Transcript
  • Ao lado de grandes filsofos do sculo XVIII, como Rousseau e Voltaire, Diderot tambm fez suas incurses pelo teatro. Neste seu Discurso sobre a Poesia Dramtica, faz um tratado sobre a dramaturgia da poca. Sob a forma de uma carta ao leitor, ele combate o teatro clssico francs que, com seus cenrios, figurinos e convenes, restringe a liberdade do dramaturgo. Defende com isso uma volta pureza esttica dos espetculos gregos, onde o nico recurso dos atores era seu prprio talento; onde o "poeta dramtico" era, antes de tudo, um filsofo; onde o objetivo final era revelar ao espectador a natureza humana e, assim, reconcili-lo com sua prpria espcie.

    DISCURSO SOBRE A

    OESIA DRAMTICA DENIS DIDEROT

    Traduo, apresentao e notas: L. F. Franklin de Matos

  • l 1 I.

    APRESENTAO Filosofia e teatro em Diderot

    Chinita.

    I Em 1758, Diderot j tem alguma celebridade em toda a

    Europa, identificado como das mais ilustres figuras do cha-mado "partido dos filsofos". Tal identificao no se deve tanto aos livros que publicou at ento (um dos quais lhe valeu o embastilhamento ), mas sobretudo atividade que h alguns anos o ocupa integralmente: a direo da Enciclopdia. Preci-samente nesta altura, o grande projeto de reordenamento do conhecimento humano vive um dos seus momentos mais deli-cados: D 'Alembert, o mais prximo colaborador de Diderot, acaba de deixar o empreendimento, Rousseau far o mesmo dentro em pouco e, no ano seguinte, o Conselho do Rei revo-gar o privilgio de impresso da Enciclopdia. Ora, apesar dos sucessivos "aborrecimentos", Diderot entrega ao editor uma pea de teatro, O Pai de Familia, publicada juntamente com um pequeno tratado terico que pode ser considerado a Arte Potica do sculo XVIII francs: o Discurso sobre a Poe-sia Dramtica. Alis, essas obras do seqncia a um projeto que o preocupa desde o ano anterior, quando apareceram O Filho Natural, "comdia sria", e Conversaes sobre o Fi-lho Natural, dilogo em 'que Diderot submete reflexo sua experincia de dramaturgo. Pois bem: por que, num instante to decisivo, o filsofo se toma poeta dramtico e, alm disso, exige que o poeta dramtico "sejafilsofo"? 1 Num sculo em

    (1) Diderot (1713-1784). Discurso sobre a Poesia Dramtica. nesta ed .. p. 38.

  • 1 1

    8 DENIS DIDEROT

    que o incansvel Voltaire, gl6riafilosfica de ento, se notabi-lizara como dramaturgo, e o controvertido Rousseau, antes de fixar sua imagem pblica de filsofo, fizera algum nome em Paris como homem de teatro, a pergunta seria certamente despropositai. No o , entretanto, para o leitor moderno, que bem poderia formular a questo sob a forma de uma inquie-tao: ao se fazer dramaturgo e exigir que o dramaturgo fosse filsofo, Diderot no estaria sacrificando a particularidade do teatro ao domnio abstrato da filosofia? Se quisermos respon-der tais questes, ser preciso que tratemos de esclarecer me-lhor o ponto de vista a.partir do qual considera o teatro o di-retor da Enciclopdia. Quem fala nos textos de Diderot sobre poesia dramtica?

    II "Entre uma infinidade de homens que escreveram sobre

    arte potica, trs so particularmente clebres: Aristteles, Horcio e Boileau. Aristteles o filsofo que caminha orde-nadamente, estabelece princpios gerais, deixando as conse-qncias por tirar e as aplicaes por fazer. Horcio o ho-mem de gnio que parece afetar desordem e que fala como poeta, para poetas. Boileau o mestre que procura dar o pre-ceito e o exemplo ao discpulo. " 2

    Esta passagem do Discurso nos permite situar o procedi-mento de Diderot com respeito tradio da qual, em parte, ele se pretende tributrio. Embora Aristteles fosse um dos seus mais decisivos referenciais, nada to estranho postura de Diderot quanto o "esprita de sistema" prprio do filsofo q'ue trabalha "ordenadamente". Para prov-lo, bastaria evo-car a eloqente metfora da "rameira", que abre provocati-vamente O Sobrinho de Rameau. Atravs dela, Diderot se atreve a pensar sua divagao filosfica como uma atividade "dissoluta", a de entregar-se s idias como se assediasse mu-lheres da vida, co"endo atrs de uma, deixando esta por aquela, e aquela, em seguida, por outra. Amante da forma do

    (2) Idem, ibidem, p. 53.

    DISCURSO SOBRE A POESIA DRAMTICA 9

    dilogo, sua ndole gosta de se deixar levar pela vivacida

  • 10 DENIS DIDEROT

    com ditos lapidares, de forma breve e cortante, maneira dos versos clebres de Horcio. Mas este parentesco, invocado, de resto, pela epgrafe do Discurso, no deve ocultar o detalhe de que o lugar que Diderot escolhe para falar nem sempre um s: no raro, ele est sujeito a variaes, estabilizando-se em outra parte e diversificando sua platia. Este tipo de mudana ficar mais patente, por exemplo, no Paradoxo, onde Dide-rot, falando de incio, como homem de teatro, sobre o come-diante e. para o comediante, alarga em seguida o tema e o auditrio, tratando da arte em geral e dirigindo-se ao pintor, ao poeta, ao msico, ao escultor, ao filsofo, e at mesmo ao tribuno e ao estadista. No Discurso, o tom mais aparente o do poeta dramtico, ou melhor, do dramaturgo que reflete sobre a prpria experincia de teatro, mas o personagem que realmente comanda a/ala est em outra parte. No transcorrer do livro, ele raramente deixa os bastidores, mas no captulo final Diderot, fiel sua inclinao de dramaturgo, lhe d um nome e um oficio: trata-se de Aristo, o filsofo. Esboando o perfil deste personagem, ser possvel esclarecer de vez o pon-to de vista a partir do qual Diderot aborda a questo do teatro.

    Em primeiro lugar, preciso observar que, muito embora o procedimento que desce do geral ao particular seja estranho a Aristo, nada mais equivocado do que atribuir a este filsofo, como fez o Abade de la Porte, a etiqueta do ceticismo. 4 A recusa das regras e convenes arbitrariamente codificadas nas poticas clssicas no implica a renncia dos princpios universais: no seu longo solilquio, Aristo contesta veemente-mente a postura do ctico e se ocupa em buscar, a partir da diversidade inesgotvel da Natureza, as idias reguladoras de Verdade, Bondade e Beleza. Mas o decisivo para a compreen-so deste personagem no o tema - to velho como a pr-pria Filosofia - da cumplicidade entre estas instncias, mas a maneira de compreend-las e articul-las. Nas primeiras p-ginas do Discurso, Diderot atribui ao filsofo uma misso: a de convocar os "homens de gnio", poetas, pintores ou m-sicos, ''para nos fazer amar a virtude e odiar o vcio''. 5 A a/ir-

    (4) Abade de la Porte, "Carta IX: Discurso da Poesia Dramtca, por Dide-rot", nesta edio, p. 141.

    (5) Diderot, Discurso, p. 43.

    DISCURSO SOBRE A POESIA DRAMTICA 11

    mao sugere que a atividade do filsofo deve ser pensada menos em funo do procedimento ordenado e rigoroso do que do privilgio concedido Bondade, vale dizer, esfera moral. Como dissera Voltaire, o "amante da sabedoria, quer dizer, da verdade" aquele que d aos homens "exemplos de virtude" e "lies de verdades morais ". 6 Entretanto, o que pensa da virtude um filsofo do sculo XVIII? Sem entrar em consideraes minuciosas sobre a complicada aventura deste conceito na obra de Diderot, basta referir a breve definio proposta por ele certa vez: "um sacrifcio de si mesmo". 7 A frmula mais contundente do que a usada por Voltaire no Dicionrio - "beneficncia para com o prximo" - mas am-bas implicam a concepo de que "s verdadeiramente bom para ns aquilo que faa o bem da sociedade''. 8 A virtude, assim, fundamentalmente sociabilidade e, por isso, no Dis-curso, as figuras mais ameaadoras do vcio so a superstio,

    " h ' a hipocrisia e, principalmente, a avareza, por ser estran a a beneficncia". Alis, ao afirmar tais pressupostos, Diderot est apenas fazendo eco clebre frmula da Enciclopdia, segundo a qual o filsofo " um homem que quer agradar e se tornar til". 9 Visto que promover a virtude incitar sociabi-lidade, o lugar de atuao do filsofo se diversifica e ele j no se define como telogo, metafisico ou sbio, mas como "ho-mem de bem ", atualizado com os avanos da cincia, imis-cudo na vida poltica, interessado por todas as querelas que concernem vida social. assim que o filsofo ganha os sa-les, os cafs, as salas de espetculo e, ao faz-lo, mostra que a conexo entre filosofia e sociedade to estreita que poss-vel at mesmo ser Filsofo sem Sab-lo, 10 bastando, para isso, exercer com probidade uma profisso qualquer. queles que se dedicam ao oficio de pintar, fazer versos ou compor m-sica, esta figura exemplar mostra que possvel ser filsofo

    (6) Voltaire, Dictionnaire Philosophique, Paris, Garnier-Flammarion, 1964, p. 313. _ . . G F , (7) Diderot, Eloge de Richardson, in Oeuvres Estht1ques, Pans, arn1er re-res, 1968, p. 31.

    (8) Voltaire, op. cit., p. 371. (9) Dumarsais, Philosophie, in Encyclopdie, Genebra, Pellet, 1778, tomo

    XXV, pp. 667-670. (10) Titulo de uma pea de Sedaine, de 1765.

  • 12 DENIS DIDEROT

    maneira deles: necessrio apenas concorrer com as leis para o bem da sociedade civil.

    Isso bastante para explicar por que Diderot, nas pri-meiras pginas do Discurso, exige que o poeta dramtico "seja filsofo", e por que ele prprio, nos anos 50, se tornou poeta dramtico_; aos seus olhos, uma atividade deveria pro-longar a outra. E de se notar, entretanto, que a necessidade de convocar os "homens de gnio" supe que estes, por uma ra-zo qualquer, estejam fazendo um uso inadequado de seus ta-lentos. De/ato, as artes esto sobrecarregadas por convenes que entravam a atividade do Gnio. A razo para tal no re-mete apenas histria da arte, mas, para alm dela, histria dos costumes, marcada por um extravio que preciso denun-ciar: a civilizao progride s custas de uma despoetizao dos costumes, que leva ao enfraquecimento e amaneiramento ge-rais. Em termos estritos de gosto, esse desvio promove um divrcio entre a arte e a vida civil dos povos ou, numa chave mais geral, entre a arte e a natureza: o convencional se sobre-pe ao natural, o artista se torna incapaz de expressar a natu-reza humana e, portanto, de se pr a servio da virtude. preciso, pois, uma reforma geral do gosto, preciso restituir poesia aquele "algo enorme, brbaro e selvagem" 11 que os an-tigos conheceram. Nesta empresa de resgate, o teatro ocupa um lugar especial: para que o espetculo deixe de produzir somente "essas impresses passageiras que se dissipam na jo-vialidade de uma ceia" e reate com a grandeza do teatro grego, que procurava no apenas divertir os cidados, "mas torn-los melkores ", 12 preciso desembara-lo das regras arbitrrias que o aprisionam. Como j se pode ver, o ponto de vista "filosfico" de Diderot no pretende sacrificar o teatro filosofia, mas restituir ao dramaturgo a liberdade subtrada pelas convenes. Para compreender de vez que esta perspec-tiva preserva escrupulosamente a integridade do espetculo teatral, basta acompanhar mais de perto a questo da reforma do teatro em Diderot.

    (11) Diderot, Discurso, p.109. (12) Diderot, Paradoxe sur /e Comdien, in Oeuvres Esthtiques, pp. 344-345.

