Transcript

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

DOCÊNCIA NA EDUCAÇÃO INFANTIL E ANOS INICIAIS:

O CUIDAR/EDUCAR NA PERSPECTIVA DO MASCULINO

Tamara Piazzetta

RESUMO

Este estudo tem como objetivo compreender as implicações para o masculino que atua na docência da Educação Infantil

e Anos Iniciais, espaço de predominância da feminização. Atualmente tende-se a ter um número reduzido de docentes

do sexo masculino, principalmente no que se refere aos níveis da Educação Infantil e Anos Iniciais, o que desperta para

a relevância da análise do masculino que busca atuar nesse espaço. Pretendeu-se abordar a temática do masculino e sua

relação com o cuidar/educar, aspectos que orientam a atuação docente junto à infância. O masculino nesse contexto, ao

exercer uma profissão considerada feminina, personifica o conflito da expectativa social. Quando escolhe a docência, o

masculino passa a ser questionado pelo social, principalmente em dois aspectos: sua capacidade profissional e sua

orientação sexual. O docente masculino é atravessado pelas polarizações (feminino/masculino;

heterossexual/homossexual) e, ocupando um dos polos, tende a ser julgado como incapaz para atuar na docência.

Utiliza-se como metodologia de pesquisa a narrativa autobiográfica de docentes que atuam na Educação Infantil e Anos

Iniciais em municípios da Serra Gaúcha, Brasil. A pesquisa permite considerar que há lacunas entre o reconhecimento

das questões de gênero que atravessam a atuação docente do masculino e as alternativas para transformar essa realidade.

Palavras-chave: Educação. Cuidar/Educar. Masculino. Relações de Gênero.

1 INTRODUÇÃO

Historicamente, a passagem da hegemonia masculina para a feminina na docência relaciona-

se a aspectos econômicos, culturais e sociais. Entretanto, a Educação Infantil e os Anos Iniciais

seguem trajetórias diferentes dos demais níveis de ensino, pois desde o surgimento são entendidos

como espaço do feminino. Diante disso, este estudo tem como objetivo refletir sobre as implicações

para o masculino que atua na docência da Educação Infantil e/ou Anos Iniciais, espaço de

predominância da feminização.

Atualmente tende-se a ter um número reduzido de docentes do sexo masculino,

principalmente no que se refere aos níveis da Educação Infantil e Anos Iniciais, o que desperta para

a relevância de se analisar as implicações para o masculino que busca atuar nesse espaço. Neste

estudo pretendeu-se abordar a temática do masculino e sua relação com o cuidado, aspecto que

orienta a atuação assistencialista da Educação Infantil em seus primórdios.

Partindo do pressuposto de que as formas de fazer educação são tão múltiplas quanto são os

sujeitos nelas envolvidos, entende-se como necessário problematizar a polarização

feminino/masculino na educação para que, como refere Sayão (2005, p. 60), “possamos dar

visibilidade à pluralidade no interior de cada um dos pólos”.

A partir destas perspectivas, o estudo pretende abordar as questões vinculadas ao masculino

2

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

na docência na Educação Infantil e nos Anos Iniciais, retomando um breve histórico do surgimento

dessa modalidade escolar e suas relações com o feminino e o masculino, e posteriormente, trazendo

alguns aspectos relacionados à escolha e a permanência do masculino na sala de aula.

2 EDUCAÇÃO INFANTIL E ANOS INICIAIS COMO ESPAÇO DA DOCÊNCIA

FEMININA

Conforme Carvalho (1998, p. 77), “a escola transita entre o espaço masculino do saber

científico técnico-racionalista e a docilização materna”. Neste contexto de circulação de saberes,

seria esperado que houvesse ampla e aberta discussão sobre as relações de gênero, mas o que

acontece na maioria das situações é a repetição de modelos socialmente postos.

A escola, enquanto espaço do social, replica seus modelos e preconceitos. Numa sociedade

na qual as profissões são divididas entre masculinas e femininas, parece natural o lugar que a

mulher ocupa na docência, principalmente àquela ligada às crianças pequenas.

