Transcript
  • FACULDADES INTEGRADAS DO BRASIL

    ADRIANA INOMATA

    MUTAO CONSTITUCIONAL E A DEFESA DA FORA NORMATIVA DA

    CONSTITUIO: UM ESTUDO NO CONTEXTO DO CONSTITUCIONALISMO

    MODERNO E DO CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORNEO.

    CURITIBA

    2012

  • ADRIANA INOMATA

    MUTAO CONSTITUCIONAL E A DEFESA DA FORA NORMATIVA DA CONSTITUIO: UM ESTUDO NO CONTEXTO DO CONSTITUCIONALISMO

    MODERNO E DO CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORNEO. Dissertao apresentada ao Curso de Ps-Graduao stricto sensu (Mestrado) em Direitos Fundamentais e Democracia, Faculdades Integradas do Brasil, como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Direito. Orientador: Prof. Dr. Paulo Ricardo Schier.

    CURITIBA 2012

  • TERMO DE APROVAO

    ADRIANA INOMATA

    MUTAO CONSTITUCIONAL E A DEFESA DA FORA NORMATIVA DA CONSTITUIO: UM ESTUDO NO CONTEXTO DO CONSTITUCIONALISMO

    MODERNO E DO CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORNEO.

    Dissertao apresentada como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre no curso de Ps-Graduao Stricto Sensu (Mestrado) da Faculdades Integradas do Brasil (UniBrasil), pela seguinte banca examinadora: Orientador: Prof. Dr. Paulo Ricardo Schier Faculdades Integradas do Brasil UniBrasil Membros: Prof. Dr. Gerardo Pisarello

    Universidade de Buenos Aires - UBA Prof. Dr. Philip Gil Frana Pontifcia Universidade do Rio Grande do Sul - PUCRS Profa. Dra. Estefnia Maria de Queiroz Barbosa

    Faculdades Integradas do Brasil UniBrasil Curitiba, 02 de agosto de 2012.

  • Aqueles que fizeram com que todo esforo, sofrimento e tempo dedicados a este trabalho fossem amenizados com palavras e gestos de amor, compreenso e

    cumplicidade: Rafael e Yasmin.

  • AGRADECIMENTOS

    Inicio meus agradecimentos com, na verdade, um desabafo. Conforme as sbias palavras de minha querida colega e professora Claudia Regina Moreira: a gente no termina a dissertao, a gente desiste. Eu desisti. Desisti com a certeza de que sempre haver muito a se fazer, e que o trabalho nunca restar acabado. Porm, reconheo que muitos no desistiram de mim. Estes merecem muito mais do que minhas sinceras palavras, merecem meu carinho e minha gratido eterna. Primeiramente, agradeo s pessoas mais importantes de minha vida, aquelas que fazem tudo valer a pena: meu companheiro Rafael e minha amada filha Yasmin. Agradeo a pacincia e a compreenso pelos finais de semana de afastamento, pelas noites mal dormidas e o consequente mau humor, enfim, por estarem ao meu lado sempre e com muita ternura e muita maturidade. Agradeo aos meus poucos, mas valiosos amigos, que sempre me incentivaram e acreditaram em mim muito mais do que eu mesma. Safira Oratto Merelles do Prado, minha irm de alma que durante esses ltimos dez anos sempre esteve ao meu lado, muitas vezes me carregando, nos momentos em que mais precisei. Joelma Cavalheiro, pelo incentivo, pela pacincia em me ouvir e me ajudar e, como no poderia esquecer, pelas timas risadas compartilhadas. Gisele Echterhoff pela amizade sincera e acolhedora. Daniela Musskopf pela amizade e companheirismo acadmico de anos. Carolina de Freitas Paladino, pela amizade, pelo incentivo, pela orientao acadmica e pela preciosa ajuda no emprstimo de livros na PUC/RS. Enfim, a todos aqueles que me ajudaram com suas palavras de conforto e nimo. Agradeo s queridas secretrias do Mestrado da UniBrasil, Jacira Silva e Rafaela Abreu por todos os galhos quebrados. Agradeo tambm profa. Carol Proner, pelo trato sempre humano e amvel. Enfim, agradeo aos professores do Mestrado em Direito da UniBrasil, pelo timo, produtivo e engrandecedor convvio, por todos, profa. Estefnia Barbosa, pelas belas contribuies em suas aulas, por todas as orientaes no corredor e pelas palavras de conforto; Profa. Eneida Desiree Salgado, por todas as orientaes e, por ltimo, um especial agradecimento ao meu querido orientador prof. Paulo Ricardo Schier, a quem cabe a culpa por hoje eu ser uma professora apaixonada pelo Direito Constitucional. Humano, inteligente, dedicado e acessvel.

  • RESUMO

    As constituies tem pretenso de permanncia, mas ao mesmo tempo no podem pretender ser eternas, uma vez que, como um organismo vivo, esto em constante transformao, devido a interao com a realidade. Classicamente, as constituies escritas podem ser atualizadas de duas formas: via um procedimento formal e solene ou via um processo informal, conceituado como mutao constitucional por representar as mudanas no contedo da Constituio sem alterar o texto. As mutaes constitucionais j foram identificadas, pela doutrina alem, desde a vigncia da Constituio do Imprio alemo de 1871. Inicialmente, as mutaes foram justificadas pela fora incontrastvel dos fatos, no havendo, portanto, limites a essas mudanas. O presente trabalho tem como objetivo principal a anlise das teorias alems que se formaram no final do sculo XIX e desenvolveram-se no decorrer do sculo XX, dando ateno questo referente fora normativa da Constituio. A existncia de limites s mutaes constitucionais importa na defesa da supremacia da Constituio, do compromisso com sua realizao. Deste modo, o estudo sobre as mutaes ganha relevo no atual contexto do constitucionalismo, caracterizado por constituies com amplo rol de princpios e de direitos fundamentais; pela abertura do Direito para a moral; pela forte atuao do Poder Judicirio na concretizao dos direitos fundamentais; e pela constitucionalizao do direito. Palavras-chave: Mutaes constitucionais. Constitucionalismo. Fora normativa da Constituio.

  • RESUMEN

    Las constituciones tienen intencin de quedarse, pero al mismo tiempo, no pueden pretender ser eterno, ya que, como un organismo vivo est en constante cambio debido a la interaccin con la realidad. Clsicamente, las constituciones escritas se pueden actualizar de dos formas: a travs de un proceso formal y solemne o informal, conceptualizado como un mutacin constitucional para representar los cambios en el contenido de la Constitucin, sin alterar el texto. Las mutaciones constitucionales han sido identificados por la doctrina alemana, ya que la vigencia de la Constitucin del Imperio Alemn en 1871. Inicialmente, los cambios se justifican por la fuerza de los hechos irrefutables, sin embargo, lmites a estos cambios. El presente trabajo tiene como principal objetivo el anlisis de las teoras alemanas que se formaron en el siglo XIX y desarrolladas durante el siglo XX, prestando especial atencin a la cuestin de la fuerza normativa de la Constitucin. La existencia de lmites a las mutaciones de los asuntos constitucionales en la defensa de la supremaca de la Constitucin el compromiso de su realizacin. As, el estudio de las mutaciones se vuelve relevante en el contexto actual del constitucionalismo, que se caracteriza por las constituciones con extensa lista de principios y derechos fundamentales, mediante la apertura a la ley moral, por el fuerte desempeo de la judicatura en la aplicacin de los derechos fundamentales, y constitucionalizacin del derecho. Palabras clave: Mutacin constitucional. El constitucionalismo. La fuerza normativa de la Constitucin.

  • LISTA DE SIGLAS

    CF/88 Constituio Federal de 1988 STF Supremo Tribunal Federal UERJ Universidade Estadual do Rio de Janeiro USP Universidade de So Paulo

  • LISTA DE ABREVIATURAS

    Art. - artigo Ed. edio Cf. conforme Ibid. ibidem Id. idem Rev. revista Atual. - atualizada Sc. sculo V. ver Vol. volume p. pgina

  • SUMRIO

    1. INTRODUO ...................................................................................................11 2.ANTECEDENTES AO CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORNEO: CONSTITUCIONALISMO MODERNO, ESTADO DE DIREITO E POSITIVISMO JURDICO ...............................................................................................................14 2.1 Constitucionalismo Moderno .............................................................................15 2.2 Paradigma do Estado de Direito ........................................................................31 2.3 Positivismo Jurdico Normativista .....................................................................39 3. CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORNEO ..............................................56 3.1 PONTO DE PARTIDA: UMA NOO INICIAL DO CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORNEO ..............................................................................................57 3.2 MARCOS HISTRICOS PARA A FORMAO DO CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORNEO ..............................................................................................59 3.3 CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORNEO ENQUANTO PARADIGMA DE ESTADO E DE DIREITO ........................................................................................62 3.3.1 Constitucionalismo enquanto proposta de um novo paradigma de Estado: o Estado constitucional ..............................................................................................63 3.3.2 Constitucionalismo contemporneo enquanto proposta de um novo paradigma de Direito: caractersticas .......................................................................................69 4. PROCESSO INFORMAL DE MUDANA DA CONSTITUIO: A DOUTRINA TRADICIONAL SOBRE MUTAO CONSTITUCIONAL .....................................75 4.1 PODER CONSTITUINTE: CONCEITO, FORMAS DE MANIFESTAO, REFORMA CONSTITUCIONAL E MUTAO CONSTITUCIONAL ......................75 4.2 MUTAO CONSTITUCIONAL: A VELHA DOUTRINA ALEM ...................92 5. MUTAO CONSTITUCIONAL E A DEFESA DA FORA NORMATIVA DA CONSTITUIO ....................................................................................................119 5.1 CONDICIONAMENTO RECPROCO ENTRE CONSTITUIO E REALIDADE: HELLER E HESSE. .................................................................................................120 5.2 MUTAO CONSTITUCIONAL: SISTEMATIZAO PELA DOUTRINA BRASILEIRA ..........................................................................................................166 6. CONCLUSO ....................................................................................................192 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ......................................................................196

  • 11

    1. INTRODUO

    As mutaes constitucionais, consideradas como as alteraes no contedo

    da Constituio que no observam um procedimento previamente regulado, ou seja,

    que no alteram o texto, representam a possibilidade de, nas constituies escritas e

    rgidas, como o caso da atual Constituio brasileira, uma atualizao constante

    do Direito Constitucional.

    O fenmeno das mutaes reflete, assim, o dilogo do Direito com a

    realidade, atravs do qual se mantm uma relao de tenso e de

    complementariedade.

