Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008 ISBN - 978-85-61621-01-8
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Entre a épica e a paródia:
a (des) mistificação do gaucho nos quadrinhos de Inodoro Pereyra, el renegau Priscila Pereira1
Resumo:
Esta comunicação apresentará alguns apontamentos e resultados iniciais do
trabalho de mestrado que venho desenvolvendo. Neste estudo, analiso as representações
do gaúcho nos quadrinhos de Inodoro Pereyra, personagem criada pelo humorista
argentino Roberto Fontanarrosa na década de 70 do século XX. Nascido como uma
paródia da literatura gauchesca, do radioteatro e do folclore argentino, a trajetória do
renegau retoma a metáfora sarmientina civilização e barbárie, que atravessa não só a
história deste país, mas se inscreve na tradição política de toda a América Latina.
Portanto, através dos quadrinhos deste gaúcho é possível rediscutir importantes questões
que marcaram a história da República Argentina, tais como as oposições entre pampa e
litoral, unitários e federais, nacionalismo e cosmopolitismo, e que compõem a imagem
de uma nação dividida.
Parente distante do gaúcho de José Hernández, Inodoro Pereyra pode ser lido
como um outro olhar sobre a história, ou ainda, como a teatralização de uma
identidade que se denuncia através do humor. “Porque a paródia, como a caricatura,
não faz mais que ressaltar o manifesto: Não inventa, enfatiza” – como já dizia Juan
Sasturain2.
Inodoro Pereyra e a gênese de um (anti) herói do pampa argentino
No final de 1972, apareceu na revista Hortensia de Córdoba uma personagem
que alcançaria enorme sucesso nos anos seguintes, e cuja criação é considerada a
paródia gauchesca mais bem-sucedida da HQ3 argentina. Inodoro Pereyra, el renegau, é
fruto do gênio do desenhista rosarino Roberto Alfredo Fontanarrosa, também conhecido
1 Mestranda do Programa de Pós Graduação em História da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), sob orientação do prof. Dr. José Alves de Freitas Neto. Trabalho desenvolvido com financiamento da Capes. Email: [email protected]. 2 SASTURAIN, Juan; El domicilio de la aventura apud FONTANARROSA, Roberto; 20 años con Inodoro Pereyra; Buenos Aires: Ediciones de la Flor, 1998. 3 Como convenção, vamos utilizar ao longo do texto a abreviação HQ para a expressão “história em quadrinhos”, e nos reservaremos o direito de acrescentar um “s” (HQs) quando se tratar do plural.
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pela alcunha de El Negro4. Inodoro é um gaúcho “macho y cabrío” que vive no pampa
argentino, usa vincha, anda bien montao y es bueno pa’ payar. Em uma de suas
primeiras aventuras, este hombre de mal genio y mucha picardía criolla, apresentou-se a
si mesmo da seguinte forma: “Pereyra por mi mama, Inodoro por mi tata, que era
sanitario”.
De acordo com Néstor Canclini, “Inodoro Pereyra retoma a linguagem folclórica
de canções e lendas gauchescas, do radioteatro e dos programas televisivos sobre ‘a
identidade nacional’”5.Com efeito, nosso gaúcho nasceu e cresceu numa época de
consagração do folclore na Argentina, e sua caracterização foi feita a partir de um
minucioso levantamento documental, que permitiu ao seu criador adentrar na temática
campestre. Contudo, esta HQ era originalmente uma paródia dos estereótipos visuais
dos “gaúchos”, em que se exageravam os regionalismos lingüísticos através da
desmistificação humorística do universo folclórico. Quer dizer, o Inodoro Pereyra dos
primeiros tempos era claramente uma sátira feroz ao folclorismo e aos temas terruñales,
e sua filiação se encontra não no pampa argentino, mas na literatura gauchesca.
Aliás, é significativo que, ao contrário de outros quadrinhistas que fundaram a
historieta gauchesca, Fontanarrosa não conhecia o campo e este não lhe despertava
maior interesse, como ele próprio afirmou: “Certa vez me perguntaram se Inodoro
reflete meus conhecimentos. Não se pode enganar. Somando todas as horas de minha
vida que estive no campo, se são quatro é muito. Não conheço ao campo e ele não me
desperta curiosidade”6.
No entanto, este quadrinho sofrerá um longo processo de mudança no decorrer
dos anos. Assim, o Inodoro aventureiro dos primeiros tempos, que tanto lembra a
representação tradicional do gaucho – nas primeiras histórias, ele se enfrenta com
malones, persegue a luz mala e a mandinga, e até mesmo rapta uma mulher, a china
Eulogia – é substituído por um Inodoro mais reflexivo, situado, que recebe visitas
inesperadas, tais como as de Jorge Luis Borges, Antonio das Mortes, os Reis Magos, o
4 Fontanarrosa nasceu em Rosario em 1944, e além de ter se destacado como importante desenhista humorístico, teve uma significativa produção literária, composta por três romances e sete livros de contos curtos. Dono de um traço rápido e de grande qualidade técnica, ficou particularmente conhecido graças aos personagens Inodoro Pereyra, el renegau e Boogie, el aceitoso. Nos últimos meses Fontanarrosa não podia mais desenhar, vítima de uma doença degenerativa que foi minando sua capacidade motora. Morreu no dia 19 de julho de 2007, fato que causou grande comoção nacional. Ver: www.negrofontanarrosa.com. 5 CANCLINI, Néstor García; Culturas híbridas Estratégias para entrar e sair da Modernidade; São Paulo: Edusp, 1997, p. 339. 6 GOCIOL, Judith; “Inodoro y su tata” in FONTANARROSA, Roberto; 20 años con Inodoro Pereyra; op. Cit., pp. 9-10.
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Superman, Zorro, Dom Quixote, os defensores do Greenpeace, etc. “É um Inodoro cada
vez menos épico, mais caricaturesco e próximo a outro modelo nacional de longa data:
o chanta”7.
E mais: as mudanças ocorridas nesta historieta não envolvem somente as
temáticas, mas a própria visualidade das personagens. Talvez a transformação mais
drástica tenha se dado com Eulogia, a mulher do renegau, que em dois quadrinhos
engordou 67 kilos! É claro que tais transformações podem ser explicadas pela
transferência da historieta para um dos jornais de maior circulação na Argentina, o
Clarín, onde as histórias voltaram a ser unitárias e não mais feitas por entrega8. Enfim, a
personagem que nasceu em uma revista humorística (Hortensia) se consolidará em um
diário (Clarín), o que explica a preocupação que adquiriu este quadrinho de dialogar
com a atualidade argentina.
Portanto, com o passar do tempo, “Inodoro Pereyra se converteu em um
“argentino comum”, que vê transcorrer a atualidade com um assombro que se aproxima
ao desconcerto (...). O desenho é menos surpreendente e audaz mas não perdeu
qualidade: sucede, simplesmente, que o elemento visual cedeu ao protagonismo e se
subordina estritamente às necessidades do diálogo, o principal autor destas histórias”9.
