Transcript
  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA

    Maria Luiza Quaresma Tonelli

    TICA E POLTICA: QUAL LIBERDADE?

    So Paulo

    2008

  • Maria Luiza Quaresma Tonelli

    Dissertao apresentada ao programa

    de Ps-Graduao em Filosofia do

    Departamento de Filosofia da Faculdade

    de Filosofia, Letras e Cincias Humanas

    da Universidade de So Paulo, para

    obteno do ttulo de Mestre em

    Filosofia sob a orientao do Professor

    Doutor Renato Janine Ribeiro

    So Paulo 2008

  • Jamais houve uma poca que no se

    sentisse moderna, no sentido excntrico

    do termo, e no acreditasse estar diante

    de um abismo iminente. A lcida

    conscincia desesperada de estar no meio

    de uma crise decisiva algo crnico da

    humanidade.

    Walter Benjamin

  • Para Bruna e Miguel, Esperanas de Futuro

  • Agradecimentos

    Agradeo de modo especial ao meu orientador, Prof. Renato Janine Ribeiro pela

    oportunidade que me foi dada, pela confiana, pacincia, sobretudo por suas

    valiosas crticas que contriburam para a elaborao deste trabalho.

    Aos colegas e amigos, Andres, Gabriela, Alfredo, Patrcia e Roberto pelos nossos

    ricos encontros, especialmente ao Ari, por sua generosidade, ateno e amizade

    Ao Prof. Edson Teles e Profa. Olgria pelas importantes crticas e sugestes na

    minha qualificao.

    s funcionrias do Departamento de Filosofia pela ateno, dedicao e delicadeza,

    especialmente Maria Helena, Geni e Marie.

    s minhas amigas queridas, Marta, Cinara e Terezinha Bezerra pelo grande

    incentivo e carinho.

    minha amiga Vilma, pelo carinho e cultivo de nossa longa amizade.

    A meus pais, pelo exemplo de vida, amor e dedicao.

    A meus filhos, Renato e Graziela por terem vindo ao mundo para me tornar melhor.

    A Rui, pelo amor, pacincia e compreenso ao longo de nossa jornada.

  • RESUMO

    Tonelli. Maria Luiza Quaresma, TICA E POLTICA: QUAL LIBERDADE? 2008. 151 f. Dissertao (Mestrado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2008. Este trabalho consiste na abordagem de aspectos que caracterizam a

    antiguidade grega clssica e a modernidade iluminista como experincias

    distintas do modo de existncia humana que compem o legado da civilizao

    ocidental, no que se refere tica e a poltica. tica e poltica eram

    indissociveis na antiguidade clssica, onde a liberdade era uma questo moral

    coletiva e poltica. Ser livre na democracia grega era pr-requisito para a

    cidadania. Com a democracia moderna a liberdade, como valor poltico, uma

    questo de direito do indivduo na condio de cidado. Na modernidade a

    liberdade uma questo individual. Se o sentido da tica e da poltica a

    liberdade, o objetivo deste trabalho investigar se, e at que ponto, a liberdade

    moderna pode estar no centro da problemtica relao entre tica e poltica em

    nossa atualidade.

    Palavras-chave: poltica, tica, liberdade, democracia, razo, modernidade

  • ABSTRACT

    Tonelli, Maria Luiza Quaresma, ETHICS AND POLITICS: WHAT LIBERTY? 2008. 151 f. Thesis (Master Degree) - Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2008.

    The aim of this work is to analyze the features that characterize the classical

    ancient Greece and the modern Enlightenment as distinctive experiences of

    western history in relation to ethics and politics. In classical ancient Greece

    ethics and politics were inseparable and liberty was a communal and political

    moral question. Liberty in the ancient Greek democracy was a requirement to

    citizenship. With the advent of modern democracy, freedom, as a political value,

    becomes a question of rights, which belong to all the individuals as citizens. In

    the Enlightenment liberty became an individual question. If the sense of politics

    and ethics is liberty, the aim of this work, then, is to investigate whether or not,

    and up to which point, modern freedom might be in the epicenter of the

    problematic relationship between ethics and politics at the present time.

    Key words: politics, ethics, liberty, freedom, democracy, reason, Enlightenment

  • SUMRIO

    Introduo 9

    Primeira parte

    A idia de crise e a inveno da Filosofia, da tica, da

    Poltica e da Democracia 16 Captulo I 1. Do mito ao logos 162. Palavra e verdade na Antigidade grega 203. Os sofistas: os mestres da opinio 274 A tragdia e a filosofia moral 335. A tica e a poltica: a filosofia na polis grega 43 Segunda parte

    Modernidade: A Reinveno da tica e da Poltica 53 Captulo II

    1. Da virtude ao dever: o nascimento da Vontade 532. Poltica democrtica entre antigos e modernos: 773. Modernidade: O tempo da razo 101

    Consideraes finais 127

    Bibliografia 143

  • Introduo

    Aristteles inicia sua Metafsica afirmando que todos os homens tm,

    por natureza, o desejo de conhecer. Hobbes dir, no Leviat: o desejo de

    saber o porqu e o como chama-se curiosidade e no existe em qualquer

    criatura viva a no ser no homem.

    O desejo de entender o que se passa de to problemtico na relao

    entre tica e poltica em nossa atualidade a razo desta pesquisa. Parto da

    hiptese de que a liberdade est no cerne da questo.

    verdadeira a afirmao de que nunca fomos to livres como hoje.

    Todavia, inegvel que cada vez menos os indivduos se interessam pela

    poltica sob a alegao de que as coisas so como so e nada se pode fazer

    para mudar o mundo da poltica. Assim, no basta dizer, conforme Hannah

    Arendt, que o sentido da poltica a liberdade. Resta saber de qual liberdade

    estamos falando, e em que medida a liberdade por si s o fundamento da

    poltica, bem como se apenas uma concepo especfica de liberdade poderia

    justificar a afirmao de que tica e poltica so indissociveis.

    Por poltica podemos entender, conforme Hannah Arendt, a convivncia

    entre indivduos diferentes que se organizam para certas coisas em comum.

    Pela poltica os indivduos se organizam politicamente para manter, reformar ou

    transformar o poder vigente. O termo politicamente significa aqui um modo

    especfico do agir humano que se caracteriza pela liberdade, tendo em vista a

    pluralidade dos homens. O sentido da poltica , realmente, a liberdade; no h

    como pensar a poltica como esfera de ao e de transformao sem que os

    homens individualmente e em conjunto sejam livres.

    Este trabalho divide-se em dois captulos: A idia de crise e a inveno

    da Filosofia, da tica, da Poltica e da Democracia e Modernidade: A

    Reinveno da tica e da Poltica.

    A primeira parte refere-se abordagem de temas que fizeram da

    Antiguidade grega uma poca inigualvel da civilizao ocidental pelo qual

    costumamos chamar de milagre grego.

  • 10

    A poltica inveno dos gregos. Isso no significa dizer que outros

    povos j no vivessem um modo de vida poltico. Conforme Cornelius

    Castoriadis, os gregos no inventaram o poltico em sua dimenso de poder

    explcito, pois este sempre esteve presente em toda sociedade, mas certo

    que os gregos no sculo V a.C. puderam criar a poltica porque, tal como foi

    criada, ela foi o questionamento explcito da instituio estabelecida da

    sociedade. Os gregos puderam criar a poltica e alm dela, a democracia e a

    filosofia, segundo Castoriadis, porque no tinham um Livro sagrado nem

    profetas; tinham poetas, filsofos, legisladores e politai. Deste modo a poltica

    tal como foi criada pelos gregos nada tinha de natural nem de sagrado, mas

    dependente do nomos da polis. Apesar da existncia na polis de uma religio

    oficial, a poltica era laica no sentido de que havia clareza na distino entre as

    leis divinas e as leis da polis.

    A poltica grega era a atividade coletiva refletida e deliberada e tinha

    como objetivo a instituio da sociedade como tal. Por saberem que os homens

    s podem viver em uma polis regida pelo nomos apropriado e que no h

    nomos natural, os gregos descobriram o arbitrrio do nomos, bem como a sua

    dimenso constitutiva para o ser humano individual e coletivo, segundo

    Castoriadis. Tal descoberta abre desde ento uma discusso interminvel,

    segundo o filsofo, sobre o justo e o injusto e sobre o bom regime.

    Para Castoriadis, a criao da poltica e da filosofia pelos gregos se

    constitui no primeiro projeto de autonomia coletiva e individual. Ser livre fazer

    o prprio nomos, assim como ser livre tambm significa que ningum deve nos

    dizer o que devemos pensar. Porm, a liberdade de fazer o prprio nomos leva

    a outras questes: que lei devemos fazer? O que devemos pensar? A liberdade

    de fazer o prprio nomos, para o grego da polis no exclui o dever ser. Deste

    modo, falar em relao entre tica e poltica como dimenses distintas e

    separadas do agir humano no contexto da polis grega do sculo V a.C. no

    faria sentido, uma vez que a tica surge como modo se ser virtuoso em funo

    de uma vida na comunidade poltica. No se trata de uma tica como ancilla

    politicae. Trata-se de uma tica sem a qual no seria possvel a realizao da

    vida poltica; uma tica sem a qual seria invivel a poltica concebida como vida

    boa e justa. Ser cidado significava, em primeiro lugar, ter aret e isso

  • 11

    pressupunha o que os gregos chamaram de paidia (formao). Segundo

    Castoriadis a radicalidade e a conscincia da fabricao do indivduo pela

    sociedade foi o que levou Plato a elaborar a utopia de uma cidade ideal que

    em nada se parecia com a democracia. Para Hannah Arendt o que levou

    Plato a essa radicalizao teria sido seu desencantamento com a poltica

    aps a condenao e morte de Scrates justamente na democracia, que o

    regime da palavra, da persuaso; democracia, que surge como ruptura na

    civilizao grega, caracterizando-se como o verdadeiro regime do

    convencimento. A palavra, a partir de ento, ir substituir o poder e a violncia

    fsica e simblica. Nesse novo contexto, o instrumento exclusivo da ao

    poltica ser o discurso. Em um regime onde a palavra de um equivale

    palavra de outro como um jogo civilizado, em que a simetria da palavra o

    prprio pilar da nova sociedade democrtica, a identificao da democracia

    com o prprio exerccio da palavra implica que ameaar a palavra o mesmo

    que ameaar a democracia como sistema poltico.

