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Prólogo

Fernando Morais tinha a intenção de escrever um livro sobre a história da música brasileira contemporânea, com minhas histórias como fio condu-tor. A ideia nunca chegou ao papel. Na noite de 31 de dezembro de 2005, Thomaz Souto Corrêa, amigo querido — a quem já havia contado minha história múltiplas vezes —, me perguntou depois de uma gostosa conversa no Golden Room do Copacabana Palace:

— A história da sua chegada ao Brasil é verdadeira? Ela daria um belo livro. Se você quiser, eu escrevo.

— Claro, Thomaz! Seria um privilégio.Os meses se foram e não encontramos um modus vivendi confortável para

escrever o livro. Mas eu tinha sido mordido por uma ideia: “Você vai escre-ver o livro. Você mesmo! Sim, você mesmo, rapaz.”

Peguei, então, um longo dossiê, com algumas histórias que tinha contado à Heloisa Tapajós, além de uma quantidade de entrevistas que ela, a meu pedido, havia realizado há alguns anos com colaboradores meus, e dediquei, religio-samente, muitas horas a organizar esse material. E assim se passaram 12 meses.

Descobri nesse processo que tinha inventado um maravilhoso companheiro. Que ora me escutava com paciência, ora com irritação pelos equívocos de da-tas ou pela falta de exatidão no relato das histórias. Mas sempre me encorajava a seguir em frente. Escrevi em português, na maioria das vezes. Alguns trechos foram escritos em inglês ou francês, dependendo do lugar em que estivesse.

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Gilda gostava do que lia. Num certo momento, quis ter a opinião de pessoas mais rigorosas. Mandei algumas páginas para Fernanda Torres e An-drucha Waddington, Susana de Moraes, Gloria Kalil, Thomaz Souto Corrêa, Leonardo Neto, Washington Olivetto, Eucanaã Ferraz e Roberto Oliveira. E o retorno foi mais do que reconfortante!

Este livro reúne vários episódios que presenciei ou dos quais participei ao longo de minha vida.

Neste mundo onde tudo é rigorosamente classificado por gêneros, po-deria ter sido lançado e promovido como um livro de autoajuda, com o propósito de enfatizar que tudo na vida é possível quando se tem a sorte de achar a vocação muito cedo, como no meu caso. E, se ela não cair do céu, então é necessário tentar com afinco, descobrir uma usando a intuição e, sobretudo, escutando os sentimentos. Depois é só correr atrás, incansavel-mente, e acreditar na sorte que o destino oferece.

O livro também serve para mostrar que não se deve temer as surpresas que a gente encontra no caminho. Ao contrário, é essencial abraçar tudo que vier, com desejo e volúpia, sendo sempre cabeça-dura — para não perder o foco — e tendo uma intensa vontade de trabalhar.

A leitura será um tanto decepcionante para quem espera encontrar con-siderações intelectuais sobre a música brasileira, revelações sobre as rela-ções mais íntimas que mantive com os que eu chamava orgulhosamente de “meus artistas”, ou projeções a respeito da chamada indústria fonográfica, negócio hoje mortalmente ferido.

Escrevi a história de um homem de negócios e de suas atribulações na realização de suas tarefas; um homem que buscou manter o equilíbrio entre o sagrado (a música) e o profano (o lucro). Escrevi a história de um homem fascinado pela personalidade dos artistas — sem fronteiras culturais ou geográficas.

Escrevi a história de um homem de negócios que, como meu querido amigo Washington Olivetto dizia, trabalhava como uma formiga e se distraía como uma cigarra.

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Primeiras palavras (Em depoimento a Carolina Chagas)

A primeira versão deste livro foi lançada em 2008. Chamava-se Música, ídolos e poder — do vinil ao download e não contava com dois dos capítulos contidos nesta edição: o capítulo 37 e o capítulo 38. Os diretores de cinema Andrucha Waddington e Mini Kerti leram o livro e organizaram, em parce-ria com o canal GNT, uma série de programas de televisão e um documen-tário chamados Do vinil ao download. Abaixo, trechos de um bate-papo de André Midani, personagem central dos programas, com os diretores, grava-dos em uma tarde de verão em Copacabana.

André Midani: Antes de começar esse bate-papo, gostaria de ex-pressar minha gratidão a todos os artistas que aceitaram o convite para participar dos encontros que deram origem aos programas de tevê e ao documentário dirigidos pelo Andrucha e pela Mini. Qualquer palavra seria menor que a alegria que tive em perceber o carinho e, muitas ve-zes, o entusiasmo desses artistas tão talentosos e relevantes para a história cultural deste país em se reunirem na sala de minha casa para falar sobre momentos que vivemos juntos. Minha gratidão a essas pessoas será eterna e sem medidas.