A mudança da predominância masculina para a feminina ocorre em todos os níveis da

educação a partir do século XIX, devido às condições de trabalho precárias, baixos salários e a

estratificação sexual da carreira docente (VIANNA, 2002). Outros aspectos que favorecem essa

mudança são discursos que apontam os homens como moralmente inadequados para educar as

meninas, ou então como “incapazes” de ter a “sensibilidade feminina” necessária para cuidar das

crianças (CUNHA, 2012).

Entretanto, no que se refere à feminização da docência, a Educação Infantil segue trajetória

diferente dos demais níveis de ensino, pois desde o seu surgimento é entendida como espaço do

feminino (CAMPOS, 1994). A Educação Infantil surge como um meio assistencialista de garantir

que as mulheres estivessem disponíveis para o mercado de trabalho. Dessa forma, a instituição

deveria oferecer, aos filhos das trabalhadoras, cuidados semelhantes aos maternos (SOUZA, 2010).

O enfoque da Educação Infantil no cuidar/educar4 surge como alternativa para suprimir as

desigualdades sociais que também se apresentavam no contexto escolar. As diferenças entre o foco

assistencialista (voltado às camadas mais pobres) e a função pedagógica da creche (no caso das

classes mais ricas) estariam implicitamente resolvidas a partir da nova abordagem (CAMPOS,

1994; SAYÃO, 2005).

Para Vianna (2002) atividades profissionais vinculadas ao cuidado, são implicitamente

atreladas ao feminino, seja pela visão de uma responsabilidade natural ou como resultado da

4 O termo (utilizado desta forma por Sayão, 2005) refere-se a uma das diretrizes da Política Nacional de Educação

Infantil. O documento descreve que “as particularidades desta etapa de desenvolvimento exigem que a Educação

Infantil cumpra duas funções complementares e indissociáveis: cuidar e educar, complementando os cuidados e a

educação realizados na família ou no círculo da família.” (MEC, 1994, p. 17)

3

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

socialização das mulheres. Diante disso, o universo escolar permanece atrelado ao feminino, tendo

“na mulher e na maternagem seu ponto de ancoragem” (CARVALHO, 1998, p. 71). A associação

quase que obrigatória entre o feminino e o materno acaba por embaralhar também a influência do

feminino na docência, por vezes “fazendo com que o discurso pedagógico seja um espelhamento do

discurso materno” (FRANCO, 2010, p. 68). Para a autora, este movimento surge da necessidade de

validar o lugar e o saber do materno, restringindo a educação ao que vem do feminino.

3 O MASCULINO E A DOCÊNCIA

De acordo com as reflexões de Louro (1997), por um lado, a escola pode ser vista como

feminina pelo seu caráter relacional afetivo semelhante ao familiar; por outro, ela também é

masculina, pois mesmo que as educadoras possam ser mulheres, elas reproduzem o conhecimento

historicamente oriundo do masculino.

Em seus primórdios, a educação surge como um espaço do/para o masculino, pois os

primeiros educadores eram homens que tinham a função de educar os meninos sobre o

conhecimento construído por outros homens. Segundo Louro (1997, p. 92) “o mestre que inaugura a

instituição escolar moderna é sempre um homem; na verdade é um religioso”. Essa condição dá

origem à visão da docência como um caminho vocacional, combinado ao papel de paternidade que

os religiosos só poderiam exercer por meio da docência.

A partir da imagem de um “mestre exemplar”, que era referência tanto por seus saberes,

quanto por ser “um modelo a ser seguido” (LOURO, 1997, p. 92), é que se constituem as bases da

escola moderna. Neste contexto, iniciam-se os movimentos para a igualdade de instrução para

meninos e meninas, mesmo que no princípio houvesse a segregação por gênero: homens ensinavam

os meninos; mulheres ensinavam as meninas; currículos, objetivos e avaliações eram distintos para

eles e elas.

Com as transformações econômicas, culturais e sociais, o masculino vai gradualmente

migrando para outros espaços, deixando uma lacuna que passa a ser ocupada pelas mulheres, seja

pela escassez de alternativas de trabalho ou pela possibilidade de ascensão que o ambiente escolar

poderia proporcionar ao feminino na época. Eugênio (2010, p. 01) refere que a feminização docente

não é somente “a presença maciça das mulheres nos quadros docentes, mas a adequação do

magistério às características como cuidado, associadas historicamente ao feminino”.

