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Do caso julgado à definitividade da sentença

penal

1. As origens do princípio ne bis in idem

A afirmação expressa da regra ne bis in idem, enquanto garantia da paz

jurídica do indivíduo, só é atingida com o Iluminismo1, sendo o texto

fundamental para a consagração do princípio a Constituição francesa de 1791,

nos termos da qual se veio a estabelecer expressamente que «tout homme acquitte par

un jury legal ne peut plus être repris ni accusé à raison du même fait»2. Com a

consagração do ne bis in idem, corolário do princípio da liberdade individual, conseguia-

se a abolição do plus amplèmente informe, característico do processo inquisitório3.

Na verdade, no processo inquisitório a sentença tinha natureza provisória, nada

impedindo que o juiz a reapreciasse com vista à sua reformulação4. Esta ligação haveria

de persistir e embora o respeito pelo caso julgado continuasse a ser afirmado, o recurso

à absolvição da instância, ou absolutio pro nunc, rebus sic stantibus, acabou por constituir «a

1 EDUARDO CORREIA, Caso Julgado, 1948, pp. 302-303; LELIEUR-FISCHER, La règle ne bis in idem, 2005, pp. 122 e segs. 2 Veja-se, sobre os seus antecedentes, em particular a crítica que passou a ser dirigida à regra do plus amplemente informé, a partir do sec. XVIII, ARTURO ROCCO, Trattato Della Cosa Giudicata, 1900, pp. 127 e segs. 3 ARTURO ROCCO, Trattato Della Cosa Giudicata, 1900, p. 131; BRITTA SPECHT, Die zwischenstaatliche Geltung des Grundsatzes ne bis in idem, 1999, p. 10; EVA SCHESHONKA, Der Grungsatz “ne bis in idem”, 2005, p. 6. 4 ARTURO ROCCO, Trattato Della Cosa Giudicata, 1900, pp. 108-109; CORDERO, Procedura penale, 2006, pp. 1219-1220, solução que se justifica porque o processo inquisitório «tende ao infinito».

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maneira sistemática de o negar»5. Como é habitual destacar-se, tal concepção conduziu,

no processo inquisitório francês do absolutismo, à regra do plus amplement informé, nos

termos da qual, não se demonstrando a inocência do réu, a sentença absolutória tinha

natureza provisória, podendo este ser submetido a novo julgamento, caso fossem

descobertos novos meios de prova6. Em Itália, na ausência de prova o arguido era

absolvido ab observatione iudicci, com a cláusula stantitus rebus prout stant, podendo o

processo ser reaberto apenas superveniant nova indicia7.

O exemplo francês serviu de modelo para os restantes Estados europeus, para

onde se espalhou a consagração legal do princípio8. Do outro lado do Atlântico, quase

em simultâneo, a Quinta Emenda à Constituição dos E.U.A., de 1791, viria a consagrar

de forma expressa o princípio, com a seguinte formulação: «nor shall any person be

subject for the same offense to be twice put in jeopardy of life or limb».

2. As concepções que atribuíam ao caso julgado um valor (quase) absoluto

A reacção à provisoriedade da sentença, característica do processo

inquisitório, traduziu-se, num primeiro momento, na consagração da proibição

de instauração de novo processo pelo mesmo facto, como garantia da paz

jurídica do cidadão, mas a evolução posterior haveria de conduzir a uma

hipervalorização do caso julgado, como meio de assegurar a segurança jurídica,

impedindo ou dificultando a revisão das condenações injustas.

O resultado desta evolução foi consequência de um conjunto de factores, embora a

preocupação inicial tenha sido a de proteger o cidadão contra a intervenção estadual na

5 EDUARDO CORREIA, Caso Julgado, 1948, p. 301. Veja-se ainda, TAIPA DE CARVALHO, Sucessão de leis penais, 2008, pp. 275-276. Pode ainda referir-se, a título de exemplo, a opinião de ALLARD, Histoire de la justice criminelle, 1868, p. 352, afirmando que, no Sec. XVI, apesar de o princípio ser unanimemente afirmado, a sua aplicação prática estava longe de ser uniforme, tendo principalmente em conta as excepções à regra do ne bis in idem, que se pretendiam retirar de fragmentos do Digesto e do Código. Como nota ARTURO ROCCO, Trattato Della Cosa Giudicata, 1900, p. 123, se algumas destas eventuais excepções podiam fazer sentido no processo acusatório romano, com o triunfo do processo inquisitório passaram a ser arbitrárias e irrazoáveis. 6 Desenvolvidamente, ARTURO ROCCO, Trattato Della Cosa Giudicata, 1900, pp. 125-126; EDUARDO CORREIA, Caso Julgado, 1948, p. 302; LELIEUR-FISCHER, La règle ne bis in idem, 2005, pp. 121-122. 7 Por todos, CORDERO, Procedura penale, 2006, p. 1220. 8 Veja-se, por todos, com inúmeros exemplos, ARTURO ROCCO, Trattato Della Cosa Giudicata, 1900, pp. 132. e segs.

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sua esfera individual9, bem patente na alteração que o instituto sofreu na passagem do

processo inquisitório para o processo acusatório. Como meio de se reagir à

provisoriedade da sentença, característica do processo inquisitório, acabou por cair-se

na atribuição de uma tutela absolutamente rígida ao caso julgado. Se, por um lado, desta

forma se garantia de modo eficaz a paz jurídica do cidadão, objectivo principal da

reforma10, por outro lado restringia-se muito severamente a possibilidade de

reapreciação das condenações injustas transitadas. Acresce que em certas ordens

jurídicas o ne bis in idem não foi objecto de devida regulamentação legal, o que conduziu

à aplicação subsidiária das disposições civis sobre o caso julgado, com a consequente

dissolução do princípio no seu âmbito11.

É habitual destacar-se que desempenharam um papel fundamental no caminho que conduziu à

hipervalorização do caso julgado, ao contribuírem para a exaltação da segurança jurídica, a codificação, o

silogismo judiciário e a alteração da estrutura processual12. No que respeita à codificação, «a existência de um

conjunto de normas escritas, moderno e racional, concorreria decisivamente para assegurar a certeza jurídica,

tão querida pela burguesia emergente, e para eliminar os graves problemas práticos colocados pela aplicação e

interpretação jurídicas»13. A crença nas virtualidades do silogismo judiciário, método de decisão que,

caracterizado pela certeza, segurança e previsibilidade, levaria à infalibilidade da sentença, «contribuiu para a

hiperbolização da sua força e da sua autoridade e prestígio, originando uma verdadeira mistificação do caso

julgado»14. Por fim, também o novo sistema processual, que se pretendeu configurar para ser imune ao erro,

conduziu à ilusão de que não permitiria a prolação de uma sentença injusta15. Em particular, a substituição do

9 Neste sentido, TAIPA DE CARVALHO, Sucessão de leis penais, 2008, p. 277; ANETTE GRÜNEWALD, «Die Wiederaufnahme des Strafverfahrens zuungusten des Angeklaten», 2008, p. 565. No mesmo sentido, CONDE CORREIA, O «Mito do Caso Julgado», 2010, pp. 32-33. 10 ANETTE GRÜNDWALD, «Die Wiederaufnahme des Strafverfahrens zuungusten des Angeklaten», 2008, p. 565. 11 DANAN, La Règle non bis in idem en Droit Penal Français, 1971, pp. 16-17 e p. 154, observado que a aplicação do art. 1351 do Código Civil tinha como vantagem a previsão rigorosa das condições de intervenção da excepção, que passou a assumir natureza essencialmente técnica e processual. Veja-se ainda ROGERIO MACHADO DA CRUZ, A Proibição de Dupla Persecução Penal, 2008, p. 30 e BAS VAN BOCKEL, The Ne Bis In Idem Principle in EU Law, 2010, p. 26, destacando que o diverso caminho percorrido nos países de common law permitiu que o princípio tivesse mantido a sua autonomia, como garantia individual. 12 Neste sentido, FRANCO COPPI, Reato Continuato e Cosa Giudicata, 1969, pp. 222 e segs.; CONDE CORREIA, O «Mito do Caso Julgado», 2010, pp. 34 e segs. 13 CONDE CORREIA, O «Mito do Caso Julgado», 2010, p. 34. 14 Idem, Ibidem, pp. 37-38. 15 Idem, Ibidem, pp. 40-41. Como exemplo deste tipo de argumentação podemos citar ARTURO ROCCO, Trattato Della Cosa Giudicata, 1900, p. 242, ao afirmar que a confiança pública na verdade e justiça do caso julgado se fundamenta na observância das formas legais processuais e ainda, ibidem, p. 245, ao concluir que num sistema processual modelado de acordo com o acusatório é lícito nutrir fundada esperança de que a coisa julgada é a verdade. Retomaremos a concepção do Autor nas páginas seguintes. Veja-se ainda, DAMIÃO DA CUNHA, O Caso Julgado Parcial, 2001, pp. 201-201 e pp. 523-524, ao estabelecer uma relação entre a evolução do recurso de apelação, que passou a ser um misto de «appellatio» e de «querela nullitatis», com a consequente absorção desta última nos diversos graus do

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sistema da prova legal, próprio do processo inquisitório, pela livre apreciação da prova, tarefa que passou a

competir aos jurados, cujo veredicto era a «manifestação genuína da soberania popular», eliminaria ou, pelo

menos, reduziria ao mínimo, as hipóteses de se cair num erro judiciário16.

Entre as concepções que atribuem valor quase absoluto ao caso julgado

destacaram-se as que assentavam na presunção de verdade que é própria da

sentença que conhece do mérito da causa17. Nesta perspectiva, a lei estabeleceria a

presunção de que o caso julgado contém a verdade objectiva de facto e de direito,

presunção esta que seria inilidível, por constituir fundamento para a rejeição da acção

penal e por traduzir uma excepção peremptória, a exceptio rei judicatae18. Estas teses,

originárias do processo civil, foram transpostas para o processo penal, onde vieram a

merecer aceitação generalizada19.

Por vezes, foi-se ainda mais longe, afirmando-se que, ao invés de uma

presunção ou ficção de verdade, o caso julgado traduziria a própria verdade.

Foi o caso de ROCCO, ao defender que, sendo o caso julgado a verdade humanamente alcançável e a

provável verdade, tanto bastaria para que, exaurindo-se o processo a esta luz, a decisão se tornasse

inexpugnável e irrefutável20. Por esta razão, a autoridade do caso julgado penal encontraria justificação no

facto de este corresponder à verdade, tal como foi judicialmente definida21.

procedimento, e o carácter autoritário do caso julgado penal, cuja correspondência com a «verdade» ficava legitimada pelo percorrer destes diversos graus. 16 ALVARO VILLELA, A Revisão no Processo Criminal, 1897, p. 74, afirmando que sendo o júri - «orgão de bom sendo natural – o melhor indicador da verdade», não seria concebível o reexame do seu veredicto. Veja-se ainda CONDE CORREIA, O «Mito do Caso Julgado», 2010, pp. 39-41. 17 Em Itália, era o caso de RANIERI, Manuale di Diritto Processuale Penale, 1965, p. 394. Para o Autor este seria o fundamento jurídico da autoridade do caso julgado, e que explicaria porque a sentença é a vontade da lei no caso concreto. A necessidade de certeza constituiria apenas um fundamento político do instituto. Ainda hoje continua a fazer-se apelo à presunção de verdade, embora por vezes acriticamente e não de modo exclusivo, para fundamentar o valor do caso julgado. Neste sentido, em Itália, MERCONE, Diritto Processuale Penale, 2010, p. 640. Por seu lado, NUVOLONE, Contributo alla Teoria della Sentenza Instruttoria Penale, 1969, pp. 166-167, nota 28, já considerava esta tese muito discutível. Também em França, por vezes continua a afirmar-se, com base nos artigos 1350 e 1351 do Código Civil francês, que as decisões transitadas em julgado gozam de uma presunção de verdade. Neste sentido, BRIÈRE DE L´ISLE/COGNIART, Procédure Pénale, II, 1972, p. 233; DEBOVE/FALLETTI, Précis de droit pénal et procédure pénale, 2001, p. 476; CONTE/MAISTRE DU CHAMBON, Procédure pénale, 2002, p. 435¸ PRADEL, Procédure Pénale, 2010, p. 821; SOYER, Droit Pénal et Procédure Penal, 1994, p. 405; LARGUIER, La procédure pénale, 2001, pp. 122-123; GUINCHARD/BUISSON, Procédure Pénale, 2010, p. 1431; STEFANI/LEVASSEUR/BOULOC, Procédure pénale, 2010, p. 988. 18 Seguimos a caracterização adoptada por ARTURO ROCCO, Trattato Della Cosa Giudicata, 1900, p. 230. 19 ARTURO ROCCO, Trattato Della Cosa Giudicata, 1900, pp. 229-230. Entre nós, CONDE CORREIA, O «Mito do Caso Julgado», 2010, pp. 41 e segs. 20 ARTURO ROCCO, Trattato Della Cosa Giudicata, 1900, p. 238. 21 Idem, Ibidem, p. 239.

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Embora se reconheça que a fronteira entre as duas concepções é muito ténue, a verdade é que ROCCO

fez questão de rejeitar expressamente a tese da presunção de verdade, por considerar que a autoridade do

caso julgado é preexistente a esta presunção, pelo que a mesma constitui uma sua consequência e não o seu

fundamento22. É claro que estamos já próximos de uma visão que assimila a função jurisdicional à própria

religião, resultado que era, de certa forma, assumido pelo Autor, ao exclamar que a autoridade do caso julgado

é quase uma religião, a religião da justiça humana23. Como já se tem observado, estas concepções acabam por

traduzir uma aproximação à ideia da infalibilidade do exercício da função judicial, a qual só poderia encontrar

explicação numa sacralização ou natureza sobrenatural desta função, hoje inadmissível24.