Assim sendo, as principais situações protagonizadas por Inodoro, Eulogia e seu
cachorro Mendieta são as seguintes: os enfrentamentos com militares, pragas de louros
ou malones – entre os quais se destacam os índios ranqueles, chefiados pelo cacique
Lloriqueo; as delícias conjugais – que terminam às vezes com um mate voando pelo ar;
e o encontro com personagens reais ou imaginárias.
Neste sentido, percebe-se que esta historieta argentina, nascida da confluência
entre a literatura gauchesca, o radioteatro e o folclore, permite que redimensionemos a
representação do gaúcho dentro da tradição letrada deste país. Afinal de contas, já se
argumentou que esta HQ, que não tinha mais que a pretensão de fazer rir e não visava a
transcendência, foi lida muitas vezes como a representação do argentino, e isso explica,
em parte, o seu sucesso de público e crítica. Já dizia Judith Gociol, que “es justamente
7 GOCIOL, Judith e ROSEMBERG, Diego; La Historieta Argentina Una Historia; Buenos Aires: Ediciones de la Flor, 2000, p. 300. 8 Depois de passar pelas revistas Hortensia, Mengano e Siete Dias, as histórias de el renegau integraram Viva, revista dominical do matutino Clarín, em 1976. Neste periódico, Inodoro se aquieta, fixando o seu ranchinho de adobe (de uma só árvore) com seu perro Mendieta, sua mulher Eulogia, e seu chiqueiro (com o porco Nabucodonosor), considerados suas únicas possessões. 9 FREIDEMBERG, Daniel apud GOCIOL, Judith; “Inodoro y su tata” in FONTANARROSA, Roberto; 20 años con Inodoro Pereyra; op. Cit., p. 13 .
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por estos sentidos antagónicos – la dinidá, la derrota, la viveza crioya – que Inodoro
Pereyra es tan argentino como el dulce de leche, la birome o el colectivo: un verdadero
mojón de argentinidá”10.
Todavia, como explicar que os quadrinhos de Inodoro Pereyra se tornaram um
símbolo da argentinidade, se é sabido que Roberto Fontanarrosa criou esta personagem
como uma sátira ao regionalismo e a representação estereotipada do gaúcho, vigente
naquele contexto? E em que sentido a repetição de um modelo mítico de representação
do gaúcho, que remonta aos primórdios da tradição gauchesca, ainda manteve seu vigor
e fecundidade no terceiro quartel do século XX, vindo a integrar as llanuras de papel de
uma HQ? Por que o público argentino identificou na figura do renegau um modelo
comum que supostamente representaria a identidade desta nação, isto é, as imagens do
chanta e do anti-herói?
A justificativa para este trabalho, portanto, reside no fato de que esta HQ
rediscute, através de uma perspectiva renovada, importantes questões relacionadas à
história da Argentina, recorrendo-se à sátira, ao humor e à paródia. Recolocando
problemáticas que marcaram profundamente o século XIX argentino - momento de
invenção das nações latino-americanas – como a oposição entre unitários e federais e o
debate sarmientino entre civilização e barbárie, a epopéia criada por El Negro também
lança um curioso olhar sobre o seu próprio tempo, revelando a maneira pela qual o
passado se interpõe no presente e reinventa as tradições11.
Enfim, “é significativo o episódio inicial do primeiro tomo de suas histórias:
Inodoro se vê em uma situação semelhante à de Martín Fierro ao encontrar-se com um
grupo de soldados, da qual o salva um equivalente de Cruz que o convida para fugirem
juntos “para as tolderías”. Inodoro recusa a oferta argumentando: “A esto ya me parece
que lo leí en otra parte y yo quiero ser original”. A história em quadrinhos do autor
introduz a preocupação da arte com a inovação na cultura massiva e, ao mesmo tempo,
a réplica de Inodoro sugere que a história mudou e não é possível repetir Martín
Fierro”12.
Uma nação para o deserto: Revisitando o dilema sarmientino 10 Idem, p. 15. 11 Ver: SVAMPA, Maristella; El dilema argentino: Civilización o Barbarie. De Sarmiento al Revisionismo Peronista; Buenos Aires: Ediciones el cielo por asalto: Imago Mundi, 1994. HOBSBAWM, Eric e RANGER, Terence; A invenção das tradições; Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994. 12 CANCLINI, Néstor García; Culturas híbridas; op. Cit., p. 340.
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O período que vai de 1955 a 1976 assinala uma crescente importância adquirida
pelo interior argentino, que se converte no centro de gravidade da política perpetrada
pelos seus governantes. Ou seja, a aparição de Inodoro Pereyra na imprensa cordobesa
ocorre dentro de um contexto em que o interior se investe de um protagonismo pouco
usual na história argentina do século XX. Afinal de contas, entre a Revolução
Libertadora de 1955 – que destituiu Juan Domingo Perón do poder – e o golpe militar
de 24 de março de 1976 - que encerrou um período de grande convulsão social - a
questão regional ganhou visibilidade no cenário argentino, detonada principalmente pela
crise açucareira tucumana e pelo Cordobazo. Na retórica modernizadora e
desenvolvimentista da época, pregava-se a necessidade de redimensionar a relação entre
o nacional e o regional, já que o interior era visto como o espaço do atraso e da
negligência. Em contrapartida, os nacionalistas valorizavam este espaço como um
bastião da nacionalidade e da tradição13.
Neste sentido, “além das divisões entre peronistas e antiperonistas, radicais e
conservadores, nacionalistas e liberais ou fazendeiros e industriais, também havia uma
divisão geográfica, que se fez cada vez mais evidente, entre a próspera região pampeana
e as empobrecidas províncias extrapampeanas, ou, tal como se dizia nesses dias, entre o
litoral cosmopolita e moderno e o interior criollo e tradicional. Esta noção das “duas
argentinas” não era novidade, mas cobrou nova vigência no contexto de tão óbvia
divisão”.14 Portanto, é preciso voltar até o século XIX, momento de fundação da
república argentina, para entender como se formou esta clivagem entre campo e cidade,
tradição e modernidade, civilização e barbárie.
A imagem de uma Argentina dividida surgiu entre as elites ilustradas liberais do
século XIX como uma metáfora, bastante recorrente na linguagem política, e que tinha a
função de conferir um sentido particular a sua história, ao mesmo tempo em que a
vinculava à tradição européia setentrional15. Desta forma, o livro escrito por Domingo
Faustino Sarmiento em 1845, Facundo: civilização e barbárie, tornou-se uma das
temáticas fundadoras da Argentina, já que sintetizava os valores defendidos pelos seus
intelectuais Nesta narrativa, “Sarmiento inaugurava (...) uma análise, posteriormente 13 HEALEY, Mark Alan; “El interior en disputa: proyectos de desarrollo y movimientos de protestas en las regiones extrapampeanas” in JAMES, Daniel (dirección); Nueva Historia Argentina: violencia, proscripción y autoritarismo (1955-1976); Buenos Aires: Sudamericana, 2003. 14 Idem, p. 174. 15 SVAMPA, Maristella; El dilema argentino; op. Cit. FREITAS NETO, José Alves de; “A formação da nação e o vazio na narrativa argentina: ficção e civilização no século XIX”; Revista Tempo Brasileiro; Rio de Janeiro, v. 169, p. 159-173.