No contexto atual, conforme refere Rabelo (2013, p. 909), “o professor homem torna-se um

corpo estranho nas séries iniciais do ensino fundamental”, o que não se apresenta de forma distinta

na Educação Infantil, pois “a chegada de um homem num espaço dominado por mulheres e

supostamente feminino produz uma sensação de deslocamento, desconfiança e incômodo”

4

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

(SAYÃO, 2005, p. 66). O masculino nesse contexto, ao exercer uma profissão considerada

feminina, personifica o conflito da expectativa social, além de indicar as “exceções aos padrões de

gênero ou tentativas de reafirmação de sua masculinidade” (RABELO, 2013, p. 911).

Quando escolhe a docência, o masculino passa a ser questionado pelo social, principalmente

em dois aspectos: sua capacidade profissional e sua orientação sexual. Ao contrário das professoras,

o docente masculino é atravessado pelas polarizações (feminino/masculino;

heterossexual/homossexual) e, ocupando um dos polos, tende a ser julgado como incapaz para atuar

na docência.

Rabelo (2013, p. 916) refere que os professores são assinalados pelo preconceito, quando

demonstram “características femininas e são considerados homossexuais (logo, maus exemplos que

não podem dar aulas para crianças)” e quando se questiona sua capacidade, por apresentarem

“características masculinas (que não são boas para o ofício)”.

Para Sayão (2005, p. 216) “no magistério, especialmente na docência com crianças

pequenas, o ideal de ser reconhecido como homem pressupõe certas provas e contra provas”. Neste

quadro, características socialmente consideradas femininas – como afeto, sensibilidade, paciência,

entre outras – não podem ser apresentadas pelo masculino, sob o risco de se questionar a própria

masculinidade.

Além disso, o masculino é demarcado no espaço escolar pelo medo de uma sexualidade que

“não pode” ser exposta no ambiente público que é a escola. Essa crença faz com que se evite que o

homem, entendido como sexualizado, seja inserido neste locus, e a mulher seja a escolhida, por ser

considerada como assexuada, assim como as crianças (RABELO, 2013).

Carvalho (1998, p. 423) assinala que a presença do masculino na escola pode despertar para

a ampliação e quebra de paradigmas, entretanto às vezes “parece que seu comportamento acaba por

reforçar, ao menos em parte, estereótipos a respeito da masculinidade e do professor homem”. De

qualquer forma, a masculinidade presente (ou ausente) no contexto escolar tende a repercutir tanto

nos profissionais, quanto nas crianças e seus familiares, pois é a possibilidade de provocar

mudanças nas experiências por eles vivenciadas (SAYÃO, 2005).

Ao apontar estudos sobre a questão de gênero na docência, Souza (2010, p. 29) refere que

“os discursos são consensuais ao defenderem a participação masculina na educação infantil”. A

autora questiona, entre outras coisas, se o homem deve modificar-se para adaptar-se ao universo da

docência feminina ou se é a própria docência que precisa rever seus modelos, considerando que o

modo como o masculino se insere no espaço pode trazer limitações, ao mesmo tempo em que novas

perspectivas são possíveis quando ele se faz presente neste contexto (SOUZA, 2010).

De acordo com Tardif (2014, p. 244), “seremos reconhecidos socialmente como sujeitos do

5

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

conhecimento e verdadeiros atores sociais quando começarmos a reconhecer-nos uns aos outros

como pessoas competentes, pares iguais que podem aprender uns com os outros”, ou seja, as

mudanças se tornam possíveis a partir do reconhecimento pessoal acerca da própria atuação

profissional, e por consequência, da valorização do lugar do outro em sua atuação.

4 TRANSITORIEDADES ENTRE O MASCULINO E O FEMININO

Sayão (2005, p. 07) aponta que “a concepção de profissão feminina precisa ser repensada

porque qualquer noção sobre as mulheres implica necessariamente suas relações com os homens”.

Compreendendo as questões de gênero como a relação entre os diversos atores, suas crenças e seus

contextos, torna-se imprescindível questionar o lugar que o masculino ocupa ou aparentemente

deixa de ocupar no que se refere à Educação Infantil e aos Anos Iniciais.