    O lao indissolvel entre a tica e a poltica na antiguidade uma das

    caractersticas da democracia grega, mas o que torna a democracia dos

    antigos um regime de cidados livres e iguais em nada se aproxima da idia

    moderna de moralidade na poltica a fim de preservar o respeito igualdade e

    liberdade entre os cidados. Primeiramente, tinham que ser livres para serem

    iguais na vida poltica, ou seja, no era a poltica que transformava o homem

    em cidado; ao contrrio, ser livre era a condio a priori daquele que no s

    podia como devia participar da vida poltica, estando excludos desta os

    escravos, as mulheres e os estrangeiros. Uma vez que eram livres, ou

    cidados, eram iguais no direito de falar. A igualdade entre os cidados, ou

    isonomia, era resultado da isegoria, igual direito de todos de manifestar sua

    opinio, de participar nas decises da comunidade atravs da palavra.

    O ethos, ou modo de ser da poltica democrtica era o modo

    essencialmente discursivo, donde a palavra de todos tinha o mesmo peso e

    valor; tomar a palavra ou fazer uso da palavra era o modo de fazer poltica

    por todos e qualquer um que fosse livre. Se o objetivo da poltica era o Bem

    comum, o bem da cidade, porque o bem aquilo a que todas as coisas

    visam, segundo Aristteles no Livro I da tica a Nicmacos, a comunidade

  • 12

    poltica, por ser a comunidade que estava livre da necessidade, absolutamente

    separada dos interesses privados, era a comunidade perfeita e acabada, ento

    o bem da cidade era o Soberano Bem, ou Bem Comum. Assim, a tica dos

    antigos era fundamentalmente a busca virtuosa de um bem, ou seja, de atingir

    uma finalidade.

    A tica dos gregos da antiguidade um olhar para fora. No havia,

    possibilidade de uma tica que no fosse voltada para a vida em comum; o

    homem grego no podia pensar em si mesmo separado de sua comunidade.

    O senso de comunidade era algo que se exprimia no carter do homem grego,

    refletindo no seu modo de existir como necessariamente um modo de estar-

    junto. A tica dos antigos era uma tica das virtudes para viver em

    comunidade; uma tica teleolgica, finalista, no uma tica do dever. Falar

    sobre tica e poltica na polis no faria sentido para o homem grego, pois no

    pensamento filosfico poltico da poca no h propriamente uma relao entre

    tica e poltica, mas um lao indissolvel entre ambas, ou seja, no se tratava

    de um pensamento moral voltado para a interioridade, para a conscincia

    individual, tal como concebemos modernamente. Toda a tica um olhar para

    fora; um modo de ser para ver e ser visto, uma tica pela qual o homem se

    define pela relao que estabelece com os outros.

    Sem esse ethos, esse modo de ser, de existir em comunidade, talvez

    no fosse possvel que os gregos pudessem inventar a democracia, o regime

    que se tornou a marca da poltica ocidental.

    A segunda parte deste trabalho fundamentalmente uma abordagem

    sobre aspectos que diferenciam a tica e a poltica entre antigos e modernos;

    diferenas profundas, que permitem nossa viso de uma verdadeira

    reinveno da tica e da poltica, no sentido de que a modernidade d incio a

    um novo homem, um novo modo de relao entre os homens e uma nova

    relao destes com o mundo.

    A abordagem de alguns aspectos da moral das virtudes dos antigos, e

    da moral do dever dos modernos nos permite perceber que a tica dos antigos

    e a tica dos modernos determinada pela forma pela qual os homens vivem

    social e politicamente. Na polis democrtica a tica era um modo de ser

    virtuoso, uma tica voltada para a vida em comum em que os homens estavam

  • 13

    sujeitos ao escrutnio da coletividade. Com os modernos surge uma tica do

    indivduo, com base no dever e no nas virtudes; uma tica da autonomia onde

    o indivduo d a si as prprias leis. A autonomia dos antigos era o poder que

    os homens tinham de instituir as leis da cidade. Autnoma, portanto, era a polis

    e no o sujeito. Com a modernidade o indivduo autnomo se for capaz de

    dar a si as prprias leis. Deste modo, a autonomia dos gregos era poltica, e

    social, pois era autonomia da polis, ao passo que com os modernos a

    autonomia do sujeito. Se a liberdade dos antigos era a capacidade de poder

    escolher e deliberar sem ser constrangido por um senhor ou por uma

    circunstncia, a liberdade moral dos modernos a faculdade da vontade do

    indivduo, que determina o dever, ou seja, a vontade da razo individual. Por

    isso, segundo Hannah Arendt, a moral dos antigos era do mbito do Eu-Posso,

    enquanto a dos modernos a do EU-Devo.

    Em suma, a vontade no estava presente na moral dos antigos, que por

    seu modo comunitrio de existncia louvavam os grandes feitos. Por isso,

    podemos dizer que se tratava de uma sociedade em que a vergonha era o

    sentimento de reprovao moral de cunho social. Com os modernos, a partir da

    filosofia de Kant, a moral surge como um querer autnomo e o que torna essa

    vontade boa no so seus xitos, mas a vontade de agir por dever; uma

    vontade desinteressada de propsitos, a no ser que se considere o interesse

    da razo exclusivamente pelo dever. Com isso, o sentimento de reprovao

    moral a culpa, sentimento individual que enseja a idia de responsabilidade.

    Quando dizemos que os modernos reinventam a poltica no sentido

    de que a diferena entre democracia direta da polis antiga e a democracia

    moderna no se resume representatividade poltica como nico fator de

    diferenciao entre ambas. Isso significa que a representao a diferena na

    forma da democracia como o regime onde a origem do poder est no povo que

    elege os seus representantes. H, porm, outras diferenas entre as

    democracias antiga e moderna, que no se referem sua forma, mas

    diferenas de contedo. Tais diferenas so teses levantadas por Renato

    Janine Ribeiro, no sentido de que na democracia antiga o poltico e o social

    eram inseparveis, ou seja, ao no separarem o povo enquanto sujeito de

    direitos polticos e de direitos sociais, os gregos deram incio a uma democracia

  • 14

    poltica e social. Com a democracia moderna a novidade que se opera uma

    separao entre o social e o poltico, ou seja, primeiro a democracia poltica,

    depois social. Com a excluso do social na democracia, o social reintroduzido

    como algo que lhe externo e adicional. Se na democracia antiga havia uma

    indistino entre o social e o poltico, com a modernidade isso no acontece,

    por isso entendemos o social e o poltico separadamente, segundo Janine

    Ribeiro. Alm dessas diferenas, Janine aponta para o fato de que o carter

    democrtico da poltica dos modernos, que depende mais dos direitos do que

    da representao, sendo que estes so de teor cada vez mais social, ento tais

    direitos tm origem no desejo. Se a matria prima dos direitos o desejo,

    ento, a democracia o regime do desejo. Portanto, se o desejo da ordem

    dos afetos, das paixes, podemos dizer que isso justifica que a democracia

    seja legitimamente o regime dos conflitos e no do consenso.

    Para Renato Janine Ribeiro, a poltica moderna do ocidente pagou um

    alto preo por excluir a democracia do mundo dos afetos ao convert-la em

    uma atividade humana exclusivamente racional.

    Na ltima parte do segundo captulo tratado o tema da modernidade

    como o tempo da razo. A modernidade inaugura um novo tempo de f na

    razo como f na cincia moderna. Ao romper com o tempo linear cristo

    medieval, a modernidade dessacraliza o tempo modificando a relao do

    homem com o futuro, uma vez que o toma em suas mos para ser o senhor do

    seu destino. quando surge a idia de necessidade histrica; o tempo da

    modernidade o tempo histrico.

    A modernidade fez surgir no sculo XVII o Iluminismo, com seu apogeu

    no Sculo XVIII. O Iluminismo foi fundamentalmente um projeto civilizatrio da

    razo esclarecida, de uma razo emancipadora. Dizer que o projeto iluminista

    civilizatrio reconhecer que a poca das Luzes se caracteriza pela

    confiana no progresso. Acerca do iluminismo Adorno, em parceria com

    Horkheimer, afirma que seu projeto era o de livrar o mundo do feitio, dos mitos

    e anular a imaginao, por meio do saber.

    O iluminismo no se constituiu definitivamente como um movimento

    puramente laicista, pelo fato de ter rompido como as foras da religio em face

    de um mundo novo que se afigurava como o tempo do conhecimento

  • 15

    cientfico. A hostilidade em face da Igreja e a luta contra a religio no se trava

    apenas em torno dos dogmas, mas em torno do modo de certeza da religio e

    das modalidades e da direo da f como tal. O sculo das Luzes depositou

    uma confiana incondicional na razo, ou seja, a crena de que o homem

    capaz de realizar sua liberdade se viver num mundo livre da dominao de

    foras externas. A f na razo esclarecida de um novo tempo que visava a um

    futuro auspicioso, de uma promessa de felicidade para a humanidade atravs

    do aumento do saber cientfico e que seria capaz de propiciar o progresso

    material e moral caracteriza o otimismo do movimento iluminista.

    As idias iluministas influenciaram as Revolues Francesa e

    Americana. A liberdade foi o ideal poltico revolucionrio que deu origem

    Revoluo americana; a igualdade era o ideal que estava na base da

    Revoluo Francesa, alm da liberdade, pois tratava-se de instaurar uma

    repblica com base na virtude, o que fez com que a prpria virtude passasse a

    ser associada ao terror jacobino.

    Para responder questo sobre o fracasso da dos jacobinos Benjamin

    Constant proferiu em 1819 a clebre conferncia no Ateneu Royal de Paris

    sob o ttulo A liberdade dos antigos comparada liberdade dos modernos.

    Para Constant, o resultado catastrfico da Revoluo Francesa que conduziu

    ao Terror teve como motivo uma equivocada viso de liberdade: a liberdade

    dos antigos. Sem atribuir valor negativo aos antigos, Constant considerava que

    viviam em outros tempos, com outras necessidades, muito diferentes da

    realidade de um governo popular que os revolucionrios de 1789 queriam

    implantar na Frana. A partir de ento, a polmica entre antigos e modernos

    se converte em uma questo relevante de qualquer reflexo poltica sobre a

    opo entre duas concepes antagnicas da relao homem-sociedade.

    Vivemos um tempo marcado pelas crises, principalmente no que se

    refere poltica e sua relao com a tica, ou falta de tica na poltica.

    Repensar a poltica no significa que tenhamos que renunciar aos princpios

    democrticos. Pelo contrrio, repensar a poltica o desafio do nosso tempo.

    Se este trabalho contribuir, de alguma forma para isso, ter atingido seu

    objetivo.

  • Captulo I

    A idia de crise e a inveno da Filosofia, da tica, da Poltica e da

    Democracia

    1. Do mito ao logos

    Se quisssemos citar uma palavra para caracterizar o nosso tempo,

    esta, sem dvida, seria a palavra crise. Para Gerd Bornheim, o conceito de

    crise alcanou hodiernamente uma abrangncia que o faz perpassar por

    praticamente todas as esferas do real.1 Crise da razo, crise dos valores, crise

    da civilizao, crise da poltica, crise econmica, enfim, a palavra crise est

    presente em nosso cotidiano sempre com conotao negativa, associada

    noo de decadncia.2 Todavia, vale lembrar que o conceito de crise

    ambguo e contraditrio.