    DISCURSO SOBRE A POESIA DRAMTICA 13

    III "Nada sei sobre as regras ( ... ) e menos ainda sobre as

    sbias palavras nas quais foram concebidas, mas sei que so-mente o verdadeiro agrada e toca. Sei ainda que a perfeio de um espetculo consiste na imitao to ~ata de uma ao que o espectador, enganado, sem qualq~er interrupQ, se ima-gina a assistir a prpria ao. Ora, h algo semelhante nas tragdias que nos gabais?" 13

    O fragmento acima faz parte de uma digresso terica do romance Les Bijoux lndiscrets, publicado em 1748. ento que Diderot formula pela primeira vez um programa geral de reforma, identificando o adversrio a ser combatido - a cena contempornea, tributria do teatro clssico francs - e invo-cando a norma histrica que deve presidir a reviravolta - os grandes espetculos da Antiguidade. Enquanto estes adminis-tram um aparato simples, onde "nada vos tira da iluso", aquela padece de uma submisso ao convencionalismo codifi-cado nas poticas sob a forma arbitrria das "regras". as-sim que, na cena moderna, as intrigas so sobrecarregadas e os desenlaces no aparecem como decorrncias necessrias do desenvolvimento, quanto aos dilogos, so enfticos, pouco naturais e no raro usados para transmitir os propsitos espi rituosos do prprio dramaturgo, enfim, o desempenho dos atores e o espetculo em geral so "bizarros" e "extravagan-tes". O teatro moderno sofre, assim, de um defeito geral de verossimilhana e, conseqentemente, incapaz de apagar-se como imitao e infundir uma iluso duradoura sobre o es-pectador. 14

    Como se v, na sua primeira crtica ao teatro moderno, Diderot comea por invocar a regra mais geral e fundamental

    (13) Diderot, Les Bijoux Indiscrets, in Oeuvres, Paris, Gallimard-Pliade, 1951, p. 142.

    (14) No intil observar que essas criticas no conferem qualquer originali-dade pessoal a Diderot. Elas esto mais ou menos disseminadas no "partido dos fil-sofos", como se pode ver na "Carta XVII", Parte II, de La Nouvel/e He/o'ise, de Rousseau, ou na famo$a "Querela dos Bufes" que, no inicio dos anos 50, dividiu Paris entre os defensores da msica francesa e os amantes da msica italiana (a querela permitiu que os filsofos levassem a cabo, no dizer de um estudioso, sua pri-meira campanha pblica "contra a conveno em nome da natureza e contra o cons-trangimento em nome da liberdade na arte").

  • !! 14 DENIS DIDEROT

    da potica clssia francesa: a verossimilhana. Aos seus olhos, a verossimilhana jamais ser uma regra arbitrria, ge-neralizao ilegtima de observaes empricas, mas um prin-

    . cpio fundamental da arte dramtica e, como tal, no h ra-zo para contest-la. Como se ver adiante, o que importa para Diderot so as conseqncias que pode recolher, sobre-tudo no plano da teoria dos gneros, desta invocao da veros-similhana contra o teatro clssico francs. Mas a sua con-cepo do verossmil no exatamente a mesma que vingou entre os preceptistas franceses do sculo XVII. Como sabido, tudo o que se disse sobre o assunto, desde o sculo XVI, est assentado na Potica de Aristteles, que define o verossmil como o "possvel" ou o "impossvel" que ''persuade". Esta definio passar pelas mltiplas leituras do preceptismo ita-liano do sculo XVI e, nos anos seiscentos, prosseguir sua acidentada histria sob as vrias interpretaes dos tericos franceses. Muito embora as vozes discordantes sejam por ve-zes ilustres, triunfa na Frana a concepo que identifica o ve-rossmil "realidade mais comum", ou seja, ao "habitual". 15 O habitual, neste caso, depende do sistema de expectativas daquele pblico que, no seu perfil individual, o sculo XVII chama de honnte homme e, de um ponto de vista coletivo, de la cour et la ville. 16 Para impor-se, entretanto, tal concepo

    Por outro lado, ao publicar O Filho Natural e s Conversaes, Diderot no inova propriamente como dramaturgo, mas como terico do teatro. Antes dele, Ni-velle de la Chausse, na Frana, e Lillo, na Inglaterra, j tinham se esforado por renovar o teatro europeu enquanto dramaturgos. O que novo em Diderot a radi~ calidade com que enuncia as teses no seu dilogo terico, tornando-se, a partir de ento, o grande ponto de referncia de todos aqueles que se empenham na renovao da cena do sculo XVIII (ver, por exemplo, os textos de Lessing na Dramaturgia de Hamburgo, no fim dos anos 60). Mais de um sculo depois, em 1881, Zola lhe atri-buir o mrito de um dos precursores do teatro naturalista.

    (15) Ver Ren Bray, Formation de la Doctrine Classique en Ffance, Paris, Nizet, 1978, pp. 191-214.

    (16) "La cour et la ville significava no sculo XVII aquilo que hoje chamara-mos, talvez, a sociedade culta, ou simplesmente o "pblico". Consistia na nobreza da corte, esfera cujo centro era o rei (la cour) e na alta burguesia parisiense (la ville) que j pertencia em larga medida nobreza togada (noblesse de robe) ou se esforava por entrar nela pela compra de cargos( ... ). La cour et la vil/e a expresso mais usual para os crculos dirigentes da nao imediatamente antes de Lus XIV e durante o seu reinado, especialmente, tambm, a mais corrente para aqueles aos quais se destinam as obras literrias, e ela contrastada com /e peuple no somente aqui, mas tambm

    DISCURSO SOBRE A POESIA DRAMTICA 15

    debateu~se, por exemplo, com outro tpico da Potica de Aris-tteles: a exigncia do "maravilhoso", essencial para o efeito da tragdia, e definido como algo que ocorre "contra o que se espera ". De que maneira ser verossmil, vale dizer, no afron-tar o doxa do honnte homme e, ao mesmo tempo, ser mara-vilhoso, isto , escolher argumentos capazes de interessar e agradar? A alternativa teve tanta importncia que, no por acaso, o captulo mais significativo na histria do conceito de verossimilhana no sculo XVII - a Querela do Cid - ops, de um lado, os tericos do "habitual" e, de outro, um drama-turgo como Corneille, sempre procura do "argumento ge-rador de maravilha ". 11

    Para fazer frente questo, os preceptistas franceses lan-aram mo, entre outras coisas, das idias de verossimilhana ordinria e verossimilhana extraordinria. Mas no nos inte-ressa acompanhar minuciosamente o problema: basta-nos o quadro sumrio do debate no qual opera a concepo didero-tiana do verossmil. Como j se pde ver, Diderot pensa a questo, na maior parte do tempo, pelo vis da idia de iluso: o vero-smil no o prprio verdadeiro, mas aquilo que se parece com ele, provocando em ns uma impresso que o grande segredo da arte em geral. A exigncia de iluso co-manda, assim, todos os juzos de gosto de Diderot. Trata-se de um romance? Diderot escreve pginas exaltadas sobre a incomparvel iluso provocada pelas obras de Richardson e, em breves pinceladas, traa a psicologia do moderno leitor de romance, que trata os personagens do autor ingls como pes-soas de carne e osso, disputando por elas e se descabelando pelos seus destinos. Trata-se de um quadro? Eis Diderot dian-te de uma natureza morta de Chardin, entusiasmado pela im-presso que nos leva a desejar meter a faca no pat, descascar as frutas, tomar o copo e beber o vinho. Trata-se de falar da composio de uma boa pea ou do desempenho de um bom ator? Didefot sentencia: "Quer compondo, quer represen-tando, fazei de conta que o espectador no existe e no penseis

    muito freqentemente em outras ocasies, por exemplo nas disputas acerca do bom uso da lngua." Erich Auerbach, Mimesis, So Paulo, Perspectiva, 1976, p. 326.

    (17) As palavras so de Bray, op. cit.

  • 16 DENIS DIDEROT

    nele em nenhum dos casos. Imaginai no proscnio uma gran-de parede que vos separa da platia e representai como se a cortina no estivesse aberta''. 18 Estes juzos obedecem con-cepo de que a iluso a ''finalidade comum" de todas as artes de imitao. Mas de que depende ela? perguntou-se in-cansavelmente Diderot. A perfeio das obras se mede pelo seu poder de iludir, mas como se deve proceder para garantir este poder?

    No Discurso, a resposta lapidar: a iluso depende "das circunstncias", afirma Diderot. "So as circunstncias que a tornam mais ou menos difcil de ser produzida. " 19 Para bem compreender esta breve definio, nada melhor do que referir o apndice te6rico ao conto Os Dois Amigos de Bourbonne, 20 onde se acha o ideal diderotiano de na"ador moderno. Aqui, Diderot distingue o "conto hist6rico ", praticado por Cervan-tes, Scarron e Marmontel e o "conto maravilhoso", maneira de Homero, Virglio e Tasso. Neste, a verdade "hipottica", afirma ele, e a natureza "exagerada". Sua regra o maravi-lhoso e, por isso, aqui entrando, "colocais os ps numa te" desconhecida, onde nada se passa como naquela que habitais, mas tudo se faz grande, assim como so pequenas as coisas que vos cercam ". No se dir, porm, que este engrandeci-mento nos arraste para os domnios do quimrico. Conforme ensina o Discurso, o maravilhoso no deve ser confundido com o "miraculoso", que a arte sempre dever rejeitar: mira-culosos so "os casos naturalmente impossveis", maravilho-sos, "os casos raros", dos quais o poeta s vezes se apossa para imitar a natureza nos momentos em que esta encadeia "incidentes extraordinrios". 21 Por isso mesmo, o maravi-lhoso no estranho ao conto hist6rico, visto que o poeta tem aqui duas finalidades. De um lado, tomando "por objeto a verdade", elpretende "iludir", ou seja, ''quer que acreditem nele". De utro, "quer interessar, tocar, arrastar, comover, provocar arrepios na pele e lgrimas nos olhos, efeito jamais obtido sem eloqncia e poesia ". Entretanto, uma vez que

    (18) Diderot, Discurso, p. 46. (19) Idem. ibidem, p. 29. (20) Diderot, Les Deux Amis de Boubonne, in Oeuvres, pp. 726 e segs. (21) Ver Discurso, pp. 28e segs.

    i 1

    DISCURSO SOBRE A POESIA DRAMTICA 17

    estas "inspiram desconfiana", porque exageram, encarecem e amplificam as coisas, de que maneira o poeta poder conci-ciliar duas exigncias aparentemente contradit6rias? Reto-mando o impasse nos termos do debate clssico, Diderot dir: "Ele semear sua narrativa de pequenas circunstncias to ligadas coisa, de traos to simples, to naturais, e todavia to difceis de imaginar, que sereis forado a dizer convosco: Por minha f, isto verdade: no se inventam essas coisas. assim que resgatar o exagero da eloqncia e da poesia, que a verdade da natureza cobrir o prestgio da arte, e que ele satisfar as duas condies que parecem contradit6rias, ser ao mesmo tempo historiador e poeta, verdico e mentiroso". 22 O que se diz aqui do narrador pico, guardadas as particula-ridades de cada gnero, vale tambm para o poeta dramtico. Verdico e mentiroso, o poeta ser verossmil e, ao mesmo tempo, maravilhoso, se recorrer s ''pequenas circunstn-cias", "simples", "naturais" e, aparentemente, inimagin-veis. A verossimilhana, a iluso resultam, pois, de um sutil jogo de compensaes entre o comum e o incomum, "a ver-dade da natureza" ocultando do espectador ou do leitor "o prestgio da arte". A originalidade desta concepo no esca-pou, por exemplo, sagacidade de um crtico como Marmou-tel. 23 Sua importncia no pensamento de Diderot pode ser avaliadapelofato de que, nofuturo, ela ser usada para pen-sar no apenas a poesia, mas a arte em geral. "A arte est em misturar circunstncias comuns nas coisas mais maravilhosas e circunstncias maravilhosas nos assuntos mais comuns", dir ele num aforismo escrito j nos anos 70. 24

    Como 6bvio, esta concepo est afinada com o fen-meno da cotidianizao geral da literatura e da arte no sculo XVIII. Mas, em termos estritos de teoria do teatro, em que estas circunstncias triviais se distinguem da "realidade mais comum" e do "habitual", invocados na concepo de verossi-milhana dominante no sculo XVII?

