ENTRE O URBANO E O RURAL: AVANÇOS NAS POLÍTICAS PÚBLICAS
HABITACIONAIS PARA COMUNIDADES QUILOMBOLAS
Luana Figueirêdo de Carvalho Oliveira1
RESUMO
O presente artigo busca expor uma parte da pesquisa de mestrado em
desenvolvimento, sobre os impactos qualitativos da implementação do Programa Nacional de
Habitação Rural – PNHR na territorialidade quilombola. O recorte desse artigo se dará no
âmbito do histórico das políticas públicas habitacionais e afirmativas, na perspectiva de
avanço institucional até a conquista de um eixo específico para comunidades quilombolas
dentro do PNHR.
Na perspectiva habitacional, o Estado Brasileiro avança lentamente no enfrentamento
do problema da moradia, de forma a que vem desenvolvendo desde o Banco Nacional de
Habitação - BNH diversos programas habitacionais com resultados variados à nível
quantitativo e qualitativo, descontinuados de uma política integrada e efetiva.
Cabe, porém, ressaltar os avanços mais atuais na implementação da Política Nacional
de Habitação de Interesse Social – PNHIS com a criação do Fundo Nacional de Habitação de
Interesse Social - FNHIS e consequentemente dos Planos de Habitação de Interesse Social nos
pequenos municípios, avançando a nível de instrumentalização municipal e identificação das
demandas habitacionais, especialmente rurais.
O Programa Minha Casa Minha Vida ao qual o PNHR se vincula, se caracteriza como
mais um programa de caráter qualitativo duvidoso dentro do histórico dos programas
habitacionais brasileiros. Contudo o eixo específico para comunidades quilombolas no
contexto mais amplo pode ser avaliado como uma conquista institucional, passível de críticas
quanto aos seus resultados, o que está sendo estudado.
Paralelamente, as políticas afirmativas seguem “conquistando territórios” a partir do
Decreto 4887/2003 que regulamenta a demarcação das terras pertencentes aos remanescentes
1 Arquiteta, Especialista em Habitação de Interesse Social e Mestranda em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal
da Bahia.
de quilombos. Desde então todo um aparato legislativo de decretos, portarias e normativas se
estruturam para garantir a regularização fundiária das terras quilombolas.
Dessa forma o artigo desenha historicamente o avanço das políticas afirmativas e
habitacionais estruturados nos pilares do território, etnicidade e habitação, que sob a
perspectiva da autora, consolidam a luta por direitos, na permanência, afirmação e reprodução
dos modos de fazer e viver quilombolas.
PALAVRAS-CHAVE:
Políticas Habitacionais, Habitação Rural, Quilombolas, Cultura Negra
1. INTRODUÇÃO
O objetivo desse artigo é compreender a evolução das políticas habitacionais no seu
contexto urbano e rural, a partir dos aspectos histórico, social e político, paralelamente as
políticas públicas afirmativas2, e sua trajetória de conquista de direitos pelas comunidades
tradicionais no cenário mais amplo e das comunidades quilombolas mais especificamente.
A formação do território brasileiro é pautada na distribuição desigual de terras e de
grandes propriedades, além da formação social escravista e excludente, onde os camponeses e
a população de menor renda em geral, nunca tiveram oportunidade em ter acesso à terra. A
questão da moradia não figurava como uma prioridade do Estado até se colocar como uma
questão social urgente, no contexto de aumento demográfico nas cidades do séc. XX,
passando então a ganhar a atenção do Estado.
O conceito de habitar é uma construção social, a partir dos costumes que determinada
sociedade adquire. A habitação possui diversas formas tipológicas, objetivos, finalidades
especificas e arranjos no território. Contudo o direito a habitação é politicamente construído
ao longo dos tempos. A mediação do Estado no suprimento dessa necessidade básica é
fundamental para que haja uma resposta efetiva às necessidades dos cidadãos. Quando se trata
de comunidades tradicionais, e comunidades quilombolas, a etnicidade3 e a relação com o
território devem ser priorizadas.