Mini Kerti: Começamos esse trabalho amigos e saímos ainda mais ami-gos. É um sentimento em fase de crescimento.

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André: Tudo começou num jantar em minha casa. Andrucha e Mini me perguntaram, com certa timidez e precaução, se eu toparia trabalhar com eles em um documentário. “Sim!”, respondi na mesma. Tinha plena confiança no trabalho deles, pessoas que conhecia e por quem nutria muito carinho e amor. Tinha certeza de que tudo o que nascesse dessa parceria resultaria em coisa boa.

Mini: Nessa noite, o Andrucha botou a pilha. Tinha falado para o Andru-cha que ele devia filmar o livro do André, a história do André. Uma história muito boa, incrível, única. Ele ficou com isso na cabeça. Acho que Flora e Gil também estavam nesse jantar.

Andrucha Waddington: Não lembro.

Mini: Eles estavam.

André: Vamos supor que eles estavam.

Mini: Adoro. Vamos supor que sim. A Flora entrou na pilha. E o André convidou o Gil para participar das filmagens.

Andrucha: Na verdade, nós fizemos uma primeira filmagem com o [Gilberto] Gil e o Cacá [Diegues] que virou a peça de venda do projeto. Conseguimos vender a ideia para o [canal] GNT, que é co-produtor, e para a Conspiração [Filmes, a produtora]. Formatamos os cinco episódios de aproximadamente uma hora cada e um documentário. Filmamos ao longo de seis meses. Foram nove encontros, sempre na casa do André. Com pes-soas que participaram da vida do André, especialmente ligadas à música. As conversas seguiam uma pauta que a gente desenhava e que era comandada pelo André. A ideia era ter depoimentos espontâneos. Conversas. E o tema era meio definido a partir do grupo reunido. Nesses nove encontros, con-seguimos contar a história do André. Desde sua infância, sua chegada ao Brasil, e sua trajetória na indústria da música. O que ele fez desde a bossa nova até agora.

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André: Passamos pela vivência da guerra. Mas o essencial é a minha chegada ao Brasil. O trabalho retrata com muita felicidade o panorama da música brasileira dos anos 1960 até pouco tempo atrás. Nunca tinha visto artistas gravarem para a televisão com tanto desprendimento, ficou um tra-balho muito original.

Mini: Tinha sempre várias pessoas com instrumentos, cantando. As mú-sicas apareciam espontaneamente. Estavam ligadas ao encontro dos artistas com o André. As pessoas tocavam de improviso. Havia uma descontração entre eles.

Andrucha: Sempre tinha uma refeição.

André: Um vinho...

Andrucha: E a gente gravando o tempo todo. As pessoas chegavam e as câmeras já estavam ligadas. E aí, normalmente, tinha uma refeição. E uma conversa antes e uma conversa depois da refeição que sempre descambava para música.

André: Andrucha e a Mini trouxeram para o documentário uma quali-dade técnica extraordinária.

Andrucha: Tínhamos de três a oito câmeras. No dia que foram Gil, Jor-ge Ben [Jor], Arnaldo [Antunes], Marisa [Monte] e Dadi [Carvalho], tinha oito câmeras. O dia do rock também. Foram os dias com mais convidados. Precisávamos cobrir todos os movimentos dos presentes.

André: Foi, por exemplo, a primeira vez depois de muito tempo que Gil e Jorge se reencontraram. Eles deram uma repassada em dois álbuns que são muito importantes na carreira desses dois artistas: Gil & Jorge e A tábua de esmeralda. Fazia tempo também que Caetano e Gil não cantavam em família. Os dois fizeram isso de novo durante as filmagens desse do-cumentário.

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Andrucha: Nosso objetivo como diretores era desparecer e criar um ambiente para que a conversa acontecesse de maneira natural. Nosso ob-jetivo era fazer com que o espectador se sentisse dentro daquela sala, ou-vindo aquelas músicas. Não fizemos nenhuma interferência durante as fil-magens. Tínhamos uma conversa prévia e só. A partir daí a conversa seguia espontaneamente. É uma forma rara de fazer documentário aqui no Brasil. Não sei se única, mas rara. Ficou um produto muito legal. Com muita personalidade. Graças ao André. O André é o catalizador desses talentos. O fato de ele ter trabalhado com toda essa gente e as pessoas terem muito carinho por ele fez com que tivéssemos o privilégio de participar dessa história. Ir para a filmagem não era um trabalho. Era: “Oba! Semana que vem tem filmagem!”