    No atual panorama do constitucionalismo, o qual tem como marcos as

    constituies do ps-guerra, a problemtica das mutaes constitucionais ganha

    relevo. Isso porque esse contexto possui caractersticas que potencializam as

    mudanas informais na Constituio. Tais caractersticas podem ser resumidas da

    seguinte forma: a defesa da supremacia da Constituio, tanto em sentido formal

    como material; o carter aberto das normas constitucionais; a abertura do Direito

    para a moral; a presena de um amplo catlogo de direitos fundamentais; a forte

    atuao do Poder Judicirio na concretizao da Constituio; e a consequente

    constitucionalizao do Direito.

    Diante desse (novo) momento do Direito constitucional, surge a preocupao

    com relao definio, e, consequentemente, determinao dos limites dessas

    mudanas, tendo em vista a preservao da fora normativa da Constituio e o

    perigo constante de corroso da Constituio atravs das mudanas no reguladas

    pelo prprio texto constitucional.

    A doutrina das mutaes constitucionais, como se verificar no

    desenvolvimento do presente trabalho, formou-se no contexto da Alemanha, j nos

    fins do sculo XIX, especificamente sob a vigncia da Constituio do Imprio

    Alemo de 1871. Portanto, a doutrina tradicional das mutaes foi elaborada no

    contexto anterior formao do constitucioinalismo contemporneo, ou seja, foi

    elaborada no contexto do constitucionalismo moderno, o que influenciar de forma

    determinante no prprio conceito de mutao e na identificao de seus limites.

    O presente trabalho busca tratar da problemtica da mutao constitucional

    tendo em vista a garantia da fora normativa da Constituio. Ou seja, no contexto

  • 12

    de um condicionamento recproco entre realidade e texto constitucional, a opo por

    um determinado conceito de mutao pode determinar a prpria quebra da

    Constituio, ou seja, a perda de sua fora normativa.

    Para tanto, o segundo e o terceiro capitulo buscaro contextualizar e

    caracterizar o constitucionalismo moderno e o constitucionalismo contemporneo, a

    fim de se visualizar qual o papel da Constituio nesses contextos, e, por

    conseguinte, localizar o tema das mutaes nesses diferentes panoramas. Esse

    delineamento contextual faz-se necessrio na medida esse estudo fornecer

    subsdios para um debate sobre a fora normativa da Constituio diante da fora

    dos fatos o condicionamento recproco entre Direito e realidade.

    A partir de ento, ser analisado, no quarto captulo, como o fenmeno de

    mutao est inserido nas teorias do poder constituinte.

    Com isso, passar-se-, ainda no quarto captulo, anlise das teorias

    tradicionais das mutaes constitucionais que foram elaboradas na Alemanha do

    sculo XIX, com o intuito de se verificar se e como a problemtica da preservao

    da fora normativa da Constituio estava (ou no) presente.

    No quinto captulo, ser feito um estudo das teorias alems elaboradas no

    sculo XX, levando-se em considerao, principalmente, as transformaes no

    constitucionalismo europeu do ps-guerra, a fim de se constatar se tais

    transformaes influenciaram na elaborao de conceito de mutao que

    prestigiasse a fora normativa da Constituio.

    Ao fim, ainda no quarto captulo, ser feita uma breve anlise do atual

    estado do constitucionalismo brasileiro e suas teorias sobre as mutaes

    constitucionais, com vistas a identificar como a problemtica da preservao da

    fora normativa da Constituio se faz presente.

    Pelo que se pode perceber, pela breve apresentao dos prximos

    captulos, o presente trabalho limitar-se-, basicamente, ao estudo das doutrinas

    alems sobre o tema. Essa opo justifica-se pela aproximao do

    constitucionalismo brasileiro com o constitucionalismo europeu ocidental, que se d,

    principalmente, pela presena de uma Constituio escrita e rgida, um sistema de

    direito tradicionalmente positivista e a aproximao do modelo de Estado

    constitucional europeu do ps-guerra com o modelo de Estado constitucional

    brasileiro implantado a partir da Constituio Federal de 1988.

  • 13

    No se pode ignorar, por outro lado, que o fenmeno das mutaes tambm

    se faz presente no sistema da common law, conforme se verificar a partir das

    constataes feitas por Georg JELLINEK e de Karl LOEWENSTEIN (v. item 4.2 e

    item 5.1) sobre as mutaes constitucionais no Direito Constitucional ingls.

    No sistema norte-americano, especialmente, as mutaes constitucionais

    so, como afirma Lus Roberto BARROSO, potencializadas e diludas1 em razo de

    duas circunstncias: 1) o carter sinttico da Constituio, na qual esto presentes

    normas de textura aberta, como federalismo, devido processo legal, igualdade sob a

    lei, direitos no enumerados, poderes reservados; e 2) o papel mais discricionrio e

    criativo desempenhado pelos tribunais em pases nos quais vigora o sistema do

    common law. Nesse contexto, podem ser citados como exemplos de mutao: a

    jurisprudncia formada a partir do New Deal, a qual rompeu com o entendimento

    jurisprudncial da era Lochner ao admitir como constitucionalmente vlida a

    legislao trabalhista e social proposta por Roosevelt; e a deciso proferida no caso

    Bronw v. Board of Education, julgado em 1954, que imps a integrao racial nas

    escolas pblicas, modificando o entendimento que legitimava a doutrina dos iguais,

    mas separados no tratamento entre brancos e negros. Conforme anlise de

    BARROSO, nessas duas hipteses, a Constituio material mudou

    substancialmente, sem que houvesse alterao de seu texto.2

    De qualquer forma, saliente-se, o presente estudo opta pelo estudo do

    debate entre as doutrinas alems sobre o fenmeno das mutaes constitucionais e

    sua relao com a fora normativa da Constituio, por, como afirmado,

    aproximarem-se mais do constitucionalismo brasileiro contemporneo. Em razo

    disso, aps traado e analisado o panorama das principais teorias alems sobre as

    mutaes e seus limites, ao final, e de forma mais breve, ser feita uma anlise das

    doutrinas clssicas brasileiras que tratam dessa problemtica, com enfoque no

    debate sobre o compromisso com a fora normativa da Constituio.

    11

    BARROSO, Lus Roberto. Mutao constitucional. In: MOREIRA, Eduardo Ribeiro; PUGLIESI, Marcio (coordenadores). 20 anos da Constituio brasileira. So Paulo: Saraiva, 2009, p. 210-211. 2 Ibidem, p. 211-212.

  • 14

    2. ANTECEDENTES AO CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORNEO:

    CONSTITUCIONALISMO MODERNO, ESTADO DE DIREITO E POSITIVISMO

    JURDICO

    As mutaes constitucionais podem ser conceituadas, incialmente, como

    mudanas informais no contedo da Constituio e que, pela sua natureza,

    decorrem do dilogo entre Direito e realidade. No contexto de uma Constituio

    escrita e rgida, as mutaes significam a alterao no contedo da Constituio

    sem a necessidade de reforma no texto constitucional.

    O fenmeno das mutaes e a formao de uma doutrina sobre o mesmo,

    como ser detalhado posteriormente, datam do fim do sculo XIX, especificamente

    no contexto da Constituio alem de 1871. O tema passou a ser objeto de estudo

    por autores ligados escola alem de Direito Pblico, inicialmente por Paul LABAND

    e Georg JELLINEK (v. item 4.2), os quais identificaram as mudanas informais que

    ocorriam no Direito Constitucional da poca e elaboraram uma teoria para explicar

    tais fenmenos.

    O presente trabalho buscar traar um paralelo entre um conceito de

    mutao num contexto de um forte e de um fraco compromisso tico-normativo com

    a Constituio. Noutras palavras, objetiva visualizar e diferenciar os traos de uma

    teoria da mutao ora inserido num constitucionalismo fraco, ora inserido num

    contexto de constitucionalismo forte (no sentido da defesa da supremacia formal e

    material e da fora normativa da Constituio).

    Portanto, ser necessrio, antes de adentrar no tema especificamente das

    mutaes constitucionais, contextualizar o atual estado do constitucionalismo

    (constitucionalismo do ps-guerra ou neoconstitucionalismo), bem como os seus

    precedentes. Com isso, espera-se, tambm, compreender de que maneira o

    fenmeno das mutaes emerge no sculo XX atrelado a uma doutrina dos seus

    limites, refletindo essas transformaes ocorridas no constitucionalismo

    contemporneo.

    O constitucionalismo contemporneo, enquanto um paradigma de Direito e

    de Estado que emergiu no sculo XX, na Europa Ocidental, possui como ponto de

    partida a negao das teses positivistas.

  • 15

    Assim, neste captulo, buscar-se- esclarecer e analisar os paradigmas de

    Direito, de Estado e de Constituio que so criticados pelos movimentos do

    constitucionalismo do ps-guerra, quais sejam: positivismo jurdico, Estado legalista

    e constitucionalismo liberal. Objetiva-se, com isso, demonstrar que, nesses

    paradigmas, as mutaes constitucionais representavam um fenmeno que, por

    vezes, chegava a negar a fora normativa da Constituio, tendo em vista a

    dificuldade da teoria positivista em explicar condicionamento recproco entre texto

    normativo e realidade, bem como a falta de prestgio normativo da Constituio.3

    Essas premissas tericas so, frise-se, essenciais para uma compreenso

    integral do constitucionalismo contemporneo e para o debate sobre a fora

    normativa da Constituio e o compromisso com sua realizao.

    Feito isso, sero delineadas, no captulo seguinte, as caractersticas

    essenciais sero delineadas as caractersticas essenciais do constitucionalismo do

    ps-guerra4, contexto em que se insere a teoria da mutao atual.

    2.1 CONSTITUCIONALISMO MODERNO

    O termo constitucionalismo refere-se aos movimentos5 sociais, correntes de

    pensamentos filosfico, poltico e ideolgico que se iniciaram nos sculos XVIII e

    3 Sem a pretenso de uma viso linear da relao entre constitucionalismo e (neo)constitucionalismo,

    Estado de Direito legal e Estado constitucional, positivismo e ps-positivismo, o que se pretende, neste e no prximo captulo, analisar esses contextos de teoria da Constituio e teoria do Estado em que se situa o tema das mutaes, e como tais contextos influenciam na delimitao do conceito de tais fenmenos. 4 Tambm denomiado, neste trabalho, de constitucionalismo contemporneo ou

    neoconstitucionalismo. 5 Quanto definio de constitucionalismo como conjunto de movimentos, utiliza-se, neste trabalho, o

    posicionamento de Jos Joaquim Gomes CANOTILHO, segundo o qual em termos rigorosos, no h um constitucionalismo mas vrios constitucionalismos (o constitucionalismo ingls, o constitucionalismo americano, o constitucionalismo francs). Ser prefervel dizer que existem diversos movimentos constitucionais com coraes nacionais mas tambm com alguns momentos de aproximao entre si, fornecendo uma complexa tessitura histrico-cultural. E dizermos ser mais rigoroso falar de vrios movimentos constitucionais do que de vrios constitucionalismos porque isso permite recortar desde j uma noo bsica de constitucionalismo.( CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituio. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 51.)

