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  • TOMS COELHO GARCIA

    Denncias pblicas contra a violncia policial no Rio de Janeiro

    Dissertao apresentada ao Instituto Universitrio de Pesquisas do Rio de Janeiro como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Cincias Humanas: Sociologia

    Rio de Janeiro 2009

  • Agradecimentos

    De incio gostaria de agradecer ao companheirismo que d fora para a realizao de qualquer atividade. Acima de tudo minha me, Maria Clia Coelho, meu exemplo mais prximo de coragem e superao. Agradeo tambm o carinho da minha namorada, Lvia Jacob, de todos os meus familiares e amigos. Minha vida inteira um agradecimento ento no me peam para citar todos os nomes. Aos que tiveram contribuio direta nesta dissertao e que poderei citar neste curto espao agradeo primeiro pacincia do meu orientador Luis Antnio Machado da Silva. E aos membros da banca com os quais tive o prazer de ser aluno: Jussara Freire e Frdric Vandemberghe. O grupo de orientandos do Machado, vulgos machadetes, contriburam com todas as suas criticas e sugestes. Particularmente, agradeo aos comentrios, dicas e apresentaes feitos por Juliana Faria, Thais Duarte, Roberta Pedrinha, Alexis Cortes, Paloma Menezes, Alexandre Magalhes e Fbio Araujo. Contribuies importantes vieram dos professores Roberto Kant, Glaucia Mouzinho, que ministraram a disciplina Cultura, Poltica e Direito, de Natasha Neri e demais participantes do curso. Carolina Santos ajudou-me com minhas dvidas jurdicas. No trabalho de campo tive grande ajuda de Isabel Mansur, Taiguara Soares, Patrcia Oliveira, Leonardo Chaves e Marcelo Freixo. De todas as fontes que se tornaram acessveis a partir destas pessoas, foram as entrevistas que me permitiram que melhor sugeriram caminhos para a investigao. Agradeo novamente a Lvia Jacob e ao meu pai, Raymundo Cota, por terem tido a pacincia de revisar a dissertao. Agradeo ao Iuperj como um todo e todas as conversas com seus professores funcionrios e alunos, muitos dos quais vieram a se tornar meus amigos. Agradeo por fim o financiamento da Capes que me permitiu estar disponvel realizao do mestrado.

  • Resumo

    Esta dissertao tem por objetivo investigar a construo social de uma crtica polcia que segue os princpios cvicos dos Direitos Humanos. Seguindo os marcos tericos da Sociologia Pragmtica Francesa de Luc Boltanski, Laurent Thvenot e outros, investigou-se estratgias para tornar pblica uma denncia contra polcia. A pesquisa constituiu em duas fases. Num primeiro momento utilizou-se o conceito de gramtica para a modelizao de dois modos coletivos de construo do problema da segurana pblica: a gramtica da violncia urbana, investigada nos estudos de Luiz Antnio Machado da Silva e seus colaboradores; e a gramtica cvica conceituada a partir da anlise de relatrios de Direitos Humanos publicados nos anos 2000. Os relatrios revelaram-se de extrema importncia para a identificao de diversos dispositivos importantes para a definio de uma situao que envolva a polcia como injusta situao de violncia policial. Num segundo momento, estudou-se condies concretas e situadas de denncia de casos de violncia policial. Para isto utilizaremos o conceito de forma caso (affaire), desenvolvido por Elizabeth Claverie, articulado com os estudos antropolgicos de Roberto Kant de Lima acerca do sistema de inqurito brasileiro. Com base em pesquisas documentais e entrevistas, dois casos foram comparados: o assassinato de 19 pessoas na Mega-Operao no Complexo do Alemo no dia 27 de junho de 2007 (a partir de agora, Caso Alemo); e o caso do assassinato dos trs jovens no Morro da Providncia no dia 14 de junho de 2008 (Caso Providncia).

    Palavras chave

    Violncia policial, Direitos Humanos, Segurana Pblica, teoria da justificao, sociologia pragmtica, regime de justificao, violncia urbana, polcia, movimentos sociais e problemas pblicos.

  • Sumrio

    Introduo ......................................................................................................................... 5 Captulo 1 A violncia policial como causa cvica .................................................... 7

    1.1 Denncias Pblicas .............................................................................................. 7 1.2 Os princpios de equivalncia. ............................................................................. 9 1.3 Modelizao e gramtica ................................................................................... 12 1.4 A gramtica da violncia urbana ....................................................................... 13 1.5 A Gramtica Cvica ........................................................................................... 16

    1.5.1 O mundo cvico no livro De la Justification .............................................. 16 1.5.2 A segurana pblica no mundo cvico ........................................................ 18 1.5.3 Os Direitos Humanos.................................................................................. 19 1.5.4 Falhas institucionais ................................................................................... 21 1.5.5 O Desvelamanto da violncia policial .................................................... 25 1.5.6 Quem so as vtimas da polcia .................................................................. 27

    Captulo 2 Comparao de dois casos de violncia policial ........................................ 30 2.1 O nascimento da forma caso .............................................................................. 30 2.2 O Sistema de inqurito ...................................................................................... 33 2.3 Estratgias de des-singularizao ...................................................................... 35 2.4 Relao entre processo e caso ........................................................................... 37 2.5 O Caso Alemo .................................................................................................. 39

    2.5.1 A Mega-Operao do Complexo do Alemo ............................................. 39 2.5.2 Os Fatos .................................................................................................. 40 2.5.3 Execues Sumrias ................................................................................... 42 2.5.4 Processo Penal ........................................................................................... 44 2.5.5 A Formulao do Caso ............................................................................... 45

    2.6 Caso Providncia ............................................................................................... 47 2.6.1 O projeto Cimento Social ........................................................................... 47 2.6.2 Assassinato dos trs jovens......................................................................... 49 2.6.3 Crticas ao Exrcito .................................................................................... 50 2.6.4 Inqurito e denncia ................................................................................... 52 2.6.5 Formao do Caso ...................................................................................... 55

    2.7 Comparao dos dois casos ............................................................................... 57 2.8 Forma caso e generalizao ............................................................................... 60 2.9 Confronto entre gramticas ............................................................................... 62

    Consideraes finais ....................................................................................................... 64 Bibliografia ..................................................................................................................... 67

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    Introduo

    A polcia no Rio de Janeiro um assunto polmico. possvel afirmar que todos os moradores tm uma opinio sobre o tema, pois est constantemente nos veculos de comunicao e em conversas cotidianas. No entanto, nem todas as opinies sobre a polcia conformam uma opinio pblica. O sentido que utilizaremos deste termo segue a tradio sociolgica chamada de Sociologia Pragmtica e, numa primeira apresentao, podemos afirmar que pblico est associado idia de generalidade. A maioria das vezes em que se fala de polcia trata-se de considerar uma atuao singular de um determinado policial ou grupo de policiais numa determinada situao. Por outro lado, possvel falar da polcia em geral e discutir seu papel na sociedade, entendido como uma totalidade. Trata-se de discusses sobre a segurana pblica. Um terceiro modo de falar sobre a polcia discutir uma determinada situao em que um policial age ou agiu e tomar como um exemplo de como a polcia (em geral) deve ou no agir. Esquematicamente, estes so trs modos de falar e opinar sobre a polcia; outros modos de agir perante ela no implicam necessariamente emitir uma opinio sobre ela, como se calar, confrontar, obedecer, etc.

    Dos trs modos de falar sobre a polcia, o primeiro falar de um policial numa situao particular tende a no ser pblico, pois considera apenas a relao entre o policial e o que fala sobre ela, pouco dizendo sobre outras pessoas em outras situaes. Os outros modos esboam tentativas de superar uma situao de singularidade des-singularizar-se e colocar a polcia como uma discusso pblica (geral, que diz respeito a todos). A discusso pblica pressupe certo nvel de abstrao (no sentido metafsico da palavra), ou seja, dividir a discusso em dois nveis: a atuao da polcia em um conjunto de prticas singulares e a referncia ao seu papel na sociedade em geral. importante notar que a prpria organizao da polcia pressupe esta abstrao, no s porque policiais precisam falar sobre si mesmos, mas tambm porque eles precisam ser reconhecidos perante diversas pessoas como algo que diz respeito a todos como representantes da lei, da ordem, da autoridade, etc. Definimos o conjunto de opinies relativo polcia que consideram sua atuao em geral como uma opinio pblica sobre a polcia. Do ponto de vista que muitas destas opinies podem criticar ter o sentido de modificar o comportamento da

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    polcia, podemos afirmar que a polcia corresponde a um problema pblico. Estas definies tm um carter formal, pois no especificam quais so as crticas polcia numa situao concreta ainda menos no caso do Rio de Janeiro que buscaremos estudar. Esta dissertao tem por objetivo estudar a construo social de uma crtica polcia que segue os princpios cvicos dos Direitos Humanos. Aqueles que mobilizam os argumentos desta crtica esto preocupados com a capacidade de a polcia agir seguindo a lei. No faremos um estudo propriamente da polcia, mas sim das estratgias de diversos atores para denunciar que uma determinada ao policial se caracterizou como injusta e que ela no est em conformidade com as normas legais. Estratgias para tornar uma denncia pblica, ou seja, fazer que todos as pessoas envolvidas ou no na situao se sintam afetadas pela injustia. Assim procuraremos explicitar de que modo atualmente a polcia carioca vem constituindo um problema pblico.

    No primeiro captulo apresentaremos os pressupostos tericos desta pesquisa. A noo de pblico que apresentamos nos pargrafos iniciais refere-se aos desenvolvimentos tericos da chamada sociologia pragmtica francesa, particularmente ao Grupo de Sociologia Poltica e Moral coordenado por Luc Boltanski. Os principais conceitos que utilizaremos para este trabalho sero de gramtica, de regime de justia e de mundo cvico. No mesmo quadro terico, utilizaremos os estudos recentes de Luiz Antnio Machado da Silva e seus colaboradores a respeito da gramtica da violncia urbana. Sero analisados relatrios de Direitos Humanos, que se revelaram de extrema importncia para a identificao de diversos dispositivos importantes para a definio de uma situao que envolva a polcia como injusta situao de violncia policial.

    No segundo captulo estudaremos condies concretas e situadas de denncia de casos de violncia policial. Para isto utilizaremos o conceito de forma caso (affaire), desenvolvido por Elizabeth Claverie, articulado com os estudos antropolgicos de Roberto Kant de Lima acerca do sistema de inqurito brasileiro. Dois casos sero comparados: o assassinato de 19 pessoas na Mega-Operao no Complexo do Alemo no dia 27 de junho de 2007 (a partir de agora, Caso Alemo); e o caso do assassinato dos trs jovens no Morro da Providncia no dia 14 de junho de 2008 (Caso Providncia). Por fim, faremos um conjunto de consideraes finais acerca da contribuio desta pesquisa para futuros estudos no quadro de pesquisa da sociologia pragmtica, particularmente no que diz respeitos s gramticas da violncia urbana e cvica, situaes concretas no Rio de Janeiro.