André: A conjunção de nós três foi muito proveitosa. Tenho essa apro-ximação com os artistas, mas, se não tivesse o gênio desses dois, o produto ficaria muito formal.

Mini: É raro as pessoas fazerem um documentário sobre alguém que não é um artista. O André não é exatamente um artista.

Andrucha: Ele é um business man.

Mini: Quando mostramos o material para um amigo nosso, editor, ele confessou que estava muito preocupado com como o André ia se com-portar. Se ia parecer natural, interessante. Se ele ia falar bem. Se a voz dele ia funcionar. Tem gente que fala e tem uma voz muito aguda, o que prejudica a compreensão. Há várias coisas que podem acontecer e com-prometer o entendimento do objeto filmado. Quando lidamos com um artista, sabemos como ele fala, como ele se comporta, o carisma que ele tem. O André era uma incógnita. E tivemos duas surpresas boas em relação a esse receio: 1) Ele é uma pessoa super carismática no vídeo. As histórias dele são ótimas. 2) A forma com que o André se relaciona com os artistas é muito original. Ele é um homem de negócios. Que trata de arte como negócio, que lida com o negócio da cultura da música. Esse é o pulo do

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gato do documentário como um todo. Claro que os artistas estão ali. Tem encontros incríveis. Mas você saber a história da música popular brasileira, que tem essa projeção no mundo inteiro, através do olhar do homem de negócios, é muito único.

Andrucha: O documentário tem dois pilares narrativos. O ponto de vista do André em si, da infância dele até os dias de hoje. E a história da música brasileira dos anos 1950 até os dias de hoje. Na verdade, ele é a peça fundamental. No último episódio que editamos, depois de ele sair da War-ner, ele apresenta o Jorge Ben ao Arnaldo. Ele faz uma série de pontes que alteraram os rumos da música mesmo ele não sendo mais um executivo. O que gera o conteúdo de cada episódio é o assunto em questão. Na edição, misturamos os encontros. O primeiro episódio é a trajetória do André antes do Brasil e a bossa nova. O segundo episódio tem o final dos anos 1960 e início dos 1970. É quando falamos da ditadura, do exílio, como se produziu tanta coisa embaixo de tanta tensão. Como estava a situação da música neste momento. O terceiro são os grandes álbuns organizados pelo André, o Gil & Jorge, o A tábua de esmeralda e outros mais, Araçá Azul e outros discos que o Caetano lança depois. Aí vem o BRock. O André teve um papel central no lançamento do Rock Brasil. O quinto episódio é uma conclusão. A chegada do MP3, ele reunindo o Arnaldo e o Jorge Ben, como está a música hoje. É um fechamento, uma conclusão do que aconteceu nesses 60 anos.

André: Participaram também das gravações não-músicos. Tivemos um módulo com Fernanda Montenegro, Boni [José Bonifácio de Oliveira So-brinho, ex-executivo da Rede Globo], Daniel Filho e Washington Olivetto. Nesse dia não teve música.

Andrucha: A Moema [Pombo] fez um trabalho brilhante de montagem. É um trabalho de costura. Pegar esse material todo e ordenar por assunto. Foram cinco meses de montagem. E nove encontros no decorrer de seis meses. Os encontros eram marcados com um mês e meio, dois meses de antecedência. Tinha muita gente envolvida. Tinha muita agenda de artista a

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ser bloqueada. Quase todos os encontros foram segunda ou terça-feira, dia que o artista está descansando.

André: Houve assuntos que causavam uma certa preocupação, como o da Bossa Nova. Muitos dos personagens citados já não estão mais com a gente. E os que estão, já não têm mais 40 anos, né? Existia ali um perigo da coisa ficar tristemente saudosa.

Andrucha: Melancólica.

André: Mas não ficou.

Andrucha: Não tem melancolia nem nostalgia. O André emana isso. Ele não é uma pessoa nostálgica. Outra pessoa que ajudou a excluir a possibili-dade de nostalgia foi o Gil. Ele foi a três módulos. Gil talvez seja o grande parceiro artístico do André. E os dois, tanto André quanto o Gil, não têm nada de nostalgia.