    Em sua origem grega, a palavra crise no tem o sentido negativo que

    comumente atribumos a ela.3 Derivada do verbo grego krn (separar, decidir,

    distinguir, discernir, pronunciar, debater) a palavra crise, do grego krisis, (ao

    ou faculdade de distinguir, ao de escolher, decidir, julgar) d origem s

    palavras critrio (do grego kritriom,ou 'faculdade de julgar, regra para

    distinguir o verdadeiro do falso, base para uma escolha ou deciso) , crtica (do

    grego kritik 'que julga, decide, critica', julgamento, exame racional

    independente de preconceitos, convenes ou dogmas) e crtico (do grego

    kritiks; quem julga, avalia, aprova, desaprova; estado difcil ou embaraoso de

    uma situao, aspecto perigoso ou de risco) . Em latim, crsis significa

    momento de deciso, de mudana sbita.

    1 Bornheim, G. Crise da idia de crise. In: Adauto Novaes (org.) A crise da razo. So Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 47. 2 Para Bornheim, Convm desde logo chamar a ateno para um aspecto do tema que si permanecer esquecido pela generalidade dos manipuladores da palavra crise: que ela passa a ostentar uma dimenso essencialmente negativa toda crise seria em si mesma negativa. Op. cit., p. 49. 3 Idem, p. 49.

  • 17

    A palavra crise foi utilizada por Tucdides em A Guerra do Peloponeso

    para marcar o momento de deciso da batalha. Hipcrates fez amplo uso da

    palavra crise, tanto que a palavra, por muitos sculos, esteve mais circunscrita

    medicina, como o momento que define a evoluo de uma doena para a

    cura ou para a morte, do que para acontecimentos sociais.

    O antnimo da palavra crise, conforme o dicionrio Houaiss da Lngua

    Portuguesa, a palavra desdita (des- + dita), que significa falta de dita (sorte

    favorvel'), m sorte, infortnio, desgraa. Associada ao significado de desdita

    temos a palavra revs (aspecto desfavorvel de alguma coisa, contrariedade,

    golpe, acontecimento imprevisto que reverte uma situao boa para m;

    revertrio).

    Portanto, podemos observar que a carga negativa que damos palavra

    crise em nosso tempo, em sua origem no est nela mesma; a negatividade

    est sempre em seu oposto. O sentido da palavra crise e de seus derivados

    remete idia do pensamento em ao, na busca de uma sada e no no

    sentido de decadncia, de fracasso; tampouco remete idia de apatia (do

    grego apatheia; sem sensibilidade), estado de passividade e indiferena, falta

    de qualquer iniciativa.

    Se pensarmos que a palavra crise, mesmo isenta de qualquer carga de

    negatividade, traz consigo a necessidade de superao de uma situao

    problemtica, embaraosa, ento certo que uma situao de crise aquela

    pela qual alguma coisa colocada em questo, problematizada. Deste modo,

    podemos dizer que o conceito de crise em sua origem grega inerente ao

    nascimento ou inveno da filosofia, da tica, da poltica e da democracia.4

    inerente ao nascimento da filosofia, porque os filsofos pr-socrticos

    foram os primeiros a colocar em questo a explicao de ordem mitolgica da

    realidade pela tradio. Ao observarem a natureza, os filsofos da physis

    lanaram-se na busca de critrios para outra explicao da origem do mundo e

    das coisas que no fosse de ordem divina. Para Tales, por exemplo, o

    kritriom utilizado para sua deciso entre a explicao de ordem mitolgica e a

    physis era a gua como elemento primordial, o princpio de todas as coisas. 4 Digo nascimento ou inveno no sentido de que a filosofia, a tica, a poltica e a democracia tiveram seu incio devido capacidade criativa do gnio grego.

  • 18

    Claro que no podemos dizer que bastou ter colocado em questo a explicao

    de ordem mitolgica e simplesmente apontar a gua como a arqu de todas as

    coisas para que Tales tivesse dado incio ao pensamento racional ou filosfico.

    A prpria mitologia j apontava, com Homero, que tudo vem da gua com o

    deus Oceano. Como estamos falando em crise como conceito inerente ao

    incio da filosofia, o que houve foi o incio de uma nova mentalidade na Grcia

    do sculo VI a.C. atravs de uma verdadeira aventura intelectual operada pelos

    filsofos da physis. 5 Tales d incio Filosofia ao afirmar que a gua o

    princpio, a unidade primordial. Isso tem como conseqncia o fato de que

    atravs da Filosofia chega-se conscincia de que o um a essncia, o

    verdadeiro e do ponto de vista filosfico somente o um a realidade verdadeira

    e efetiva.

    Para Nietzsche,6 embora possa parecer absurda a idia de que a

    filosofia grega tenha nascido com a proposio de Tales ao afirmar que a gua

    a origem e a matriz de todas as coisas, preciso lev-la a srio justamente

    por que nela est contido o pensamento Tudo um. Se Tales tivesse dito

    simplesmente da gua provm a terra, segundo Nietzsche, tratar-se-ia de

    uma hiptese cientfica, falsa, mas dificilmente refutvel. Porm, Tales foi alm

    do cientfico expondo tal representao de unidade atravs da hiptese da

    gua. Tales no superou o estgio que Nietzsche chama de inferior das

    noes fsicas da poca mas, no mximo, saltou, por sobre ele.7 Este no o

    lugar apropriado para aprofundarmos esse tema, porm, vale a pena levantar a

    questo se o kritriom de Tales para colocar em questo a explicao da

    origem de todas as coisas pela via mitolgica e que faria dele o inventor da

    filosofia teria sido o elemento gua, como foi dito anteriormente, ou se o

    critrio teria sido o pensamento de que Tudo um. 8

    5 Pouco do que foi escrito pelos primeiros filsofos, pr-socrticos, ou filsofos da phyis, ou da natureza, chegou at ns a no ser atravs de fragmentos. O termo physis, no o que entendemos hoje por natureza, principalmente se levarmos em conta nossa concepo moderna de conhecimento cientfico. 6 Ver comentrio de Nietzsche sobre Tales e o incio da Filosofia na Coleo Pensadores, Pr Socrticos Vol. 1, Nova Cultural, So Paulo, 1989, p.p. 10-12. 7 Idem, p. 10. 8 Se o critrio simplesmente a gua, como elemento primordial, Tales pode ser considerado um filsofo naturalista. Se o critrio o tudo um, Tales o precursor da metafsica.

  • 19

    O que importa aqui que o advento da filosofia na Grcia marca o

    declnio de uma forma de pensamento mtico e d incio a um saber racional

    em um contexto onde a origem do mundo se baseava exclusivamente nas

    explicaes dramticas das teogonias e cosmogonias.9 Conforme aponta Jean-

    Pierre Vernant,10 com os filsofos da physis o carter positivo invadiu de chofre

    a totalidade do ser e a partir de ento, nada existe que no seja natureza

    (physis), Isso significa que tanto os homens, como as divindades e o mundo

    formam um universo unificado, num mesmo plano. Havendo a partir de ento,

    uma s natureza, uma s temporalidade, o original e o primordial despojam-se

    no somente de sua majestade como de seu mistrio. Conforme Vernant, j

    no o original que ilumina e transfigura o cotidiano; o cotidiano que torna o

    original inteligvel, fornecendo modelos para compreender como o mundo se

    formou e ordenou.11 O que ocorreu a partir de ento foi uma verdadeira e

    sbita revoluo intelectual, considerada inexplicvel, de modo a ser

    considerado o que muitos chamam de milagre grego.

    certo que os filsofos da physis, pelo carter de positividade de sua

    filosofia, abriram as portas para a cincia, mas isso no significa que a

    inveno da filosofia tenha sido uma forma exatamente laica de conhecimento

    ou de pensamento. Vernant lembra que para F.M. Cornford a primeira filosofia

    em nada se aproxima do que hoje chamamos de cincia e que, na verdade, se

    aproxima mais de uma construo mtica do que de uma teoria cientfica; que

    no se trata de uma reflexo ingnua e espontnea da razo sobre a natureza,

    mas de uma forma de pensamento que se transpe sob a forma laica e num

    vocabulrio mais abstrato a concepo elaborada pela religio. 12 Isso no lhe

    retira o carter de um pensamento racional. Cornford cita o exemplo da

    escolstica medieval para mostrar como uma filosofia pode ser racional e, no

    entanto, retirar da revelao as suas premissas deduzindo todo um sistema do

    9 Vale salientar que o problema da existncia de um princpio unitrio j estaria implcito na Teogonia de Hesodo, onde ele, ao estabelecer que uma coisa preceda da outra, procura coordenar a realidade. Todavia, Hesodo no afirma a existncia de um princpio supremo de todas as coisas porque para ele tudo est sujeito a um eterno devir, gerao e corrupo. Sobre isso, ver Battista Mondin, Curso de Filosofia, vol. 1, p. 17. 10 Vernant, Jean-Pierre, As Origens do Pensamento Grego,Difel, Rio de Janeiro, 2006, p. 110. 11 Idem, p. 110. 12 Ibidem, p.111.

  • 20

    universo sem a necessidade de verificao de suas concluses atravs de

    fatos observveis empiricamente.13

    At aqui falamos sobre a inveno ou o nascimento da filosofia14 com os

    filsofos da physis citando apenas Tales de Mileto como exemplo dos primeiros

    pensadores que se dedicaram busca da existncia de uma arqu, uma causa

    primeira de todas as coisas. 15 No obstante a importncia dos outros filsofos

    pr-socrticos para a filosofia,16 o que digno de ateno sobre Tales de

    Mileto no se refere apenas ao fato de ter sido ele o primeiro filsofo de que se

    tem notcia, mas por ser reconhecidamente o primeiro pensador cujo discurso,

    por se distinguir do discurso dos poetas, marca a passagem no ocidente do

    mito para o logos.