No que se refere ao papel do masculino nos cuidados parentais, em geral nota-se o

distanciamento da figura paterna, que se torna coadjuvante às funções primordialmente exercidas

pelas mães. Soma-se a isso o contexto social e político do Brasil, que não favorece sua participação:

por exemplo, às mães é destinada a licença maternidade de seis meses, enquanto aos pais oferecem-

se meros cinco dias de licença paternidade. Em outros países5, as políticas de licença

maternidade/paternidade são diferenciadas, mas na maior parte deles ainda favorecem as mães em

detrimento dos pais (SOUZA, 2010).

Carvalho (1998, p. 417) refere que “a feminilidade e atitudes maternais e de cuidado têm

sido tomadas como opostos de disciplina, controle e masculinidade”. É na contrariedade que

distancia o masculino do cuidado que se encontram os sujeitos alvo deste estudo, homens que

assumem o papel de cuidado associado à educação.

Conforme aponta Sayão (2005), o cuidado pode apresentar duas perspectivas opostas: o

“sagrado” – atrelado a valores universais de sobrevivência da espécie – e o “profano” – vinculado

ao corpo e ao afeto. Segundo a autora, é a segunda perspectiva que confere ao cuidado o caráter de

tabu, gerando supostos impedimentos para que o mesmo seja executado pelo masculino,

considerado como ameaçador.

O cuidado, entendido no seu sentido amplo, envolve as questões corporais/físicas, afetivas e

sociais, sendo requisito primordial para a existência sadia de qualquer ser humano, e por isso não

pode estar dissociado da educação (CAMPOS, 1994; GIBIM; LESSA, 2001). Em função disso, o

cuidado não é necessariamente uma atribuição inata do feminino, mas um processo que pode e deve

ser aprendido por todos, pois “assim como as mulheres, não só os homens aprendem a cuidar, mas

5 De acordo com Faria (2002), o primeiro país do mundo a transformar a licença maternidade em um modelo em que

mãe e pai fossem beneficiados, foi a Suécia em 1974. Desde então, vários países têm adotado a licença compartilhada,

auxiliando no combate à discriminação sexual após o parto.

6

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

homens diferentes cuidam de formas diferentes e mulheres diferentes cuidam de formas diversas”

(SAYÃO, 2005, p. 167).

A autora ainda refere que “o gênero não é o único demarcador das práticas, sejam elas

concebidas como cuidado ou como educação” (SAYÃO, 2005, p. 183) e que neste processo surgem

“as diferenças entre concepções de criança, infância e papel da Educação Infantil como definidora

de posturas e ações pedagógicas na instituição” (idem). Pode-se inferir que, a partir dos valores

socialmente construídos, que determinam aos sujeitos o que é adequado ou não, tende-se a restringir

ou ignorar outras possibilidades de atuação.

5 MATERIAIS E MÉTODOS

Por meio do delineamento qualitativo, utilizou-se a pesquisa exploratória sobre a temática,

visando identificar as repercussões para o masculino que atua na Educação Infantil e Anos Iniciais

do Ensino Fundamental.

Num primeiro momento, procedeu-se a busca pelos sujeitos da pesquisa em instituições de

ensino localizadas na região da Serra Gaúcha, contatando as Secretarias Municipais de Educação e

solicitando que indicassem escolas que possuem homens atuando junto à Educação Infantil ou Anos

Iniciais.

Foram identificados dois sujeitos, um Auxiliar de Educação Infantil e um Pedagogo atuando

na região. Os sujeitos têm faixa etária média de 35 anos e ambos trabalham em mais de um local e

função. Foi realizado o contato com os mesmos, informando sobre o estudo e convidando-os a

participar da pesquisa. Agendou-se com cada sujeito individualmente, em horário que julgasse mais

adequado, para a apresentação do questionamento.

A coleta de dados ocorreu por meio de narrativa autobiográfica (SCHÜTZE, 2011), na qual

os sujeitos foram convidados a descrever, em forma de autobiografia, o que os levou a escolher a

profissão e como se percebem na profissão atualmente. A narrativa foi coletada por escrito, e para

tal foi disponibilizado duas folhas de ofício e uma caneta. Também foi solicitado que atribuíssem

um título e assinassem ao final da autobiografia. Cada participante assinou o Termo de

Consentimento Livre e Esclarecido.