    (22) Diderot, Les Deux Amis, p. 727. (23) Ver Marmontel, "Extrato do Discurso ou Carta ao sr. Grimm", nesta

    edio, p. 170. (24) Diderot, Penses Dtaches sur la Peinture, in Oeuvres Esthtiques,

    p. 831.

  • klL'

    18 DENIS DIDEROT

    Desde Aristteles, o verossmil depende, em ltima ins-tncia, da opinio comum, isto , do pblico. Quando recor-rem quilo que habitual, os preceptistas franceses esto pen-sando, como se viu, no sistema de expectativas do honnte homme do sculo XVII. Ora, se Diderot imputa um defeito de verossimilhana ao moderno teatro francs, de se supor que, ao faz-lo, esteja denunciando um divrcio entre este teatro e o seu pblico. De fato, no difcil provar que o divrcio resulta de uma mudana no pblico: se o espetculo incapaz de persuadir e iludir, porque o perfil do pblico j no o mesmo, embora a cena francesa teime em desconhec-lo. Ao fazer esta denncia, alis, Diderot est apenas reafirmando algo que voz corrente no "partido dos filsofos" e, para mos-tr-lo, bastaria consultar a "Carta XVII", Parte II, de La Nouvelle Helo'ise, de Rousseau. Neste texto, Rousseau comea por assinalar o profundo abismo entre o teatro e a vida civil francesa. Segundo ele, a instituio da tragdia, entre os gre-gos, estava assentada numa slida tradio religiosa e hist-rica. "Mas que me digam", se pergunta em seguida, "que uso tm aqui as tragdias de Corneille e que importam, ao povo de Paris, Pompeu ou Sertrio. " Que verossimilhana e utilidade se pode esperar, pois, de um teatro fundado em argumentos to quimricos? Quanto comdia, que "deveria representar ao natural os costumes do povo para o qual feita '', o quadro tampouco dos mais animadores: "copiam-se no teatro as conversas de uma centena de casas de Paris. Fora disso, nada se aprende sobre os costumes dos franceses. H nesta grande cidade quinhentas ou seiscentas mil almas que jamais esto em questo sobre a cena. Moliere ousou pintar burgueses e artesos tanto quanto marqueses; Scrates fazia falar cochei-ros, marceneiros, sapateiros, pedreiros. Mas os autores de hoje, que so pessoas de outro tom, se acreditariam desonra-dos se soubessem o que se passa no balco de um comerciante ou na oficina de um operrio; eles precisam apenas de inter-locutores ilustres e procuram na condio de seus personagens a elevao que no podem tirar de seu gnio ". 25 Para o que

    (25) Rousseau, La Nouvelle Heloise, Paris, Garnier-Flammarion, 1967, p. 179.

    1.

    DISCURSO SOBRE A POESIA DRA.MTICA 19

    nos importa, este texto clebre bastante claro e no precisa de maiores comentrios. Atribuindo a inverossimilhana e a inutilidade da cena francesa ao seu carter aristocrtico e ao desconhecimento do pblico real para o qual deveria ser feita, Rousseau aponta para o fenmeno da diversificao do p-blico no sculo XVIII. Conforme a palavra de Sartre, "a bur-guesia se ps a ler". 26 O romancista e o poeta dramtico1 as-sim, j no escrevem apenas para os herdeiros do honnte homme do sculo anterior, pblico especializado e formado nas normas do gosto, capaz de controlar a atividade do artista, atravs'de regras explicitamente formuladas, e conhecidas de ambas as partes. Agora, preciso que tambm considerem a demanda dos recm-chegados no circuito da cultura bem-pen-sante. Ainda segundo Sartre, esta "ciso" no pblico to profunda que dela resultar uma crise do ideal de g/6ria lite-rria no sculo XVIII: a partir de ento, o escritor se ver lanado entre o sonho tradicional, o favor dos grandes, e uma ambio mais pedestre, mas no menos almejada: a de que "um obscuro mdico de Bourges" ou "um advogado sem cau-sas de Reims devorem quase secretamente seus livros ".

    Poucos, como Diderot, tero vivido esta crise com tanta exemplaridade: o filho do cuteleiro de Langres no recusar o reconhecimento e a intimidade de Catarina II, mas, no por acaso, Marselha ser a primeira cidade a acolher uma pea como O Pai de Famlia. Pois bem: sobre este novo contin-gente de pblico que se apia a nfase no prosaico donde re-sulta a concepo diderotiana da verossimilhana. As circuns-tncias e os assuntos triviais de que se trata agora j nada tm a ver com o "habitual" de uma arte restrita ao espao da corte. Ao nomear o novo pblico, Diderot ser menos ousado do que o republicano Rousseau, mas nem por isso menos claro: seu espectador ser o homem de letras, o filsofo, o comerciante, o juiz, o advogado, o poltico, o cidado, o magistrado, o fi-nancista, o grande senhor, o intendente, o pai de famlia, o esposo, o filho natural. Este pequeno e seleto contingente, que at ento subira ao palco estigmatizado pelo riso da comdia, agora reivindica, para os seus assuntos domsticos, a di'gni

    (26) Sartre, Qu 'est-ce que la Littrature?, Paris, Gallimard, 1978, p. 124.

  • lU',

    20 DENIS DIDEROT

    dade e o sublime da tragdia. De que maneira Diderot dar voz a este desejo, o que se ver e,m seguida.

    IV "Mais raros e singulares estes casos (os maravilhosos),

    mais (o poeta) precisar de arte, tempo, espao e circunstn-cias para compensar o maravilhoso e fundar a iluso. " 27

    Entretanto, mais do que arte, tempo, espao e circuns-tncias, o poeta precisa, pode-se acrescentar, de liberdade. De fato, a mobilidade de trnsito entre o comum e o inco-mum, essencial para a sua atividade, contestada pelas regras que atravancam a arte teatral. Os gregos no hesitaram em levar cena "os olhos vazados de dipo", "os gritos inarti-culados" de Filoctetes ferido ou "os rastros de sangue" do parricida, guiando a perseguio das Frias. Em nome da na-tureza, no vacilaram diante desses detalhes, por mais ''for-tes" e "violentos" que fossem. Se se atrevesse a tanto, um dramaturgo moderno horrorizaria a delicadeza do espectador e afrontaria a regra do decoro. Contido por tamanha arbitra-riedade, como poderia ele aspirar verossimilhana?

    O mais constrangedor, porm, a servi/idade do teatro teoria clssica dos gneros, que estabelece uma rgida distin-o entre o trgico e o cmico. Sustentando que a tragdia e a comdia representam os homens "melhores " e "piores" do que "ordinariamente so", esta teoria condena o teatro aos extremos e probe que o dramaturgo tome como objeto as "aes mais comuns" da vida, ou seja, aquelas que mais con-cernem o espectador. Nas palavras de Rousseau: obrigado a ficar "entre o defeito e o excesso", o teatro acaba por deixar de lado, como algo intil, "aquilo que ". 28 Assim, quando convoca os dramaturgos, em 1757, a se aproximarem "da ex-perincia cotidiana, a regra invarivel das verossimilhanas

    (27) Diderot, Discurso, p. 34. (28) Rousseau, Lettre D'Alembert, Paris, Garnier'.Fla~marion, 1967, p.

    82. Sobre aquilo que separa Diderot e Rousseau, ver principalmente a nota 10 p. 39 deste volume.

    l 1(

    DISCURSO SOBRE A POESIA DRAMTICA 21

    dramticas ", 29 Diderot os incita sobretudo a exercer a liber-dade de repensar a teoria clssica dos gneros dramticos.

    Como bem frisa Peter Szondi, 30 a conseqncia mais im-portante deste chamamento cotidianizao ser o rompi-mento com a "clusula dos estados", vigente desde a Antigui-dade, e segundo a qual somente heris, prncipes e reis deve-riam ser protagonistas de uma intriga dramtica sria. Por isso, o periodista Frron, adversrio dos filsofos, ao criticar o gnero em que Diderot escrevera o Pai de Famlia, cuida de recorrer autoridade desta clusula. Comeando por supor a "impresso necessariamente fraca" produzida pelo gnero, Frron se pergunta: "De onde provm a fora do interesse que nos despertam os heris nas tragdias? Da superioridade de suas condies e da grandeza de seus perigos '', responde ele. "Trata-se da perda da liberdade, da coroa, da vida, etc. ( ... ) Em geral, uma depravao singular do corao nos torna bem mais sensveis aos lamentos de um homem acima de ns do que aos de um igual ou inferior. A mesma pessoa que olhar dois soldados se batendo se lanar entre dois homens de bem, a fim de separ-los. Deve-se, pois, atribuir natureza que as cenas enternecedoras percam na comdia algo de seu efeito. " 31

    A esta profisso de f nas normas da potica clssica, Diderot j respondera anos antes, nas Conversaes sobre o Filho Natural. Ao contrrio do que se pensa, dissera ento, a fora do interesse que os heris da tragdia despertam em ns no deriva do brilho de suas condies, mas de algo que est para alm desta mera contingncia. O que nos comove na Cena IV, Ato V, da Ifignia de Racine, quando Clitemnestra fala, no o fato de que ela seja rainha de Argos e esposa de Agamenon, general dos gregos, mas "o quadro do amor ma-terno em toda sua verdade". Pela mesma razo, a camponesa que abraa o marido assassinado pelo prprio irmo no menos pattica que a mulher de uma condio superior e, por isso, no menos digna de ser objeto de uma comovente cena

    (29) Diderot, Entretiens sur le Fils Naturel, in Oeuvres Esthtiques, p. 81. (30) Peter Szondi, "Tableau et Coup de Thtre", in Potique, Paris, Seuil,

    1972, n? 9. (31) Frron, "Carta XIII. O Pai de Familia'', neste volume, p.179.

  • r:'

    22 DENIS DIDEROT

    teatral. A mesma situao inspiraria a ambas o mesmo dis-curso, cabendo ao poeta encontrar "o qe todo o mundo diria em semelhante caso". 32 Como se pode ver, Diderot escolhe um exemplo que pertence ao prprio repertrio da tragdia. No contesta o efeito desta, apenas o dissocia da condio das per-sonagens, atribuindo-o a uma razo mais geral. Mas em 1767, no Ensaio sobre o Gnero Dramtico Srio, Beaumarchais re-foraria o argumento e iria mais alm, atentando para os pos-sveis embaraos do brilho da condio. Um grande prncipe, afirma ele, no pice da felicidade, da honra e do xito s pro-voca em seu povo o sentimento estril da admirao; mas se uma desgraa ou infelicidade ameaam perd-lo, o entusiasmo do povo desperta, mostrando o quanto o monarca lhe caro. "O verdadeiro interesse do corao, sua verdadeira relao , pois, de um homem para um homem, e no de um homem para um rei. Por isso, muito longe de aumentar em mim o interesse despertado pelos personagens trgicos, o brilho da condio, ao contrrio, o prejudica. Quanto mais prximo do meu for o estado do homem que padece, maior a influncia de sua desgraa sobre minha alma. " 33

    Nos momentos patticos, ns nos comovemos como ho-mens e no como sditos; nas cenas teatrais, o que nos afeta no a fala dos reis, mas o que "todo mundo" diria em certas circunstncias. O que quer dizer que o objeto do teatro a natureza humana, originariamente boa e que habita igual-mente todos os homens, independentemente do estado que a histria lhes conferiu. Assim, a "depravao singular de cora-o", referida por Frron, depende apenas de uma conveno potica, ou melhor, das "miserveis convenes" que perver-tem a natureza humana: no da ordem da natureza, mas da ordem da histria.