Não foi só por via destas concepções que se chegou à absolutização do caso julgado. Merece

particular destaque a posição de GOLDSCHMIDT, pela sua novidade e pela divulgação que obteve25. Em

síntese, o Autor elegia como fim do processo a obtenção de uma sentença com força de caso julgado. Só que,

ao fazê-lo, acabava por cair numa «inadmissível idealização do caso julgado», transformando-se este em «fim

de si mesmo»26. Como assinala FIGUEIREDO DIAS, nesta perspectiva «o juiz possuiria, através da força do

caso julgado cabida às suas decisões, poder e legitimidade bastante para impor uma espécie de “segundo

ordenamento” que, pairando sobre o direito material, nunca poderia ser falso, injusto ou inválido: o caso

julgado constituiria, digamos, a última palavra e a última ratio da juridicidade»27. Deste modo, seríamos

conduzidos a uma absoluta prevalência da segurança jurídica sobre a justiça, postergando-se assim a sua

realização como finalidade do processo penal28.

Como tantas vezes acontece, a reacção a estas concepções que atribuem

valor absoluto ao caso julgado traduziu-se na defesa da tese oposta, assumida

por CARNELUTTI. A crítica que lhes dirigiu assentou na demonstração da sua

manifesta desadequação no âmbito penal, abrindo assim caminho para a

autonomização da questão da definitividade da sentença penal em relação ao

caso julgado do processo civil.

Sem prejuízo da sua concepção de base sobre os fins das penas, que conduzia a que

a vertente garantística do ne bis in idem acabasse por ficar instrumentalizada à sua

22 Idem, Ibidem, p. 231. 23 Idem, Ibidem, pp. 243-244. 24 Já BELEZA DOS SANTOS, em anotação aos acs. da Rel. de Coimbra, de 3.02.1032 e do S.T.J., de 24 de Maio de 1932, na R.L.J., n.º 2643, 1932, p. 91, falava num «fetichismo do respeito ao caso julgado, como se êle fosse tabú, e como se não houvesse casos em que, por lei expressa, uma sentença transitada em julgado se devesse reformar». Ou seja, nestas perspectivas a sentença transitada constituiria um verdadeiro «decreto da divindade», como observou ALVARO VILLELA, A Revisão no Processo Criminal, 1897, p. 57. Para FRANCO COPPI, Reato Continuato e Cosa Giudicata, 1969, p. 212. O caso julgado adquiria, por esta via, uma «mítica sacralidade». 25 GOLDSCHMIDT, Der Prozess als Rechtslage, 1925, pp. 151 e segs. 26 FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, I, 1974, p. 42. Veja-se ainda, CONDE CORREIA, O «Mito do Caso Julgado», 2010, p. 54. 27 FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, I, 1974, p. 42. 28 Idem, Ibidem, p. 42. CONDE CORREIA, O «Mito do Caso Julgado», 2010, pp. 54-55.

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satisfação29, a proposta de CARNELUTTI, ao colocar a questão da inadequação ao

processo penal das teses que, para fundamentar o valor do caso julgado penal,

assentavam na presunção de verdade da sentença transitada, deu o devido destaque à

necessidade de se autonomizar o caso julgado penal perante o caso julgado

civil, hoje aceite generalizadamente. Por outro lado, também acabou por esclarecer

que, em matéria penal, deve falar-se de preclusão, em vez de caso julgado, resultado a

que chegava alguma doutrina, ainda que intuitivamente, ao fazer apelo ao ne bis in idem

para explicar a auctoritas iudicati30.

3. O caso julgado penal como instrumento técnico-jurídico necessário para a obtenção de determinadas finalidades processuais

Em alternativa às teses que têm em comum a defesa de uma

absolutização do caso julgado penal, fundamenta-se o instituto em

considerações de ordem prática, associadas à necessidade de se garantir a

certeza e a segurança do direito. Exemplo deste tipo de concepções, entre nós, é a

opinião de EDUARDO CORREIA, ao afirmar que «o fundamento central do caso

julgado penal radica-se numa concessão prática às necessidades de garantir a certeza e a

segurança do direito», assegurando-se a paz jurídica dos cidadãos e prevenindo-se o

perigo de decisões contraditórias, ainda que com eventual prejuízo para a justiça

material31.

Pode dizer-se que, actualmente, a fundamentação da tutela do caso julgado em

puras razões de certeza e segurança jurídicas é uma constante. Afirma-se que o caso

julgado «começa por ser um instrumento técnico que assinala o fim do processo»32, que

encontra explicação no princípio da consumpção da acção penal, que tem por destino

natural exaurir-se e extinguir-se na decisão irrevogável do juiz e, do ponto de vista

social, na exigência de se assegurar, a partir de determinado momento, a imutabilidade e

29 Como nota FRANCESCO CALLARI, La Firmitas del Giudicato Penale, 2009, p. 199. 30 CARNELUTTI, «Contro il giudicato penale», 1951, p. 125. 31 EDUARDO CORREIA, Caso Julgado, 1948, p. 302. No mesmo sentido, FREDERICO ISASCA, Alteração Substancial dos Factos, 1995, p. 218. 32 GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de processo penal, III, 2009, p. 40. O Autor acrescenta: «alguma vez se há-de concluir definitivamente a perseguição do eventual delinquente pela justiça humana». No mesmo sentido, TAIPA DE CARVALHO, Sucessão de leis penais, 2008, p. 290.

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certeza do julgamento33. De modo semelhante, quando se pretende explicar o

fundamento do caso julgado sustenta-se que se trata de um instituto que responde a

exigências imperiosas de segurança jurídica, quer numa dimensão colectiva, quer

individual34.

Se é lícito concluir-se, com DAMIÃO DA CUNHA, que o «“dogma” da

autoridade do caso julgado (...) parece-nos estar hoje irremediavelmente

comprometido (...)»35, ter-se-á de lembrar, com CONDE CORREIA, que «à

mitificação do caso julgado não pode seguir-se a agonia ou o seu

aniquilamento»36.

Podemos assim concluir, com a doutrina e jurisprudência dominantes, que a

intangibilidade do caso julgado é um princípio constitucional com consagração

implícita e que encontra fundamento nas exigências de certeza e segurança

jurídicas, do princípio da separação de poderes e da própria natureza da função

jurisdicional, da qual resulta a obrigatoriedade das decisões respectivas.

33 GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de processo penal, III, 2009, pp. 37-38. Em Itália, entre outros, LEONE, «Il mito del giudicato», 1956, p. 168; FRANCESCO CALLARI, La Firmitas del Giudicato Penale, 2009, p. 3 e p. 205. Mesmo os Autores que atribuíram ao caso julgado um valor quase absoluto reconheceram que o instituto dá resposta a estas finalidades, como é o caso de ARTURO ROCCO, Trattato Della Cosa Giudicata, 1900, pp. 193-194 e p. 219, em conclusão e de GUARNIERI, in: AA.VV, Novissimo Digesto Italiano, «Regiudicata», 1975, p. 229. Vejam-se ainda, entre outros, destacando esta finalidade do caso julgado, BETTIOL, «La correlazione fra accusa e sentenza nel processo penal», 1936, p. 240, afirmando que são as exigências de segurança que justificam o ne bis in idem; LEONE, Manuale di Diritto Processuale Penale, 1988, p. 733, para quem o fundamento do caso julgado também é a exigência de certeza do direito no caso concreto; FAlREN GUILLEN, Doctrina General del Derecho Procesal, 1990, p. 515. FRANCO COPPI, Reato Continuato e Cosa Giudicata, 1969, p. 232, p. 248 e pp. 286-287 esclarece que o reconhecimento da necessidade prática do caso julgado não deve conduzir à sua glorificação. ZAPPALÀ, Elementi di Diritto Processuale Penale, 2003, p. 296-297, DALIA/FERRAIOLI, Manuale di Diritto Processuale Penale, 2003, p. 810; NUVOLONE, Contributo alla Teoria della Sentenza Instruttoria Penale, 1969, pp. 194 e 209, fundamentam o caso julgado na exigência de certeza. 34 DEBOVE/FALLETTI, Précis de droit pénal et procédure pénale, 2001, p. 475; CONTE/MAISTRE DU CHAMBON, Procédure pénale, 2002, p. 435; PRADEL, Procédure Pénale, 2010, p. 823; BORÉ, La Cassation em matière pénale, 1985, p. 683, acrescentando, em concretização desta ideia, que está em causa assegurar o valor da decisão penal e a garantia da liberdade individual; RAFARACI, Le Nuove Contestazioni nel Processo Penale, 1996, p. 262 e p. 270; BARJA DE QUIROGA, Tratado de Derecho Procesal Penal, 2010, p. 216 e p. 234. 35 DAMIÃO DA CUNHA, O Caso Julgado Parcial, 2001, p. 204, nota 211. 36 CONDE CORREIA, O «Mito do Caso Julgado», 2010, p. 156. O Autor acrescenta, ibidem, p. 171, que o reconhecimento do direito à revisão da sentença injusta «não significa (…) postergar completamente o valor da paz e da segurança jurídica, permitindo a repetição incessante da causa e impedindo a pacificação social. Pelo contrário, importa reafirmar que a sua manutenção – enquanto fim do processo penal – é imprescindível à própria vivência comunitária». Em sentido semelhante, FRANCESCO CALLARI, La Firmitas del Giudicato Penale, 2009, p. 207.

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O que ficou dito não implica que não se tenha bem presente que a

intangibilidade do caso julgado, embora obtenha consagração constitucional, não é um

princípio absoluto37.

O aprofundamento da questão do valor do caso julgado teve

inevitavelmente lugar mediante a análise do recurso de revisão e a sua

compatibilização com o caso julgado38, desde logo porque o direito à revisão da

sentença condenatória injusta mereceu expressa consagração constitucional39.

O recurso de revisão é histórica e tradicionalmente concebido com uma «contra-

face» do caso julgado40, tendo precisamente por objectivo quebrar a sua força41. O

instituto justifica-se em nome do princípio da justiça, que impõe o sacrifício da

segurança jurídica inerente ao caso julgado42. Ainda que se afirme que a revisão acaba

por traduzir um atentado frontal ao valor de segurança43, enquanto efeito do caso

julgado, ela encontra justificação, em particular no processo penal, em nome da verdade

material e para evitar o cumprimento de sentenças injustas44. Como sintetiza CONDE

CORREIA, «nenhuma razão de Estado, nem mesmo as emergentes necessidades de

segurança colectiva, justificam a manutenção e a execução de uma sanção injusta»45.

37 Neste sentido, entre outros, JORGE MIRANDA, Direito Constitucional, VI, 2005, p. 278; GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional, 2003, p. 265, esclarecendo que «as excepções ao caso julgado deverão ter (..) um fundamento material inequívoco»; GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa, II, 2010, p. 531; RUI MEDEIROS, A Decisão de inconstitucionalidade, 1999, p. 55 e pp. 610 e segs.; RUI MEDEIROS/TIAGO MACIEIRINHA, in: JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, III, 2007, p. 80. Veja-se ainda o ac. do T.C. n.º 644/98, de 17 de Novembro. 38 Como destaca MARCO D´ORAZI, La Revisione del Giudicato Penale, 2003, p. 13, o problema dogmático da revisão é uma questão inevitavelmente ligada ao caso julgado penal. Veja-se ainda, LEONE, «Il mito del giudicato», 1956, p. 172 e pp. 182 e segs.; GIOVANNI DEAN, La Revisione, 1999, p. 10; FRANCESCO CALLARI, La Firmitas del Giudicato Penale, 2009, p. 199 e p. 210; ROSALBA NORMANDO, «Limiti alla revisione e intangibilità del giudicato», 1986, pp. 803 e segs. 39 Como afirma CONDE CORREIA, O «Mito do Caso Julgado», 2010, p. 558: «A consagração constitucional expressa do direito fundamental à revisão da sentença penal condenatória injusta (art. 29.º, n.º 6, da CRP) tem, em nosso entender, um papel decisivo na densificação do conceito de caso julgado (também ele, de forma implícita, constitucionalmente tutelado nos arts. 2.º, 29.º, n.ºs 5 e 6, 111.º, n.º 1, 205.º, n.º 2, e 282.º, n.º 3)». 40 Nas palavras de DAMIÃO DA CUNHA, O Caso Julgado Parcial, 2001, p. 111. 41 PAULO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código de Processo Penal, 2011, pp. 1205-1206, n.m. 1. 42 GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, III, pp. 383-384. 43 PAULO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código de Processo Penal, 2011, pp. 1205-1206, n.m. 1. 44 Neste sentido, FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, 1988-9, p. 24; GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, III, 2009, p. 379; FREDERICO ISASCA, Alteração Substancial dos Factos, 1995, p. 223; CONDE CORREIA, O «Mito do Caso Julgado», 2010, pp. 24-25. 45 CONDE CORREIA, O «Mito do Caso Julgado», 2010, p. 559.

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O artigo 29.º, n.º 6, da Constituição consagra expressamente, tal como as

Constituições de 191146 e de 193347, o direito do injustamente condenado à revisão

da sentença48. Este preceito acaba por desempenhar a função de «uma verdadeira

válvula de segurança, face a uma excessiva e insuportável rigidez do efeito preclusivo do

caso julgado, em face de condenações injustas»49, estando em causa uma «exigência de

justiça que se sobrepõe ao valor de certeza do direito consubstanciado no caso

julgado»50. O direito fundamental respectivo, tal como outro qualquer, não tem

natureza absoluta, mas o legislador ordinário não pode afectar o seu núcleo essencial,

nomeadamente mediante a imposição de limites tão rigorosos ao seu exercício que lhe

retire utilidade prática51.

