou seja, no incide na taxa de mais-valia. Se o procedimentotcnico que permitiu o aumento de produtividade se generaliza para as demaisempresas e, por isso, torna uniforme a taxa de produtividade, isso tampoucoacarreta no aumento da taxa de mais-valia: ser elevada apenas a massa deprodutos, sem fazer variar seu valor, ou, o que o mesmo, o valor social da

    unidade de produto ser reduzido em termos proporcionais ao aumento daprodutividade do trabalho. A consequncia seria, ento,no o incremento damais-valia, mas na verdade a sua diminuio.

    Isso se deve ao fato de que a determinao da taxa de mais-valia no passapela produtividade do trabalho em si, mas pelo grau de explorao da fora detrabalho, ou seja, a relao entre o tempo de trabalho excedente (em que ooperrio produz mais-valia) e o tempo de trabalho necessrio (em que ooperrio reproduz o valor de sua fora de trabalho, isto , o equivalente a seu

    salrio).(12)

    S a alterao dessa proporo, em um sentido favorvel aocapitalista, ou seja, mediante o aumento do trabalho excedente sobre onecessrio, pode modificar a taxa de mais-valia. Para isso, a reduo do valorsocial das mercadorias deve incidir nos bens necessrios reproduo da forade trabalho, os bens-salrio. A mais-valia relativa est ligada indissoluvelmente,portanto, desvalorizao dos bens-salrio, para o que contribui, em geral,

    mas no necessariamente, a produtividade do trabalho.(13)

    Esta digresso era indispensvel se desejssemos entender bem porque a

    insero da Amrica Latina no mercado mundial contribuiu para desenvolver omodo de produo especificamente capitalista, que se baseia na mais-valiarelativa. J mencionamos que uma das funes que lhe foi atribuda, no marcoda diviso internacional do trabalho, foi a de prover os pases industriais dosalimentos exigidos pelo crescimento da classe operria, em particular, e dapopulao urbana, em geral, que ali se dava. A oferta mundial de alimentos,que a Amrica Latina contribuiu para criar, e que alcanou seu auge na segundametade do sculo 19, ser um elemento decisivo para que os pases industriaisconfiem ao comrcio exterior a ateno de suas necessidade de meios de

    subsistncia.(14)O efeito dessa oferta (ampliado pela depresso de preos dosprodutos primrios no mercado mundial, tema a que voltaremos adiante) ser ode reduzir o valor real da fora de trabalho nos pases industriais, permitindoassim que o incremento da produtividade se traduza ali em taxas de mais-valia

    Dialtica da Dependncia http://www.marxists.org/portugues/marini/1973/mes/dialetica.ht

    6 de 40 16/06/2014 17:20

  • 5/24/2018 Dial tica Da Depend ncia

    7/40

    cada vez mais elevadas. Em outros termos, mediante a incorporao aomercado mundial de bens-salrio, a Amrica Latina desempenha um papelsignificativo no aumento da mais-valia relativa nos pases industriais.

    Antes de analisar o outro lado da moeda, isto , as condies internas deproduo que permitiro Amrica Latina cumprir essa funo, cabe indicar queno s no nvel de sua prpria economia que a dependncia latino-americanase revela contraditria: a participao da Amrica Latina no progresso do modode produo capitalista nos pases industriais ser por sua vez contraditria.Isso se deve a que, como assinalamos antes, o aumento da capacidadeprodutiva do trabalho acarreta um consumo mais que proporcional de matriasprimas. Na medida em que essa maior produtividade acompanhadaefetivamente de uma maior mais-valia relativa, isso significa que cai o valor docapital varivel em relao ao do capital constante (que inclui as matriasprimas), ou seja, que aumenta a composio-valor do capital. Assim sendo, o

    que apropriado pelo capitalista no diretamente a mas-valia produzida, masa parte desta que lhe corresponde sob a forma de lucro. Como a taxa de lucrono pode ser fixada apenas em relao ao capital varivel, mas sobre o total docapital adiantado no processo de produo, isto , salrios, instalaes,maquinrio, matrias primas etc, o resultado do aumento da mais-valia tende aser sempre que implique, ainda que seja em termos relativos, uma elevaosimultnea do valor do capital constante empregado para produzi-la umaqueda da taxa de lucro.

    Essa contradio, crucial para a acumulao capitalista, contraposta pordiversos procedimentos que, desde um ponto de vista estritamente produtivo,se orientam tanto no sentido de incrementar ainda mais a mais-valia, no intuitode compensar a queda da taxa de lucro, quanto no sentido de induzir uma baixaparalela no valor do capital constante, com o propsito de impedir que odeclnio se apresente. Na segunda classe de procedimentos, interessa aqui oque se refere oferta mundial de matrias primas industriais, a qual aparececomo contrapartida desde o ponto de vista da composio-valor do capital da oferta mundial de alimentos. Tal como se d com esta ltima, mediante o

    aumento de uma massa de produtos cada vez mais baratos no mercadointernacional, que a Amrica Latina no s alimenta a expanso quantitativa daproduo capitalista nos pases industriais, mas tambm contribui para quesejam superados os obstculos que o carter contraditrio da acumulao de

    capital cria para essa expanso.(15) Existe, entretanto, outro aspecto doproblema que deve ser considerado. Trata-se do fato suficientemente conhecidode que o aumento da oferta mundial de alimentos e matrias primas tem sidoacompanhado da queda dos preos desses produtos, relativamente ao preo

    alcanado pelas manufaturas.(16)Como o preo dos produtos industriais se

    mantm relativamente estvel, e em alguns momentos ca lentamente, adeteriorao dos termos de troca est refletindo de fato a depreciao dos bensprimrios. evidente que tal depreciao no pode corresponder desvalorizao real desses bens, devido a um aumento de produtividade nos

    Dialtica da Dependncia http://www.marxists.org/portugues/marini/1973/mes/dialetica.ht

    7 de 40 16/06/2014 17:20

  • 5/24/2018 Dial tica Da Depend ncia

    8/40

    pases no industriais, j que precisamente ali onde a produtividade se elevamais lentamente. Convm, portanto, indagar as razes desse fenmeno, assimcomo as do porqu no se traduziu em desestmulo para a incorporao daAmrica Latina na economia internacional.

    O primeiro passo para responder a essa interrogao consiste em deixar delado a explicao simplista que no quer ver ali nada mais do que o resultado dalei de oferta e procura. Ainda que seja evidente que a concorrncia desempenhaum papel decisivo na fixao dos preos, ela no explica por que, do lado daoferta, verifica-se uma expanso acelerada independentemente de que asrelaes de troca estejam se deteriorando. Tampouco seria possvel interpretaro fenmeno se nos limitssemos a constatar empiricamente que as leismercantis tm sido falseadas no plano internacional, graas pressodiplomtica e militar por parte das naes industriais. Esse raciocnio, ainda quese apoie em fatos reais, inverte a ordem dos fatores, e no v que a utilizao

    de recursos extra-econmicos derivada precisamente do fato de existir portrs uma base econmica que a torna possvel. Ambos os tipos de explicaocontribuem, portanto, para ocultar a natureza dos fenmenos estudados econduzem a iluses sobre o que realmente a explorao capitalistainternacional.

    No porque foram cometidos abusos contra as naes no industriais queestas se tornaram economicamente dbeis, porque eram dbeis que seabusou delas. No tampouco porque produziram alm do necessrio que sua

    posio comercial se deteriorou, mas foi a deteriorao comercial o que asforou a produzir em maior escala. Negar-se a ver as coisas dessa forma mistificar a economia capitalista internacional, fazer crer que essa economiapoderia ser diferente do que realmente . Em ltima instncia, isso leva areivindicar relaes comerciais equitativas entre as naes, quando se trata desuprimir as relaes econmicas internacionais que se baseiam no valor detroca.

    De fato, medida que o mercado mundial alcana formas maisdesenvolvidas, o uso da violncia poltica e militar para explorar as naesdbeis se torna suprfluo, e a explorao internacional pode descansarprogressivamente na reproduo de relaes econmicas que perpetuam eamplificam o atraso e a debilidade dessas naes. Verifica-se aqui o mesmofenmeno que se observa no interior das economias industriais: o uso da forapara submeter a massa trabalhadora ao imprio do capital diminui medida quecomeam a jogar mecanismos econmicos que consagram essa

    subordinao.(17)A expanso do mercado mundial a base sobre a qual operaa diviso internacional do trabalho entre as naes industriais e as no

    industriais, mas a contrapartida dessa diviso a ampliao do mercadomundial. O desenvolvimento das relaes mercantis coloca as bases para queuma melhor aplicao da lei do valor tenha lugar, mas, simultaneamente, criatodas as condies para que operem os distintos mecanismos mediante os

    Dialtica da Dependncia http://www.marxists.org/portugues/marini/1973/mes/dialetica.ht

    8 de 40 16/06/2014 17:20

  • 5/24/2018 Dial tica Da Depend ncia

    9/40

    quais o capital trata de burl-la.