2 O Estatuto da Igualdade Racial define os programas de ação afirmativa constituir-se-ão em políticas públicas destinadas a
reparar as distorções e desigualdades sociais e demais práticas discriminatórias adotadas, nas esferas pública e privada,
durante o processo de formação social do País. (BRASIL, 2010, P.1) 3 Etnicidade pode ser definida pelo conjunto de características comuns a um grupo social que os diferenciam de outros
grupos, características ligadas a cultura, língua, hábitos, religião e identidade.
O Estado brasileiro avança significativamente no desenvolvimento legislativo de
políticas afirmativas que instrumentalizam a inclusão de grande parte dessa população por
muito tempo invisibilizada. O direito a moradia está ligado diretamente a garantia do direito à
terra e a função social da propriedade, contudo por estar inserido na dinâmica internacional de
expansão do capital somado as amarras históricas e políticas da nossa sociedade, a
implementação de diversas ações encontra resistência e dificuldade em ter continuidade e
implementação efetiva.
Dentro da perspectiva da luta pela garantia dos direitos das comunidades tradicionais
quilombolas, se estrutura a espinha dorsal da garantia do direito à moradia, tendo na
regularização fundiária4 a garantia do direito à terra. Nesse cenário de avanço institucional,
que após o lançamento do Programa Minha Casa Minha vida em 2006, o governo federal
lança o Programa Nacional de Habitação Rural - PNHR.
Após permanecerem tantos anos na invisibilidade, o PNHR é sim, mais um passo na
afirmação da luta e da organização das comunidades quilombolas e negras do Brasil. O
resultado da avaliação da implementação desse programa no território quilombola, os
impactos positivos e negativos dessa conquista, cabe ao final da dissertação. Por hora esse
artigo se deterá na trajetória das políticas públicas habitacionais e afirmativas que percorreram
o trajeto de avanço institucional e legislativo brasileiro.
2. POLÍTICA HABITACIONAL NO BRASIL: Entre o Urbano e o Rural
O contexto histórico de formação das nossas cidades está diretamente relacionado ao
processo excludente de ocupação e urbanização do país. O tema da moradia está diretamente
relacionado à questão do acesso à terra, sendo essa a origem da desigualdade no planejamento
territorial e urbano. A forma de acesso à terra no Brasil colônia era instituído por doações da
Coroa Portuguesa através de sesmarias, cessão, aforamento entre outros, concedidas
especialmente para fidalgos, instituições administrativas, militares e religiosas.
A lei de Terras de 1850 institui a mercantilização da mesma determinando que o único
meio de acesso a propriedade de terras era a compra, deslegitimando a posse e a ocupação, ao
mesmo tempo que impedia o seu acesso à imigrantes e trabalhadores livres.
4 O Decreto n 4887/2003 junto a Instrução normativa n.54/2003 regulamenta e define procedimentos para a identificação e
regularização das terras quilombolas.
Devido a organização do sistema econômico de grandes monocultivos e latifúndios,
até meados de 1830 a população brasileira era predominantemente rural. (BALTRUSIUS,
apud FREIRE, 2010, p.22)
Esse cenário sofreu transformações no processo de industrialização do país junto a
mudança nas dinâmicas dos ciclos econômicos, quando o país se urbaniza e iniciam as
grandes migrações campo-cidade, aumentando as demandas por habitação. A Abolição da
escravidão contribuiu para que o contingente populacional desassistido aumentasse
drasticamente, fazendo com que muitos migrassem para a cidade em busca de trabalho livre.
Essas raízes da segregação espacial serão percebidas posteriormente, de acordo com Gordilho
(2008):
“A lógica da estruturação do espaço sob o capitalismo industrial,
ao ampliar-se de forma desigual e combinada no tempo e no
espaço [...] adquire características especificas, sem perder a sua
essência - a desigualdade social - que pode ser lida nas diversas
formas de segregação da moradia.” (GORDILHO, 2008, p.25)
É nesse contexto, de princípios do século XX, que somada a imigração pós 1ª guerra
eclode com mais ênfase a questão habitacional, com o Estado intervindo sob a lógica
sanitarista e de saúde, nos cortiços e casas de cômodos superlotadas com precárias (ou
inexistentes) instalações sanitárias, foco de propagação de doenças.5 Nesse momento as
intervenções eram apenas de erradicação dos focos, sem oferecer opções de habitação para
essa população. As estratégias desenvolvidas por essas pessoas se refletem até hoje na
configuração do tecido urbano das nossas cidades, em diversas ocupações informais, nas
periferias e em locais de difícil urbanização como em encostas e vales, de forma a garantir sua
sobrevivência e trabalho próximos ao núcleo urbano.