Optou-se pelas narrativas, pois elas “permitem ao pesquisador abordar o mundo empírico até

então estruturado do entrevistado, de um modo abrangente” (FLICK, 2009, p. 164). Além disso,

conforme Schütze (2011), as narrativas biográficas são uma boa forma de coletar dados em

Ciências Sociais, pois podem trazer dados de ciclo de vida dos grupos de interesse da pesquisa.

6 ANÁLISE DOS DADOS

7

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

Para fins da análise de dados, serão apresentadas as narrativas autobiográficas dos dois

pesquisados, num primeiro momento de forma individual, de modo a apontar as reflexões

desencadeadas por cada uma delas e, posteriormente, a comparação contrastiva entre as narrativas,

demonstrando as aproximações e as discrepâncias entre os resultados encontrados.

6.1 Um Estranho no Ninho

Jack6 descreve em sua autobiografia alguns dos motivos pelos quais optou por trabalhar com

crianças. Conforme ele, o fato de não ter filhos e o tempo disponível foram os principais motivos

para esta escolha. O pesquisado também descreve que uma vivência de estágio7 anterior ao cargo

exercido despertou seu interesse pela área, pois se percebeu aceito pelo contexto. Ele relata que,

após ter atuado nas diferentes faixas-etárias da Educação Infantil, prefere atuar no Berçário I, onde

está atualmente.

O primeiro ponto de análise trata-se do título atribuído a autobiografia, “Um Estranho no

Ninho”, expressão popular que descreve uma pessoa ou coisa que se encontra em um local ao qual

não pertence. Supõe-se que a expressão tenha origem no comportamento de algumas espécies de

pássaros, como os cucos, que depositam seus ovos em ninhos de outras espécies, sendo o filhote

criado por outra família, numa forma de parasitismo.

A utilização desta expressão carrega significados múltiplos, que podem ser relacionados ao

foco do estudo. Pensando no masculino atuando na Educação Infantil, pode-se entender que o

sujeito se reconhece como o “estranho no ninho”, aquele que se encontra em um espaço ao qual não

pertence, já que a predominância é do feminino.

Por outro lado, ao ocupar esta posição, atua como o “pássaro” que cuida de filhotes que não

são seus, como um “pai adotivo”, ao invés de ser o “filhote intruso”. Essa suposição tem

consonância com o que Jack articula como um dos “indicadores (sic)” da sua opção pelo trabalho

na Educação Infantil, que vem da “necessidade natural de lidar com crianças, pelo fato de eu ainda

não ter filhos, pois eu e minha esposa temos problemas patológicos de infertilidade (sic)”.

Pode-se cogitar que o desejo de ter filhos, a expectativa social para tornar-se pai e pertencer

ao grupo dos homens com filhos o conduzem a uma resolução para superar (integral ou

parcialmente) suas dificuldades com as questões biopsicossociais relacionadas à infertilidade. Outro

trecho da autobiografia reforça esta ideia: “me equilibro com os bebezinhos, tanto pela minha

necessidade e sonho de poder ter um, e ser chamado de pai (sic)”. O papel profissional atrelado à

paternidade retoma a atuação dos religiosos que, impedidos moralmente de gerarem descendentes,

6 Nome fictício, escolhido em referência ao ator Jack Nicholson, que interpretou o personagem principal no filme norte-

americano “One Flew Over the Cuckoo's Nest” (1975), cujo título no Brasil é “Um Estranho no Ninho”. 7 O pesquisado cursava Pedagogia, curso que não concluiu até o momento.

8

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

exerciam a docência como uma visão paternalista (LOURO, 1997).

Jack refere que uma experiência como estagiário foi importante para despertar seu interesse

pela atuação na Educação Infantil: “fiz um estágio de dois anos num CEACRI centro de

atendimento a crianças de baixa renda, e aí vi que fui aceito pelas crianças e direção e colegas da

entidade (sic)”. Ao que parece, Jack partiu de uma expectativa de não aceitação do masculino no

espaço educacional, mas deparou-se com o oposto disso, o que alimentou ainda mais seu desejo por

atuar neste contexto. A aceitação social do masculino na Educação Infantil é um ponto reforçado

por Jack, sobre o qual refere que atualmente se percebe “como uma pessoa socialmente aceita (...)

para esta atividade (sic)”.