    2. Palavra e verdade na Antigidade grega

    possvel que pouca gente se d conta do papel efetivo que a palavra

    ocupa em todas as sociedades, desde as mais primitivas s mais

    desenvolvidas e complexas. A palavra sempre esteve associada idia de

    verdade. Quando dizemos que damos nossa palavra significa que estamos

    afirmando que verdadeiro aquilo que estamos dizendo, ou pelo menos

    esperamos que o ouvinte confie naquilo que est sendo afirmado. Assim, a

    palavra dotada de um contedo moral na medida em que est associada

    idia de sinceridade, de honestidade, mas tambm de um contedo poltico,

    como instrumento de poder, em razo da capacidade que temos de nos colocar

    diante do outro quando argumentamos com a finalidade de convencer algum

    a respeito de nossas idias, convices, enfim, de dizermos aquilo que

    acreditamos ser verdadeiro e que por isso mesmo nos possibilite agir tanto na 13 Cf. F.M.Cornford em Principium Sapientiae, As origens do pensamento filosfico grego. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1989, p. 257. 14 Historiadores da filosofia situam o seu nascimento no final do sculo VII e incio do sculo VI a.C. 15 Os outros filsofos no citados so Anaximandro e Anaxmenes chamados filsofos jnios, todos de Mileto, na sia Menor. Isso significa que a filosofia ocidental no nasceu em Atenas, mas nas colnias gregas do Ocidente, ou seja, na Jnia e na Magna Grcia. 16 Em especial, Parmnides, considerado o primeiro metafsico da histria da filosofia, em cujo pensamento o ncleo central a distino entre o ser e o no-ser para afirmar a exclusiva realidade do ser e Herclito, cujas linhas mestras do pensamento baseiam-se na idia do vir-a-ser, na contradio, na eterna transformao.

  • 21

    dimenso privada como na dimenso pblica de nossa existncia. Nesse

    sentido, o uso da palavra um ato de fala. Todavia, nem sempre os

    proferimentos dizem respeito ao que verdadeiro ou falso.

    J.L.Austin, filsofo da linguagem, afirma que h proferimentos

    verdadeiros ou falsos, que ele chama de proferimentos constatativos (por

    exemplo, quando digo que a porta est aberta algum pode constatar a

    veracidade ou a falsidade do proferimento) e os proferimentos performativos,

    ou seja, aqueles em que o ato de dizer uma palavra j uma ao, pois com

    esse tipo de proferimento o ato de dizer fazer e, em decorrncia dele, um

    estado de coisas pode ser modificado. Um exemplo de proferimento

    performativo afirmar eu prometo que estarei aqui amanh. No se trata,

    neste caso, de uma afirmao passvel de ser verdadeira ou falsa, mas feliz ou

    infeliz (bem sucedida ou mal sucedida), porque de qualquer forma um ato j foi

    realizado: o ato de prometer. Caso eu cumpra o prometido, meu ato ser bem

    sucedido, ou seja, no o caso de dizer que a promessa tenha sido

    verdadeira. O que Austin pretende com sua teoria dos atos de fala

    fundamentalmente ressaltar o carter de compromisso do uso da palavra. 17

    Sabemos que uma palavra um signo e, como tal, representa algo que

    no est presente. Na Grcia arcaica as palavras faziam parte do mundo das

    coisas e dos acontecimentos, segundo Luiz Alfredo Garcia-Roza.18 Naquele

    contexto a palavra era voz e gesto, dia e noite, vero e inverno. Desse modo,

    as palavras eram tanto signos mundanos como sagrados, uma vez que

    remetiam o indivduo para outro tempo que no era aquele em que estava

    vivendo, ao tempo dos heris e das divindades. A palavra no valia

    simplesmente pelo seu sentido manifesto, mas como signo a ser decifrado

    para que um outro sentido, oculto e misterioso, pudesse emergir num

    interminvel de decifraes19 e essa era exatamente a palavra do aedo

    (poeta), ou seja, a palavra que era portadora da verdade (alethia). O aedo,

    desta forma, era um ser excepcional pelo fato de enviar os homens, atravs da

    palavra potica, ao tempo mtico das origens. Os poetas, lembra Garcia-Roza, 17 Sobre a teoria dos atos de fala em Austin, ver J.L.Austin, Quando dizer fazer: palavras e ao. Edit. Artes Mdicas, Porto Alegre, 1990 18 Ver Luiz Alfredo Garcia-Roza em Palavra e Verdade na filosofia antiga e na psicanlise, Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1995, p. 7 19 Idem, p. 7.

  • 22

    no eram inventores de fices; eram portadores de verdades reveladas.

    Todavia, esse tempo no era um tempo cronolgico, nem um passado, mas

    outra dimenso do Cosmo qual apenas o aedo tinha acesso.20 Vale ressaltar

    aqui o papel da memria, conferida ao aedo pela Mnemosyne,21 que a

    possibilidade que o aedo tinha de acesso a outro mundo para, ao retornar ao

    mundo dos mortais, cantar aos homens a realidade primordial. Alm de

    propiciar a lembrana ao aedo, a deusa Mnemosyne igualmente propiciava a

    lethe (esquecimento), pois para que o poeta tivesse acesso ao tempo

    primordial teria que se esquecer do tempo presente.22 Apenas pelo

    esquecimento do tempo atual o poeta teria acesso ao mundo das divindades.

    Como no havia no mundo arcaico uma separao ntida entre o mundo

    dos deuses e o mundo dos homens, competia ao aedo cantar a distncia entre

    essas duas ordens. Porm, com Hesodo e com Homero a poesia comea a

    ter outra funo. A poesia, alm de passar a ser escrita, se transforma na

    narrativa dos grandes feitos dos guerreiros. Deste modo, todo ato herico

    passava primeiramente pela palavra do poeta; exatamente pela palavra do

    poeta que os atos hericos se eternizam. Para o guerreiro a morte cantada e

    lembrada , ento, prefervel sobrevivncia no esquecimento. Deste modo, a

    morte pela ausncia da palavra era, para os gregos dos tempos homricos, a

    maior de todas as ameaas.23 Todavia, com o aparecimento da filosofia e da

    poesia laica h uma dessacralizao da memria e da palavra. Nesse

    momento a memria do filsofo j estar ligada ao conhecimento. Com a

    dessacralizao do saber e com o advento de um pensamento exterior

    religio modifica a estrutura social e mental da polis grega.

    No limiar dos sculos VI e V a.C. a verdade (alethia) filosfica comea

    a se configurar com Parmnides. Todavia, vale lembrar que a alethia em

    Parmnides no ser a verdade do filsofo, tal como ser pensada por

    Plato.24 Em Parmnides a alethia desvelamento, no adequao entre o

    pensamento e a coisa, ou seja, a alethia concebida por Parmnides como

    20 Ibidem, p. 26 21 Mnemosine, na mitologia grega, filha de Urano e Gaia a deusa da memria. Sua funo proteger os homens dos perigos do esquecimento (Lethe). 22 Garcia-Roza, op. cit., p. 27 23 Idem p.31 24 Ibidem, p. 11

  • 23

    caminho atravs do qual ser e pensar podem dar-se.25 A alethia, como

    desvelamento, caminho ou abertura para o ser e o pensar, no pode se dar

    pelo caminho da doxa (opinio).26 Por isso, a alethia em Parmnides no se

    refere a uma evidncia, mas por um desvelamento no qual est includo um

    ocultar-se. Portanto, em Parmnides no h alethia sem lethe, ou seja, um

    desvelamento sem um velamento.27

    A oposio entre verdade (alethia) e opinio (doxa) em Parmnides ir

    desempenhar um papel de enorme importncia no pensamento ocidental tendo

    em vista que a opinio (doxa) a crena que se baseia nos dados sensveis e

    a verdade, em oposio s coisas sensveis, a convico fundada em

    argumentaes racionais. Em Parmnides a verdade pode ser formulada em

    termos lgicos. Sua doutrina do ser (o ser ; o no ser no ) fundamenta-se

    na reduo da ontologia lingstica, ou seja, a realidade do mundo

    necessariamente coincide com a anlise do verbo ser em termos lingsticos.

    Deste modo, no conceito de ser em sua coerncia lgica que devemos

    procurar a verdade, no no mundo sensvel. O que , segundo Parmnides,

    ser para sempre. O ser , desta forma, fixo, homogneo, indivisvel, eterno e

    jamais poder estar submetido a um devir.

    Oposto ao pensamento de Parmnides, dentre os pr-socrticos, em

    Herclito tudo devir. Tudo flui, nada permanece; a nica permanncia a

    eterna mudana. A lei que governa o mundo o logos. Para Herclito todo

    homem participa do logos universal, todavia, h diferenas na maneira de

    pensar entre os indivduos. H indivduos adormecidos e indivduos despertos.

    Os ltimos seriam os filsofos que, ao contrrio dos primeiros que se limitam

    percepo do mundo sensvel, utilizam o logos para penetrar com profundidade

    na verdade da natureza (physis). Para Herclito, ao contrrio de Parmnides,

    no a alethia que se esconde e sim a physis. Desse modo, tanto a alethia

    de Parmnides como a physis de Herclito so caracteristicamente

    enigmticas, na medida em que ambas so aquilo que ao mesmo tempo

    revelam e ocultam.28 Em Herclito a palavra logos, porm, o Logos no

    25 Ibidem, p. 12 26 O caminho da verdade em Parmnides o discurso da no-contradio 27 Garcia-Roza, op cit, p.12 28 Idem, p. 49

  • 24

    apenas a palavra, pois este excede a palavra. Em Herclito, vale salientar,

    ainda no h separao entre as palavras e as coisas, mas uma cumplicidade

    entre ambas. As palavras so parte da physis e como esta tambm se oculta,

    as palavras e as coisas so enigmas que precisam ser decifrados.29

    ainda no sculo V a.C. que a doxa passar a ser valorizada em

    detrimento da alethia. Se a palavra do aedo era portadora de alethia e esta,

    por sua vez, era uma verdade sagrada, a palavra do guerreiro nos poemas

    homricos era uma palavra que dizia respeito aos grandes feitos, desvinculada,

    a partir de ento, da alethia. A palavra do guerreiro no visava verdade,

    mas a peith, a persuaso e, segundo Garcia-Roza, exatamente isso que ir

    abrir caminho para a palavra do filsofo e do sofista.30

    O estatuto da palavra na sociedade democrtica ateniense

    radicalmente diferente daquele que ela possui na sociedade arcaica ou mtica.

    Uma importante ruptura ocorreu no sentido de que a palavra do poder se

    transforma no poder da palavra. Deste modo, a palavra adquire um estatuto

    eminentemente instrumental, na medida em que se tornar o instrumento de

    poder para a transformao da ordem social e poltica. Deste modo, talvez

    no seja equivocado afirmar que houve uma inveno da palavra democrtica

    como meio para uma nova ordem poltica, pois a democracia ateniense,

    tambm caracterizada como o regime da igualdade dos cidados livres,

    pressupe a isegoria, o valor igual da palavra de cada cidado. Uma

    democracia direta em que todos os cidados, igualmente, possuem

    competncia para deliberar e decidir sobre assuntos de ordem pblica, no

    poderia admitir que a poltica fosse coisa para especialistas, idia defendida

    por alguns em nossa atualidade, onde na democracia representativa os

    polticos so profissionais. Na democracia ateniense os cidados livres, ora

    governantes, ora governados, eram eles mesmos, em plena igualdade, os

    responsveis pelo exerccio do poder poltico.