    Teoricamente, o intercmbio de mercadorias expressa a troca deequivalentes, cujo valor se determina pela quantidade de trabalho socialmentenecessrio que as mercadorias incorporam. Na prtica, observam-se diferentesmecanismos que permitem realizar transferncias de valor, passando por cimadas leis da troca, e que se expressam na forma como se fixam os preos demercado e os preos de produo das mercadorias. Convm distinguir osmecanismos que operam no interior de uma mesma esfera de produo(tratando-se de produtos manufaturados ou de matrias primas) e os queatuam no marco de distintas esferas que se interrelacionam. No primeiro caso,as transferncias correspondem a aplicaes especficas das leis de troca; nosegundo, adotam mais abertamente o carter de transgresso delas.

    E assim como, por conta de uma maior produtividade do trabalho, umanao pode apresentar preos de produo inferiores a seus concorrentes, sempor isso baixar significativamente os preos de mercado que as condies deproduo destes contribui para fixar. Isso se expressa, para a nao favorecida,em um lucro extraordinrio, similar ao que constatamos ao examinar de quemaneira os capitais individuais se apropriam do fruto da produtividade dotrabalho. E natural que o fenmeno se apresente sobretudo em nvel daconcorrncia entre naes industriais, e menos entre as que produzem bensprimrios, j que entre as primeiras que as leis capitalistas da troca soexercidas de maneira plena; isso no quer dizer que no se verifiquem tambm

    entre estas ltimas, principalmente quando se desenvolvem ali as relaescapitalistas de produo.

    No segundo caso transaes entre naes que trocam distintas classesde mercadorias, como manufaturas e matrias primas o mero fato de queumas produzam bens que as outras no produzem, ou no o fazem com amesma facilidade, permite que as primeiras iludam a lei do valor, isto , vendamseus produtos a preos superiores a seu valor, configurando assim uma trocadesigual. Isso implica que as naes desfavorecidas devem ceder gratuitamenteparte do valor que produzem, e que essa cesso ou transferncia sejaacentuada em favor daquele pas que lhes venda mercadorias a um preo deproduo mais baixo, em virtude de sua maior produtividade. Neste ltimocaso, a transferncia de valor dupla, ainda que no necessariamente apareaassim para a nao que transfere valor, j que seus diferentes provedorespodem vender todos a um mesmo preo, sem prejuzo de que os lucros sedistribuam desigualmente entre eles e que a maior parte do valor cedido seconcentre em mos do pas de produtividade mais elevada.

    Frente a esses mecanismos de transferncia de valor, baseados seja naprodutividade, seja no monoplio de produo, podemos identificar sempreno nvel das relaes internacionais de mercado um mecanismo decompensao. Trata-se do recurso ao incremento de valor trocado, por parte

    Dialtica da Dependncia http://www.marxists.org/portugues/marini/1973/mes/dialetica.ht

    9 de 40 16/06/2014 17:20

  • 5/24/2018 Dial tica Da Depend ncia

    10/40

    da nao desfavorecida: sem impedir a transferncia operada pelosmecanismos j descritos, isso permite neutraliz-la total ou parcialmentemediante o aumento do valor realizado. Esse mecanismo de compensao podeser verificado tanto no plano da troca de produtos similares quanto de produtosoriginados de diferentes esferas de produo. Preocupamo-nos aqui apenascom o segundo caso.

    O que importa assinalar aqui que, para aumentar a massa de valorproduzida, o capitalista deve necessariamente lanar mo de uma maiorexplorao da fora de trabalho, seja atravs do aumento de sua intensidade,seja mediante a prolongao da jornada de trabalho, seja finalmentecombinando os dois procedimentos. A rigor, s o primeiro o aumento daintensidade do trabalho se contrape realmente s desvantagens resultantesde uma menor produtividade do trabalho, j que permite a criao de mais valorno mesmo tempo de trabalho. Factualmente, todos contribuem para aumentar a

    massa de valor realizada e, por isso, a quantidade de dinheiro obtida atravs datroca. Isso o que explica, neste plano da anlise, que a oferta mundial dematrias primas e alimentos aumente medida que se acentua a margem entre

    seus preos de mercado e o valor real da produo.(18)

    O que aparece claramente, portanto, que as naes desfavorecidas pelatroca desigual no buscam tanto corrigir o desequilbrio entre os preos e ovalor de suas mercadorias exportadas (o que implicaria um esforo redobradopara aumentar a capacidade produtiva do trabalho), mas procuram compensar

    a perda de renda gerada pelo comrcio internacional por meio do recurso deuma maior explorao do trabalhador. Chegamos assim a um ponto em que jno nos basta continuar trabalhando simplesmente a noo de troca entrenaes, mas devemos encarar o fato de que, no marco dessa troca, aapropriao de valor realizado encobre a apropriao de uma mais-valia que gerada mediante a explorao do trabalho no interior de cada nao. Sob essengulo, a transferncia de valor uma transferncia de mais-valia, que seapresenta, desde o ponto de vista do capitalista que opera na naodesfavorecida, como uma queda da taxa de mais-valia e por isso da taxa de

    lucro. Assim, a contrapartida do processo mediante o qual a Amrica Latinacontribuiu para incrementar a taxa de mais-valia e a taxa de lucro nos pasesindustriais implicou para ela efeitos rigorosamente opostos. E o que apareciacomo um mecanismo de compensao no nvel de mercado de fato ummecanismo que opera em nvel da produo interna. para essa esfera que sedeve deslocar, portanto, o enfoque de nossa anlise.

    3. A superexplorao do trabalho

    Vimos que o problema colocado pela troca desigual para a Amrica Latinano precisamente o de se contrapor transferncia de valor que implica, mascompensar a perda de mais-valia, e que, incapaz de impedi-la no nvel das

    Dialtica da Dependncia http://www.marxists.org/portugues/marini/1973/mes/dialetica.ht

    10 de 40 16/06/2014 17:20

  • 5/24/2018 Dial tica Da Depend ncia

    11/40

    relaes de mercado, a reao da economia dependente compens-la noplano da produo interna. O aumento da intensidade do trabalho aparece,nessa perspectiva, como um aumento da mais-valia, obtido atravs de umamaior explorao do trabalhador e no do incremento de sua capacidadeprodutiva. O mesmo se poderia dizer da prolongao da jornada de trabalho,isto , do aumento da mais-valia absoluta na sua forma clssica;

    diferentemente do primeiro, trata-se aqui de aumentar simplesmente o tempode trabalho excedente, que aquele em que o operrio continua produzindodepois de criar um valor equivalente ao dos meios de subsistncia para seuprprio consumo. Deve-se assinalar, finalmente, um terceiro procedimento, queconsiste em reduzir o consumo do operrio mais alm do seu limite normal,pelo qual "o fundo necessrio de consumo do operrio se converte de fato,dentro de certos limites, em um fundo de acumulao de capital", implicando

    assim em um modo especfico de aumentar o tempo de trabalho excedente.(19)

    Precisemos aqui que a utilizao de categorias que se referem apropriaodo trabalho excedente no marco de relaes capitalistas de produo noimplica o suposto de que a economia exportadora latino-americana se baseia jna produo capitalista. Recorremos a essas categorias no esprito dasobservaes metodolgicas que avanamos ao iniciar este trabalho, ou seja,porque permitem caracterizar melhor os fenmenos que pretendemos estudar etambm porque indicam a direo para a qual estes tendem. Por outra parte,no a rigor necessrio que exista a troca desigual para que comecem a operaros mecanismos de extrao de mais-valia mencionados; o simples fato da

    vinculao ao mercado mundial, e a converso conseguinte da produo devalores de uso em produo de valores de troca que isso acarreta, tem comoresultado imediato desatar um af por lucro que se torna tanto maisdesenfreado quanto mais atrasado o modo de produo existente. Comoobserva Marx,

    "[...] to logo como os povos cujo regime de produo vinha se

    desenvolvendo nas formas primitivas de escravido, relaes de

    vassalagem etc, se vem atrados ao mercado mundial, onde impera

    o regime capitalista de produo e onde imposto a tudo o interessede dar vazo aos produtos para o estrangeiro, os tormentos brbaros

    da escravido, da servido da gleba etc, se vem acrescentados pelos

    tormentos civilizados do trabalho excedente".(20)

    O efeito da troca desigual medida que coloca obstculos a sua plenasatisfao o de exacerbar esse af por lucro e aguar portanto os mtodosde extrao de trabalho excedente.

    Pois bem, os trs mecanismos identificados a intensificao do trabalho,a prolongao da jornada de trabalho e a expropriao de parte do trabalhonecessrio ao operrio para repor sua fora de trabalho configuram um modode produo fundado exclusivamente na maior explorao do trabalhador, e

    Dialtica da Dependncia http://www.marxists.org/portugues/marini/1973/mes/dialetica.ht

    11 de 40 16/06/2014 17:20

  • 5/24/2018 Dial tica Da Depend ncia

    12/40

    no no desenvolvimento de sua capacidade produtiva. Isso condizente com obaixo nvel de desenvolvimento das foras produtivas na economia latino-americana, mas tambm com os tipos de atividades que ali se realizam. Defato, mais que na indstria fabril, na qual um aumento de trabalho implica pelomenos um maior gasto de matrias primas, na indstria extrativa e naagricultura o efeito do aumento do trabalho sobre os elementos do capital

    constante so muito menos sensveis, sendo possvel, pela simples ao dohomem sobre a natureza, aumentar a riqueza produzida sem um capital

    adicional.(21) Entende-se que, nessas circunstncias, a atividade produtivabaseia-se sobretudo no uso extensivo e intensivo da fora de trabalho: issopermite baixar a composio-valor do capital, o que, aliado intensificao dograu de explorao do trabalho, faz com que se elevem simultaneamente astaxas de mais-valia e de lucro.