Por fim, o fato de Jack optar pela Educação Infantil, principalmente com atuação junto ao

Berçário I pode estar associado à crença de assexualismo da criança pequena: “vejo os recém-

nascidos mais puros e menos contaminados pelo meio (pais e sociedade) (sic)”, salienta ele. Outra

reflexão possível a partir desta fala está ligada aos pré-conceitos vindos do contexto social, pois

mesmo sem ter relatado uma experiência discriminatória, o pesquisado supõe que poderia ser

julgado ou discriminado pelas crianças maiores.

6.2 Minha Vida Feliz

Para Mark8, a escolha da carreira docente reflete realização pessoal e profissional, pois “tudo

o que tenho hoje, eu conquistei dando aula (sic)”. Sua trajetória profissional iniciou pelo

Magistério, na busca concomitante por duas licenciaturas (Pedagogia e Educação Física), e

continuou em especializações e no Mestrado em Educação. No momento Mark encontra-se em

seleção para o Doutorado, o que reflete o desejo de contínuo aperfeiçoamento.

Sobre a escolha profissional, Mark relata que houve influência do contexto familiar: “a

docência permeou a minha infância uma vez que sou filho de professora e a minha irmã mais velha

divide comigo a missão de educar (sic)”. Para ele, as vivências da mãe e da irmã despertaram a

curiosidade pela profissão. Observa-se que o interesse provém de vivências femininas da profissão,

o que não impediu que Mark desejasse e construísse suas próprias vivências enquanto masculino na

carreira docente.

Outro ponto evidenciado pelo pesquisado é a ideia de educar como uma missão, o que se

pode relacionar à origem religiosa da escola moderna e ao lugar do professor com caráter

vocacional (LOURO, 1997).

Para Mark foi o contato com a Educação Infantil, na qual atuou por 10 anos, que o “tornou

8 Nome fictício, escolhido em referência ao professor Mark Thackeray, personagem principal no filme britânico “To

Sir, with Love” (1967), cujo título no Brasil é “Ao Mestre com Carinho”.

9

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

de fato um homem com sentido (que deu sentido a minha profissão) (sic)”. Ele relata essa

experiência como essencial, apesar de ao longo da trajetória ter vivenciado um momento de

desconforto por estar atuando nesta faixa escolar. Sobre isso, ele apenas refere que foi um momento

pontual, e que ao retornar entendeu que precisava do contato com as crianças: “estar com as

crianças me traz vida (sic)”.

Atualmente, o pesquisado concilia diferentes trabalhos, entretanto todos ligados à carreira

docente. Ele leciona para o 4º ano, é professor de Educação Física e também docente em curso de

Graduação. Sobre essa variedade, ele diz que as “atividades profissionais se contemplam, me

complementam (sic)”. Mais uma vez demonstra o movimento de aperfeiçoamento e de autodesafio.

6.3 Caminhos que se cruzam: a comparação contrastiva

Jack inicia sua escrita elencando os motivos que o levaram a trabalhar com crianças, relata

vivências na educação anteriores ao cargo que ocupa, as percepções sobre a profissão atualmente,

além de apontar a preferência pelo trabalho com os bebês, relatando que também trabalhou com os

demais níveis da Educação Infantil.

Mark, por sua vez, inicia sua autobiografia por sua infância, apresentando as influências

familiares para a escolha da profissão, sua extensa trajetória de formação, do magistério ao

doutorado, e as diferentes experiências profissionais que possui, desde a Educação Infantil até o

Ensino Superior. Finaliza apresentando suas percepções e sentimentos sobre a profissão que

escolheu.

Em ambas narrativas se percebem docentes otimistas e realizados com a carreira, o que se

evidencia na satisfação por estar na profissão atualmente. Este foi um dos diferenciais deste

trabalho com relação aos estudos apresentados por Carvalho (1998), Eugênio (2010) e Rabelo

(2010), nos quais se observam discursos mais pessimistas e descontentes com relação à profissão.