    Dizer que a democracia ateniense se fundamenta na isonomia31 dos

    cidados e que esta significa o poder da palavra de todos de maneira igualitria

    29 Ibidem, p. 52 30 Ibidem, p.p. 36-37 31 Segundo Hannah Arendt, o sentido da poltica a liberdade. Tal liberdade significa que os homens estabelecem entre si relaes para alm da fora e do domnio. Uma poltica centrada

  • 25

    (isegoria), afirmar a simetria democrtica, ou seja, que a palavra de cada um

    vale a mesma coisa. Nesse sentido, uma verdadeira revoluo democrtica

    ocorre quando a palavra democrtica concebida como colocando em ao

    uma constante reciprocidade.32 Tal ordem democrtica significa, igualmente,

    uma revoluo nas mentes tendo em vista que essa nova ordem democrtica

    ateniense se configura como uma nova ordem da natureza que no mais

    hierrquica. Segundo Jean-Pierre Vernant, esse novo espao social, a partir de

    ento, centrado. A gora (praa), sob o terreno dessa nova ordem espacial,

    forma o centro de um espao pblico e comum.33 Isso significa que o kratos, a

    arch e a dynasteya no se encontram mais no pice da escala social, mas no

    centro (es meson). 34 Interessante notar que a salvao da polis depende

    desse centro (o espao poltico), que a partir de ento passa a ser valorizado e

    os indivduos que tm acesso a esse meson, aqueles que nele penetram, se

    definem como isoi (iguais) ocupando posies simtricas com relao a esse

    centro (que o ponto de equilbrio da polis). 35 Desse modo, todos aqueles que

    tm acesso ao espao poltico36 entram em relaes de perfeita reciprocidade

    uns com os outros. 37

    A democracia, segundo Phillipe Breton, surge como ruptura na

    civilizao grega, caracterizando-se como o verdadeiro regime do

    convencer38. A partir de ento a palavra ir substituir o poder e a violncia

    fsica e simblica. Nesse novo contexto o instrumento exclusivo da ao

    poltica ser o discurso. Dizer que a palavra de um equivale palavra de outro

    dizer que se trata de um jogo civilizado em que a simetria da palavra o

    prprio pilar da nova sociedade democrtica. Tal a identificao da

    na liberdade como no-domnio, segundo Arendt, uma liberdade negativa. Uma relao de iguais com iguais e sem esses outros que so meus iguais no existe liberdade. Para Arendt, a isonomia no pode ser entendida, como igualdade perante a lei, mas que todos tm o mesmo direito ao exerccio poltico. Isonomia, portanto, antes de tudo, a liberdade de falar, o mesmo que isegoria. Nesse sentido, a isonomia, tal como a entendemos hoje, com o significado de igualdade perante a lei, associado idia de justia um pensamento equivocado. A isonimia, portanto, no tem nada a ver com justia e sim com liberdade. Ver Arendt. H., O que poltica. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998, p. 48-49. 32 Cf. Breton, Philippe. Elogio da palavra. So Paulo: Edies Loyola, 2006, p. 150 33 Vernant, J.P., As origens do pensamento grego, So Paulo: Difel, 2006, p. 135. 34 Idem. 135. 35 Ibidem, p. 135. 36 Vale lembrar que a democracia ateniense era restrita aos cidados e, deste modo, no tinham acesso a esse centro poltico os escravos, os estrangeiros e as mulheres. 37 Vernant, J.P., Op. cit, p. 136 38 Breton, P., A manipulao da palavra, So Paulo: Edies Loyola, 1999, p. 27.

  • 26

    democracia com o exerccio da palavra, que cada vez que esta se encontra

    ameaada, a democracia poltica mesma que estar ameaada como

    sistema poltico. 39

    Sabemos o quanto a inveno grega da democracia marcar a evoluo

    da civilizao ocidental e o quanto a democracia moderna est distante da

    democracia ateniense como forma de sistema poltico. Sabemos tambm das

    profundas transformaes sofridas pela palavra no transcorrer da histria. O

    ocidente, desde a inveno da democracia grega, passou por grandes avanos

    e retrocessos e sabemos tambm o quanto a palavra tem sido manipulada ao

    longo daquilo que conhecemos por civilizao ocidental. No podemos deixar

    de concordar com a afirmao de Hannah Arendt de que o sentido da poltica

    s pode ser a liberdade e, da mesma forma, podemos concordar com a filsofa

    que o sentido de isonomia tambm pode ser pensado como liberdade e no

    exclusivamente com o sentido de justia (igualdade de todos perante a lei),

    principalmente se pensarmos que a ameaa liberdade de expresso sempre

    paira sobre a democracia, tanto na Atenas do sculo V a.C., como nos dias de

    hoje.

    Se ainda defendemos tanto a liberdade da palavra (ou modernamente

    como liberdade de expresso) como garantia da democracia, como o melhor

    regime poltico at hoje inventado, por que a poltica hoje est to

    desacreditada quando vivemos justamente na era da comunicao, justamente

    quando vivemos em sociedades em que o conceito de esfera poltica est

    diretamente associado ao conceito de opinio pblica? Quem defende

    realmente a democracia como o melhor regime no pode se afastar do ideal

    grego de poltica como atividade para no especialistas, apesar de sabermos

    que em nossas sociedades a palavra cada vez mais ela mesma

    especializada. Vivemos em um mundo de sociedades complexas, onde cada

    profisso e os temas que lhe so inerentes, com sua linguagem especializada

    (linguagem jurdica, econmica, mdica, etc.) invadem a cena pblica e, nesse

    sentido, a poltica se torna cada vez mais incompreensvel para o cidado.

    Ento, de se questionar uma opinio pblica que hoje est mais prxima da

    adeso do que para a escolha, para um discernimento, ou seja, de sermos

    39 Idem, p. 29

  • 27

    capazes de formar uma opinio efetiva sobre as instituies, sobre nossos

    representantes polticos e sobre temas e questes que nos dizem respeito

    como indivduos e como cidados.

    Se concordarmos com a afirmao de que a democracia, bem como a

    prpria poltica em seu sentido autntico, no coisa para especialistas,

    havemos de concordar que a poltica no da ordem do conhecimento e que,

    portanto, o que a caracteriza a opinio (doxa) e no a verdade (alethia), ou

    seja, que o carter de cientificidade que muitos querem atribuir poltica em

    tudo representa a prpria negao da poltica e da democracia, tendo em vista

    que a defesa dessa idia uma forma de excluso dos cidados do debate

    pblico. Tal concepo o que embasa a idia aristocrtica, hierrquica e

    conservadora de poltica, que por ser conservadora tambm reduz,

    freqentemente, os julgamentos polticos esfera exclusiva da moralidade,

    melhor dizendo, de uma hipocrisia moralista

    Diante dessas questes, uma abordagem sobre os sofistas se faz

    necessria devido a sua importncia, ainda no suficientemente reconhecida,

    na formao do pensamento poltico democrtico ocidental.

    3. Os sofistas: os mestres da opinio

    A filosofia pr-socrtica chega ao fim com a sofstica, movimento de

    idias presente no mundo grego no sculo V a.C., quando a Grcia ainda

    dividida em pequenas cidades que guerreiam entre si, apesar de cultuarem

    deuses em comum, falarem uma mesma lngua e compartilharem a mesma

    cultura. O aparecimento dos sofistas se deve a razes no apenas de ordem

    filosfica, mas tambm e principalmente de ordem poltica. A razo de ordem

    filosfica se deve ao fato de que os pensadores do sculo V antes de nossa

    era consideraram que era intil insistir na pesquisa metafsica sem estudar o

    homem em profundidade e determinar o alcance de sua capacidade

    cognitiva.40 As razes de ordem poltica para o aparecimento da sofstica se

    devem ao fato de que a vida na polis exigia a dedicao dos cidados

    40 Ver Battista Mondin, Curso de Filosofia, vol. I, So Paulo: Edies Paulinas, 1981, p. 40.

  • 28

    atividade poltica41. Nessas cidades a educao se dirigia fundamentalmente

    para a moral e para a arte da guerra e com a inveno da poltica como

    democracia, onde os cidados livres deliberam em praa pblica e a palavra se

    torna um valor e uma necessidade, os sofistas sero aqueles que no apenas

    ensinaro os homens a falar bem, mas acima de tudo a persuaso, a arte da

    argumentao e do convencimento. 42

    Os sofistas eram profissionais que cobravam para ensinar a falar bem e

    a manejar com habilidade os argumentos a fim de que seus discpulos

    pudessem convencer nos tribunais, tanto no que se referia a problemas de

    ordem privada como nas assemblias pblicas onde eram tratadas,

    deliberadas e decidas as questes polticas. Um dos motivos da pssima

    reputao atribuda aos sofistas est no fato de ensinarem a tchne rhetorik, a

    arte de convencer, sob a exigncia de pagamento, ou seja, os sofistas atuavam

    profissionalmente.

    A palavra sofista vem do grego sophos, sbio. Originariamente, seu

    significado era relativo ao detentor de alguma habilidade, percia. Em Homero,

    por exemplo, um construtor de navios algum que tem sophia; um cocheiro,

    um piloto de navio, um escultor so sophoi.43 squilo dir que o sophs no

    o homem que sabe muitas coisas, mas aquele cujo conhecimento til. 44 Um

    sophistes , ento, aquele que, dotado de percia especial, habilidade ou

    conhecimento para comunicar, possui sophia prtica, tanto nos campos da

    conduta e poltica como nas artes tcnicas. 45

    A sofstica surgiu num contexto de crise em que a precariedade das

    mltiplas solues propostas para as questes referentes natureza ltima das

    coisas e do seu princpio, do sentido da vida e do valor da lei moral exigia

    outras formas de reflexo e outras respostas. Os sofistas, levantando essas

    questes, foram os primeiros a responder que a realidade e a lei moral

    transcendem a capacidade cognitiva do homem. Tudo o que o homem conhece 41 Para uma leitura sobre o cotidiano do cidado livre em Atenas e como a democracia foi um regime que exigia muito dos cidados, ver Foustel de Coulanges, A cidade Antiga. So Paulo: Martin Claret,2001, p.p. 358-360. 42 O surgimento de tcnicas especficas na arte de falar bem dar origem ao que se conhece por retrica. 43 Sobre O que o Sofista, ver W.K.C. Guthrie,Os Sofistas. So Paulo: Paulus, 1995, cap. III 44 Idem., p. 32 45 Ibidem., p. 34

  • 29

    sobre a filosofia e sobre a tica por ele mesmo arquitetado e no proveniente

    de quaisquer divindades. Os sofistas ensinavam aos seus discpulos que s

    existe conhecimento provvel; no pode existir conhecimento verdadeiro.