    Alm disso, importa assinalar que, nos trs mecanismos considerados, a

    caracterstica essencial est dada pelo fato de que so negadas ao trabalhadoras condies necessrias para repor o desgaste de sua fora de trabalho: nosdois primeiros casos, porque lhe obrigado um dispndio de fora de trabalhosuperior ao que deveria proporcionar normalmente, provocando assim seuesgotamento prematuro; no ltimo, porque lhe retirada inclusive apossibilidade de consumo do estritamente indispensvel para conservar suafora de trabalho em estado normal. Em termos capitalistas, esses mecanismos(que ademais podem se apresentar, e normalmente se apresentam, de forma

    combinada) significam que o trabalho remunerado abaixo de seu valor(22)e

    correspondem, portanto, a uma superexplorao do trabalho.

    o que explica que tenha sido precisamente nas zonas dedicadas produo para exportao em que o regime de trabalho assalariado foi impostoprimeiro, iniciando o processo de transformao das relaes de produo naAmrica Latina. E til ter presente que a produo capitalista supe aapropriao direta da fora de trabalho, e no apenas dos produtos do trabalho;nesse sentido, a escravido um modo de trabalho que se adapta mais aocapital que a servido, no sendo acidental que as empresas coloniais

    diretamente conectadas com os centros capitalistas europeus como as minasde ouro e de prata do Mxico e do Peru, ou as plantaes de cana do Brasil

    foram assentadas sobre o trabalho escravo.(23)Mas, salvo na hiptese de que aoferta de trabalho seja totalmente elstica (o que no se verifica com a mo deobra escrava na Amrica Latina, a partir da segunda metade do sculo 19), oregime de trabalho escravo constitui um obstculo ao rebaixamentoindiscriminado da remunerao do trabalhador. "No caso do escravo, o salriomnimo aparece como uma magnitude constante, independente de seutrabalho. No caso do trabalhador livre, esse valor de sua capacidade de trabalhoe o salrio mdio que corresponde ao mesmo no esto contidos dentro desseslimites predestinados, independentes de seu prprio trabalho, determinados porsuas necessidades puramente fsicas. A mdia aqui mais ou menos constante

    Dialtica da Dependncia http://www.marxists.org/portugues/marini/1973/mes/dialetica.ht

    12 de 40 16/06/2014 17:20

  • 5/24/2018 Dial tica Da Depend ncia

    13/40

    para a classe, como o valor de todas as mercadorias, mas no existe nestarealidade imediata para o operrio individual cujo salrio pode estar acima ou

    abaixo desse mnimo."(24)Em outros termos, o regime de trabalho escravo,salvo em condies excepcionais do mercado de mo de obra, incompatvelcom a superexplorao do trabalho. No ocorre o mesmo com o trabalhoassalariado e, em menor medida, com o trabalho servil.

    Insistamos neste ponto. A superioridade do capitalismo sobre as demaisformas de produo mercantil, e sua diferena bsica em relao a elas, resideem que aquilo que se transforma em mercadoria no o trabalhador ou seja,o tempo total de existncia do trabalhador, com todos os momentos mortosque este implica desde o ponto de vista da produo mas sua fora detrabalho, isto , o tempo de sua existncia que pode ser utilizada para aproduo, deixando para o mesmo trabalhador o cuidado de responsabilizar-sepelo tempo no produtivo, desde o ponto de vista capitalista. esta a razo

    pela qual, ao se subordinar uma economia escravista ao mercado capitalistamundial, o aprofundamento da explorao do escravo acentuado, j queinteressa portanto a seu proprietrio reduzir os tempos mortos para a produoe fazer coincidir o tempo produtivo com o tempo de existncia do trabalhador.

    Mas, como assinala Marx,

    "o escravista compra operrios como poderia comprar cavalos. Ao

    perder o escravo, perde um capital que se v obrigado a repor

    mediante um novo investimento no mercado de escravos".

    (25)

    A superexplorao do escravo, que prolonga sua jornada de trabalho maisalm dos limites fisiolgicos admissveis e redunda necessariamente noesgotamento prematuro, por morte ou incapacidade, s pode acontecer,portanto, se possvel repor com facilidade a mo de obra desgastada.

    "Os campos de arroz da Gergia e os pntanos do Mississipi influem

    talvez de uma forma fatalmente destruidora sobre a constituio

    humana; entretanto, essa destruio de vidas humanas no to

    grande que no possa ser compensada pelos cercados transbordantes

    da Virgnia e do Kentucky. Aquelas consideraes econmicas que

    poderiam oferecer uma espcie de salvaguarda do tratamento

    humano dado aos escravos, enquanto a conservao da vida destes

    estava identificada com o interesse de seus senhores, foram

    modificadas ao se implantar o comrcio de escravos por outros tantos

    motivos de espoliao implacvel de suas energias, pois to logo a

    vaga produzida por um escravo pode ser coberta pela importao de

    negros de outros cercados, a durao de sua vida cede em

    importncia, enquanto dura a sua produtividade".(26)

    A evidncia contrria comprova o mesmo: no Brasil da segunda metade dosculo passado [19], quando se iniciava o auge do caf, o fato de que o trfico

    Dialtica da Dependncia http://www.marxists.org/portugues/marini/1973/mes/dialetica.ht

    13 de 40 16/06/2014 17:20

  • 5/24/2018 Dial tica Da Depend ncia

    14/40

    de escravos tenha sido suprimido em 1850 fez a mo de obra escrava topouco atrativa para os proprietrios de terras do Sul que estes preferiram apelarpara o regime assalariado, mediante a imigrao europeia, alm de favoreceruma poltica no sentido de suprimir a escravido. Recordemos que uma parteimportante da populao escrava encontrava-se na decadente zona aucareirado Nordeste e que o desenvolvimento do capitalismo agrrio no Sul impunha

    sua liberao, a fim de constituir um mercado livre de trabalho. A criao dessemercado, com a lei da abolio da escravatura em 1888, que culminava umasrie de medidas graduais nessa direo (como a condio de homem livreassegurada aos filhos de escravos etc), constitui um fenmeno dos maisinteressantes; por um lado, definia-se como uma medida extremamente radical,que liquidava com as bases da sociedade imperial (a monarquia sobreviverpouco mais de um ano lei de 1888) e chegava inclusive a negar qualquer tipode indenizao aos antigos proprietrios de escravos; por outra parte, buscavacompensar o impacto de seu efeito, por meio de medidas destinadas a atar o

    trabalhador terra (a incluso de um artigo no cdigo civil que vinculava pessoa as dvidas contradas; o sistema de "barraco", verdadeiro monopliodo comrcio de bens de consumo exercido pelo latifundirio no interior dafazenda etc.) e da outorga de crditos generosos aos proprietrios afetados.

    O sistema misto de servido e de trabalho assalariado que se estabelece noBrasil, ao se desenvolver a economia de exportao para o mercado mundial, uma das vias pelas quais a Amrica Latina chega ao capitalismo. Observemosque a forma que adotam as relaes de produo nesse caso no se diferencia

    muito do regime de trabalho que se estabelece, por exemplo, nas minaschilenas de salitre, cujo "sistema de fichas" equivale ao "barraco". Em outrassituaes, que ocorrem sobretudo no processo de subordinao do interior szonas de exportao, as relaes de explorao podem se apresentar maisnitidamente como relaes servis, sem que isso impea que, atravs daextorso do mais-produto do trabalhador pela ao do capital comercial ouusurrio, o trabalhador se veja implicado em uma explorao direta pelo capital,

    que tende inclusive a assumir um carter de superexplorao.(27)Entretanto, aservido apresenta, para o capitalista, o inconveniente de que no lhe permite

    dirigir diretamente a produo, alm de colocar sempre a possibilidade, aindaque terica, de que o produtor imediato se emancipe da dependncia em que ocoloca o capitalista.