“O problema da habitação popular no final do século XIX é
concomitante aos primeiros indícios de segregação espacial. Se
a expansão da cidade e a concentração dos trabalhadores
ocasionou inúmeros problemas, a segregação social do espaço
impedia que os diferentes estratos sociais sofressem da mesma
maneira os efeitos da crise urbana, garantindo à elite áreas de
uso exclusivo, livres de deterioração, além de uma apropriação
diferenciada dos investimentos públicos.“(BONDUKI, 2004,
p.20)
5 Essas moradias abrigavam um alto numero de ocupantes por unidade, sendo bastante insalubres, com banheiros coletivos ou
inexistentes, ambiente propicio a varias epidemias. Elas constituíam a única opção para essa população recém-chegada na
cidade, sem nenhuma opção por parte do Estado. FREIRE,2010.
A questão habitacional apenas se torna uma preocupação do Estado, a partir do
governo Vargas. O Estado Novo propõe uma estratégia desenvolvimentista, onde as questões
econômicas se tornam preocupação do poder público e das entidades empresariais
comprometidas com o desenvolvimento nacional.
Em 1933 são criados os Institutos de Aposentadoria e Pensão - IAP´s, primeiras
instituições que tratam da questão de habitação. Os IAPs atuaram até 1964 construindo 279
conjuntos habitacionais, sendo considerado inexpressiva a produção de unidades habitacionais
diante da carência em diversos segmentos populacionais. Ainda assim configurando a
inferência do Estado na produção habitacional.
O Estado Novo tinha como base o populismo6 e na defesa dos direitos dos
trabalhadores a casa própria7 era símbolo do reconhecimento e resultado do compromisso do
Estado para com os mesmos. As mudanças eram favorecidas pelo contexto ideológico, pois
até esse momento a condição de moradia era o aluguel, sem subsídios de financiamento ou
outras formas de acesso a casa própria.
A Fundação da Casa Popular – FCP, pelo decreto Federal lei 9.218 em 1 de maio de
1946, no governo de Eurico Gaspar Dutra cria o primeiro órgão em âmbito nacional voltado a
população de baixa renda. Durante o período de sua atividade, até 1964 a FCP construiu
19.000 unidades.
Bonduki (2004, apud Freire, 2010) avalia que nesse período o Estado não se organizou
de modo sério para enfrentar o problema habitacional, agindo de forma fragmentária nas
carteiras prediais dos IAP´s, na FCP, em outros institutos previdenciários de funcionários
públicos e em orgãos estaduais ou municipais, desvinculados de uma política habitacional
mais ampla.
No período que se segue, o acelerado processo de industrialização e urbanização do
país, abertura da economia para o capital internacional entre outros fatores, aumentaram a
pressão social e a instabilidade política culminando com o golpe militar de 1964, que
instalaria uma outra ordem no pais. A crise urbana e habitacional se aprofundou, evidenciando
a urgência de se estruturar uma política habitacional e urbana.
6 O regime autoritário populista tem por mote uma nova postura do governo com relação aos setores populares, através de
uma política urbanizadora, se estabelecendo a construção da representação de Vargas como o pai dos pobres. 7 “Cria-se efetivamente um novo setor industrial – o imobiliário – que produz moradias não mais pela lógica rentista, mas
pela mercantilização capitalista dessa nova mercadoria, a habitação privada.” (GORDILHO, 2008, p.29)
O tema da habitação de interesse social, ganha força nesse momento, junto aos
movimentos pela reforma urbana, sendo tema de diversos seminários de habitação e reforma
urbana - SHRU8, produção importante, semente de diversas iniciativas que seriam
implementadas 20 anos depois, parcialmente apropriadas pelo regime militar na
transformação do setor habitacional e urbano com a criação do Banco Nacional de Habitação
- BNH9 e do Serviço Federal de Habitação e Urbanismo - SERFHAU.