A perspectiva do Tribunal Constitucional, ao apreciar a legitimidade das soluções adoptadas pelo

legislador ordinário, em sede de recurso de revisão, é no sentido de que o preceito concretiza um direito

fundamental do cidadão injustamente condenado52. Escreveu-se na fundamentação do acórdão n.º 301/2006,

de 9 de Maio, que este direito fundamental assenta num princípio de justiça material, «tendo presente que o

processo pode ter sido inquinado por uma grave vicissitude». Como também se recorda neste aresto, e no

46 O art. 3.º, n.º 24, da Constituição de 1911, dispunha: «É assegurado, exclusivamente em benefício do condenado, o direito de revisão de todas as sentenças condenatórias». 47 O art. 8.º, n.º 20, da Constituição de 1933, incluía entre os direitos e garantias individuais a «revisão das sentenças criminais». 48 Como destacam GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, II, 2010, p. 531, «um dos valores constitucionais que podem prevalecer sobre o princípio da intangibilidade do caso julgado é a garantia da (...) revisão de sentenças criminais». Veja-se ainda, CONDE CORREIA, O «Mito do Caso Julgado», 2010, p. 24. 49 FREDERICO ISASCA, Alteração Substancial dos Factos, 1995, p. 223. 50 Como se lê na fundamentação do ac. do T.C., n.º 376/00, de 13 de Julho. Veja-se ainda, a título de exemplo, o ac. do S.T.J., de 18.02.2009, Proc. 09P0109. 51 Neste sentido, CONDE CORREIA, O «Mito do Caso Julgado», 2010, pp. 229-230. Vejam-se ainda, entre outros, os acs. do S.T.J., de 1.07.2009, Proc. 69/04.9GTBJA, com o seguinte sumário: «I – O recurso de revisão é um recurso extraordinário cuja tramitação obedece aos precisos termos legais processualmente previstos e é abrangido pelas garantias de defesa de consagração constitucional, conforme art. 29.º, n.º 6, da CRP»; de 23.04.2009, Proc. 104/02.5TACTB-A.S1: «se tanto no processo civil como no processo penal a certeza e a segurança do direito cedem, em certos casos, ao triunfo da justiça material, há-de convir-se que no processo penal esta se impõe com muito mais pujança, dado o realce diferente e mais exigente de certos princípios que constituem a raiz mesma dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos», fazendo-se expressa invocação do art. 29.º, n.º 6, da Constituição; de 18.02.2009, Proc. 09P0109: «o trânsito em julgado não cobre, na filosofia deste recurso extraordinário, a injustiça da condenação penal»; de 10.12.2008, Proc. 08P2147, com o seguinte sumário: «I - A consagração da revisão de sentença na lei ordinária é uma decorrência constitucional, que actualmente encontra assento no art. 29.º da Lei Fundamental, todo ele subordinado à aplicação da lei criminal. II - Mais do que meros interesses individuais, são ponderosas razões de interesse público que ditam a existência desta última garantia, cuja teleologia se reconduz em fazer prevalecer a justiça (material, real ou extraprocessual), sobre a segurança jurídica». Veja-se ainda o voto de vencido de Maia Costa, no ac. do S.T.J., de 27.05.2009, Proc. 55/01.OTBEPS-A.S1. 52 Vejam-se, em particular, os acs. do T.C. n.º 376/00, de 13 de Julho, e n.º 301/2006, de 9 de Maio.

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acórdão n.º 376/00, de 13 de Julho, é a própria letra do preceito constitucional que remete para o legislador

ordinário os termos da concretização desta garantia, pelo que este goza de uma «relativa liberdade de

conformação», embora não possa deixar de abrir tal possibilidade, como meio de assegurar a justiça material.

Deste modo, a revisão não constitui uma excepção a um valor objectivo do caso julgado; constitui antes o

princípio geral, que o legislador ordinário tem a possibilidade de concretizar, desde que não afecte o núcleo

essencial do direito que se consagra. É neste âmbito que se devem interpretar as considerações tecidas no

acórdão n.º 376/00, de 13 de Julho, ao ter-se julgado que não era inconstitucional a solução legislativa então

vigente, nos termos da qual «no novo processo não se procura a correcção de erros eventualmente cometidos

no anterior e que culminou na decisão revinda». Mas a inversa já não é verdadeira: nada impede, nem nunca o

Tribunal Constitucional o afirmou, perante o direito consagrado no artigo 29.º, n.º 6, da Constituição, que o

legislador ordinário configure a revisão como meio de assegurar a justiça material, nomeadamente quando se

conclua, como se escreveu no acórdão n.º 301/2006, de 9 de Maio, que o processo está inquinado por uma

grave vicissitude. Assim se compreende, de resto, que, por este aresto, tenha sido declarada a

inconstitucionalidade do artigo 465.º, na sua redacção originária, uma vez que o mesmo conduzia, «na prática,

a um condicionamento excessivo do direito à revisão de sentenças que, embora seja um direito definível nos

termos da lei, está efectivamente consagrado no artigo 29º, nº 6». Acrescenta-se ainda, na fundamentação

deste acórdão, que «do artigo 29º, nº 6, resultam duas ideias fundamentais: o reconhecimento de um direito à

revisão de sentenças que cabe ao legislador definir nos termos da lei – mas que tem que existir com suficiente

expressão de justiça material – e a ausência de condicionamentos à activação desse direito perante os

tribunais, que não sejam suficientemente justificados por valores prevalecentes. As medidas que pretendam

impedir o abuso desse direito e a repetição de pedidos infundados terão de ser também justificadas por

situações-tipo de insistência ou repetição com renovação dos mesmos fundamentos, para não serem

restrições injustificadas ao direito à revisão de sentenças. Ora, quando se trata de um segundo pedido de

revisão com novos fundamentos, já serão desproporcionadas limitações da legitimidade para a formulação do

novo pedido, que diferenciam essencialmente um segundo pedido com novo fundamento de um primeiro

pedido»53.

Mesmo nas concepções mais rígidas sobre o valor do caso julgado, que viam na

sentença a expressão da verdade – ainda que presumida - não deixou, como é natural,

de admitir-se a hipótese de erro judiciário e consequente revisão da decisão final

transitada. De todo o modo, compreende-se que a medida da sua admissibilidade acabe

por depender das particularidades de cada concepção.

Numa concepção que recorra à presunção inilidível de verdade, como

fundamento do caso julgado, a revisão, apesar de possível, teria natureza

manifestamente excepcional, afirmando-se mesmo que seria a excepção que

confirma a regra. Por esta razão, deveria ficar sujeita a um rigoroso controlo da

verificação dos seus pressupostos. 53 Ac. do T.C. n.º 301/2006, de 9 de Maio. Recorde-se que a actual redacção do art. 465.º já permite a dedução de novo pedido de revisão, desde que com diverso fundamento.

Page 11: Do caso julgado à definitividade da sentença penal

Se é certo que, em determinado momento histórico, sempre coexistiram

diversas concepções sobre o fundamento e a força do caso julgado, podemos

afirmar que se tem notado uma evolução doutrinária e legislativa no sentido de

se admitir a revisão da sentença transitada num número de casos cada vez

maior, que tem sido utilizada como argumento para se afirmar a quebra gradual

do valor do caso julgado.

Entre nós, merece particular destaque a recente proposta de CONDE CORREIA. O Autor conclui,

no que respeita à revisão propter nova, que a sua configuração foi resultado da conjugação de vários factores –

«a hipervalorização do caso julgado, a separação entre a questão de facto e a questão de direito, a difícil

compatibilização do recurso de revisão com o processo de estrutura acusatória, o desprezo doutrinal e a

animadversão jurisprudencial54» -, que estariam hoje ultrapassados. Em particular, quanto ao caso julgado, «foi

depurado e reduzido à sua essência», o que permitiria a adopção de uma nova solução para a revisão propter

nova55.

Estas considerações sobre o recurso de revisão assumem particular actualidade entre nós,

em virtude da previsão, na reforma de 2007, de novos fundamentos da revisão pro reo, constantes

das alíneas e), f), e g), do n.º 1 do artigo 449.º56. A verdade é que a sua introdução não deixou de causar

polémica, precisamente por se defender que traduz um forte golpe na intangibilidade do caso julgado.

4. A progressiva autonomização do ne bis in idem

As concepções até aqui tratadas têm em comum a configuração do ne bis

in idem como aspecto do caso julgado, ou seja, como elemento integrante de

um instituto de carácter geral. Como observa LELIEUR-FISCHER57, esta é a

perspectiva habitual na exposição da matéria, que tem lugar nos seguintes termos: uma

vez esgotadas as vias ordinárias de recurso, a decisão torna-se irrevogável e adquire

força de caso julgado, impedindo a instauração de novo processo pelos mesmos factos,

efeito que é designado por aspecto negativo do caso julgado penal e que se distingue do 54 CONDE CORREIA, O «Mito do Caso Julgado», 2010, p. 639. 55 Idem, Ibidem, p. 639. O Autor propõe que «qualquer novum susceptível de demonstrar uma injustiça congénita deverá desencadear a revisão. A origem do erro é irrelevante. O que interessa é a sua demonstração, com suficiente objectividade, para salvaguardar a necessária margem de segurança do justo». 56 No que respeita, em particular, ao fundamento agora previsto na al. e), deve recordar-se que DAMIÃO DA CUNHA, O Caso Julgado Parcial, 2001, p. 771, já defendia, perante a redacção originária do Código, que o mesmo constituía «o mais “natural” fundamento de Revisão», uma vez que «deriva de uma garantia constitucional do processo criminal». 57 LELIEUR-FISCHER, La règle ne bis in idem, 2005, pp. 57 e segs.

Page 12: Do caso julgado à definitividade da sentença penal

efeito positivo, que se traduz na vinculação do tribunal civil às decisões definitivas dos

tribunais penais58.

Assumindo-se esta perspectiva, como já GASSIN observava, a autoridade do caso julgado

acaba por assentar em dois fundamentos algo contraditórios59. De um lado, a protecção da liberdade

individual, que a fórmula ne bis in idem exprime com particular nitidez60. De outro lado, um

princípio geral do caso julgado, de valor objectivo, fundado em preocupações relativas à

manutenção da paz social61. De todo o modo, a verdade é que sempre houve concepções que, no âmbito

do instituto geral do caso julgado, conferiam maior relevância ao fim de tutela da paz jurídica do cidadão.

As opiniões de que se deu conta e os regimes legais exemplificados, para

além de revelarem um aprofundamento da relativização da tutela do caso

julgado, põem ainda em relevo a sua vertente de garantia da paz jurídica do

cidadão, especialmente destacada pelos autores que mais recentemente se têm

pronunciado sobre o seu fundamento.

No fundo, como sintetiza, entre nós, TAIPA DE CARVALHO, a evolução

das concepções sobre o caso julgado penal permite identificar duas fases: uma

primeira, caracterizada pela absolutização do instituto, a que se seguiu uma

outra, na qual se assiste à sua relativização62. Ao longo desta evolução, o caso

julgado começou por ser visto como um valor absoluto, que valia por si mesmo,

para passar a ser compreendido à luz da sua função de garantia política do

cidadão e respectiva exigência negativa, concretizada no princípio ne bis in

idem63. Também TERESA BELEZA/COSTA PINTO acentuam a curiosa mutação

histórica do princípio, que deixou se ser um pressuposto processual para passar a

assumir-se como princípio estruturante do Estado e, finalmente, como direito

fundamental, ganhando «uma dimensão individual que no início se encontrava

58 Sobre esta distinção veja-se, supra, § 1. 59 GASSIN, «Les destinées du principe de l´autorité de la chose jugée», 1963, p. 240. Também neste sentido sem prejuízo de fazer apelo à presunção de verdade da sentença transitada, PRADEL, Procédure Pénale, 2010, p. 823. 60 GASSIN, «Les destinées du principe de l´autorité de la chose jugée», 1963, p. 240 e DANAN, La Règle non bis in idem, 1971, p. 151. 61 GASSIN, «Les destinées du principe de l´autorité de la chose jugée», 1963, p. 240 e DANAN, La Règle non bis in idem, 1971, p. 151. 62 TAIPA DE CARVALHO, Sucessão de leis penais, 2008, pp. 276 e segs. e Direito Penal, 2008, p. 189. 63 TAIPA DE CARVALHO, Sucessão de leis penais, 2008, pp. 276 e segs. e Direito Penal, 2008, p. 189. Esta evolução é apresentada pelo Autor na perspectiva do caso julgado enquanto limite à aplicação retroactiva da lei de conteúdo mais favorável.

Page 13: Do caso julgado à definitividade da sentença penal

relativamente diluída no objectivo de garantir a integridade do caso julgado: a de

protecção do cidadão contra o excesso punitivo do Estado»64.

5. O ne bis in idem como garantia individual e a sua autonomização do caso julgado

A evolução atrás assinalada teve por consequência a atribuição de um particular

relevo à dimensão garantística do caso julgado penal, concretizada no princípio ne bis in

idem. Tal sucedeu, em particular, nas ordens jurídicas onde o princípio obteve expressa

consagração constitucional, em particular a alemã65, bem como em virtude da sua

consagração em diversos textos internacionais, devendo destacar-se que a

jurisprudência acentua a natureza do princípio como garantia individual66.

Entre nós, o artigo 29.º, n.º 5, da Constituição, que consagra expressamente

o princípio da proibição de duplo julgamento pelo mesmo crime.

A referência expressa à proibição de duplo julgamento significa, desde logo, que o

preceito constitucional consagra expressamente o ne bis in idem processual67,

sem prejuízo de, por vezes, também se procurar fundar nele a dimensão substantiva do

princípio68.

64 TERESA BELEZA/FREDERICO COSTA PINTO, Objecto do Processo, Liberdade de Qualificação Jurídica e Caso Julgado, 2001, p. 21. 65 Veja-se, supra, § 3, 1, e infra, § 7, 2.3. 66 Veja-se, para a jurisprudência do T.E.D.H., supra, § 7, 2.1., e para a jurisprudência do T.J., supra, § 7, 2.4. Neste sentido, entre muitos outros, FREDERICO BIER, in: AA.VV, La Convenzione Europea dei Diritti dell´Uomo, 2006, p. 819; TOMMASO RAFARACI, «Ne bis in idem», 2007, p. 632; SILVA PEREIRA/ALVES MARTINS, «O princípio ne bis in idem e os conflitos internacionais de jurisdição», 2007, pp. 316-317; ROGÉRIO MACHADO DA CRUZ, A Proibição de Dupla Persecução Penal, 2008, p. 21; CHRISTINA KARAKOSTA, «Ne bis in idem», 2008, p. 25; BAS VAN BOCKEL, The Ne Bis In Idem Principle in EU Law, 2010, p. 3 e p. 131, referindo-se, em particular, ao art. 54.º da Convenção de aplicação do Acordo de Schengen. 67 Neste sentido, GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, I, 2007, p. 497; ANABELA MIRANDA RODRIGUES, A Determinação da Medida da Pena, 1995, p. 605, nota 87; JOSÉ LOBO MOUTINHO, Da unidade à pluralidade dos crimes, 2005, p. 283; DUARTE D´ALMEIDA, O “Concurso de Normas” em Direito Penal, 2004, p. 38; TAIPA DE CARVALHO, in: JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, I, 2010, p. 676; FERNANDA PALMA, Direito Constitucional Penal, 2006, p. 133. 68 Pretendem retirar a vertente substantiva do ne bis in idem do art. 29.º, n.º 5, da Constituição, reconhecendo que o mesmo consagra expressamente a sua vertente processual, GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, I, 2007, p. 497, com a seguinte fundamentação: «A Constituição proíbe rigorosamente o duplo julgamento e não a dupla penalização, mas é óbvio que a proibição do duplo julgamento pretende evitar tanto a condenação de alguém que já tenha sido definitivamente absolvido como pela prática da infracção, como a aplicação

Page 14: Do caso julgado à definitividade da sentença penal

O aspecto particular da tutela do ne bis in idem processual é, de resto, muito

justamente recordado e reforçado pela jurisprudência do Tribunal Constitucional69, do

Tribunal Europeu dos Direitos do Homem70, do Tribunal de Justiça71-72, e dos nossos

tribunais73.

