O Primado do Imaginrio
na Traduo da Literatura Juvenil
ou
O Estrangeiro como fonte de aprendizagem
e construo do Eu
Maria Olinda Vieira da Silva Reis
2010
O Primado do Imaginrio
na Traduo da Literatura Juvenil
ou
O Estrangeiro como fonte de aprendizagem
e construo do Eu
Dissertao de Mestrado em Traduo, apresentada Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, sob a orientao do Prof. Doutor Joo Domingues.
Maria Olinda Vieira da Silva Reis
2010
Aos meus pais,
ao Tino, ao Duarte e Ins
Agradecimentos
Ao Doutor Joo Domingues que me apontou o caminho do mundo fascinante da
traduo da literatura juvenil;
minha colega, Ins P. Coutinho, que me abriu as portas da sua ampla biblioteca de
famlia e partilhou comigo as suas impresses de leitora crtica de Harry Potter;
Dra. Isabel Nunes que teve a amabilidade de me receber para trocar algumas
impresses sobre os incontveis e, por vezes, incontornveis problemas que
rodearam a traduo e coordenao da saga Harry Potter;
s minhas amigas Clia Lopes e Fernanda Martins, incansveis companheiras de
percurso acadmico e profissional;
s minhas irms, pelo seu carinho e apoio quando mais necessitei.
Palavras-chave
abertura ao Outro; censura; cultura; distncia cultural; identidade;
imaginrio; legibilidade; literatura infantil; literatura juvenil; modelos
dissimilatrios; modelos assimilatrios; perfis de leitor; processo de
referenciao; processos de traduo.
Resumo
Traduzir a literatura infanto-juvenil pode levar o tradutor a recorrer a
metodologias diferenciadas, em funo do pblico a que se destina. Se
as prticas assimilatrias parecem adequar-se ao pblico infantil, j a
traduo de obras destinadas aos adolescentes e jovens dever
potenciar estratgias de pendor dissimilatrio, uma forma de contribuir
para o alargamento e enriquecimento do imaginrio desses jovens
leitores, mais aptos para compreender e integrar o Estrangeiro.
Mots-cl
Ouverture lAutre; censure; culture ; distance culturelle; identit;
imaginaire; lisibilit; littrature enfantine; littrature jeunesse; modles
dissimilatoires; modles assimilatoires; profils de lecteurs; processus de
rfrenciation; procds de traduction.
Rsum
Traduire la littrature pour les enfants et pour la jeunesse peut amener
le traducteur recourir des mthodes diffrencies, selon le public
auquel elle sadresse. Si les pratiques assimilatoires semblent plus
appropries aux enfants, par contre, la traduction de livres adresss aux
jeunes adolescents devra privilgier des stratgies dissimilatoires, ce qui
permettra de contribuer llargissement et lenrichissement de
limaginaire des jeunes lecteurs, plus aptes comprendre et intgrer
ltranger.
Keywords
opening to the 'Other'; censorship; culture; cultural distance; identity;
imaginary; clarity; children's literature; youth literature; dissimilation
models; assimilation models; reader profiles; referenciation process;
translation processes.
Summary
Translating children's literature can lead the translator to use different
methodologies, depending on the intended audience. If assimilation
practices seem to fit the child audience, it appears that the translation of
books for teenagers and young people should enhance dissimilation
strategies, in a way to help broaden and nourish the imaginary of young
readers, more able to understand and integrate the strangeness.
NDICE
INTRODUO ........................................................................................................................ 1
CAPTULO 1 TRADUO E CULTURA PERSPECTIVAS TERICAS E PRTICAS ................... 5
1.1. Entre a teoria e a prtica da traduo ......................................................................... 5
1.1.1. Os modelos assimilatrios..........................................................................................11
1.1.2. Os modelos dissimilatrios .........................................................................................14
1.1.3. Prticas tradutivas conciliadoras .................................................................................17
1.2. A traduo da cultura ............................................................................................ 19
1.2.1. A distncia cultural como medida .............................................................................21
1.2.2. Processos de transferncia cultural .............................................................................26
CAPTULO 2 TRADUZIR A LITERATURA INFANTO-JUVENIL ............................................ 33
2.1. Especificidades da literatura infanto-juvenil ............................................................. 34
2.1.1. Exigncias e reconhecimento de um gnero ................................................................34
2.1.2. Um universo pouco homogneo .................................................................................36
2.2. Como o autor e o tradutor impem a sua viso do mundo ........................................ 38
2.2.1. Autoridade e Censura................................................................................................38
2.2.2. O critrio de legibilidade ............................................................................................43
2.3. Os jovens leitores em face do desconhecido ............................................................. 46
2.3.1. Os componentes de uma leitura de sucesso.................................................................46
2.3.2. A referenciao ao mundo do texto ............................................................................50
2.4. O contributo da traduo na formao do imaginrio do leitor ................................ 55
2.4.1. A construo do imaginrio .......................................................................................55
2.4.2. Formar e educar o imaginrio.................................................................................57
2.5. Traduzir para diferentes leitores ............................................................................... 59
2.5.1. Diferentes perfis de leitor ..........................................................................................59
2.5.2. Modelos tradutivos diferenciados na traduo infanto-juvenil .........................................61
2.5.2.1. O caso das sagas infanto-juvenis .....................................................................66
CAPTULO 3 ESTUDO DE CASO ......................................................................................... 69
3.1. O corpus ..................................................................................................................... 71
3.1.1. Orientaes e critrios de escolha ..............................................................................71
3.1.2. Anlise dos factores textuais externos e internos..........................................................73
3.1.2.1. Os autores e a sua obra ..................................................................................73
3.1.2.2. Os leitores .....................................................................................................77
3.2. A cultura no TP ....................................................................................................... 85
3.2.1. As marcas culturais explcitas .....................................................................................87
3.2.2. As marcas culturais implcitas .....................................................................................90
3.3. A intermediao cultural ............................................................................................ 93
3.3.1. Anlise da distncia cultural entre o TP e o TC .............................................................93
3.3.2. Tipos de interveno do tradutor ................................................................................98
3.3.2.1. O emprstimo ..............................................................................................98
3.3.2.2. O decalque ...................................................................................................99
3.3.2.3. A explicitao ............................................................................................. 100
3.3.2.4. A adaptao ................................................................................................ 102
3.3.2.5. A equivalncia ............................................................................................. 103
3.4. Consideraes finais ................................................................................................ 104
CONCLUSO ...................................................................................................................... 107
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ...................................................................................... 111
ANEXOS ............................................................................................................................. 117
Et il me rpta alors, tout doucement, comme une chose trs srieuse :
- Sil vous plat dessine-moi un mouton.
Quand le mystre est trop impressionnant, on nose pas dsobir. []
Alors, faute de patience, comme javais hte de commencer le dmontage
de mon monteur, je griffonnai ce dessin-ci.
Et je lanai:
- a cest la caisse. Le mouton que tu veux est dedans.
Mais je fus bien surpris de voir silluminer le visage de mon jeune juge:
- Cest tout fait comme a que je le voulais! Crois-tu quil faille
beaucoup dherbe ce mouton ?
SAINT-XUPRY, A., Le petit prince
http://2.bp.blogspot.com/_3WQv4c9g4Mo/SaxpNkSVEXI/AAAAAAAAAWA/IVp7h9z7dm0/s1600-h/10362pw150.jpg
[1]
INTRODUO
Aos olhos do Principezinho, uma simples caixa com trs orifcios pode abrigar a
ovelha que ele queria. Esta personagem, que fez de Le petit prince um dos livros mais
lidos e mais traduzidos de sempre, pertence ao imaginrio de toda a criana e adulto
que leu o livro que Saint-Exupry dedicou ao seu amigo Lon Werth, quand il tait petit
garon. A imagem sugestiva, com a qual abro esta introduo, permite traduzir a
ideia-chave que se encontra no ttulo e subttulo deste trabalho e, ao mesmo tempo,
problematizar algumas especificidades que a literatura infanto-juvenil e a sua traduo
encerram.
A mensagem implcita no excerto citado vai ao encontro do conhecido aforismo
do autor, explicitado no dilogo entre a raposa e o Principezinho: On ne voit bien
quavec le cur, limportant est invisible pour les yeux. O teor desta mensagem reenvia
para uma imagtica mental que, no mbito desta reflexo, faz todo o sentido. Sublinho
aqui a importncia do papel da imaginao na criana e no adolescente, assim como da
sua capacidade de criao e interpretao de imagens e signos que o ajudam a
apreender e a compreender o mundo e os outros. No nosso mundo mediatizado, no qual
a criana metralhada com imagens fabricadas e padronizadas em catadupa, o espao
para a imaginao francamente exguo. Uma das formas de contrariar esta tendncia
o incentivo leitura que, por se tratar de um processo complexo que envolve
mecanismos psquicos e cognitivos, obriga a criana a criar as suas prprias imagens, os
seus prprios smbolos, tornando-a mais autnoma e permitindo-lhe construir o seu atlas
do conhecimento, de si e dos outros. Neste contexto, a leitura de livros traduzidos, com
origem noutras culturas e noutras civilizaes, desempenha um papel formador no
negligencivel, j que obriga a criana e o jovem a atravessar fronteiras, a conviver de
perto com o Outro, com o Diferente. O tradutor, a par com os educadores, professores,
editores e pais/encarregados de educao, v-se assim revestido de uma misso
educativa que acresce a uma outra, no menos importante: a de mediador cultural.
Ambas representam desafios assinalveis para todo o tradutor que se dedica traduo
de literatura infanto-juvenil.
[2]
em torno destas duas misses que se articula esta reflexo, levada a cabo no
mbito do Mestrado em Traduo, e intitulada O Primado do Imaginrio na Literatura
Juvenil ou O Estrangeiro como fonte de aprendizagem e construo do Eu.