O BNH inseriu um novo modelo de políticas públicas para a questão de moradia no
país através do Sistema Financeiro de Habitação - SFH, tendo como fonte de recurso a
Caderneta de Poupança e o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço - FGTS, prevendo o
atendimento de três faixas distintas do mercado: O mercado Popular (até três salários
mínimos); o Mercado Econômico (três a seis salários) e o Mercado Medio (renda superior a
três salários minímos). Foram criadas as Companhias de Habitação – COHABs, agentes
executores nos Estados, responsáveis pela construção e comercialização dos projetos
habitacionais padronizados.
O resultado da migração das décadas de 70 e 8010 chega a somar 33% da população
nacional, com uma média de 15 milhões de migrantes, em especial da região norte e nordeste,
que diante da impossibilidade de acesso à moradia, se instalaram em diversas forma de
ocupações informais e subnormais, em áreas periféricas da cidade, pequenos guetos, favelas e
nas mais variadas formas encontradas por essa população para permanecer próximas aos
centros da cidade (cortiços, habitações coletivas, situação de rua), exercendo também variados
tipos de trabalho formal e informal, contribuindo para um adensamento não planejado e o
consequente aumento das demandas por serviços e políticas públicas, assim como a violência
urbana, resultados da desigualdade social materializada nos grandes centros urbanos.
No período de redemocratização pós ditadura, a questão urbana ganha novos ares e
novos sujeitos com os movimentos sociais organizados, exigindo transformações estruturais,
8 Entre as propostas do SHRU estava à criação de uma nova estrutura institucional, com um órgão central encarregado da
questão urbana e habitacional, e fontes específicas de recursos a serem concentradas num Fundo Nacional de Habitação, a
serem investidos de acordo com os critérios estabelecidos nos planos nacionais. (Bonduki, 2010) 9 A instituição do BNH, pela Lei 4.380 de 1964, como órgão central da política habitacional tinha como objetivo de
coordenar a ação dos órgãos públicos e orientar a iniciativa privada, estimulando a construção de moradias populares,
financiar a aquisição da casa própria, melhorar o padrão habitacional, eliminar favelas, estimular o investimento da indústria
e da construção civil. (Rodrigues, 2003, apud, Freire, 2010, 0.30). 10 A mecanização no campo e a revolução verde criam precedentes para processos de esvaziamento do campo e inchaço
urbano, delineando relações sociais e econômicas diversas e perversas, com grandes massas de trabalhadores desempregados,
ou sub empregados em condições de extrema precariedade e subsistência atraídos pelo sonho capitalista de possibilidades e
consumo que a “cidade grande” oferece.
em especial a reforma urbana. A crescente crise habitacional se transforma no foco de debates
nacionais envolvendo os ministérios e o Instituto dos arquitetos em torno da reformulação do
Sistema Financeiro de Habitação.
"Vivia-se o clima da luta pelas eleições diretas para Presidente e
pela Constituinte, com grande mobilização popular, e a oposição
ao BNH se inseria no combate à ditadura. Neste contexto,
organizou-se, por um lado, o movimento de moradia (urbano) e
dos sem-terra (rural), que reunia os que não conseguiam ter
acesso a um financiamento da casa própria e, por outro, o
Movimento Nacional dos Mutuários que agregava mutuários de
baixa renda e classe média, incapacitados de pagar a prestação
da sonhada casa própria. Ambos criticavam o caráter financeiro
do SFH e pediam mudanças.” (BOUNDUKI, 2010)
No governo Sarney, em 1986 o Banco Nacional de Habitação é extinto abruptamente e
transfere suas atividades para a Caixa Econômica Federal, banco comercial público, herdando
as questões de inadimplência do mesmo, comprovando a desarticulação institucional e a falta
de estratégias para enfrentar a questão substancial dos problemas de habitação. No âmbito da
habitação de interesse social a Secretaria de Ação Especial Comunitária e o Programa
Nacional conhecido por “Mutirões do Sarney”, criando alternativas para atendimento à
população com renda até três salários mínimos, com um modelo que permite maior autonomia
dos estados e municípios, ao mesmo tempo que facilita a corrupção.