André: Gil e eu trabalhamos juntos faz 37 anos. Aqui e agora é o lugar dele.

Mini: Gilda [Midani, mulher de André] também foi super importante. Ela foi o elo harmonioso de tudo. Sempre de bom humor, ajudando em tudo, deixando o ambiente agradável. A casa bonita.

André: A casa é um personagem da história. É onde tudo acontece.

Andrucha: A opção por uma locação única foi muito feliz.

Mini: Tomamos o cuidado de ter cenas de noite e de dia.

André: A casa era tão importante que houve um primeiro ensaio de título para o programa que era “Na mesa com Midani”.

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Andrucha: “Na mesa com Midani”, “Na casa do Midani”, “Na casa do André” foram títulos cogitados. Acabou que nenhum vingou. O título fi-cou André Midani: do vinil ao download. Ele viu realmente a indústria toda se modificar. Ele passou por tudo isso.

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Capítulo 1

A tarde estava quente na chegada ao aeroporto da Cidade do México. As filas de espera para enfrentar o controle dos passaportes seguiam lenta-mente. Quando chegou a minha vez, estava lá uma senhora da Polícia Fe-deral, com o uniforme impecável. Ela me olhou, como certamente já tinha olhado para centenas de passageiros — com um ar cansado, pensando que, à noite, iria voltar para casa, preparar o jantar, cuidar das suas muitas crian-ças e dormir, como toda mulher mexicana, ao lado de seu homem fre-quentemente bêbado. Olhou a capa de meu passaporte, abriu as primeiras páginas, leu com atenção e perguntou se eu tinha um visto de entrada no país, ao que mostrei meu green card americano, que me permitia ingressar no México sem visto. Em seguida, perguntou de onde eu estava chegando e o que me levava à Cidade do México. Checou outra vez meu passaporte com atenção, levantou a cabeça, tirou os óculos e olhou em minha direção.

— O senhor vem de onde, da Colômbia? — De Bogotá. E de Medellín, também. — Hum-hum. E o senhor está passando pelo México... — Sim, senhora.— O senhor trabalha em quê?— Trabalho com discos e música.— Sei. E, com um sorriso malicioso, encerrou o interrogatório:

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— Olhe, meu senhor, uma pessoa nascida na Síria, com passaporte bra-sileiro, que mora em Nova York, que vem de Medellín e passa pelo México, que diz trabalhar com música e que fala espanhol com sotaque francês não pode ser uma pessoa confiável.

Ela, então, carimbou meu passaporte, me olhou outra vez e disse:— Pues bienvenido y divirtase en nuestro país y que le vaia bien.1

Esse estranhamento começou já nos meus primeiros dias de vida, visto que, “ao todo”, me chamo André Calixte Haidar Midani. Não sei como apareceu o nome “André”, uma vez que não existe registro desse nome em nenhum documento meu de qualquer cartório, de país algum. E não me passou pela cabeça perguntar à minha mãe — a ela se pergun-tava pouco porque raramente se obtinha resposta. Porém, o pior foi que “André” grudou indelevelmente. As pessoas costumavam me chamar de Dédé, diminutivo de André, apelido que sempre odiei, desde a infância:

— Dédé, vem pra cá!— Dédé, ajuda aí! — Dédé? Que nome estranho para uma menina tão bonita! — disse, um

dia, uma florista, já que minha mãe me penteava “à la Shirley Temple”.Um dia, bem mais tarde, mexendo num baú de papéis, descobri, com

surpresa, no meu registro de batismo, que eu também me chamava Calixte. E olha que não fui batizado numa igrejinha qualquer! Fui batizado na digna e elegante catedral Notre-Dame de Paris. Esse nome, Calixte, não colou, pois ninguém jamais ousou usar nome tão esquisito. O nome Haidar, este sim, consta oficialmente em todos os meus documentos, pois foi com esse nome que meu pai e o governo sírio oficializaram minha entrada neste mundo. Claro que me deram, no transcurso da vida, outros nomes. Alguns simpáticos, como “Mimi de Villegagnon”, “Chefe Patropi” e outros menos agradáveis. Isso sucedia ao bel-prazer dos acontecimentos ou das pessoas que gostavam ou não de mim. Porém, foi Otto Lara Resende que deu, a meu ver, o nome mais adequado e mais pertinente: “André, o do disco”.

Pois do disco fiz a minha vida e, simbolicamente, nasci com o vinil e me aposentei com o download.

1 Pois seja bem-vindo. Divirta-se em nosso país e que tudo corra bem.