O ttulo desta dissertao apresenta inequivocamente o imaginrio como uma
pedra angular da traduo da literatura juvenil. Esse mesmo imaginrio que se alimenta
de imagens, signos e smbolos de natureza variada, e que encontrar nos livros
traduzidos um estmulo para a sua abertura e expanso. A importncia destas fontes
para a compreenso das sociedades e das culturas humanas tem sido sublinhada por
alguns tericos e investigadores que, opondo-se aos fundamentos da razo e da cincia
como nica via para o conhecimento, desenvolveram e sistematizaram uma teoria que
integra fenmenos de pendor mais subjectivo. Destacam-se os trabalhos do socilogo
francs Gilbert Durand, fundador da cincia do imaginrio, que desde cedo se apoiou
nas teorias de Jung para demonstrar que cincia e subjectividade no so abordagens
antagnicas, podendo complementar-se para melhor aceder ao conhecimento. Falar do
imaginrio em literatura juvenil, como repositrio das imagens mentais, obriga a
equacionar duas vertentes: o imaginrio como processo e como produto inconsciente.
Para o aperfeioamento de um e o alargamento do outro pode contribuir o tradutor:
relativamente ao primeiro, obrigando o jovem leitor a recorrer a imagens armazenadas
na sua mente, de modo a inferir e deduzir referncias desconhecidas e, para o segundo,
pondo sua disposio novas imagens de outras realidades, que a literatura capaz de
potenciar. Desenvolver e alargar o imaginrio do jovem leitor podero ser os objectivos
de uma metodologia de traduo, para a qual importa preservar o Outro para melhor
o conhecer e compreender, sobretudo nos tempos actuais em que o mundo nunca
esteve to prximo de ns. O papel do tradutor ser o de (entre)abrir a porta desse
desconhecido.
A fazer jus ao elevado nmero de estudos sobre traduo de literatura infanto-
juvenil e ao crescente interesse por parte das instituies nacionais e internacionais com
apoios de vria ordem, a traduo infanto-juvenil tem vindo a ganhar contornos que lhe
merecem toda a ateno. As razes desta actividade em plena efervescncia esto
directamente relacionadas com o incremento da produo de literatura infanto-juvenil e
com o fenmeno da internacionalizao dos bens culturais, associado corrente
globalizante que alastra pelo planeta, desde os finais do sculo XX.
[3]
A escolha do tema da traduo da literatura infanto-juvenil vai assim ao encontro
da reflexo emergente sobre a sua problemtica, designadamente sobre o que se
traduz, como se traduz, porque se traduz e para quem se traduz. No entanto, e devido
complexidade e abrangncia da temtica, tornou-se necessrio delimitar o estudo,
restringindo a anlise s marcas portadoras de indcios culturais. A defesa pela
preservao destas marcas, no intuito de obrigar o jovem leitor a ser confrontado com o
diferente e o Estrangeiro, constitui a linha mestra deste trabalho, ao longo do qual
se procurar evidenciar os benefcios de tal metodologia na formao da sua
personalidade e ampliao dos seus conhecimentos enciclopdicos.
Considerei importante fazer um enquadramento terico da concepo dualista -
preservao ou acultarao dos traos prprios de uma cultura -, que marcou, durante
sculos, a reflexo sobre a traduo. O primeiro captulo incidir sobre as causas e os
efeitos que as diferentes abordagens tradutivas tiveram, e tm, nas sociedades
humanas. Esta reflexo no poderia ficar concluda sem algumas abordagens tradutivas
que propem a adopo de estratgias conciliadoras, diluindo assim o antagonismo que
caracterizou o estudo da traduo ao longo dos tempos. Esta abordagem parece ser,
como se ver, predominante no processo de traduo de literatura juvenil.
Pelo facto de se poder estabelecer um paralelismo entre o processo de autoria do
texto de partida e o processo de traduo (uma realidade enfatizada por diversos
tradutlogos, investigadores e tambm tradutores), considerou-se importante analisar
alguns dos factores que caracterizam a escrita de livros destinados a crianas e jovens.
Esta anlise, levada a cabo ao longo do segundo captulo, permitiu identificar algumas
das estratgias dos autores que podero legitimar e fundamentar as opes do tradutor.
Na verdade, se o escritor recorre a estratgias diferenciadas refiro-me tanto ao
sistema lingustico, como ao sistema cultural - em funo do perfil do seu pblico (idade,
grau de maturidade afectiva e intelectual, etc), no se encontram razes para que o
tradutor tenha que proceder de forma homognea diante de pblicos diferentes.
Veremos, neste captulo, como pode revelar-se pertinente uma diferenciao
metodolgica do processo de traduo ( semelhana do que j ocorre no processo de
escrita). Por outro lado, tornou-se igualmente imprescindvel reflectir sobre o perfil
psico-social e cognitivo do leitor, bem como sobre o seu papel em face do
desconhecido. Pareceu-me relevante aprofundar os mecanismos afectivos e
intelectuais, mobilizados durante as diversas fases do leitor-tipo, assim como as
competncias convocadas para colmatar eventuais espaos em branco. Veremos,
[4]
ainda, como uma excessiva explicitao, por parte do tradutor, poder comprometer o
prazer inerente a uma leitura bem sucedida, e contribuir, ainda, para a atrofia do
imaginrio do leitor, nomeadamente para os adolescentes e jovens, para quem o
mistrio e o exotismo so fontes de atraco considerveis.
Para o estudo de caso, que constitui o terceiro captulo, escolhi um corpus
reduzido, de quatro obras francfonas, no traduzidas em Portugal. Este critrio foi
determinante, uma vez que se pretendia fazer o levantamento, a classificao e a
sistematizao das marcas culturais, sem ser movida por preocupaes comparativistas
ou outras de teor mais crtico (que ocorrem inevitavelmente quando existe uma traduo
j disponvel). O objectivo da anlise, que integrou alguns dos princpios enunciados ao
longo dos dois primeiros captulos, foi mostrar at que ponto se pode recorrer ao
mtodo global de traduo dissimilatria na literatura juvenil.
[5]
CAPTULO 1 TRADUO E CULTURA PERSPECTIVAS TERICAS E
PRTICAS
Si la traduction fait perdre lobjet son identit, elle ne
laura pas traduit, mais dtruit.
RICHARD, J.-P., Traduire lignorance culturelle
1.1. Entre a teoria e a prtica da traduo
Para abordar a questo da traduo da literatura infanto-juvenil, considero
essencial comear por definir dois conceitos fundamentais em torno dos quais se articula
este trabalho: traduo e cultura. Importa definir o mbito de cada um deles, j
que no raro estarem ambos no centro do debate, quer no plano da teoria
propriamente dita, quer no domnio dos estudos baseados na prtica tradutiva.
Confinada durante largos anos a discusses pouco profcuas sobre a sua
definio e alcance, a traduo tem vindo a emancipar-se, afastando-se das
imprecises e limitaes que a caracterizavam, para ganhar contornos mais ntidos e
alcanar um estatuto cientfico e acadmico. Ressalta, desta perspectiva diacrnica, uma
atitude que durante largos anos reduziu a traduo a uma mera equivalncia formal,
justificada em parte pela abordagem comparativista dos textos de partida (TP) e dos
textos de chegada (TC)1, deixando de fora outros parmetros importantes que, com o
tempo, foram sendo resgatados. Estamos longe das querelas que alimentaram durante
quase dois milnios a crtica da traduo e os esboos tericos que lhe estiveram
associados. Actualmente, j ningum ousa falar de traio por parte do tradutor,
sendo quase consensual a existncia de inmeros factores internos e/ou externos que
podem legitimar as escolhas do tradutor. Esta evoluo explicada, em parte, pelo
aparecimento do paradigma funcionalista que, apoiado nos estudos de Vermeer (1978) e
da sua Skopostheory, revestiu a traduo de uma nova dimenso. Com efeito, ao
aplicar os fundamentos desta teoria traduo, os seguidores do modelo funcionalista,
C. Nord entre outros, insistiram, ao longo dos seus trabalhos publicados, na ideia de que
1 Na bibliografia consultada so comummente utilizadas as siglas TS (texte source) e TC (texte cible) e ST (source text) e TT (target text), na lngua francesa e na lngua inglesa respectivamente. Ao longo deste trabalho, recorri s siglas equivalentes TP (texto de partida) e TC (texto de chegada) para favorecer a fluncia da leitura, sempre que se alude aos referidos conceitos.
[6]
o tradutor deve subjugar as suas escolhas funcionalidade determinada pela finalidade
do TP ou do TC (NORD, 2006) .
Outros pensadores, das mais variadas reas do saber, podem igualmente ser
apontados como os grandes responsveis pelo aprofundamento da problemtica da
traduo. Destaco aqui o filsofo francs P. Ricoeur, que apresenta duas noes de
traduo: Deux voies daccs soffrent au problme pos par lacte de traduire: soit
prendre le terme de traduction au sens strict de transfert dun message verbal dune
langue dans une autre, soit le prendre au sens large, comme synonyme de
linterprtation de tout ensemble signifiant lintrieur de la mme communaut
linguistique2. Deixaremos de lado o sentido lato de traduo, que muito se aproxima
do conceito preconizado por G. Steiner, para quem todo o processo de compreenso,
seja intralingustico ou interlingustico, um acto de traduo, conforme ele mesmo
elucida no prefcio que acompanha a 2 edio de Aprs Babel : Une potique du dire et
de la traduction : Comprendre, cest dchiffrer. Entendre une signification, cest
traduire. (STEINER, 1998, p. 17). Para a reflexo em curso, s a primeira definio
interessa. O conceito de traduo, no seu sentido restrito, aqui relevante, uma vez
que, ao equacionar a traduo como um processo de transferncia, abre novos campos
de aco, tanto para o tradutor como para o investigador. Tradicionalmente encarada
como produto e nico objecto de anlise, a traduo passa a integrar competncias
processuais, baseadas na reflexo e na experincia do tradutor e investigador. O
conceito tradicional foi assim ampliado e, ao apoderar-se de uma dimenso mais
dinmica, fez emergir um novo ramo de conhecimento, comummente designado
Tradutologia.
Esta viso mais empirista e mais pragmtica da traduo defendida por A.