  • 16

    XIX no sentido de limitar o poder poltico e garantir determinados direitos

    fundamentais.6

    Para CANOTILHO, constitucionalismo pode ser definido como uma teoria:

    [...] (ou ideologia) que ergue o princpio do governo limitado indispensvel garantia dos direitos em dimenso estruturante da organizao poltico-social de uma comunidade. Nesse sentido, o constitucionalismo moderno representar uma tcnica especfica de limitao de poder com fins garantsticos. O conceito de constitucionalismo transporta, assim, um claro juzo de valor. , no fundo, uma teoria normativa da poltica, tal como a teoria da democracia ou a teoria do liberalismo.

    7

    No entendimento de Maurizio FIORAVANTI, o constitucionalismo

    concebido como um conjunto de doutrinas que, a partir da segunda metade do

    sculo XVII, dedicaram-se a recuperar en el horizonte de la constitucin de los

    modernos el aspecto del limite y de la garanta.8 (sem grifo no original)

    Kildare Gonalves CARVALHO define constitucionalismo pelo movimento

    jurdico de criao de um sistema normativo, uma Constituio, que se encontra

    acima do Poder; e pelo movimento social que deu sustentao s novas tcnicas de

    limitao de Poder.9

    Andr Ramos TAVARES ensina que o constitucionalismo, em uma primeira

    acepo, era identificada com o movimento poltico-social que pretendia limitar o

    poder arbitrrio; j em uma segunda acepo, com a imposio de que houvessem

    cartas constitucionais escritas. Uma terceira acepo de constitucionalismo referia-

    6 Paolo COMANDUCCI conceitua este constitucionalismo como constitucionalismo em sentido

    restrito: El constitucionalismo en sentido amplio es la ideologa que requiere la creacin de una cualquiera Constitucin, a fin de limitar el poder y prevenir el despotismo. El constitucionalismo en sentido restringido es la ideologa que requiere la creacin de un especfico tipo de Constitucin a fin de limitar el poder y prevenir el despotismo. O constitucionalismo em sentido restrito tambm classificado por COMANDUCCI como constitucionalismo em sentido forte: El constitucionalismo dbil es la ideologa que requiere una Constitucin solamente para limitar el poder existente, sin prever una especfica defensa de los derechos fundamentales. El constitucionalismo fuerte (o liberal) es la ideologa que requiere una Constitucin para garantizar los derechos y las liberdades fundametales frente al poder estatal. (COMANDUCCI, Paolo. Formas de (neo)constitucionalismo: un anlisis metaterico. In: CARBONELL, Miguel. Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003, p.77.) 7 CANOTILHO, 2003, p. 51.

    8 FIORAVANTI, Maurizio. Constitucin. De la antigidad a nuestros das. Madrid: Editorial Trotta,

    2007, p. 85. 9 CARVALHO, Kildare Golalves. Direito constitucional. 15 ed. Belo Horizonte: del rey, 2009, p.

    243.

  • 17

    se aos propsitos e funo das constituies nas diversas sociedades. O autor

    aborda ainda uma quarta acepo de constitucionalismo, dentro de um

    constitucionalismo mais restrito, a qual se refere evoluo histrico-constitucional

    de um determinado Estado.10

    Considerando um conceito histrico de Constituio, como um conjunto de

    normas conformadoras de uma dada ordem jurdico-poltica11, possvel diferenciar

    e contextualizar o constitucionalismo moderno dos constitucionalismos antigo e

    medieval.

    Nessa perspectiva histrica, CANOTILHO diferencia o constitucionalismo

    moderno do constitucionalismo antigo. O constitucionalismo antigo caracteriza-se

    como o conjunto de princpios escritos ou consuetudinrios aliceradores da

    existncia de direitos estamentais perante o monarca e simultaneamente limitadores

    do seu poder. Tais princpios ter-se-iam sedimentado nos fins da Idade Mdia at o

    sculo XVIII12. J o constitucionalismo moderno identificado com o conjunto de

    movimentos que, a partir do sculo XVIII, questiona nos planos poltico, filosfico e

    jurdico, os esquemas tradicionais de poder, sugerindo uma nova ordenao e

    fundamentao do poder poltico.13 Para CANOTILHO, o que caracteriza o

    constitucionalismo moderno a emergncia de um modelo de Constituio que se

    prope a: i) ordenar, fundar e limitar o poder poltico; e ii) reconhecer e garantir

    direitos e liberdades individuais. Sendo assim, as ideias centrais do

    constitucionalismo so, pois, a fundao e legitimao do poder poltico e a

    constitucionalizao das liberdades14.

    Maurizio FIORAVANTI, considerando um conceito amplo de Constituio

    como ordenamento general de las relaciones sociales y polticas15 - evidencia a

    necessidade de se contextualizar historicamente tais conceitos. Nesse sentido, o

    autor diferencia o constitucionalismo moderno do constitucionalismo antigo e do

    10

    TAVARES, Andr Ramos, Curso de direito constitucional. 8 ed. So Paulo: Saraiva, 2010, p. 1. 11

    CANOTILHO, 2003, p. 53. 12

    Ibidem, p. 52. 13

    Idem. 14

    Ibidem, p. 55. 15

    FIORAVANTI, 2007, p. 11.

  • 18

    constitucionalismo medieval, referindo-se ao constitucionalismo como um conjunto

    de doutrinas que se desenvolveram numa singularidade de relaes sociais e

    polticas de seu tempo.16

    FIORAVANTI contrape o constitucionalismo moderno ao constitucionalismo

    antigo, afirmando que a Constituio dos antigos no tem relao alguma com a

    Constituio dos modernos. Para o autor, a ideia de soberania no se fazia presente

    no mundo antigo, uma vez que no existia poder a limitar. Alm disso, no se

    pensava em Constituio como norma, a qual, para os antigos era vista como um

    ideal tico e poltico a perseguir. Segundo o autor, a Constituio dos antigos

    comeou a se delinear inicialmente no mundo grego, depois no romano, em termos

    de um grande projeto de conciliao social e poltica, das aspiraes de todas as

    foras ativas, que recorrem continuamente imagem e prtica da virtude17.

    Rechaando a ideia amplamente difundida de que no perodo medieval a

    idade do eclipse de la constitucin, em que no se fazia presente a conscincia

    coletiva da necessidade de uma lei fundamental, FIORAVANTI defende a existncia

    de uma verdadeira e autntica Constituio medieval18. Tal Constituio deve ser

    compreendida no contexto particular e complexo que caracteriza o perodo medieval

    que vai desde a queda do imprio romano no sculo V at a formao do Estado

    soberano a partir do sculo XV que, em sntese, pode ser visto como um contexto

    poltico de pluralidade de centros de poder19. Todos os poderes que convivem no

    medievo (imperial, eclesistico, feudal...) tm em comum o fato de no serem

    poderes soberanos, de no tener ninguna pretensin totalizadora y omnicomprensiva

    en relacin con los sujetos, los bienes, las fuerzas y los rdenes que existen en

    16

    FIORAVANTI alerta que o estudo do constitucionalismo numa perspectiva histria no se trata de um estudo da histrica do constitucionalismo, ou das razes histricas do constitucionalismo moderno, uma vez que cada contexto possui a sua singularidade. (FIORAVANTI, 2007, p. 12-13) 17

    Ibidem, p. 29-31.

    18

    Alerta o autor que se deve a Constituio medieval no se trata de uma mera continuao ou renascimento da Constituio dos antigos, nem mera antecipao ou preparao da Constituio dos modernos. (Ibidem, p, 34) 19

    Segundo FIORAVANTI, no perodo medieval no existe uma nica forma tpica de exerccio de poder. Coexistem poderes orientados em sentido universalista, como por exemplo o Imperial, mas com frequncia escassamente dotados de efetividade na vida concreta dos cidados, com os poderes locais, como do senhor feudal, legitimados pela posse da terra. E no final do sculo XI, passa a existir o fenmeno da Constituio dos ordenamentos das cidades. (Ibidem, p. 34-35)

  • 19

    concreto dentro de sus respectivas jurisdicciones.2021. Outro trao caracterstico na

    organizao poltica medieval o fato de que a parte mais relevante da vida do

    cidado, sobretudo a de relevncia econmica e patrimonial, desenvolve-se fora das

    previses normativas, seguindo a fora normativa autnoma e primria dos

    costumes.

    O constitucionalismo medieval , portanto, caracterizado por uma

    Constituio mista, uma vez que essa Constituio sustenta a ideia de um poder

    limitado pelos outros componentes da Constituio e por instituies dentro das

    quais esto representadas as distintas partes da comunidade poltica. A primeira

    caracterstica da Constituio medieval a intrnseca limitacin de los poderes

    pblicos.22 Tal limitao no se trata de uma limitao estabelecida por normas

    positivas gerais e abstratas, mas de uma limitao de fato, advinda das diversas

    ordens sociais que se formaram pelos costumes. Da advm a segunda

    caracterstica fundamental da Constituio medieval:

    Se trata de la concepcin de aquel conjunto de relaciones substancialmente indisponibles por parte de los poderes pblicos en el trminos de un orden jurdico dado, estructurado por mil vnculos y convenciones, tan concretado en los hechos que provoca la ms extrema fragmentacin, en ms amplio particularismo.