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    Captulo 1 A violncia policial como causa cvica

    1.1 Denncias Pblicas

    Desde da passagem dos anos 1970 para os anos 1980, quando Luc Boltanki e seus colegas, do que viria a se o Grupo de Sociologia Poltica de Moral (GSPM), passaram estudar temas referentes a noo de pblico, este conceito j vinha associado ao conceito de justia. O objeto de estudos deste perodo era a construo social de denncias pblicas, ou seja, como diferentes atores denunciam uma situao como injusta.

    Este perodo foi de rompimento com a problemtica sociolgica Bourdiana, qual os socilogos estavam vinculados, e de definio de uma problemtica sociolgica que poderamos chamar de situacionista ou pragmtica. Em termos metodolgicos podemos indicar que nos estudos deste perodo desaparecem conceitos como habitus e campo em prol de novos conceitos de ao e (em) situao.

    O artigo La denuncia pblica de Boltanski de 1884 e republicado em 2000 j tem em vista um objetivo terico grandioso de superar oposies clssicas da sociologia: indivduo/sociedade e micro/macro. A construo de uma denncia pensada como uma situao de passagem entre o singular e o geral. Mas esta passagem se faz em condies de incerteza. Na demarcao terica que estava sendo desenvolvido neste perodo, o socilogo deve recusar qualificar previamente um ator e a acusao que ele faz como singular ou geral, grande ou pequeno, assim como buscar compreender no prprio decurso da situao se a passagem bem ou mal sucedida.

    O material emprico utilizado na pesquisa foi um conjunto de cartas recebidas pelo jornal Le Monde nos anos de 1979-81. A escolha do material justificada por ser um jornal de grande circulao na Frana. Isso permite que, uma vez que uma carta publicada, uma denuncia possa ser julgada pela opinio pblica. Por outro lado, Boltanski teve acesso s cartas no publicadas, o que permitiu tambm investigar casos em que a passagem do singular ao geral no fosse assegurada.

    Observar as condies de sucesso e frustrao em situao segue um objetivo metodolgico mais geral de construir uma gramtica da denncia. Gramtica entendida neste artigo como un conjunto de coacciones que se imponen a todos de la protesta contra la injusticia y en la acusacin que le es inherente (Boltanski, 2000, p. 22). As coaes que se impem denncia pblica so coaes de normalidade: uma

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    passagem frustrada de uma acusao singular para uma situao geral pode fazer que o denunciante seja qualificado por outros atores como anormal ou paranico.

    Uma situao de denncia composta de quatro actantes1: denunciante, vtima, perseguidor e juiz. Cada um actante passvel de modificar de tamanho e uma denncia bem sucedida consiste naquela em que todos os actantes se tornam grandes. O pragmatismo desta abordagem est explicitado em diversos aspectos, a ressaltar dois: 1) nenhum ator ou objeto grande por si mesmo o sistema de relaes situados que o tornam grande ou no; 2) h regras de engrandecimento, portanto, imperativos para ao, porm os atores no esto determinados por estes imperativos, podendo no cumprir as regras; deste modo deixam de acionar a gramtica da denncia em prol de outra gramtica.

    No listaremos todas as estratgias de engrandecimento dos actantes. Consideramos importante apenas, apresentar o que elas contm de contribuio para estudos posteriores do GSPM.

    Recursos de des-singularizao descritos no artigo La denuncia piblica (2000): Recurso s instituies: Fazer referncia s Instituies (p. 269);

    apresentar ttulos (p. 276); provas jurdicas (p. 291e 296-7); criar coletivos (modos polticos de acentuao) (p. 299);

    Recursos retricos: usar o pronome ns ao invs de eu (p. 278); retrica do movimento operrio (p. 284); linguagem do direito (p. 298); relao entre o mau uso da linguagem e singualarizao (p. 317);

    Evocao de princpios: clamar pela justia e Direitos Humanos (p. 285-6); clamar pela opinio pblica (p. 326).

    possvel identificar j neste estudo o recurso retrico de evocao de princpios no caso de denncias que apelam para a opinio pblica. Este ser o ponto de encontro com as obras posteriores, como veremos. No entanto, este estudo ainda contm bastantes limites, segundo o prprio autor. Embora ele contenha uma pluralidade de recursos de des-ingularizao, de diferentes formas de engrandecimento de vtimas,

    1 O conceito extrado de Greimas tambm utilizado por Latour. O termo actante usado na sociologia

    no sentido dado por Latour. Apresenta o interesse de denominar os seres que intervm na denncia com o mesmo termo, quer se trate de pessoas individuais ou pessoas coletivas constitudas ou em vias de constituio, e inclusive coletivos que figuram em enunciados sem nenhum carter de objetividade (por exemplo, os homens de bem, todos os que sofrem, etc.). um dos interesses que apresenta o uso do conceito de actante reside na sua capacidade de substituir oposies discretas e remeter diferenas tratadas como substanciais (por exemplo, ente os indivduos e os grupos) por meio de diferenas de tamanho (Boltanski, 2000, pp. 247, traduo prpria).

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    perseguidores e denunciantes, so poucos os princpios de justia a serem invocados e o juiz que estabelece as condies de normalidade basicamente um s o jornal Le Monde. tendo em vista a pluralidade dos princpios de justia e as situaes passiveis de neles se ajustar que se desenvolve a obra de Boltanski e seus colaboradores.

    1.2 Os princpios de equivalncia.

    Da modelizao das denncias pblicas, Boltanski, agora em parceria com Laurent Thvenot, constri um modelo mais geral, abrangendo o modo com que as pessoas coordenam suas aes, levando em conta princpios de justia. A noo de princpio colocada no centro da anlise. A semelhana do estudo anterior ainda se procura analisar e modelizar a ao em situao. No entanto, este estudo visa a apresentar a pluralidade de princpios de ao possveis. Para sustentar a noo de princpios, os autores postulam que todos os atores so dotados de uma competncia ou capacidade crtica. Trata-se de uma capacidade de transcender uma situao dotada de diversos atributos singulares e avaliar se esses atributos esto ajustado ou no a um princpio de ordem universal. Assim, a anlise est dividida em dois planos (Boltanski, 2000, p. 32). Os princpios de ordens no pertencem ao plano das pessoas e das coisas encontrados nas situaes concretas, mas podem ajustar as situaes serem indexados, na linguagem dos etnometodlogos. Os princpios de justia, chamados de cits, possuem regras gerais de formalizao. importante notar que as situaes no necessariamente precisam estar ajustadas a eles. Boltanski e Thvenot identificam outros modos de coordenao da ao regimes de ao como o regime de violncia e o regime de amor. Retomaremos este ponto mais adiante. Para estudar a constituio de cits, Boltanski e Thvenot recorreram obra de alguns filsofos polticos considerados por eles gramticos do lao (lien) poltico (Boltanski & Thvenot, 1991, p.87). Gramticas tm o sentido de formalizar, sistematizar e universalizar o bem comum de forma a permitir a avaliao de situaes possveis. Para que uma cit seja sistematizada, preciso um domnio de tcnicas (techin) de retrica no sentido clssico de Ccero resgatado pelos autores (Idem, p. 88-92). Trata-se de argumentaes que produzem condutas morais.

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    O modelo de cit encontra-se assentado sobre axiomas que permitem que sejam formais e universais. So os axiomas: 1) comum humanidade todos os indivduos, enquanto seres humanos so membros da cit; 2) princpio de dessemelhana embora todos sejam humanos, os indivduos encontram-se em diferentes estados; 3) comum dignidade todos esto passveis a se encontrarem em qualquer um dos estados; 4) os estados esto ordenados em escalas de valor, entre superiores e inferiores, grandes e pequenos; 5) h formas de investimento, ou modos de sacrificar-se para atingir os estados superiores. 6) definio de um bem comum, que distinga os estados superiores e inferiores segundo a aproximao e o afastamento deste bem. O estudo dos filsofos polticos restringe-se a construes argumentativas de princpios de ordem. Resta saber como princpios to abstratos e mesmo metafsicos so capazes de coordenar aes. Em outras palavras, como os princpios so postos em prtica. A passagem para as situaes prticas conduz a um quadro de associao entre pessoas e objetos de modo semelhante aos estudos conduzidos por Latour. A associao entre pessoas e objetos orientada pelos princpios, do seguinte modo: os objetos esto associados aos estados da cit e, para que uma pessoas prove um pertencimento a uma grandeza, faz-se necessrio que se acionem objetos pertencentes ao mesmo estado. Por serem acionados por pessoas em situao, os objetos passam a ser chamados de dispositivos. Pelo fato dos dispositivos permitirem associar uma pessoa a uma grandeza, podem ser chamados de provas de grandeza.

    lpreuve de grandeur ne se rduit pas un debat dides, elle engage des personnes, avec leur corporit, dans un monde des choses qui servent la appui, em labsence desquelles la dispute ne trouverait ps matire sarrter dans une preuve. (Boltanski & Thvenot, 1991, p.166)

    Refletindo sobre a noo de prova em uma obra posterior, Boltanski e Chiapello chegam a afirmar que uma sociedade pode ser definida pela natureza de suas provas (Boltanski & Chiapello, 1999, p. 75-6). Isto se deve capacidade do conceito de explicitar o modo como distines sociais so efetuadas situacionalmente tanto num sentido micro quanto macro sociolgico. Num sentido micro cabe investigar os objetos que as pessoas apelam para definirem-se como grandes: leis, regulamentos, vestimentas, casas, fotos, ttulos... Por outro lado, num sentido macro possvel classificar provas

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    estveis e desvendar grandes tendncias da seleo social, como foi o caso da pesquisa sobre os principais dispositivos que justificavam o capitalismo: como as provas de partilha entre salrio e lucro, provas de recrutamento, de ascenso profissional, etc.