    No , entretanto, nosso objetivo estudar aqui as formas econmicasparticulares que existiam na Amrica Latina antes que esta ingressasseefetivamente na etapa capitalista de produo, nem as vias atravs das quaisteve lugar a transio. O que pretendemos to somente fixar a pauta em queh de ser conduzido este estudo, pauta que corresponde ao movimento real da

    formao do capitalismo dependente: da circulao produo, da vinculaoao mercado mundial ao impacto que isso acarreta sobre a organizao internado trabalho, para voltar ento a recolocar o problema da circulao. Porque prprio do capital criar seu prprio modo de circulao, e/ou disso depende a

    Dialtica da Dependncia http://www.marxists.org/portugues/marini/1973/mes/dialetica.ht

    14 de 40 16/06/2014 17:20

  • 5/24/2018 Dial tica Da Depend ncia

    15/40

    reproduo ampliada em escala mundial do modo de produo capitalista:

    [...] j que s o capital implica as condies de produo do capital,

    j que s ele satisfaz essas condies e busca realiz-las, sua

    tendncia geral a de formar por todos os lugares as bases da

    circulao, os centros produtores desta, e assimil-las, isto ,

    convert-las em centros de produo virtual ou efetivamente

    criadores de capital.(28)

    Uma vez convertida em centro produtor de capital, a Amrica Latina devercriar, portanto, seu prprio modo de circulao, que no pode ser o mesmo queaquele engendrado pelo capitalismo industrial e que deu lugar dependncia.Para constituir um todo complexo, h que recorrer a elementos simples ecombinveis entre si, mas no iguais. Compreender a especificidade do ciclo docapital na economia dependente latino-americana significa, portanto, iluminar o

    fundamento mesmo de sua dependncia em relao economia capitalistamundial.

    4. O ciclo do capital na economia dependente

    Desenvolvendo sua economia mercantil, em funo do mercado mundial, aAmrica Latina levada a reproduzir em seu seio as relaes de produo quese encontravam na origem da formao desse mercado, e determinavam seu

    carter e sua expanso.(29) Mas esse processo estava marcado por umaprofunda contradio: chamada para contribuir com a acumulao de capitalcom base na capacidade produtiva do trabalho, nos pases centrais, a AmricaLatina teve de faz-lo mediante uma acumulao baseada na superexploraodo trabalhador. E nessa contradio que se radica a essncia da dependncialatino-americana.

    A base real sobre a qual se desenvolve so os laos que ligam a economialatino-americana com a economia capitalista mundial. Nascida para atender asexigncias da circulao capitalista, cujo eixo de articulao est constitudo

    pelos pases industriais, e centrada portanto sobre o mercado mundial, aproduo latino-americana no depende da capacidade interna de consumopara sua realizao. Opera-se, assim, desde o ponto de vista do pasdependente, a separao dos dois momentos fundamentais do ciclo do capital a produo e a circulao de mercadorias cujo efeito fazer com queaparea de maneira especfica na economia latino-americana a contradioinerente produo capitalista em geral, ou seja, a que ope o capital ao

    trabalhador enquanto vendedor e comprador de mercadorias.(30)

    Trata-se de um ponto-chave para entender o carter da economia latino-americana. Inicialmente, h de se considerar que, nos pases industriais, cujaacumulao de capital se baseia na produtividade do trabalho, essa oposioque gera o duplo carter do trabalho produtor e consumidor , ainda que

    Dialtica da Dependncia http://www.marxists.org/portugues/marini/1973/mes/dialetica.ht

    15 de 40 16/06/2014 17:20

  • 5/24/2018 Dial tica Da Depend ncia

    16/40

    seja efetiva, se v, em certa medida, contraposta pela forma que assume ociclo do capital. assim como, em que pese o privilgio do capital peloconsumo produtivo do trabalhador (ou seja, o consumo de meios de produoque implica o processo de trabalho), e se inclina a desestimular seu consumoindividual (que o trabalhador emprega para repor sua fora de trabalho), o qual

    lhe aparece como consumo improdutivo,(31) isso se d exclusivamente no

    momento da produo. Ao ser iniciada a fase de realizao, essa contradioaparente entre o consumo individual dos trabalhadores e a reproduo docapital desaparece, uma vez que o dito consumo (somado ao dos capitalistas edas camadas improdutivas em geral) restabelece ao capital a forma que lhe necessria para comear um novo ciclo, quer dizer, a forma dinheiro. Oconsumo individual dos trabalhadores representa, portanto, um elementodecisivo na criao de demanda para mercadorias produzidas, sendo uma dascondies para que o fluxo da produo se resolva adequadamente no fluxo da

    circulao.(32) Por meio da mediao que se estabelece pela luta entre os

    operrios e os patres em torno da fixao do nvel dos salrios, os dois tiposde consumo do operrio tendem assim a se complementar, no curso do ciclo docapital, superando a situao inicial de oposio em que se encontravam. Essa, ademais, uma das razes pelas quais a dinmica do sistema tende a secanalizar por meio da mais-valia relativa, que implica, em ltima instncia, obarateamento das mercadorias que entram na composio do consumoindividual do trabalhador.

    Na economia exportadora latino-americana, as coisas se do de outra

    maneira. Como a circulao se separa da produo e se efetua basicamente nombito do mercado externo, o consumo individual do trabalhador no interferena realizao do produto, ainda que determine a taxa de mais-valia. Emconsequncia, a tendncia natural do sistema ser a de explorar ao mximo afora de trabalho do operrio, sem se preocupar em criar as condies para queeste a reponha, sempre e quando seja possvel substitu-lo pela incorporao denovos braos ao processo produtivo. O dramtico para a populaotrabalhadora da Amrica Latina que essa hiptese foi cumprida amplamente: aexistncia de reservas de mo de obra indgena (como no Mxico), ou os fluxosmigratrios derivados do deslocamento de mo de obra europeia, provocadopelo progresso tecnolgico (como na Amrica do Sul), permitiram aumentarconstantemente a massa trabalhadora, at o incio do sculo 20. Seu resultadotem sido o de abrir livre curso para a compresso do consumo individual dooperrio e, portanto, para a superexplorao do trabalho.

    A economia exportadora , portanto, algo mais que o produto de umaeconomia internacional fundada na especializao produtiva: uma formaosocial baseada no modo capitalista de produo, que acentua at o limite as

    contradies que lhe so prprias. Ao faz-lo, configura de maneira especficaas relaes de explorao em que se baseia e cria um ciclo de capital que tendea reproduzir em escala ampliada a dependncia em que se encontra frente economia internacional.

    Dialtica da Dependncia http://www.marxists.org/portugues/marini/1973/mes/dialetica.ht

    16 de 40 16/06/2014 17:20

  • 5/24/2018 Dial tica Da Depend ncia

    17/40

    assim como o sacrifcio do consumo individual dos trabalhadores em favorda exportao para o mercado mundial deprime os nveis de demanda interna eerige o mercado mundial como nica sada para a produo. Paralelamente, oincremento dos lucros que disso se deriva coloca o capitalista em condies dedesenvolver expectativas de consumo sem contrapartida na produo interna(orientada para o mercado mundial), expectativas que tm de ser satisfeitas por

    meio de importaes. A separao entre o consumo individual fundado nosalrio e o consumo individual engendrado pela mais-valia no acumulada dorigem, portanto, a uma estratificao do mercado interno, que tambm umadiferenciao de esferas de circulao: enquanto a esfera "baixa", onde seencontram os trabalhadores que o sistema se esfora por restringir , sebaseia na produo interna, a esfera "alta" de circulao, prpria dosno-trabalhadores que aquela que o sistema tende a ampliar , serelaciona com a produo externa, por meio do comrcio de importao.

    A harmonia que se estabelece, no nvel do mercado mundial, entre aexportao de matrias primas e alimentos, por parte da Amrica Latina, e aimportao de bens de consumo manufaturados europeus, encobre adilacerao da economia latino-americana, expressa pela ciso do consumoindividual total em duas esferas contrapostas. Quando, chegado o sistemacapitalista mundial a um certo grau de seu desenvolvimento, a Amrica Latinaingressar na etapa da industrializao, dever faz-lo a partir das bases criadaspela economia de exportao. A profunda contradio que ter caracterizado ociclo do capital dessa economia e seus efeitos sobre a explorao do trabalho

    incidiro de maneira decisiva no curso que tomar a economia industrial latino-americana, explicando muitos dos problemas e das tendncias que nela seapresentam atualmente.

    5. O processo de industrializao

    No cabe aqui entrar na anlise do processo de industrializao na AmricaLatina, nem muito menos tomar partido na atual controvrsia sobre o papel que

    nesse processo desempenhou a substituio de importaes.(33)

    Para os fins aque nos propomos, suficiente fazer notar que, por significativo que tivessesido o desenvolvimento industrial no seio da economia exportadora (e, porconsequncia, na extenso do mercado interno), em pases como Argentina,Mxico, Brasil e outros, no chegou nunca a conformar uma verdadeiraeconomia industrial, que, definindo o carter e o sentido da acumulao decapital, acarretasse em uma mudana qualitativa no desenvolvimentoeconmico desses pases. Ao contrrio, a indstria continuou sendo ali umaatividade subordinada produo e exportao de bens primrios, que

    constituam, estes sim, o centro vital do processo de acumulao.(34) apenasquando a crise da economia capitalista internacional, correspondente ao perodocompreendido entre a primeira e a segunda guerras mundiais, limita aacumulao baseada na produo para o mercado externo, que o eixo da

    Dialtica da Dependncia http://www.marxists.org/portugues/marini/1973/mes/dialetica.ht

    17 de 40 16/06/2014 17:20

  • 5/24/2018 Dial tica Da Depend ncia

    18/40

    acumulao se desloca para a indstria, dando origem moderna economiaindustrial que prevalece na regio.