    Tampouco para os sofistas existe uma lei moral absoluta; todas as leis so

    convencionais. Para eles, as leis humanas e os costumes variam de uma

    cidade para outra, por isso so meras convenes. Conforme o caso, o termo

    nomos significa lei, costume ou conveno. em torno da controvrsia nomos-

    physis que os problemas polticos sero abordados de diferentes maneiras

    pelos diversos sofistas. do contraste entre reino da necessidade, que o da

    physis, e de uma necessidade que depende das prescries da lei que nasce a

    controvrsia entre physis e nomos.46 Todavia, vale ressaltar que h divergncia

    entre os sofistas a respeito de physis e nomos. H aqueles que so os

    chamados defensores da physis e aqueles que so os defensores do nomos.

    No cabe aqui uma abordagem aprofundada a esse respeito, mas para efeito

    de esclarecimento, os defensores da physis eram os sofistas que atacam o

    nomos como restrio s operaes da physis47 Os defensores do nomos

    eram aqueles que rejeitavam a idia de um mundo ordenado por natureza.

    Os sofistas foram atrados para Atenas em virtude das novas condies

    polticas com o objetivo de ensinar os cidados de uma forma diferente daquela

    que caracterizava a formao guerreira dos poetas. O que os sofistas faziam

    em Atenas era formar politicamente os cidados. Eram os mestres da tcnica

    do discurso e o caminho que percorriam no era o da verdade, mas o da

    opinio. Com o aparecimento do movimento sofista surge a primeira crtica da

    razo poltica porque, para os sofistas, a poltica no da esfera da verdade

    (alethia) mas da opinio (doxa) da a oposio dos filsofos, que estavam em

    busca da verdade. Os sofistas, nesse sentido, so os primeiros a fundarem

    uma filosofia da democracia.

    Sabemos que a democracia grega, no foi um ideal de igualdade tal

    como o concebemos hoje, pois tratava-se de uma sociedade escravagista.48

    46 Cf. Alonso Tordesillas, Uma crtica da razo poltica: os sofistas. In: Histria da Filosofia Poltica 1, A liberdade dos antigos. Lisboa: Instituto Piaget, 2001,p. 185. 47 Sobre os defensores da physis, que se opem ao nomos como restrio s operaes da physis, ver em W.K.C. Guthrie, op. cit., p. 97. 48 Os sofistas, ao contrrio dos filsofos, como Aristteles, entendiam que ningum escravo por natureza e sim por conveno.

  • 30

    Em termos polticos, portanto, a nica desigualdade inaceitvel era a

    desigualdade diante da palavra.49 Da a importncia exercida pelos sofistas por

    parte dos cidados que tinham no apenas o direito, mas o dever de participar

    da nova ordem democrtica. Na polis ateniense, segundo Phillip Breton,

    explodem os usos da palavra e as pessoas passam a ouvir os sofistas com

    ateno necessria para aprender a tomar a palavra50 em um ambiente no qual

    tudo passa a depender dela e de seu uso eficiente.51 Alm, disso, vale

    ressaltar que tomar a palavra no mundo grego democrtico torna-se um dever

    cvico, pois a tomada da palavra, a partir de ento, a garantia de um recuo da

    violncia nas relaes sociais e por isso ganha o estatuto de um ideal

    pacificador na medida em que o instrumento mximo de transformao.52

    Trata-se doravante de uma nova ordem social e poltica da qual, segundo

    Breton, Roland Barthes chama de imprio da retrica.53 A retrica antiga,

    segundo Breton, representa uma verdadeira reviravolta lingstica e o uso da

    palavra num contexto poltico que se organiza em torno de um eixo constitudo

    por novas modalidades de deciso significa que a prpria tomada de deciso

    ela mesma uma modalidade de ao que no pode ser outro seno esse novo

    uso da palavra 54 e ningum melhor do que os sofistas para ensinar o exerccio

    da cidadania atravs da palavra eficiente.

    Os sofistas foram sbios dotados de um esprito livre em relao a tudo

    o que se referisse tradio,55 s normas, aos costumes e demonstravam

    enorme confiana nas possibilidades da razo. Por isso, podem ser

    considerados iluministas gregos.56 De todos os sofistas o mais importante foi,

    sem dvida Protgoras de Abdera, autor da clebre frase O homem a

    medida de todas as coisas, das coisas que so o que so, e das coisas que

    no so o que no so. Isso quer dizer que para Protgoras nada existe a

    no ser o que cada indivduo percebe ou conhece, o que para Aristteles trata- 49 Cf. Breton, P. Elogio da palavra. So Paulo: Edies Loyola, 2006, p. 154. 50 Na assemblia ateniense, aps a leitura de um projeto pelo arauto e aberta a discusso, este dizia: quem deseja tomar a palavra?. A esse respeito, ver Foustel de Coulanges, op. cit., p. 356. 51 Breton, P. Elogio da palavra, p. 156. 52 Idem, op. cit., p167. 53 Ibidem, p. 156. 54 Ibidem, p.p. 157-158. 55 Talvez pelo fato de no serem cidados atenienses. Os sofistas vinham de vrios lugares e por isso no estavam presos tradio e aos costumes de uma comunidade social e poltica. 56 Cf. Reali, G.; Antisseri, D., Histria da Filosofia vol. I, Paulus, p. 75.

  • 31

    se de puro subjetivismo e relativismo.57 Realmente, Protgoras foi de um

    subjetivismo extremo ao afirmar que tudo o que a um indivduo , para ele.

    Ento ningum tem o direito de chamar o outro de errado, uma vez que para

    ele nenhuma realidade existe atrs e independente das aparncias. 58 Tambm

    no campo da tica Protgoras assume uma postura relativista. No Teeteto

    (167 c-d), Protgoras diz E afirmo que os oradores sbios e bons fazem com

    que as coisas benficas paream ser justas cidade em vez de defeituosas.

    Pois aquilo que a cada cidade parece justo e belo isso para ela enquanto

    assim o determinar, mas o sbio aquele que faz serem e parecerem

    benficas cada uma das coisas que para os outros so defeituosas. 59 (grifo

    meu). Vale ressaltar que os sofistas no podem ser considerados como

    amorais, no sentido de um relativismo em torno dos predicados bom e mal. A

    sofstica era simplesmente uma viso poltica realista e, portanto, preferir uma

    ao boa em nada estava submetida moral. Ao substiturem o discurso dos

    pr-socrticos os sofistas substituem o discurso da physis pelo discurso

    poltico, inscrevendo o discurso poltico no registro do discurso comum, ou seja,

    o discurso somente se manifesta como poltico e capaz de criar a cidade

    atravs de um retorno sobre si prprio. Por isso Jacques Rancire afirma que a

    as formas de constituio da democracia so simplesmente as formas de

    constituio da poltica como modo especfico de um estar-junto humano.60

    No dilogo platnico Protgoras, o sofista se apresenta como tal

    anunciando que sua especialidade a arte poltica (319 a), a arte de tornar

    os homens bons cidados (319 a). Segue-se posteriormente uma discusso

    com Scrates se possvel ou no ensinar a virtude aos cidados. Para

    Protgoras, as virtudes necessrias para a vida em comunidade, dik (justia)

    e aidos (decoro), podem e devem ser ensinadas. As virtudes a que ele se

    refere, todavia, no so virtudes ticas e sim virtudes polticas. A dik refere-

    se a uma virtude poltica que antes de significar, para Protgoras,

    simplesmente uma disposio para a justia, muito mais uma disposio para

    agir de acordo com o nomos da polis. A virtude do decoro (aidos) a conduta

    57 Idem, p. 174. 58 Ibidem, p. 176. 59 Plato, Teeteto, Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2005 60 Ver Rancire. J. A partilha do sensvel: esttica e poltica. So Paulo: Ed. 34, 2005, p. 104.

  • 32

    de correo e decncia, ou seja, a arte de comportar-se bem em sociedade. No

    mesmo dilogo, Protgoras elabora um mito de Prometeu, sua maneira, no

    qual dike e aidos so apresentados no como virtudes morais, mas como

    resultado de conveno (nomos) e, desta forma, como instncias produtoras de

    ordem.61 Isso no significa que Protgoras concebesse a democracia como o

    regime da ordem e da estabilidade. Pela prpria natureza do regime, fundado

    no uso da palavra e da opinio, cada um pode dizer o que quer de maneira

    diferente, podendo opor-se a todos os outros. A cidade, deste modo, o retrato

    do desacordo permanente e ao mesmo tempo a nica instncia onde o

    acordo possvel, porque o que se d pelo nomos emana do desacordo das

    deliberaes pblicas. Na medida em que a cidade democrtica o solo do

    desacordo, do dissenso, cada acordo ser sempre fugaz. 62

    A idia de cidade democrtica em Protgoras, como o terreno do

    desacordo permanente, mostra que a democracia o regime dos conflitos e

    no do consenso. A clebre frase de Protgoras de que o homem a medida

    de todas as coisas pode ser interpretada como cabendo apenas ao homem a

    capacidade tanto de fazer como de aceitar o nomos. O nomos justo, para os

    sofistas, sendo apenas o do homem, ser justo apenas durante o tempo em

    que os homens decidirem que assim seja. A arte poltica, deste modo, a arte

    da controvrsia e debater jamais deixar de interrogar-se; a democracia como

    regime da controvrsia ser sempre aquele em que a controvrsia permitir

    no a verdade, mas a opinio mais vantajosa para a cidade.

    Se por um lado podemos dizer que se trata de uma viso extremamente

    realista ou pragmtica da poltica, por outro lado, inegvel a contribuio dos

    sofistas no que se refere participao poltica igualitria dos cidados num

    regime democrtico, embora saibamos que nem todos tivessem esse direito

    em Atenas. Quando os sofistas se propem ao exerccio de uma profisso que

    se traduz numa paidia poltica do cidado no significa que quisessem formar

    cidados para uma poltica de competentes ou de especialistas, mas para um

    uso eficiente e igualitrio da palavra. Na medida em que a democracia era o

    61 Cf. Tordesillas, A. op. cit., p.218. 62 Sobre democracia como dissenso ver Rancire, J. O Dissenso. In: Adauto Novaes, (org.) A crise da razo, So Paulo: Companhia das Letras, Ministrio da Cultura: Rio de Janeiro: Fundao Nacional de Arte, 1996.

  • 33

    regime da opinio, os sofistas podiam reconhecer que a democracia se traduz

    num permanente ato de linguagem e exatamente esse ato o instrumento sem

    o qual para o elo social no seria possvel. sob essa idia de democracia

    como regime da considerao igualitria da opinio que podemos dizer que a

    democracia o regime do conflito e que, ao mesmo tempo, apenas e somente

    pela palavra livre possvel a paz social e poltica.

    4. A tragdia e a filosofia moral

    Se a palavra crise uma constante nos discursos da atualidade, da

    mesma forma a palavra tica, ou a falta de tica, tambm presena

    constante, tanto nos meios de comunicao como nas ruas e sempre referida

    poltica, ou conduta dos polticos. atravs dos juzos de valor, das

    avaliaes sobre pessoas, coisas ou situaes que os homens so capazes de

    julg-los como bons ou maus, como desejveis ou indesejveis. atravs dos

    juzos de valor que fazemos nossas avaliaes e atravs deles que tomamos

    determinadas decises ao longo da vida.