No que respeita especificamente a esta vertente processual do princípio, é-

lhe atribuída uma dupla dimensão74. Em primeiro lugar, como direito subjectivo

fundamental, garante «ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo

mesmo facto, conferindo-lhe, ao mesmo tempo, a possibilidade de se defender contra

actos estaduais violadores deste direito (direito de defesa negativo)»75. Por outro lado,

«como princípio constitucional objectivo (dimensão objectiva do direito fundamental), obriga

fundamentalmente o legislador à conformação do direito processual e à definição do

renovada de sanções jurídico-penais pela prática do “mesmo crime”». No mesmo sentido, TERESA BELEZA, Direito Penal, I, 1984, p. 519; FERNANDA PALMA, Direito Constitucional Penal, 2006, p. 133; TAIPA DE CARVALHO, in: JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, I, 2010, p. 676, e os acs. do T.C., n.º 102/99, de 10 de Fevereiro, e n.º 244/99, de 29 de Abril. Para a fundamentação desta perspectiva remete-se para o que se escreveu no ac. n.º 303/05, de 8 de Junho: «pode dizer-se que, do ponto de vista substantivo, o princípio proíbe a plural imposição de consequências jurídicas sancionatórias sobre a mesma infracção; do ponto de vista processual, o non bis in idem determina a impossibilidade de reiterar, contra o mesmo sujeito, um novo julgamento (ou processo) por uma infracção penal sobre a qual se tenha firmado decisão de absolvição ou condenação». 69 Veja-se, por todos, o ac. do T.C. n.º 303/2005, citado no texto. 70 Trata-se de observação comum a numerosos acórdãos, entre os quais destacamos o recente aresto proferido pela Grande Câmara no processo Zolotoukhine c. Rússia. Veja-se ainda, no mesmo sentido, HARRIS/O´BOYLE/WARBRICK, Law of the European Convention on Human Rights, 2009, p. 751 e, entre nós, CABRAL BARRETO, A Convenção Europeia, 2010, pp. 497-498, com indicação da jurisprudência respectiva. 71 As referências que se encontram no texto ao «Tribunal de Justiça» respeitam, quer ao actual «Tribunal de Justiça», que integra o «Tribunal de Justiça da União Europeia», nos termos do § 1 do n.º 1 do art. 19.º do Tratado da União Europeia, quer ao antigo «Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias». 72 De acordo com a jurisprudência deste Tribunal, o princípio ne bis in idem, consagrado no art. 54.º da Convenção, aplica-se à sentença que absolve definitivamente um arguido por insuficiência de provas - Proc. van Straaten (C-150/05), de 28.09.2006 -, ou por ter decorrido o prazo de prescrição do procedimento - Proc. Gasparini (C-467/04), de 18.07.2007. Veja-se, para uma análise desenvolvida destes acórdãos, entre nós, VÂNIA COSTA RAMOS, Ne bis in idem, 2009, pp. 167 e segs. 73 Considerações frequentemente citadas pelos nossos tribunais, podendo referir-se, entre outros, os seguintes arestos: Ac. da Rel de Évora, de 11.03.2008, Proc. 2846/07-1 e da Rel. de Lisboa, de 07.07.1992, Proc. 0023605. Acentuando a consagração constitucional do princípio, entre outros, o ac. da Rel. de Coimbra, de 28.05.2008, Proc. 14/03.9IDAVR.C1. Veja-se, contudo, esquecendo esta dimensão da vertente processual do princípio, o ac. da Rel. do Porto, de 05.11.2003, C.J., 2003, t. 5, pp. 219-222, no qual se decidiu não ocorrer violação do princípio ne bis in idem por, apesar da sujeição do arguido a diversos processos autónomos, o mesmo não ter sido «responsabilizado» pelos factos que lhe foram imputados nos processos anteriores. 74 GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, I, 2007, p. 497. 75 GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, I, 2007, p. 497. No mesmo sentido, TAIPA DE CARVALHO, in: JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, I, 2010, p. 676; FREDERICO ISASCA, Alteração Substancial dos Factos, 1995, pp. 219- 221.

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caso julgado material, de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo

mesmo facto76.

Pode até afirmar-se que o princípio adquiriu uma relevância própria, o que

teve por efeito, num desenvolvimento destas concepções, a autonomização do

ne bis in idem perante o caso julgado.

Podemos encontrar um primeiro apoio77 para esta autonomização em

DAMIÃO DA CUNHA, na sequência da associação que propõe entre ne bis in

idem e exercício da acção penal, que o leva a afirmar que «efeito “declarativo”

(pressuposto do ne bis in idem) e “efeitos” da sentença são coisas distintas,

porque o ne bis in idem refere-se, antes de tudo, ao exercício da acção penal;

outra coisa, é a forma porque o ordenamento jurídico, no seu todo, “integra” a

decisão absolutória – que se distingue, pela sua especial “autoridade”»78.

O caso julgado e o ne bis in idem separam-se ainda quanto à diferente

ratio em que se inspiram e à desigual força da sua tutela constitucional, como

fica bem patente se recordarmos a polémica que suscita entre nós, ainda hoje, a questão

da aplicação retroactiva da lex mitior, em momento posterior ao trânsito em julgado da

sentença condenatória.

5.1. Os diversos fundamentos do caso julgado penal e do ne bis in idem

O caso julgado, em particular o caso julgado penal, é um princípio

constitucional com consagração implícita, que resulta do valor da certeza e

segurança jurídicas, enquanto dimensão do princípio do Estado de Direito, do

princípio da separação de poderes e da própria natureza da função 76 GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa, I, 2007, p. 497. 77 Deve ainda ter-se presente a importância das considerações de TAIPA DE CARVALHO, em parte já citadas, proferidas para demonstrar a inviabilidade de invocação do ne bis in idem para justificar a ressalva dos casos julgados nos casos de aplicação retroactiva da lei penal mais favorável, concluindo que: «o caso julgado em si mesmo, isto é, enquanto certeza jurídica, independentemente da sua dimensão de garantia jurídico-penal, não tem dignidade constitucional; quando é assumido constitucionalmente (CRP, art. 29.º, n.º 5), é-o na função de garantia jurídico-penal do cidadão, razão pela qual nunca conflitua com o princípio da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável» - Sucessão de leis penais, 2008, pp. 286-287. 78 DAMIÃO DA CUNHA, O Caso Julgado Parcial, 2001, p. 491. Trata-se apenas de uma primeira referência ao pensamento do Autor, o qual será devidamente considerado, em toda a sua extensão.

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jurisdicional79. Já o princípio ne bis in idem merece consagração expressa no

artigo 29.º, n.º 5, da Constituição, como garante da paz jurídica do indivíduo,

salvaguardando-o do exercício repetido do poder punitivo do Estado.

Embora se reconheça, como resulta das citações a que se recorreu, que por

vezes se fundamenta o caso julgado num conjunto de ideias que acabam por ser

tributárias de concepções diversas, pode concluir-se que o caso julgado visa

responder a exigências de certeza e segurança jurídicas, traduzidas na

necessidade de o processo ter um fim, e que só poderão ser satisfeitas se a

decisão que lhe puser termo for definitiva. Por isso se afirma, como vimos, que o

caso julgado é um instrumento que permite atingir um fim prático, traduzido na

necessidade de definição jurídica da posição do arguido, que se concretiza com a

prolação de uma decisão final definitiva, não se lhe reconhecendo, em consequência,

valor absoluto. Só a definitividade da sentença, como vimos, torna viável a própria

execução da pena, bem se compreendendo, por esta razão, que o instituto assegura a

própria viabilidade de qualquer sistema penal. O caso julgado proporciona, assim, a

definição da situação jurídica do arguido – a qual deve ter lugar, como impõe o artigo

32.º, n.º 2, da Constituição, «no mais curto prazo compatível com as garantias de

defesa» -, e permite a execução da pena, caso a sentença seja condenatória. Admitindo-

se que estão entre as finalidades do processo penal «a realização da justiça e a

descoberta da verdade material», bem como «o restabelecimento da paz jurídica»80, o

caso julgado constitui um meio imprescindível para as alcançar, ainda que possa

conduzir, em certos casos, a decisões materialmente injustas81. Na feliz síntese de

CAVALEIRO DE FERREIRA, o caso julgado visa responder à necessidade de se

atribuir valor definitivo à sentença penal. Porém, a resignação forçada perante tal

necessidade «não equivale a desconhecer a sentença injusta e a proclamar uma

misteriosa transubstanciação em ordem jurídica de todos os erros jurisprudenciais,

como se de nova e contraditória fonte de direito se tratasse»82. Da inaptidão da sentença

para «modificar a realidade do direito substantivo, transformando por misericordiosa 79 Veja-se, desenvolvidamente, supra, § 5, 1. 80 FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, 1988-9, pp. 21 e segs. 81 FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, I, 1974, p. 40 e Direito Processual Penal, 1988-9, p. 22. 82 CAVALEIRO FERREIRA, Curso de Processo Penal, II, 1986, p. 25. Continua o Autor: «É melhor aceitar, como ónus da imperfeição humana, e existência de decisões injustas, que escondê-las, para salvaguardar um prestígio martelado sobre a infalibilidade do juízo humano e sob a capa duma juridicidade directamente criada pelos tribunais».

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ficção o injusto em justo», não se pode retirar como consequência que nenhuma

decisão judicial seria definitiva e irrevogável, porque a tal se opõe a necessidade de

segurança jurídica83.

O ne bis in idem, por seu lado, tem por ratio a garantia da paz jurídica do

cidadão, traduzindo-se numa limitação dos ius puniendi estatal, ao impedir a

repetição de um processo contra a mesma pessoa.

5.2. A relativização do caso julgado penal perante a tutela reforçada do ne bis in idem

Como se viu, é possível afirmar a existência de um movimento

progressivo, doutrinário e jurisprudencial, que se caracteriza pela progressiva

relativização do valor do caso julgado penal. Os termos da sua tutela constitucional

e o modo como a legislação ordinária os tem aproveitado tornam cada vez mais actual a

célebre frase de NÉLSON HUNGRIA: «nos altares do direito penal, a coisa julgada é

santa de prestígio muito relativo»84.

Pensamos, no que respeita ao caso julgado penal, na circunstância de, para além

de não ter obtido reconhecimento constitucional expresso, o n.º 6 do artigo 29.º da

Constituição consagrar autonomamente o direito do injustamente condenado à revisão

da sentença. Numa primeira análise poder-se-ia invocar este preceito constitucional

para demonstrar que, afinal, a tutela do ne bis in idem é também relativa, ou tão relativa

quanto a tutela do caso julgado, uma vez que a revisão da sentença, ainda que por

iniciativa do condenado, acaba por traduzir uma restrição ao princípio. Sucede que esta

argumentação esquece a sua ratio específica, a de garantia do indivíduo, porque a esta

luz é fácil compreender que a consagração constitucional do direito à revisão da

sentença injusta, em vez de o contrariar, vem afinal reforçá-lo. É precisamente por estar

em causa uma garantia do cidadão que a Constituição lhe atribui a faculdade de

renunciar ao seu exercício, requerendo a revisão da sentença com fundamento na

injustiça da condenação. Nos casos em que o condenado decida prescindir da garantia

que lhe assiste, a sua pretensão de revisão da sentença prevalece sobre o valor do caso 83 CAVALEIRO FERREIRA, Curso de Processo Penal, III, 1958, p. 36. 84 NÉLSON HUNGRIA, Comentários ao Código Penal, I, 1949, p. 94, apud GERMANO MARQUES DA SILVA, Direito Penal Português, I, 2010, p. 306, nota 1.

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julgado85, tendo em conta, entre nós, a ponderação expressa a que procede o artigo 29.º,

n.º 6, da Constituição. Deve ainda ter-se presente que, remetendo o preceito

constitucional para a legislação ordinária a definição das condições de concretização do

direito respectivo, tem-se assistido a um progressivo alargamento dos fundamentos de

revisão da sentença condenatória, o que bem demonstra a relativização do valor do

caso julgado86. Por seu lado, configurando-se a revisão como direito do condenado,

reforça-se a tutela do ne bis in idem, pois o n.º 6 do artigo 29.º da Constituição já não

pode ser invocado para se justificar a revisão da sentença transitada pro societate, em

prejuízo do cidadão. Por esta razão, como tem sido afirmado na jurisprudência do

Tribunal Constitucional, a revisão de sentença pro societate encontra-se fortemente

limitada.

A tutela particular do ne bis in idem, perante o caso julgado, resulta

claramente do confronto entre o n.º 5 e o n.º 6 do artigo 29.º da Constituição87.

Se, no primeiro, é afirmado o princípio, sem restrições, no que respeita à garantia do

cidadão perante o poder punitivo do Estado, no segundo ordena-se ao legislador

ordinário que atribua ao injustamente condenado o direito à revisão da sentença

transitada. Na síntese proposta por CONDE CORREIA, a consagração expressa do

princípio ne bis in idem, conjugada com inexistência de idêntica solução para o caso

julgado e com o reconhecimento constitucional do direito à revisão da condenação

injusta demonstram uma clara «preferência pela segurança nas absolvições injustas e

prioridade à justiça nas condenações injustas»88.