    Desde o ponto de vista que nos interessa, isso significa que a esfera alta dacirculao, que se articulava com a oferta externa de bens manufaturados deconsumo, desloca seu centro de gravidade para a produo interna, passandosua parbola a coincidir, grosso modo, com a que descreve a esfera baixa,prpria das massas trabalhadoras. Parecia assim que o movimento excntricoque apresentava a economia exportadora comeava a se corrigir, e que ocapitalismo dependente orientava-se no sentido de uma configurao similar dos pases industriais clssicos. Foi sobre essa base que prosperaram, nadcada de 1950, as diferentes correntes chamadas desenvolvimentistas, quesupunham que os problemas econmicos e sociais que afetavam a formaosocial latino-americana tivessem origem na insuficincia do desenvolvimentocapitalista e que a acelerao deste bastaria para faz-los desaparecer.

    De fato, as similaridades aparentes da economia industrial dependente coma economia industrial clssica encobriam profundas diferenas, que odesenvolvimento capitalista acentuaria em lugar de atenuar. A reorientao parao interior da demanda gerada pela mais-valia no acumulada implicava ummecanismo especfico de criao de mercado interno radicalmente diferente doque operava na economia clssica e que teria graves repercusses na formaque assumiria a economia industrial dependente.

    Na economia capitalista clssica, a formao do mercado interno representa

    a contrapartida da acumulao de capital: ao separar o produtor dos meios deproduo, o capital no s criou o assalariado, isto , o trabalhador que sdispe de sua fora de trabalho, como tambm criou o consumidor. De fato, osmeios de subsistncia do operrio, antes produzidos diretamente por ele, soincorporados ao capital, como elemento material do capital varivel, e s sorestitudos ao trabalhador quando este compra seu valor baixo a forma de

    salrio.(35) Existe, pois, uma estreita correspondncia entre o ritmo daacumulao e o da expanso do mercado. A possibilidade que tem o capitalista

    industrial de obter no exterior, a preo baixo, os alimentos necessrios aotrabalhador, leva a estreitar o nexo entre a acumulao e o mercado, uma vezque aumenta a parte do consumo individual do operrio dedicada absoro deprodutos manufaturados. por isso que a produo industrial, nesse tipo deeconomia, concentra-se basicamente nos bens de consumo popular e procurabarate-los, uma vez que incidem diretamente no valor da fora de trabalho eportanto medida que as condies em que se d a luta entre os operrios eos patres tende a aproximar os salrios desse valor -na taxa de mais-valia.Vimos que essa a razo fundamental pela qual a economia capitalista clssica

    deve se orientar para o aumento da produtividade do trabalho.

    O desenvolvimento da acumulao baseada na produtividade do trabalhotem como resultado o aumento da mais-valia e, em consequncia, da demanda

    Dialtica da Dependncia http://www.marxists.org/portugues/marini/1973/mes/dialetica.ht

    18 de 40 16/06/2014 17:20

  • 5/24/2018 Dial tica Da Depend ncia

    19/40

    criada pela parte desta que no acumulada. Em outras palavras, cresce oconsumo individual das classes no produtoras, com o que se amplia a esferada circulao que lhes corresponde. Isso no s impulsiona o crescimento daproduo de bens de consumo manufaturados, em geral, como tambm o da

    produo de artigos suprfluos.(36)A circulao tende portanto a se dividir emduas esferas, de maneira similar ao que constatamos na economia latino-

    americana de exportao, mas com uma diferena substancial: a expanso daesfera superior uma consequincia da transformao das condies deproduo e se torna possvel medida que, aumentando a produtividade dotrabalho, a parte do consumo individual total que corresponde ao operriodiminui em termos reais. A ligao existente entre as duas esferas de consumo distendida, mas no se rompe.

    Outro fator contribui para impedir que a ruptura se realize: a forma comose amplia o mercado mundial. A demanda adicional de produtos suprfluos que

    cria o mercado exterior necessariamente limitada, primeiro porque, quando ocomrcio se efetua entre naes que produzem esses bens, o avano de umanao implica no retrocesso de outra, o que suscita, por parte da ltima,mecanismos de defesa; e depois porque, no caso da troca com os pasesdependentes, essa demanda se restringe s classes altas, e se v assimconstrangida pela forte concentrao de renda que implica a superexploraodo trabalho. Portanto, para que a produo de bens de luxo possa se expandir,esses bens tm de mudar o seu carter, ou seja, converter-se em produtos deconsumo popular no interior mesmo da economia industrial. As circunstncias

    que permitem elevar ali os salrios reais, a partir da segunda metade do sculo19, s quais no estranha a desvalorizao dos alimentos e a possibilidade deredistribuir internamente parte do excedente subtrado das naesdependentes, ajudam, na medida em que ampliam o consumo individual dostrabalhadores, a se contrapor s tendncias desarticuladoras que atuam nonvel da circulao.

    A industrializao(37) latino-americana se d sobre bases distintas. Acompresso permanente que exercia a economia exportadora sobre o consumo

    individual do trabalhador no permitiu mais do que a criao de uma indstriadbil, que s se ampliava quando fatores externos (como as crises comerciais,conjunturalmente, e a limitao dos excedentes da balana comercial, pelasrazoes j assinaladas) fechavam parcialmente o acesso da esfera alta de

    consumo para o comrcio de importao.(38) a maior incidncia dessesfatores, como vimos, o que acelera o crescimento industrial, a partir de certomomento, e provoca a mudana qualitativa do capitalismo dependente. Aindustrializao latino-americana no cria, portanto, como nas economiasclssicas, sua prpria demanda, mas nasce para atender a uma demandapr-existente, e se estruturar em funo das exigncias de mercadoprocedentes dos pases avanados.

    No incio da industrializao, a participao dos trabalhadores na criao da

    Dialtica da Dependncia http://www.marxists.org/portugues/marini/1973/mes/dialetica.ht

    19 de 40 16/06/2014 17:20

  • 5/24/2018 Dial tica Da Depend ncia

    20/40

    demanda no joga portanto um papel significativo na Amrica Latina. Operandono marco de uma estrutura de mercado previamente dada, cujo nvel de preosatuava no sentido de impedir o acesso do consumo popular, a indstria notinha razes para aspirar uma situao distinta. A capacidade de demanda era,naquele momento, superior oferta, pelo que no se apresentava ao capitalistao problema de criar mercado para suas mercadorias, mas uma situao inversa.

    Por outro lado, ainda quando a oferta chegue a se equilibrar com a demanda isso no colocar de imediato para o capitalista a ampliao do mercado,levando-o antes a jogar sobre a margem entre o preo de mercado e o preo deproduo, ou seja, sobre o aumento da massa de lucro em funo do preounitrio do produto. Para isso, o capitalista industrial forar, por um lado, oaumento de preos, aproveitando-se da situao monopolista criada de fatopela crise do comrcio mundial e reforada pelas barreiras alfandegrias. Poroutro lado, e dado que o baixo nvel tecnolgico faz com que o preo deproduo seja determinado fundamentalmente pelos salrios, o capitalista

    industrial valer-se- do excedente de mo de obra criado pela prpria economiaexportadora e agravado pela crise que esta atravessa (crise que obriga o setorexportador a liberar mo de obra), para pressionar os salrios no sentidodescendente. Isso lhe permitir absorver grandes massas de trabalho, o que,acentuado pela intensificao do trabalho e pela prolongao da jornada detrabalho, acelerar a concentrao de capital no setor industrial.

    Partindo ento do modo de circulao que caracterizara a economiaexportadora, a economia industrial dependente reproduz, de forma especfica, a

    acumulao de capital baseada na superexplorao do trabalhador. Emconsequncia, reproduz tambm o modo de circulao que corresponde a essetipo de acumulao, ainda que de maneira modificada: j no a dissociaoentre a produo e a circulao de mercadorias em funo do mercado mundialo que opera, mas a separao entre a esfera alta e a esfera baixa da circulaono interior mesmo da economia, separao que, ao no ser contraposta pelosfatores que atuam na economia capitalista clssica, adquire um carter muitomais radical.

    Dedicada produo de bens que no entram, ou entram muitoescassamente, na composio do consumo popular, a produo industriallatino-americana independente das condies de salrio prprias dostrabalhadores; isso em dois sentidos. Em primeiro lugar, porque, ao no ser umelemento essencial do consumo individual do operrio, o valor das manufaturasno determina o valor da fora de trabalho; no ser, portanto, adesvalorizao das manufaturas o que influir na taxa de mais-valia. Issodispensa o industrial de se preocupar em aumentar a produtividade do trabalhopara, fazendo baixar o valor da unidade de produto, depreciar a fora de

    trabalho, e o leva, inversamente, a buscar o aumento da mais-valia por meio damaior explorao intensiva e extensiva do trabalhador, assim como areduo de salrios mais alm de seu limite normal. Em segundo lugar, porquea relao inversa que da se deriva para a evoluo da oferta de mercadorias e

    Dialtica da Dependncia http://www.marxists.org/portugues/marini/1973/mes/dialetica.ht

    20 de 40 16/06/2014 17:20

  • 5/24/2018 Dial tica Da Depend ncia

    21/40

    do poder de compra dos operrios, isto , o fato de que a primeira cresa custa da reduo do segundo, no cria problemas para o capitalista na esferada circulao, uma vez que, como deixamos claro, as manufaturas no soelementos essenciais no consumo individual do operrio.