Berman3 que afirma que La traduction est une exprience qui peut souvrir et se (re)
saisir dans la rflexion e define a tradutologia como la rflexion de la traduction sur
elle-mme partir de sa nature dexprience (BERMAN, 1985 , pp. 16-17) . Para este
autor, o acto de traduzir aproxima-se do acto de filosofar. atravs do pensamento
que o tradutor pode legitimar as suas escolhas e, embora no ensine a traduo, como
refere o prprio autor, a tradutologia dveloppe de manire transmissible
2 RICOEUR, Paul, Sur la traduction, Paris, Bayard, 2004, p. 21, citada em (RAGUET, 2007, p. 39). 3 O artigo La traduction et la lettre ou lauberge du lointain foi publicado em Portugal, em 1997, pelas Edies Colibri, numa verso traduzida coordenada por Guilhermina Jorge. Faz parte de uma colectnea de textos com o ttulo Tradutor Dilacerado : reflexes de autores franceses contemporneos sobre traduo (JORGE, 1997).
[7]
(conceptuelle) lexprience quest la traduction dans son essence plurielle4 (BERMAN,
1985 , pp. 22-23). Esta atitude reflexiva, que se estende a todos os que se encontram
no espao da traduo, permite que a traduo beneficie do conhecimento e
aprofundamento de vrias disciplinas, cujo objecto de estudo se intersecciona com o da
traduo, a saber a filosofia, a literatura, a lingustica, a psicanlise, a informtica, a
sociologia e a antropologia, entre outras.
Ao penetrarem no domnio da traduo, todas estas disciplinas cientficas
permitiram clarificar algumas limitaes da traduo, no entanto, medida que esta
foi alcanando um estatuto de matria multidisciplinar, tambm se intensifica a sua
complexificao. Esta caracterstica parece justificar a impossibilidade da criao de uma
nica teoria, porquanto existem tantas abordagens quanto as disciplinas envolvidas5.
Para abordar a problemtica da cultura na traduo (tema central do nosso
trabalho), a cincia que merece ser evidenciada a antropologia, pois permitiu que
fosse lanado um novo olhar sobre a traduo da cultura e dos fenmenos culturais,
relativizando, ainda que no as erradicando, algumas dicotomias existentes entre os
modelos tradutivos. Como provam os inmeros estudos e reflexes sobre o acto de
traduzir a cultura, publicados desde as duas ltimas dcadas, continua a haver dois
campos opostos entre os que consideram que a cultura do TP deve ser preservada no
TC a todo o custo e os que propem algumas concesses aos modelos sugeridos. Deixo
para mais adiante a anlise destas posies mais ou menos estremadas para me
debruar agora sobre o conceito de cultura que me propus apresentar, e que alarga o
mbito da traduo sobre o prisma intercultural, com o aparecimento do paradigma
cultural. P. Bensimon refere-se deste modo essncia da traduo: Depuis les temps
anciens, la traduction est un des moyens essentiels de la communication interculturelle,
et lun des modes majeurs du croisement des cultures (BENSIMON, 1998, p. 10). Este
alargamento componente cultural tem origem no prprio fenmeno de traduo -
4 O sublinhado corresponde a itlico no original. 5 Tanto George Steiner como Antoine Berman acreditam que no possvel existir uma nica teoria da traduo. O primeiro sugere o termo de hermenutica ou Intelligence de la comprhension, argumentando que Dans les disciplines de lintuition et des rponses stimules de la sensibilit, dans lart de lapprhension et de la responsabilit qui constituent les humanits, il nest point de paradigme ou dcole du jugement qui annulent les autres O autor chega mesmo a comparar a traduo matemtica: Tout comme les mathmatiques, la traduction admet des solutions mais pas de mthode systmatique de solutions (STEINER, 1998, pp. 20, 21, 401 e 533) ; o segundo, prope o ramo da tradutologia que, por integrar a experincia e a reflexo, dois conceitos centrais do pensamento moderno, no uma cincia exacta e objectiva: [] lambition de la traductologie, si elle nest pas dchafauder une thorie gnrale de la traduction (au contraire, elle dmontrerait quune telle thorie ne peut exister, puisque lespace de la traduction est bablien, cest--dire rcuse toute totalisation), est malgr tout de mditer sur la totalit des formes existantes de la traduction (BERMAN, 1985 , pp. 19-20)
[8]
sendo esta entendida como acto de comunicao entre dois povos com lngua e cultura
diferentes - e assinala o grau de maturidade alcanado pela traduo. Mas vejamos o
que se deve entender por cultura.
A definio proposta pelos estudos antropolgicos , por certo, a que melhor
serve os propsitos deste trabalho. O termo cultura a definido, entendido no sentido
lato, retomado por J. Svry no artigo publicado na revista Palimpsestes (nmero 11),
intitulada Traduire la culture: Cest tout un systme de reprsentations du monde,
une relation instaure entre lhomme, la nature, le cosmos, lici et maintenant et lau-
del, cest--dire le sacr, qui sest mise en place au gr de lhistoire (SVRY, 1998, p.
135). Logo se depreende, luz desta definio, que toda a actividade humana passa a
adquirir um significado cultural. Esta constatao no simplifica o trabalho do tradutor
que ter de integrar a componente cultural nas estratgias que motivarem as suas
escolhas, com todos os constrangimentos agravados pela distncia espacial e temporal
entre o TP e o TC. Os obstculos at podem ser incontveis. Muitos deles foram
invocados para justificar o conceito de impossibilidade da traduo, este relacionado
com um outro igualmente castrador: o conceito de intraduzibilidade. Os fundamentos
que costumam apoiar estas posies so conhecidos: por um lado, lngua e cultura so
as faces de uma mesma moeda e, por outro, as lnguas no recortam a realidade da
mesma forma. No entanto, admitir a validade destes argumentos equivale a negar o
prprio acto de traduo6.
A reflexo acerca da traduo dos fenmenos culturais relativamente recente, e
o papel estratgico da traduo na promoo do dilogo intercultural, amplamente
enfatizado nas sociedades europeias contemporneas, tem ajudado a aprofund-la.
Objectivamente referenciada como uma das principais metas da construo europeia, a
comunicao intercultural assenta, por um lado, na preservao das lnguas nacionais, e,
por outro, na traduo que promove o acesso dos cidados europeus s ideias, ao
conhecimento e s expresses culturais e artsticas de outros pases. U. Eco7 chega
mesmo a afirmar que La vritable langue de lEurope, cest la traduction. So posies
ideolgicas como estas, de essncia poltica muito mais do que cultural ou cientfica, que
6 Alguns pensadores, como Paul Ricoeur, problematizaram a traduo e identificaram alguns aspectos lingusticos e extra-lingusticos, tais como a polissemia e a conotao, que podem ser invocados como obstculos sua viabilidade (RICOEUR, 2004, pp. 39-48). 7Esta frase, sobejamente conhecida nos crculos da Unio Europeia, sobretudo quando a traduo est na ordem do dia, surge na pgina do Observatoire europen du plurinlinguisme : http://plurilinguisme.europe-avenir.com/index.php?option=com_content&task=view&id=2502&Itemid=48, consultada a 3 de Fevereiro de 2010.
http://plurilinguisme.europe-/http://plurilinguisme.europe-avenir.com/index.php?option=com_content&task=view&id=2502&Itemid=48
[9]
tm ditado e influenciado as metodologias e estratgias dominantes da traduo ao
longo dos tempos. A. Brisset, no artigo intitulado Lidentit culturelle de la traduction,
enfatiza o papel do contexto cultural no qual se inscreve a traduo:
Ainsi faut-il montrer qu lencontre de la majorit des modles qui nous reprsentent lopration traduisante, le lieu premier du sens est moins le texte traduire que le lieu culturel quen suscite la traduction, qui exprime la ncessit de cette traduction et en tablit donc la pertinence, une pertinence que reflte alors la chane des choix ponctuels8 (BRISSET, 1998, p. 34).
Os contextos culturais a que se refere a autora motivam e justificam a
metodologia tradutiva, e no esto dissociados das representaes culturais que cada
cultura tem de si prpria e da(s) cultura(s) de origem das obras. Estes factores so, de
forma mais ou menos consciente, filtrados pelo crivo de representaes cimentadas na
memria colectiva da cultura de chegada. Na mesma linha de pensamento de A. Brisset,
L. Mihalache reala a importncia das representaes culturais na construo da
identidade da traduo e do tradutor:
La pense traductive construit ainsi une identit de la traduction et du traducteur et montre que la traduction est une institution culturelle qui agit par le traducteur au niveau des reprsentations publiques de la culture daccueil. () Lhistoire de la traduction nous montre pourquoi on traduit dune certaine faon une certaine poque (pourquoi certaines choses sont plus significatives que dautres), comment on traduit, qui traduit et pour qui, et non pas en dernier lieu ce quon traduit. Nous apprenons, grce cette logique holographique de lhistoire de la traduction, nous dprendre de la monotonie dune seule reprsentation ou dune seule idologie pour inscrire la traduction-processus dans un espace discursif lintrieur duquel la traduction-produit est une source inpuisable dinterprtations9 (MIHALACHE, 2002)10.
A histria da traduo, ao pr em realce as especificidades do contexto cultural,
permite explicar, por exemplo, como os romanos traduziram dos gregos, como os
franceses traduziram ao longo de todo o sculo XVII, como se traduziu no passado e
ainda se traduz sob os regimes totalitrios, como se traduz (e se escreve tambm) nos
pases colonizados, como se traduz nos pases anglo-saxnicos, para citar apenas
alguns. De igual modo, os factores provenientes do contexto cultural e as
representaes que lhe esto associadas deixo deliberadamente de fora os imperativos
8 Itlicos da autora. 9 Itlicos da autora. 10 Artigo consultado na revista Meta, disponvel na sua verso electrnica, a 5 de Janeiro de 2010: http://www.erudit.org/revue/META/2002/v47/n3/008020ar.pdf
http://www.erudit.org/revue/META/2002/v47/n3/008020ar.pdf
[10]
de ordem econmica - podem explicar por que motivo durante as ltimas dcadas se
privilegiou na Europa a traduo-anexao, mas tambm por que razes se privilegiam
actualmente as tradues de obras de origem anglo-saxnica, em detrimento de outras
origens. C. Raguet aponta uma explicao para alguns destes fenmenos. Afirma esta
autora que LEurope, appliquant au culturel ce quelle avait mis en place avec le
politique, a bloqu louverture culturelle sur lAutre en pratiquant la traduction-annexion
qui nie loriginalit de la langue-culture (RAGUET, 2007, p. 43). Esta observao no
deixa de ser pertinente e pode seriamente comprometer os grandes desgnios da Unio
Europeia na promoo do dilogo intercultural, que s se revelar efectivamente eficaz
se todas as lnguas e culturas puderem ser acessveis de igual forma. Manter sob silncio
algumas manifestaes culturais - literrias ou artsticas a pretexto de uma pretensa
superioridade cultural ou poltica - no garante a convivncia salutar entre os povos.