    Em nome da natureza, pois, e contra a histria, preciso que o poeta se libere das convenes que o impedem de se de-bruar sobre "as aes mais comuns" da vida. Que tais aes possuam dignidade dramtica e meream ser tratadas em g-nero parte, bastaria para prov-lo o exemplo do Juiz, pea

    (32) Diderot, Entretiens, pp. 91e99. (33) Beaumarchais, "Essai sur le Genre Drama tique Srieux", in Discours de

    la Posie Dramatique, Paris, Larousse, 1975, p. 130.

    DISCURSO SOBRE A POESIA DRAMTICA 23

    esboada nas primeiras pginas do Discurso: seu interesse e fora dramtica so incontestveis, embora jamais pudesse se acomodar s exigncias da teoria clssica dos gneros. Mas a este argumento emprico, Diderot acrescenta outro, de ordem propriamente "filosfica". No terreno da experincia coti-diana, o dramaturgo no se arrisca a perder d,e vista a natu-reza humana, oculta sob o esplendor do "manto real" ou sob a roupagem diversificada do ridculo. Aqui, a natureza hu-mal)a no cala soco ou coturno, mas se apresenta, nas pala-vras de Diderot, em estado de nu~ez, oferecendo ao poeta exemplos inesgotveis de virtude. E preciso, pois, fundar o gnero srio, ponto intermedirio na escala do sistema dram-tico dividido em comdia sria e tragdia domstica. 34 Ex-clundo o "ridculo que faz rir" e o "perigo que faz fremir", prprios da comdia e da tragdia clssicas, o efeito desse g-nero sobre o espectador ser o enternecimento das lgrimas, a doce emoo provocada pelos exemplos edificantes da virtude. Sentimento estril, descarga afetiva inconseqente, dir-se-. Reafirmando sua crena iluminista na pregao e no exemplo, Diderot replicar: "o sacrifcio de si mesmo, feito em idia, uma disposio preconcebida para imolar-se na realidade''. 35

    V Segundo Diderot, o efeito maior do espetculo teatral o

    de permitir que o homem contemple a bondade da natureza humana e, desse modo, se reconcilie com sua espcie. Para o Sculo das Luzes, nada mais filosfico do que esta misso. Mas o teatro no a filosofia e, se ele quiser estar altura da tarefa, dever preservar intransigentemente a sua prpria identidade: esta uma das acepes maiores da reflexo de Diderot sobre a arte dramtica.

    Poucos filsofos que se interessaram pelo espetculo tea-tral tiveram, como Diderot, tanta intimidade com ele. O Dis-

    (34) O Filho Natural e O Pai de Famlia so comdias srias. Diderot jamais escreveu tragdias domsticas, deixando-nos apenas alguns esboos.

    (35) Diderot, loge de Richardson, p. 31.

  • 24 DENIS DIDEROT

    curso um testemunho do alcance desta intimidade. Nele, o leitor poder acompanhar o diretor da Enciclopdia, to habituado a descrever as tcnicas dos ofcios, montando e des-montando a mquina do teatro, revelando os segredos mais ocultos do seu prprio ofcio. Relojoeiro competente, aqui ele ensina a elaborar o plano de uma pea, ali, a dominar o di-logo, o monlogo, a exposio, o ato, a cena e mesmo o en-treato; mais adiante, ele mostra como desenhar os caracteres e, mais adiante ainda - amante do paradoxo - de que ma-neira e por que razo se deve esquecer o espectador. Mas Di-derot no se satisfaz com a perspectiva estrita do dramaturgo. Para ele, o teatro algo familiar de todos os pontos de vista: na juventude, conheceu atores e atrizes nos bastidores e fora deles, chegou mesmo a considerar o sonho de se tornar come-diante, mas, acima de tudo, foi um freqentador insacivel das salas de espetculo. Acompanhando-o numa de suas evo-caes desta mocidade tumultuosa, podemos distingui-lo em plena platia, surpreendendo os demais espectadores, ao ta-par os ouvidos para melhor fruir gestos e movimentos dos ato-res. A razo desta extravagncia o pressuposto de que ore-curso prprio do teatro o de "colocar em ao sob os meus olhos". A iluso, finalidade comum de todas as artes de imita-o, s ser possvel no teatro se esta particularidade, que o aproxima da pintura, for respeitada escrupulosamente. Deste modo, se quiser que "a iluso no seja momentnea e a im-presso fraca e passageira", o dramaturgo no poder apelar para o "esprito" do espectador, como algum que mexesse com normas morais de carter abstrato e geral. Imitador de aes que o comediante d a ver, o dramaturgo precisa se con-vencer de que seu objetivo dirigir-se sensibilidade da pla-tia, que no deseja ser sobrecarregada com palavras, mas vai ao teatro em busca de "impresses". preciso, pois, que o espetculo teatral assuma sua integridade de aparncia. Fa-zendo uso de sua prtica como crtico de pintura, Diderot pro-curou resgatar a importncia propriamente espetacular do teatro. Por isso, no Discurso, denunciou "a pobreza e falsi-dade dos cenrios" ou "o luxo dos trajes" como sintomas maiores do divrcio entre o teatro e a verdade, restabelecendo a importncia do cengrafo e do figurinista; ou ento, atento aos detalhes aparentemente mais desimportantes, exigiu que

    DISCURSO SOBRE A POESIA DRAMTICA 25

    o poetq dramtico fosse "fisionomista", isto , que criasse seu personagem e, ato contnuo, imaginasse um rosto para ele. Mais eloqente, porm, foi o incansvel combate de Diderot contra um teatro de grandes poetas, equivocadamente sedu-zido por achados poticos e tiradas declamatrias: contra a reduo do teatro poesia, Diderot insistiu na prosificao do texto dramtico, mas, sobretudo, na multiplicao das cenas pantommicas, na notao de caaa detalhe das atitudes e das expresses, na incluso, por entre a trama do dilogo, de ver-dadeiras cenas mudas - quadros - onde o gesto mais elo-qente do que a palavra. Neste esforo de pensar o teatro em toda sua riqueza e potencialidade visuais, no de se espantar que um dia, ao escrever o Paradoxo, Diderot fosse levado a considerar o espetculo a partir do comediante, exaltando no talento deste a apoteose da aparncia.

    L. F. Franklin de Matos

  • 1

    1 '1 ll

    1 '>

    1

    ~' 1

    j) J

    Da poesia dramtica

    Ao Senhor Grimm 1

    ........................ Vice cotis acutum Reddere quae ferrum valet, exsors ipsa secandi.

    Horat.,DeArtePoet. 2

    1. Dos gneros dramticos

    Se um povo no conhecesse seno um gnero de espet-culo, prazeroso e alegre, e se lhe fosse proposto um outro, srio e comovente, sabeis, meu amigo, o que pensaria ele a respeito? Muito me engano ou, aps conceber essa possibili-dade, os homens sensatos certamente diriam: "Para que este gnero? No bastassem os males reais que a vida nos causa, querem ainda nos fazer outros imaginrios? Por que admitir a

    (1) Melchior Grimm (1723-1807), como agente de algumas cortes europias, celebrizou-se pela edio de uma revista confidencial, hoje conhecida como Corres-pondncia ( 1754-1782), cuja finalidade era informar sobre a vida literria, artstica e filosfica de Paris. Diderot foi o mais importante colaborador da revista, nela publi-cando, em primeira mo, grande parte de sua obra. (N. T.)

    (2) "Farei o trabalho da pedra de amolar, que no tem fio para cortar, mas capaz de dar gume ao ferro." Horcio, Arte Potica, versos 304-305 (So Paulo, Ed. Cultrix-EDUSP, p. 64, trad. de Roberto de Oliveira Brando). Diderot parece adver-tir seu leitor sobre algo que hoje salta aos olhos: suas peas (O Filho Natural, O Pai de Famlia) no tm a mesma envergadura dos manifestos tericos que as acompanha-ram em publicao (as Conversaes sobre o Filho Natural e o Discurso). (N. T.)

  • 36 DENIS DIDEROT

    tristeza at em nossos divertimentos?". Falariam como pes-soas estranhas ao prazer de se enternecer e derramar l-grimas. 3

    O hbito nos toma cativos. Surgiu um homem com uma centelha de gnio? Produziu alguma obra? A princpio, ele surpreende e divide os espiritos; pouco a pouco, os rene; logo seguido por uma multido de imitadores: os modelos se mul-tiplicam, as observaes se acumulam, colocam-se regras, a arte nasce e seus limites so fixados. Proclama-se que extra-vagante e ruim tudo o que no cabe no estreito recinto tra-ado. So as colunas de Hrcules: 4 no se ir alm, sob pena de extravio.

    Mas nada prevalece sobre o verdadeiro. O que ruim passa, apesar do elogio da imbecilidade, e o que bom per-manece, apesar da vacilao da ignorncia e do clamor da inveja. O deplorvel que os homens s obtm justia quando j no vivem. Somente depois de serem atormentados em vida, algumas flores inodoras so lanadas sobre suas sepulturas. Que fazer, pois? Sossegar, ou resignar-se a uma lei que sub-meteu outros, melhores do que ns? Desgraado daquele que se entregar com afinco a uma ocupao, se o trabalho no for a fonte de seus mais doces momentos, e se ele no for capaz de satisfazer-se com poucos sufrgios! O nmero de bons juizes limitado. meu amigo, quando tiver publicado algo - seja o esboo de um drama, uma idia filosfica, um fragmento de moral ou de literatura, pois meu espirito espairece com ava-riedade - irei ter convosco. Se minha presena no vos for importuna, se vierdes ao meu encontro com um ar satisfeito, esperarei pacientemente que o tempo e a eqidade, sempre trazida pelo tempo, venham apreciar a minha obra. 5

    (3) Efeito prprio do gnero srio. Segundo Dorval, alter ego de Diderot nas Conversaes, tal efeito se distingue do "perigo que faz fremir" e do "ridiculo que faz rir", prprios da tragdia e da comdia clssicas: "Em todo objeto moral se distin-guem um meio e dois extremos. Sendo toda ao dramtica um objeto moral, pa-rece-me, pois, que deveriam existir um gnero mdio e dois gneros extremos". Con-versaes, in Oeuvres Esthtiques (ed. Paul Vemire), Paris, Garnier-Frres, 1968, pp. 135-136. (N:T.)

    (4) Nome dado, na Antiguidade, ao estreito de Gibraltar. A expresso, bas-tante comum, significa "mundo conhecido". (N. T .)

    (5) Do ponto de vista biogrfico, o pargrafo que se acaba de ler est marcado pela decepo de Diderot com o mau acolhimento de O Filho Natural, no ano ante-

    ~)

    DISCURSO SOBRE A POESIA DRAMTICA 37

    Se existe um gnero, dificil introduzir um novo. este introduzido? Outro preconceito: logo se imagina que os dois gneros adotados so vizinhos e se tocam.

    Zeno negava a realidade do movimento. Como nica resposta, seu adversrio se ps a andar e mesmo que tivesse apenas coxeado, ainda assim teria respondido. 6

    Tentei dar, em O Filho Natural, a idia de um drama situado entre a comdia e a tragdia.

    O Pai de Familia, que ento prometi, 7 e que foi retardado por continuas distraes, situa-se entre o gnero srio de O Filho Natural e a comdia.

    E se algum dia tiver tempo e coragem, espero compor um drama que se ache entre o gnero srio e a tragdia.

    Quer se reconhea nestas obras algum mrito, quer no se lhes conceda nenhum, elas sempre demonstraro no ser quimrico o intervalo que eu percebia.entre os dois gneros estabelecidos.

    II. Da comdia sria

    Eis, pois, o sistema dramtico em toda sua extenso. A comdia jocosa, que tem por objeto o ridiculo e o vicio, a co-mdia sria, que tem por objeto a virtude e os deveres do ho-mem. A tragdia que teria por objeto nossas desgraas doms-ticas e a tragdia que tem por objeto as catstrofes pblicas e as desgraas dos grandes.

    rior. Salvo o exagerado elogio de Grimm na Correspondncia, a pea despertou a frieza de Voltaire e as criticas virulentas dos adversrios dos filsofos; alm disso, o ator Grandval, para quem Diderot reservara o papel de Dorval, considerou o drama irrepresentvel. A Comdie Franaise s6 vir a acolher a pea em 1771. (N. T.)