Diferentemente, são muito mais limitados os casos em que a revisão pro societate

é admissível, uma vez que esta é que é limitada pelo princípio ne bis in idem. Pode até

observar-se que a revisão de sentenças absolutórias traduz uma limitação da garantia em

que se concretiza o princípio89. Apesar desta restrição não se fundar em preceito

constitucional avulso, tal não significa que a norma que prevê a revisão das sentenças

85 Expressamente neste sentido, MARCO D´ORAZI, La Revisione del Giudicato Penale, 2003, p. 163, ao concluir que, fundando-se o ne bis in idem na manutenção da paz jurídica, a protecção que lhe é inerente perde o seu sentido, sempre que o requerente da revisão é o condenado no processo anterior. 86 Veja-se, supra, § 5, 2. 87 Como também destaca CONDE CORREIA, O «Mito do Caso Julgado», 2010, pp. 190-194 e p. 253. 88 CONDE CORREIA, O «Mito do Caso Julgado», 2010, p. 193. Como o Autor observa, ibidem, pp. 542-543, este preceito tem vindo a ser posto de parte, esquecendo-se a sua importância fundamental, situação que urge alterar. 89 Neste sentido, por todos, D´ORAZI, La Revisione del Giudicato Penale, 2003, pp. 131-132.

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absolutórias seja inconstitucional, porque é «inevitável admitir a necessidade de

restrições a direitos, liberdades e garantias que, todavia, não são expressamente

autorizadas pelos preceitos constitucionais que os consagram»90.

Temos presente que este tipo de restrições «não estão isentas de autorização constitucional», e

«implicam uma especial exigência na sua fundamentação». No caso, como se apontou no acórdão do Tribunal

Constitucional n.º 155/2007, de 2 de Março, a restrição aos direitos fundamentais será admissível se

encontrar fundamento na necessidade de se atingirem as finalidades próprias do processo penal, como a

descoberta da verdade e a realização da justiça no caso concreto91. Seria, de facto, intolerável, que o arguido

que conseguiu a sua absolvição à custa do suborno ou da falsificação de provas pudesse contar com a

protecção inerente ao ne bis in idem92. Daqui não resulta, no extremo oposto, que o legislador ordinário possa

prever, com igual amplitude, os casos de revisão de sentenças absolutórias e condenatórias. Antes pelo

contrário, quanto maiores forem as hipóteses de revisão de absolvições, mais fraca será a tutela do princípio93.

Os termos da consagração constitucional do ne bis in idem, por um lado,

e do direito à revisão de sentenças condenatórias injustas, por outro lado,

impõem que a legislação ordinária separe claramente as hipóteses de revisão de

sentença condenatória e absolutória, sendo necessário que estas encontrem uma

justificação material e assumam natureza excepcional, para que se

circunscrevam aos casos em que a manutenção da decisão corresponde a uma

situação de intolerável injustiça94.

A Comissão Constitucional, de resto, já havia decidido que, enquanto a previsão do direito de

revisão de decisões definitivas condenatórias se compatibilizava com o aludido princípio, já o mesmo não

90 JORGE MIRANDA/J. PEREIRA DA SILVA in: JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, I, 2011, p. 366. No mesmo sentido, quanto à admissibilidade deste resultado, embora com fundamentação não inteiramente coincidente, GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa, I, 2007, pp. 388 e segs., por apelo aos «limites imanentes» dos direitos fundamentais; JORGE NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais, 2003, pp. 596 e segs., mediante o condicionamento dos direitos fundamentais a uma reserva geral de ponderação. 91 Decidiu-se, neste aresto, que a obtenção destes fins legitima a restrição dos direitos fundamentais à integridade pessoal, à liberdade geral de actuação, à reserva da vida privada ou à autodeterminação informacional, desde que previamente autorizada pelo juiz. 92 Neste sentido, ANETTE GRÜNEWALD, «Die Wiederaufnahme des Strafverfahrens zuungusten des Angeklaten», 2008, pp. 574-575. 93 D´ORAZI, La Revisione del Giudicato Penale, 2003, p. 90. 94 Neste sentido, CONDE CORREIA, O «Mito do Caso Julgado», 2010, p. 192, nota 312. FREDERICO ISASCA, Alteração Substancial dos Factos, 1995, p. 224, também faz apelo aos valores da justiça e da verdade material, que devem prevalecer sobre a segurança jurídica do arguido «naqueles casos em que a decisão final fosse o fruto mais acabado de insuportáveis vícios na sua formação».Veja-se ainda, também admitindo a legitimidade destes limites à manutenção da decisão, ainda que favorável ao arguido, SCHMIDT-AβMANN in: MAUNZ/DÜRING, Gundgesetz, 1994, art. 103, III, pp. 8-9; RADTKE, Zur Systematik des Strafklageverbrauchs, 1984, p. 78.

Page 20: Do caso julgado à definitividade da sentença penal

sucedia com a revisão de sentenças absolutórias, a qual se encontra fortemente limitada95. Esclareceu-se ainda,

neste aresto, que não é admissível a revisão da sentença absolutória «ainda que, porventura, surjam

posteriormente provas suficientes para indicar que essas sentenças estão eivadas do chamado erro judiciário»,

ou caso se demonstre que a sentença «foi proferida por erro jurídico grave, v.g. resultante de o tribunal ter

aplicado qualquer preceito manifestamente inconstitucional, ou tão somente injusto».

Podemos assim concluir que os casos excepcionais em que é admissível a

revisão de sentenças absolutórias, previstos nas als. a) e b) do n.º 1 do artigo

449.º96, correspondem a uma restrição do princípio ne bis in idem, que encontra

fundamento constitucional nas exigências de justiça e de descoberta da verdade

material, enquanto finalidades específicas do processo penal97.

Os diversos termos da tutela constitucional do caso julgado e do ne bis in

idem revelam a relativização do valor do caso julgado, que terá necessariamente

de ceder perante o exercício do direito de revisão da sentença injusta, que a

Constituição atribui ao condenado98. Esta relativização concretizou-se, como vimos,

mediante o alargamento dos fundamentos de revisão pro reo - entre os quais se encontra

hoje a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de norma de

conteúdo menos favorável que tenha servido de fundamento à condenação -, e ainda

mediante a previsão expressa da aplicação retroactiva da lei posterior de conteúdo mais

favorável, ainda que tenha já sido proferida condenação transitada em julgado99. Este

direito reforça, por seu lado, a tutela do ne bis in idem como garantia individual, uma vez 95 Ac. da Comissão Constitucional n.º 158, B.M.J., n.º 289, pp. 166 e segs. Por este aresto foi declarada a inconstitucionalidade das normas dos arts. 2.º, 3.º, e 4.º do Decreto-Lei n.º 272/75, de 2 de Junho, na medida em que os mesmos permitiam a revisão obrigatória de casos julgados absolutórios. 96 Para DAMIÃO DA CUNHA, O Caso Julgado Parcial, 2001, p. 776, estes fundamentos traduzem «um pensamento fundamental, que é o de que existem decisões judiciais que não transitam em julgado ou que, tendo aparentemente transitado, perdem o seu valor». Por sua vez, FERNANDA PALMA, Direito Constitucional Penal, 2006, p. 133, nota 121, afirma que nestas hipóteses estamos perante «um simulacro de justiça: assente, por exemplo, em crimes de falsificação ou prevaricação». 97 FREDERICO ISASCA, Alteração Substancial dos Factos, 1995, p. 224, conclui que, nestes casos, é patente «a preponderância da verdade material perante a segurança jurídica do arguido». 98 Como afirma CONDE CORREIA, O «Mito do Caso Julgado», 2010, p. 24, a consagração expressa do direito à revisão da sentença condenatória injusta tem por consequência que não seja necessário, entre nós, «proceder a elaboradas construções jurídicas para encontrar o fundamento constitucional do mecanismo da revisão. Os limites do caso julgado penal condenatório, ou a controversa relação entre a justiça e a segurança, ficaram ali explicitados: em vez da antinomia tradicional, uma unidade substancial. A tutela intransigente de uma decisão justa». 99 Para estes e outros exemplos em que se concretiza a relativização do caso julgado veja-se, CONDE CORREIA, O «Mito do Caso Julgado», 2010, pp. 118 e segs. A aplicação retroactiva da lex mitior posterior ao trânsito em julgado da condenação será objecto de particular atenção, uma vez que, para além de concretizar a relativização do caso julgado, a polémica que suscitou constitui ainda um campo de eleição para a demonstração da autonomização do ne bis in idem.

Page 21: Do caso julgado à definitividade da sentença penal

que deixa nas mãos do condenado a decisão sobre o respeito pelo princípio ou a

renúncia à protecção dele resultante100. Também por estas razões, pensamos poder

concluir pela autonomização do ne bis in idem perante o instituto do caso julgado.

Caso o princípio não tivesse merecido consagração expressa, os efeitos

negativos do caso julgado sempre impediriam a submissão do arguido a novo

julgamento, mas a verdade é que a sua consagração é implícita e o seu valor relativo,

pelo que seria de admitir a reabertura do processo ou a instauração de novo processo,

sempre que tal se justificasse, em virtude de outros valores constitucionais

prevalecentes. Com a consagração expressa do ne bis in idem, enquanto garantia

individual, a paz jurídica do arguido absolvido obtém uma tutela reforçada, que se

traduz na existência de fortes limitações quanto às hipóteses em que é admissível a

revisão pro societate.

5.3. A aplicação retroactiva de lei de conteúdo mais favorável posterior ao trânsito em julgado da sentença condenatória

A compatibilização entre o princípio geral do caso julgado, como

instituto processual comum, e a dimensão particular do ne bis in idem foi

testada a propósito da questão da conformidade constitucional da ressalva do

caso julgado, constante do artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, na sua versão

originária.

100 Por esta razão, não pode concordar-se com o ac. do S.T.J., de 20.10.2011, Proc. 665/08.5JAPRT.E.S1, no qual se decidiu que: «VI - A al. e) do n.º 1 do art. 449.º, que contém fundamento de revisão introduzido pela Lei 48/07, de 29-08 – provas proibidas –, não estabelece como seu requisito integrante a mera ocorrência de condenação baseada em provas proibidas. Com efeito, ao dispor que a revisão de sentença é admissível quando se descobrir que serviram de fundamento à condenação provas proibidas nos termos dos n.ºs 1 a 3 do art. 126.º, a lei estabelece como requisito, a par da condenação baseada em provas proibidas, a circunstância de esse vício só vir a ser conhecido posteriormente. Não basta, pois, à verificação deste pressuposto de revisão de sentença a ocorrência de condenação em provas proibidas tout court. VII - A imposição de que o uso ou utilização e a valoração de provas proibidas só releva em matéria de revisão de sentença quando descobertos posteriormente, tem a sua justificação na excepcionalidade da revisão, na restrição grave que a mesma admite e estabelece ao princípio nom bis in idem na sua dimensão objectiva, ou seja, ao caso julgado enquanto instituto que garante a segurança e a certeza da decisão judicial, a intangibilidade do definitivamente decidido pelo tribunal». Na perspectiva adoptada, o direito à revisão da sentença condenatória injusta não se encontra em conflito com o ne bis in idem, uma vez que ambos têm por finalidade a protecção do indivíduo. Apesar das consequências jurídicas de cada uma das garantias serem opostas, cabe ao cidadão decidir qual dos dois direitos que as mesmas lhe atribuem pretende exercer no caso concreto.

Page 22: Do caso julgado à definitividade da sentença penal

Este preceito estabelecia, como limite à aplicação retroactiva das disposições penais de conteúdo

concretamente mais favorável, a inexistência de sentença transitada em julgado. A invocação da sua

inconstitucionalidade, por eventual violação do artigo 29.º, n.º 4, da Constituição, desencadeou uma discussão

que também atingiu a natureza e o alcance do caso julgado penal, em confronto com o princípio ne bis in idem,

tendo a mesma contribuído para o reconhecimento da autonomia deste princípio perante aquele instituto.

O Supremo Tribunal de Justiça invocou, como um dos argumentos para

rejeitar a tese da inconstitucionalidade, precisamente que a intangibilidade do

caso julgado é um princípio constitucional em vigor, consagrado no art. 29.º, n.º

5, da Constituição, pelo que a ressalva do caso julgado encontraria nela a sua

justificação101.

No que respeita à eventual consagração constitucional do caso julgado deve

recordar-se que, como vimos, a nossa Constituição não reconhece, expressa e

autonomamente, um princípio geral de intangibilidade das decisões judiciais já

transitadas. Actualmente, o Tribunal Constitucional, como vimos, considera que a

imodificabilidade das decisões judiciais transitadas constitui um princípio constitucional

implícito, posição também defendida na doutrina. E, com base nesta consagração, ainda

que implícita e não absoluta, do respeito pelo julgado como um valor constitucional, o

Tribunal Constitucional decidiu que a ressalva dos casos julgados, prevista no artigo 2.º,

n.º 4, do Código Penal, não era inconstitucional, por estar prevista na Constituição,

sendo necessária e proporcional, pois evitava «uma enormíssima perturbação na ordem

dos tribunais judiciais»102. Já em decisão posterior, o mesmo Tribunal declarou

inconstitucional a norma do n.º 4 do artigo 2.º do Código Penal, «na parte em que veda

a aplicação da lei nova que transforma em crime semi-público um crime público,

quando tenha havido desistência da queixa apresentada e trânsito em julgado da

sentença condenatória», considerando que «o respeito pelo núcleo essencial da garantia 101 Acs. do S.T.J. de 10.07.1984, B.M.J., n.º 339, pp. 354-355 e de 18.12.1996, B.M.J., n.º 462, pp. 304 e segs. PEREIRA TEOTÓNIO, «Interpretação da lei criminal e sua aplicação no tempo», 1983, p. 64, também invocava a proibição de duplo julgamento, entre outros argumentos, para concluir pela constitucionalidade da ressalva dos casos julgados. 102 Ac. n.º 644/98, de 17 de Novembro. Vejam-se, contudo, em sentido contrário, os votos de vencido do Conselheiro Sousa Brito e da Conselheira Maria dos Prazeres Beleza. De todo o modo, já o mesmo tribunal tinha esclarecido, pelo ac. n.º 240/97, de 12 de Março, que esta ressalva só valia se a lei posterior entrasse em vigor depois do trânsito em julgado da decisão, ao declarar inconstitucionais, «por ofensa do n.º 4 do artigo 29.º da Constituição, as normas conjugadas dos art. 2.º, n.º 4, do Código Penal, e 666º, nº 1, do Código de Processo Civil, na interpretação segundo a qual, entrando em vigor, posteriormente a uma decisão condenatória do arguido e antes de esta ter formado caso julgado material, uma lei penal que, eventualmente, se apresente como mais favorável em concreto, não pode tal lei conduzir à modificação da decisão proferida pelo próprio tribunal, se a mesma já não for passível de recurso».