Mostrar que se est apto para receber o Outro na sua cultura no evidente e a histria
da humanidade tem exemplos de sobra.
Pela forma como preconizaram e praticaram a traduo, muitos so aqueles que
ajudaram a defender a preservao desse Outro (Goethe, Schleiermacher, Humbolt,
Berman so alguns desses nomes), mas nem sempre os seus pressupostos foram bem
recebidos. A primeira querela ter sido desencadeada por So Jernimo, tradutor da
primeira verso da Bblia em latim, mais conhecida por Vulgata. Defendia o autor que,
por se tratar de um livro sagrado, dever-se-ia privilegiar a letra, podendo ser adoptada
maior liberdade para os livros profanos11. No caso da Bblia, esta problemtica emerge
sempre que est em causa a destruio da letra original para melhor se conformar
cultura e lngua dos povos12. Foi assim com Lutero quando este traduziu a Bblia para a
lngua verncula alem. Este conhecido exemplo ilustra a dicotomia que consagrou a
letra e o esprito em campos opostos e que se foi perpetuando, ainda que com
algumas nuances. Qualquer que seja a opo terminolgica adoptada, a partir do ngulo
11 So Jernimo pode ser considerado como um dos primeiros pensadores da traduo, depois de Ccero e Horcio. Na Carta que endereou a Pamquio, d a conhecer a sua posio em relao traduo, distinguindo duas metodologias, a primeira literal para os textos sagrados e a segunda mais livre para os outros textos : Por minha parte, realmente, no apenas confesso, mas proclamo a plenos pulmes que quando traduzo os textos gregos que no sejam as Sagradas Escrituras (onde at a estrutura da frase mistrio) no palavra a palavra, mas o sentido que eu exprimo. (JERNIMO, p. 61) 12 As sucessivas retradues e revises editorais da Bblia ilustram essa necessidade de a conformar ao pblico de chegada. Uma breve olhar comparativo sobre duas edies publicadas em diferentes sculos em Portugal, permitiu pr em relevo, por exemplo, a evoluo ao nvel das formas de tratamento e estruturas sintcticas e a substituio de alguns vocbulos, cados em desuso, como o termo varo que foi substitudo na maioria das occorrncias pelos termos menos conotados: homem ou descendente (Bblia Sagrada: Segundo a Vulgata Latina , Lisboa, Sociedade Astoria, 1842 e Bblia sagrada Para o Terceiro milnio da Encarnao, Lisboa/Ftima, Difusora Bblica, 4 edio, 2002 cf. Genesis 11: 1-9 e 1Reis 9: 5, a ttulo de exemplo).
[11]
com que se encara a traduo, a essncia da questo inicial tende a reaparecer:
Fidelidade versus Liberdade. Num artigo que dedica adaptao, M. Mariaule (2007, p.
238) enumera os pares conceptuais que foram surgindo e que podemos elencar, por
ordem cronolgica do seu aparecimento, sob o primeiro par terminolgico citado, (os
parnteses referem-se aos autores dos conceitos): literalismo / adaptao (Ccero);
traduo-descentramento / traduo-anexao (Meschonnic); traduo sourcire /
traduo cibliste (Ladmiral); traduo tica / traduo etnocntrica (Berman); traduo
semntica / traduo comunicativa (Newmark); foreignization - ou resistncia /
domesticao ou traduo fluente (Venuti). Por detrs de todos estes conceitos,
identificamos as duas instncias de referncia que justificam o acto de traduo e
motivam o seu processo: a montante, o autor do TP, e a jusante, o leitor do TC. Para o
tradutor, mediador entre ambas as instncias, F. Schleiermacher via duas sadas: Either
the translator leaves the author in peace, as much as possible, and moves the reader
toward him. Or he leaves the reader in peace, as much as possible, and moves the
author toward him (SCHLEIERMACHER, 1813 , p. 149). A esta viso dualista e
antagnica da traduo, alguns pensadores propem uma outra via que obriga o
tradutor a assumir um papel de intermedirio, oscilando permanentemente entre um e
outro plo, negociando todos os elementos com vista a atingir o melhor equilbrio
possvel. Interessa, por isso, perceber o que caracteriza cada uma das metodologias
tradutivas, designadas globalmente por modelos assimilatrios e modelos dissimilatrios
e, mais adiante, reflectir sobre alguns dos princpios metodolgicos para se alcanar uma
traduo que concilie TP e TC.
1.1.1. Os modelos assimilatrios
Os Romanos foram os primeiros povos, de que h memria escrita, a praticarem
a traduo assimilatria de forma inequvoca. Traduziram da cultura e civilizao gregas,
sorvendo compulsivamente dos textos escritos os ensinamentos sobre o mundo real e
mitolgico e sobre a natureza humana. Marcaram, contudo, cada um dos elementos
importados com a chancela romana, apagando toda e qualquer identificao sua
origem. Os exemplos mais conhecidos deste fenmeno de aculturao so as figuras
que povoam o imaginrio mitolgico. Foi assim, por exemplo, que Zeus se tornou Jpiter
e que Afrodite passou a designar-se Vnus. No entanto, a histria da traduo est
repleta de exemplos desta natureza. Para quase todos estes fenmenos culturais,
assimilveis a verdadeiros saques culturais, surgem as mesmas explicaes: a
[12]
necessidade de afirmao da superioridade poltica e/ou cultural; o imperativo de
aniquilao da cultura mais fraca; a ameaa da identidade por outras culturas
emergentes, entre as mais evidentes. Os argumentos contemporneos so, porm, mais
moderados e invocam a necessidade de ir ao encontro do pblico de chegada, de modo
a que os leitores do pblico do TC no sejam confrontados com quaisquer elementos
estranhos que indiciem tratar-se de uma obra traduzida. L. Venuti o teorizador mais
frequentemente citado para ilustrar a denncia da traduo assimilatria. Foi ele que se
debruou sobre a (in)visibilidade do tradutor e apontou o dedo forma como se traduz
na cultura anglo-americana. Segundo este autor, neste contexto cultural, a avaliao da
traduo passa pela invisibilidade do tradutor com base nos seguintes critrios:
A translated text, whether prose or poetry, fiction or nonfiction, is judged acceptable by most publishers, reviewers, and readers when it reads fluently, when the absence of any linguistic or stylistic peculiarities makes it seem transparent, giving the appearance that it reflects the foreign writers personality or intention or the essential meaning of the foreign text the appearance, in other words, that the translation is not in fact a translation, but the original (VENUTI, 1995, p. 1).
Interessa paradoxalmente dar a iluso da transparncia, a iluso de que the more
fluent the translation, the more invisible the translator, and presumably, the more visible
the writer or meaning of the foreign text (VENUTI, 1995, p. 2). Mas no passar disso
mesmo: de uma iluso, e no mago do paradoxo est o advrbio presumably. Quando
estes so os preceitos que orientam o processo de traduo, ningum duvida de que o
TC se apresenta esvaziado da essncia do TP. A primazia do critrio de legibilidade faz
diluir e apagar todos os elementos susceptveis de causar estranheza aos leitores do TC.
Este modelo que prevalece no espao anglo-americano, embora no sendo caso
nico no mundo actual, j teve outrora o seu apogeu nesta mesma Europa que hoje
tanto o critica. Referimo-nos ao sculo XVII, em Frana, perodo em que as tradues
ficaram conhecidas como Les Belles Infidles. Desde logo nos perguntamos: que
factores podero explicar o facto de duas culturas, separadas geograficamente por mais
de 5000 quilmetros e cronologicamente por mais de 4 sculos, se comportarem da
mesma forma em matria de opes tradutivas. Se cruzarmos os elementos decorrentes
da anlise diacrnica e sincrnica, encontramos factos de ordem cultural e poltica que
tm muito em comum. Comeo pelo segundo caso citado, mas primeiro em termos
histricos. A Frana atravessou, no sculo XVII, um perodo que ficou conhecido nos
anais da histria como Le Grand sicle. o sculo de Louis XIV, o Rei-Sol, da Acadmie
[13]
franaise, do esplendor da cultura e lngua francesas, estendendo a sua influncia alm
fronteiras. A Frana , nessa altura, o pas do gosto requintado, das Belles lettres. Por
todo o lado, imitam-se os seus palcios, a sua moda, a sua literatura, as suas ideias
filosficas, o seu savoir-vivre. A lngua francesa a lngua dos eruditos, falada por toda
a elite poltica e intelectual europeia.
No caso do espao anglo-americano, embora a anlise possa surgir distorcida
pela proximidade temporal, identificamos uma cultura que se estende escala mundial,
caracterizando o fenmeno de globalizao. Os Estados Unidos da Amrica, de forma
mais notria do que a sua congnere lingustica europeia, exportam para os quatro
cantos do mundo a sua cincia, tecnologia, literatura, arte, cinema, gastronomia, por
vezes tambm a sua poltica; em suma todos os bens cientficos, tecnolgicos e culturais
que compem o seu esplio. Em quase todos os continentes, as competncias em lngua
inglesa passaram a ser referncia obrigatria em qualquer curriculum acadmico e
profissional.