    (6) Zeno de Elia teve notoriedade em 464-461 a.e. Discipulo de Parmni-des, provou a impossibilidade do movimento atravs d uma srie de paradoxos c-lebres (o da flecha e Aquiles e o da tartaruga so os mais conhecidos). A anedota referida por Diderot extrada da Vida dos Fil6sofos de Digenes Larcio: diante de um discipulo de Zeno, que negava o movimento, Digenes, o Cinico, levantou-se e comeou a andar. (N. T.)

    (7) Aluso ao final das Conversaes, onde Dorval anuncia o projeto de O Pai de Famlia: se O Filho Natural "tem nuanas de tragdia", a nova pea "ter um colorido cmico". (N. T.)

  • 38 DENIS DIDEROT

    Mas quem nos pintar com vigor os deveres do homem? Quais sero as qualidades do poeta a se propor essa tarefa?

    Que ele seja filsofo, que tenha mergulhado em si mesmo, vendo desse modo a natureza humana, que se instrua profun-damente sobre os estados em que se divide a sociedade, co-nhecendo-lhes bem as funes e o peso, os inconvenientes e as vantagens. 8

    "Mas como encerrar nos estreitos limites de um drama tudo o que pertence condio de um homem? Que intriga poderia abranger este objeto? Em tal gnero, sero feitas da-quelas peas que chamamos episdicas: cenas episdicas suce-dero cenas episdicas e descosturadas ou, no mximo, liga-das por uma pequena intriga serpenteando entre elas. Mas sem unidade, com pouca ao e nenhum interesse. Cada cena reunir os dois pontos to recomendados por Horcio, 9 mas no haver conjunto e o todo ser desprovido de consistncia e energia."

    Se as condies dos homens nos proporcionam peas como Os Jmportunos de Molire, por exemplo, j alguma coisa: mas creio que disso se pode tirar melhor partido. Nem todas as obrigaes e inconvenientes de um estado tm igual importncia. Parece-me que podemos nos aplicar aos princi-pais, fazer destes a base da obra e deixar o resto para os de-talhes. o que me propus em O Pai de Famlia, onde o esta-belecimento do filho e da filha o meu grande eixo. A for-tuna, o nascimento, a educao, os deveres dos pais para com os filhos e dos filhos para com os pais, o matrimnio, o celi-bato, tudo o que se refere condio de um pai de famlia transmitido pelo dilogo. Se um outro entrar na lia, tendo o talento que me falta, vereis o que ser seu drama.

    (8) Por oposio comdia clssica, centrada nos caracteres, a comdia sria tem como objetivo a pintura das condies. Dorval: "At o momento, na comdia, o carter tem sido o principal objeto, e a condio apenas o acessrio; preciso que a condio se torne hoje o principal objeto, e que o carter seja apenas o acessrio. ( ... ) B a condio, seus deveres, suas vantagens, suas dificuldades que deve servir de base obra. Parece-me que esta fonte mais fecunda, mais extensa e mais til que a dos caracteres. Por menos carregado que seja o carter, um espectador pode dizer-se consigo: no sou eu. Mas no pode fingir que a condi5o desempenhada diante dele no seja a sua; no pode desconhecer os seus deveres. E preciso absolutamente que se aplique ao que ouve". Conversaes, op. cit., p. 153. (N. T.)

    (9) Diderot refere-se unidade de ao e unidade de tom. (N. T .)

    1

    ,

    '

    DISCURSO SOBRE A POESIA DRAMTICA 39

    As objees contra este gnero s provam uma coisa: que ele no de fcil manejo e nem pode ser obra de uma criana; supe mais arte, conhecimentos, gravidade e fora de esprito, do que possuem comumt'.nte aqueles que se consagram ao teatro.

    Para bem julgar uma produo, no preciso referi-la a uma outra produo. Foi assim que se enganou um de nossos primeiros crticos. Disse ele: "Os antigos no tiveram pera; portanto, a pera um mau gnero". Mais circunspecto ou mais instrudo, talvez dissesse: "Os antigos possuam apenas uma pera; portanto, nossa tragdia no boa". Fosse lgico melhor, no faria nem um, nem outro raciocnio. Pouco im-porta que haja ou no modelos subsistentes. Existe uma regra anterior a tudo e j havia a razo potica, quando ainda no existiam poetas. Caso contrrio, como se teria julgado o pri-meiro poema? Era bom porque agradou? ou agradou, porque era bom?

    Para o poeta dramtico, os deveres dos homens consti-tuem um filo to rico quanto seus vcios e ridculos. As peas honestas e srias sempre alcanaro xito, mas certamente ainda mais entre povos corrompidos do que em outra parte. Indo ao teatro eles se esquivaro da companhia dos perversos que os cercam; l que encontraro aqueles com quem gos-tariam de viver; l que vero a espcie humana tal qual , reconciliando-se com ela.10 As pessoas de bem so raras, mas

    (10) Partindo do postulado de que a natureza humana originariamente boa, sendo corrompida pela histria, Diderot pretende que o teatro faa apelo a esta bon-dade e promova a reconciliao do homem consigo mesmo (ver Introduo a este volume). Ao longo de toda sua evoluo, a obra de Diderot resguardar este ideal. Em O Filho Natural, por exemplo, l-se: "Nada cativa mais fortemente do que o exemplo da virtude, nem mesmo o exemplo do vcio" (Ato IV, Cena 3). Nas Conver saes, por outro lado, Dorval afirma: "Vejo a verdade e a virtude como duas grandes esttuas elevadas sobre a superficie da terra, e imveis em meio devastao e s runas de tudo o que as cerca. Por, vezes, estas grandes figuras cobrem-se de nuvens. Ento, os homens se movem nas trevas. So os tempos da ignorncia e do crime, do fanatismo e das conquistas. Mas chega o momento em que a nuvem se entreabre e, ento, os homens prosternados reconhecem a verdade e rendem homenagem vir-tude. Tudo passa, mas a virtude e a verdade permanecem" (pp. 127-128). Anos de-pois, o Paradoxo sobre o Comediante, que contesta no poucas teses defendidas nos anos 50, sustenta o mesmo argumento: "B principalmente quando tudo falso que se ama o verdadeiro, principalmente quando tudo est corrompido que o espetculo mais depurado. O cidado que se apresenta porta da Comdie deixa ai todos os seus vcios, para retom-los apenas sada. L dentro, ele justo, imparcial, bom pai,

  • i' 1 il

    l

    40 DENIS DIDEROT

    existem. Aquele que assim no pensa acusa-se a si prprio, mostrando como infeliz junto da mulher, dos pais, dos ami-gos, dos conhecidos que tem. Algum me dizia um dia, aps a leitura de uma obra honesta que deliciosamente o absorvera: ''parece que fiquei s". A obra merecia o elogio, mas os ami-gos no mereciam a stira.

    Ao escrever, deve-se sempre ter em vista a virtude e as pessoas virtuosas. Quando tomo da pena, sois vs, meu ami-go, que evoco e, quando ajo, sois vs que tenho diante dos olhos. a Sofia 11 que pretendo agradar. Se me sorrides, se ela derrama uma lgrima, se ambos me tm mais afeio, sinto-me recompensado.

    bom amigo, amigo da virtude; vi muitas vezes ao meu lado alguns perversos pro-fundamente indignados contra aes que no deixariam de cometer se se .encontra~sem nas mesmas circunstncias em que o poeta colocara a personagem que abomi-navam" (Paradoxe, in Oeuvres, p. 354). .

    Rousseau (1712-1778) aproveitar a "deixa" e, fundado no mesmo princpio geral de bondade da natureza humana, mostrar o carter no necessrio deste ideal pedaggico iluminista. Desde o Discurso sobre a Desigualdade, Rousseau assinalava que "se v todos os dias em nossos espetculos enternecer-~e e chorar por cau~a das infelicidades de um desgraado aquele mesmo que, se estivesse no lugar do tirano, agravaria ainda mais os tormentos de seu inimigo" (Discurso, Paris, Garnier-Flam-marion, 1971, p. 197). Aqui, a razo deste efeito atribuda "fora da piedade natural", "puro movimento da natureza, anterior a toda reflexo". Na Carta a D'A/embert, a argumentao se aperfeioa e este efeito visto como "piedade est-ril". Nas querelas em que somos "meros espectadores" (como no teatro), "tomamos o partido da justia", mas quando nossos interesses (ou seja, o amor-prprio) intervm, preferimos o mal ao bem. O amor do belo moral natural no homem, "no nasce de um arranjo de cenas" e nos leva a praticar o bem, desde que o amor-prprio, fruto da sociedade, no entre em cena. Rousseau chama assim a ateno para os efeitos fu nestos que o teatro poderia ter sobre os virtuosos: o "efeito de substituio" (segundo Luis Roberto Salinas Fortes, in Paradoxo do Espetculo, tese de livre-docncia de-fendida na USP em 1983, indita) - a prtica imaginria do bem desobrigaria sua prtica real. "No fundo, quando um homem foi admirar belas aes em fbula~ e chorar desgraas imaginrias, que mais se pode exigir dele? No est contente consigo mesmo? No se aplaude por possuir uma bela alma? Com a homenagem que acaba de prestar virtude, no se desobrigou de tudo quanto deve a ele? Que desejariam que ainda fizesse? Que ele prprio a praticasse? Ele no tem nenhum P,apel a desem-penhar, ele no comediante." (Carta, Paris, Garnier-Flammarion, 1967, p. 79).

    Como se v, ningum como Diderot expressou to vigorosamente, em seus desdobramentos teatrais, o ideal pedaggico das Luzes e ningum como Rousseau, contestou mais impiedosamente esse ideal. Sobre o que aproxima e distingue as po-sies de ambos, ver o ensaio de Bento Prado Jr., "Gnese e Estrutura dos Espet culos" in Estudos CEBRAP, 14, So Paulo, Ed. Brasileira de Cincias, 1975. (N. T.)

    '(11) Trata-se de Sofia de Volland, com quem Diderot manteve relaes amo-rosas e trocou uma farta correspondncia, que se estendeu por aproximadamente trinta anos. (N. T.)

    DISCURSO SOBRE A POESIA DRAMTICA 41

    Ao assistir as cenas do campons em O Falso Generoso, 12 afirmei: Eis o que agradar a todo mundo, em todos os tem-pos, arrancando prantos. O efeito confirmou meu juzo. Este episdio pertence inteiramente ao gnero honesto e srio.

    "O exemplo de um episdio feliz no prova nada, dir-se-. Se no interromperdes o discurso montono da virtude com a algazarra de alguns caracteres ridculos e mesmo um pouco forados, como todos fazem, o que quer que afirmeis do gnero honesto e srio, continuarei receando que dele reti-reis somente cenas frias e incolores, uma moral aborrecida e triste e algo como sermes dialogados." 13

    Percorramos as partes de um drama e vejamos. Deve-se julg-lo pelo enredo? No gnero honesto e srio, o enredo no menos importante do que na comdia jocosa, sendo tratado de uma maneira mais verdadeira. Pelos caracteres? Em tal gnero, estes podem ser to diversos e to originais, o poeta sendo obrigado a desenh-los com mais firmeza ainda. Pelas paixes? No gnero srio, mais enrgicas estas se revelarem, maior ser o interesse. Pelo estilo? Este ser mais vigoroso, mais grave, mais elevado, mais violento, mais susceptvel do que chamamos sentimento, qualidade sem a qual estilo algum fala ao corao. Pela ausncia do ridiculo? Como se o desatino das aes e dos discursos, quando sugeridos por um interesse mal compreendido ou pelo arrebatamento da paixo, no fos-se o verdadeiro ridculo dos homens e da vida.

    Fao apelo aos belos trechos de Terncio 14 e pergunto em que gnero foram escritas suas cenas de pais e amantes.

    (12) Pea de Antoine Bret, cuja estria de 1758. Foi proibida por razes politicas ap6s a quinta representao. (N. T.)