    Voltando obra de 1991, os exemplos de situaes de crtica e de ajustamento so todos tirados do cotidianos semelhana de pesquisas etnometodolgicas e ajudam a explicitar como orientamos a nossa vida sob o acionamento de objetos. Certa vez, assisti a uma discusso entre um senhor idoso e um adulto (cerca de 30 anos) em um metr. A discusso versava sobre o uso das cadeiras laranjas preferenciais para idosos, crianas, deficientes e portadores de crianas de colo. O adulto que se encontrava sentado no queria levantar da cadeira mesmo sob insistncia do idoso e argumentava que trabalhara o dia todo e que iria para Pavuna bairro afastado, ltimo (ou primeiro) ponto do metr. O idoso argumentou que trabalhara mais de 40 anos e a cadeira era para idosos. Este exemplo interessante assim como qualquer outro correlato para pensar

    como cadeiras, metrs, idade,... relacionam-se com princpios, como trabalho (cit industrial) para ajustar ou criticar situaes. No caso do exemplo, apenas um dos princpios estava em jogo e discutia-se como a prova deveria funcionar: de maior grandeza o tempo de trabalho ao longo do dia ou dos anos. Mas tambm poderiam ser acionados outros dispositivos relevantes para outros princpios. Por exemplo, o idoso poderia argumentar tenho idade para ser seu av (cit domstica). A presena de dispositivos de prova de grandeza fora o quadro terico de Boltanski a ser estritamente situacional. Permanecer num estado de grandeza estar sendo sucessivamente posto prova. Nenhum idoso tem a sua cadeira assegurada no metr... Logo, o cotidiano um sucessivo acionamento de dispositivos de diversos mundos e crticas de que os dispositivos no funcionam segundo seus princpios. curioso observar que a noo de dispositivo to lata na obra de Boltanski quanto o na obra de Latour. Um dispositivo tudo aquilo de concreto, pessoa ou objetos, de uma simples cadeira a uma instituio estatal, contanto que seja acionada situacionalmente. Isto fica claro numa situao de denncia pblica em que possvel acionar o Le Monde. Ou na obra de Boltanski e Chiapello (1999) em que um sindicato, uma fbrica, um direito trabalhista eram todos dispositivos acionados para situaes de criticas o capitalismo.

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    Feita esta breve apresentao da Teoria da Justificao, gostaramos de apontar algumas contribuies dos seus autores para um campo mais vasto que chamaramos de sociologia da ao que sero teis para o desenvolvimento deste trabalho.

    1.3 Modelizao e gramtica

    A sociologia realizada por Boltanski e seus colaboradores uma recusa ao que eles chamam de sociologia do ator (Boltanski, 2000, pp. 55). Esta seria qualquer anlise que define atores por disposies estveis (durveis, na linguagem Bourdiana) que faz com que as aes sejam explicadas por caractersticas que lhes so exteriores sobretudo por uma estrutura desconhecida pelos prprios atores. A demarcao terica que possibilitou a Teoria da Justificao tem como pressuposto que os atores possuem competncias e agem em situaes dotadas de dispositivos. No contexto da justificao, os atores so dotados de uma capacidade crtica de elaborar e compreender princpios metafsicos de bem comum e torn-los inteligveis para outros atores. Competncia tambm para distinguir nas situaes coisas pertinentes dispositivos para ajustar de acordo com princpios. O trabalho da sociologia da ao proposta pelos autores tratados de modelizar trabalho de modelizao (Boltanski, 2000, pp. 55) competncias e dispositivos que constituem as situaes. Utilizando uma metfora advinda da lingstica, possvel caracterizar os socilogos pragmticos como elaboradores de gramticas. Uma gramtica, deste ponto de vista, a modelizao de regras a serem seguidas de modo situado (Bnatoul, 1999, p. 298-300). No possvel definir um ator por uma gramtica; s possvel definir se uma gramtica foi seguida ou no em uma situao. As competncias e dispositivos analisados no livro De la Justification visam a coordenao de aes de acordo com um princpio de bem comum, portanto, podem ser definidas como o regime de ao de justia ou gramtica da justificao. Dentro dos atributos formais do regime de justio, possvel a formulao de uma pluralidade de cits, a serem pesquisadas e modelizadas. Neste estudo, no daremos conta desta pluralidade restringindo-nos a apenas cit cvica que, por comodidade, definiremos diretamente como uma gramtica cvica. Mas os estudos de 1991 tambm possibilitaram a modelizao de outros regimes de ao que no so coordenados por princpios de equivalncia, como o regime de

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    familiaridade, de amor (gape) e de violncia. Este ltimo, que particularmente nos interessa, caracteriza-se por realizao de provas de fora.

    A prova de fora consiste numa relao em que os atores no ultrapassam sua situao em prol de nenhum princpio superior; ao contrrio, o princpio que orienta as aes a prpria fora presente na situao. A ausncia de equivalncia impede que as pessoas pertenam a um mundo comum e, portanto, elas se relacionam entre si enquanto coisas que s podem modificar condutas atravs da fora (Boltanski, 2005, p.110). O regime de violncia tem, deste modo, uma conceituao negativa: a ausncia de equivalncias entre pessoas e coisas e reduo das pessoas a coisas. Existe tambm uma conceituao positiva: a relao entre as pessoas como coisas passa ser a fora. Num

    mundo sem equivalncia, a orientao das condutas passa ser a fora e o encontro entre os agentes so constantes provas de fora. Neste trabalho trataremos de uma gramtica importante para o entendimento da violncia policial como um problema pblico. Ela no foi abordada pelos autores franceses, embora guarde estreitas relaes com o regime de violncia. Trata-se da gramtica da violncia urbana.

    1.4 A gramtica da violncia urbana

    A segurana pblica como um tema pblico possui uma historicidade prpria em cada sociedade. O Rio de Janeiro, objeto desta pesquisa, assim como outras cidades do Brasil tiveram dois movimentos histricos como delineadores do debate: o aumento de ndices de criminalidade urbana e o processo de redemocratizao. Cada um desses movimentos deu lugares a intensos debates, a diversas aes polticas e mudanas institucionais.

    No faz parte da proposta deste trabalho retomar, ponto por ponto, esta historicidade, pois foi bem apresentada nos trabalhos de Holanda, Machado da Silva, Leite e Fridman2. Tendo com base as anlises destes cientistas sociais e de alguns documentos histricos que sero analisados ao longo deste trabalho, possvel modelizar um certo nmero de princpios e dispositivos que permitem enquadrar os dois movimentos histricos em duas gramticas: a gramtica da violncia urbana e a gramtica cvica.

    2 Para esta discusso mais histrica conferir Holanda, 1998; e Machado da Silva, Leite e Fridman, 2005.

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    Comearemos com a gramtica da violncia urbana e, para isto, tomaremos como base o trabalho de modelizao j feito pelos estudos de Machado da Silva e de um grupo de pesquisadores coordenados por ele num projeto chamado Rompendo o cerceamento da palavra: a voz dos favelados em busca de reconhecimento. O pleno desenvolvimento desta pesquisa pode ser identificado no livro Vidas Sob Cerco (Machado da Silva, 2008).

    Os estudos do grupo no tiveram como objeto principal a atuao de aparatos policiais. Aproximaram-se mais de temas clssicos da sociologia urbana brasileira como moradia, favela, ao coletiva, trabalho informal, etc. No entanto, interessante notar que, para o estudo destes temas recorrentes da sociologia, tornou-se foroso lidar com a categoria violncia urbana como porta de entrada para inmeros debates e engajamentos situados na cidade do Rio de Janeiro. Machado da Silva foi um pouco alm na tentativa de estabelecer uma descrio formal e crtica de todo o debate que acompanha esta categoria

    Violncia urbana uma categoria do senso comum carioca e brasileiro que Machado da Silva tomou de emprstimo dos mais diversos debates de segurana pblica dos grupos de confiana montados pela pesquisa ao discurso de instituies pblicas e matrias de jornal. As prticas situadas s quais a categoria violncia urbana pode ser indexada so inmeras e no caberia aqui a tarefa de list-las. Estamos aqui tratando do movimento histrico acima referido como aumento dos ndices de criminalidade. Porm no se faz necessrio especificar nenhum estudo criminolgico especfico acerca do aumento. Um estudo criminolgico qualquer estaria preocupado com o aumento de prticas tipificadas pelo Cdigo Penal. A violncia urbana no se caracteriza pelo descumprimento da lei, mas sim por uma ameaa s relaes inter-pessoais que conferem continuidade s rotinas dirias e garante um sentimento de segurana pessoal (Machado da Silva, 2009). Por exemplo: estelionato uma atividade criminosa e dificilmente ser enquadrado na gramtica da violncia urbana. Uma rebelio em um presdio tem dificuldade de receber um enquadramento legal, mas facilmente enquadrada como violncia urbana. Ao tematizar temas como o narcotrfico, a gramtica da violncia urbana articula, no plano discursivo, a emergncia de uma nova forma de vida, designada nos estudos de Machado da Silva de sociabilidade violenta. Trata-se de uma ordem social em que a fora deixa de ser um meio para ser um princpio que coordena as aes (Machado da Silva, 2008, p. 41). Este conceito guarda muitas semelhanas com o

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    conceito de regime de violncia Boltanski e Thvenot e tambm uma diferena central: as provas de foras no so apenas inscritas em determinadas situaes, como se tornam uma forma de vida relativamente autnoma (Machado da Silva e Leite, p. 52, nt. 6). na garantia de um quadro de referncia de preservao de rotinas dirias e a identificao de relaes mediadas pela fora que a atuao da polcia se encontra na gramtica da violncia urbana. A aqueles que se encontram como portadores da sociabilidade violenta ou em convivncia forada pela contigidade territorial, passam a serem definidos como um outro, no limite, no humanos. Em compensao, a polcia segue demandas de represso com vistas de sobrepujar pela fora aqueles que ameaam a preservao das rotinas dirias. Do mesmo modo com que prticas de violncia so enquadradas de acordo com a ameaa de uma segurana pessoal em detrimentos do seu enquadramento legal, a atuao policial enquadrada pela preservao da segurana pessoal em detrimento do seu enquadramento legal. Isto d aos aparatos policiais uma autonomia perante a lei. Nas palavras de Machado da Silva:

    Neste sentido, talvez o principal resultado da compreenso da sociabilidade violenta pela linguagem da violncia urbana abrir um amplo espao para que as corporaes policiais decidam, com autonomia e praticamente nenhuma superviso jurdica ou poltica, como deve ser exercida sua funo social de garantia da ordem pblica. A opinio dominante (isto , o senso comum) apenas espera que elas interpretem corretamente suas expectativas quanto continuidade das rotinas e sua interpretao quanto natureza das ameaas identificadas e aos atores por elas responsveis. (2009)

    Enfatizamos este ponto, pois esta uma das chaves para o confronto da gramtica da violncia urbana e gramtica cvica que abordaremos neste trabalho. Seguindo uma tradio militar de polcia, a atuao da polcia na gramtica da violncia urbana descrita como uma guerra, a metfora da guerra nas palavras de Mrcia Leite (2000). Para os fins deste trabalho sublinharemos trs desdobramentos importantes desta metfora:

    1. No se pode garantir direitos para os que ameaam a sociedade (direitos humanos para seres humanos, bandido bom bandido morto,...);

    2. Caracterizao do inimigo como uma entidade equiparvel ao Estado (Estado paralelo), no s por deter fora repressora, mas tambm por ser territorializvel. Promove-se uma confuso entre territrio da pobreza (em geral a favelas e loteamentos) e territrio do crime. A todos aqueles que esto neste territrio aplica-se o ponto 1.