Em ambas as situaes sumariamente descritas, identificamos uma cultura que
exerce sobre os outros povos o seu poder, seja ele poltico, econmico ou cultural. Nas
duas situaes, o prestgio internacional e/ou universal granjeado pelas duas culturas
assinalvel. So estes mesmos factos que explicam embora no legitimem - a
metodologia assimilatria levada a cabo nestes pases. So ainda estas circunstncias
que explicam o facto de nesses pases, embora em pocas diferentes, se traduzir um
nmero reduzido de obras estrangeiras e da aprendizagem de lnguas estrangeiras no
ser considerada prioritria. Esta relao unilateral com o resto do mundo faz sobressair
uma relao deficitria com o Estrangeiro, com o Outro, por culpa de um contacto
espordico e enfraquecido. Os riscos, a longo prazo, podem atemorizar os mais
incrdulos: reforo da prepotncia e hegemonia poltica e cultural; incapacidade para o
dilogo intercultural; intercmbios comprometidos; sentimentos xenfobos;
aniquilamento das lnguas e culturas minoritrias13 por fora da hegemonia lingustica e
cultural. Por outro lado, os efeitos decorrentes deste fenmeno de dominao cultural e
poltica so igualmente inquietantes nos pases receptores ou importadores de cultura.
13 So conhecidos os ataques do linguista Claude Hagge hegemonia da lngua inglesa (e tambm da lngua espanhola), assim como as suas consequncias, como o desaparecimento anual de cerca de 25 lnguas no mundo. Informaes obtidas no artigo de Caroline Monpetit, a propsito da publicao do dicionrio Le dictionnaire amoureux des langues do autor, consultado na pgina Le devoir.com, a 2 de Abril de 2010: http://www.ledevoir.com/culture/livres/277649/claude-hagege-pour-la-survie-de-babel. Por seu lado, tambm George Steiner aponta a difuso universal do ingls como factor de destruio da variedade lingustica natural (STEINER, 1998, p. 631).
http://www.ledevoir.com/culture/livres/277649/claude-hagege-pour-la-survie-de-babel
[14]
Estes pases desenvolvem muitas vezes um certo fascnio em relao cultura emissora,
conotada com prestgio, fortuna e sucesso, levando-os adopo de prticas
dissimilatrias, que podem reflectir uma imagem de submisso. Este fenmeno
conhecido como o paradigma da influncia, que veicula a ideia de que a cultura emisora
superior (JURT, 2007, pp. 96-97).
Os dois exemplos, separados no tempo e no espao, exemplificam a prtica
tradutiva de assimilao e os seus potenciais efeitos em termos culturais. Mas a histria
da traduo revela que a Europa foi sucessivamente atravessada por correntes opostas e
que, embora ao longo dos sculos XVIII, XIX e XX se tenham aplicado os princpios
defendidos por Perrot dAblancourt nas suas Belles infidles, tambm se ouvia uma voz
contrria, a voz dos defensores das prticas dissimilatrias que, a partir da Alemanha,
seguiam de perto os ensinamentos de Goethe, para quem o Outro era um bem valioso a
preservar.
1.1.2. Os modelos dissimilatrios
Contra a uniformizao e homogeneizao do mundo cultural, para as quais a
traduo pode contribuir de forma mais ou menos consciente, opem-se todos os que
advogam a metodologia dissimiliatria. Uma das crticas modernas, dirigida aos modelos
assimilatrios, pertence ao teorizador francs, A. Berman, quando afirma: La vise
mme de la traduction ouvrir au niveau de lcrit un certain rapport lAutre, fconder
le propre para la mdiation de ltranger heurte de front la structure ethnocentrique de
toute culture, ou cette espce de narcissique qui fait que toute socit voudrait tre un
tout pur et non mlang, (BERMAN, 1984, p. 16). Este autor, que nunca se cansou de
reivindicar os benefcios do enriquecimento cultural e da dimenso tica que lhe est
intrinsecamente ligada, esclareceu quanto prpria essncia da traduo:
Or, la traduction, de par sa vise de fidlit, appartient originairement la dimension thique. Elle est, dans son essence mme, anime du dsir douvrir ltranger en tant qutranger son propre espace de langue. Cela ne veut nullement dire quhistoriquement il en ait t toujours ainsi. Au contraire, la vise appropriatrice et annexionniste qui caractrise lOccident a presque toujours touff la vise thique de la traduction. La logique du mme la presque toujours emport. Il nempche que lacte de traduire relve dune autre logique, celle de lthique. Cest pourquoi, reprenant la belle expression dun troubadour, nous disons que la traduction est, dans son essence, lauberge du lointain14 (BERMAN, 1985 , pp. 75-76).
14 Itlicos do autor.
[15]
Neste excerto, A. Berman denuncia os desvios etnocntricos e aposta na preservao do
estrangeiro atravs da estratgia tradutiva literalizante, ou seja dissimilatria. Na sua
ptica, a lngua e o texto de chegada devem tornar-se os anfitries da cultura do TP. O
autor reitera, deste modo, que a abordagem literalista a nica que serve os propsitos
da traduo, quer em termos culturais, quer em termos lingusticos, criticando
veementemente os modelos etnocntrico e hipertextual. Para escapar s traies que
ambos os modelos produzem, A. Berman (1985 , p. 49 e seg.) denuncia um conjunto de
treze foras, que denomina foras deformantes, as principais responsveis pelo
desrespeito, esvaziamento, supresso, adulterao e domesticao da letra do TP.
Segundo o autor, devero ser neutralizadas por parte do tradutor as seguintes
estratgias tradutivas: racionalizao que leva o tradutor a passar do concreto do TP ao
abstracto no TC; clarificao atravs de parfrases, explicaes e reduo monossemia
no TC a polissemia do TP; alongamento pelo desdobramento, acrscimo do texto
original; enobrecimento do TP com recurso a uma retorizao do TC; empobrecimento
qualitativo, consistindo na perda da riqueza sonora e icnica, destrudo uma boa parte
da significao e da matria falante do TP; empobrecimento quantitativo que atenta
contra o tecido lexical, fazendo perder parte da sua profuso lexical; homogeneizao da
obra que decorre da tendncia em unificar aquilo que heterogneo na obra de origem;
destruio dos ritmos quando se agride a pontuao, por exemplo; destruio das redes
significantes com o desrespeito pela cadeia dos significados-chave; destruio dos
sistematismos do TP quando se leva a cabo, por exemplo, os primeiros processos
enunciados; destruio ou exotizao das redes vernculas da fala, mesmo em textos
cujo objectivo mostrar a oralidade verncula; destruio das locues, como no caso
das equivalncias das expresses idiomticas e, por fim, o apagamento das
superposies de lngua que ameaa a existncia de vrias lnguas que caracteriza a
prosa. Para A. Berman, estas tendncias deformantes destroem a letra do texto,
quando essas se tornam dominantes e sistemticas. No entanto, o autor no nega que
elas possam ser necessrias em algumas circunstncias.
Todos ns compreendemos a pertinncia de alguns dos princpios de A. Berman,
embora eles sejam pouco elucidativos quando esto em causa os factos e os objectos
culturais. A estratgia que submete o tradutor a encontrar uma equivalncia a todo o
custo - lembremos o conceito de equivalncia dinmica de E. Nida - h muito que deixou
de ser vlida para a traduo de referentes culturais. Sabemos, a ttulo de exemplo,
que do ponto de vista cultural, ainda que o seja no plano funcional, Tour Eiffel no
[16]
equivale Torre de Belm, nem o Elyse o equivalente do Palcio de Belm. Mas,
posta de lado esta questo que rene algum consenso no seio dos estudos em
Traduo, no faltam detractores maioria dos pressupostos enunciados por A. Berman.
Alguns, como J.-R. Ladmiral, acusam-no de querer reduzir o texto a um documento-alvo,
distinguindo duas variantes: [] selon que laccent aura t mis sur le versant
linguistique ou sur le versant culturel de ce complexe etnholinguistique de la langue-
culture, il y aura eu philologisation ou ethnologisation du texte source (LADMIRAL,
1998, p. 26).
A histria da traduo na Europa atesta inmeros exemplos de prticas
dissimilatrias: nos tempos ureos do Romantismo, perodo caracterizado por um
enorme fascnio e atraco pelo singular, o extico e o estranho, importava a
manuteno de todos os elementos estrangeiros, indispensveis para recriar a cor local
do TP; nos pases mediterrneos dos quais Portugal que aps longos perodos de
isolamento e inrcia cultural, se abriram progressivamente cultura europeia, importou-
se literalmente a lngua e a sua cultura atravs de emprstimos e neologismos e, mais
recentemente, a Europa (para no dizer o mundo inteiro) que, rendida aos ditames da
cultura cientfica e tecnolgica de origem anglo-saxnica, decidiu adoptar, por respeito
diro uns, por comodismo acusaro outros, a sua terminologia e os seus conceitos.
Como se depreende do exposto, muitos so os motivos que justificam a adopo
de estratgias que preservam a identidade cultural e/ou lingustica do TP. Actualmente,
as razes invocadas por teorizadores e tradutlogos tm um pendor mais humanista e
justificam-se em face de uma tendncia cultural e lingustica homogeneizante que pe o
mundo (quase) inteiro a falar uma mesma lngua e a apregoar as mesmas ideias. Ao
promover o encontro entre culturas, de que falava A. Berman, o tradutor est a
favorecer a educao para a alteridade. luz destes preceitos, o tradutor reassume o
papel de mediador cultural e o seu texto deixa de ser visto como um espelho para
passar a ser uma janela sobre o mundo, de acordo com as palavras de F. Wuilmart com
que termina o seu artigo La traduction littraire: source denrichissement de la langue
daccueil: [] cest grce son texte qui ne se veut plus un miroir mais une fentre
que la merveilleuse diversit bablienne pourra se maintenir sans heurts et que la
diffrence, les diffrences seront non seulement comprises, enfin, mais surtout
apprcies et partages (WUILMART, 2007, p. 135).