    (13) O interlocutor implicito dessa passagem certamente Rousseau, cuja ruptura com Diderot acaba de consumar-se. De fato, a Carta a D'Alembert, publi-cada alguns meses antes do Discurso sobre a Poesia Dramtica (1758), alm de cri-ticar abertamente as teses iluministas, como se viu, polemiza implicitamente com as posies defendidas por Diderot nas Conversaes. O esforo reformador deste des-qualificado sob a idia de "sermo": "Esses defeitos so de tal modo inerentes a nosso teatro, que o desfiguramos ao desejar apart-los dele. Nossos autores moder nos, guiados por melhores intenes, escrevem peas mais purificadas, mas que con seguem com isso? No mais contam elas com o verdadeiro cmico e no produzem efeito. Instruem muito, se quiserem, mas aborrecem ainda mais. Seria melhor recor-rer ao semio" (p. 112). (N. T.)

    (14) Terncio (190-159 a. C.), poeta cmico latino, escravo africano, deixou seis comdias: ndria, Hcira (A Sogra), Heautontimorumenus (O que se Castiga a

  • 42 DENIS DIDEROT

    Se em O Pai de Famlia no estive altura da importn-cia do meu argumento; se seu andamento frio, as paixes loquazes e moralistas; se falta vigor cmico aos caracteres do Pai, do Filho, de Sofia, do Comendador, de Germeuil e de Ceclia, 15 deve-se culpar o gnero ou a mim?

    Que algum se proponha a encenar a condio do juiz e que tea o enredo de uma forma to interessante quanto com-porta e quanto o concebo; que, pelas funes de seu estado, o homem seja obrigado a faltar dignidade e santidade de seu ministrio - desonrando-se aos seus olhos e aos dos outros -ou a sacrificar suas paixes, gostos, fortuna, nascimento, mu-lher e filhos; e proclame-se em seguida, se assim se quiser, que o drama honesto e srio desprovido de calor, colorido e fora.

    Sempre que o hbito ou a novidade tornam incerto meu julgamento - pois um e outro produzem tal efeito - recorro a uma forma de deciso que muitas vezes me proporcionou bons resultados: a de captar os objetos pelo pensamento, transport-los da natureza para a tela e examin-los a esta distncia, onde no esto demasiado longe ou demasiado perto de mim. 16

    Apliquemos aqui este critrio. Tomemos duas comdias, wna no gnero srio, outra no gnero jocoso; montemos, com cada ceria, duas galerias de quadros e vejamos qual percor-reramos por mais tempo e com mais prazer, em qual expe-rimentaramos sensaes mais fortes e agradveis e qual delas seramos levados a revisitar.

    Insisto, pois: o honesto, o honesto. Ele nos comove de forma mais ntima e doce do que aquilo que provoca nosso desprezo e nossas risadas. Poeta, pois sensvel e delicado? Vi-

    Si Pr6prio), O Eunuco, Frmio, Os Adelfos. Diderot considera Terncio, sobretudo pela Hcira, o precursor mais longinquo do drama burgus (ver o principio da ter-ceira parte das Conversaes e o Elogio de Terncio, in Oeuvres, pp. 55-67). (N. T.)

    (15) Principais personagens de O Pai de FamWa. (N. T.) (16) A pintura foi sempre um referencial importante no pensamento de Di-

    derot e tender a s-lo cada vez mais a partir de 1759, quando comea a escrever os seus Sales. Redigidos para a Correspondncia de Grimm, os Sales do conta das exposies parisienses de pintura e inauguram na Frana um novo gnero, a crtica de arte. (N. T.)

    DISCURSO SOBRE A POESIA DRAMTICA 43

    brai essa corda e a ouvireis ressoar ou fremir em todas as almas.

    "A natureza humana portanto boa?" Sim, meu amigo, e muito boa. A gua, a terra, o fogo,

    tudo bom na natureza; o furaco que se ergue no fim do outono sacode as florestas, lanando as rvores umas contra as outras, quebrando e separando os galhos mortos; a tem-pestade que castiga as guas do mar, purificando-as; e o vul-co, que derrama de seu flanco entreaberto ondas de matrias incandescentes, elevando aos ares o vapor que os depura.

    No se deve acusar a natureza humana, mas as miser-veis convenes que a pervertem. Com efeito, o que nos co-move tanto quanto a narrativa de uma ao generosa? E que desgraado ouviria friamente as lamrias de um homem de bem?

    A platia da comdia o nico lugar onde se confundem as lgrimas do homem virtuoso e do perverso. L, o perverso se irrita frente s injustias que cometeria, sente compaixo pelos males que causaria, indignando-se diante de um homem de seu prprio carter. Mas uma vez recebida a impresso, ela em ns permanece, a despeito de ns mesmos: e o perverso deixa o camarote menos inclinado a praticar o mal, como se um orador severo e duro tivesse ralhado com ele.

    O poeta, o romancista, o comediante chegam ao corao de uma forma enviesada e atingem to mais segura e forte-mente a alma, quanto ela prpria se estende e se oferece ao golpe. Os males que me enternecem so imaginrios, admito-o: mas me enternecem. Cada linha de O Homem de Qualida-dade Retirado do Mundo, do Deo de Killerin e de Cleve-land 17 provoca em mim um movimento de interesse pelas des-graas da virtude e me custa lgrimas. Que arte mais funesta do que aquela que me tornasse cmplice do vicioso? Mas, igualmente, que arte mais preciosa que a que me liga imper-ceptivelmente sorte do homem de bem; que me subtrai da situao tranqila e doce de que usufruo, para me fazer ca-

    (17) Romances do Abade Prvost (1697-1763), cujo nome est ligado princi-palmente a A Verdadeira Histria do Cavaleiro Des Grieux e de Manon Lescaut (1731), parte do primeiro romance citado por Diderot. Prvost foi tradutor do ingls Richardson (1689-1761), modelo de rom~ncista segundo Diderot. (N. T .)

  • 1 1

    44 DENIS DIDEROT

    minhar ao lado dele, mergulhar nas cavernas onde se refugia e me associar a todos os reveses pelos quais o poeta se deleita em pr prova sua constncia?

    Oh, quanto bem no se faria aos homens, se todas as artes de imitao tivessem um objetivo comum, colaborando um dia com as leis para nos fazer amar a virtude e odiar o vcio! Cabe ao filsofo convoc-las, cabe a ele dirigir-se ao poeta, ao pintor, ao msico e gritar-lhes fortemente: Homens de gnio, para que fostes dotados pelos cus? Se ele for ou-vido, logo as imagens do deboche j no cobriro as paredes de nossos palcios e nossas vozes j no sero instrumentos do crime, beneficiando-se assim o gosto e os costumes. Cr-se, de fato, que a ao de dois esposos cegos - que ainda se pro-curassem numa idade avanada e, com as plpebras umede-cidas pelas lgrimas de ternura, se apertassem as mos e tro-cassem carcias, por assim dizer, beira do tmulo - no exigiria o mesmo talento e no me despertaria mais interesse que o espetculo dos violentos prazeres que na adolescncia embriagavam seus sentidos ardentes?

    m. De uma espcie de drama moral

    Considerei por vezes que as mais importantes questes de moral poderiam ser debatidas no teatro, nem por isso preju-dicando o ritmo violento e rpido da ao dramtica.

    De que se trataria, com efeito? De dispor o poema de maneira que as coisas ocorressem naturalmente, como acon-tece com a abdicao do imprio em Cina. 18 Assim, um poeta debateria a questo do suicdio, da honra, do duelo, da for-tuna, das dignidades e muitas outras. Nossos poemas ganha-riam desse modo uma gravidade que no tm. Se tal cena for necessria, se provier do fundo, se for anunciada e o especta-dor a desejar, este lhe dar toda a ateno, comovendo-se muito mais do que com essas sentenazinhas alambicadas que compem nossas obras modernas.

    (18) Cina ou A Clemncia de Augusto, tragdia de Pierre Corneille (1606-1684), representada pela primeira vez em 1641. (N. T.)

    f

    1

    DISCURSO SOBRE A POESIA DRAMTICA 45

    No quero sair do teatro levando palavras, mas impres-ses. Raramente se enganar aquele que declarar obra medo-cre um drama do qual sero citados muitos pensamentos sol-tos. Poeta excelente aquele cujo efeito permanece muito tempo em mim.

    poetas dramticos! O verdadeiro aplauso que deveis procurar obter no so as palmas subitamente ouvidas aps um verso rutilante, mas o suspiro profundo que escapa da alma e a alivia, depois da opresso de um longo silncio. 19 Existe uma impresso ainda mais violenta e que vs podereis conceber, se nascestes para vossa arte e adivinhais toda a sua magia: a de submeter o pblico, por assim dizer, a um su-plcio. Os espritos ficam ento transtornados, incertos, inde-cisos, exaltados: como nos tremores de uma parte do globo, vossos espectadores vem vacilar as paredes das casas, sen-tindo a terra fugir-lhes sob os ps.

    IV. De uma espcie de drama fd9sfico

    H uma espcie de drama em que a moral seria apresen-tada diretamente e com xito. Eis um exemplo. Prestai aten-o no que diro nossos juzes: se o considerarem frio, podeis acreditar que no tm energia na alma, nem idia da verda-deira eloqncia, nem sensibilidade, nem entranhas. Quanto a mim, penso que o homem de gnio que dele se apossar no nos dar tempo de enxugar as lgrimas, e a ele deveremos o mais comovente dos espetculos e uma das mais instrutivas e deliciosas leituras a fazer. a morte de Scrates. 20

    A cena se passa numa priso. V-se o filsofo acorren-tado e deitado sobre a palha. Est adormecido. Seus amigos corromperam os guardas e vm, ao despontar do dia, anun-ciar-lhe a libertao.

    (19) Contra um teatro literrio, feito por poetas, que acentua no trabalho do ator a declamao, Diderot valoriza no palco os efeitos propriamente cnicos, como as cenas silenciosas, sustentadas pela pantomima. Da a importncia da figura do comediante na sua teoria dramtica. Ver a Introduo a este volume. (N. T.)

    (20) O argumento que se segue composto a partir de trs dilogos de Plato: Apologia de S6crates, Crito ou O Dever eFdon. (N. T.)

  • 46 DENIS DIDEROT

    Em Atenas, correm rumores por toda parte, mas o ho-mem justo dorme.

    Da inocncia da vida. A um passo da morte, como doce ter vivido bem! Cena primeira.

    Scrates desperta e percebe os amigos, surpreendendo-se por v-los to cedo.

    O sonho de Scrates. Participam-lhe o que puseram em execuo e Scrates

    examina com eles o que lhe convm fazer. Do respeito devido a si mesmo e da santidade das leis.

    Cena segunda. Os guardas chegam, retiram seus grilhes. A fbula sobre a dor e o prazer. Os juizes entram e, com eles, os acusadores de Scrates e

    a multido do povo. Ele acusado e se defende. A apologia. Cena terceira. preciso sujeitar-se ento aos usos: necessrio que as

    acusaes sejam lidas, que Scrates interpele os juizes, os acu-sadores, o povo, acossand,p-os, interrogando-os e responden-do-lhes. preciso mostrar a coisa tal como se passou, o espe-tculo sendo desse modo mais verdadeiro, mais comovente e mais belo.

    Os juizes se retiram, permanecem os amigos de Scrates. Estes pressentiram a condenao. Scrats os entretm e os consola.

    Da imortalidade da alma. Cena quarta. julgado, sua morte lhe anunciada. V a mulher e os

    filhos. Trazem-lhe a dcuta. Ele morre. Cena quinta. apenas um ato; bem-feito, porm, ter quase a exten-

    so de uma pea comum. Que eloqncia no exige ele? que profundidade de filosofia! que naturalidade! que verdade! Captando-se bem o carter firme, simples, tranqilo, sereno e elevado do filsofo, se verificar como dificil pint-lo. A cada momento, deve fazer aflorar nos lbios um sorriso, tra-zendo lgrimas aos olhos. Morreria feliz se cumprisse essa ta-refa tal como a concebo. Disse e repito: se os criticos aqui virem apenas um encadeamento de discursos filosficos e frios, oh, pobres coitados, como os lamento!