    23

    20

    FIORAVANTI, 2007, p. 35. 21

    Ao descrever a forma de organizao poltica da Europa ocidental a partir do sculo XIII, FIORAVANTI identifica al j a existncia de uma forma de Estado, mas adverte que: En efecto, en el Estado que estamos tomando en consideracin falta cualquier pretensin de monoplio em relacin con el ejercicio del poder y en relacin con la ciudadana. Los seores territoriales [...] ejercitan certamente importantes poderes de imperium, ocupando de manera creciente el centro del poder sobre el territrio, per no por eso piensan en cortar de raz la vasta gama de poderes jurisdiccionales, impositivos en matria de tributos y tambin militares que continan hacinndole dentro del mismo territrio. [...] Tenemos un Estado porque tenemos la conscincia de un territrio que governar y defender en su conjunto segun reglas fijadas y compartidas, pero permanece tambien dentro de ese Estado y de ese territrio una pluralidade de potestades dotadas de imperium y una pluralidade de vnculos y de obligaciones. En una palavra: hay Estado porque hay gobierno y territrio, aunque falte la soberania. (FIORAVANTI, Maurizio. Estado y Constitucin. In FIORAVANTI, Maurizio (org.). El estado moderno em Europa: instituciones y derecho. Madrid: Editorial Trotta, 2004, p. 15-16. Desta forma, FIORAVANTI identifica na primeira forma de Estado moderno uma tenso e ao mesmo tempo um equilbrio entre dois polos de poder: a centralizao e institucionalizao dos poderes de imperium exercidos por um senhor que representa o territrio e a pluralidade de distintas foras e realidades presentes no mesmo territrio, que operam na tutela de seus privilgios, mas tambm participam do governo desse territrio, trabalhando com colaborao com o senhor. Esta primeira foram de Estado Moderno, assim considerado pelo autor, prescinde do princpio da soberania. Trata-se da primeira forma de Estado moderno que predomina no perodo medieval at a revoluo francesa: Estado jurisdicional. (Ibidem, p. 16-18) 22

    FIORAVANTI, Op. Cit., p.35. 23

    Ibidem, p. 36-37.

  • 20

    Ou seja, a Constituio medieval era caracterizada pela exigncia de vrias

    ordens jurdicas vinculantes, a qual fixava limites efetivos capacidade de

    normatizao dos poderes pblicos.

    Segundo FIORAVANTE, pode-se identificar como uma das distines entre

    Constituio medieval e Constituio da antiguidade o fato de que aquela se

    caracteriza como uma ordem jurdica dada, a ser preservada frente aqueles que

    pretendiam introduzir alteraes arbitrrias ao equilbrio de poder existente. J

    Constituio dos antigos caracteriza-se como uma ordem poltica ideal. Assim, o

    discurso medieval sobre a Constituio, sobre o limite alm do qual o prncipe

    converte-se em tirano, sobre o direito de resistncia, sobre as leis fundamentais,

    est dirigido a defesa e tutela da ordem jurdica dada. O inimigo da Constituio no

    tempo medieval o arbtrio, ou seja, toda possibilidade e desmedida pretenso de

    domnio sobre a complexidade da realidade juridicamente ordenada. Enfim, o

    perodo medieval caracteriza-se por ser o momento em que a Constituio deixa de

    pertencer de maneira exclusiva ao campo poltico comea a entrar no mundo do

    Direito, que nasce da prtica social. Por eso, hablar de la constitucin medieval

    significa hablar de reglas, de limites, de pactos y contratos, de equilibrio.24

    Assim, a Constituio mista, no contexto medieval serve para defender el

    carcter de hecho plural y compositivo de la sociedade y de los poderes que ella

    expressa, y lo que se teme es el nacimiento de un poder pblico que rompa este

    equilibrio.... Portanto, FIORAVANTI, distinguindo o contexto antigo do medieval,

    resume em poucas palavras: la constitucin mixta de los antigos se dirige a

    legitimar fuertes poderes pblicos comnmente reconocidos, la constitucin mixta

    medieval se dirige a limitar esses mismos poderes.25 Ou seja, a Constituio

    medieval funciona, ao mesmo tempo, como limite centralizao dos poderes

    pblicos.

    Como j afirmado anteriormente, FIORAVANTI concebe o constitucionalismo

    como um conjunto de doutrinas que, a partir da segunda metade do sculo XVII

    afirmam limitao do poder soberano e a consequente garantia de determinados

    24

    FIORAVANTI, 2007, p. 38. 25

    Ibidem, p. 56.

  • 21

    direitos. Nesse sentido, os sculos XVI e XVII marcam o incio do declnio do

    constitucionalismo medieval, com o enfrentamento entre o absolutismo poltico e a

    constituio (medieval) mista o que correu em especial no cenrio francs, com as

    guerras religiosas, e no cenrio ingls com a tenso entre monarquia e

    parlamento.26 Desse cenrio poltico e doutrinrio surge o substrato essencial para a

    formao do constitucionalismo moderno: a soberania estatal. A partir do sc. XVIII,

    emergem doutrinas que passam a reforar a limitao do poder soberano, como em

    John Locke e em Montesquieu.27

    Os marcos histricos que efetivamente definem a ruptura com o modelo

    anterior (Estado jurisdicional, para FIORAVANTI) e a implantao de uma efetiva

    nova forma de Estado e de Constituio so as revolues burguesas do sculo

    XVIII, em especial a revoluo Francesa. A partir de ento, institucionaliza-se a

    soberania como princpio essencial do Estado28.

    Vale ressaltar ainda que, quando se trata do constitucionalismo moderno,

    deve-se diferenciar os trs movimentos diferentes que deram origem ao mesmo,

    vale dizer: movimento ingls, movimento americano e movimento francs. Tais

    26

    Importante salientar que, para FIORAVANTI, o absolutismo poltico tido enquanto forma de governo de algumas monarquias europeias no sculo XVII. O absolutismo poltico demonstra a tendncia das monarquias operarem de modo monocrtico, eliminando cada vez mais as distintas formas de repartio de poder que se estratificaram no tempo, como ocorrera com o governo de Luis XIV na Frana, o qual reduziu ao mximo o papel do Conselho e dos parlamentos. Assim, o Estado absoluto denota uma forma de governo, que coincide com a monarquia absoluta. J o Estado jurisdicional representa uma autntica forma de Estado. Somente no caso de se sustentar que o Estado absoluto representou tambm a pretenso de domnio poltico existente na monarquia em relao realidade social e territorial e, portanto, soberania, possvel afirmar que constitui uma nova e autntica forma de Estado que substitui o Estado jurisdicional. Porm, segundo o autor, as monarquias europeias do sculos XVII e XVIII no conseguiram efetivamente exterminar a pluralidade de ordenamentos existentes. A exemplo, tem-se o ocorrido com as Ordenaes editadas por Luis XIV na Frana. (FIORAVANTI, 2004, p. 19-20)

    27

    FIORAVANTI realiza um profundo estudo das doutrinas formuladas por Jean BODIN, Thomas HOBBES, Jean Jacques-ROUSSEAU, John LOCKE, BOLING-BROKE, MONTESQUIEU e William BLACKSTONE identificando na particularidade de cada um desses pensadores as origens do constitucionalismo moderno. (FIORAVANTI, 2007, p. 75-100)

    28

    Nesse sentido, estabelece o artigo 3 da Declarao de Direitos do Homem e do Cidado, de 26 de agosto de 1789: Artigo 3- O princpio de toda a soberania reside essencialmente em a Nao. Nenhuma corporao, nenhum indivduo pode exercer autoridade que aquela no emane expressamente. (FRANA, Declarao de Direitos do Homem e do Cidado, de 26 de agosto de 1789. Disponvel em: < http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/direitos-humanos/declar_dir_homem_cidadao.pdf>. Acesso em: 01/11/2011.)

  • 22

    contextos devem ser vistos sob a tica dos modelos historicista, individualista e o

    modelo estatalista29.

    Em resumo, possvel traar as caractersticas essenciais desses

    movimentos constitucionais. Assim, pode-se afirmar que a formao do

    constitucionalismo ingls est diretamente relacionada lenta construo de um

    parlamento forte, e, consequentemente, limitao da coroa inglesa. Segundo

    FIORAVANTI30 e CANOTILHO31, o constitucionalismo ingls reflete um modelo, uma

    viso, historicista32, o que se reflete em outra caracterstica do modelo ingls, a

    Constituio histrica, ou seja, a existncia de normas constitucionais de formao

    lenta e paulatina e que no esto reunidas em um nico documento jurdico.

    CANOTILHO33 sintetiza as cristalizaes desse modelo que passaram a fazer parte

    do patrimnio da constituio ocidental: 1) a liberdade radicou-se como liberdade

    de todos os ingleses e como segurana da pessoa e dos bens de que se

    proprietrio; 2) criao de um processo justo regulado pela lei (devido processo

    legal), pelo qual se estabelecem as regras disciplinadoras da privao da liberdade e

    da propriedade; 3) as leis do pas (laws of the land) reguladoras da tutela da

    liberdade so interpretadas e reveladas pelos juzes, e no pelos legisladores, e

    assim, vo formando a common law (direito comum de todos os ingleses); 4) a

    partir da Revoluo Gloriosa (1688-1689) elevada a categoria constitucional a

    29

    FIORAVANTI prope trs modelos de tutela da liberdade que emergiram nas revolues do sculo XVIII, quais sejam: o modelo historicista, o modelo individualista e o modelo estatalista, os quais no devem ser vistos de forma isolada. Sendo assim, FIORAVANTI define que h uma doutrina individualista e estatalista das liberdades, de carter antihistoricista, construda na Revoluo Francesa; uma doutrina individualista e historicista, de carter anti-estatalista, construda na revoluo norte-americana; e uma doutrina historicista e estatalista de carter anti-individualista, construda dentre os juristas do Estado de Direito do sculo XIX. Ver: FIORAVANTI, Maurizio. Los derechos fundamentales. Madrid: Editorial Trotta, 1998, p. 25-53.

    30

    Ibidem, p. 61. 31

    CANOTILHO, 2003, p. 55-56. 32

    Segundo CANOTILHO, define as dimenses histrico-constitucionais caracterizadoras do modelo (ou viso) historicista: (1) garantia de direitos adquiridos fundamentalmente traduzida na garantia do binmio subjetivo liberty and property; (2) estruturao corporativa dos direitos, pois eles pertenciam (ou pelo menos numa primeira fase) aos indivduos enquanto membros de um estamento[assim o direito ingls no rompera totalmente com os esquemas medievais dos direitos dos estamentos]; (3) regulao destes direitos e desta estruturao atravs de contratos de domnio (Herrschaftsvertrge) do tipo da Magna Charta. (ibidem, p. 55) 33

    Ibidem, p. 55-56.

  • 23

    ideia de representao e soberania parlamentar, indispensvel a estruturao do

    governo moderado.

    J o constitucionalismo americano, que tem como marco a Constituio

    norte-americana de 1787, caracteriza-se pela afirmao de uma Constituio escrita

    como norma suprema, a qual traz, de forma sinttica, a organizao do Estado com

    o modelo federal, a limitao do poder e a forma de governo republicana

    presidencialista. A Constituio norte-americana preocupa-se apenas em

    estabelecer as regras do jogo, no sentido de definir as questes fundamentais

    referentes ao Estado, ao poder e ao governo.