    Dissemos anteriormente que a uma certa altura do processo, que varia

    segundo os pases,(39)

    a oferta industrial coincide em linhas gerais com ademanda existente, constituda pela esfera alta da circulao. Surge ento anecessidade de generalizar o consumo de manufaturas, o que correspondequele momento em que, na economia clssica, os bens suprfluos tiveram dese converter em bens de consumo popular. Isso leva a dois tipos de adaptaesna economia industrial dependente: a ampliao do consumo das camadasmdias, que criado a partir da mais-valia no acumulada, e o esforo paraaumentar a produtividade do trabalho, condio sine qua nonpara baratear asmercadorias.

    O segundo movimento tenderia, normalmente, a provocar uma mudanaqualitativa na base da acumulao de capital, permitindo ao consumo individualdo operrio modificar sua composio e incluir bens manufaturados. Se agissesozinho, levaria ao deslocamento do eixo da acumulao, da explorao dotrabalhador para o aumento da capacidade produtiva do trabalho. Entretanto, parcialmente neutralizado pela ampliao do consumo dos setores mdios: estesupe, de fato, o incremento das rendas que recebem ditos setores, rendasque, como sabemos, so derivadas da mais-valia e, em consequncia, da

    compresso do nvel salarial dos trabalhadores. A transio de um modo deacumulao para outro se torna, portanto, difcil e realizada com extremalentido, mas suficiente para desencadear um mecanismo que atuar no longoprazo no sentido de obstruir a transio, desviando para um novo meio a buscade solues para os problemas de realizao encarados pela economiaindustrial.

    Esse mecanismo o recurso tecnologia estrangeira, destinado a elevar acapacidade produtiva do trabalho.

    6. O novo anel da espiral

    um fato conhecido que, na medida em que avana a industrializaolatino-americana, altera-se a composio de suas importaes, por meio dareduo do item relativo a bens de consumo e sua substituio por matriasprimas, produtos semielaborados e maquinrio destinados para a indstria.Entretanto, a crise permanente do setor externo dos pases da regio no haviapermitido que as necessidades crescentes de elementos materiais do capital

    constante pudessem ser satisfeitas exclusivamente pela troca comercial. porisso que adquire singular importncia a importao de capital estrangeiro, sob aforma de financiamento de investimentos diretos na indstria.

    Dialtica da Dependncia http://www.marxists.org/portugues/marini/1973/mes/dialetica.ht

    21 de 40 16/06/2014 17:20

  • 5/24/2018 Dial tica Da Depend ncia

    22/40

    As facilidades que a Amrica Latina encontra no exterior para recorrer importao de capital no so acidentais. Devem-se nova configurao queassume a economia internacional capitalista no perodo do ps-guerra. Por voltade 1950, ela havia superado a crise que a afetara, a partir da dcada de 1910, ese encontrava j reorganizada sob a gide estadunidense. O avano conseguidopela concentrao de capital em escala mundial coloca ento nas mos das

    grandes corporaes imperialistas uma abundncia de recursos, quenecessitam buscar aplicao no exterior. O trao significativo do perodo queesse fluxo de capital para a periferia se orienta de forma preferencial para osetor industrial.

    Para isso concorre o fato de que, enquanto durou a desorganizao daeconomia mundial, desenvolveram-se bases industriais perifricas, queofereciam graas superexplorao do trabalho possibilidades atrativas delucro. Mas no ser o nico fato, e talvez no seja o mais decisivo. No curso do

    mesmo perodo, verificara-se um grande desenvolvimento do setor de bens decapital nas economias centrais. Isso levou, por um lado, a que os equipamentosali produzidos, sempre mais sofisticados, tivessem de ser aplicados no setorsecundrio dos pases perifricos; surge ento, por parte das economiascentrais, o interesse de impulsionar nestes o processo de industrializao, como propsito de criar mercados para sua indstria pesada. Por outro lado, namedida em que o ritmo do progresso tcnico reduziu nos pases centrais o

    prazo de reposio do capital fixo praticamente metade,(40)colocou-se paraesses pases a necessidade de exportar para a periferia equipamentos e

    maquinrio que j eram obsoletos antes de que tivessem sido amortizadostotalmente.

    A industrializao latino-americana corresponde assim a uma nova divisointernacional do trabalho, em cujo marco so transferidas para os pasesdependentes etapas inferiores da produo industrial (observe-se que asiderurgia, que correspondia a um sinal distintivo da economia industrialclssica, generalizou-se a tal ponto que pases como Brasil j exportam ao),sendo reservadas para os centros imperialistas as etapas mais avanadas

    (como a produo de computadores e a indstria eletrnica pesada em geral, aexplorao de novas fontes de energia, como a de origem nuclear etc.) e omonoplio da tecnologia correspondente. Indo ainda mais longe, pode-sedistinguir na economia internacional escales, nos quais vo sendo recolocadosno s os novos pases industriais, mas tambm os mais antigos. assimcomo, na produo de ao e na de veculos automotores, a Europa Ocidental eo Japo competem vantajosamente com os mesmos Estados Unidos, mas noconseguem ainda faz-lo no que se refere indstria de mquinas e

    ferramentas, principalmente as automatizadas.(41) O que temos aqui uma

    nova hierarquizao da economia capitalista mundial, cuja base a redefinioda diviso internacional do trabalho ocorrida nos ltimos 50 anos.

    Seja como for, no momento em que as economias industriais dependentes

    Dialtica da Dependncia http://www.marxists.org/portugues/marini/1973/mes/dialetica.ht

    22 de 40 16/06/2014 17:20

  • 5/24/2018 Dial tica Da Depend ncia

    23/40

    vo buscar no exterior o instrumental tecnolgico que lhes permita acelerar seucrescimento, elevando a produtividade do trabalho, aquele tambm em que, apartir dos pases centrais, tm origem importantes fluxos de capital que sedirecionam para elas, fluxos que lhes trazem a tecnologia requerida. Noexaminaremos aqui os efeitos prprios das distintas formas que assume aabsoro tecnolgica, e que vo desde a doao at o investimento direto de

    capital estrangeiro, j que, desde o ponto de vista que orienta nossa anlise,isto no tem maior importncia. Ocupar-nos-emos to somente do carterdessa tecnologia e de seu impacto sobre a ampliao do mercado.

    O progresso tecnolgico caracteriza-se pela economia de fora de trabalhoque, seja em termos de tempo, seja em termos de esforo, o operrio devededicar para a produo de uma certa massa de bens. E natural, portanto, que,globalmente, seu resultado seja a reduo do tempo de trabalho produtivo emrelao ao tempo total disponvel para a produo, o que, na sociedade

    capitalista, se manifesta por meio da diminuio da populao operriaparalelamente ao crescimento da populao que se dedica a atividades noprodutivas, s que correspondem aos servios. Essa a forma especfica queassume o desenvolvimento tecnolgico em uma sociedade baseada naexplorao do trabalho, mas no a forma geral do desenvolvimento tecnolgico. por isso que as recomendaes que se tm feito para os pases dependentes,onde se verifica uma grande disponibilidade de mo de obra, no sentido de queadotem tecnologias que incorporem mais fora de trabalho, com o objetivo dedefender os nveis de emprego, representam um duplo engano: levam a

    preconizar a opo por um menor desenvolvimento tecnolgico e confundem osefeitos sociais especificamente capitalistas da tcnica com a tcnica em si.

    Alm disso, essas recomendaes ignoram as condies concretas em quese d a introduo do progresso tcnico nos pases dependentes. Essaintroduo depende, como assinalamos, menos das preferncias que elestenham e mais da dinmica objetiva da acumulao de capital em escalamundial. Ela foi a que impulsionou a diviso internacional do trabalho a assumiruma configurao, em cujo marco foram abertos novos rumos para a difuso

    do progresso tcnico e deu-se a esta um ritmo mais acelerado. Os efeitos daderivados para a situao dos trabalhadores nos pases dependentes nopoderiam diferir em essncia dos que so consubstanciais a uma sociedadecapitalista: reduo da populao produtiva e crescimento das camadas sociaisno produtivas. Mas, esses efeitos teriam de aparecer modificados pelascondies de produo prprias do capitalismo dependente.

    assim como, incidindo sobre uma estrutura produtiva baseada na maiorexplorao dos trabalhadores, o progresso tcnico possibilitou ao capitalista

    intensificar o ritmo de trabalho do operrio, elevar sua produtividade e,simultaneamente, sustentar a tendncia para remuner-lo em proporo inferiora seu valor real. Para isso contribuiu decisivamente a vinculao das novastcnicas de produo com setores industriais orientados para tipos de consumo

    Dialtica da Dependncia http://www.marxists.org/portugues/marini/1973/mes/dialetica.ht

    23 de 40 16/06/2014 17:20

  • 5/24/2018 Dial tica Da Depend ncia

    24/40

    que, se tendem a convert-los em consumo popular nos pases avanados, nopodem faz-lo sob nenhuma hiptese nas sociedades dependentes. O abismoexistente entre o nvel de vida dos trabalhadores e o dos setores que alimentama esfera alta da circulao torna inevitvel que produtos como automveis,aparelhos eletrodomsticos etc. sejam destinados necessariamente para estaltima. Nessa medida, e toda vez que no representam bens que intervenham

    no consumo dos trabalhadores, o aumento de produtividade induzido pelatcnica nesses setores de produo no poderia se traduzir em maiores lucrospor meio da elevao da taxa de mais-valia, mas apenas mediante o aumentoda massa de valor realizado. A difuso do progresso tcnico na economiadependente seguir, portanto, junto a uma maior explorao do trabalhador,precisamente porque a acumulao continua dependendo fundamentalmentemais do aumento da massa de valor e portanto de mais-valia que da taxade mais-valia.