Page 23: Do caso julgado à definitividade da sentença penal

afirmada no n.º 4 do artigo 29.º da Constituição implica, pelo menos, que o caso

julgado da condenação não afaste a aplicação retroactiva da lei nova descriminalizadora

ou que produz efeitos substancialmente análogos»103.

A invocação do princípio do caso julgado, para justificação da admissibilidade

da restrição da aplicação retroactiva da lei mais favorável, não mereceu aceitação

generalizada, defendendo-se que o princípio ne bis in idem, consagrado no artigo 29.º, n.º

5, da Constituição, traduz uma «garantia do cidadão face ao poder punitivo estadual»,

pelo que «nunca o caso julgado pode constituir impedimento à concretização de

mandados constitucionais que – tal como o princípio ne bis in idem – visam a protecção

dos direitos fundamentais»104. Fazia-se ainda apelo à diferença entre o caso julgado civil

e o caso julgado penal, na medida em que «no caso julgado penal não estão, como no

civil, envolvidas (...) várias pessoas cujas situações jurídicas estejam em jogo.

Consequentemente, (...) só tem verdadeiramente relevo a segurança ou estabilidade da

situação do arguido»105. O princípio da intangibilidade do caso julgado não poderia,

103 Ac. n.º 677/98, de 2 de Dezembro. O Tribunal, partindo da constatação da existência de uma «contradição formal» entre o n.º 4 do artigo 29.º da Constituição e o n.º 4 do artigo 2.º do Código Penal, questiona se a mesma será admissível, «o que só ocorrerá se constituir uma restrição constitucionalmente permitida de direitos, liberdades e garantias, em razão da sua necessidade, adequação e proporcionalidade relativamente à defesa de outros direitos ou interesses também constitucionalmente protegidos». De seguida, rejeita, com o argumento citado no texto, que a tutela constitucional do caso julgado constitua fundamento para a admissibilidade da disciplina jurídica da parte final do n.º 4 do artigo 2.º do Código Penal, não aceitando também a invocação do n.º 5 do artigo 29.º da Constituição para a legitimar, uma vez que «a disposição constitucional invocada, que consagra o princípio ne bis in idem, constitui, sem margem para qualquer dúvida, uma garantia do arguido, não podendo pois ser invocada contra ele, em manifesta violação da sua ratio». Decidiu-se no mesmo sentido no ac. n.º 169/02, de 12 de Abril, do mesmo tribunal. Por seu lado, pelo ac. n.º 572/2003, de 19 de Novembro, julgou inconstitucional, «por violação do princípio da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável consagrado no n.º 4 do artigo 29.º da Constituição, a norma constante do artigo 2º n.º 4 do Código Penal na interpretação de que veda a aplicação da lei penal nova que descriminaliza o facto típico, imputado ao arguido, já objecto de sentença condenatória transitada em julgado». Como se esclarece na fundamentação deste aresto, não cabe ao Tribunal Constitucional sindicar a correcção do enquadramento normativo adoptado pelo tribunal a quo, no sentido de subsumir a hipótese dos autos ao n.º 4 do art. 2.º do Código Penal, e não ao n.º 2 do mesmo artigo, mas tão-só apreciar a norma cuja aplicação foi recusada pelo mesmo tribunal, na interpretação que lhe foi dada. Com efeito, a correcta subsunção desta hipótese ao n.º 2 do art. 2.º do Código Penal teria evitado a declaração de inconstitucionalidade, na medida em que, nos termos deste preceito, a lei descriminalizadora sempre foi aplicável retroactivamente, ainda que tivesse sido proferida decisão final transitada em julgado. Veja-se, a este respeito, FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal, I, 2007, p. 202, nota 55. 104 TAIPA DE CARVALHO, Sucessão de leis penais, 2008, p. 286. No mesmo sentido, JOSÉ LOBO MOUTINHO, «A aplicação da lei penal no tempo», 1994, p. 108; RODRIGUES MAXIMIANO, «Aplicação da lei penal no tempo e caso julgado», 1983, p. 34; RUI PEREIRA, «A relevância da lei penal inconstitucional de conteúdo mais favorável ao arguido», 1991, p. 59, nota 13. 105 JOSÉ LOBO MOUTINHO, «A aplicação da lei penal no tempo», 1994, p. 108. No mesmo sentido, TAIPA DE CARVALHO, Sucessão de leis penais, 2008, p. 290; RODRIGUES MAXIMIANO, «Aplicação

Page 24: Do caso julgado à definitividade da sentença penal

assim, ser invocado como fundamento para a restrição do direito fundamental à

liberdade, a que conduzia a ressalva dos casos julgados106. FERNANDA PALMA

acrescentava ainda que «a reserva de caso julgado apenas se fundamenta em razões de

segurança e estabilidade das instituições penais cujo valor é necessariamente inferior à

igualdade e à necessidade da pena»107. Por outro lado, afirmava-se ainda que a

intangibilidade do caso julgado não é absoluta108, e que a sua invocação, para obstar à

aplicação da lei nova às penas em execução, provaria por excesso, porque permitiria que

o legislador ordinário ressalvasse os casos julgados, mesmo nas situações de

descriminalização, previstas no n.º 2 do artigo 2.º do Código Penal109. Mesmo

admitindo, por mera hipótese, que o caso julgado é um princípio constitucional que

poderá, em abstracto, justificar a restrição do princípio da aplicação retroactiva da lei

penal mais favorável, não existiria qualquer conflito entre estes dois princípios. Com

efeito, ainda que se admitisse que o caso julgado teria, em maior ou menor medida,

como fundamento material, o prestígio e a autoridade das decisões judiciais110, a

aplicação retroactiva da lei mais favorável nunca afectaria tal prestígio e autoridade, uma

vez que a modificação da decisão tem por base a nova lei, «permanecendo intacta a

resolução da questão-de-facto e da questão-de-direito»111.

Em conclusão, o princípio do caso julgado não deveria ser utilizado como

argumento para justificar a constitucionalidade da ressalva estabelecida no

artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal112.

Entretanto, a Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, procedeu a uma

significativa alteração do artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, nos termos da qual

se eliminou a ressalva dos casos julgados. Por seu lado, acrescentou-se ainda, na

segunda parte do preceito, que, no caso de ter havido condenação transitada em da lei penal no tempo e caso julgado», 1983, pp. 22-23 e p. 35; RUI MEDEIROS, A Decisão de inconstitucionalidade, 1999, p. 600. 106 RUI MEDEIROS, A Decisão de inconstitucionalidade, 1999, pp. 599-600. 107 FERNANDA PALMA, Direito Penal, 1994, p. 115. 108 GERMANO MARQUES DA SILVA, Direito Penal Português, I, 2010, p. 306. 109 LOPES ROCHA, «Aplicação da Lei Criminal no Tempo e no Espaço», 1983, p. 99; JOSÉ LOBO MOUTINHO, «A aplicação da lei penal no tempo», 1994, p. 106. 110 Rejeita tal possibilidade CAVALEIRO DE FERREIRA, «Os pressupostos processuais», 1958, p. 349. 111 TAIPA DE CARVALHO, Sucessão de leis penais, 2008, p. 294; JOSÉ LOBO MOUTINHO, «A aplicação da lei penal no tempo», 1994, p. 108. 112 FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal, 2007, pp. 201-202, defende a constitucionalidade da ressalva dos casos julgados estabelecida no artigo 2.º, n.º 4, da Constituição sem invocar como argumento o princípio da intangibilidade do caso julgado.

Page 25: Do caso julgado à definitividade da sentença penal

julgado, a execução cessa logo que «a parte da pena cumprida atinja o limite

máximo da pena prevista na lei posterior».

Numa primeira leitura deste preceito poderia parecer que a aplicação retroactiva

da lei nova de conteúdo mais favorável só teria lugar no grupo de situações previsto na

sua parte final, ou seja, quando o condenado tivesse já cumprido pena superior ao

limite máximo previsto na nova lei, mas não é assim. Desde logo, a primeira parte do

preceito continua a dispor expressamente que a aplicação retroactiva tem lugar

«sempre», tendo-se eliminado, por outro lado, a ressalva das decisões transitadas em

julgado, que constava da redacção anterior. Por outro lado, para que dúvidas não

restem, é necessário conjugar este preceito com o artigo 371.º-A, introduzido no

Código de Processo Penal pela Lei n.º 47/2007, de 29 de Agosto, nos termos do qual o

condenado pode requerer a reabertura da audiência se, após o trânsito em julgado da

sentença113, entrar em vigor lei de conteúdo mais favorável, para que esta lhe seja

aplicável.

Em síntese, a lei nova de conteúdo mais favorável é aplicável retroactivamente,

ainda que tenha sido proferida decisão transitada em julgado, nas seguintes situações:

(i) se o condenado já tiver cumprido pena igual ou superior ao limite máximo

previsto na nova lei, sendo que, nesta situação, a execução da pena cessa de

imediato;

113 Já se admitiu a reabertura da audiência numa situação em que a lei nova entrou em vigor entre a data da prolação da sentença e a data do trânsito em julgado da mesma – ac. Rel. Porto, de 12.05.2008, Proc. 0812435. Porém, estando pendente recurso da decisão, foi decidido, pelo ac. da Rel de Lisboa, de 16.10.2007, Proc. 5585/07-5, que a aplicação obrigatória do novo regime pode ser feita pelo tribunal de recurso, desde que este disponha de todos os elementos necessários para o efeito. No ac. da Rel. de Coimbra, de 07.11.2007, Proc. 287/05.2JACBR.C1, decidiu-se que tal tarefa compete ao tribunal de 1.ª instância, por se ter considerar que o tribunal de recurso não dispunha de todos os elementos que permitissem aplicar o regime decorrente da lei nova mais favorável. Resulta desta jurisprudência que, como sintetiza MARIA JOÃO ANTUNES, «Abertura da audiência para aplicação retroactiva da lei penal mais favorável», 2008, p. 341, «se não tiver sido proferida decisão transitada em julgado o tribunal de recurso deve aplicar a lei mais favorável, no caso de os elementos constantes do processo o permitirem; na hipótese inversa, deverá reenviar o processo para a 1.ª instância, a fim de que este tribunal possa reunir os elementos necessários para a aplicação da nova lei. O que o tribunal de recurso está impedido de fazer é ignorar a nova lei, deixando à iniciativa do arguido a apresentação posterior de requerimento para a reabertura da audiência». Neste sentido, os acs. do S.T.J., de 19.12.2007, Proc. 07P3206, de 20.12.2007, Proc. 06P775, de 24.01.2008, Proc. 07P4574 e de 27.05.2009, Proc. 09P0484. Em sentido contrário, decidiu-se nos acs. do S.T.J., de 13.12.2007, Proc. 07P3210 e de 30.04.2008, Proc. 07P4723, que a aplicação da nova lei só pode lugar depois do trânsito em julgado da decisão que põe termo ao processo.

Page 26: Do caso julgado à definitividade da sentença penal

(ii) em qualquer outro caso, desde que o condenado requeira a reabertura da

audiência, nos termos previstos no artigo 371.º-A114.

Com esta solução, que resulta da aplicação conjugada dos dois preceitos, pretendeu-

se dar cumprimento à imposição constitucional de aplicação retroactiva da lei mais

favorável, mas evitando-se - ou, pelo menos, diminuindo-se -, a perturbação daí

resultante para o funcionamento dos tribunais115, uma vez que, sempre que a aplicação

da lei nova implique o confronto entre as duas leis, com a consequente prolação de

nova sentença116, a mesma só terá lugar a requerimento do condenado117.

114 O Tribunal Constitucional, na fundamentação do ac. n.º 164/08, de 5 de Março, sintetizou nos seguintes termos a interpretação da nova redacção do art. 2.º, n.º, 4, do Código Penal: «Em traços largos, e tendo em consideração a diferença de redacção do n.º 4 do artigo 2º do CP, antes e após a entrada em vigor da Lei n.º 59/2007, parece que o legislador quis deixar bem claro que o princípio da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável ocorre “sempre”, haja ou não condenação com força de caso julgado formado sobre a questão jurídico-penal controvertida. Posto isto, no que diz respeito às acções penais em que já exista condenação transitada em julgado, o legislador gizou um sistema dual e articulado que pressupõe: i) por um lado, a aplicação automática da “lex mitior”, mediante a cessação instantânea da execução da pena privativa de liberdade, quando, tendo a nova lei penal de conteúdo mais favorável envolvido uma diminuição do limite máximo previsto na moldura abstracta, o agente já tenha cumprido a pena correspondente a esse limite (cfr. artigo 2º, n.º 4, “in fine”, do CP); ii) por outro lado, a necessidade de reabertura da audiência, nos restantes casos, para efeitos de aplicação de lei penal de conteúdo mais favorável quando o arguido ainda não tenha cumprido o novo limite máximo da pena de prisão aplicável ao crime em causa (cfr. artigo 371º-A do CPP)». No sentido da interpretação defendida no texto veja-se ainda, por exemplo, o ac. Rel. de Lisboa, de 22.01.2008, Proc. 10980/2007-5. Sobre o actual regime, vejam-se, FERNANDA PALMA, «Linhas estruturais da reforma penal», 2008, p. 19; COSTA ANDRADE, “Bruscamente no Verão Passado”, 2009, pp. 78 e segs.; TAIPA DE CARVALHO, Direito Penal, 2008, pp. 195-196; PAULO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código Penal, 2010, pp. 61-62, n.m. 28 e Comentário do Código de Processo Penal, 2011, pp. 954-957; MARIA JOÃO ANTUNES, «Abertura da audiência para aplicação retroactiva da lei penal mais favorável», 2008, pp. 333 e segs.; GERMANO MARQUES DA SILVA, Direito Penal Português, I, 2010, pp. 305-307; CONDE CORREIA, O «Mito do Caso Julgado», 2010, p. 121 e pp. 527-529. 115 Para COSTA ANDRADE, “Bruscamente no Verão Passado”, 2009, pp. 80 e segs., poderá não ser assim, uma vez que a aplicação da lex mitior suscita necessariamente problemas específicos, que não estão presentes na aplicação da lei nova descriminalizadora. Desde logo, “a questão da culpa” há-de compreensivelmente emergir na nova subsunção a reclamar uma nova valoração e a impor um novo juízo» - ibidem, p. 82. 116 Não será assim nos casos previstos na parte final do n.º 4 do art. 2.º do Código Penal, pois nestes o tribunal limita-se a constatar e a declarar a extinção da pena. Como sustenta MARIA JOÃO ANTUNES, «Abertura da audiência para aplicação retroactiva da lei penal mais favorável», 2008, p. 339, poderá ser dispensada a reabertura da audiência quando a mesma se revele desnecessária, o que sucederá sempre que a aplicação da lei mais favorável possa ter lugar mediante um simples confronto entre as duas leis. A nossa jurisprudência encontrava-se dividida sobre a necessidade de reabertura da audiência para aplicação do novo regime relativo à duração máxima da suspensão da execução da pena de prisão, fixado no n.º 5 do art. 50.º do Código Penal. O S.T.J., pelo ac. n.º 15/2009, fixou jurisprudência no sentido de que «A aplicação do n.º 5 do artigo 50º do Código Penal, na redacção da Lei n.º 59/07, de 4 de Setembro, a condenado em pena de suspensão da execução da prisão, por sentença transitada em julgado antes da entrada em vigor daquele diploma legal, opera-se através de reabertura da audiência, a requerimento do condenado, nos termos do artigo 371º-A, do Código de Processo Penal». 117 Daqui resulta que não é possível, nestas situações, nem uma reabertura oficiosa, nem uma reabertura a requerimento do Ministério Público, como decidido, por exemplo, nos acs. Rel. de Coimbra, de 10.12.2008, Proc. 341/03.5TATNV-D.C1, da Rel. do Porto, de 20.04.2009, Proc. 30/06.9PEVNG.