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    3. Vtimas de atuaes policiais que no ameaavam a sociedade (trabalhadores honestos) so considerados um efeito colateral: em toda guerra morrem civis, em toda guerra h baixas dos dois lados, para fazer um omelete preciso quebrar ovos, quantas pessoas inocentes os bandidos esto matando?

    1.5 A Gramtica Cvica

    1.5.1 O mundo cvico no livro De la Justification

    O mundo cvico, enquanto idealizao de princpios de equivalncia (uma cit), foi estabelecido tomando de emprstimo obra do filsofo Jean Jaques Rousseau. H certo pleonasmo em se falar de cit cvica, reconhecido pelos prprios autores. A cit cvica aquela em que os indivduos abrem mo dos seus interesses particulares, de sua singularidade, em prol de um bem comum constitudo pela vontade geral. Diante do bem comum, deixa-se de ser indivduo para tornar-se cidado. No preciso ter lido Rousseau para realizar um engajamento cvico. Basta enfrentar em uma determinada situao os problemas abordados de forma sistemtica pelo autor. Como abrir mo de laos de dependncia pessoal, de interesses econmicos, paixes... para pensar e agir como um cidado? Para Rousseau, a vontade geral no uma soma de vontades particulares (vontade de todos, seguindo a linguagem de Rousseau), mas algo que se tem acesso abrindo-se se mo das vontades particulares, formando um todo distinto das partes. Isso limita as possibilidades de um indivduo ter soberania diante de uma coletividade, ou da soberania ser realizada atravs de um sufrgio3. A realizao preferencial da vontade geral, o estabelecimento da lei, que considera os indivduos e suas aes de modo abstrato (enquanto cidados), desvencilhando os indivduos de atributos particulares (Rousseau apud Boltanski, 1991, pp. 142). Boltanski e Thvenot (1991, p. 146) consideram a cit cvica de difcil objetivizao, pois a mudana de um estado de conscincia que permite a passagem de um indivduo para um cidado. Isso no torna a cit menos presente na sociedade, mas torna bastante comum a suspeita de que uma situao no est sendo mantida de acordo com princpios cvicos. Sempre ser necessrio investigar como esta cit provada no

    3 O sufrgio no descartado pelo pensamento cvico desde que os indivduos, sob condies

    especificadas, abram mo de laos de dependncia pessoal ao realiz-lo (Boltanski & Thvenot, 1991, p. 143-4).

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    mundo, ou seja, quais so os dispositivos e procedimentos que tornam possvel seu ajustamento no mundo. Para sistematizar um repertrio de seres e dispositivos que permitam pensar situaes hodiernas de crtica e ajustamento cvico um mundo cvico os autores analisam guias sindicais publicados pela Confdration franaise dmocratique du travail (CFDT)4.

    Em todos as cits apresentadas no livro foi realizado este procedimento: confrontar formulaes filosficas sobre o bem comum com guias de condutas condizentes com as formulaes. As brochuras sindicais, como qualquer outro manual de conduta, estabelecem uma relao geral/singular ajustando princpios a situaes por meios de provas. A escolha deste tipo de manual cvico, ao invs de outro, deve-se ao fato de que, para melhor comparar diferentes manuais e diferentes mundos correspondentes, os autores optaram por definir um mesmo teatro de operaes: situaes no mbito de empresas capitalistas. Esta escolha tem por efeito que todos os manuais realizam, de algum modo, um compromisso entre a o mundo industrial e outro mundo (no caso em questo o mundo cvico). (Idem, p. 190-1).

    Mesmo sendo um guia de ao sindical, possvel identificar, no repertrio de seres, certos dispositivos que estejam presentes em qualquer situao cvica. Preocupados com questes de organizao de sindicatos e eleio de delegados, os documentos fazem sucessivamente aluso ao cumprimento da lei francesa, particularmente do direito sindical. H uma preocupao em objetivar pessoas coletivas em oposio a indivduos no caso dos guias, a organizao coletiva de trabalhadores, a ao coletiva e o movimento social. Uma eleio de delegados no um procedimento cvico por si prpria. Ela deve ocorrer seguindo o cumprimento da lei que, por sua vez, assegura a representatividade da eleio, a liberdade de expresso dos participantes, e a independncia no julgamento dos eleitores. Deste modo, o direito sindical associa-se ao direito civil. A forma mais comum de investimento neste mundo a mobilizao, a militncia e a representao; todos eles significando o sacrifcio de atributos singulares para se tornar grande em uma mundo cvico. Para isto h uma lista enorme de dispositivos pertinentes de prova: eleies, assemblia, estatutos, comits, boletins, campanhas, reunies. Mas o que interessante que todos estes dispositivos devem estar acompanhados por dispositivos

    4 Foram utilizadas duas colees: CFDT, 1983, Pour lire ou designer ls delegues; CFDT, 1981, La

    section syndical (Idem, pp. 195)

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    jurdicos, ou seja, procedimentalizados juridicamente. S assim um dispositivo pode ser acionado de acordo com o mundo cvico.

    Cabe assinalar que o Direito em geral no um dispositivo pertencente a nenhum mundo, antes constituindo um compromisso entre diversos mundos. A caracterstica do direito de ser um conjunto de dispositivos organizados sistematicamente e procedimentalizado para uma aplicao prtica, pode estar ajustado a outros mundos que no o cvico. Mesmo assim historicamente h uma vinculao direta entre a cit cvica e a procedimentalizao do Direito5. No caso do estudo do Boltanski e Thvenot, a lei importante no mundo cvico para provar que uma prtica, por si s, no cvica sufrgio por exemplo segue ou no o interesse geral.

    1.5.2 A segurana pblica no mundo cvico

    Seguindo o nosso prprio teatro de operaes, o debate carioca de segurana pblica, um dos melhores guias de conduta no mundo cvico so os Relatrios de Direitos Humanos. Eles constituem o modo cada vez mais comum no Brasil de tornar pblica uma crtica a instituies estatais e propor reformas. Os relatrios so apropriados no apenas pelas instituies s quais so destinadas, mas a todas as pessoas e grupos que partilham das mesmas posies e pretendem embasar suas reivindicaes com melhores argumentos na nossa conceituao, correspondem formao de causas.

    Os relatrios utilizados foram selecionados segundo os seguintes critrios:

    Tratar do tema da segurana pblica e, particularmente, da violncia policial (que ser explicitado mais adiante);

    Estar disponvel na internet a internet vem sendo uma das principais fontes de informaes para pessoas e grupos que se interessam pela temtica da segurana pblica e direitos humanos. Acredito que o carter extenso dos relatrios faz com que seja difcil uma ampla divulgao imprensa;

    Compreender a Regio Metropolitana do Rio de Janeiro este critrio revelou-se de baixa seletividade, pois os relatrios tendem a considerar o Rio de Janeiro como caso emblemtico para a discusso da violncia em geral com exceo da violncia no campo; e

    5 Para esta discusso, conferir Weber 2004, particularmente o captulo VII, 7, As qualidades formais

    do direito revolucionariamente criado: o Direito natural e seus tipos; tambm Boltanski & Chiapello, 1999, p. 498-500 e Boltanski e Claverie, 2007, p. 443-4.

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    Ter sido publicado nos anos 2000 o maior nmero de relatrios publicados existentes, seguindo os critrios anteriores, foram publicados a partir de 2003. Acreditamos que isto se deve mudana de governo na esfera federal e expectativa de que o governo que ento assumia tradicionalmente ligado temtica dos Direitos Humanos daria uma nova abordagem questo. Somam-se a este fato os sucessivos casos emblemticos ocorridos no Rio de Janeiro no incio dos anos 20006.

    Os relatrios utilizados foram:

    A. DIREITOS HUMANOS NO BRASIL 2003 Relatrio Anual do Centro de Justia Global http://www.global.org.br/

    B. EXECUES SUMRIAS NO BRASIL 1997 A 2003 Justia Global setembro de 2003 http://www.global.org.br/

    C. RELATRIO RIO: VIOLNCIA POLICIAL E INSEGURANA PBLICA Justia Global outubro DE 2004 http://www.global.org.br/

    D. CIVIL AND POLITICAL RIGHTS, INCLUDING THE QUESTION OF DISAPPEARANCES AND SUMMARY EXECUTIONS Naes Unidas janeiro 2004 http://www.unhchr.ch/Huridocda/Huridoca.nsf/TestFrame/02c45bbaeacbe008802568ab0056d86f?Op

    endocument

    E. BRAZIL: "THEY COME IN SHOOTING": POLICING SOCIALLY EXCLUDED COMMUNITIES

    Amnesty International dezembro 2005 http://www.amnesty.org/en/library/info/AMR19/025/2005

    F. FROM BURNING BUSES TO CAVEIRES: THE SEARCH FOR HUMAN SECURITY Amnesty International outubro 2007 http://www.amnesty.org/en/library/info/AMR19/010/2007

    G. RELATRIO DA SOCIEDADE CIVIL PARA O RELATOR ESPECIAL DAS NAES UNIDAS PARA EXECUES SUMRIAS, ARBITRRIAS E EXTRAJUDICIAIS

    Centro de Defesa de Direitos Humanos de Petrpolis; Professor Florian Hoffmann; Grupo Scio Cultural Razes em Movimento; Grupo Tortura Nunca Mais RJ; Instituto dos Defensores de Direitos Humanos; Justia Global; Laboratrio de Anlise da Violncia UERJ; Mandato do Deputado Estadual Marcelo Freixo; Movimento Direito Para Quem?; Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra; Ncleo de Estudos de Polticas Pblicas de Direitos Humanos; Organizao de Direitos Humanos Projeto Legal; Observatrio de Favelas; Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violncia 2007

    http://www.global.org.br/

    1.5.3 Os Direitos Humanos

    6 O relatrio C possui uma cronologia de episdios considerados emblemticos no que diz respeitos

    violncia policial no Rio de Janeiro no perodo de 2000 a 2004 (p. 16-17). Seria muito extenso relatar aqui todos os casos.

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    Estudamos os relatrios como um debate coletivo que, pelo trabalho de modelizao, conforma uma gramtica comum. No colocaremos em relevo discordncias explicitas ou implcitas entre os relatrios at por que foram poucas as encontradas. muito comum os relatrios citarem-se uns aos outros, no sentido de que se complementam, acrescentando novos elementos a um mesmo repertrio.