    Pois bem, ao se concentrar de maneira significativa nos setores produtoresde bens suprfluos, o desenvolvimento tecnolgico acabaria por colocar gravesproblemas de realizao. O recurso utilizado para solucion-los tem sido o defazer a interveno do Estado (por meio da ampliao do aparato burocrtico,das subvenes aos produtores e do financiamento ao consumo suprfluo),assim como fazer intervir na inflao, com o propsito de transferir poder decompra da esfera baixa para a esfera alta da circulao; isso implicou emrebaixar ainda mais os salrios reais, com o objetivo de contar com excedentessuficientes para efetuar a transferncia de renda. Mas, na medida em que se

    comprime dessa forma a capacidade de consumo dos trabalhadores, fechadaqualquer possibilidade de estmulo ao investimento tecnolgico no setor deproduo destinado a atender o consumo popular. No pode ser, portanto,motivo de surpresa que, enquanto as indstrias de bens suprfluo crescem ataxas elevadas, as indstrias orientadas para o consumo de massas (aschamadas "indstrias tradicionais") tendem estagnao e inclusive regresso.

    Na medida em que se realizava, com dificuldade e a um ritmo

    extremamente lento, a tendncia aproximao entre as duas esferas decirculao, que se havia observado a partir de certo momento, no podecontinuar se desenvolvendo. Ao contrrio, o que se impe novamente oafastamento entre ambas as esferas, uma vez que a compresso do nvel devida das massas trabalhadoras passa a ser a condio necessria da expansoda demanda criada pelas camadas que vivem da mais-valia. A produobaseada na superexplorao do trabalho voltou a engendrar assim o modo decirculao que lhe corresponde, ao mesmo tempo em que divorciava o aparatoprodutivo das necessidades de consumo das massas. A estratificao desse

    aparato no que se costuma chamar "indstrias dinmicas" (setores produtoresde bens suprfluos e de bens de capital que se destinam principalmente paraestes) e "indstrias tradicionais" est refletindo a adequao da estrutura deproduo estrutura de circulao prpria do capitalismo dependente.

    Dialtica da Dependncia http://www.marxists.org/portugues/marini/1973/mes/dialetica.ht

    24 de 40 16/06/2014 17:20

  • 5/24/2018 Dial tica Da Depend ncia

    25/40

    Mas no se detm a a reaproximao do modelo industrial dependente aoda economia exportadora. A absoro do progresso tcnico em condies desuperexplorao do trabalho acarreta a inevitvel restrio do mercado interno,a que se contrape a necessidade de realizar massas sempre crescentes devalor (j que a acumulao depende mais da massa que da taxa de mais-valia).Essa contradio no poderia ser resolvida por meio da ampliao da esfera alta

    de consumo no interior da economia, alm dos limites estabelecidos pelaprpria superexplorao. Em outras palavras, no podendo estender aostrabalhadores a criao de demanda para os bens suprfluos, e se orientandoantes para a compresso salarial, o que os exclui de fato desse tipo deconsumo, a economia industrial dependente no s teve de contar com umimenso exrcito de reserva, como tambm se obrigou a restringir aoscapitalistas e camadas mdias altas a realizao das mercadorias suprfluas.Isso colocar, a partir de certo momento (que se define nitidamente emmeados da dcada de 1960), a necessidade de expanso para o exterior, isto ,

    de desdobrar novamente ainda que agora a partir da base industrial o ciclode capital, para centrar parcialmente a circulao sobre o mercado mundial. Aexportao de manufaturas, tanto de bens essenciais quanto de produtossuprfluos, converte-se ento na tbua de salvao de uma economia incapazde superar os fatores desarticuladores que a afligem. Desde os projetos deintegrao econmica regional e subregional at o desenho de polticasagressivas de competio internacional, assiste-se em toda a Amrica Latina ressureio do modelo da velha economia exportadora.

    Nos ltimos anos, a expresso acentuada dessas tendncias no Brasil noslevou a falar de um subimperialismo.(42) No pretendemos retomar aqui otema, j que a caracterizao do subimperialismo vai mais alm da simpleseconomia, no podendo ser levada a cabo se no recorrermos tambm sociologia e poltica. Limitar-nos-emos a indicar que, em sua dimenso maisampla, o subimperialismo no um fenmeno especificamente brasileiro nemcorresponde a uma anomalia na evoluo do capitalismo dependente. certoque so as condies prprias da economia brasileira que lhe permitiram levarbem adiante a sua industrializao e criar inclusive uma indstria pesada, assim

    como as condies que caracterizam a sua sociedade poltica, cujascontradies tm dado origem a um Estado militarista de tipo prussiano, as quelevaram o Brasil ao subimperialismo, mas no menos certo que esse no nada mais do que uma forma particular que assume a economia industrial quese desenvolve no marco do capitalismo dependente. Na Argentina ou em ElSalvador, no Mxico, Chile, Peru, a dialtica do desenvolvimento capitalistadependente no essencialmente distinta da que procuramos analisar aqui, emseus traos mais gerais.

    Utilizar essa linha de anlise para estudar as formaes sociais concretas daAmrica Latina, orientar esse estudo no sentido de definir as determinaes quese encontram na base da luta de classes que ali se desenvolve e abrir assimperspectivas mais claras para as foras sociais empenhadas em destruir essa

    Dialtica da Dependncia http://www.marxists.org/portugues/marini/1973/mes/dialetica.ht

    25 de 40 16/06/2014 17:20

  • 5/24/2018 Dial tica Da Depend ncia

    26/40

    formao monstruosa que o capitalismo dependente: este o desafio tericoque se coloca hoje em dia para os marxistas latino-americanos. A resposta quelhe dermos influir sem dvida de maneira no desprezvel no resultado a quechegaro finalmente os processos polticos que estamos vivendo.

    7. P o s t - s c r i p t u m : Sobre a Dialtica da dependncia

    Inicialmente, minha inteno foi a de escrever um prefcio ao ensaioprecedente. Mas difcil apresentar um trabalho que por si mesmo umaapresentao. E Dialtica da dependnciano pretende ser seno isto: umaintroduo temtica de investigao que me vem ocupando e s linhas geraisque orientam este trabalho. Sua publicao oferece o propsito de adiantaralgumas concluses a que tenho chegado, suscetveis talvez de contribuir como esforo de outros que se dedicam ao estudo das leis de desenvolvimento docapitalismo dependente, assim como com o desejo de oferecer a mim mesmo aoportunidade de contemplar no seu conjunto o terreno que busco desbravar.

    Aproveitarei, pois, estepost-scriptumpara esclarecer algumas questes edesfazer certos equvocos que o texto tem suscitado. Com efeito, apesar docuidado posto em matizar as afirmaes mais conclusivas, sua extensolimitada levou a que as tendncias analisadas se traassem em grandes linhas,o que lhe conferiu muitas vezes um perfil muito destacado. Por outra parte, onvel mesmo de abstrao do ensaio no propiciava o exame de situaesparticulares, que permitissem introduzir no estudo um certo grau de

    relativizao. Sem pretender justificar-me com isso, os inconvenientesmencionados so os mesmos a que alude Marxquando adverte:

    "... teoricamente, se parte do suposto de que as leis da produo

    capitalista se desenvolvem em estado de pureza. Na realidade, as

    coisas ocorrem sempre aproximadamente, mas a aproximao

    tanto maior quanto mais desenvolvida se faz a produo capitalista e

    mais se elimina sua mescla e entrelaamento com os vestgios de

    sistemas econmicos anteriores".(43)

    Por conseguinte, uma primeira concluso a destacar precisamente a deque as tendncias assinaladas em meu ensaio incidem de forma diversa nosdiferentes pases latino-americanos, segundo a especificidade de sua formaosocial. provvel que, por deficincia minha, o leitor no se advirta de um dossupostos que informam minha anlise: o de que a economia exportadoraconstitui a transio a uma autntica economia capitalista nacional, a qual

    somente se configura quando emerge ali a economia industrial,(44)e que assobrevivncias dos antigos modos de produo que regiam a economia colonialdeterminam todavia em grau considervel a maneira como se manifestamnesses pases as leis de desenvolvimento do capitalismo dependente. Aimportncia do regime de produo escravista na determinao da atual

    Dialtica da Dependncia http://www.marxists.org/portugues/marini/1973/mes/dialetica.ht

    26 de 40 16/06/2014 17:20

  • 5/24/2018 Dial tica Da Depend ncia

    27/40

    economia de alguns pases latino-americanos, como por exemplo Brasil, umfato que no pode ser ignorado.