De acordo com Freire (2010) O Governo Collor semelhante ao governo anterior,
mantém mecanismos de alocação de recursos que facilitam o clientelismo, aliado a vários
programas de habitação, a atuação do governo diversifica os agentes promotores que passam a
incluir empresas da construção civil e se desarticula a habitação popular de saneamento e
desenvolvimento urbano. Esse mesmo governo diversificou os agentes promotores incluindo
até empresas de construção civil:
“O governo Collor criou vários programas para a habitação
como o: Programa Empresário Popular, Programa de Habitação
Popular e Programa de Cooperativas, com recursos do FGTS;
Programa de Construção e Recuperação de Áreas Degradadas,
com recursos da OGU- Orçamento Geral da União, e o principal
deles, o Plano de Ação Imediata para Habitação – PAIH. Este
último constitui-se no mais significativo pelo desafio da
proposta de construir, 245 mil unidades.” (FREIRE, 2010, p.37)
Após o Impeachment, de Collor, o vice-presidente Itamar ajusta alguns parâmetros nos
programas de habitação popular passando a exigir participação dos conselhos comunitários
compostos de representantes da sociedade civil com a representantes do governo local, além
de uma contrapartida deste aos investimentos da união. Os programas Habitar Brasil e Morar
Município visavam atender municípios com mais de 50 mil habitantes.
Nesse período se caracteriza a total desarticulação e descredibilidade da política
habitacional, com a criação e extinção de diversas secretárias e órgãos, além de programas e
projetos, onde o setor responsável pela gestão dessa política esteve subordinado a mais de 07
diferentes Ministérios11, refletindo na produção de habitação e demonstrando o não
enfrentamento da questão.
As políticas especificas de habitação para o meio rural começaram a ser
implementadas a partir da política de colonização do Instituto Nacional de Colonização e
reforma Agrária – INCRA, de acordo com Moreira e Germani (2016). Criado no período do
governo militar possuía como objetivo subsidiar o processo de colonização rural e expansão
das divisas para o capitalismo agrícola e industrial para exploração de recursos especialmente
na Amazônia. O exemplo emblemático desse período são os projetos implementados as
margens da Transamazônica12.
A questão da habitação rural foi inserida no art. 187, do capítulo III – Da Política
Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária, conforme o texto a seguir:
Art. 187 - A política agrícola será planejada e executada na
forma da lei, com a participação efetiva do setor de produção,
envolvendo produtores e trabalhadores rurais, bem como os
setores de comercialização, de armazenamento e de transportes,
levando em conta, especialmente:
I - os instrumentos creditícios e fiscais;
II - os preços compatíveis com os custos de produção e a
garantia de comercialização;
III - o incentivo à pesquisa e à tecnologia;
IV - a assistência técnica e extensão rural;
o seguro agrícola;
VI - o cooperativismo;
VII - a eletrificação rural e irrigação;
VIII - a habitação para o trabalhador rural.
(BRASIL. Constituição Federal, 1988, art. 187- grifo nosso).
11 Analise da professora Angela Gordilho, em seu livro Limites do Habitar, 2008. 12 Os projetos realizados pelo INCRA nesse período tiveram como consequência, contrariamente a prosperidade da produção
agrícola, a pobreza e o abandono, aumentando os problemas de milhares de famílias assentadas em locais de difícil
acessibilidade, além de desconsiderarem os modos de vida tradicional e rural em suas tipologias.
Os principais programas destinados a comunidades rurais possuíam como estratégia
nacional o desenvolvimento de atividades produtivas e geração de emprego e renda,
desvinculados de uma política mais abrangente que articulasse a questão fundiária e
habitacional. Nesse período as ações de implementação de habitação no campo eram
realizadas de forma descentralizada por iniciativa própria, pelos municípios, pela igreja e pela
Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) através de ações vinculadas ao saneamento e
combate a doenças, como a de chagas13.