    Os relatrios relacionam a atuao da polcia com os Direitos Humanos, embora nem sempre seja explicitada a listagem dos direitos. O mais completo neste sentido o da Anistia Internacional, que faz meno direta Declarao dos Direitos Humanos ao indicar quais os principais artigos que as instituies policiais devem observar. Eis alguns pontos listados pela Anistia Internacional:

    These include: Everyone has the right to life, liberty and security of the person (Article 3); No one shall be subjected to torture or to cruel, inhuman or degrading treatment or punishment (Article 5); All are equal before the Law and entitled without any discrimination to equal protection of the law (Article 7); No one shall be subjected to arbitrary arrest and detention (Article 9); Everyone charged with a penal offence has the right to be presumed innocent until proved guilty according to a Law in a public Trial at which they have had all the guarantees necessary for their defense (Article 11(1)); No one shall be subjected to arbitrary interference with their privacy (Article 12); Everyone has the rights to freedom of opinion and expression (Article 19); Everyone has the right to freedom of peaceful assembly and association (Article 20). (Relatrio E, p. 59, nota 98)

    Nesta citao possvel notar temas clssicos da filosofia poltica como as liberdades civis equal protection, right to be presumed innocent, public Trial, freedom of opinion and expression e freedom of peaceful assembly and association sendo todas associadas lei como dispositivo central. No necessariamente preciso acionar a Declarao Universal, pois seus pontos foram incorporados na Constituio Federal de 1988. Assim, mesmo que esteja afastada do cotidiano da populao, a Constituio de 1988 constituiu um marco na defesa da sociedade contra a arbitrariedade do Estado, no perodo anterior de ditadura militar (C, p. 12; D, p. 2).

    Do ponto de vista dos relatrios, a lei o dispositivo de inteligibilidade e avaliao moral da atuao da polcia. Logo, a prpria polcia enquanto instituio entendida como um dispositivo que tem por como caractersticas: 1) a funo de defesa

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    da lei; 2) esta prpria funo est juridicamente formulada, portanto, a legalidade da funo parte integrante dela mesma.

    O uso da fora um dos atributos da polcia, a sua especialidade funcional. A associao entre o uso da fora e a lei, produz calculabilidade como possvel identificar na formulao do socilogo Incio Cano:

    o uso da fora policial pode ser entendido como um continuum, com dois plos opostos. No primeiro extremo, o agente faria uso da sua arma de forma legtima e proporcionada, como a nica forma de salvar a vida de outras pessoas ou dele prprio. Assim o agente deveria ser parabenizado pela sua atuao. No outro extremo, estariam os casos de pessoas detidas que so friamente assassinadas por policiais, ou seja, as execues sumrias. (B, p. 15)

    A dissociao entre o uso da fora e a lei tem por efeito a arbitrariedade nas diversas situaes da atuao da polcia e esta a definio da violncia policial, categoria central neste modo de denunciar situaes injustas.

    1.5.4 Falhas institucionais

    Longe de representar um conjunto de princpios metafsicos, de carter difuso e distante, os direitos humanos necessitam de averbao poltica e social, sendo, portanto, imperativo que suas violaes sejam punidas conforme os princpios jurdicos estabelecidos na constituio e nas demais leis infraconstitucionais. (C, p. 61)

    A garantia de que a atuao da polcia venha a respeitar o cumprimento dos Direitos Humanos depende do ajustamento de instituies policiais a princpios cvicos. tendo por base dispositivos institucionais que funcionam como provas cvicas. As instituies que os relatrios referem em sua seo de Recomendaes so: a polcia civil, as ouvidorias de polcia, as corregedorias de polcia, o Ministrio Pblico, o Judicirio, o Instituto Mdico Legal, os governos federal e estadual e as organizaes de sociedade civil (nesta ltima se encontram os produtores dos relatrios). A todos se recomenda que atuem com autonomia, independncia e transparncia, seguindo a metafsica de composio da cit cvica.

    Se em uma situao o uso da fora policial descumpre a lei, os dispositivos institucionais devem ser acionados para que a grandeza de atores envolvidos na situao seja restituda. Os relatrios organizam denncias de situaes em que tal

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    fenmeno no ocorre, ou seja, denunciam falha em dispositivos impedindo que uma situao se mantenha ajustada a princpios cvicos.

    Nesta dissertao apresentaremos dois mtodos de organizao de denncias de modo a transformar situaes injustas em uma causa, tendo em vista a mobilizao crescente de pessoas. O primeiro mtodo consiste na formao de uma causa atravs da agregao de situaes de injustia por generalizao de atributos comuns pertinentes a um princpio de equivalncia e abstraindo atributos singulares. O segundo a forma caso em que, a partir de uma situao de injustia, convoca-se o pblico para julgar a questo. Nos relatrios, esto presentes os dois modos. Neste captulo, s trataremos do primeiro modo que plenamente desenvolvido por todos relatrios. No prximo captulo, sero analisados analisar dois casos emblemticos na linguagem dos relatrios para melhor identificar suas especificidades.

    Quando se agregam atributos de situaes ocorridas7 no passado, o resultado obviamente quantificvel. Para uma construo de uma causa, este mtodo tem duas vantagens: permite associar uma srie de coisas e pessoas que antes se encontravam dissociadas; permite enquadrar qualquer nova situao injusta que preencha os critrios da agregao; o ator que os aciona est tratando em um nvel alto de generalizao e apenas aceitar ser confrontado por atores que realizam o mesmo procedimento. Os resultados da agregao so chamados correntemente de dados (dados de violncia policial, dados de violao de Direitos Humanos). A seguir descreveremos os principais dados dos relatrios, tendo em vista a metodologia utilizada e as falhas nos dispositivos cvicos a que se referem.

    O socilogo Incio Cano uma das principais referncias na pesquisa sobre violncia policial, citado por quase todos os relatrios , alm de ser o responsvel exclusivo pelo captulo que trata de execues sumrias feitas por policias no Relatrio B. O primeiro conjunto de dados desenvolvidos por este autor est baseado no

    7 A definio desse mtodo tem uma influencia direta no conceito de inscrio desenvolvido por Bruno

    Latour (1990). Trata-se de dispositivos que permitem fazer uma multiplicidade elevada de associaes atravs de dispositivos de fcil manipulao, como grficos, tabelas, mapas e desenhos. Quando se manipula uma inscrio, h um deslocamento de escala dos eventos singulares a relaes gerais. Por exemplo: um grfico abstrai o que coligido em eventos, retirando-lhes quase todos os seus aspectos singulares. Quando se compara um grfico com outro num mesmo papel, promove-se associao que seria impossvel de ser feita meramente com a observao de um evento singular. Logo, agregando inscries, fazendo inscries de inscries, criam-se associaes cada vez mais amplas de objetos e pessoas passveis de serem reproduzidos. Trabalhar com inscries o que Latour define por abstrao, estrutura e forma. To go from empirical to theoretical science is to go from slower to faster mobiles, from more mutable to less mutable inscriptions (Idem, , p. 47).

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    argumento de que, uma vez que a atuao da policia deveria ser pautada pelo uso mnimo da fora, assassinatos deveriam ser excees.

    For the years 2000 and 2001, the Special Secretariat for Human Rights, which was able to gather information from six states, namely Par, Bahia, the Federal District, Rio de Janeiro, So Paulo and Rio Grande do Sul, reported a total of 3,017 civilians killed by the military and civil police on and off duty. Among these, 1,126 persons were killed by on-duty military police (often explained away as killing during encounters and armed confrontation), while 186 were killed by the civilian police. Off-duty military and civil police were allegedly responsible for the remaining 1,705 killings. (D, p. 11);

    a proporo entre policiais mortos em confronto e civis mortos pelos policiais excedia a razo de 1 a 10, o que indica, de acordo com o Prof. Chevigny, um uso abusivo da fora;. No Rio de Janeiro, essa razo excede s vezes o patamar de 30 ou 40 a 1. (G, p. 9; D, p. 12);

    a proporo de homicdios dolosos devidos interveno policial situa-se entre 10 e 20% do total, muito superior ao que acontece em vrias cidades do exterior. (G, p 9);

    a razo entre opositores mortos e opositores feridos nas aes policiais o indicador mais claro. Essa razo, denominada ndice de letalidade, evidencia que, em muitos casos, h uma inteno de matar e no de prender o oponente (...). No Rio de Janeiro, pesquisas mostraram um nmero de mortos mais de 3 vezes superior ao nmero de feridos. (G, p. 9);

    Outro dado ocorrncia de prticas que, de to violentas, no esto previstas pela lei. O trabalho do Instituto Mdico Legal de grande importncia na construo deste segundo conjunto de dados, apesar de haver tentativas por parte dos prprios policiais de escamotear e/ou retirar evidncias limpeza dos corpos, retirada dos corpos do local do crime, s permitir que periciem torturados dias aps a tortura, dentre outras (B, p. 17; D, p. 17). Os dados que seguem so de vtimas de intervenes policiais no Rio de Janeiro no perodo 1993-96:

    46% dos cadveres apresentavam 4 ou mais impactos de bala; 61% dos mortos tinham recebido ao menos um disparo na cabea; 65% deles mostravam ao menos um disparo na regio posterior (pelas costas); um tero das vtimas tinha leses adicionais s provocadas por arma de fogo, o

    que poderia indicar que muitas foram golpeadas antes de serem executadas; foram encontrados 40 casos de disparos queima-roupa, feitos curta distncia,

    o sinal mais evidente de execuo. (B, p. 16; G, p. 10)

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    A seguir, coligimos dados passveis de quantificao que, no entanto, ainda no foram plenamente desenvolvidos nos relatrios. O argumento que unifica estes dados de que, quando o uso da fora policial acusado de injusto, seja por que ator for (um cidado, o Ministrio Pblico...), faz-se necessrio instaurar um processo penal que termine com uma condenao ou uma absolvio. Se isto no ocorre, a situao injusta diante de princpios cvicos por haver falhas nos dispositivos de prova cvica. Em agregado, isto favorece a violncia policial, pois falho o controle legal do uso da fora pela polcia.

    A abertura, em alguns casos, de sindicncia ao invs de inqurito. (...) a sindicncia no tem validade jurdica, apenas administrativa... (B, p. 18);

    Um estudo realizado por Srgio Verani identificou pedidos sistemticos da Promotoria do Rio de Janeiro para que juizes arquivassem processo que envolvesse policiais. Caso o juiz se negasse, o pedido vinha da Procuradoria de 2 instncia, inviabilizando o processo (B, p. 18);

    Numa pesquisa da auditoria da Justia Militar em 1998, Incio Cano encontrou 305 casos de morte de civis por policiais; destes, 295 foram arquivados a pedido da Procuradoria e nos poucos restantes, o ru foi absolvido a pedido da prpria promotoria (B, p. 18);

    Os dois casos anteriores revelam omisso do Ministrio Pblico em casos de violncia policial mesmo quando h fortes indcios de execuo (B, p 18);

    Ocorrncia de ameaas a juizes (D, p. 10); Falta de recursos e de treinamento no Judicirio (D, p. 11); A atuao da polcia, tanto civil quanto militar, supervisionada por corregedorias.