    DISCURSO SOBRE A POESIA DRAMTICA 47

    V. Dos dramas simples e dos dramas compostos

    Quanto a mim, dou mais importncia a uma paixo, a um carter desenvolvido aos poucos e acabando por se mos-trar em toda sua energia, do que a essas combinaes de inci-dentes que formam a trama de uma pea na qual personagens e espectadores so igualmente lanados de um lado para o outro. Parece-me que o bom gosto as desdenha e que os gran-des efeitos no se adaptam a elas. Eis, entretanto, o que en-tendemos por movimento. Os antigos tinham outra idia a respeito. Um encadeamento simples, a escolha de uma ao o mais prxima possivel do desenlace, a fim de que tudo ficasse em seu extremo; uma catstrofe sempre iminente e sempre adiada por alguma circunstncia simples e verdadeira; discur-sos enrgicos; fortes paixes; quadros; 21 um ou dois caracteres desenhados com vigor: eis ai todo o seu aparato. Sfocles no precisava de nada mais para transtornar os espiritos. Aquele que no aprecia a leitura dos antigos jamais saber quanto o nosso Racine deve ao velho Homero.

    J no observastes, como eu, que, por mais complicda que seja uma pea, no h ningum que no a domine saida da primeira representao? Os acontecimentos so facilmente lembrados, mas no os discursos, e, uma vez conhecidos os acontecimentos, a pea complicada j no produz efeito.

    Caso uma obra dramtica deva ser representada apenas uma vez e jamais impressa, direi ao poeta: Complicai von-tade; inquietareis e certamente interessareis; mas sede sim-ples, caso desejeis ser lido e permanecer.

    (21) Como bem assinala Peter Szondi, a noo de quadro, fundamental na esttica teatral de Diderot, no pode ser compreendida sem a noo que se lhe ope, a de [a11ce teatral (ver "Tableau et Coup de Thtre", i11 Potique, n? 9, Paris, Seuil, 1972). As citaes abaixo, retiradas das Co11versaes, sugerem em que sentido se deve tomar a oposio: "Um incidente imprevisto que se passa na ao, mudando subitamente o estado dos personagens, um lance teatral. Uma disposio destes personagens em cena, to natural e verdadeira que, fielmente representada por um pintor, me agradaria sobre a tela, um quadro" (p. 88). " preciso se ocupar vigo-rosamente da pantomima; abandonar esses lances teatrais, cujo efeito moment-neo, e sair em busca de quadros. Quanto mais belo um quadro, mais prazer senti-mos." (p. 139) "Sobretudo, negligenciai os lances teatrais; procurai quadros; reapro-ximai-vos da vida real, tende antes de mais nada um espao que permita o exerccio da pantomima em toda sua extenso." (p. 148) (N. T.)

  • 48 DENIS DIDEROT

    Uma bela cena contm mais idias do que todos os inci-dentes que um drama pode oferecer. E s idias que volta-mos, so elas que ouvimos sem cansao e sempre nos como-vero. A cena de Rolando no antro, esperando a prfida An-glica, o discurso de Lusignan filha e o de Clitemnestra a Agamenon sempre me soam como novidades. 22

    Posso admitir que se complique vontade, mas sobre uma mesma ao. quase impossivel conduzir duas intrigas ao mesmo tempo, sem que uma interesse s custas da outra. Quantos exemplos modernos no poderia citar! Mas no quero fazer ofensas.

    H algo mais hbil do que a maneira como Terncio en-trelaou os amores de Pnfilo e de Carino em A ndria? En-tretanto, pde faz-lo sem inconvenientes? No comeo do se-gundo ato no .temos a impresso de entrar numa outra pea? e o quinto, termina ele de uma maneira bem interessante?

    Aquele que se empenha em conduzir duas intrigas- simul-taneamente impe-se a necessidade de resolv-las num mesmo momento. Se a principal terminar primeiro, a outra j no se sustentar. Se, ao contrrio, a intriga episdica abandonar a principal, outro inconveniente: alguns personagens desapare-cem de sbito ou reaparecem sem razo; a obra se mutila ou perde o calor.

    Que seria da pea que Terncio intitulou Heautontimo-rumenus ou O que se Castiga a Si Mesmo se, por um esforo de gnio, o poeta no conseguisse retomar a intriga de Clinia, que se encerra no terceiro ato, reatando-a de Clitifo!

    Terncio transportou a intriga de A Pirntia de Menan-23 -dro em A Andria do mesmo poeta grego, e de duas peas

    simples fez uma composta. Fiz o contrrio em O Filho Natu-

    (22) Diderot cita respectivamente a pera Rolando, de Lulli (1632-1687), cujo libretista foi Quinault (1635-1688); Zara, de Voltaire (1694-1778), e /fignia, de Ra-cine (1639-1699). (N. T.)

    (23) "Fez Menandro a comdia ndria, e Pirintia, / Aquele que tiver conheci-mento I De qualquer delas bom, o ter d'ambas. / De argumento no so mui dife rentes, / Mas feitas e compostas com palavras / Mui diversas, e diferente 'stilo. / Confessa o nosso poeta haver tirado, / E traduzido da Pirintia, e posto / Nesta sua ndria o que foi conveniente." (ndria, Prlogo, So Paulo, Ed. Cultura, 1945, trad. de Leonel da Costa Lusitano) (N. T .)

    1 '),

    ,~\

    l

    ,

    DISCURSO SOBRE A POESIA DRAMTICA 49

    ral. Goldoni 24 juntara numa farsa em trs atos O Avaro de Molire e os caracteres de O Verdadeiro Amigo. 25 Separei es-ses argumentos e fiz uma pea em cinco atos: boa ou m, certo que tinha razo nesse ponto.

    Terncio pretende que, por ter desdobrado o enredo do Heautontimorumenus, sua pea nova. Admito-o. Quanto a ser melhor, j outro problema.

    Se ousasse me desvanecer por alguma habilidade em O Pai de Famlia, seria a de ter atribuido a Germeuil e Cecilia uma paixo que no pode ser confessada nos primeiros atos, tendo-a de tal modo subordinado, em toda a pea, paixo de Saint-Albin por Sofia que, mesmo aps uma declarao, Ger-meuil e Cecilia no podem falar dessa paixo, embora se en-contrem o tempo todo.

    No existe meio-termo: sempre se perde de um lado o que se ganha do outro. Se conseguirdes interesse e rapidez me-diante incidentes que se multiplicam, j no tereis discursos, pois vossos personagens mal tero tempo de falar: em vez de se desenvolverem, agiro. Falo por experincia prpria.

    VI. Do drama burlesco

    A farsa no admite excesso de ao e movimento: que se diria ento de suportvel? A comdia jocosa admite menos, a comdia sria menos ainda, e a tragdia, quase nada.

    Quanto menos verossimil o gnero, mais fcil ser conse-guir rapidez e calor. Obtm-se calor s custas da verdade e do decoro. Nada mais enfadonho do que um drama burlesco e frio. No gnero srio, a escolha dos incidentes torna o calor dificil de ser conservado.

    Entretanto, uma excelente farsa no trabalho para um homem comum. Supe uma graa original e nela os caracteres

    (24) Autor cmico italiano (1707-1793), comps, dentre muitas, a comdia O Verdadeiro Amigo. O periodista Frron (1718-1776), adversrio dos filsofos, pre tendia que O Filho Natural fosse plgio desta obra. (N. T.)

    (25) Diderot deve estar se referindo a A Fora da Amizade, de Luigi Ricco boni (1675-1753), modelo a partir do qual Goldoni escreveu sua pea. (N. T.)

  • I'~

    1

    1

    ! ' 50 DENIS DIDEROT so como o grotesco de Callot, 26 que conserva os principais traos da figura humana. Estropiar desse modo no dado a todo mundo. Engana-se quem acredita que seja muito maior o nmero de homens capazes de fazer Pourceaugnac que O Mi-santropo. 27

    Quem Aristfanes? Um farsista original. Um autor como este deve ser precioso para o governo capaz de us-lo. A ele preciso entregar todos os entusiastas que volta e meia desassossegam a sociedade. Expostos na feira, no enchero as prises.

    Embora o movimento varie segundo os gneros tratados, a ao progride sempre, no se detendo nem mesmo nos en-treatos. uma massa que despenca do topo de um rochedo: sua velocidade aumenta medida que cai, saltando espaa-damente os obstculos que encontra.

    Se for justa a comparao, se for verd;;ide que, havendo menos discurso, haver mais ao, deve-se mais falar do que agir nos primeiros atos e mais agir do que falar nos ltimos.

    VII. Do plano e do dilogo

    Estabelecer o plano mais difcil que dialogar? Muitas vezes ouvi debaterem tal questo e sempre me pareceu que cada um respondia antes segundo seu talento que segundo a verdade da coisa.

    Um homem familiarizado com o comrcio do mundo, que tem facilidade para falar, que conhece os homens, que os estudou e escutou, e que sabe escrever, acha difcil o plano.

    Um outro, dotado de esprito amplo, que meditou a arte potica, que conhece o teatro, a quem a experincia e o gosto indicaram as situaes que interessam, que sabe combinar

    (26) Gravador e desenhista francs (1592-1635), mestre da gua-forte, cujas estampas eram muito procuradas pelos amadores no sculo XVIII. (N. T.)

    (27) O Senhor de Pourceaugnac, farsa de Molire, cuja msica foi composta por Lulli e cuja personagem central prefigura o sr. Jourdain de O Burgus Fidalgo. Ao fazer essa comparao entrePourceaugnac e O Misantropo, comdia que consi-derada a obra-prima de Molire, Diderot polemiza com o finl do Canto III de A Arte Potica, de Boileau (1636-1711), onde se critica duramente o aspecto farsesco do cmico em Molire. (N. T.)

    DISCURSO SOBRE A POESIA DRAMA TICA 51

    acontecimentos, elaborar seu plano com bastante facilidade; mas ter dificuldades com as cenas. Se versado nos melhores autores de sua lngua e das lnguas antigas, ficar ainda me-nos satisfeito com seu trabalho, no podendo se impedir de comparar o que faz com as obras-primas que lhe esto pre-sentes. Trata-se de uma narrativa? A ndria vem-lhe lem-brana. De uma cena de paixo? Por uma delas, O Eunuco oferecer dez, fazendo-o cair em desespero.

    De resto, um e outro so produtos do gnio, mas no do mesmo gnio. o plano que sustenta uma pea complicada; a arte do discurso que nos faz ouvir e ler uma pea simples.

    Assinalarei, entretanto, que existem geralmente mais pe-as bem dialogadas do que peas bem encadeadas. O gnio que dispe os incidentes aparentemente mais raro do que aquele que acha os verdadeiros discursos. Quantas belas ce-nas em Molirel contam-se nos dedos seus desenlaces felizes.

    Os planos so elaborados segundo a imaginao; os dis-cursos, segundo a natureza.

    Uma infinidade de planos pode ser elaborada a partir de um mesmo argumento e conforme os mesmos caracteres. Mas dados os caracteres, a maneira de fazer falar uma s. Vossos personagens tero esta ou aquela coisa a dizer, segundo as si-tuaes em que foram colocados: porm, sendo os mesmos homens em todas estas situaes, elesjamais se contradiro.

    Seramos levados a crer que um drama deveria ser tra-balho para dois homens de gnio: um deles o comporia, o outro faria o dilogo. Mas quem ser capaz de dialogar se-gundo o plano de outrem? O gnio do dilogo no universal. Cada homem se perscruta e sente do que capaz: sem que o perceba, elaborando o plano, procura as situaes das quais espera sair-se bem. Modificadas tais situaes, ele ter a im-presso de que seu gnio o abandona. Para um, convm si-tuaes engraadas, para outro, cenas morais e graves; para um terceiro, ocasies para a eloqncia e o pattico. Dai a Corneille um plano de Racine, a Racine um de Corneille e vereis como se sairo.