    Segundo CANOTILHO34, o que marcou o constitucionalismo americano foi:

    um povo (no mais uma nao) que reclamou, como na Frana, o direito de

    escrever uma lei bsica e na qual ele fez diferentes usos da histria. As

    particularidades do constitucionalismo americano foram: 1) atravs da Revoluo, os

    americanos pretenderam reafirmar os direitos na tradio germnica medieval e da

    Revoluo Gloriosa; 2) por outro lado, para evitar a falta de representao de um

    parlamento soberano, evitando a onipotncia do legislador, a Constituio devia

    garantir ao povo instrumentos efetivos de representao. Assim, o

    constitucionalismo americano afasta-se tambm do constitucionalismo francs, uma

    vez que a Constituio americana, ao invs de terminar em estado legicntrico,

    serviu para constituir uma ordem poltica informada pelo princpio do governo

    limitado35. Alm disso, no constitucionalismo norte-americano alia-se um poder

    judicirio como verdadeiro defensor e guardio da Constituio, e

    consequentemente dos direitos e liberdades dos cidados.

    Segundo FIORAVANTI36, a revoluo americana combina o individualismo

    com o historicismo, afastando-se, com isso, do modelo de constitucionalismo

    puramente francs e do modelo puramente ingls.

    34

    CANOTILHO, 2003, p. 58.

    35

    Por outras palavras, o modelo americano de constituio assenta na ideia da limitao normativa do domnio poltico atravs de uma lei escrita. Esta limitao normativa postulava, pois, a edio de uma bblia poltica do estado condensadora de princpios fundamentais da comunidade poltica e dos direitos dos particulares. Neste sentido, a constituio no um contrato entre governantes e governados, mas sim um acordo celebrado pelo povo e no seio do povo a fim de se criar e constituir um governo vinculado lei fundamental. (Ibidem, p. 59) 36

    FIORAVANTI, 1998, p. 76-77.

  • 24

    O constitucionalismo americano e, portanto, a cultura de direitos e

    liberdades desse pas afasta-se do constitucionalismo francs, na medida em que

    exclui as filosofias estatalistas sobre soberania poltica que pem no centro da

    garantia dos direitos a imagem do legislador virtuoso, debilitando a garantia dos

    direitos. O que caracteriza o modelo de constitucionalismo francs da Revoluo

    Francesa justamente o carter de ruptura com o passado (antigo regime) de

    privilgios e direitos estamentais de grupos determinados (nobres e clero). Sendo

    assim, o constitucionalismo francs afasta-se de um modelo historicista (de direitos e

    liberdades fundados na histria de um povo). A revoluo americana no foi

    marcada por essa necessidade porque no havia nenhum antigo regime a

    derrubar37, ela pretende a fundao de algo novo, mas no exclui a herana

    histrica-cultural de direitos e liberdades desse povo. Tal fato promove uma

    modificao profunda no significado dos direitos e liberdades no mbito de ambas as

    revolues.

    O que essencialmente diferencia as revolues francesas e americanas,

    portanto, o fato de que, ao contrrio dos revolucionrios franceses, os americanos

    no tinham um antigo regime a destruir um sistema contra que lutar, isso no

    significa que a revoluo americana no tenha produzido um movimento de

    emancipao social. Os colonos americanos lutavam contra a ao tirnica do

    monarca ingls (que se estendeu pelos anos de 1765-1776). Tais reinvindicaes,

    de incio, tinham um carter econmico-financeiro (pesados tributos), mas aps

    transformou-se em protestos de carter constitucional, pois passaram a questionar a

    legitimidade da imposio tributria pela ptria me sem o consentimento dos

    colonos e de suas assembleias legislativas38. Com isso, os colonos americanos

    passaram a fundamentar tais protestos com base no antigo patrimnio de direitos e

    liberdades, fundado historicamente, e que a prpria ptria me inglesa havia criado

    (denotando a o carter historicista da revoluo americana). Os colonos americanos

    chegaram a propor de incio uma forma de organizao poltica (confederao) em

    37

    FIORAVANTI, ao distinguir a revoluo francesa da revoluo norte-americana, define: Todo esto no sirve para la revolucin americana, que no tena que destruir ningn ordem estamental; no tena que afirmar el domnio de la ley general e abstrata sobre las viejas fuentes del derecho; no tena que codificar aspecto nada irrelevante un moderno derecho privado fundado sobre el sujeto nico de derecho contra el viejo derecho comn, como suceda en Europa; no tena, en fin, que destruir una prtica precedente de representacin de tipo corporativo. (FIORAVANTI, 1998, p. 79) 38

    Ibidem, p. 80.

  • 25

    que o monarca ingls continuasse governando as colnias, mas a estas fossem

    dado a prerrogativa de formar assemblias representativas, no modelo do

    parlamento ingls, buscando a instaurao de um governo efetivamente legtimo,

    equilibrado e moderado. Tal proposta no foi aceita pela metrpole inglesa39. Diante

    disso, a Declarao de Independncia de 1776 la constatacin de la imposibilidad

    de continuar vivendo como sbiditos del monarca ingls y bajo la proteccin de las

    leyes de la madre ptria.40

    Assim, FIORAVANTI conclui que a revoluo americana e o

    constitucionalismo americano so marcados pela oposio a um legislador

    (parlamento ingls) que atua de forma ilegtima.41 Neste ponto reside a raiz da

    diferena entre a revoluo americana e a revoluo francesa. A revoluo francesa

    empenhou-se na sistemtica destruio do sistema do antigo regime, contra os

    antigos privilgios, afirmando-se a autoridade do legislador soberano (forte carter

    estatalista) e da lei geral e abstrata. J a revoluo americana afirma-se justamente

    contra a verso estatalista dos direitos e liberdades, afirmando o patrimnio histrico

    dos direitos e liberdades, os quais, consideravam os americanos, estavam

    ameaados pelo governo parlamentar britnico. Como consequncia o

    constitucionalismo americano caracterizado pela defesa da sobreposio da lei

    superior (constituio) sobre o legislativo.42 Ao mesmo tempo, aproximam-se o

    constitucionalismo americano e francs, na medida que defendem a prioridade dos

    direitos, portanto, dos limites aos poderes pblicos com a finalidade de garantia.43

    39

    Como es conocido, esta solucin no fue posible; y no podia ser de otra manera. En efecto, desde su punto de vista, la madre ptria no podia admitir que las assembleas de los colonos, de origen confuso generalmente, bastante dudosas y precrias institucionalmente, fuessen equiparadas al antigo y noble parlamento ingls. Adems, en el modelo constitucional britnico era absolutamente necesaria la presencia de una Cmara Alta fuertemente diferenciada de la Cmara de directa extraccin popular. (FIORAVANTI, 1998, p. 81) 40

    Ibidem, p. 81.

    41

    [...] el grande hilo conductor de la cultura poltico-constitucional americana ser siempre la desconfianza frente a los legisladores, en particular frente a su pretensin de encarnar la voluntad general a la namera de la revolucin francesa. (Ibidem. p. 82-83) 42

    Em pocas palavras, se puede afirmar que la revolucin francesa confia los derechos y liberdades a la obra de un legislador virtuoso, que es tal porque es altamente representativo del pueblo o nacin, mas all de las facciones o de los intereses particulares; mientras que la revolucin americana desconfia de las virtudes de todo legislador tambin del elegido democraticamente [...] y, as confia los derechos e liberdades a la constitucin, es decir, la possibilidade de limitar al legislador con una norma de orden superior. (FIORAVANTI, 1999, p. 83) 43

    Idem.

  • 26

    Para FIORAVANTI, o constitucionalismo moderno, enquanto tcnica de

    limitao do poder com fins garantsticos no nasce da declarao de direitos

    francesa, mas sim da Constituio federal americana de 1787.

    O constitucionalismo francs, portanto, que se formou no contexto da

    Revoluo Francesa, tem como marcas principais: a institucionalizao da

    soberania, o racionalismo enquanto legitimador do poder e do Direito, uma ordem

    jurdica apoiada na razo humana, a separao dos poderes, garantia de direitos

    individuais, a existncia de uma Constituio escrita e a formao de uma teoria do

    Poder Constituinte e do conceito de nao44.

    Como tratado anteriormente, o surgimento constitucionalismo moderno

    francs representa uma efetiva ruptura com a ordem jurdica anterior, propondo um

    novo modelo de Estado (Estado de Direito) e de Direito45. Repita-se, com o fim de

    acabar com um sistema de privilgios que eram garantidos por um direito que se

    manifestava atravs de ordens sociais (direito comum, costumeiros), a revoluo

    francesa defendeu a ideia de um parlamento forte e virtuoso que expressasse a

    vontade geral da nao atravs de uma lei geral e abstrata, de igual aplicao a

    todos os indivduos. Portanto, o Estado ps-revoluo busca substituir a antiga

    sociedade de privilgios e de direitos estamentais por uma sociedade de direitos

    individuais, fundada no princpio da igualdade (formal perante a lei).

    Segundo FIORAVANTI46, a revoluo francesa marca tambm a passagem

    de um modelo de Estado jurisdicional para um modelo de Estado legal e

    administrativo. Ou seja, a partir da revoluo francesa e do modelo de estado

    proposto e instaurado, h um efetivo declnio da funo jurisdicional, a qual vem a

    ser neutralizada e reduzida ao papel de mera aplicao, mecnica e uniforme, da

    vontade soberana contida na lei. A funo legislativa passa a ser protagonista (a lei

    como expresso da vontade geral). Ao lado do protagonismo da lei, surge tambm

    44

    V. SIEYES, Emmanuel Joseph; BASTOS, Aurelio Wander. A constituinte burguesa: qu'est-ce que le Tiers tat?. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. 45

    Segundo FIORAVANTI: La revolucin regoge el resultado de la entonces plurisecular existncia del Estado moderno europeu en la lnea de la concetracin de las funciones de imperium y del gobierno del territrio desde el centro, en sentido unitrio. Pero tambin culmina aquel salto que slo era posible al desplegar completamente la fuerza del principio-gua de la soberania poltica, y produce as una ruptura, una nueva constitucin y una nueva forma de Estado. (FIORAVANTI, 2004, p. 23) 46

    Ibidem, p. 24-26.

  • 27

    um novo sujeito: a administrao pblica, dando ensejo ao chamado Estado

    legislativo e administrativo (sc. XIX).