    No caso da polcia militar (que possui os maiores ndices de homicdio), as corregedorias esto subordinadas ao comando militar, fato que lhes retira autonomia. Tendencialmente, as corregedorias esperam haver algum julgamento por parte do judicirio (o que raro) para aplicar qualquer sano administrativa;

    Fato similar ocorre com as ouvidorias das polcias que deveriam receber queixas da populao e encaminhar para instituies investigadoras. Neste caso, as ouvidorias esto subordinadas Secretaria Estadual de Segurana Pblica e passam a estar vulnerveis a intercorrncias e disponibilizao de recursos das gestes estaduais (D, p. 8);

    longo o tempo de espera dos julgamentos. H casos em que o julgamento se arrasta por 20 anos (E, p. 53; D, p. 17,);

    Policiais acusados de homicdios extrajudiciais tendem a permanecer soltos e em servio sem nenhuma punio administrativa ou apenas so transferidos representando um grande ameaa aos familiares das vtimas e testemunhas (D, p. 18; E, p. 28). No incio de 2004, 65 policiais acusados de crimes como tortura, extorso e homicdios foram reintegrados aos seus cargos (C, p. 19);

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    Em todos os dados acima apresentados os relatrios consideram que o processo penal ficou incompleto, prejudicando a condenao penal de eventuais casos de violncia policial. importante analisar que, para fazer uma denncia nos quadros deste tipo de argumentao, necessrio atestar uma presena e uma ausncia: de algum indcio, suspeita, testemunho de violncia policial e a ausncia de um julgamento penal que prove se houve ou no injustia. Esta estratgia de denncia ser mais explicitada no captulo seguinte em que ser apresentado, com maiores detalhes, como construdo um caso de violncia policial, incluindo as especificidades do processo penal brasileiro.

    1.5.5 O Desvelamanto da violncia policial

    No se resumindo a apontar as falhas de dispositivos institucionais, os relatrios apontam dispositivos estranhos ao mundo cvico, que impedem a concretizao de suas provas. Para Boltanski e Thvenot, esta tarefa da denncia chama-se desvelamento (Boltanski & Thevenot, 1991, p. 265-70) e, ao execut-la, os relatrios identificam e de certo modo sistematizam elementos do que chamamos de gramtica da violncia urbana.

    a verdadeira oposio contida na crescente violncia do Rio: de um lado o discurso oficial, que se faz passar como a vontade geral e que sugere a noo da guerra, da demonizao do outro e da letalidade como vitria e, de outro, o reconhecimento do que um bom policiamento e uma boa poltica de segurana, pautada, acima de tudo, no respeito vida e integridade do cidado, desejo da maioria ambas geradoras de conseqncias diametralmente opostas. (C, p. 25).

    Ao analisar o caso do Rio de Janeiro, os relatrios concluem que a segurana pblica se distancia dos direitos humanos por encontrar-se politizada (F, p. 14), alvo de diversos projetos eleitorais que enxergam no combate ao crime uma forma de angariar apoio popular numa espcie de populismo criminal (C, p. 22; E, p. 9 e 23). Este processo tem dois efeitos: 1) falta de consistncia e de continuidade de polticas de segurana, que por sua vez precisam de projetos de longo prazo (C, p. 27; E, p. 11); 2) desarticulao entre esferas de governo principalmente entre governos estadual e governo federal.

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    O aumento da criminalidade nas cidades brasileiras tem recebido uma resposta altamente repressiva por parte do Estado. Os relatrios denunciam com freqncia a utilizao de um jargo blico por parte dos governos e da mdia principalmente a utilizao do termo guerra para designar como o Estado deve se comportar diante da criminalidade. Os governos assumem uma tica militar de enfrentamento que define o outro como inimigo.

    Nesta mesma tica, as causas da criminalidade so negligenciadas e o criminoso tratado como um monstro, sem vnculos com a vida civilizada e que deve ser detido por um Estado que tem carta branca para atingir seus fins (C, p. 21-22; E p. 30). Logo, o combate criminalidade vem servindo de justificativa para a violao de direitos humanos (A p. 48 e 50; G, p. 3).

    Quando apresentamos, no tpico anterior, a gramtica da violncia urbana, apontamos para fato de que, ao ser enquadrado neste repertorio o aumento dos ndices de criminalidade, no se levam em considerao os crimes pela sua definio legal, mas pela ameaa continuidade das rotinas e manuteno de relaes interpessoais. Do mesmo modo, a atuao da polcia feita por uma demanda de represso e de insegurana em detrimento das atribuies legais da polcia. Nos relatrios, este debate travado por meio de uma crtica da ineficincia8 da polcia. H um pressuposto geral, nos textos analisados, de que uma polcia melhor treinada e mais eficiente no s evitaria violaes de direitos humanos como diminuiria os ndices de criminalidade (F, p. 3; E, p. 3). Ao resultar em provas de fora, ajustadas gramtica da violncia urbana, a ao policial resulta em mais crimes do que tenciona evitar (C, p. 16). Alguns relatrios tambm observam que os prprios agentes policiais acabam tambm se tornando vtimas neste processo por serem mal treinados e mal remunerados, alm de estarem expostos a riscos desnecessrios devido militarizao excessiva (C, p. 25; E, p. 24).

    Os dispositivos da gramtica da violncia urbana encontram-se sobretudo na atuao da polcia. A cada ano surgem novas incurses com estruturaes cada vez mais

    8 H um debate mais ou menos consagrado nos estudos sociolgicos sobre a instituio policial de um

    conflito entre a eficincia e a eficcia da atuao policial (Conferir Paixo, 1997, p. 235-8). Trata-se de uma atualizao do debate, este sim consagrado, do conflito entre a racionalidade material e a racionalidade formal na aplicao do direito (conferir Weber, 2004). Para manter o quadro da teoria da justificao, poderamos dizer que, nos relatrios, h um compromisso entre o mundo cvico e o mundo industrial ao se afirmar que a polcia deve seguir a lei (eficcia) e segui-la de modo cada vez mais eficiente. Mas no explicitado, nos mesmos relatrios, um conflito entre os dois mundos, como possvel entrever nos estudos de Weber e seus seguidores. Os relatrios denunciam que, ao realizar provas de fora, a polcia ineficiente e ineficaz, e no que haja um conflito entre as duas noes.

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    blicas, usando dispositivos como megaoperaes e caveires ou a utilizao das foras armadas para combater a violncia urbana (F, p. 18-19; G, p. 4-7 e 11). Mas tambm so identificados dispositivos estranhos ao mundo cvico em outras intuies:

    A legislao reserva os crimes cometidos por policiais militares Justia Militar, considerada extremamente corporativa pelo relatrio D. Com a promulgao da lei Bicudo de 1998, apenas homicdios dolosos passaram a ser de atribuio da justia comum (D, p. 17; A, p. 46).

    Por determinao do Governo do Estado [sic], as manifestaes de moradores das favelas que muitas vezes seguem s aes da polcia nas comunidades, geralmente marcadas por depredao de nibus e interrupo de avenidas e tneis, devem ser enquadradas penalmente como crime de associao ao trfico. (C, p. 32)

    A criao do mandato de busca e apreenso genrico permite que a polcia entre em qualquer residncia de uma determinada comunidade quase sempre uma favela. Assim como no ponto anterior, trata-se de uma manipulao de instrumentos legais por parte das autoridades que permite maior autonomia legal para a polcia (C p. 34);

    Um dos dispositivos que merece particular destaque nos relatrios so os Autos de Resistncia. Nos registros policiais do Rio de Janeiro, este o modo como so classificadas todas as pessoas mortas pela polcia sem fazer nenhuma distino a respeito das diferentes circunstncias das mortes. Essa denominao que no existe no Cdigo Penal, foi criada justamente para evitar classificar os fatos como homicdios dolosos, que a tipificao que legalmente lhes corresponde, sem prejuzo da possvel existncia de excludentes de ilicitude como a legtima defesa (B, p. 18). A crtica categoria Autos de Resistncia encontra-se em todos os relatrios, considerada o maior exemplo da maneira como a instituio policial enxerga todas as suas vtimas (por exemplo, A, p. 49; B, p. 18; C, p. 30...). Veremos no prximo captulo como este dispositivo dificulta a construo da casos de violncia policial.

    1.5.6 Quem so as vtimas da polcia

    O mtodo de agregao de situaes injustas permite a generalizao de vtimas de violncia policial tambm atravs da quantificao. Estas vtimas podem ser reunidas num mesmo discurso por terem sido alvo do uso da fora policia contrria lei ou ter relaes de familiaridade com os alvos. Toda a humanidade invocada pelo mundo

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    cvico tambm pode ser a vtima do dano. Eis um exemplo de vrias formas de construir discursivamente a vtima:

    Successive Brazilian governments have betrayed Brazils socially excluded population. By consistently failing to address profound problems in the area of public security and protect the populations fundamental human rights, they have condemned millions of people to decades of violence. Police officers who have perpetrated human rights violations have largely committed their crimes with impunity. They have also succeeded the law and protect the security and human rights of all citizens. (E, p. 72, grifos meus)

    A agregao permite coligir atributos das vtimas no diretamente relacionados a dispositivos jurdicos. As vtimas dos policiais costumam pertencer aos setores mais desfavorecidos da populao (social excluded population). So, em sua maioria, jovens, negros e moradores de periferias no caso do Rio de Janeiro, favelas onde ocorrem as operaes policiais (B, p. 17; E p. 18-19; D p. 12). A qualificao das vtimas feita por agregao est a associada denncia de uma prtica definida pelos relatrios de criminalizao da pobreza. Identificamos dois significados para esta noo.

    O primeiro significado uma ampliao da denncia de que h falhas institucionais nos dispositivos policiais e jurdicos. Os dispositivos em questo no apenas deixam de realizar provas cvica como passam a realizar provas de outra natureza: avaliam a riqueza e a pobreza de indivduos numa situao de abordagem policial. Deste modo h um conflito entre a o mundo cvico e o mundo mercantil. Os pequenos do mundo mercantil esto impossibilitados de ser grandes no mundo cvico pelo fato das provas cvicas serem impuras9.

    O segundo consiste numa ampliao maior ainda da denncia. Trata-se de uma associao entre a causa da violncia policial com causas anti-capitalistas. As vtimas de violncia policial so tambm vtimas de desigualdades sociais promovidas pela atual fase do capitalismo neoliberal (A, p. 48-49; B, p. 22; C, p. 12; E p. 9-10). Esta crtica combina distintas situaes de prova e pode trazer dificuldades de mobilizao.