[17]
1.1.3. Prticas tradutivas conciliadoras
Percebemos pelo exposto anteriormente que o apagamento da identidade
cultural do texto de origem , hoje, praticamente inadmissvel e que, no mbito deste
trabalho, se defende a sua preservao. Por detrs desta assumpo, est a perspectiva
intercultural que assenta no pressuposto de que as sociedades modernas se constroem
numa base pluricultural e que a diversidade que integra a mestiagem cultural fruto de
maturidade social. Mas o respeito por todas as marcas culturais inerentes ao TC uma
prtica que, levada ao extremo, como o pretendia A. Berman, pode obscurecer de tal
modo o TC que, em vez de aproximar o leitor do TC ao autor do TP, o afasta
irremediavelmente. A perspectiva de intermediao levanta, como se v, algumas
questes de ordem prtica, porque a janela que serviu de comparao a F. Wuilmart
(Vide ponto 1.1.2.), pode ter vidros mais ou menos transparentes e a viso sobre a
cultura do TP pode variar de acordo com o grau de compreensibilidade, inteligibilidade e
aceitabilidade do pblico de chegada. A tarefa de limpar esses vidros, deixando-os mais
ou menos lmpidos, da competncia do tradutor. Dito por outras palavras, ele que
ter de conciliar o Estrangeiro com a lngua e cultura receptora, uma tarefa que o
tradutlogo B. Friot compara ao fenmeno da imigrao: Traduire, cest intgrer des
textes trangers, en faire en somme des immigrs qui, dune faon ou dune autre,
bousculent notre identit culturelle, ne serait-ce que parce quils font dire notre langue
des ralits quelle nest pas prte, demble, exprimer (FRIOT, 2008, p. 194). Ao
tradutor, que se espera que seja um bom anfitrio, ser sempre possvel adoptar
estratgias de coabitao cultural e forar a um entendimento que surgir de
negociaes e concesses mtuas, semelhana do conhecido modelo institucional
poltico francs de cohabitation15.
Cabe ao tradutor gerir essas duas foras culturais presentes no acto de traduo,
tendo conscincia de que as suas escolhas podero contribuir para a valorizao ou
depreciao da cultura do TP. A sua responsabilidade , por isso, grande. Esta ideia
retomada por J. Koustas que relembra os efeitos que a traduo tem na formao da
imagem do Outro, citando A. Lefevere:
The way in which translations are produced matters because translations represent their originals for readers who cannot read these originals. In other words: translations create the image of the original
15 Este termo que se imps em Frana, nos anos 1980, passou a integrar a linguagem poltica e jornalstica, sendo utilizado para descrever a situao institucional que obriga coexistncia de um Chefe de Estado e de um Primeiro-Ministro, apoiado numa maioria parlamentar, com polticas opostas.
[18]
for readers who have no access to the reality of that original (KOUSTAS, 1998, p. 108).
A realidade pode ser distorcida, deformada, podendo contribuir para a criao de
novos esteretipos ou cimentar velhos clichs, porque a imagem da realidade
veiculada no TC poder diferir da do TP. Por vezes, por culpa do editor que dita as
escolhas, mas tambm por culpa do tradutor, j que ambos filtram a cultura do TP
atravs das suas representaes da cultura do TP e da cultura do pblico de chegada.
Tais atitudes, de valorizao ou desvalorizao, quando levadas ao extremo, podem ter
fortes repercusses, ao ponto de influenciar a redistribuio das cartas sociais do campo
do poder16, conforme nos explica J.-M. Gouanvic (1998), ao aplicar os conceitos de
campus e habitus de P. Bourdieu no domnio da traduo da literatura.
Do tradutor, revestido de novas funes, espera-se que no desvirtue nem o TP
nem o TC. Adquire, assim, um estatuto que lhe era desconhecido. A relao que deve
estabelecer entre a cultura do TP e a do TC deve assentar no princpio da tica de que
falava A. Berman, mas ainda no princpio de lealdade defendido por C. Nord (2006):
As an interpersonal category referring to a social relationship between
people who expect not to be cheated in the process, loyalty may replace the traditional intertextual relationship of fidelity, a concept that usually refers to a linguistic or stylistic similarity between the source and the target texts, regardless of the communicative intentions and/or expectations involved. It is the translator's task to mediate between the two cultures, and I believe that mediation can never mean the imposition of the concept of one culture on the members of another (NORD, 2006, p. 33).
Tanto a tica como a lealdade devero, por conseguinte, ser atributos indispensveis do
tradutor, que agir como um verdadeiro rbitro do processo e que dever fundamentar
as suas escolhas no desvirtuando os princpios aludidos. Essa relao dever favorecer
o encontro entre o Outro (aquilo que o leitor do TC desconhece e diferente) e o
Mesmo (aquilo que o leitor do TC e aquilo que conhece), um encontro que, no meu
entender, no precisa de ser violento como preconiza A. Berman - uma vez que no
contacto com o Outro que o Mesmo se reconhece enquanto identidade cultural. Todavia,
esse encontro s ser efectivo mediante uma condio, como nos diz P. Bensimon: []
aucune traduction ne peut tre mdiatrice entre deux cultures dissemblables ou peu
16 J.-M. Gouanvic, no seu artigo Les enjeux de la traduction dans le champ littraire: le roman amricain traduit dans lespace culturel franais au lendemain de la seconde guerre mondiale, publicado na revista Palimpsestes, n 11 Traduire la culture , esboa uma anlise baseada nos princpios sociolgicos apresentados por Pierre Bourdieu, tendo evidenciado as relaes estreitas entre literatura e sociedade, e o impacto da traduo da literatura americana nos modelos sociais, estticos e tambm culturais franceses (GOUANVIC, 1998).
[19]
compatibles si elle ne prend en compte lhorizon dattente de son destinataire, les ides
et les pratiques - la doxa - en vigueur dans la socit rceptrice (BENSIMON, 1998, p.
10). Esta posio, que reflecte a de muitos tradutlogos, vem esbater a tradicional
dicotomia entre as prticas assimilatrias e dissimilatrias, mas tambm entre os
conceitos de traduo e adaptao. Quando esta passa a ser encarada como uma
estratgia pontual, e no como uma prtica dominante, representa um recurso
imprescindvel ao equilbrio entre TP e TC. Atravs desse recurso, e de outros que sero
apresentados mais adiante, o tradutor poder erguer a ponte entre a cultura do TP e a
cultura do TC.
Estes pressupostos so particularmente relevantes para o tema deste trabalho
que defende a importncia da preservao da cultura do TP na literatura juvenil, como
uma fonte inestimvel de aprendizagem, mesmo que, para o conseguir, a voz do
tradutor se tenha, por vezes, de sobrepor voz do narrador. Uma forma de ir ao
encontro do leitor para melhor o aproximar do autor, como veremos ao longo dos
captulos 2 e 3.
1.2. A traduo da cultura
Importa definir, antes de mais, o que se entende por traduo de cultura.
Consiste na transferncia de elementos prprios a uma determinada cultura, que se
encontram referidos num dado texto, para os integrar na cultura do pblico a quem se
destina o novo texto. um processo que pode ocorrer dentro de uma mesma lngua, por
exemplo, na reescrita de um texto clssico para se conformar s exigncias culturais da
nova comunidade. O caso da Bblia um exemplo paradigmtico, quando no decurso
das suas revises se eliminam algumas referncias consideradas inadequadas e
ultrapassadas em face da evoluo de alguns preceitos sociais e morais17. A reescrita
das Cartas Constitucionais, tidas como documentos de referncia universal, tambm elas
foram submetidas a uma reviso cultural: Tous les hommes naissent et demeurent
libres et gaux en droit que se encontrava consagrado no artigo 1 da Declarao dos
Direitos do Homem e do Cidado de 1789, passou a ter uma redaco mais conforme
s polticas e valores contemporneos na Declarao Universal dos Direitos do Homem
de 1948: Tous les tres humains naissent libres et gaux en dignit et en droits. A
transferncia cultural dentro da prpria lngua ocorre ainda entre pases que falam a
mesma lngua (pelo menos partilham a mesma matriz lingustica), mas que vivenciam
17 Ver nota 12.
[20]
culturas muito diferentes, como o caso dos pases lusfonos, francfonos, hispnicos
e anglfonos. A transferncia cultural entre estes pases nem sempre pacfica e, ainda
actualmente, as tenses latentes entre pases colonizadores e pases colonizados,
resultantes dos movimentos colonialistas do passado, tardam a desaparecer. Falar a
mesma lngua nunca foi garante de entendimento entre os povos, basta lembrar os
dios fratricdas dos irlandeses e dos espanhis que travaram - e continuam a travar -,
na Europa, lutas sangrentas em nome de uma identidade cultural e/ou religiosa, para
citar apenas aqueles que esto mais prximos de ns.
O processo de transferncia da cultura de uma lngua para uma outra no difere
muito da que se opera na traduo intralingustica. Alguns tradutlogos, como M.
Lederer (1998), sugerem mesmo que se adoptem as metodologias seguidas pelos
escritores biculturais que escrevem para um pblico culturalmente distante, mas falando
a mesma lngua. Essa autora alerta-nos, ainda, para um outro facto importante que
ajudar o tradutor na sua misso intercultural, levando-o a relativizar as perdas que ela
considera inevitveis:
La traduction est communication et la communication quelle seffectue dans un cadre unilingue ou multilingue, nest jamais intgrale ; () il ne peut sagir de transmettre la totalit de la culture trangre. Il faut accepter le fait et se fliciter de ce que la traduction transmette une bonne part de la culture de lAutre, rapprochant ainsi les peuples (LEDERER, 1998, p. 171).
Um dos requisitos para se ser um mediador cultural competente no mbito da traduo
possuir competncias biculturais, um conjunto de competncias que acrescem s
competncias bilingues, uma vez que se parte do princpio de que lngua e cultura esto
intimamente ligadas, de acordo com as palavras de M. Ballard, citadas por C. Raguet:
[] les langues (et les textes) sont lmanation dune culture (RAGUET, 2007, p. 40).
A sua principal funo ser, num primeiro momento, a de detectar as marcas carregadas
culturalmente, quer estas sejam referidas de forma implcita ou explcita e, num segundo
momento, decidir da sua pertinncia em manter as referncias subentendidas no plano
do implcito ou traz-las para a superfcie, recorrendo s estratgias tradutivas que esto
ao seu alcance. Dever ainda ajuizar do grau de explicitao das marcas explcitas e
determinar se se torna necessrio adicionar informaes, para colmatar a ignorncia do
leitor do TC. No entanto, as competncias biculturais a que aludimos anteriormente
podem tornar-se um obstculo avaliao dessa distncia cultural entre o TP e o leitor
do TC, uma vez que, devido ao seu biculturalismo, o tradutor pode ser levado a
considerar uma referncia como conhecida quando, na realidade, ela desconhecida.