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matriz de incontáveis outras leituras, que estabelecia a oposição entre o campo, lugar da
barbárie, território livre dos federalistas, e as cidades, lugar da civilização, protótipo da
cultura, do progresso e da riqueza. As oposições eram mais uma vez políticas –
federalistas contra unitários – e culturais – mundo letrado contra tradição oral”16.
Neste texto, Sarmiento tece uma severa crítica ao federalismo de Rosas, apoiado
por caudilhos interioranos como Facundo Quiroga. Embora desconhecesse o pampa,
assim como a cidade de Buenos Aires, este autor não pôde deixar de apontar o mal que
assolava a república argentina, representada pela sua enorme vastidão e por suas
paisagens pampeanas, esse “mar de terra” onde se estruturava o mundo bárbaro do
gaucho. Segundo a abordagem sarmientina, a tendência de a Argentina ser uma
república una e indivisível era impossibilitada por causa da existência do deserto e das
llanuras do interior, produtoras da multiplicidade e do caos. “Dos solitários pampas
argentinos, nasceu o despotismo”, diria Sarmiento17.
De qualquer modo, a imagem das “duas argentinas” sobreviveu ao tempo e
acabou consagrando o texto Facundo como um monumento de sua cultura.
Compreende-se, assim, o papel que a literatura adquiriu para os próceres da nação, já
que o texto literário permitia que se cobrisse com palavras um espaço considerado como
faltante, de modo que verdadeiras cartografias da exclusão fossem constituídas. No
fundo, o que estas elites letradas do XIX pretendiam era construir um país moderno, que
atendesse aos seus anseios de transformação social e progresso geral. Quer dizer, “a
“argentinidade” do Facundo é tão somente um efeito dessa manobra de política cultural
que constrói uma genealogia da nação se apoiando em representações espaciais de um
território assumido como próprio e impermeável ao fluxo da história”18.
Assim sendo, é impossível não percebermos nestes textos oitocentistas o vínculo
entre literatura, território e identidade nacional. Afinal de contas, estes homens de letras
do século XIX argentino estavam preocupados com a definição das fronteiras, físicas e
culturais, da nação. Assim, a oposição entre civilização e barbárie se ajustava
perfeitamente a esta necessidade de se criar mitos nacionais e de se dar um sentido para
16 PRADO, Maria Lígia Coelho; “Prefácio à edição brasileira” in SARMIENTO, Domingo Faustino; Facundo: civilização e barbárie; Petrópolis: RJ: Vozes, 1996, p. 26. 17 PRADO, Maria Lígia Coelho; América Latina no século XIX: Tramas, Telas e Texto; São Paulo: Edusp: Bauru: Edusc, 1999, p. 214. 18 FERNÁNDEZ BRAVO, Álvaro; Literatura y frontera Procesos de territorialización en las culturas argentina y chilena del siglo XIX; Buenos Aires: Editorial Sudamericana: Universidad de San Andrés, 1999, pp. 13-14.
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sua história, de modo que ficasse bem delimitado o que deveria ser incluído ou excluído
nessa cartografia imaginária. Ou seja, a fronteira tornou-se sinédoque da nação.
De qualquer modo, a questão da fronteira dentro da tradição letrada argentina
estava circunscrita a uma temática mais ampla: a representação da nação como um
“vazio”, como um espaço carente de civilização e de ordenamento social. “O país, tanto
para Alberdi como para Sarmiento, era concebido como um imenso vazio; daí que o
primeiro sintetizasse sua preocupação na conhecida frase “Governar é povoar”, e que o
segundo escrevesse que “o mal que sofre a Argentina é a extensão”. Enquanto
“deserto”, “espaço vazio”, o país era compreendido como “ausência”, ou para utilizar
livremente a imagem de Viñas, como “a contradição do vazio que deve ser
preenchido””19.
E, com efeito, a representação do vazio no livro Facundo encontra na descrição
do pampa seu momento de maior expressividade. Como destacou Mary Pratt, dentro
dos escritos sarmientinos, a imagem setecentista da natureza como objeto de
contemplação dá lugar à descrição da natureza como realidade ameaçadora e oculta, que
produz a imensidão sem limites, que gera a solidão e forma um homem de acordo com
sua imagem e semelhança20. É por isso que o pampa é o lugar da barbárie, onde nasce o
individualismo e a tirania, e onde desfilam uma série de personagens que se situam
nessa linha fronteiriça entre natureza e cultura: o caudilho, o baqueano, o cantor, o
rastreador e o gaucho mau. Isso sem mencionar o “terceiro excluído” do texto de
Sarmiento: os indígenas.
Ora, ao tratar do problema da natureza e da paisagem pampeana, Facundo
introduziu também outra importante imagem, cujo peso metafórico se unia à noção de
vazio: o deserto. De acordo com Ortelli e Mandrini, as representações do deserto
integravam o imaginário político dos colonizadores espanhóis, além de remontarem a
tradição européia ocidental. “A fronteira devia avançar sobre a zona denominada terra
adentro, extensão incomensurável e pouco conhecida, lugar de grupos hostis, que
inspirava temor aos povoadores das áreas rurais próximas. Terra adentro aparece
caracterizado como um deserto mas não necessariamente pelos fatores físicos da
19 SVAMPA, Maristella; El dilema argentino; op. Cit., p. 40. 20 PRATT, Mary Louise; Os olhos do Império: relatos de viagem e transculturação; Bauru: São Paulo: EDUSC, 1999.
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paisagem, pela aridez dos terrenos ou a necessidade de água e vegetação abundante. A
idéia de deserto respondia, em última instância, à ausência da civilização”21.
É dentro desta perspectiva de preencher o vazio (barbárie) com a cultura
(civilização) que ocorreu um dos processos mais perversos da história argentina,
responsável pela consolidação de suas instituições políticas e que apontou para uma
reorientação nos rumos de sua história: a Campanha do Deserto, levada a cabo pelo
general Roca (1878- 1879). Na verdade, o projeto de guerra total e extermínio das
populações indígenas já havia sido iniciado sob o governo de Bartolomé Mitre (1862-
1868), alguns anos antes. Contudo, o “deserto” só foi efetivamente conquistado no
início dos anos 1880, resultando na anexação de 15.000 léguas de terras para esta nação.
Com efeito, duas eram as convicções sobre o problema do deserto naquele
momento: “‘Poblar es conquistar y gobernar’ e ‘no es el indio sino el desierto’. Ambos
os tópicos se encontram em muitos documentos oficiais e textos da época, e são
tributários de tradições arraigadas no país”22. O fato é que “a denominada questão
indígena e o problema das fronteiras interiores foram debatidos no marco dos intentos
de pacificar o país, consolidar o Estado e construir a Nação”23. A partir de então, o
projeto de integrar a Argentina no sistema capitalista mundial, através de uma economia
agroexportadora e fundada na mão-de-obra imigrante, é colocado em prática pela
Geração de 1880. Assim, este país passa a viver uma época de euforia, representada pela
modernização das cidades, pelo aluvião imigracional e pela implementação de novas
tecnologias territoriais, já que se acreditava que o progresso finalmente havia vencido a
barbárie.