Os termos utilizados nas autobiografias também representam a visão que cada sujeito tem

sobre seu lugar na profissão. Enquanto Jack faz referência ao lugar profissional e nomeia sua ação

simplesmente como o ato de trabalhar, Mark utiliza diversas nomenclaturas como atuar, ser

professor, estar com as crianças, lecionar e dar aula, demonstrando os distintos papéis que o

docente ocupa no espaço escolar. A utilização destes termos também evidencia as diferenças entre

os pesquisados, com relação ao nível de formação e à trajetória profissional.

Como justificativas para a escolha profissional, os pesquisados também apresentam

trajetórias diferentes. Mark relata a influência familiar das vivências da mãe e da irmã que o

instigaram a optar pela “missão” da carreira docente. Por outro lado, para Jack a escolha parte de

um interesse laboral, aliado a vivência de paternidade. Existe aqui um contraponto entre a influência

10

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

e o interesse pela carreira docente. Entretanto, em ambos os casos, se atravessa a origem vocacional

atribuída ao masculino na carreira docente.

Pode-se inferir que, nestes casos, o masculino que atua junto à Educação Infantil ou Anos

Iniciais busca realização pessoal e/ou profissional neste espaço e, de certa forma, suporte às

questões biopsicossociais relacionadas às suas vivências anteriores e atuais. Atrelado a isso, fica

evidente o desejo que surge de interação com o universo infantil, exemplificado na busca por atuar

neste espaço, na profissionalização e na vivência afetiva evidenciada pelos relatos.

As questões de gênero são apontadas sutilmente, na forma de estranhamento, dúvida ou

desconforto perante o lugar que ocupam, o que pode indicar certa discriminação camuflada do

contexto. O esforço para reforçar a ideia de aceitação social do profissional pode ser entendido

como mais um indicador desta hipótese. Entretanto, ambos relatam que estão felizes com suas

escolhas profissionais, indicando que o impacto de uma possível discriminação pode não ser

significativo nestes casos.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Observa-se que, para os sujeitos pesquisados, a docência foi, além de uma escolha

profissional, uma escolha de vida. A realização na profissão evidencia principalmente a satisfação

que ambos têm em atuar na profissão, especialmente no que se refere aos níveis da Educação

Infantil e Anos Iniciais.

A pesquisa demonstrou-se efetiva por apresentar reflexões sobre as percepções dos docentes

sobre sua própria atuação profissional. Além disso, permite considerar que há lacunas entre o

reconhecimento das questões de gênero que atravessam a atuação docente do masculino e as

alternativas para transformar essa realidade.

Entende-se que as implicações para o masculino que atua na docência da Educação Infantil e

Anos Iniciais presentes nos relatos tendem a apontar para vivências do próprio sujeito, mas que não

se distanciam de expectativas sociais relacionadas ao masculino de maneira geral, como pode ser o

caso da paternidade e por consequência, do papel de cuidador.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Ministério da Educação. Política Nacional de Educação Infantil. Brasília:

MEC/SEF/COEDI, 1994. Disponível em: <http://biblioteca.claretiano.edu.br/phl8/capas/poli.pdf>.

Acesso em: 20 abr. 2015.

CAMPOS, Maria Malta. Educar e cuidar: questões sobre o perfil do Profissional de educação

infantil. In: Por uma política de formação do profissional de educação infantil. Brasília: MEC,

11

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

1994, p. 32-42. Disponível em:

<http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/me002343.pdf>. Acesso em: 06 out. 2014.

CARVALHO, Marília Pinto de. Vozes Masculinas numa Profissão Feminina. Estudos Feministas,

v. 6, n. 2, p. 406-424, 1998. Disponível em:

<https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/12017/11303>. Acesso em: 25 jan. 2015.

CUNHA, Amélia Teresinha Brum da. Sobre a carreira docente, a feminização do magistério e a

docência masculina na construção do gênero e da sexualidade infantil. In: ANPEDSUL, 9, 2012,

Caxias do Sul. Apresentações e Autores do IX Anpedsul. Disponível em:

<http://www.ucs.br/etc/conferencias/index.php/anpedsul/9anpedsul/paper/viewFile/2974/824>.

Acesso em: 06 out. 2014.