    Segundo CANOTILHO, o constitucionalismo francs reflete um modelo, uma

    viso, individualista pois47: 1) a revoluo francesa procurou edificar uma nova

    ordem sobre os direitos naturais dos indivduos (primeiro momento individualista), os

    direitos eram individuais e no estamentais; 2) a revoluo francesa procura

    legitimar/fundar um novo poder poltico48; 3) o construtivismo poltico-constitucional

    fundou-se na ideia de uma constituio escrita que garantiu direitos e conformou o

    poder poltico, o que, desse modo, tornou indispensvel uma constituio feita por

    um poder constituinte da nao.

    Segundo FIORAVANTI a Revoluo Francesa combinou aspectos da cultura

    das liberdades individualista e contratualista, de um lado, e da cultura estatalista, de

    outro, excluindo a viso historicista.49 Assim, h uma aliana entre as razes do

    individualismo e as razes do estatalismo, o que se pode perceber pela Declarao

    de Direitos de 1789, a qual afirma os direitos naturais individuais, mas tambm a

    soberania nacional. A unio entre individualismo e estatalismo expressa ao mesmo

    tempo a libertao do indivduo dos antigos laos com o senhor-juiz e o senhor-

    recolhedor de impostos e a libertao do poder pblico exercido em nome da nao

    das nefastas influncias dos podres feudais e senhoriais.50

    A ideia de soberania do legislador, o qual representa a vontade geral,

    aparece como a mxima garantia de que nada poder exercer um poder ou coao

    sobre os indivduos, a no ser em nome da lei geral e abstrata.

    Assim, a combinao de uma razo individualista a uma razo estatalista foi

    possvel (ou necessria) no contexto da Revoluo Francesa, uma vez que se

    47

    CANOTILHO, 2003, p. 57-58.

    48

    Neste ponto reside uma grande diferena entre o constitucionalismo francs e o ingls, enquanto o constitucionalismo francs tem o carter de ruptura, no constitucionalismo ingls: O governo limitado e moderado da Inglaterra - a sua constituio mista acabou por deixar na sombra [...] uma questo fundamental da modernidade poltica: como podem os homens livres e iguais dar a si prprios uma lei fundamental? A ordem dos homens uma ordem artificial (como demonstrara Hobbes), constitui-se, inventa-se ou reinventa-se por acordo entre os homens. Numa palavra: a ordem poltica querida e conformada atravs de um contrato social assente nas vontades individuais (tal como o defendiam as doutrinas contratualistas). (Ibidem, p. 57-58) 49

    FIORAVANTI, 1998, p. 47, 57 e seguintes. 50

    Ibidem,p. 58.

  • 28

    estava a combater o antigo regime, o regime de privilgios, a estrutura estamental

    da sociedadem, e ao mesmo tempo defendia a afirmao dos direitos individuais e

    de um poder pblico unitrio.

    Por este motivo en la Declaracin de derechos la palabra ley presente nueve veces y en lugares decisivos contiene inseparablemente junto al significa de limite al ejercicio de las libertades, de sumisn, el de garanta de que los individuos ya no podrn ser ligados por ninguna forma de autoridade que no se ala del legislador intrprete legtimo de la voluntad general. La misma ley, y por ello la autoridad pblica, al mismo tiempo que limita el ejercicio de la libertad de cada uno, hace posible las libertades de todos como individuos frente a las antiguas discriminaciones de estamento.

    51

    Contra o antigo regime, estatalismo e individualismo se aliam. Combinam-se

    a ideologias dos direitos naturais individuais com a ideia de soberania da nao e do

    legislativo. Em razo disso, a cultura da liberdade defendida na revoluo francesa

    oposta ao modelo historicista, uma vez que pretende justamente romper com as

    prticas historicamente formadas naquele contexto52. Alm disso, a revoluo

    francesa pretendia uma organizao de poderes diferente do ideal britnico. Ou

    seja, enquanto o modelo britnico visava a formao de um modelo de governo

    equilibrado e moderado (horizontal), a revoluo francesa pretendia a formao de

    um modelo vertical, de uma Assembleia Constituinte e de um Poder Constituinte.

    Pode-se identificar, em resumo e de forma genrica, como caractersticas

    essenciais do constitucionalismo moderno o movimento poltico, social e jurdico que

    defende: (i) a existncia de um conjunto de normas superiores aos detentores do

    poder, como legitimao, fundao e tcnica de limitao do poder53; (ii) a garantia

    51

    FIORAVANTI, 1998, p. 58-59.

    52

    Para los constituyentes franceses, en aquellos momentos histricos, confiar las libertades e los derechos a la historia habra significado consentir que las prticas sociales e institucionales del antiguo rgimen continuasen ejerciendo su influencia tras la revolucin; y, por ello, todo el proyecto revolucionrio se construye a travs de la contraposicin radical al passado del antiguo rgimen, en la lucha contra la doble dimensin del privilegio y del particularismo y, por lo tanto, a favor de los nuevos valores constitucionales: fundamentalmente, los derechos fundamentales individuales y la soberania de la nacin. (Ibidem, p.59) 53

    Karl LOEWENSTEIN ao tratar do constitucionalismo como forma de classificao dos Estados, segundo a distribuio e concentrao do exerccio do poder, afirma que El Estado constitucional se base en principio de la distribuicin del poder existe cuando vrios e independientes detentadores del poder o rganos estatales participan en la formacin de la voluntad estatal. [...] El constitucionalismo caracteriza a una sociedade basada en la libertad e igualdad que funciona como Estado de derecho. (LOEWENSTEIN, Karl. Teora de la constitucin. Traduccin y estudio sobre la obra por Alfredo Gallego Anabitarte. Barcelona: Editorial Ariel S.A., 1986, p. 50-51).

  • 29

    de determinados direitos fundamentais (de incio direitos de carter individual, como

    liberdade, propriedade e segurana); (iii) a diviso de poderes (funes), como

    verdadeira tcnica de limitao do poder e garantia da liberdade; (iv) Estado de

    Direito. 54

    Como j afirmado, tais caractersticas devem ser lidas luz dos contextos

    diferentes em que se consolidaram (americano, ingls e francs), os quais serviram

    de paradigma para os demais Estados.

    Esse constitucionalismo que emergiu no contexto ps-revolues burguesas

    perde espao, no sculo XIX, no contexto da Europa continental, para o legalismo,

    para o movimento da Codificao. A Constituio passa a representar apenas uma

    Carta poltica de organizao do Estado, sendo a garantia de direitos fundamentais

    reservada lei infraconstitucional. Paolo COMANDUCCI explica a perda da

    centralidade da Constituio:

    El constitucionalismo (...) es fundamentalmente una ideologa, dirigida a la limitacin del poder y a la defensa de una esfera de liberdades naturales, o de derechos fundamentales. Tal ideologa, por un lado, tiene como transfondo habitual, aunque no necesario, el iusnaturalismo, que sostiene la tesis de la conexin identificativa entre Derecho y moral, y, por outro lado, tiene como adversario directo el positivismo ideolgico. El constitucionalismo no es, sin embargo, relevante como teoria del Derecho: la teora dominante en siglo XIX y en la primeira mitad del siglo XX es sin duda la positivista, y no me parece que el constitucionalismo haya nunca intentado destronar tal hegemonia con una diferente propuesta terica.

    55

    No contexto do ps-guerra da Europa ocidental, a grosso modo, emerge um

    novo momento do constitucionalismo com a promulgao das Constituies do ps-

    Mais adiante, LOEWENSTEIN afirma que La historia del constitucionalismo no es sino la bsqueda por el hombre poltico de las limitaciones al poder absoluto ejercido por los detentores del poder, as como el esfuerzo de estabelecer una justificacin espiritual, moral, tica de la autoridad, en lugar del sometimiento ciego a la facilidade de la autoridad existente. (ibidem, p. 150) 54

    CANOTILHO, ao tratar do conceito de constituio normativa, afirma que tal conceito atrelado ao constitucionalismo. Sendo assim, para se tratar de uma verdadeira constituio no basta um documento. necessrio que o contedo desse documento obedea aos princpiosfundametnais progressivamente revelados pelo constitucionalismo. Assim o autor define um contedo especfico para a constituio normativa (tpica do constitucionalismo moderno): (1) deve formar um corpo de regras jurdicas vinculativas do corpo poltico e estabelecedoras de limites jurdicos ao poder, mesmo ao poder soberano (antidespotismo, antiabsolutismo). (2) esse corpo de regras vinculativas do corpo poltico deve ser informado por princpios materiais fundamentais, como o princpio da separao de poderes, a distino entre poder constituinte e poderes constitudos, a garantia de direitos e liberdcades, a exigncia de um governo representativo, o controlo poltico e/ou judicial do poder. (CANOTILHO, 2003, p. 1114) 55

    COMANDUCCI, 2003, p. 82-83.

  • 30

    guerra, momento este em que surgiu concomitantemente um novo paradigma de

    Estado e de Direito, marcados pela ideia de Supremacia material das Constituies,

    por Constituies analticas e principiolgicas e pela busca da reconciliao entre

    Estado e justia, como se analisar no prximo captulo.

    A partir do exposto, pode-se concluir, at o presente momento, que o

    surgimento da ideia de Constituio, como conjunto de normas que fundam o Estado

    e limitam o poder, deve ser analisada de forma a atentar para os diferentes

    contextos e suas caractersticas peculiares. Por outro lado, mesmo levando-se em

    considerao as peculiaridades dos contextos francs, americano e ingls, pode-se

    traar algumas caractersticas comuns capazes de formar um conceito de

    constitucionalismo como o conjunto de movimentos que, a partir do sculo XVIII,

    surgem com o intuito de limitar o poder e garantir determinados direitos.

    A partir do momento em que se forma a ideia da Constituio como sinnimo

    de lei (ou conjunto de normas) suprema e que funda o Estado e limita o poder, que

    surge a problemtica da reforma e atualizao da Constituio, em especial nos

    pases de Constituio rgida e escrita, onde se exige um procedimento mais

    rigoroso e solene para a reforma do texto constitucional, com vistas a garantir a

    supremacia da Constituio frente aos poderes constitudos. Nesse sentido, aparece

    tambm a problemtica das alteraes no contedo da Constituio e que no

    observam o procedimento previsto no texto constitucional, ou seja, das mutaes

    constitucionais.

    A doutrina tradicional das mutaes constitucionais forma-se no contexto

    alemo do final do sculo XIX (cf. item 4.2) e est inseria em um ambiente de um

    constitucionalismo estatalista, em que a Constituio (escrita) de 1871 assumiu o

    papel de fundar o Imprio alemo. Nesse sentido, as primeiras teorias que

    constataram tais mudanas no contedo do Direito Constitucional, buscando explic-

    las, at por influncia do pensamento jurdico predominante na poca

    (juspositivismo), basearam-se na ideia do fato consumado, ou seja, de que,

    situaes de fato pudessem alterar o contedo das normas constitucionais, mesmo

    que contrrias ao texto constitucional (V. item 4.2).