Entretanto, o sonho sarmientino de transformar o pampa em um jardim falhou,
bem como se esfacelou o mito agrário jeffersoniano, tão desejado pelo autor do livro
Facundo. A chegada de imigrantes não foi capaz de resolver os impasses decorrentes da
cisão das “duas Argentinas” e, pelo contrário, aprofundou-a, colocando em cena novas e
velhas problemáticas. Ao invés de pequenas propriedades, o latifúndio; ao invés de
pequenos agricultores, a aristocracia. Portanto, é dentro deste contexto, no qual se teme
21 MANDRINI, Raúl J. e ORTELLI, Sara; “Una frontera permeable: Los indígenas pampeanos y el mundo rioplatense en el siglo XVIII” in GUTIERREZ, H., NAXARA, R. C., LOPES, M. A. S. (orgs.); Fronteiras: paisagens, personagens, identidades; Franca: UNESP: São Paulo: Olho d’água, 2003, p. 65. 22 SILVESTRI, Graciela; “El imaginario paisajístico en el litoral y el sur argentinos”; BONAUDO, Marta; Nueva Historia Argentina Liberalismo, Estado y orden burgués (1852-1880); Buenos Aires: Sudamericana, 2003, p. 228. 23 MANDRINI, Raúl J. e ORTELLI, Sara; “Una frontera permeable: Los indígenas pampeanos y el mundo rioplatense en el siglo XVIII”; op. Cit., p. 62.
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a dissolução social diante dos supostos perigos encarnados na figura do estrangeiro, que
é recuperada uma pretendida tradição nacional, corporificada na imagem do gaucho.
Desta maneira, a época do Centenário é marcada pela invenção cultural da
nação e da argentinidade, uma vez que a oposição civilização e barbárie, defendida
pelos letrados de 1837, é ressignificada e invertida. O interior passa a ser visto como o
depositário natural das tradições argentinas, e o gaúcho se torna, por excelência, a
representação do argentino. “Estabelece-se assim a ruptura da conjunção
tradição/interior/ caudilhismo. Não se trata com isso de desconhecer o vínculo histórico
existente entre ambos os eixos em relação ao interior, pois isso seria na época um
exercício de amnésia histórica, mas de estabelecer a verdadeira relação existente entre
eles. A lógica fatalista de Facundo encontra em González uma de suas primeiras
fissuras”24.
Paradoxalmente, a exaltação do gaúcho se dá em um momento em que o mesmo
desaparecia, vergastado pelas campanhas militares e pelas modificações introduzidas no
campo argentino, que implicaram na mudança de seu modo de vida. Assim, o ocaso do
homem habitante das llanuras pode ser acompanhado no poema Santos Vega, composto
em 1885 por Rafael Obligado. Nesta poesia, o payador gaucho é condenado ao
aniquilamento total, após ter sido vencido numa payada pela retórica laboral do
imigrante. É claro que neste momento o estrangeiro ainda era visto com otimismo; mas
à medida que o centenário se aproxima, o gaúcho vai se tornando uma inversão de
“gringo”, considerado agora o novo bárbaro.
Mas foi sem sombra de dúvidas sob a pena de José Hernández que se forjou um
mito fundador em torno do homem do interior, e a literatura gauchesca foi elevada
dentro da tradição literária argentina. A saga de Martín Fierro, poema de versos
octossílabos composto entre 1872 a 1875, é uma resposta ao Facundo de Sarmiento. Na
primeira parte da história, Hernández constrói uma espécie da legenda negra desse
habitante do pampa, que após ter sido arrancado de seu rancho, matado a dois homens e
perdido sua família, decide fugir para as tolderías. Na segunda parte da epopéia, Martin
Fierro retorna para as terras “civilizadas”, reencontra seus filhos e também a Picardía,
mostra seu valor em algumas payadas, e termina emitindo sábios conselhos para
aqueles que o ouvem25.
24 SVAMPA, Maristella; El dilema argentino; op. Cit., pp. 90-91. 25 HERNÁNDEZ, José; Martín Fierro; Edición de Luis Sáinz de Medrano: Madrid: Ediciones Cátedra, 1997.
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Vários críticos de Hernández comentaram as diferenças existentes entre a
primeira e a segunda parte do poema, bem como tentaram explicar o motivo porque isso
ocorre. Afinal, percebe-se que o caráter aguerrido da personagem da ida é substituído,
no seu retorno, por uma imagem mais docilizada. Esta dubiedade da personagem,
inclusive, rendeu algumas críticas contundentes, como as de Jorge Luis Borges, que
afirmou o seguinte: “Eu creio que Sarmiento é o homem mais importante que este país
produziu. Creio que é um homem de gênio, e creio que, se houvéssemos decidido que
nossa obra clássica seria o Facundo, nossa história haveria sido diferente. Creio que,
razões literárias à parte, é uma lástima que tenhamos eleito Martín Fierro como obra
representativa [da nação]”26.
Segundo Fernández Bravo, as mudanças presentes nas duas partes desse poema
telúrico ocorrem porque ao mesmo tempo em que Hernández comemora a expansão das
fronteiras, ele insere um argumento que erosiona suas premissas por dentro. Quer dizer,
textos como Martín Fierro e Facundo devem ser lidos a partir dessa ambigüidade, pois
como toda literatura de fronteira, a todo o momento eles ressignificam suas próprias
divisas.
Um exemplo dessa fluidez que perpassa a metáfora civilização e barbárie pode
ser vista na literatura gauchesca das primeiras décadas do século XX. Pois como
argumentou Maria Lígia Prado, o processo de mistificação do gaúcho, que culminou no
revisionismo histórico dos anos 1920, implicou na reivindicação da barbárie, na eleição
de Rosas como o seu porta-voz e na escolha do gaúcho como expressão da
“argentinidade”. “Os assim chamados revisionistas atacaram Sarmiento e sua dicotomia,
civilização e barbárie, pois, para eles, era na “barbárie sarmientina” que se encontrava a
Argentina real e poderosa, que fora desvirtuada pelos liberais importadores de modelos
e idéias estrangeiras, recusando a entranhada realidade nacional”27.
Finalmente, é preciso ressaltar que tanto no Facundo de Sarmiento quanto no
Martín Fierro de Hernández o indígena permanece como o ausente, o Outro em relação
ao gaúcho. Afinal, seja dentro de uma perspectiva cosmopolita, seja segundo um viés
nacionalista, a representação do indígena se faz através da impermeabilidade dos
conceitos civilização e barbárie. Ou seja, quase sempre o índio aparece esfumado sob o
26 BORGES, Jorge Luis; “Sexta Conversación” in SORRENTINO, Fernando; Siete conversaciones con Jorge Luis Borges; Buenos Aires: Casa Pardo, 1973, pp. 109-110. 27 PRADO, Maria Lígia Coelho; “Prefácio à edição brasileira” in SARMIENTO, Domingo Faustino; Facundo: civilização e barbárie; op. Cit., p. 30.