[21]
Assim, semelhana do que acontece com as interferncias lingusticas, o tradutor pode
ser vtima de interferncias culturais, e passar por cima de referncias que, no contexto
da traduo, entenda-se em funo do pblico a que se destina, requerem uma
explicitao. Mas o que move o tradutor e o que determina a sua interveno? o que
vamos ver no ponto que se segue.
1.2.1. A distncia cultural como medida
O conceito de distncia cultural apresentado por J.-P. Richard no artigo que
intitulou Traduire lignorance culturelle, publicado na referida revista Palimpsestes (n
11). O autor define o conceito do seguinte modo: Cette notion dsigne gnralement
lcart peru entre la culture dorigine et la culture daccueil (RICHARD, 1998). O autor
analisa o conceito e distingue dois tipos de distncia cultural: a distncia cultural externa
e a distncia cultural interna. Relativamente primeira, que define como a distncia que
se observa entre o texto a traduzir e o texto traduzido quando as culturas respectivas
no coincidem, considera que sobreavaliada, e por vezes imaginria; ao passo que a
segunda, a que estrutura o TP, quando no ignorada, frequentemente subavaliada.
Segundo o autor, a distncia cultural interna que levanta problemas ao tradutor:
Lauteur de luvre originale a cent manires dinstaurer une distance culturelle []. Il sagit toujours de produire une intelligibilit relative dont il appartient au traducteur et cest l toute la difficult de jauger le degr. lui de reprer la ligne de partage entre lecteurs exclus et lecteurs complices; lui de dresser la carte du savoir et de lignorance dans la culture de dpart. Quand lauteur cre une distance culturelle entre son texte et une partie de son lectorat, le traducteur doit se faire son tour ajusteur dignorance18 (RICHARD, 1998, p. 152).
Percebemos que esta ltima noo vem baralhar o tradutor, cioso por aproximar a
qualquer preo o autor do leitor, ou vice-versa. Proponho ilustrar de forma grfica as
duas distncias culturais avanadas por J.-P. Richard, de modo a visualizarmos como
ambas funcionam. O esquema A mostra a distncia cultural externa entre o TP e o leitor
18 Itlicos do autor.
[22]
do TC, antes da traduo. Esta figura ilustra duas culturas totalmente heterogneas. Mas
nem sempre isso acontece, por isso, cabe ao tradutor efectuar uma anlise, de modo a
avaliar o grau de interveno que a obra a traduzir requer. Caso haja elementos
partilhados por ambas as culturas, poder existir logo partida uma zona de interseco
cultural entre o autor e o leitor do TC. Quanto figura B, que ilustra a distncia cultural
externa depois da traduo, apercebemo-nos que existe obrigatoriamente uma zona de
interseco que, de acordo com a perspectiva da traduo cultural, representa a
desejvel aproximao entre o leitor do TC e o autor. Esta zona ser, por conseguinte, a
mais ampla possvel, mas no abarcar, partida, a cultura do texto de partida, na sua
totalidade.
Figura A distncia cultural externa (total) antes da traduo
Figura B distncia cultural externa depois da traduo
Analisemos agora a distncia cultural interna que permite, segundo o autor,
distinguir os leitores cmplices e os leitores excludos do TP, e que podemos ilustrar do
seguinte modo:
Figura C distncia cultural interna no TP
A figura C ilustra a relao existente entre o autor do TP e os seus leitores. So leitores
falantes da mesma lngua e partilhando culturalmente as mesmas referncias, a no ser
que o autor tenha em mente outros leitores de outras culturas, o que, no mercado
livreiro internacional actual, no de excluir. essa relao que determinou a sua
autor do TP
leitor do TC
autor
leitor cmplice
leitor excludo
[23]
deciso de deixar implicitamente algumas referncias e explicitando aquelas que
considerou lacunares.
Quando o TP transposto para uma nova cultura, que poder ser mais ou menos
distante em termos culturais, a tarefa do tradutor complexifica-se, pois ter que
combinar a distncia cultural interna com a distncia cultural externa e determinar
exactamente onde comea e onde acaba a sua intermediao cultural. Quando estas
duas distncias se aliam, o tradutor tende a confundi-las e passa a explicitar
compulsivamente no TC todas as marcas implcitas no TP, porque parte do princpio de
que o leitor do TC mais ignorante culturalmente, entenda-se - do que o leitor do TP.
Esta postura pode ainda, por outro lado, alterar a relao inicial prevista entre autor e
leitor. Se considerarmos o facto de existirem vrios tipos de leitores cmplices no TP,
cada um com um grau varivel de aptides de leitura, apercebemo-nos de que uma
intermediao abusiva por parte do tradutor pode modificar significativamente o
espectro de leitores no TC. As figuras que seguem mostram como a relao entre
leitores cmplices e leitores excludos pode diferir na situao do TP e na do TC.
Figura D distncia cultural interna antes da traduo
Figura E distncia cultural interna depois da traduo
Na figura D, percebemos que existem vrios leitores-tipo (o nmero de leitores-tipo
varivel), definidos em funo da bagagem cultural de cada um e da sua capacidade em
decifrar o sentido de inferncias e marcas implcitas. Temos, assim, o leitor-tipo 1
autor
leitor 1
leitor 2
leitor 3
leitor excludo
autor
leitor tipo pode inclui leitor 1; leitor 2, leitor 3 e ainda
leitor excludo
novo leitor excludo
[24]
culturalmente mais apto, o leitor-tipo 2 revelando uma maior ignorncia cultural e,
finalmente o leitor-tipo 3 que, embora detentor de uma menor capacidade de
interpretao cultural, ainda faz parte dos leitores cmplices do TP. De fora, fica o leitor
excludo por no reunir as competncias culturais mnimas, que inevitavelmente
abrangem as competncias lingustica e textual, para se tornar um potencial leitor.
Tambm aqui ser difcil, embora no impossvel - encontrar um leitor que partilhe
integralmente a cultura do autor. A figura E permite visualizar a distncia interna depois
da traduo, isto no texto de chegada, depois da interveno do tradutor. A pretexto
de uma inteligibilidade mxima, porque parte do princpio de que o seu leitor ignorante
culturalmente, o tradutor tende a eliminar a distncia cultural interna existente no TP. E
esse desejo de incluso, se levado at ao extremo, tender a homogeneizar o perfil do
leitor-tipo do TC, e restringir o leque de leitores inicialmente previsto pelo autor. O novo
leitor-tipo apresenta-se com o mesmo grau de competncias de leitura, as mesmas
capacidades hermenuticas, os mesmos conhecimentos enciclopdicos. O leque de
leitores-tipo do TC mais reduzido, pois as diferenas que existiam entre os vrios
leitores cmplices do TP so anuladas. Alm disso, o novo leitor-tipo pode ainda
compreender o leitor excludo previsto na situao do TP, uma vez que a distncia
cultural interna, sendo totalmente anulada com a interveno do tradutor, autoriza a
entrada de novos leitores19. Por outro lado, poder surgir uma nova situao algo
paradoxal: o leitor-tipo 1, aquele que culturalmente se encontrava mais prximo do
autor, poder passar a fazer parte dos leitores excludos do TC, por achar que este lhe
deixa uma margem muito exgua para uma leitura desafiadora, que o obrigue a mobilizar
competncias de leitura de nvel mais elevado. Este fenmeno pode, de forma
apriorstica certo, ajudar a explicar o facto do sucesso editorial de algumas obras no
contexto do TP se revelar um fracasso no contexto do TC. TP e TC no visam
necessariamente os mesmos leitores quando est em causa a manuteno ou a
anulao da distncia interna e da distncia externa.
O autor do artigo citado no nega que a combinao entre a distncia cultural
interna e a distncia cultural externa um problema acrescido para o tradutor e, como
vimos na figura E, pode dar lugar a algumas derrapagens quando a medida exacta no
19 Para ilustrar este fenmeno, podemos citar o comentrio de um comentador televisivo, nos dias que se seguiram ao desaparecimento do Nobel da Literatura, Jos Saramago, no qual afirmava que a obra deste autor era mais fcil de ler nas sua tradues do que nos originais. A provar-se esta afirmao, e segundo o pressuposto de Jean-Pierre Richard, o leque de leitores do TC seria consideravelmente mais alargado do que no TP.
[25]
respeitada. Ele prprio adverte contra o uso abusivo de notas explicativas que, quando
em demasia, cria o efeito inverso ao pretendido: [] une masse de notes obscurcit le
sens, comme trop de lumire aveugle (RICHARD, 1998, p. 156). Sobre o problema da
sobretraduo, outros tradutlogos se pronunciaram, como J. Svry que alerta contra o
perigo de se antropologizar a literatura com o uso abusivo de notas explicativas (SVRY,
1998, p. 136) e M. Lederer que denuncia a inutilidade do recurso explicitao, sempre
que o contexto permitir esclarecer o sentido:
Il est de lintrt du traducteur de ne jamais perdre de vue quil traduit pour un lecteur qui ragit au texte et dont le bagage cognitif est sans cesse largi et remani par sa lecture ; le lecteur dcouvrira lui-mme la culture de lAutre au fil du rcit, voire dautres ouvrages pourvu quil soit intress (LEDERER, 1998, p. 171).
A problemtica da distncia cultural afigura-se mais complexa se tivermos em
considerao o conceito de intertextualidade que, inevitavelmente, integra todo o tipo de
texto. As referncias intertextuais so normalmente geridas pelo autor em funo da
cultura dos leitores do TP, fazendo-as vir superfcie ou mantendo-as de forma mais
ou menos implcita. No caso do TC, caber ao tradutor concluir sobre a pertinncia e o
grau de explicitao necessrios. Uma escolha no andina que poder afectar a leitura,
tal como nos diz C. Nord:
[] both the source and the target text form part of a system of intertextual relationships. This means that the effect of the target text can be predicted comparing it to the (possible, normal, usual) effects of existing texts from the target culture. If the text conforms to conventional patterns of a particular class of texts, the text form will not attract the readers' attention, which allows for an easier processing of the information contained in the text. On the other hand, if a text shows strange, unconventional form patterns, the audience may wonder why the author chose these original forms and whether they are meant to convey an extra amount of information (NORD, 2006, p. 39).