EUGÊNIO, Benedito Gonçalves. Narrativas de professores homens no magistério dos anos iniciais

do ensino fundamental. In: Seminário Internacional Fazendo Gênero, 9, 2010, Florianópolis. Anais

eletrônicos. Disponível em:

<http://www.fazendogenero.ufsc.br/9/resources/anais/1278277656_ARQUIVO_NARRATIVASDE

PROFESSORESHOMENSNOMAGISTERIODASSERIESINICIAIS.pdf>. Acesso em: 26 mar.

2015.

FARIA, Carlos Aurélio Pimenta de. Entre marido e mulher, o estado mete a colher: reconfigurando

a divisão do trabalho doméstico na Suécia. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 17, nº 48,

São Paulo, fev. 2002.

FLICK, Uwe. Introdução à Pesquisa Qualitativa. Porto Alegre: Artmed, 2009.

FRANCO, Raquel Braga. Mãe, mulher, feminino, professora e... o falo. Psicologia da Educação.

São Paulo, n. 30, p. 67-80, 2010. Disponível em:

<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-

69752010000100006&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 04 out. 2014

GIBIM, Robson; LESSA, Patrícia. Homens que cuidam: por uma política de igualdade de gênero

no cuidado de crianças pequenas. In: SIMPÓSIO GÊNERO E POLÍTICAS PÚBLICAS. 2, 2011,

Londrina. Anais do II Simpósio Gênero e Políticas Públicas. Disponível em:

<www.uel.br/eventos/gpp/pages/arquivos/Robson.pdf>. Acesso em: 16 dez. 2014.

LOURO, Guacira. Gênero, Sexualidade e Educação: uma perspectiva pós-estruturalista.

Petrópolis: Vozes, 1997.

RABELO, Amanda Oliveira. Professores discriminados: um estudo sobre os docentes do sexo

masculino nas séries do ensino fundamental. Educação e Pesquisa. São Paulo, v. 39, n. 4, p. 907-

925, 2013. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ep/2013nahead/aop1132.pdf>. Acesso em: 10

nov. 2014.

SAYÃO, Deborah Thomé. Relações de Gênero e trabalho docente na educação infantil: um

estudo de professores em creche. 2005. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal de

Santa Catarina, Florianópolis, 2005.

SOUZA, Mara Isis de. Homem como professor de creche: sentidos e significados atribuídos pelos

diferentes atores institucionais. 2010. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Faculdade de

Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Ribeirão Preto, 2010.

12

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

SCHÜTZE, Fritz. Pesquisa biográfica e entrevista narrativa. In: WELLER, Wivian; PFAFF, Nicolle

(orgs). Metodologia da Pesquisa Qualitativa em Educação. Petrópolis: Vozes, 2011. p. 210-222.

TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. 16. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.

VIANNA, Cláudia Pereira. O sexo e o gênero da docência. Cadernos Pagu, Campinas, n. 17-18, p.

81-103, 2002. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/cpa/n17-18/n17a03.pdf>. Acesso em: 15

nov. 2014.

TEACHING IN EARLY CHILDHOOD EDUCATION AND EARLY YEARS: CARING

FOR AND EDUCATING IN THE PERSPECTIVE OF THE MALE

ABSTRACT

This study aims to understand the implications for the male who works in the teaching of Early

Childhood Education and Early Years, a predominance of feminization. Currently, there is a

tendency to have a small number of male teachers, especially regarding the levels of Early

Childhood Education and Initial Years, which awakens to the relevance of the masculine analysis

that seeks to act in this space. The aim was to address the issue of the masculine and its relationship

with the caring / educating, aspects that guide the teaching performance with the childhood. The

masculine in this context, when exercising a profession considered feminine, personifies the conflict

of the social expectation. When he chooses teaching, the masculine becomes questioned by the

social, mainly in two aspects: his professional capacity and his sexual orientation. The male teacher

is crossed by polarizations (female / male, heterosexual / homosexual) and, occupying one of the

poles, tends to be judged as incapable of teaching. The autobiographical narrative of teachers who

work in Early Childhood Education and Early Years in municipalities of Serra Gaúcha, Brazil, is

used as research methodology. The research allows to consider that there are gaps between the

recognition of the gender issues that cross the teaching performance of the masculine and the

alternatives to transform this reality.

Keywords: Education, Caring / Educating, Male, Gender Relations


Recommended