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peso da idéia de deserto e vazio, escondido na indistinção coletiva das hordas que
assomam na noite. Não obstante, da mesma forma que o pampa não é uma paisagem
homogênea e monótona, também o indígena não é uma unidade estanque, que habita
uma linha fronteiriça fixa e atemporal, e que só adquire visibilidade através de incursões
de malones. Assim, imaginamos que é possível entrever este “terceiro excluído”,
mesmo nos silêncios que caracterizam a epopéia da fronteira. Enfim, o Outro sempre
irrompe nestas narrativas, causando desequilibro e inquietude e colocando em questão o
projeto de uma nação homogênea.28.
Procuramos delinear até aqui os principais debates que perpassam o problema da
representação do gaúcho Inodoro Pereyra nos quadrinhos de Roberto Fontanarrosa.
Afinal de contas, esta personagem dialoga com estes múltiplos referenciais de
nacionalidade, forjados a partir de experiências dissimiles e que foram se constituindo
no interior da tradição nacional argentina. De Sarmiento até a ressignificação do interior
argentino nos anos 1970, as imagens do gaucho sofreram muitas transformações,
embora sua depreciação ou revitalização permaneça sendo uma ressonância do debate
sobre as “duas argentinas”. Ora detratado pela sua associação com a barbárie, ora
resgatado como representante da “alma” nacional, a compreensão da figura deste
homem do pampa continua sendo um desafio, ainda nos dias de hoje. Mas uma coisa
não poderíamos deixar de dizer nesta oposição entre civilização e barbárie: existe certa
porosidade entre os dois conceitos que, ainda que tenha sido obliterada pela crítica da
obra de Sarmiento e de Hernández, talvez nos permita pensar que a civilização
engendrou a barbárie, ou, talvez, ambas se engendraram reciprocamente.
El Gaucho: uma controvertida figura da identidade nacional
Não se sabe ao certo a origem da palavra gaucho, mas já se aventou a
possibilidade de que ela vem do termo quéchua huacho, que significa “órfão”,
“abandonado”. Contudo, sua etimologia permanece vaga e imprecisa, principalmente
porque, na definição dessa lendária figura dos campos sul-americanos, está em jogo um
complexo processo de tipificação e construção de estereótipos, em que se sobrepõem
diversas camadas de leituras e interpretações do passado. Afinal, citando Ezequiel
28 QUIJADA, Mónica; “¿Qué nación? Dinámicas y dicotomías de la nación en el Imaginario Hispanoamericano” in GUERRA, François-Xavier e ANNINO, Antonio. Inventando la nación; Iberoamérica siglo XIX; México, D.F: Fondo de cultura económica. FCE, 2003.
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Martínez Estrada, “em um tema de investigação os juízos ocupam um dos extremos do
louvor ou do desdém. Cada qual tem o seu gaúcho”29.
Entretanto, é possível recuperar, através de certas hipóteses etimológicas,
algumas acepções do termo “gaucho”, remontando, para tanto, a documentos do período
colonial. Assim, seguindo as pistas de Jorge Ribera, notamos que designações como
“changador”, “gauderio”, “camilucho” ou simplesmente “gaucho” aparecem nesses
documentos com um tom bastante pejorativo, como sinônimo de vagabundo, ladrão e
desocupado.
Segundo o texto de introdução do Martín Fierro, o gaúcho seria um tipo humano
produto da mestiçagem na região do Prata, e sua caracterização seria resultante do
meio físico. Destacou, ainda, a liberdade como inerente ao universo gauchesco, uma vez
que este habitante das llanuras interioranas seria “amante da vida livre, da guitarra e das
estrofes, extraordinariamente hábil em seus movimentos pelo pampa, nobre de caráter
mas obrigado não poucas vezes a se converter em um fugitivo da justiça”30.
Em contrapartida, Clara Rey de Guido, ao citar a definição presente em uma
enciclopédia uruguaia, discorre que gaúcho não é um tipo racial, mas sim um produto
econômico-social, sendo que a sua posição se assemelha mais a de um paria do que a de
um senhor. Outra imagem recorrente é a do gaúcho como um tipo solitário, que
contempla do seu rancho a imensidão do pampa. Obrigado a viver longe de um círculo
social, torna-se, por conseguinte, inapto para viver em sociedade. “A vida no campo
desenvolve no gaúcho as faculdades físicas, mas não as intelectuais. Ele é forte,
enérgico, altivo, mas não tem instrução alguma”31.
No que se refere aos gaúchos brasileiros, por exemplo, sua imagem negativa
também era uma constante, já que “nos primeiros tempos de ocupação e colonização, o
gaúcho, o guasca, o gaudério, era o marginal, “sem lei nem rei”, aquele que “morava na
sua camisa, debaixo de seu chapéu”, e percorria, sozinho ou em bandos, aquela “terra de
ninguém” que seria depois o Rio Grande do Sul”32.
Todavia, verifica-se que a partir das lutas de independência, e no período do
caudilhismo federal, as conotações pejorativas atribuídas à palavra gaucho vão sendo 29 Apud RIBERA, Jorge B., La primitiva Literatura Gauchesca; Buenos Aires: Editorial Jorge Alvarez S.A., 1968. 30 HERNÁNDEZ, José; Martín Fierro;op. Cit., p. 14. 31 PRADO, Maria Lígia; América Latina no século XIX; op. Cit., p. 214. 32 MACIEL, Maria Eunice; “Memória, tradição e tradicionalismo no Rio Grande do Sul” in BRESCIANI, Stella e NAXARA, Márcia; Memória e (res) sentimento Indagações sobre uma questão sensível; Campinas: SP: Editora da Unicamp, 2001, p. 240.
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paulatinamente modificadas, até adquirir um tom menos preconceituoso. Quer dizer, “o
uso do corpo do gaúcho pelo exército acrescenta um sentido diferente à palavra
“gaucho”, que até então significava “delinqüente”, “vagabundo”, sem domicílio fixo;
uma palavra que convocava marginalidade e delito. Agora “gaúcho patriota” é o soldado
valente que não deserta dos exércitos”33.
Maria Eunice Maciel ressaltou que, no caso brasileiro, a apropriação da figura
do gaúcho atendeu a fins de construção de uma identidade para o Rio Grande do Sul, na
medida em que se fez uma seleção entre o que deveria estar dentro e o que ficaria para
fora na definição desse sentimento de pertencimento identitário. “O caso da
ressemantização do Gaúcho parece ter algo a ver com este processo: do passado,
recolheu-se a idéia de valentia e liberdade, deixando de lado a crueldade e a violência
inerentes a estes bandos dos primeiros gaúchos”34.
Não obstante, não se pode perder de vista que, nesse processo de
ressemantização do Gaúcho, sua figura passou a ser apresentada como uma mescla de
valores positivos e negativos, entre a bravura e a violência, o próprio e o alheio, o
fascínio e a repulsa, a civilização e a barbárie. O próprio Sarmiento não conseguiu
ocultar, por exemplo, o fascínio que os bárbaros gaúchos exerciam sobre ele, o que é
indicador da ambivalência e fluidez semântica que atravessa as definições de gaucho.