    Dotado de um carter sensvel e reto, confesso, meu ami-go, que jamais me assustei com um trecho donde esperava sair recorrendo razo e honestidade. So armas que logo meus

  • 52 DENIS DIDEROT

    pais me ensinaram a manejar; empreguei-as freqentemente contra os outros e contra mim!

    Sabeis que de longa data estou habituado arte do soli-lquio. Voltando para casa triste e pesaroso depois de uma reunio social, retiro-me para minha biblioteca e l me exa-mino e me pergunto: Que tens?... ests de mau humor? ... Sim ... Ests te sentindo mal? ... No ... Acosso-me e arranco de mim a verdade. Tenho a impresso, ai;sim, de que possuo uma alma alegre, tranqila, honesta e serena, que interroga outra, envergonhada por alguma tolice que teme confes~ar. Entretanto, a confisso se d. Se uma tolice que cometi, o que ocorre com bastante freqncia, absolvo-me. Caso se trate de alguma bobagem que algum disse, como acontece comigo ao encontrar pessoas dispostas a abusar da facilidade do meu carter, perdo-a. A tristeza se dissipa. Volto para a famlia, bom esposo, bom pai, bom amo, ao menos assim o imagino; e ningum se ressente de um desgosto que se extravasaria so-bre todos os que se aproximassem de mim.

    Aconselho este exame secreto a todos os que quiserem escrever; certamente eles se tornaro pessoas mais honestas e melhores autores.

    Caso tenha um plano a elaborar, procurarei, sem perce-ber, as situaes que se ajustaro ao meu talento e ao meu carter.

    "Este plano ser o melhor?" Assim me parecer, sem dvida. "Aos outros tambm?" Isto outro problema. Escutar os homens e conversar amide consigo mesmo:

    eis ai os meios para se formar na arte do dilogo. Ter uma bela imaginao; consultar a ordem e a conexo

    das coisas; no temer as cenas diffceis, nem o trabalpo rduo; comear pelo centro do argumento; bem discernir o momento em que a ao deve principiar; saber o que convm deixar para trs; conhecer as situaes que afligem: eis o talento que habilita a elaborar um plano.

    Impor-se principalmente a lei de no lanar ao papel ne-nhuma idia de detalhe, enquanto o plano no estiver termi-nado.

    DISCURSO SOBRE A POESIA DRAMTICA 53

    Como o plano trabalhoso e exige longa meditao, o que ocorre com aqueles que se consagram ao teatro e tm uma certa facilidade para pintar caracteres? Eles tm uma viso geral do argumento, conhecem mais ou menos as situaes; j projetaram os caracteres e ao se dizerem: "Esta me ser co-quete, este pai ser duro, este amante, libertino, esta jovem, sensivel e terna", so dominados pelo furor de fazer as cenas. Escrevem, escrevem., acham idias finas, delicadas, at mesmo fortes; esto de posse de trechos encantadores e j prontos. Mas depois de muito trabalho, voltam acr plano - pois sem-pre se deve voltar a ele - , procuram um lugar para o trecho encantador, e jamais se decidindo a perder essa idia delicada ou forte, faro o contrrio do que deveriam - o plano para as cenas, e no as cenas para o plano. Dai um encadeamento e mesmo um dilogo forados; muito trabalho e tempo perdi-dos, e um monte de cavaco espalhado pela oficina. Que des-gosto, sobretudo tratando-se de uma obra em verso!

    Conheci um jovem poeta no desprovido de gnio, que escreveu mais de trs ou quatro mil versos de uma tragdia que no acabou e jamais acabar.

    VIII. Do esboo

    Assim, compondo em verso ou escrevendo em prosa, fa-zei primeiramente o plano; em seguida, pensareis nas cenas.

    Mas como elaborar o plano? Na potica de Aristteles, h uma bela idia a respeito. Foi-me til, pode s-lo a outros. Ei-la:

    Entre uma infinidade de homens que escreveram sobre arte potica, trs so particularmente clebres: Aristteles, Horcio e Boileau. 28 Aristteles o filsofo que caminha or-denadamente, estabelece principios gerais, deixando as conse-qncias por tirar e as aplicaes por fazer. Horcio o ho-mem de gnio que parece afetar desordem e que fala como

    (28) Diderot se refere Potica, de Aristteles (384-322 a. C.); Epistola ad Pisones, de Horcio (65-8 a. C.), mais conhecida como Ars Poetica; e Arte Potica, de Boileau. (N. T.)

  • 54 DENIS DIDEROT

    poeta, para poetas. Boileau o mestre que procura dar o pre-ceito e o exemplo ao discpulo.

    Aristteles diz em alguma parte de sua potica: 29 Quer trabalhando um argumento conhecido, quer tentando um novo, comeai por esboar a fbula, pensando em seguida nos episdios ou circunstncias que devem estend-la. Trata-se de uma tragdia? Digamos que uma jovem princesa conduzida ao altar para ser imolada, mas subitamente desaparece aos olhos dos espectadores, sendo transportada para um pais onde se costuma sacrificar os estrangeiros deusa l adorada. Ela se torna sacerdotisa. Alguns anos mais tarde, o irmo desta princesa chega ao lugar. capturado pelos habitantes e no momento de ser sacrificado pelas mos da irm, brada: "No bastando que minha irm tenha sido sacrificada, preciso que eu tambm o seja!". Por estas palavras, reconhecido e salvo.

    Mas por que a princesa fora condenada a morrer no altar?

    Por que os estrangeiros so imolados na terra brbara onde o irmo a encontra?

    Como foi capturado? Ele vem por obedincia a um orculo. Por que este or-

    culo? reconhecido pela irm. Mas o reconhecimento no po-

    deria se dar de outra maneira?

    (29) Os pargrafos que se seguem retomam a Potica, de Aristteles: "Quanto aos argumentos, quer os que j tenham sido tratados, quer os que ele prprio invente, deve o poeta (disp-los assim em termos gerais) e s depois introduzir os episdios e dar-lhes a conveniente extenso.

    Que entendo por este "(disp-los) assim (em termos gerais)", vou mostr-lo com o exemplo da lfignia. Certa donzela, no momento de ser sacrificada, desaparece aos olhos dos sacrificadores e, transportada a terra estranha, onde era lei que os forasteiros fossem imolados aos deuses,. ai foi investida do sacerdcio. Pelo tempo adiante, sucedeu que o irmo da sacerdotisa arribou quela terra (que a ordem de vir a este lugar provenha da divindade, com que inteno a divindade o tenha feito, e para que fim ele tenha vindo, tudo isso cai fora do entrecho dramtico). Chegado, preso;mas, quando ia ser sacrificado, foi reconhecido (ou maneira de Eurpedes, ou maneira de Poliido, dizendo Orestes, como plausvel que o dissesse, que no s a irm tivera de ser imolada, mas tambm ele o tinha de ser) e assim ficou salvo" (Potica, XVII, Porto Alegre, Globo, 1966, trad. de Eudoro de Sousa, pp. 87-88). (N. T.)

    DISCURSO SOBRE A POESIA DRAMTICA 55

    Todas essas coisas no fazem parte do argumento. Elas devem preencher a fbula.

    O argumento a todos pertence, mas o poeta dispor do resto segundo sua fantasia; e alcanar mais xito aquele que cumprir a tarefa do modo mais simples e necessrio.

    A idia de Aristteles adequada a todos os gneros dra-mticos. Eis como dela fiz uso.

    Um pai tem dois filhos, um filho e uma filha. 30 A filha ama secretamente um jovem que vive em sua casa. O filho tem uma paixo obstinada por uma desconhecida que viu nos ar-redores. Tentou corromp-la, mas inutilmente. Disfarou-se e estabeleceu-se ao seu lado, sob nome e vestes de emprstimo. Faz-se passar por um homem do povo, exercendo algum ofi-cio como arteso. Supostamente trabalhando de dia, v aquela que ama apenas noite. Mas o pai, atento ao que se passa em casa, fica sabendo que o filho se ausenta todas as noites. Esta conduta, que anuncia o desregramento, inquieta-o: ele espera o filho.

    ento que a pea tem inicio. Que se passa em seguida? Ocorre que essa moa convm

    ao filho; e que, descobrindo ao mesmo tempo que a filha ama o jovem a quem a destinava, o pai lhe concede a sua mo, concluindo, assim, dois casamentos contra a vontade do cu-nhado, que tinha outros planos.

    Mas por que a filha mantm seu amor em segredo? Por que o jovem que ama vive em sua casa? Que faz ai?

    Quem ? Quem a desconhecida por quem est enamorado o fi.

    lho? Como se precipitou no estado de pobreza em que vive? Donde ela? Nascida na provincia, o que a trouxe a Paris

    e o que a retm aqui? Quem o cunhado? Donde provm sua autoridade na casa do pai? Por que se ope a casamentos que convm ao pai? Mas j que a cena no pode se passar em dois lugares,

    como a jovem entrar na casa do pai?

    (30) Segue-se a exposio do argumento de O Pai de Famlia. (N. T.)

  • 56 DENIS DIDEROT

    Como o pai descobre a paixo entre a filha e o jovem que vive em sua casa?

    Que razo tem ele para dissimular seus designios? Como a jovem desconhecida passa a ser-lhe conveniente? Quais so os obstculos criados pelo cunhado contra seus

    projetos? Como se realiza o duplo casamento, apesar dos obst-

    culos? Quanta coisa permanece indeterminada, depois que o

    poeta fez o esboo! Mas eis o argumento e o fundo. dai que ele deve tirar a diviso dos atos, o nmero de personagens, seus caracteres e o assunto das cenas.

    Vejo que este esboo me convm, porque o pai, cujo car-ter me proponho mostrar, ser muito infeliz. Recusar o casa-mento que convm ao filho; a seus olhos, a filha rejeitar o matrimnio que ele deseja; e a suspeita de uma delicadeza reciproca impedir um e outro de se confessarem seus senti-mentos.

    O nmero de meus personagens estar decidido. J no me acho incerto acerca de seus caracteres. O pai ter o carter prprio de seu estado. Ser bom, vi-

    gilante, firme e terno. Para que a alma dele se revele, basta coloc-lo na mais difcil circunstncia de sua vida.

    preciso que o filho seja violento. Mais desatinada uma paixo, menos livre ela deve ser.

    Sua amada jamais ser amvel o bastante. Fiz dela uma criana inocente, honesta e sensivel.

    O cunhado, que meu maquinista, 31 homem de espirito estreito e cheio de preconceitos, ser duro, fraco, malvado, importuno, astucioso, aborrecido, a discrdia da casa, o fla-gelo do pai e dos filhos e a averso de todo mundo.

    Quem Germeuil? o filho de um amigo do Pai de fami-lia, cujos negcios se desregraram, deixando desvalida esta criana. O Pai de familia recebeu-o em casa depois da morte do amigo, educando-o como filho.

    (31) Na edio deJean-Pol Caput, l-se: "Maquinista: aquele que faz progre-dir a ao (sentido figurado)". Ver Discours sur la Posie Dramatique, Paris, La-rousse, "Nouveaux Classiques Larousse''. (N. T.)

    DISCURSO SOBRE A POESIA DRAMTICA 57

    Convencida de que o pai jamais lhe dar este homem por esposo, Cecilia o conservar a grande distncia de si, tra-, tando-o s vezes com dureza; Germeuil se encerrar nos li~ mites do respeito, contido pelo procedimento de Ceclia e pelo temor de faltar ao dever para com o Pai de familia, seu ben-feitor. Porm, as aparncias no sero bem guardadas por ambos e a paixo transparecer, ora nos discursos, ora nas aes, mas sempre de modo incerto e ligeiro.

    Germeuil ter, pois, um carter firme, tranqilo e um pouco fechado.

    E Cecilia ser um misto de altivez, vivacidade, reserva e sensibilidade.

    O tipo de dissimulao que contm os amantes enganar tambm o Pai de famlia. Desviado de seus propsitos por esta falsa antipatia, no ousar propor filha, como esposo, um homem que no mostra a menor inclinao por ela e parece lhe causar repulsa.

    O pai dir: no bastasse atormentar meu filho, negando-lhe a mulher que a


Recommended