Page 27: Do caso julgado à definitividade da sentença penal

A aplicação do artigo 371.º-A já foi mesmo recusada, «na interpretação

segundo a qual pode o condenado requerer a abertura da audiência para

aplicação de uma nova lei mais favorável apenas para ponderação da natureza

ou medida da pena que não viola o limite máximo abstractamente fixado para a

incriminação, por violação do princípio constitucional de respeito pelo caso

julgado (...)»118. O Tribunal Constitucional, contudo, decidiu, pelo acórdão n.º

164/2008, de 5 de Março, não julgar inconstitucional esta norma, na

interpretação referida, com a seguinte fundamentação: «Quando o legislador

constituinte protege, ainda que indirectamente, a força de caso julgado penal não

visa proteger, de modo abstracto, a confiança de todos nos tribunais, enquanto

órgãos que administram a Justiça em nome do Povo, mas antes visa, de modo

concreto, assegurar que o cidadão acusado e julgado pela prática de um crime

não fica permanentemente sujeito a uma reapreciação da sua responsabilidade

penal. (...) Com efeito, se o propósito constituinte que presidiu à garantia do caso

julgado foi precisamente evitar que o condenado viesse a ter que enfrentar um novo

julgamento, no qual poderia ver agravada a sua situação jurídico-penal, então a

intangibilidade do caso julgado não pode ser invocada em seu manifesto prejuízo, na

medida em que o condenado não sofre qualquer agravação na sua esfera jurídica».

Neste aresto, embora a questão não tivesse sido submetida à apreciação do Tribunal

Constitucional, acrescenta-se ainda que o regime instituído pelo artigo 371.º-A «não

implica uma repetição automática do julgamento já efectuado, antes obrigando a uma

mera reabertura da audiência»119, pelo que não haveria contradição com o decidido no

acórdão n.º 644/98, de 17 de Novembro, do mesmo tribunal. Por outro lado, destaca-

se ainda que o novo regime não implica uma reapreciação de todas as decisões 118 Decisão da 8.ª Vara Criminal de Lisboa, que deu origem ao ac. do T.C. n.º 164/2008, de 5 de Março, no mesmo citada. 119 Criticamente, COSTA ANDRADE, “Bruscamente no Verão Passado”, 2009, pp. 86 e segs., considerando esta visão redutora. Debruçando-se sobre a aplicação da lei nova que altere os pressupostos da suspensão da execução da pena de prisão, situação em causa no aresto, conclui que «as coisas são mais complexas». Ou seja, para o Autor, «a doutrina do Tribunal Constitucional pode, assim, condenar o aplicador do direito a ter de naufragar entre Cila e Caríbdis. Ou a aplicação da suspensão da prisão é equacionada em fidelidade aos fundamentos axiológicos e políticos da figura e então abre-se a porta à esconjurada “enormíssima perturbação”; ou aquela doutrina vale como abertura antecipada à concessão ou recusa antecipada da medida à revelia daqueles fundamentos» - ibidem, p. 88. Para TAIPA DE CARVALHO, Sucessão de Leis Penais, 2008, pp. 326 e segs., o dilema pode ser resolvido mediante a exclusão da aplicação retroactiva da lex mitior quando, tendo sido proferida sentença transitada em julgado, aquela lei apenas proceda à alteração das chamadas “penas de substituição”. Os nossos tribunais, de resto, têm afrontado a questão, como veremos.

Page 28: Do caso julgado à definitividade da sentença penal

anteriores transitadas em julgado, uma vez que a reabertura da audiência só tem lugar

mediante requerimento do condenado120.

A questão da conformidade constitucional da nova redacção do n.º 4 do artigo 2.º

do Código Penal, conjugada com o artigo 371.º-A, viria a ser de novo apreciada pelo

Tribunal Constitucional, na decisão sumária n.º 138/2008, de 27 de Fevereiro, e no

acórdão n.º 265/2008, de 7 de Maio. Neste último, a decisão recorrida havia recusado a

aplicação do artigo 371.º-A, por violação do instituto do caso julgado, em virtude de o

mesmo artigo permitir que o tribunal reaprecie uma decisão fáctica já transitada em

julgado. Deste modo, o Tribunal Constitucional teve oportunidade de se pronunciar

expressamente sobre a legitimidade da nova solução legal, na medida em que da mesma

resulte a possibilidade de produção de prova, a fim de completar a matéria de facto já

assente por decisão anterior transitada em julgado. Ao fazê-lo, veio confirmar o juízo de

não inconstitucionalidade, esclarecendo, em citação da decisão sumária n.º 138/2008,

que as normas constitucionais cuja violação foi invocada na decisão recorrida – entre

as quais se encontrava o artigo 29.º, n.º 5 -, têm «um exclusivo conteúdo de

protecção ou garantia do arguido, não podendo considerar-se violada por uma

norma que se destina, precisa e exclusivamente, a realizar no máximo grau (i.e.

sobrepondo-se ao caso julgado) o princípio da aplicação retroactiva das leis

penais de conteúdo mais favorável ao arguido, consagrado no n.º 4 do artigo 29.º

da Constituição»121.

As alegações de inconstitucionalidade do novo regime legal, em particular

por invocação da violação do instituto do caso julgado, tutelado pela

Constituição, não ficaram sem resposta. TAIPA DE CARVALHO afirma, em

síntese, que esta posição «põe inteiramente de lado a histórica ratio político criminal e

120 Este aspecto do regime legal tem merecido diversas observações críticas. Assim, para TAIPA DE CARVALHO, Sucessão de Leis Penais, 2008, p. 336, considerando que estamos perante um “interesse” público, «uma questão e um princípio político-criminal e constitucional da mínima restrição possível dos direitos e das liberdades fundamentais», a iniciativa deveria constituir dever de ofício a cargo do Ministério Público. Em sentido semelhante, COSTA ANDRADE, “Bruscamente no Verão Passado”, 2009, p. 87: «Se a aplicação retroactiva da lei mais benigna tem por si a densidade axiológica e a urgência político-criminal própria dos princípios directamente decorrentes do étimo de legitimação do direito penal, a sua vigência efectiva não pode ser colocada na disponibilidade do condenado». 121 Este juízo veio ainda a ser confirmado pelo ac. do T.C. n.º 201/2010, de 25 de Maio, que não julgou inconstitucional a norma constante do artigo 371.º-A do Código de Processo Penal, aditada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, quando interpretada no sentido de permitir a reabertura de audiência para aplicação de nova lei penal que aumenta o limite máximo das penas concretas a considerar, para efeitos de suspensão de execução de pena privativa da liberdade.

Page 29: Do caso julgado à definitividade da sentença penal

jurídico-constitucional do princípio ne bis in idem, e “esquece” ou secundariza os

princípios fundamentais – não só político-criminais mas até jurídico-constitucionais –

da máxima restrição da pena e da igualdade»122. Como já afirmava HENRIQUES DA

SILVA, a aplicação retroactiva da lei mais favorável, mesmo depois da prolação de

sentença transitada em julgado, em vez de constituir uma violação do caso julgado

acaba por confirmá-lo, na medida em que reconhece «a sua existência no caso

concreto»123.

A polémica de que se deu conta acaba por ter particular interesse, na medida

em que torna patente a autonomização do princípio ne bis in idem perante o

instituto do caso julgado penal124. Só partindo desta autonomização se pode

compreender que o princípio não podia ser invocado para justificar a ressalva dos casos

julgados constante da anterior redacção do artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, porque o

mesmo constitui uma garantia da paz jurídica do cidadão. A esta luz, seria de todo

contraditório pretender que um direito fundamental do indivíduo pudesse ser invocado

como obstáculo a outro direito fundamental que lhe é atribuído, uma vez que, ainda

admitindo uma possível contradição entre ambos, ocorrendo uma coincidência na

pessoa do seu titular, cabe-lhe em exclusivo a escolha do direito a exercer em cada

momento. Não pode, assim, fundamentar-se a eventual inconstitucionalidade da

solução vigente em matéria de aplicação retroactiva da lei posterior mais

favorável – a qual, como vimos, resulta da conjugação entre os artigos 2.º, n.º 4, do

Código Penal e 371.º-A -, na violação do princípio ne bis in idem. Tal não é possível

porque, estando em causa uma garantia do cidadão, não pode censurar-se uma solução

legislativa que coloca nas suas mãos uma possível renúncia à mesma – admitindo-se,

122 TAIPA DE CARVALHO, Sucessão de Leis Penais, 2008, pp. 339 e segs., procedendo a uma desenvolvida análise crítica da tese da inconstitucionalidade. Como vimos, para o Autor a ratio do instituto, no domínio penal, é a de garantia da segurança individual perante o poder punitivo do Estado – ibidem, p. 284, em síntese. 123 HENRIQUES DA SILVA, Elementos da Sociologia Criminal e Direito Penal, 1905-6, p. 141. 124 Veja-se, em perspectiva semelhante, o ac. para fixação de jurisprudência do S.T.J., n.º 15/2009, no qual, para se avaliar da compatibilidade do regime instituído pelo art. 371.º-A com o princípio ne bis in idem, se distingue entre uma dimensão objectiva e subjectiva do caso julgado. A dimensão objectiva pretende proteger «a segurança e a certeza da decisão judicial, a intangibilidade do definitivamente decidido pelo tribunal», enquanto, na vertente subjectiva, está em causa a «protecção do condenado, defendendo-o contra a possibilidade de repetição arbitrário do julgamento, com dupla punição pelo mesmo crime ou condenação após um julgamento absolutório».

Page 30: Do caso julgado à definitividade da sentença penal

uma vez mais, que o regime vigente implica a sua violação -, de modo a tornar possível

o exercício de outro direito que a Constituição expressamente lhe atribui125.

6. Síntese conclusiva

A resolução destas questões implica sempre, de forma mais ou menos imediata,

a discussão sobre os termos da consagração do instituto do caso julgado, em particular

do caso julgado penal, e respectivo fundamento, em confronto com a dimensão

particular do ne bis in idem. Ou seja, acabámos por cair na discussão sobre a

consagração constitucional de uma dimensão objectiva do caso julgado penal e

sua relação com a garantia individual do ne bis in idem, à luz do seu conteúdo e

da sua medida. Esta análise permitiu-nos concluir que o caso julgado penal é

um instituto fundamental para o processo penal, porque permite colocar um fim

à dúvida que está na sua origem, atribuindo à sentença que a resolve a

necessária definitividade. Se assim não fosse, a sentença não seria sequer susceptível

de execução, frustrando-se a sua finalidade imediata, no caso de o processo terminar

com a prolação de uma decisão final condenatória. Compreende-se, por esta razão, a

afirmação do seu reconhecimento constitucional, ainda que implícito, repetida pela

nossa doutrina e pela jurisprudência constitucional, embora se lhe atribua um valor

relativo. Esta característica da decisão final insusceptível de recurso foi acentuada com a

reacção à provisoriedade da sentença, própria do processo inquisitório. Para tal efeito,

recorreu-se, no essencial, ao instituto do caso julgado, tal como ele era configurado no

processo civil. Compreende-se que assim tenha sido, tendo em conta que o processo

penal ainda não havia logrado a sua plena autonomização. Pode ter sido esta a razão

pela qual, em diversas legislações, não se veio a desenvolver a disciplina do caso julgado

penal, de forma autónoma, o que também acabou por contribuir para o recurso à

aplicação das normas processuais civis que disciplinavam o instituto.

125 Neste sentido, o ac. para fixação de jurisprudência do S.T.J., n.º 15/2009, em cuja fundamentação se exarou: «se a proibição do duplo julgamento pelo mesmo facto visa, obviamente, a defesa do arguido contra a possibilidade de uma condenação após uma absolvição ou de dupla punição pelo mesmo crime, ou seja, tem por desiderato evitar uma injusta administração da justiça, torna-se claro que a aplicação retroactiva da lei penal de conteúdo mais favorável ao arguido, mais não constituindo que a correcção de decisão considerada desajustada, face a posterior/diferente valoração legislativa, em nada colide com a essência da dimensão subjectiva do princípio non bis in idem, com ele se mostrando inteiramente consonante. Acresce que a lei adjectiva penal faz depender a aplicação retroactiva de lei penal mais favorável de pedido do arguido – artigo 371.º-A».