Mais uma vez, fica nas mos do tradutor a deciso de sua interferncia ou do seu no
envolvimento, ciente de que uma didactizao exagerada do TC poder afastar leitores
inicialmente previstos. A sua opo, por certo, ter em linha de conta o deixar algum
espao para a imaginao que se encarregar do preencher os no-ditos, ingredientes
indispensveis para uma leitura apaixonante. Este requisito particularmente relevante
no caso da literatura em geral e da literatura juvenil em particular. Sobre a imaginao e
da sua relevncia no processo central de leitura nos deteremos no prximo captulo.
[26]
1.2.2. Processos de transferncia cultural
O tradutor intercultural estar particularmente atento s marcas culturais. So
marcas que alguns tradutlogos designam por realia (SCHREIBER, 2007), xnismes
quando so conservadas literalmente no TC (SERGEANT, 1998) ou culturmes, que
segundo a definio de M. Ballard, retomada por C. Raguet, so signos que reenviam
para referentes culturais, isto elementos cujo conjunto constitui uma civilizao ou
uma cultura (RAGUET, 2007, p. 44). Abarcam, grosso modo, todas as actividades
humanas: costumes, desde o modo de vestir s formas de cumprimentar, modo de
organizao do tempo (calendrios), sistemas de parentesco e estruturao em funo
do grupo social e etrio, e ainda as representaes simblicas e mitolgicas. Reportam-
se muitas vezes a factos ou objectos, mas podem extravasar esse domnio ao
integrarem ideias e pensamentos veiculados pela lngua, atravs de provrbios e
aforismos, por exemplo.
Do ponto de vista da traduo, nem todos as marcas culturais tm a mesma
importncia. R.-M. Vassalo (1998), autora e tradutora de livros para crianas, apresenta
uma hierarquia dos elementos culturais. Assim, num primeiro patamar, encontram-se os
elementos culturais de grau zero que chamam imediatamente ateno: vesturio,
habitat, ocupao do espao, ritmos dirios, horrios, gastronomia. Num segundo
patamar, incluem-se os pormenores da vida escolar, jogos, lazer e desportos; e acima
destes, entre a cultura que designa para turistas e cultura profunda, aparecem os ritos,
festividades religiosas ou pags, etc. Diz a autora que todos estes elementos
representam noes familiares para o leitor do TP, desempenhando um papel de cor
local para o leitor do TC. Segundo R.-M. Vassalo, a explicitao destas marcas depende
do papel que desempenham no TP. Acrescenta ainda, no ltimo patamar, os elementos
qui font quune culture est une culture, irrductible toute autre (VASSALO, 1998, p.
191). So elementos de profunda dimenso cultural, alguns constituindo uma verdadeira
dor de cabea para os tradutores: referncias histricas, polticas e sociais, falares
vernculos, lendas, folclore, locues e provrbios Para a autora, a transposio dos
elementos dos primeiros grupos facilitada pelo recurso a notas de rodap, notas
prvias, entre outras, j as seguintes so mais delicadas por se situarem no plano do
pensamento e do inconsciente, e acrescenta a propsito:
On touche ici lirrductible par excellence, la charpente invisible de toute culture, celle dont chaque groupe humain btit le rel sa manire. Difficiles cerner, toujours en filigrane. L se forment les attentes, les croyances
[27]
profondes, les obsessions, avoues ou non, propres chaque culture. L souvrent les fosss entre culture source et culture daccueil [] (VASSALO, 1998, p. 191).
Para estas situaes, o tradutor ter de analisar o grau de especificidade cultural e a
funo que a cultura desempenha no TP, de acordo com a tipologia textual do TP. Se se
tratar de textos transmissores de cultura, para adoptarmos a distino avanada pela
autora referida anteriormente, que visam fazer descobrir uma cultura, justifica-se o
recurso aos processos explicativos, uma vez que a finalidade a de limitar as perdas. O
tradutor por ao dispor dos seus leitores notas preliminares, notas de rodap, glossrios
que viro a ser lidos ou no. Por outro lado, existem ainda os textos que esto
ancorados numa cultura lendas, narrativas tradicionais. Para estes, sugere a autora, o
tradutor ponderar entre favorecer a imerso cultural, deixar em suspense ou esclarecer
os elementos culturais. J nas obras de imaginao pura, carregadas de mistrio, recusa
qualquer tipo de nota explicativa, embora reconhea que o fosso entre as culturas pode
ser traioeiro. Acredita, contudo, que os recursos explicativos tendem a sobrecarregar o
texto e que se devem evitar quando o prprio texto, pela sua coerncia interna, cria um
micro-cosmos que no carece de explicitao de pormenores.
Tambm J.-P. Richard (1998) apresenta uma soluo metodolgica para o
problema da transferncia cultural, sempre que no exista coincidncia. Segundo ele,
deve-se conservar o sistema cultural do TP, pois a cultura receptora que deve recriar o
sistema cultural do TP, extravasando o prprio texto. Aponta os editores como os que
possuem a chave para o problema, recorrendo a prefcios, ilustraes, notas, desde que
estes tenham funo de esclarecer e no de obscurecer.
Por vezes, o tradutor chamado a intervir no plano macro-textual quando, por
exemplo, no existe equivalncia ao nvel das convenes de tipologia textual ou quando
os elementos pragmticos da comunicao, como os registos de lngua, no so
coincidentes. Mas frequentemente ao nvel das marcas micro-textuais que ele
instado a interceder. So conhecidos os processos tcnicos que esto ao seu dispor:
emprstimo (retoma total do significante); decalque (traduo palavra a palavra de um
sintagma); explicitao (transforma uma informao implcita no TP numa informao
explcita no TC), adaptao (processo livre que consiste em substituir um fenmeno do
[28]
TP por um semelhante no TC) e equivalncia (para traduzir provrbios e expresses
idiomticas, por exemplo), para citar apenas os mais comuns20.
Em termos de transferncia cultural, nem todos estes processos tm o mesmo
peso; por conseguinte, quando adoptados de forma predominante, podem favorecer ou
comprometer a finalidade intercultural. Os processos mais respeitadores do TP so o
emprstimo e o decalque; a meio caminho entre o TP e o TC, encontra-se a explicitao
e, no extremo oposto, a adaptao e a equivalncia que, centrados exclusivamente na
cultura do TC, apagam toda e qualquer marca genuinamente cultural do TP. o que
normalmente acontece com a traduo dos provrbios. Mas mesmo em relao a estes,
no , no entender de J. Svry (1998, p. 141), um processo inevitvel. Relativamente
traduo dos provrbios, que designa de concentrados de cultura, este tradutlogo
considera que possvel encontrar equivalentes na cultura europeia, no entanto, no
de inviabilizar a traduo literal, sem o recurso equivalncia, desde que estejam
assegurados o ritmo e a aliterao, caractersticas prprias do provrbio. Nesta linha de
pensamento, observamos que, na traduo de alguns provrbios, a equivalncia no
apaga as marcas da cultura de origem; outros h, no entanto, em que essas referncias
ficam comprometidas. Assim, Amor com amor se paga tem como equivalentes
Lamour ne se paie quen amour em francs e Love is the reward of love em ingls.
Porm, as perdas culturais so mais evidentes nos seguintes casos: Demi-pain vaut
mieux que rien du tout, Mais vale comer palha do que nada, Half an egg is better
than an empty shell; Changement de pture rjouit les veaux, Nem sempre
galinha, nem sempre sardinha, ou ainda Chaque prtre loue ses reliques, Cada um
puxa a brasa sua sardinha21. Verificamos que cada uma das verses encerra
elementos especficos da sua cultura e reenviam para contextos que nem sempre so
coincidentes, quando transpostos para a cultura de chegada. Na perspectiva de J. Svry,
as verses literais Melhor meio-po do que po nenhum, Mudana de pastagem
alegra os vitelos, Cada padre preza as suas relquias seriam opes vlidas, j que
esta soluo permite-nos chegar mais perto do texto e da cultura de partida.
Relativamente aos processos de adaptao e equivalncia, no raro estes
suscitarem alguma controvrsia do ponto de vista cultural, a no ser que sejam
20 Cf. SCHREIBER Michael Transfert culturel et procds de traduction: lexemple des realia, in De la traduction et des transferts culturels, textes runis par C. Lombez et R. Von Kulessa, Paris, LHarmattan, 2007, pp. 185-194. 21 Estes provrbios foram retirados do Dicionrio de Provrbios de R. C. Lacerda, Helena R. C. Lacerda e Estela Abreu, Contexto, Lisboa, 2000.
[29]
combinados com um dos trs primeiros. Alis, o recurso simultneo de dois processos
no invulgar e, no quadro da perspectiva intercultural, at desejvel, pois permite
conservar a marca do TP atravs do emprstimo ou decalque e concili-la com a sua
correspondente ou com uma explicao. Citando alguns exemplos: para traduzir le
village wendat (Vide em anexo Quadro I, referncia 1), o tradutor pode optar por
conservar o termo em itlico, recorrendo ao emprstimo e acrescentar, piscando o
olho ao leitor e eliminando a distncia cultural, temporal e espacial, a aldeia dos ndios
wendat; se o tradutor se deparar com a frase da personagem de Le pome indigo, de
Rgine Detambel, Elle conduisait, nous tions le 14 juillet 1989 (Vide em anexo
Quadro XII, referncia 11), vai por certo manter a data, mas o sentido e a referncia
cultural s sero totalmente preservados se adicionar a informao de que se trata de
um dia feriado importante, traduzindo Era ela que conduzia, foi no feriado nacional de
14 de Julho de 1989. Esta informao adicional explicita ao leitor do TC a importncia
da data, que permitiu personagem memorizar o dia exacto da ocorrncia dos factos
(neste caso a morte da companheira num acidente de viao).
No caso da traduo da literatura em geral, e muito particularmente a literatura
para crianas e jovens, o processo das notas explicativas, nomeadamente as notas de
rodap, revela-se pouco eficiente, uma vez que obriga o leitor a sair do texto para
esclarecer uma marca cultural que, n