    Para uma anlise mais completa do contexto em que se formou a doutrina

    clssica das mutaes, no prximo item ser analisado o paradigma de Estado em

    que se inserem tais doutrinas.

  • 31

    2.1.2 PARADIGMA DO ESTADO DE DIREITO

    Viu-se que a doutrina clssica das mutaes foi construda nas

    circunstncias do constitucionalismo moderno do sculo XIX, especificamente do

    constitucionalismo estatalista alemo. Isso significa que a doutrina das mutaes foi

    elaborada em um momento em que a Constituio tinha como condo fundar o

    Estado, no caso o novo Imprio Alemo. A Constituio era tida, portanto, muito

    mais como uma Carta Poltica de procedimentos voltados ao estatal.

    O constitucionalismo moderno, conforme caracterizado e contextualizado

    acima surge, inicialmente, como instrumento de limitao, legitimao e controle do

    Poder e garantia de direitos individuais e depois, ao longo do sculo XIX, no

    contexto da Europa continental, perde espao para o movimento da Codificao.

    Concomitantemente ao surgimento do constitucionalismo moderno

    formado o paradigma de Estado de Direito Liberal.56

    O paradigma de Estado de Direito liberal formado nos fins do sculo XVIII,

    a partir das revolues burguesas, em especial a Revoluo Francesa, e se

    consolida no sculo XIX na Europa ocidental e nos Estados Unidos, conformando

    um Estado de Direito material, j que a limitao jurdica do Poder se justifica em

    funo da garantia de um ncleo de valores considerado indisponvel pelo prprio

    Estado.57

    Assim, segundo a concepo de Jorge Reis NOVAIS, o que distingue o

    Estado de Direito do tipo histrico antecedente, ou seja, Estado absoluto, no

    56

    Nesse sentido, assinala Karl LOEWENSTEIN: En un sentido ontolgico, se deber considerar como el telos de toda constitucin la creacin de instituciones para limitar y controlar el poder poltico. En este sentido, cada constitucin presenta una doble significacin ideolgica: liberar a los destinatrios del poder del control social absoluto de sus dominadores, y asignarles una legtima participacin en processo del poder. Para alcanzar este propsito se tuvo que someter el ejercicio del poder poltico a determinadas reglas y procedimientos que deban ser respetados por los detendadores del poder. Desde un punto de vista histrico, por tanto, el constitucionalimo, y en general el constitucionalismo moderno, es un produto de la ideologia liberal. En la moderna sociedade de masas, el nico mdio praticable para hacer participar a los destinatrios del poder en el processo poltico es la tcnica de representacin, que em um principio fue meramente simblica y ms tarde real. (LOEWENSTEIN, 1986, p. 151, sem grifo no original) ZAGREBELSKY assinala ainda que: No cabe duda que el Estado de derecho h representado historicamente uno de los elementos bsicos de las concepciones constitucionales liberales, aunque no es en absoluto evidente que sea incompatible com otas orientaciones poltico-constitucionales. (ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dctil. Ley, derechos, justicia. Traduccin de Marina Gascn. Madrid: Editorial Trotta, 1995, p. 22.) 57

    NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do Estado de Direito. do Estado de Direito Liberal ao Estado Social e democrtico de Direito. Coimbra: Almedina, 2006, p. 103.

  • 32

    tanto uma diferente estrutura e organizao dos poderes, mas a assuno da defesa

    e garantia de direitos naturais do homem como o fim primordial do Estado.5859

    ZAGREBELSKY, neste mesmo sentido, assevera que o sculo XIX o

    sculo do Estado de Direito, o qual

    [...] indica un valor y alude slo a una de las direcciones de desarrollo de la organizacin del Estado, pero no encierra en s consecuencias precisas. El valor es la eliminacin de la arbitrariedade en el mbito de la atividade estatal que afecta a los ciudadanos. La direccin es la inversin de la relacin entre poder y derecho que constitua la quintaesencia del Machtstaat e del Polizeistaat: no ms rex facit legem, sino lex facit regem.

    60

    Segundo o modelo de Estado de Direito liberal, a validade formal dos atos

    estatais decorre da sua conformidade com a lei (legalidade), e a sua legitimidade, o

    que verdadeiramente permita a sua qualificao como actos de um Estado de

    Direito, condicionada conformidade material de seu contedo com a tbua de

    valores que lhe superior.61

    Essa concepo de Estado de Direito liberal (concepo de Estado de

    Direito material) surge como oposio da classe burguesa ao Estado absoluto,

    sustentada numa ideia de justia material. A burguesia rompeu com o ancien rgime

    em nome de valores que faziam do projeto liberal do Estado de Direito uma

    construo acentuadamente material.62

    Em outras palavras, a luta pela implantao de um novo modelo de Estado

    (Estado de Direito) e a criao do Direito Constitucional moderno que se do no

    contexto das revolues burguesas, em especial a Revoluo Francesa, objetivaram

    a proteo da liberdade e dos direitos fundamentais do cidado (de incio os direitos

    58

    NOVAIS, 2006, p. 103. 59

    O Estado, ento, afirma-se como Estado de direito, no no sentido de que o direito seja a origem do Estado, mas de que o Estado encontra no direito sua justificao e seu limite racional. (SCHIER, Paulo Ricardo. Direito constitucional. Anotaes nucleares. 1 ed. (ano 2001), 8 triagem. Curitiba: Juru, 2008, p. 35.) 60

    ZAGREBELSKY, 1995, p. 21.

    61

    NOVAIS, Op. cit. , p. 103. 62

    Ibidem, p. 104.

  • 33

    de cunho individual), tornando-se, tais objetivos, premissas sine qua non para todo e

    qualquer Estado.63

    Sintetiza ZAGREBELSKY:

    El sentido general del Estado liberal de derecho consiste en el condicionamiento de la autoridad del Estado a la libertad de la sociedade, en el marco del equilibrio recproco estabelecido por la ley. Este es el ncleo central de una importante concepcin del derecho preada de consecuencias.

    Assim, sucintamente, o Estado de Direito Liberal pode ser conceituado como

    um modelo de Estado organizado sob o primado da lei frente a Administrao, a

    jurisdio e os cidados64, elaborado a partir dos ideais burgueses, cujo poder

    poltico limitado e voltado garantia de direitos individuais.

    De forma mais apurada, ZAGREBELSKY65 analisa o princpio da legalidade

    no paradigma de Estado de Direito Liberal europeu, e identifica duas concepes: (i)

    o princpio da legalidade designa que a Administrao deva estar sujeita, portanto,

    predeterminada pela lei; (ii) o princpio da legalidade define que a Administrao

    deva simplesmente estar delimitada por ele. O primeiro caso trata do monismo

    parlamentar francs, o qual significava que somente a Assemblia representava a

    nao e todos os demais rgos eram simples autoridades derivadas. A ausncia de

    leis que atribussem poderes Administrao pblica significava para esta a

    impossibilidade de atuar. J na segunda acepo, desenvolvida na Alemanha, a lei

    prvia, como garantia contra a arbitrariedade, era considerada somente uma

    63

    Assim, a Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado francesa de 1789, estabelece, em seu art. 16, a seguinte premissa: A sociedade em que no esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separao dos poderes no tem Constituio. 64

    El Estado liberal de derecho era un Estado legislativo que se afirmaba a s mismo a travs del principio de legalidad. El principio de legalidade, en general, expresa la idea de la ley como acto normativo supremo e irresistible al que, en lnea de principio, no es oponible ningn derecho ms fuerte, cualquiera que sea su forma y fundamento: ni el poder de excepcin del rey y de su administracin, en nombre de una superior , ni la inaplicacin por parte de los jueces o la resistencia de los particulares, en nombre de un derecho ms alto (el derecho natural o el derecho tradicional) o de derechos especiales (los privilgios locales o sociales). La primaca de la ley seala as la derrota de las tradiciones jurdicas del absolutismo e del Ancin Rgime. El Estado de derecho y el principio de legalida suponan la reduccin de derecho a la ley y la exclusin, o por lo menos la sumisn a la ley, de todas las dems fuentes del derecho. (ZAGREBELSKY, 1995, p. 24) ZAGREBELSKY desenvolve, ainda, o princpio da legalidade na concepo do direito europeu continental e no rule of law ingls. (V. Ibidem, p. 24-26)

    65

    Ibidem, p. 27.

  • 34

    recomendao vlida na medida em que fosse possvel, no um princpio

    inderrogvel. Sendo assim, a ausncia de leis que delimitassem os poderes das

    Administrao comportava, em princpio, a possibilidade de perseguir livremente

    seus prprios fins.

    De qualquer forma, seja na acepo da legalidade que define que a

    Administrao deva estar predeterminada pela lei ou na acepo da legalidade que

    determina que Administrao deva simplesmente estar delimitada por tal princpio,

    pode-se identifica ao menos um ponto em comum:

    Aun cuando se sostuviese la existncia de potestades autnomas del ejecutivo para la proteccin de los interesses unitrios del Estado, eso slo poda valer en la medida en que no se produjeran contradicciones con las exigncias de proteccin de los derechos de los particulares, la libertad y la propriedade. Segn una regla bsica del Estado de derecho, las regulaciones referentes a este delicado aspecto de las relaciones entre Estado y sociedad eran objeto de uma que exclua la accin independiente de la Administracin. La tarea tpica de la ley consistia, por consiguiente, en disciplinar los putos de colisin entre interesses pblicos e interesses particulares mediante la valoracin respectiva del poder pblico y de los derechos particulares, de la autoridad y de la libertad. (sem grifo no original)

    66

    , portanto, caracterstico do Estado de Direito liberal a separao entre

    Estado e cidados e, assim, segundo esse modelo, a posio da Administrao

    frente a lei se diferenciava essencialmente da posio dos particulares. O princpio

    da legalidade, aplicado Administrao, ao Estado, definia que a lei, visando

    justamente a proteo dos direitos dos particulares, no estabelecia que a

    Administrao (Estado) no podia fazer, e sim, pelo contrrio, o que podia. De este

    modo, los poderes de la Administracin, en caso de colisin con los derechos de los

    particulares, no se conceban como expresin de autonomia, sin que se

    configuraban como ejecucin de autorizaciones legislativas.67

    Com relao aos particulares, o princpio da legalidade gerava uma

    concepo oposta: o princpio da autonomia, enquanto no transpassava o limite da

    lei. Ou seja, a lei no era uma norma que devia ser executada, mas sim respeitada

    66

    ZAGREBELSKY, 1995, p. 27-28. 67

    Ibidem, p. 28.