Em suma, gaúcho é o nome dado ao típico habitante do pampa, cuja cultura não
conheceu distâncias nem fronteiras, como prova sua presença em países como Brasil,
Argentina e Uruguai. Como habitante dessa zona fronteiriça, sacudida durante todo o
período colonial por conflitos entre as duas coroas ibéricas, talvez o gaúcho tenha
surgido do binômio gado-guerra, já que o mundo gauchesco se construiu historicamente
na sua relação com a pecuária e através da ocupação da porção Sul do continente. Sua
representação abarca os mais diversos formatos e situações, desde o gaúcho cantor, que
gosta de fazer payadas, passando pela imagem do gaúcho-soldado que vive na fronteira,
até o gaucho paisano, mistificado em Lugones. “Sempre marginal, matreiro,
contrabandista, foi o braço direito nas guerras de independência e nas guerras civis (...);
33 LUDMER, Josefina; “Oralidad y escritura en el genero gauchesco como nucleo del nacionalismo”; Revista de Critica Literaria Latinoamericana: Año XVII, nº 33: Lima, 1º semestre de 1991, pp. 29-33. 34 MACIEL, Maria Eunice; “Memória, tradição e tradicionalismo no Rio Grande do Sul” in BRESCIANI, Stella e NAXARA, Márcia; op. Cit, p. 247.
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ao começar a tecnologia da exploração pecuária, é perseguido como desocupado, deve
se converter em peão ou soldado para sobreviver”35 .
Mas como entender que a imagem negativa do gaúcho se transformou em
imagem mítica, e de marginal ele passou a herói? Que imagem de gaucho foi resgatada
pela chamada literatura gauchesca, que se erigiu em fins do século XVIII em torno
dessa controvertida figura? De que gaúcho se está falando quando se pensa no resgate
de uma pretendida tradição nacional?36.
Da literatura gauchesca para as HQs
Não é de se estranhar, portanto, que o surgimento de um chamado gênero
gauchesco esteja contaminado com as imagens que se foram conformando em torno do
gaúcho rio-platense. De acordo com Josefina Ludmer, o gênero se constituiu no
contexto da revolução e das guerras de independência, quando a voz gaúcha é retirada
de sua marginalidade para ser sublimada e universalizada pela literatura. Ou seja, a
gauchesca surge, primeiramente, como uma conjunção entre a voz ouvida do gaúcho (o
cantor) e a palavra escrita do letrado (o escritor), constituindo-se assim em uma aliança
unificadora de vozes, cujo objetivo é demarcar o lugar do Outro numa narrativa. Em
segundo lugar, Ludmer argumentou que esse gênero constituiu-se a partir de dois tons, o
desafio e o lamento, retirados da payada, ou seja, o jogo de dois cantores em
contraponto.
Na verdade, no centro dessa conjunção entre cultura popular e erudita está a
disputa pela voz do gaúcho, já que “o gênero discute o lugar e a função do outro, do
subalterno, na distribuição social, e o tipo de relações que se estabelecem entre ele e os
outros setores, políticos e letrados”37. Isso significa que tal disputa está ancorada em um
jogo simbólico de inclusões e exclusões de outras vozes, as quais aparecem como
distorcidas e inimigas, a exemplo do que ocorrem com negros, indígenas e imigrantes.
Neste sentido, enquanto gênero que nasce da confluência entre matrizes eruditas
(escritura) e populares (oralidade), muito já se discutiu sobre como avaliar os seus
alcances estéticos e sociais. Jorge Luis Borges afirmou, por exemplo, que a literatura 35 GUIDO, Clara Rey; “Fuentes y contexto de la literatura popular rioplatense en el periodo de la modernización (1880-1925)”; PIZARRO, Ana (org.); América Latina Palavra, Literatura e Cultura – vol. 2;– São Paulo; Memorial: Campinas: UNICAMP, 1994, pp. 388-89. 36 CAMPRA, Rosalba; “En busca Del gaucho perdido” in Revista de Crítica Literaria Latinoamericana; Año XXX: nº 60: Lima – Hanover: 2° semestre de 2004, pp. 311-332. 37 LUDMER, Josefina; “Oralidad y escritura en el genero gauchesco como nucleo del nacionalismo”; op. Cit., p. 31.
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gauchesca é um gênero feito por autores não gaúchos, que geralmente desconheciam o
campo. Mas que, apesar da sua origem culta, não deixaria de ser um gênero
“genuinamente popular”, posto que “pressupõe um gaúcho cantor (...) que maneja
deliberadamente a linguagem oral dos gaúchos”.38
Por outro lado, Jorge Ribera destacou que, diante das altas taxas de
analfabetismo da época em que despontou a literatura gauchesca, era mais do que
compreensível apelar para formas orais advindas da glosa, da leitura e do canto.
Segundo esse raciocínio, o suporte escrito seria apenas uma forma intermediária, para a
posterior difusão oral dessas composições. E mais: “à diferença dos payadores, cujas
armas são puramente orais e mnemotécnicas, os autores gauchescos escrevem para o
tipógrafo, e têm atrás de si os aportes de sua formação letrada, que lhes permitiu o
acesso a modelos artísticos (...), a preceptivas, canções, vocabulários, etc. Tanto que o
cantor “folk” ou o payador se inclinam a criar, ou conservar, temas “humanistas”
prestigiosos; o autor letrado prefere os temas “rústicos”, apoiando-se no conhecimento
real ou livresco, da área “folk””.39
Outro debate comum que divide a opinião dos autores que estudam essa
literatura é sobre a originalidade da gauchesca. Alguns autores por exemplo, insistem na
preexistência de formas hispânicas e pseudoclássicas que teriam sido meramente
apropriadas pelos escritores rio-platenses; outros já falam em aclimatação e reinvenção
dessas formas; há também os que defendem simplesmente o aproveitamento de um
achado popular e anônimo; outros ainda acusam o gênero de falta de artifício, o que
seria indicador do seu caráter menor. Não se pode esquecer, entretanto, que “a
gauchesca brotou sobretudo em circunstâncias geopolíticas peculiares, quando os
grupos postergados ou marginalizados pelo regime colonial espanhol alçaram a voz ou
se animaram a articular suas opiniões”.40
É preciso dizer ainda que a literatura gauchesca não estabelece com a política
uma relação de mera instrumentalização, embora aquela tenha surgido como uma
alternativa à proposta da Associação de Mayo. Quer dizer, os textos da gauchesca “se
instalam sobre a convenção de que o que se lê são vozes gaúchas ouvidas que deliberam
38 BORGES, Jorge Luis; El Martín Fierro; Buenos Aires: Columba: 1953, pp. 20-21. 39 RIBERA, Jorge B., La primitiva Literatura Gauchesca; op. Cit., p. 34. 40 ROMANO, Eduardo; “Originalidad americana de la poesía gauchesca. Su vinculación con los caudillos federales rioplatenses” in PIZARRO, Ana (org.); América Latina Palavra, Literatura e Cultura – vol. 2; op. Cit., p. 129.