    Se a primeira significao de criminalizao da pobreza amplamente adotada nos relatrios, a segunda tem restries. Um dos relatrios inclusive taxativo ao afirmar: Police violence is not an inevitable response to criminality, nor is it irrevocably linked to poverty or unequal wealth distribution (D, p. 46). A isto se soma

    9 Esta forma de crtica chamada por Boltanski de transferncia de grandezas (Boltanski & Thvenot,

    1991, p. 271-5).

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    o fato de no haver recomendaes nos relatrios referentes a dispositivos de prova no diretamente envolvidas com a segurana pblica e que possam por em causa as assimetrias provadas pelo capitalismo10. As possibilidades concretas da associao da causa da violncia policial com outras causas ainda precisam ser estudadas, mas infelizmente fogem ao escopo deste trabalho.

    10 Salvo o relatrio E que faz referncia a uma noo de segurana humana (human security, p. 1), que

    incluiria direitos sociais de modo pouco especificado no relatrio.

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    Captulo 2 Comparao de dois casos de violncia policial

    Este captulo ser dedicado anlise de eventos historicamente situados de denncia de violncia policial. Dois casos foram selecionados de acordo com sua grande repercusso no cenrio poltico carioca e sua proximidade temporal: o assassinato de 19 pessoas na Mega-Operao no Complexo do Alemo no dia 27 de junho de 2007 (a partir de agora, Caso Alemo); e o caso do assassinato dos trs jovens no Morro da Providncia no dia 14 de junho de 2008 (Caso Providncia). Os dois casos geraram grande comoo pblica e ocorreram em datas temporalmente prximas, o que faz com que grande parte dos atores envolvidos nos dois casos sejam, a maior parte das vezes, os mesmos. Utilizamos o termo caso diferentemente da sua acepo acadmica usual (estudo de caso). O conceito de caso insere-se na sociologia pragmtica francesa como uma forma de construo de uma denncia pblica historicamente condicionada. A formalizao do conceito foi estabelecida por Elizabeth Claverie a partir do estudo de uma denncia pblica realizada no sculo XVIII, o caso (affaire) La Barre, sobre o qual faremos uma breve exposio.

    2.1 O nascimento da forma caso

    O caso La Barre comeou com um processo de incriminao penal construdo no Antigo Regime Francs. O cdigo penal de ento, datando de 1670, era regido de forma que o ato de julgar fosse uma extenso da soberania do rei em qualquer lugar que alcanasse sua jurisdio. Era um processo secreto conduzido hierarquicamente, cuja participao contava em ordem decrescente com o procurador do rei no parlamento de Paris, o snchal do conselho de Ponthieu, o procurador do rei na snchausse de Abbeville e o prefeito/juiz criminal.

    O processo teve incio com uma queixa de danificao de um crucifixo em uma ponte de Abbeville, na Picardia, em 6 de agosto de 1765. Uma vez instaurado o inqurito, o prefeito e o procurador de Abbeville ouviram testemunhas que relataram rumores de que jovens nobres, dentre eles La Barre, seriam leitores de autores anti-religiosos como Voltaire e os enciclopedistas e no respeitavam hbitos religiosos especificamente La Barre no retirou o chapu por ocasio de uma procisso, e os jovens tinham hbito de blasfemar e cantar msicas indecentes. Os jovens seriam,

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    assim, os mais provveis autores da danificao do crucifixo. No havendo confisso nem testemunha que indicasse diretamente os jovens como autores do delito, instaurou-se um processo contra os jovens sob acusao genrica de impiet. Este processo teve por resultado a condenao de La Barre fogueira, na qual foi atirado tambm o livro Dictionnaire Philosophique de Voltaire.

    Claverie ps-se a investigar as estratgias de defesa dos partidrios de La Barre. preciso indicar que no havia mecanismos de defesa formal no processo criminal do Antigo Regime. Um primeiro tipo de defesa, efetuado principalmente pela tia de La Barre, a Abesse de Williencourt, foi um caso tpico da nica defesa lcita possvel na poca. A defensora reclamou um lao de parentescos com o ru e com um membro influente da famlia que pudesse intervir, seguindo uma rede clientelstica de patronagem. O membro influente em questo foi o parlamentar parisiense Louis dOrmesson, que se correspondeu com o procurador do rei a favor de La Barre. Nestas cartas, os delitos so atenuados, pois so atribudos juventude dos praticantes, e o remetente insiste nos seus laos de parentesco, dando a entender que punir o jovem seria o mesmo que punir os parentes (Claverie, 1998, p. 230).

    De maior relevncia terica foi a defesa conduzida pelos filsofos Linguet e Voltaire. No seu texto Mmoire e Consultation, Linguet colocou no centro de sua crtica o modo como foi conduzido o processo, tendo questionado a possibilidade de juntar duas queixas destruio de um crucifixo e blasfmias. Tambm questionou a imparcialidade do prefeito devido ao seu desejo de ascenso policial, seu envolvimento em disputas provinciais com membros das famlias dos acusados, dando ao processo um carter de vingana privada. No que diz respeito natureza do delito, o mmoire11 promoveu uma redefinio da relao entre direito e religio que se encontravam unificados sob o Antigo Regime. O filsofo questionou se foi legtimo deixar um crucifixo fora da Igreja, em um espao pblico, retirando a possibilidade das pessoas escolherem crer, venerar o crucifixo ou escolher o contrrio. A religio, deste modo, passa a ser um interesse privado e pela defesa da tolerncia civil.

    J Voltaire, ao criticar o mesmo processo, no se limita a fazer observaes sobre a sua conduo. Ele fez um apelo para que o processo fosse avaliado por um novo juiz, o pblico ou a humanidade. No Antigo Regime nenhuma instituio era representante do pblico uma vez que eram extenses da vontade do rei, prestando

    11 Uma traduo possvel seria memorial, termo pouco corrente na lngua portuguesa.

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    contas apenas ao rei e, portanto, secreto. A indignao contra o processo tambm ficaria no mbito dos envolvidos, no caso, os acusados e seus familiares uma indignao secreta tambm. Segundo Claverie, Voltaire construiu um espao de interesse geral, com noes prprias de verdade e objetividade. Criou-se, assim, a forma caso que deu aos filsofos um novo status de representantes do gnero humano. Criou-se novos meios de expresso poltica, o factum e os mmoires, como espao de contestao. Por fim, criou-se ainda um novo acusado, o fanatismo religioso.

    O factum de Voltaire, intitulado de La Relation de la Mort du Chevalier de la Barre endereado Beccaria, autor do clssico Tratado dos Delitos e das Penas. O texto utiliza as teses de Beccaria a respeito da racionalizao dos processos penais e aplica-se ao caso da Frana onde existia, segundo Voltaire, uma particularizao ao infinito do judicirio, o que implicava numa no-homogeneidade da aplicao da lei no territrio e uma irracionalidade do estabelecimento das provas de culpabilidade. Voltaire considera o delito dos jovens como um delito de opinio, dando um sentido laico a uma falta religiosa. Na conceituao de Voltaire, existe uma diferena entre opinio e sociedade. Nesse caso os jovens, ao terem ofendido a religio de alguns, no ofenderam a sociedade ou seja, aqui se separa religio de Estado, semelhana de Linguet.

    preciso salientar o fato que Voltaire estava diretamente envolvido no processo La Barre, pois seu livro fora queimado juntamente com o condenado. Porm, Voltaire no fez uma defesa pessoal, mas sim uma defesa da importncia dos filsofos que para o desenvolvimento da Humanidade na sua busca pela verdade e na luta contra o fanatismo religioso; seja no processo em questo, seja no prprio parlamento que anteriormente condenara seus livros assim como os dos enciclopedistas. Deste modo, sua crtica vai mais longe que de Linguet e, por isso, pode ser considerado o inventor da forma caso em que todos esto passveis a criticar um evento em nome do pblico, da sociedade, da justia ou da humanidade12.

    A forma caso abriu um novo campo de pesquisa para o grupo de sociologia pragmtica francs. Com ela foi possvel investigar situaes de crtica na histria, como aparece na coletnea de artigos intitulada de Affaires, scandales et grandes causes: De Socrate Pinochet (2007). A formalizao do conceito de caso teve um

    12 Claverie chega afirmar que Voltaire foi o verdadeiro inventor do caso Dreyfus, de maior conhecimento

    na historia da Frana. (Claverie, 1999, p. 255)

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    sentido mais lato do que a denncia de um processo judicial. A forma caso passou a designar modos de criticar acontecimentos injustos que se encontravam ocorrendo em segredo (no-pblicos). Este sentido mais amplo, pois permite analisar outros fenmenos, alm de rplicas de processos judiciais. Utilizaremos a forma caso para analisar seqncia de eventos em que ocorre uma denncia de violncia policial. No entanto, ao se utilizar este conceito de Claverie, uma srie de ajustes precisa ser feita para dar conta das especificidades do nosso objeto. A comear pelo fato de que a forma caso no acionada diante de um processo formulado nos moldes do Antigo Regime Francs, mas sim pelo sistema de inqurito brasileiro regulado pelo Cdigo do Processo Penal de 1941.

    2.2 O Sistema de inqurito

    O sistema de inqurito brasileiro , na maioria das vezes, constitudo de duas fases: o inqurito policial e o inqurito judicial (tambm chamado de processo judicial). O inqurito policial de responsabilidade da Polcia Civil e se inicia quando a autoridade policial recebe notcia de um crime. O curso geral do inqurito policial foi resumido por Kant de Lima (1995, p. 33) do seguinte modo:

    1. a polcia recebe a queixa ou denncia, a notcia de um crime ou, ento, um policial presencia um crime; a polcia vai no encalo de seu autor, e se a priso ocorrer nas 24 horas subseqentes, est configurado o flagrante;

    2. a polcia instaura o inqurito e encaminha os autos ao juiz; 3. o juiz toma conhecimento e encaminha os autos ao promotor; 4. geralmente as provas no so ainda conclusivas. O promotor devolve o inqurito

    ao juiz com a solicitao de novas diligncias policiais. o juiz marca um prazo para a execuo das diligncias;

    5. o juiz devolve os autos polcia; 6. a polcia providencia as diligncias pedidas (acareaes, averiguaes, laudos

    periciais, inquirio de suspeitos e testemunhas), terminando por identificar, interrogar e indiciar o autor do crime no inqurito. A polcia informa o nome da pessoa acusada e as acusaes que lhe so feitas ao Instituto ou Servio de estatstica criminal do estado; e

    7. o delegado (titular da delegacia em cuja circunscrio se deu a ocorrncia ou chefe da Diviso Especializada) encaminha um relatrio ao juiz.