  • 35

    como limite externo da autonomia contratual; regulao e limitao da autonomia

    individual, em defesa do interesse individual.68

    Essa distinta posio frente a lei era a consequncia de assumir, junto ao

    princpio da legalidade, o princpio da liberdade como pilar do Estado de Direito do

    sc. XIX. A proteo da liberdade exigia que as intervenes estatais fossem

    admitidas somente como exceo, quando viessem previstas em lei. A ausncia de

    leis representava um impedimento para a ao dos rgos do Estado que afetava os

    direitos dos cidados. 69

    Ainda com respeito ao princpio da legalidade no Estado de Direito liberal, o

    atributo da generalidade da lei, garantia de imparcialidade do Estado com respeito

    aos componentes sociais, e, por conseguinte, a igualdade jurdica. Em todas as

    Cartas constitucionais liberais do sc. XIX est reconhecido o princpio da igualdade

    da lei como defesa frente aos privilgios tpicos da sociedade pr-liberal do Antigo

    Regime. Do ponto de vista do Estado de Direito, s podia chamar-se lei a norma

    intrinsecamente igual para todos, ou seja, a norma geral.70

    Nesse contexto de organizao jurdica do Estado, modelo liberal, el

    principio da legalidade traduca em trminos constitucionales la hegemonia de la

    burguesia, que se expresaba ne la Cmara representativa.71 Por outro lado, e

    consequentemente, expressava tambm o retrocesso de fato do Executivo e do

    Judicirio, que, de poderes autnomos, passaram a estar subordinados lei. A

    jurisdio passa a significar mero aparato de aplicao da lei feita pelo Poder

    Legislativo, sem admitir-se a possibilidade de atividade criativa por parte dos juzes.

    Por outro lado, na medida em que a burguesia alcanou o efetivo exerccio

    do Poder, a caracterizao do Estado de Direito material tornou-se tendencialmente

    incmoda, pois proclamando o primado do homem e dos seus direitos como fulcro

    da organizao do Estado, induzia a assuno das reinvindicaes de liberdade pelo

    quarto-Estado, em oposio a uma burguesia j politicamente estabelecida.72

    68

    ZAGREBELSKY, 1995, p. 28 69

    Idem.

    70

    Ibidem, p. 29.

    71

    Ibidem, p. 30

    72

    NOVAIS, 2006, p. 105.

  • 36

    Deste modo, ganha espao a concepo de Estado de Direito formal,

    identificado com os seus elementos formais-instrumentais, ou seja, o princpio da

    legalidade da Administrao e da justia administrativa, e o ideal de submisso do

    Estado ao Direito progressivamente reduzido integral subordinao da

    Administrao lei.73

    A partir de ento, passa-se a valorizar os aspectos formais do Estado,

    afastando-se de seus elementos jusnaturalistas.

    Deve-se ressaltar que, como defende Jorge Reis NOVAIS, esses dois

    sentidos do Estado de Direito (material e formal) no se tratam de formas

    alternativas de conceber a relao entre governantes e governados, mas sim de

    diferentes perspectivas tericas na abordagem da mesma realidade. Os

    pressupostos tericos que fundam o Estado liberal esto presentes nas duas

    noes, pode-se dizer que a diferena reside apenas na autonomizao ou

    acentuao de dimenses parcelares do mesmo fenmeno. Ou seja, o que muda

    que o Estado de Direito formal no prescinde dos direitos individuais proclamados

    pelo modelo material, mas no os entende como direitos naturais e sim como

    espaos deixados livre actuao dos indivduos em virtude de um processo de

    autolimitao do poder poltico, de uma concesso que o prprio Estado fazia

    atravs da lei positiva.74

    Ora, o afastamento dos fundamentos jusnaturalistas do Estado deu-se,

    como afirmado, em funo da nova posio que a burguesia assumiu perante o

    Estado (ps-revolues, a classe burguesa ascende ao Poder). Com isso, o Direito

    Natural passou a ser visualizado como foco de instabilidade e, assim, a burguesia

    transferia para o direito positivo as suas aspiraes de segurana e estabilidade

    [...]75.

    O Estado de Direito passa, ento, a ser visto como Estado legal.

    Desvinculada de contedos substantivos, a conceituao do Estado de Direito

    73

    NOVAIS, 2006, p. 105. 74

    Ibidem, p. 108-110. 75

    Ibidem, p. 110.

  • 37

    (Estado legal) est ligada validade formal dos atos estatais, sendo completamente

    indiferente aos contedos materiais e fins de ao do Estado.76

    Com o esvaziamento da materialidade do Estado de Direito, passou-se a

    justificar toda e qualquer ao estatal, desde que embasada na lei. Trata-se do

    Estado de legalidade, o qual legitima as experincias antiliberais do sc. XX

    (facistas, nacistas e comunistas).77

    76

    ZAGREBELSKY, 1995, p. 22.

    77

    Neste sentido, explica Jorge Reis NOVAES: A formalizao do Estado de Direito careceria, ento, da relevncia que habitualmente lhe atribuda, na medida em que os mecanismos tcnico-formais no deixavam de actuar, no plano da realidade do Estado, os mesmo valores e contedos polticos que dava sentido caracterizao material do Estado de Direito. Porm, quando novas necessidades de manuteno do domnio pressionam a burguesia a abandonar o modelo liberal, o prprio conceito de Estado de Direito que se encontra confrontando com o problema da sua operacionalidade num tipo de Estado que, velada ou expressamente, desvalorizava, descaracterizava ou at eliminava o plo que considermos como cerne essencial do conceito a garantia de direitos fundamentais. A perspectiva forma do Estado de Direito seria ento utilizada para fornecer o libi jurdico ao autoritarismo. Nessa altura, quando se quebram os vnculos entre lei e garantia da liberdade, a lei positiva limita-se a constituir o . > (SCHEUNER) ou (GUMPLOWICZ) so, ento, designaes que se ajustam a um Estado de legalidade que perde progressivamente todas as referncias explcitas ou implcitas ao objetivo ltimo de garantia das liberdades explcitas ou implcitas ao objetivo ltimo de garantia das liberdades e proteo dos direitos individuais. No termo desta evoluo [...] encontraremos, finalmente, a ambgua convivncia do conceito com regimes totalitrios que sobrevm na Europa do sculo XX. Porm, os grmens deste processo que a partir da caracterizao formal do Estado de Direito evoluiria para a pretensa neutralidade do pura Estado de legalidade e consequente abertura manipulao autoritrio do conceito podem desde logo ser localizados no sculo XIX. (NOVAES, 2006, p. 112-113) Na descrio de Paulo Ricardo SCHIER: A conseqncia [sic] deste processo todo foi uma absoluta instrumentalizao e esvaziamento da materialidade do Estado de Direito que, desvinculado de contedo axiologicamente material, passou a justificar toda e qualquer ao do Estado, desde que embasada na lei. O Estado de Direito passa a ser o Estado legal/formal,, que nega o axiolgico ou os valores do Direito. O Estado torna-se o Estado de Legalidade, que s Estado de Direito na medida em que atua na via do Direito, legitimando as experincias antiliberais do sculo XX. Essas experincias antiliberais fascistas, nazistas ou comunistas, fundadas naquele Estado de Direito meramente formal, forma nada mais do que modos de tentar encontrar respostas s novas demandas sociais advindas com a primeira Grande Guerra e os resqucios do prprio capitalismo questo social e todas as demais conseqencias [sic] do processo de industrializao (SCHIER, 2008, p. 38, sem grifo no original) Assim tambm, ZAGREBELSKY: Dada la possibilidade de reducir el Estado de derecho a una frmula carente de significado substantivo desde el punto de vista estrictamente poltico-constitucional, no es de extraar que en la poca de los totalitarismos de entre-guerras se pudiese originar una importante y reveladora discusin sobre la posibilidad de definir tales regmenes como . Un sector de la cincia constitucional de aquel tiempo tena inters en presentarse bajo um aspecto , enlazando as con la tradicin decimonnica. Para los regmenes totalitrios se trataba de cualificarse no como una fractura, sino como la culminacin en la legalidade de las premissas del Estado decimonnico.Para los juristas de la continuidade no existan dificultades. Incluso llegaron a sostener que los regmenes totalitrios eran la - tras la perdida de autoridade de los regmenes liberales que sigui a su democratizacin - del Estado de derecho como Estado que, segn su exclusiva voluntad expressada en la ley positiva, actuaba para imponer eficacia el derecho en las relaciones sociales, frente a las tendencias a la ilegalidade alimentadas por la fragmentacin y la anarquia social. (ZAGREBELSKY, 1995, p. 22)

  • 38

    Com um conceito tal de Estado de Direito, carente de contedos, produzia-

    se, assim, um esvaziamento que as funes e fins do Estado. O qualificativo do

    Estado de direito podia ser aplicado a qualquer situao em que se exclusse a

    eventual arbitrariedade pblica e privada e garantisse o respeito a lei, qualquer que

    esta fosse. Ao final, todos os Estados, enquanto situaes dotadas de uma ordem

    jurdica, deviam ser chamados genericamente de direito. Inverteu-se o uso da

    noo de Estado de Direito, apartando-a de sua origem liberal e ao ponto de

    vincul-la a dogmtica do Estado totalitrio.78

    Deste modo, pode-se traar como caractersticas do Estado Legalista do

    sculo XIX: (i) a desvinculao do direito com a moral; (ii) as fontes do direito

    resumen-se lei; (iii) a supremacia formal das constituies, o que significa que as

    constituies funcionam como norma normarum, cartas procedimentais que

    determinam a elaborao das demais leis do ordenamento jurdico; (iii) perspectiva

    formal do direito, a licitude verificada na lei formalmente vlida.

    Constri-se um conceito mais jurdico, cientfico (KELSEN79), de Estado,

    desvinculado de contedos materiais, do que ideolgico. A Constituio passou a

    espelhar toda e qualquer organizao poltica, no s aquela do liberalismo.

    Portanto, viu-se que o paradigma de Estado que emergiu

    concomitantemente ao constitucionalismo moderno foi do Estado de Direito liberal,

    marcado fortemente pela ideologia burguesa, cujo fundamento terico se dava no

    justanuralismo. A Constituio assumiu, nesse contexto, o papel de limitar o

    exerccio do poder estatal e garantir, consequentemente, determinados direitos

    individuais. De incio, esse modelo de Estado de Direito surge como um Estado de

    Direito material, uma vez que visava a garantia de determinados direitos naturais. Ao

    longo do sculo XIX, esse


Recommended