    O que chamamos de juzos de valor tico, so de ordem subjetiva, na

    medida em que dizem respeito quele que avalia, e de ordem intersubjetiva,

    uma vez que impensvel que algum faa juzos de valor tico, que dizem

    respeito ao dever ser, sem a presena de outrem. Assim como o direito s

    existe em sociedade, a moral tambm s faz sentido na medida em que o

    homem vive coletivamente. Deste modo, em sociedade que a moral

    instituda; so os homens que, vivendo coletivamente, instituem valores

    referentes ao que consideram bem e mal, desejvel e indesejvel, enfim,

    valores que consideram e que esperam serem vlidos e aceitos pela maioria

    dos indivduos.

    A tica, desde suas origens com os filsofos da Grcia clssica, uma

    espcie de saber normativo, voltado orientao das aes dos homens

    vivendo em comunidade. A moralidade, 63 grosso modo, diz respeito questo

    63 No transcorrer deste trabalho usarei as palavras tica e moral como sinnimas, embora na minha concepo no signifiquem a mesma coisa. A moral tem mais a ver com os costumes, e com as condutas individuais, mesmo quando esse indivduo um grupo, uma comunidade,

  • 34

    como devo agir, o que significa que ela se refere ao do sujeito que se

    relaciona com os outros, bem como aos critrios que orientam tal ao. Uma

    vez que os critrios so as razes que levam o sujeito escolha de um agir

    bem ou mal, desejavelmente ou indesejavelmente, o que caracteriza uma ao

    como moral ou imoral, a questo da moralidade implica uma relao direta com

    a liberdade. Assim, toda ao moral, pressupe-se, aquela em que o sujeito

    livre e dotado de vontade e razo capaz no apenas de orientar seus atos,

    mas acima de tudo de assumir as conseqncias de suas aes. Em suma,

    moralidade, liberdade e responsabilidade so indissociveis.

    Se a moral tem a ver com a liberdade de escolha dos critrios e das

    decises e, ao mesmo tempo, com a responsabilidade, ou seja, com a

    obrigao do sujeito em arcar com as conseqncias de seus atos, de se

    supor que a moralidade, ou a tica, no se reduz mera escolha entre o bem e

    o mal, entre o desejvel e o indesejvel, ao permitido e o proibido, mas a uma

    escolha que pode envolver conflitos, pois a tica diz respeito s aes

    orientadas por um querer razovel. 64

    Dizer que na Grcia de Homero a Pricles que se encontra o

    fundamento da civilizao ocidental reconhecer que o homem do ocidente

    herdeiro de um povo que atingiu um estgio de desenvolvimento notvel, em

    face dos povos do Oriente, em tudo o que se refere vida em comunidade.

    Sem desconsiderar as realizaes religiosas, polticas e artsticas dos povos

    anteriores ou de povos contemporneos dos gregos da antiguidade clssica,

    uma sociedade. Penso que a moral se relaciona com a idia de dever, de obedincia a preceitos. A tica, no meu entender, tem a ver com o discernimento no sentido de uma ponderao, que requer autonomia. Est mais voltada para o juzo de razoabilidade. No significa que agir por dever no exija ponderao, nem que a tica tenha necessariamente que estar desvinculada de normas. Em poucas palavras, entendo que a moral um modo de dever ser enquanto que a tica est mais voltada para o dever de reflexo sobre as aes. 64 Digo razovel, ou bom senso, ao invs de racional, pois um juzo de razoabilidade aquele em que o sujeito da ao, diante de situaes conflitantes, ou que chamamos comumente como dilemas morais, pode se deparar com uma questo embaraosa ou incmoda. Uma ao moral, no pode ser reduzida escolha entre o bem e o mal. Muitas vezes precisamos decidir entre dois bens ou mesmo optar pelo mal menor e isso no significa uma tica de exceo. O juzo de razoabilidade seria ento, no a escolha entre os dois lados da balana da nossa capacidade de julgar, mas um juzo moderado, ou seja, um justo equilbrio ou bom senso. Uma ao moral orientada pelo juzo de razoabilidade seria aquela digna de aprovao porque baseada em razes aceitveis e justas (equilibradas).

  • 35

    possvel dizer que a histria daquilo a que podemos com plena conscincia

    chamar cultura s comea com os Gregos. 65

    na viragem do sculo VIII ao sculo VII que a Grcia toma um novo

    rumo, se confrontada com o background micnico, explorando a partir de ento

    as vias que lhes so prprias, ou seja, trata-se de uma poca de mutao

    decisiva que ir lanar os fundamentos do regime da polis,66 assegurando por

    essa laicizao do pensamento poltico o advento da filosofia.

    nesse contexto em que a polis se caracteriza por distinguir um domnio

    pblico, visando ao interesse comum, em oposio aos assuntos privados. As

    questes de interesse da comunidade poltica, ou da polis, eram decididas em

    plena publicidade, onde tudo era submetido ao olhar de todos.

    , portanto, na estrutura social da vida na polis que a cultura grega

    atinge a forma clssica. 67 Como forma de vida mais firme e acabada da vida

    social, a polis representa um princpio novo. Segundo Werner Jaeger,

    Descrever a cidade grega descrever a totalidade da vida dos Gregos68

    possvel, diz Jaeger, escrever uma histria da cultura alem abrangendo um

    longo perodo sem que se faa qualquer aluso poltica, ao contrrio da

    cultura grega, que tinha a polis como marco social da histria de sua

    formao.69 Se os gregos foram os criadores da idia de cultura (paidia), diz

    Jaeger,70 isso ocorre porque com os gregos que, pela primeira vez, se

    estabelece um ideal de cultura de modo consciente. 71

    Ao atingir a conscincia de si prprio o povo grego descobrir as leis e

    normas objetivas. O conhecimento dessas leis e normas dar ento no s ao

    pensamento, mas ao uma segurana anteriormente desconhecida.

    Segundo Jaeger, o povo grego tinha a plena conscincia de uma legalidade

    65 Cf. Jaeger W., Paidia, So Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 5 66 Cf. Vernant, Jean-Pierre, o advento da polis situa-se entre os sculos VIII e VII, marcando uma verdadeira inveno; nela que os gregos conhecero uma nova forma de vida e de relaes sociais. A polis grega passa por vrias formas e etapas que tero conseqncias no plano intelectual e no domnio das instituies. Op. cit., p. 53. 67 Jaegger, W. op. cit., p. 106 68 Idem, p. 106 69 Ver Jaeger, W., op. cit, p. 107 70 Idem, p 8 71 Ibidem, p. 10

  • 36

    imanente das coisas, bem como o senso inato do que significa natureza.72 O

    prprio conceito de natureza, criado pelos gregos, tem origem na sua

    constituio espiritual, pois antes de terem esboado tal idia j eram capazes

    de perceber as coisas do mundo no como partes isoladas, mas como um todo

    ordenado, em conexo, onde tudo tinha posio e sentido. 73

    O povo grego, filosfico por excelncia, tem em sua arte e em sua

    poesia uma ligao ntima com a teoria de sua filosofia. 74 No que se refere

    histria da literatura grega, no possvel separ-la da comunidade social, de

    onde surgiu, e qual se dirigia. do profundo enraizamento na vida

    comunitria que depende a fora do esprito grego, logo, O Homem que se

    revela nas obras dos grandes gregos o homem poltico.75 Para Jaeger, o fato

    fundamental de toda a educao grega estava na humanidade, o ser do

    Homem essencialmente vinculado s caractersticas do Homem como ser

    poltico.76

    Se a paidia era a palavra que significava a cultura, na palavra aret

    que chamamos de virtude, que se encontra o tema essencial da formao do

    homem grego.77 De importncia fundamental para a compreenso da tica

    grega, a arete um conceito que permeia toda a cultura do povo grego da

    Antigidade desde Homero, seu o primeiro educador.

    Conceito utilizado para designar tanto excelncia humana como a

    superioridade dos seres no humanos, a arete o atributo de nobreza, virtude

    com sentido de distino. O homem comum e o escravo no eram dotados de

    arete, que significava atributo incomum. Vigor e sade so arete do corpo,

    assim como a sagacidade arete do esprito. Se na polis o conceito de arete

    tinha um sentido de aceitao social, de respeito e de prestgio, em suas

    origens a palavra designava um valor objetivo para qualificar algum ou alguma

    72 Ibidem. p. 10 73 Ibidem, p. 11 74 Ibidem, p. 12 75 Ibidem, p. 12 76 Ver Jaeger, W., op cit., p. 17 77 Cf. Jaeger, W., a palavra virtude, na sua acepo no atenuada pelo uso puramente moral, e como expresso do mais alto ideal cavaleiresco unido a uma conduta corts e distinta e ao herosmo guerreiro, talvez pudesse exprimir o sentido da palavra grega. Basta isto para concluirmos onde devemos procurar a origem dela, s concepes fundamentais da nobreza cavaleiresca que remonta a sua raiz. Na sua forma mais pura, no conceito de arete que se concentra o ideal dessa poca. Ver op. Cit., p. 25

  • 37

    coisa, ou seja, tratava-se de uma fora que constitua sua perfeio. Vale ento

    ressaltar que apenas posteriormente, na polis, a aret passar a ter um carter

    de virtude moral.

    No fcil para o homem contemporneo do ocidente compreender

    como o povo grego da antiguidade clssica alcanou um nvel to elevado de

    desenvolvimento onde na polis estavam presentes ao mesmo tempo a arte

    tica, a poltica, a religio e o direito, onde todas essas instncias se

    entrelaavam, principalmente se levarmos em conta que naquele contexto a

    vida pblica era nitidamente separada da vida privada. Se a arete, mesmo com

    suas transformaes,78 se constituiu no conceito fundamental da formao do

    esprito grego e inerente vida em comunidade, a dike (justia), que em

    princpio pode ser definida como direito, tambm outro conceito fundamental

    para a vida poltica. Arete e dike so conceitos indissociveis.

    Foi em Atenas que a poltica encontrou na democracia a sua expresso

    mxima. Porm na Jnia, regio de intenso movimento espiritual e poltico da

    Grcia, que possvel encontrar as origens das novas idias polticas. 79 Os

    jnios desempenharam um papel importante no desenvolvimento da histria do

    esprito grego: o de libertar as foras individuais, inclusive no campo poltico.80

    Porm, os Estados jnicos, que eram colnias gregas, no tinham aptido para

    organizar essas foras, nem para reforar-se com elas, como aponta Jaeger.

    Apesar disso, foi l que as primeiras idias polticas foram introduzidas, dando

    origem nova organizao do Estado da metrpole.81 Nos poemas homricos

    se encontram os primeiros reflexos da vida na polis jnica.82.