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sem solenidade sobre as grandes questões da vida nacional e sobre como se tramam com
elas as vidas dos pobres do campo”.
Bartolomé Hidalgo é considerado o fundador do gênero gauchesco, e a
composição de seus cielitos coincide com o marco de nascimento da nação, a saber, os
heróicos anos de 1810. Entretanto, segundo boa parte da crítica sobre o assunto, a
gauchesca só atinge o seu apogeu com a aparição do Martín Fierro de José Hernández,
exatamente no contexto de consolidação do Estado Argentino pela geração de 1880.
Primeiramente, ressaltemos que a consagração do poema de Hernández não
ocorreu no exato momento em que o mesmo foi publicado. Pelo contrário, “a
reivindicação do gaúcho Martín Fierro, a exaltação da figura do paisano perseguido
como paradigma do ser argentino, começou em Buenos Aires com uma enquête lançada
pela revista Nosotros em 1913: “Possuímos (...) um poema nacional em cuja estrofe
ressoa a voz da raça?”41. Mas é sobretudo através de Leopoldo Lugones que se cristaliza
em Martín Fierro a imagem do gaúcho como herói épico, embora tal reivindicação
esteja calcada em uma virtude inestimável presente nesse gaúcho: a de não existir.
Portanto, o acento nostálgico contido na reivindicação do poema Martin Fierro como
paradigma do ser argentino não foi capaz de dissimular o alívio com que o
desaparecimento do homem do campo foi celebrado por intelectuais como Lugones,
Ricardo Rojas e Manuel Galvéz.
Em outras palavras, a leitura que essa geração da época do Centenário faz do
livro de Hernández ressignifica a oposição de Sarmiento civilização e barbárie,
acrescentando ademais um forte acento nacionalista. Em El payador (1916), Leopoldo
Lugones “exaltou o caráter épico do Martín Fierro para convertê-lo em nossa gesta
nacional, em algo similar a La Chanson de Roland para os franceses ou o El Cid
espanhol”42. Mas o mais importante a ressaltar é que o gaúcho enaltecido nesses textos é
um gaúcho de ficção, “que somente subsiste na literatura”, ainda que seja nesse gaúcho
ficcional que a nação argentina reconheceu os valores de sua suposta identidade.
Em segundo lugar, destaquemos que o gaúcho Martin Fierro já suscitou diversas
leituras, algumas das quais nem sempre elogiosas ou positivas, como ilustra a avaliação
de Ricardo Rojas de que Hernández seria um “payador inculto”, cuja poesia seria
41 SCHEINES, Graciela; Las metáforas del fracaso Sudamérica ¿geografía del desencuentro?; Ciudad de Havana: Cuba: ediciones Casa de las Américas, 1991, pp. 45-46. 42 ROMANO, Eduardo; “Hacia un perfil de la poética nativista argentina” in Anales de Literatura Hispanoamericana; nº 27: 1998, pp. 73-88.
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inferior à de Rafael Obligado. Borges também teria feito o seguinte comentário:
“Admiro a Martín Fierro como obra literária, mas não como personagem; como tal, me
parece espantoso e sobretudo muito triste que um país tome por ideal a um desertor, a
um prófugo, a um bêbado, a um soldado que passa para o lado inimigo. (...) Creio que
Hernández se antecipou, porque Martín Fierro é um malfeitor sentimental, que se apieda
de seu próprio infortúnio. Os gaúchos devem ter sido gente muito mais dura, deviam se
parecer mais aos gaúchos de Ascasubi ou de Estanislao Del Campo”43.
Já para Rosalba Campra as distintas leituras geradas por este poema são
originadas pela contradição inerente à própria estrutura discursiva de Martín Fierro,
apoiada na defasagem existente entre a palavra que narra e os feitos narrados. Quer
dizer, “a figura de Martín Fierro é contraditória para nós porque o é para si mesma.
Martín Fierro, como personagem, é somente sujeito de uma rememoração: também o é,
para si mesmo, uma figura do passado, uma figura mítica. A força do poema de
Hernandez está em seu caráter de autobiografia, na ficção de uma voz presente diante
do leitor, de quem se requer uma atitude de escuta”44.
Em suma, percebe-se que a leitura épica do poema de Hernández talvez seja um
tanto quanto forçada, sem com isso desmerecer as qualidades estilísticas da obra. Quer
dizer, é preciso analisar a obra de Hernández sem incorrer na obsedante busca dos
elementos de nacionalidade supostamente contidos no poema. Talvez seja necessário
ler Martín Fierro à revelia de noções que surgiram a posteriori, tais como pátria, nação
e argentinidade. Afinal de contas, recuperar a significação histórica de Martín Fierro,
sem escamoteá-la de seu tempo é um imperativo, ainda que essas camadas de leitura
que foram se sedimentando junto ao texto também sejam indicadoras do motivo pelo
qual ele se tornou um monumento de sua cultura.
Estas considerações sobre este clássico da literatura argentina exemplificam o
quão complexo é analisar este “gênero de fronteira”, que se caracteriza pela porosidade
de leituras e pela tentativa de representar as chamadas culturas fronteiriças, dentre as
quais se encontra a do gaúcho. Nessa tentativa, negociações, disputas e alianças
contingentes são estabelecidas, de modo que aquilo que em um momento é rechaçado,
em outro contexto pode ser recuperado. Ou seja, o próprio texto da gauchesca se
converte em uma fronteira, já que exibe tanto suas demarcações internas quanto o
43 VÁSQUEZ, María Esther; Borges: Imágenes, memorias, diálogos; Caracas: Monte Ávila, 1977, p. 59. 44 CAMPRA, Rosalba; “En busca Del gaucho perdido”; op. Cit., pp. 321-22.
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excesso que permanece no seu exterior, e que é fundamental para a manutenção de sua
condição fronteiriça. Afinal, é “nas fronteiras internas da nação (...) [que] a literatura
fabrica alguns dos arquétipos da nacionalidade”45.
Finalmente, é preciso elucidar que a chamada poesia nativista, iniciada com La
cautiva de Echeverría, surgiu justamente em oposição à literatura gauchesca, valendo-se
para isso da incorporação de alguns aspectos do Romantismo - embora ao revalidar o
nacional, ela procurasse principalmente excluir o popular. Este conflito presente nas
letras argentinas, e que se assentava na distinção entre as matrizes cultas (poesia
nativista) e populares (gênero gauchesco), vai até meados do século XX, quando o
repertório do chamado cancioneiro folclórico funde estas duas tradições. Entretanto,
essa poesia nativista conservadora se caracterizará sobretudo pela sua apropriação
desvirtuadora do popular e pela depuração dos elementos folclóricos de seu texto46.