Page 31: Do caso julgado à definitividade da sentença penal

A verdade é que a definitividade da decisão insusceptível de recurso

ordinário assume uma natureza particular no processo penal, com a qual nem

sempre se harmonizam as soluções adoptadas no processo civil126. Não pode

deixar de ser assim, uma vez que, no processo civil, estamos perante duas partes que se

situam em pé de igualdade, pelo que se compreende que as hipóteses de revisão da

sentença transitada sejam as mesmas, sem qualquer distinção entre autor e réu127. Esta

igualdade entre as partes permite que o instituto seja aqui considerado de modo

unitário, como meio de tutela da segurança jurídica, o que implica que sejam limitados

os casos em que é admissível a revisão da sentença transitada em julgado.

No processo penal, pelo contrário, a definitividade da decisão final, se tem

como fundo comum a finalidade prática de garantir a certeza e a segurança

jurídicas, indispensáveis para a obtenção dos seus fins, tem como interesses

prevalecentes a tutela da paz jurídica do arguido128, por um lado, e a

necessidade de se permitir a revisão de sentenças injustas, por outro lado. A sua

consideração unitária não permite ter em conta a necessária compatibilização destes

valores, porque cada um deles convoca uma disciplina jurídica oposta129. A tutela da

paz jurídica do arguido impõe que esta definitividade seja quase absoluta; a

concretização do direito de revisão de sentenças injustas já postula, por outro

lado, a admissão de uma maior prevalência da justiça sobre a segurança

jurídica, com a consequente relativização do seu valor. Esta é, de resto, a solução

que resulta da Constituição, ao consagrar expressamente o princípio ne bis in idem e o

direito de revisão das sentenças injustas, perante uma consagração implícita do valor

relativo da definitividade das decisões transitadas em julgado.

126 Neste sentido, entre outros, CAVALEIRO FERREIRA, Curso de Processo Penal, II, 1986, p. 26; JOSÉ LOBO MOUTINHO, «A aplicação da lei penal no tempo», 1994, p. 108; TAIPA DE CARVALHO, Sucessão de leis penais, 2008, pp. 291 e segs.; RODRIGUES MAXIMIANO, «Aplicação da lei penal no tempo e caso julgado», 1983, pp. 22-23 e p. 35; RUI MEDEIROS, A Decisão de inconstitucionalidade, 1999, p. 600; CONDE CORREIA, O «Mito do Caso Julgado», 2010, p. 162, nota 253 e pp. 254-255, nota 447; LEONE, Manuale di Diritto Processuale Penale, 1988, p. 733 e LEONE, «Il mito del giudicato», 1956, p. 173; DE LUCA, I Limiti Soggetivi Della Cosa Giudicata Penale, 1963, p. 187, ROSALBA NORMANDO, «Limiti alla revisione e intangibilità del giudicato», 1986, p. 855; CORTÉS DOMÍNGUEZ, La Cosa Juzgada Penal, 1975, pp. 14 e segs.; RASSAT, Procédure Pénale, 2010, p. 709; ROGÉRIO MACHADO DA CRUZ, A Proibição de Dupla Persecução Penal, 2008, pp. 30-31. 127 Como destaca JOSÉ LOBO MOUTINHO, «A aplicação da lei penal no tempo», 1994, p. 108. 128 Já neste sentido, DE LUCA, I Limiti Soggetivi Della Cosa Giudicata Penale, 1963, p. 131 e pp. 146-147, acentuando que as soluções particulares do processo penal, em relação ao caso julgado civil, têm precisamente por referência a importância que assume, naquele âmbito, o ne bis in idem. 129 Já neste sentido, FRANCO COPPI, Reato Continuato e Cosa Giudicata, 1969, pp. 288-289.

Page 32: Do caso julgado à definitividade da sentença penal

A autonomização do processo penal perante o processo civil justifica a

existência de soluções específicas que sejam compatíveis com os fins que se pretendem

alcançar130.

Mesmo no que respeita ao efeito executivo da sentença condenatória, existem relevantes

particularidades no processo penal, que não encontram paralelo no processo civil.

Afirma-se, para as destacar, que alguns aspectos da decisão judicial sobre a medida da pena têm

natureza provisória, o que implica que «a própria fase da execução da pena seja, ela própria,

complementarmente funcional em relação à anterior fase da determinação judicial da pena»131. Em Itália,

DANIELA VIGNONO chega mesmo a afirmar que a decisão penal condenatória transitada está sujeita a um

«controlo de qualidade» imanente, susceptível de permitir, em sede executiva, a sua adequação a valores

substanciais132.

Podemos apresentar, como exemplo de possibilidade de alteração da própria decisão transitada em

sede de execução133, o regime instituído pelo artigo 671 do Codice di Procedura Penale134. Este preceito permite

que o juiz de execução aplique135, a requerimento do arguido ou do Ministério Público136, a disciplina jurídica

do artigo 81 do Codice Penale, quando existam várias decisões irrevogáveis137 pronunciadas em processos

130 Aspecto já reforçado por DE LUCA, I Limiti Soggetivi Della Cosa Giudicata Penale, 1963, pp. 129 e segs. 131 Neste sentido, DAMIÃO DA CUNHA, O Caso Julgado Parcial, 2001, pp. 113-115. O Autor exemplifica com o regime da suspensão da execução da pena de prisão, em particular no que respeita à possibilidade de alteração das regras de conduta e injunções. Por seu lado, FIGUEIREDO DIAS, Consequências Jurídicas do Crime, 1993, p. 351, pronunciando-se sobre o regime da modificação dos deveres impostos ao condenado em pena de prisão suspensa na sua execução afirmava que a mesma era possível por estar em causa um caso julgado rebus sic stantibus. O Autor tinha em conta a redacção então em vigor do art. 49.º, n.º 3, do Código Penal. Apesar de apenas prever expressamente esta possibilidade para os deveres impostos, concluía que a mesma solução deveria valer para as regras de conduta. Actualmente, esta possibilidade encontra-se prevista no art. 51.º, n.º 3, para os deveres, e no art. 52.º, n.º 4, para as regras de conduta, em virtude da remissão que contém. Sobre o regime em vigor, falando também de caso julgado rebus sic stantibus, por todos, PAULO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código Penal, 2010, p. 229, n.m. 6. Veja-se ainda CONDE CORREIA, O «Mito do Caso Julgado», 2010, pp. 139-140. No Brasil, por todos, ROGÉRIO MACHADO DA CRUZ, A Proibição de Dupla Persecução Penal, 2008, p. 149, nota 4. 132 DANIELA VIGONI, Relatività del Giudicato ed Esecuzione della Pena Detentiva, 2009, pp. 4-5. 133 Para uma enumeração geral das alterações á sentença transitada que podem ter lugar em sede de execução veja-se DANIELA VIGONI, Relatività del Giudicato ed Esecuzione della Pena Detentiva, 2009, p. 5. 134 Sobre este regime vejam-se, entre outros, VARRASO, Il Reato Continuado tra Processo ed Esecuzione Penale, 2003, pp. 357 e segs; GAITO, «Reato continuato e cosa giudicata nel nuovo processo penale», 1991, pp. 217 e segs.; GUARDATA, in: AA.VV., Commento al Nuovo Codice di Procedura Penale, VI, 1991, pp. 552 e segs.; GIARDA/SPANGHER, Codice di Procedura Penale, II, 2001, pp. 2008 e segs.; CORDERO, Procedura penale, 2006, p. 1230-1231; MARIO ROMANO, Commentario Sistematico del Codice Penale, I, 1995, pp. 726-727, n.m. 46; DANIELA VIGONI, Relatività del Giudicato ed Esecuzione della Pena Detentiva, 2009, pp. 230 e segs. 135 Para o âmbito dos poderes do juiz veja-se GAITO, «Reato continuato e cosa giudicata nel nuovo processo penale», 1991, pp. 232-233. 136 Para GAITO, «Reato continuato e cosa giudicata nel nuovo processo penale», 1991, p. 231, a iniciativa do Ministério Público é obrigatória sempre que da aplicação do art. 81 do Codice Penale resulte a possibilidade de redeterminação da pena. 137 Para a enumeração das «decisões» relevantes veja-se GAITO, «Reato continuato e cosa giudicata nel nuovo processo penale», 1991, pp. 229-230.

Page 33: Do caso julgado à definitividade da sentença penal

distintos contra a mesma pessoa. Em síntese, é possível reconhecer, nos termos deste preceito, post rem

iudicatam, a existência de continuação criminosa ou de concurso ideal de crimes, para efeitos de aplicação das

regras de determinação da medida da pena que constam do artigo 81 do Codice Penale, sempre que o arguido

tenha sido condenado em processos autónomos por factos que integram a continuação, ou que se encontrem

numa relação de concurso ideal138. A lei exige, por outro lado, que os factos integrantes da continuação

tenham sido conhecidos em processos distintos, o que afasta a aplicabilidade deste preceito àquelas situações

em que os factos constituam objecto do mesmo processo139. É ainda necessário, para que possa aplicar-se

este regime, que a existência de continuação criminosa não tenha sido afastada em qualquer uma das

sentenças condenatórias, garantindo-se, nesta medida, o respeito pelo caso julgado a elas inerente140. Deve

ainda acrescentar-se que a decisão proferida por aplicação do artigo 671 do Codice di Procedura Penale não é

irrevogável, uma vez que, por ter lugar em sede de execução, tem a natureza das demais decisões aqui

proferidas, que se caracterizam pela provisoriedade141. Em consequência, a questão pode voltar a ser suscitada

a todo o tempo, com o único limite resultante do artigo 666, 2, do Codice di Procedura Penale142. Este regime

jurídico traduz uma opção de fundo no sentido de se evitar que o arguido seja prejudicado pela circunstância

de os factos que integram a continuação ou que se encontram em concurso ideal terem sido conhecidos em

processos autónomos143.

Por outro lado, a atribuição de relevância, em sede de execução, à existência de continuação criminosa ou

de concurso ideal entre os factos objecto de diferentes processos, com a consequente redeterminação da

pena, significa que a aplicação da disciplina jurídica do artigo 81 do Codice Penale foi considerada prevalecente

sobre a força de caso julgado das sentenças respectivas144, constituindo a consequência de se ter assumido a

plena jurisdicionalização da execução. Por esta razão, está em causa um novo juízo de mérito em sede

executiva145, pelo que o juiz de execução deve poder exercer a jurisdição de modo efectivo e não apenas

aparente, mediante a atribuição dos meios necessários para «recuperar» tudo aquilo que o princípio favor rei

impõe, mas que pela simplificação das formas e pela separação dos procedimentos o juiz da fase declarativa

não pôde aplicar, solução que não pode deixar de ter por consequência a revisão do «culto» da res iudicata146.

138 VARRASO, Il Reato Continuado tra Processo ed Esecuzione Penale, 2003, pp. 361-362, defende a aplicação deste regime, por maioria de razão, à fase declarativa do processo. 139 VARRASO, Il Reato Continuado tra Processo ed Esecuzione Penale, 2003, pp. 369 e segs.; MICHELE GUARDATA, in: AA.VV., Commento al Nuovo Codice di Procedura Penale, VI, 1991, p. 554, concluindo que, por esta razão, a intervenção do juiz de execução tem natureza residual; DANIELA VIGONI, Relatività del Giudicato ed Esecuzione della Pena Detentiva, 2009, p. 236. 140 VARRASO, Il Reato Continuado tra Processo ed Esecuzione Penale, 2003, pp. 372 e segs.; MICHELE GUARDATA, in: AA.VV., Commento al Nuovo Codice di Procedura Penale, VI, 1991, pp. 553-554; DANIELA VIGONI, Relatività del Giudicato ed Esecuzione della Pena Detentiva, 2009, p. 237. 141 GAITO, «Reato continuato e cosa giudicata nel nuovo processo penale», 1991, pp. 233-234. 142 GAITO, «Reato continuato e cosa giudicata nel nuovo processo penale», 1991, p. 234; GIARDA/SPANGHER, Codice di Procedura Penale, II, 2001, p. 2010. 143 GAITO, «Reato continuato e cosa giudicata nel nuovo processo penale», 1991, p. 224. No mesmo sentido, DANIELA VIGONI, Relatività del Giudicato ed Esecuzione della Pena Detentiva, 2009, p. 232. 144 GAITO, «Reato continuato e cosa giudicata nel nuovo processo penale», 1991, p. 219. 145 DANIELA VIGONI, Relatività del Giudicato ed Esecuzione della Pena Detentiva, 2009, p. 231. 146 GAITO, «Reato continuato e cosa giudicata nel nuovo processo penale», 1991, p. 234; MICHELE GUARDATA, in: AA.VV., Commento al Nuovo Codice di Procedura Penale, VI, 1991, p. 553; GIARDA/SPANGHER, Codice di Procedura Penale, II, 2001, p. 2009.

Page 34: Do caso julgado à definitividade da sentença penal

Em síntese, em matéria penal a definitividade da decisão insusceptível de

recurso ordinário, habitualmente designada por caso julgado, impõe a

autonomização, no seu âmbito, das diversas questões que a mesma convoca, ou

seja: o efeito executivo, com as particularidades que a execução da sentença

assume em processo penal; o ne bis in idem; o direito à revisão das sentenças

injustas. Esta autonomização contribuirá para que se tenha presente que os interesses

envolvidos são diversos, pelo que as soluções a que se chega não serão provavelmente

idênticas para cada um destes campos, na medida em que são resultado da apreciação e

da ponderação de fundamentos e interesses específicos. Sem esquecer que estamos já

muito para além do objecto do presente estudo, sempre se poderá avançar que o

caminho percorrido nos permite indicar, como ponto de partida para reflexão futura, as

seguintes linhas orientadoras: a definitividade da sentença insusceptível de recurso

ordinário, sendo imprescindível, porque é necessário que o processo tenha um

fim, o que também permite a execução da decisão condenatória - devendo ter-se

em conta as especificidades que a mesma assume no processo penal -, deve

garantir de modo eficaz a paz jurídica do arguido – o que implica que só em

casos excepcionais deverá ser admitida a sua quebra -, salvaguardando-se ainda

o direito à sua revisão em caso de condenação injusta – o que conduz a uma

relativização da segurança jurídica perante a justiça.


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