    Desde os tempos primitivos at Herclito, atravs de Arquloco e

    Anaximandro, a justia como fundamento da sociedade humana estende-se na

    literatura jnica.83 Porm, ressalta Jaeger, a estima por parte de poetas e

    filsofos pela dike no precede a realidade. Ao contrrio, o reflexo da

    78 Refiro-me a transformaes no sentido de que a aret em Homero, significando habilidade, fora, vigor, depois passando a ser atributo de distino aristocrtica, na polis passa a ter tambm um sentido moral, como excelncia de carter. 79 Cf. Jaeger, W., Op. cit, p. 130 80 Idem, p. 131 81 Ibidem, p. 131 82 Quando Homero descreve a defesa de Tria ali esto presentes os traos de uma polis jnica. Cf. Jaeger, W., op. cit. p. 131. 83 Idem, p. 133.

  • 38

    importncia dos progressos ocorridos na vida pblica desde os sculos VIII at

    o incio do sculo VI. Num contexto histrico e cultural onde os nobres

    administravam a justia sem leis escritas, o aumento da oposio entre os

    cidados livres e aqueles gerou o abuso da magistratura levando o povo a

    reivindicar leis escritas. Assim, A palavra direito, dike, se converte no lema da

    luta de classes.84

    Vale ressaltar que dike a palavra que designa o direito escrito, igual

    para todos. Havia, contudo, outra palavra com significado de direito: a palavra

    themis. Esta, entretanto, refere-se autoridade do direito, sua legalidade e

    sua validade, enquanto dike significa o cumprimento da justia,85 Dike

    significava ao mesmo tempo a deciso e o cumprimento da pena, quando se

    diz, por exemplo, que as partes contenciosas do e recebem dike. Assim,

    tanto o culpado, d dike ao pagar uma indenizao ao lesado, como este

    recebe dike pela compensao pelo dano sofrido. Jaeger ressalta que o

    significado fundamental de dike equivale aproximadamente, deste modo, a dar

    a cada um o que lhe devido.86 interessante notar que a palavra dike se

    converteu em grito de combate de uma poca em que se reivindicava a

    consecuo do direito de uma classe que o recebia apenas como themis, ou

    seja, como lei autoritria. 87 Mais importante ainda o fato de que a palavra

    dike possua em sua origem o sentido de igualdade. Isto comprovado pela

    obrigao do culpado, numa contenda, de dar compensao equivalente ao

    prejuzo causado ao lesado. Este matiz de igualdade na palavra dike, conforme

    Jaeger, estar presente no pensamento grego atravs de todos os tempos e

    dele depender a prpria doutrina filosfica do Estado nos sculos

    posteriores.88

    A palavra dike tambm significa justia e pelo nomos (por conveno),

    como j foi visto em outra parte, que os homens so capazes de uma vida

    84 Isso ocorre atravs de Hesodo, que censura os senhores venais que atropelavam o direito ao realizarem sua funo judicial e isso significa o antecedente necessrio da reclamao universal por leis escritas. Cf. Jaeger, W.,Op. cit. p. 134. 85 Para os gregos, Dike, filha de Themis e Zeus, era a deusa da Justia. Themis, a guardi do juramento dos homens e da lei. Na mitologia romana, Dike a deusa Iustitia, vingadora das violaes da lei. 86 Ver Jaeger, W., op. cit. p. 135. 87 Idem, p. 135. 88 Isso significa que a democracia essencialmente, desde as origens, um estado jurdico.

  • 39

    justa em comunidade. Porm, com as transformaes decorrentes de uma

    nova ordem social e poltica no poderia deixar de ocorrer conflitos resultantes

    da oposio entre o nomos da polis e as leis no escritas, as agraphoi nomoi,

    leis divinas, eternas e imutveis, leis consideradas superiores pela sociedade,

    fundadas na religio e na moral privada. Sob as agraphoi nomoi o universo

    mental da civilizao grega foi forjado, logo era de se esperar que a profunda

    transformao sofrida pela polis democrtica tambm resultasse num conflito

    entre os costumes do oikos com suas leis no escritas e a Atenas democrtica,

    caracterizada como politia, como um estado de direito, um conflito entre uma

    sociedade de pessoas com uma formao moral de convices, obstinadas

    quanto integridade, imutabilidade e superioridade das leis divinas e uma polis

    poltica que exige dos cidados uma noo de leis que podem ser modificadas,

    porque estabelecidas por conveno e cuja legitimidade estava no homem-

    cidado e no em qualquer ordem divina. Isso significa, de alguma forma a

    possibilidade de conflito entre a moral e a poltica, justamente num contexto

    onde os filsofos, principalmente Aristteles, iro entender poltica e tica como

    indissolveis. Porm, melhor seria dizer que se trata de um conflito entre moral

    privada e moral pblica e no exatamente entre moral e poltica, simplesmente.

    Ningum melhor do que Sfocles, na tragdia Antgona, soube retratar o

    conflito entre as leis no-escritas e as leis escritas da polis. Sfocles soube

    contrastar em Antgona o conflito entre a moralidade dos indivduos do oikos e

    a norma social. Por isso, a tragdia de Antgona sempre atual.

    A tragdia grega, tal como a filosofia e a poltica como democracia,

    tambm foi uma inveno. Seu surgimento ocorreu no final do sculo VI a.C.,

    mas o sculo do apogeu da tragdia foi o sculo V a.C.

    A tragdia, gnero literrio apresentado no teatro grego, no mito, mas

    dele se alimenta.89 Segundo Jean Pierre-Vernant, a tragdia como gnero

    literrio original, apresentado sob forma de espetculo em festas pblicas na

    polis, uma forma de expresso que traduz aspectos da experincia humana

    at ento desconhecidos, marcando desta forma uma etapa na formao do

    89 Cf. Freitag, B. Itinerrios de Antgona: a questo da moralidade. So Paulo: Papirus, 1992, p. 21

  • 40

    homem interior, como sujeito responsvel.90 A tragdia no simplesmente

    uma manifestao artstica do homem grego, mas uma instituio social 91

    enraizada na realidade social da polis; todavia, segundo Vernant, no era um

    reflexo de sua realidade, mas uma forma de question-la.92

    O drama trgico se constitui numa lenda de heri de um passado da

    cidade,93 mas de um passado longnquo o bastante a fim de que, entre as

    tradies mticas e as novas formas de pensamento jurdico e poltico da

    polis, os contrastes fossem percebidos de maneira claramente delineadas. Mas

    esse passado longnquo tambm tem que ser percebido de maneira bastante

    prxima para que os conflitos de valor sejam ainda dolorosamente sentidos e a

    confrontao no cesse de fazer-se.94 Segundo Walter Nestle, citado por

    Vernant, A tragdia nasce quando se comea a olhar o mito com olhos de

    cidado.95 quando os valores fundamentais da cidade comeam a ser

    questionados atravs do debate.96

    Pela tragdia trazido cena o debate sobre um passado distante, mas

    ainda vivo, para que ela possa cumprir sua funo catrtica, isto , como

    expiao, como devida purificao do comunitrio.97 O heri trgico sempre

    um tipo excepcional, mas problemtico, situado entre dois universos

    irremediavelmente contraditrios. sempre algum que, em ao, se defronta

    com uma situao ambgua e conflituosa e sem soluo. No se trata de uma 90 Vernant. J.P.; Vidal-Naquet, P., Mito e tragdia na Grcia antiga. So Paulo: Editora Perspectiva, 1999, p. 1. 91 Em Atenas a tragdia era apresentada no teatro com a presena de todos os cidados, escravos, estrangeiros e mulheres. A instituio de concursos premiava os melhores dramaturgos e para a realizao de tais concursos a cidade colocava todo o aparato judicirio e poltico. A encenao da tragdia, nesse sentido, se dava na forma de um teatro cvico. 92 Vernant. J.P; Vidal-Naquet, op.cit., p. 10 93 Cf. Vernant, J.P., A tragdia tem, como matria, a lenda herica. No inventa nem as personagens nem a intriga de suas peas. Encontra-as no saber comum dos gregos, naquilo que eles acreditam ser seu passado, o horizonte longnquo dos homens de outrora. Op. cit., p.214 94 Idem, p. 10 95 Ibidem, p. 10 96 Conf. Vernant., J.P., a matria da tragdia o pensamento social prprio da polis do sculo V com suas tenses e contradies, principalmente aqueles surgidas do aparecimento do direito e das instituies polticas que a partir de ento iro questionar o plano religioso e moral, antigos valores exaltados pela lenda herica. A tragdia toma os temas e os heris no para glorific-los, mas para discuti-los publicamente em nome de um ideal cvico no teatro grego, como uma espcie de assemblia popular. Op.cit., p.55. 97 A catarse (katarsis) uma maneira de purificao, um modo simblico de tirar a mancha comunitria quando pela encenao trgica os espectadores vivenciam as problemticas das personagens, quase sempre relacionadas vida poltica da cidade. Sobre isso, ver Raquel Gazolla, Para no ler ingenuamente uma tragdia grega. So Paulo: Ed. Loyola, 2001,p. 29.

  • 41

    luta do bem contra o mal. Vale ressaltar que, segundo Vernant, na tragdia o

    heri no mais aquele dos poemas homricos. Na tragdia o heri deixou de

    ser um modelo tornando-se no s para si mesmo como para os outros um

    problema. Para Vernant a tragdia, alm de uma inacreditvel inovao

    artstica, uma instituio social e tambm um meio de colocar a questo do

    homem e de seus atos no plano psicolgico. A tragdia, diz Vernant: no

    coloca a questo: quem sou eu? E sim: o que vou fazer? Assim so colocadas

    as questes de responsabilidade (o agente senhor de seus atos?), da

    ambigidade do homem e de seus valores. A tragdia no uma resposta

    terica a essas questes, mas uma interrogao, um questionamento. E um

    questionamento espetacular.98

    Vale ressaltar, todavia, que as questes de responsabilidade na

    tragdia no podem ser interpretadas luz de nossa mentalidade moderna. O

    sentido trgico de responsabilidade, segundo Vernant, surge quando a ao

    humana d lugar ao debate interior, inteno. Porm, esse sujeito ainda no

    tem autonomia suficiente para que sua ao baste-se integralmente a si

    mesma. Deste modo, o domnio prprio da tragdia, segundo o helenista,

    situa-se nessa zona fronteiria onde os atos humanos vm articular-se com as

    potncias divinas, onde eles assumem seu verdadeiro sentido, ignorado do

    agente, integrando-se numa ordem que ultrapassa o homem e a ele escapa.99

    No havia entre os gregos do sculo V a.C. a noo de vontade, nem de

    livre-arbtrio. O heri trgico, quando toma uma deciso sempre de qualqu