E mais: esse nativismo, re-encenado através de uma retórica nacionalista,
sobreviverá ao tempo e atravessará praticamente todo o século XX argentino,
aparecendo em associações tradicionalistas, programas televisivos, festivais folclóricos
e até mesmo no radioteatro dos anos 60. É nesse contexto que a voz do gaúcho Inodoro
Pereira é alçada a plenos pulmões como uma forma de oposição a este discurso
nacionalista, ferozmente atacado e subvertido através de sua incursão nos desfiladeiros
da paródia.
Nos desfiladeiros da paródia: um gaúcho chamado Inodoro Pereyra.
Talvez não seja casual que a aparição de Inodoro Pereyra na imprensa de
Córdoba em 1972 ocorra exatamente no momento em que o Martín Fierro de José
Hernández comemora seu centenário. Contudo, nosso gaúcho surge para ser muito mais
que um espelho do gaúcho de Hernández, ainda que para isso seu criador recorra a uma
linguagem já conhecida e bastante difundida na Argentina. Desta maneira, não é
redundante dizer que a paródia construída por Roberto Fontanarrosa ridiculariza certo
discurso gauchesco-nativista, principalmente porque sabemos que os anos 60 assistiram
a um boom de temas ligados ao folclore e ao criollismo neste país. Afinal, o criador de
45 FERNÁNDEZ BRAVO, Álvaro; Literatura y frontera; op. Cit., p. 26. 46 ROMANO, Eduardo; “Hacia un perfil de la poética nativista argentina” in Anales de Literatura Hispanoamericana; nº 27: 1998, pp. 73-88.
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Inodoro Pereyra “parodiou um tipo de discurso que estava suficientemente estendido
dentro do tecido social e cujas arestas ideológicas (...) o tornavam escorregadio”.47
Neste sentido, é preciso lembrar que o próprio Fontanarrosa afirmou que seu
trabalho consistia em imitar aos imitadores, embora sua obra resulte em algo muito
maior do que uma mera imitação. Fica, então, as seguintes questões: como uma cópia
pode ser considerada autêntica, haja vista que Inodoro foi lido como a representação do
Gaucho argentino? Como uma manifestação e uma prática cultural “novas” podem ser
vistas como tradicionais? Onde Inodoro Pereyra encontrará a sua identidade?
Se, por um lado, a vida do nosso gaúcho parece refletir de maneira paródica o
Martin Fierro de Hernández, por outro o nome de Inodoro Pereyra é uma espécie de
trocadilho do nome da personagem criada por Borges, Tadeo Isidoro Cruz48. Mas entre
tantos espelhos, não se pode esquecer que a alcunha desse bravo gaúcho é “el renegau”,
já que ele renegou ao seu pai. Isso talvez nos remeta a uma das acepções do termo
gaucho, relacionada à orfandade e a condição de filho natural desta terra, isto é, filho de
um pai ausente. Lembrando também que pátria significa “descendência”, e vem de
pater, pai, é significativo que essa alcunha que carrega Inodoro Pereyra seja uma
negação da figura paterna. “Saber quem é o pai é ter um sobrenome, uma identidade
clara, saber quem sou e de onde venho. Talvez a dificuldade de enraizamento dos
argentinos, o sentimento de estranho no paraíso e a obsessão pela identidade nacional
sejam conseqüência da sensação de orfandade que se arrasta desde a colônia”.49
“Quantos espelhos no mundo da gauchesca” - sintetizou com acuidade Rosalba
Campra. E entre tantos espelhismos, releituras e ataques tácitos, é inevitável não se
indagar sobre as relações existentes entre política e literatura, que fazem da gauchesca,
mais do que um meio homogêneo, um campo de tensões. Afinal de contas, qual é o
diálogo que existe entre o quadrinho de Fontanarrosa e o gênero épico do qual ele é
tributário, e de onde ele retira as mensagens que constituirão o substrato teórico para
suas alusões, trocadilhos e paráfrases?
Ora, como toda paródia que recorre à distorção caricaturesca da “realidade”,
com o objetivo de se produzir o humor, a irreverência ou o grotesco, faz-se necessário
analisar sobretudo os alcances do riso nas histórias de Inodoro Pereyra. Será que a 47 ROMANO, Eduardo; Literatura/ Cine Argentinos sobre la (s) frontera (s); Buenos Aires: Catálogos Editora, 1991, p. 278. 48 BORGES, J. L.; “Biografía de Tadeo Isidoro Cruz (1829-1874)” in El Aleph; Buenos Aires: Emecé, 1973, pp. 53-55. 49 SCHEINES, Graciela; Las metáforas del fracaso; op. Cit., p.26.
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paródia de Fontanarrosa desafia a ordem estabelecida ou ela é um chamamento à
ordem? Que dimensões comportam o olhar crítico e mordaz lançado pelo gaúcho
Inodoro quando parafraseia outros discursos? Enfim, como entender o constante
processo de ressemantização a que as personagens estão submetidas nesta HQ?
O trecho abaixo ilustra muito bem esse diálogo entre a épica e a paródia, bem
como as tensões existentes entre essas duas formas de compreensão da “realidade”, seja
por meio de um discurso grandiloqüente, seja pelo viés do cômico:
-Buenos dias ?Usted es Inodoro Pereyra? -De cuerpo presente. - Me han dicho que es el ultimo gaucho. -!Alijuna con la labuna! !No sabía que era carrera amigo! ?Y quien salió primero?
Quer dizer, através dessa distorção caricaturesca da “realidade”, torna-se
fundamental avaliar em que medida a metáfora sarmientina é ressignificada nos
quadrinhos criados por Fontanarrosa. Quem é o bárbaro e quem é o civilizado na
epopéia criada por El Negro? Notemos que a barbárie, substantivada no texto de
Sarmiento, aparece nesta historieta de maneira altamente intercambiável, por vezes
encarnada na figura dos índios ranqueles; em outros contextos, nos males decorrentes
da vida civilizada; em outros momentos ainda, na própria violência do gaúcho Inodoro
Pereyra. Podemos, assim, aventar a seguinte hipótese para explicar essa fluidez com que
as balizas civilização e barbárie aparecem na obra de Fontanarrosa: talvez esta historieta
seja a dessacralização risonha da própria metáfora sarmientina, que se baseia em uma
“equação falsa, um jogo conceitual, uma frase de papel”. Talvez seja possível entrever
no insólito universo de Inodoro Pereyra uma recusa dessa tradição que encontrou nas
imagens geográficas da América (América como paraíso, como espaço vazio ou como
barbárie) o eixo explicativo da história da nação Argentina.
Em suma, o gaucho Inodoro Pereyra, que renegou ao seu pai e aos seus
antepassados gauchescos épicos, que ridiculariza as tradições seculares e também aos
seus contemporâneos , enfim, que ri das suas origens, talvez queira nos dizer que é
preciso se libertar do peso de um passado que imobiliza a República argentina, contido
nas metáforas espaciais e geográficas da América. Talvez sua mensagem seja, ainda, de
que “o país somos nós, todo nosso passado – a história nacional – nosso presente e
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também os projetos de futuro”50. E que ao invés de se enredar em uma história que dá
voltas sobre si mesma, é preciso escolher um caminho ainda não transitado.51
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