    Um segundo problema se refere ao mtodo utilizado no ensaio, que seexplicita na indicao da necessidade de partir da circulao para a produo,para empreender depois o estudo da circulao que esta produo engendra.Isso, que tem suscitado algumas objees, corresponde rigorosamente aocaminho seguido por Marx. Basta recordar como, em O Capital,as primeirassees do livro I esto dedicadas a problemas prprios da esfera da circulaoe somente a partir da terceira seo se entra no estudo da produo: domesmo modo, uma vez concludo o exame das questes gerais, as questesparticulares do modo de produo capitalista se analisam de idntica maneiranos dois livros seguintes.

    Mais alm da exposio, isso tem a ver com a essncia mesma do mtododialtico, que faz coincidir o exame terico de um problema com seudesenvolvimento histrico; assim como essa orientao metodolgica no scorresponde frmula geral do capital, mas tambm d conta da transformaoda produo mercantil simples em produo mercantil capitalista.

    A sequncia se aplica com mais forte razo quando o objeto de estudo estconstitudo pela economia dependente. No insistamos aqui na nfase que osestudos tradicionais sobre a dependncia do ao papel que desempenha nela omercado mundial, ou, para usar a linguagem desenvolvimentista, o setorexterno. Destaquemos o que constitui um dos temas centrais do ensaio: ao

    comeo de seu desenvolvimento, a economia dependente se encontrainteiramente subordinada dinmica da acumulao nos pases industriais, a talponto que em funo da tendncia queda da taxa de lucro nestes, ou seja,

    da maneira como ali se expressa a acumulao de capital,(45) que ditodesenvolvimento pode ser explicado. Somente na medida em que a economiadependente se v convertendo de fato num verdadeiro centro produtor de

    capital, que traz incorporada sua fase de circulao(46) o que alcana suamaturidade ao se constituir ali um setor industrial que se manifestam

    plenamente nela suas leis de desenvolvimento, as quais representam sempreuma expresso particular das leis gerais que regem o sistema em seu conjunto.A partir desse momento, os fenmenos da circulao que se apresentam naeconomia dependente deixam de corresponder primariamente a problemas derealizao da nao industrial a que ela est subordinada para se tornar cadavez mais em problemas de realizao referidos ao prprio ciclo do capital.

    Haveria de se considerar, ademais, que a nfase nos problemas derealizao somente seria censurvel caso se fizesse em detrimento do que cabe

    s condies em que se realiza a produo e no contribusse para explic-las.Portanto, ao constatar o divrcio que se verifica entre produo e circulao naeconomia dependente (e sublinhar as formas particulares que assume essedivrcio nas distintas fases de seu desenvolvimento) se insistiu:

    Dialtica da Dependncia http://www.marxists.org/portugues/marini/1973/mes/dialetica.ht

    27 de 40 16/06/2014 17:20

  • 5/24/2018 Dial tica Da Depend ncia

    28/40

    no fato de que esse divrcio se gera a partir das condiespeculiares que adquirem a explorao do trabalho em dita economia as que denominei superexplorao; e

    a.

    na maneira como essas condies fazem brotar, permanentemente,desde o seio mesmo da produo, os fatores que agravam o divrcioe o levam, ao se configurar a economia industrial, a desembocar em

    graves problemas de realizao.

    b.

    1. Dois momentos na economia internacional

    nessa perspectiva que poderemos avanar para a elaborao de umateoria marxista da dependncia. Em meu ensaio tratei de demonstrar que emfuno da acumulao de capital em escala mundial, e em particular em funode seu instrumento vital, a taxa geral de lucro, que podemos entender a

    formao da economia dependente. No essencial, os passos seguidos foramexaminar o problema desde o ponto de vista da tendncia baixa da taxa delucro nas economias industriais e coloc-lo luz das leis que operam nocomrcio internacional, e que lhe do o carter de intercmbio desigual.Posteriormente, o foco de ateno se desloca para os fenmenos internos daeconomia dependente, para prosseguir depois na linha metodolgica jindicada. Dado o nvel de abstrao do ensaio, preocupei-me to somente, aodesenvolver o tema do intercmbio desigual, do mercado mundial capitalista emseu estado de maturidade, isto , submetido plenamente aos mecanismos de

    acumulao de capital. Convm, entretanto, indicar aqui como essesmecanismos se impem.

    A diversidade do grau de desenvolvimento das foras produtivas naseconomias que se integram ao mercado mundial implica diferenas significativasem suas respectivas composies orgnicas do capital, que apontam paradistintas formas e graus de explorao do trabalho. A medida que o intercmbioentre elas vai se estabilizando, tende a se cristalizar um preo comercial cujotermo de referncia , mais alm de suas variaes cclicas, o valor das

    mercadorias produzidas. Em consequncia, o grau de participao no valorglobal realizado na circulao internacional maior para as economias decomposio orgnica mais baixa, ou seja para as economias dependentes. Emtermos estritamente econmicos, as economias industriais se defrontam comessa situao recorrendo a mecanismos que tem como resultado extremo asdiferenas iniciais em que se dava o intercmbio. E assim como lanam mo doaumento da produtividade, com o fim de rebaixar o valor individual dasmercadorias em relao ao valor mdio em vigor e de elevar, portanto, suaparticipao no montante total de valor trocado. Isso se verificada tanto entre

    produtores individuais de uma mesma nao quanto entre as naescompetidoras. Entretanto, esse procedimento, que corresponde ao intento deburlar as leis do mercado mediante a aplicao delas mesmas, implica aelevao de sua composio orgnica e ativa a tendncia queda de sua taxa

    Dialtica da Dependncia http://www.marxists.org/portugues/marini/1973/mes/dialetica.ht

    28 de 40 16/06/2014 17:20

  • 5/24/2018 Dial tica Da Depend ncia

    29/40

    de lucro, pelas razes assinalas em meu ensaio.

    Como se viu, a ao das economias industriais repercute no mercadomundial no sentido de inflar a demanda de alimentos e de matrias primas, masa resposta que lhe d a economia exportadora rigorosamente inversa: em vezde recorrer ao aumento da produtividade, ou mesmo faz-lo com carterprioritrio, ela se vale de um maior emprego extensivo e intensivo da fora detrabalho; em consequncia, baixa sua composio orgnica e aumenta o valordas mercadorias produzidas, o que faz elevar simultaneamente a mais-valia e olucro. No plano do mercado, leva a que melhorem em seu favor os termos dointercmbio, onde havia se estabelecido um preo comercial para os produtosprimrios. Obscurecida pelas flutuaes cclicas do mercado, essa tendncia semantm at a dcada de 1870; o crescimento das exportaes latino-americanas conduz, inclusive, a que comecem a se apresentar saldos favorveisna balana comercial, que superam os pagamentos por conceito de amortizao

    e juros da dvida externa, o que est indicando que o sistema de crditoconcebido pelos pases industriais, e que se destinava primariamente afuncionar como fundo de compensao das transaes internacionais, no suficiente para reverter a tendncia.

    evidente que, independentemente das demais causas que atuam nomesmo sentido e que tm a ver com a passagem do capitalismo industrial etapa imperialista, a situao descrita contribui para motivar as exportaes decapital para as economias dependentes, uma vez que os lucros so ali

    considerveis. Um primeiro resultado disso a elevao da composioorgnica do capital em ditas economias e o aumento da produtividade dotrabalho, que se traduzem na baixa do valor das mercadorias que (se nohouver a superexplorao) deveriam conduzir baixa da taxa de lucro. Emconsequncia, comeam a declinar intencionalmente os termos do intercmbio,como se indica em meu ensaio.

    Por outra parte, a presena crescente do capital estrangeiro nofinanciamento, na comercializao e, inclusive, na produo dos pasesdependentes, assim como nos servios bsicos, atua no sentido de transferirparte dos lucros ali obtidos para os pases industriais; a partir de ento, omontante do capital cedido pela economia dependente por meio das operaesfinanceiras cresce mais rapidamente do que o saldo comercial.

    A transferncia de lucros e, consequentemente, de mais-valia para ospases industriais aponta no sentido de formao de uma taxa mdia de lucroem nvel internacional, liberando, portanto, o intercmbio de sua dependnciaestrita em relao ao valor das mercadorias; em outros termos, a importncia,que, na etapa anterior, tinha o valor como regulador das transaesinternacionais cede progressivamente lugar primazia do preo de produo (ocusto de produo mais o lucro mdio, que, como vimos, inferior mais-valia, no caso dos pases dependentes). Somente ento se pode afirmar

    Dialtica da Dependncia http://www.marxists.org/portugues/marini/1973/mes/dialetica.ht

    29 de 40 16/06/2014 17:20

  • 5/24/2018 Dial tica Da Depend ncia

    30/40

    que (apesar de seguir estorvada por fatores de ordem extraeconmica, comopor exemplo, os monoplios coloniais) a economia internacional alcana suaplena maturidade e faz jogar em escala


Recommended