    A fase de inqurito policial tradicionalmente definida como inquisitorial, em oposio fase judicial, definida como contraditria (Idem, p. 32). A polcia, na sua

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    investigao, produz indcios registrados nos autos do inqurito. Estes autos so sigilosos, embora os suspeitos possam recorrer assistncia de um advogado que, nesta condio, passa a poder consultar os autos. De acordo como o artigo 20 do Cdigo do Processo Penal, a polcia deve assegurar o sigilo ao inqurito. Na prtica, em casos de grande repercusso como os que analisaremos neste captulo, embora o texto do inqurito no seja divulgado, vrias informaes acerca dos suspeitos e dos indcios so divulgados na imprensa. Existe uma relao complexa entre as instituies policiais, de um lado, e instituies judiciais (Ministrio Pblico e Judicirio), de outro, que se expressa na transformao de indcios em provas judiciais13. Uma vez entregue o relatrio final para o juiz, este encaminha para o Ministrio Pblico. A atividade policial restringida pelo sistema judicial (Idem, p. 36), pois a denncia do promotor, e no o inqurito da polcia, que a abre o processo judicial. Ao promotor cabe decidir se h indcios suficientes para realizar uma denncia judicial14, iniciando a fase do inqurito judicial. Por outro lado, a polcia a responsvel:

    pela produo da matria prima que ser objeto de apreciao dos promotores de justia e dos advogados e dos juizes. O inqurito policial a fonte de informao que est na base do trabalho do promotor de justia. Com base nos elementos fornecidos por esse inqurito o representante do Ministrio Pblico ter condies de oferecer a denncia (acusao formal). (Figueira, 2008, p. 28)

    No h estabilidade semntica para a categoria prova entre os operadores do Direito, a despeito da sua centralidade no pensamento jurdico (Idem, p. 23). Estudos de Antropologia do Direito realizados por Kant de Lima e seus colaboradores tem apontado para o fato de que, em geral, os autos do inqurito policial so entranhados no processo judicial, e suas folhas recebem uma numerao seqencial s demais folhas

    13 A categoria nativa simplesmente prova. Utilizamos o adjetivo judicial para diferenciar do

    conceito de prova da Teoria da justificao. A noo de prova judicial entre os profissionais do direito comporta diferentes acepes. Luis Figueiras, ao realizar entrevistas com profissionais do direito que atuam na rea criminal, agrupou trs significaes correntes. Conforme podemos observar, a prova no discurso jurdico apresentada: a) como um conjunto de atos praticados pelos atores judicirios com o objetivo de formar a convico da autoridade judiciria acerca da existncia ou inexistncia de um fato ou da veracidade ou falsidade de uma afirmao; meio utilizado pelos atores judicirios para demonstrar a verdade dos fatos; b) aquilo que se forma no esprito do juiz, seu principal destinatrio, quanto verdade dos fatos; c) s prova aquilo que submetido ao contraditrio. Talvez essas formas de delimitar conceitualmente o que prova no sejam excludentes, mas complementares. De qualquer forma interessante pensar que dos promotores e juizes indagados acerca do significado de prova, nenhum deles apresentou uma definio especifica, mas quase todos afirmaram que para algo ser considerado uma prova necessita estar submetido lgica do contraditrio (Figueira, 2008, p. 27) 14

    A categoria nativa denncia pblica. Aqui tambm inserimos o adjetivo judicial para diferenciar o conceito de denncia pblica da Teoria da Justificao.

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    do processo (Kant, 1995, p 32). Isto faz com que, por exemplo, uma confisso feita numa fase inquisitorial, sem direito ao contraditrio, passe para a fase do judicial como uma prova a servir de elemento de convencimento para um Juiz. Situaes como esta permitem levantar a questo se o processo judicial, como um todo, pode ser entendido como inquisitorial.

    Neste captulo, analisaremos a repercusso de dois inquritos policiais instaurados: 1) aps a morte de 19 pessoas no Complexo do Alemo, no decorrer de uma Mega-operao Policial; e 2) aps a morte de trs jovens abordados por soldados do Exrcito na Providncia. No momento de escrita deste trabalho, o primeiro inqurito ainda se encontra na fase de inqurito policial e o segundo, na fase de inqurito judicial. Portanto, no analisaremos a fase de inqurito judicial de nenhum dos processos. Deste modo, sero apresentados indcios de ocorrncia de homicdios dolosos cometidos por policiais e soldados do exrcito. Consideramos que a distino estabelecida por Claverie entre um processo secreto e um caso pblico pertinente para os casos de violncia policial. Isto em grande parte se deve tradio inquisitorial15 do sistema de inqurito brasileiro embora a matriz desta tradio seja mais ibrica do que francesa. Pelo fato deste trabalho abordar os inquritos policiais, vale lembrar que estes so sigilosos para o pblico, inclusive para o pesquisador. Nesta pesquisa, portanto, ser apenas observado o esforo de tornar pblica a violncia policial.

    2.3 Estratgias de des-singularizao

    Apresentadas as especificidades do processo penal brasileiro, preciso tambm pensar na especificidade dos dispositivos de des-singularizao, acionados para que se possa publicizar uma denncia.

    No caso analisado pela Claverie, o mmoire constituiu num dispositivo importante de denncia, na ausncia de rgos de debate pblico que caracterizou o Antigo Regime. O mmoire era um gnero literrio que conformava uma linguagem

    poltica e que permitia construir equivalncias polticas entre o interesse local e o

    interesse geral. O exerccio consistia na descrio de casos locais inseridos em uma polmica de sbios (savante) e tcnica nos termos gerais propostos no mundo da

    15 Para uma discusso geral deste tema, conferir Kant de Lima, 1992

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    repblica das letras. A travers ces mmoires, au coeur mme de la Monarchie Absolue, se constituaient un projet et un vocabulaire communs, qui empruntaient aux ouvrages de philosophie politique (Claverie, 2003, p. 203). Voltaire foi um mestre do gnero aplicando ao factum todos seus atributos literrios, sobretudo a ironia que lhe caracterstica estilstica. No caso La Barre, o filsofo tambm constituiu uma rede de informantes na corte, entre advogados e parlamentares esclarecidos (no sentido iluminista do termo) e nas academias. Na prpria cidade de Abbeville houve correspondncia entre amigos que, no papel de informantes, relataram todos os boatos polticos e familiares que poderiam levantar suspeita sobre a imparcialidade do processo.

    Nos casos que abordaremos, um dos dispositivos possveis a serem acionados so os indcios do inqurito divulgados na imprensa. O jornal escolhido para fazer uma leitura sistemtica para o recolhimento de dados para a pesquisa, foi O Globo. A escolha deve-se ao fato de que este possui grande acesso a informaes privilegiadas e indcios, alm de declaraes de atores estatais. Por outro lado, quando se trata de intervenes de atores envolvidos na causa da violncia policial, o noticiamento se torna mais precrio, fato que tentaremos compensar utilizando materiais de difuso das organizaes de Direitos Humanos e algumas entrevistas realizadas ao longo da pesquisa.

    A leitura dos jornais permite explicitar algumas portas de entrada para o debate pblico que esteve presente na formao dos casos, embora seja preciso reconhecer que os jornais privilegiam certas portas em detrimento de outras. O importante para esta pesquisa que os mesmos indcios de homicdios praticados por policiais e soldados do exrcito foram noticiados nos jornais e acionados para a causa da violncia policial. Notas jornalsticas constituem uma das formas de mobilizao enquadrada na causa da violncia policial. No possuem um papel central se comparadas a outras formas, como manifestos, panfletos, documentos-denncia, audincias pblicas, grupos de discusso e, por fim, manifestaes populares. No decorrer desta pesquisa, coletamos algumas destas mobilizaes, embora seja preciso reconhecer que no foi realizada uma coleta exaustiva.

    Como indicamos no primeiro captulo, a causa da violncia policial conformada por um conjunto de pessoas e organizaes de Direitos Humanos. O termo organizaes bem genrico, englobando ONGs, movimentos sociais, associaes, instituies estatais pertencentes aos trs poderes, ncleos de pesquisa, no

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    constituindo o objeto desta pesquisa a descrio formal destes macro-atores. Atores micro e macro sero tratados sob o mesmo quadro terico como diferenas de tamanho. Seguindo Callon e Latour (1981), um ator se torna um macro-ator devido ao crescimento de associaes entre pessoas e coisas. Utilizamos esta conceituao de Latour num sentido um pouco mais estrito. Os macro-atores so associaes entre pessoas e coisas conformados por dispositivos de prova que, por sua vez, se realizam em causas.

    Por exemplo: no apresentaremos as associaes que permitem funcionamento

    institucional de um ator como a Comisso de Direitos Humanos da OAB-RJ. Estamos apenas interessados na sua associao com outros atores, micro ou macro, dentro da causa da violncia policial, o que permite a esta organizao acionar uma denncia contra um caso de violncia policial com outros atores, como um familiar de vtima de violncia policial, com a Secretria Especial de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica, com os moradores de favela, com os Direitos Humanos, etc. A formulao dos casos envolve uma srie de encontros entre os atores micro e macro que no sero descritos aqui na sua singularidade, embora se faa necessrio reconhecer sua existncia. Seria o caso de avanar esta pesquisa de modo desenvolv-la como uma etnografia. O permanente entrosamento dos atores diante da causa da violncia policial assim como outras causas que abrangem uma causa mais geral os Direitos Humanos permite que os atores sejam estudados como uma rede. Este argumento estabelecido no trabalho de Marcial Leite (2000, conferir tambm Magalhes, 2009) sobre qual o presente trabalho pretende ser uma contribuio.

    2.4 Relao entre processo e caso

    No capitulo 1, foi alisado que, na causa da violncia policial, provas judiciais so acionadas como provas cvicas, ou seja, dispositivos que contribuem para a definio de situaes em que abordagem policial justa ou no. De modo sucinto, afirmamos que, nas situaes de abusos por parte de policiais, diversos atores esto questionando a possibilidade da polcia funcionar como um dispositivo capaz de realizar provas de grandeza cvica; usando termos mais correntes, reconhecer indivduos como sujeitos de direitos. Indcios de homicdio doloso praticados por policiais desprovidos de julgamento penal seriam, ento, indicadores de um mau funcionamento da polcia.

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    A expectativa da produo de condenaes de policiais seria tambm um elemento orientador de situaes que envolvam a atuao justa da polcia.

    Ao estudar os casos de violncia policial, o atual captulo ter como principal objetivo demonstrar a relao complexa entre a produo de indcios de um inqurito policial e o acionamento destes indcios, tendo em vista uma denncia pblica. Esta complexidade, em parte j foi estudada por Claverie