O INCRA através do Crédito Instalação, destinava recurso para os assentados afim de
proporcionar condições mínimas de habitação, suprimento alimentar, insumos e ferramentas
para a produção agrícola de subsistência. Os recursos não eram controlados, sem a definição
de valores específicos para cada modalidade de crédito, sendo comum encontrar casas em
taipa, adobe, sem infraestrutura sanitária e com dimensões reduzidas, pois os assentados
priorizavam aplicar os recursos em ferramentas, alimentos e insumos.
No Governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC) houve uma inovação através da
Instrução Normativa Nº 19 de 10 de setembro de 1997 quanto a forma de aplicação e
prestação de contas dos recursos, constituindo maior capacitação e participação social
(GERMANI E MOREIRA, 2016). Nesse período houveram ações mais estruturadas por parte
do estado diante da resistência camponesa e do movimento organizado protagonizado pelo
Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST).
Moreira e Germani (2016) avaliam a evolução dos recursos disponíveis para o INCRA
na implementação das habitações nos governos Itamar, FHC e Lula, constatando que para
além das questões políticas de gestão de recursos, o aumento no valor por unidade
habitacional, permitiu que o governo Lula apesar de produzir um menor número de
habitações, estas possuíam melhor qualidade.14
3. NOVOS PRINCÍPIOS E SUJEITOS: Remodelagem da Política Habitacional
A constituição de 1988 é um marco no processo de redemocratização política do
Brasil, sendo entendida como elemento primordial na solidificação dos direitos individuais e
13 Germani e Moreira, 2016, p. 04 14 “ Este aspecto suscita a dedução de que o aumento real adicionado aos Créditos Instalação no Governo Lula viabilizaram a
construção de habitações mais completas para os assentados que os governos anteriores. “ (Germani e Moreira, 2017, p.8)
coletivos. Destacando o reconhecimento da função social da propriedade, do direito à moradia
e o reconhecimento por parte do Estado da diversidade sócio- cultural Brasileira, de forma a
operar de forma direta sobre princípios fundamentais da constituição da sociedade brasileira15.
Em seu artigo 5° o direito à propriedade foi garantido enquanto direito fundamental,
mas atribuído a esse o interesse social em seu inciso XXIII “ a propriedade atenderá a sua
função social”. Considerada como elemento fundamental, a propriedade não pode mais ser
vista apenas como um direito civil (direito real), sendo seu conteúdo delineado pelo direito
constitucional, seja para defini-la como um direito individual, seja para defini-la também
como um direito social.16
O art. 6º define que são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho,
a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, entre outros. Reforçados
pelo artigo 183 que dispõe sobre a Política de Desenvolvimento Urbano e os artigos 184 e 185
da Política Agrícola e de Reforma Agrária que incluem a posse da propriedade após cinco
anos de permanência a relação de uso, posse e propriedade é destacada. Ainda na constituição
cidadã, em seu artigo 216 das Disposições Transitórias é reconhecido o direito à propriedade
definitiva aos remanescentes das comunidades dos quilombos, assim como no artigo 231 a
posse permanente das terras ocupadas pelos índios.
A partir desse momento os diversos sujeitos políticos até então invisibilizados ganham
diversas vozes – negros, índios, mulheres – e se inicia um processo de reconhecimento do
direito cidadão, direito a ter direitos. Merece destaque ascensão da atuação dos Movimentos
Sociais, como o Movimento dos Trabalhadores sem Terra – MST e os diversos movimentos
pela reforma urbana e moradia nas cidades.
Desde a extinção do Banco Nacional de Habitação, em meados dos anos 1980,
inexistia no país uma estrutura pública de financiamento para as políticas habitacionais. O
governo FHC reconhece a necessidade de descentralizar e aumentar o controle social sobre a
gestão dos Programas Habitacionais, reconhecendo que a grande parte da população de baixa
renda do país trabalha no setor informal e/ou habita moradias informais.
A Secretaria de Política Urbana do Ministério – SEPURB, ficaria responsável pela
formulação e implementação da política habitacional baseadas no Sistema Financeiro de
15 Observações do professor Alfredo Wagner Breno a respeito do caminho jurídico institucional da implementação da Política
Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais. 16 De acordo com Holz e Monteiro (2008)
Habitação. Em 1996 é lançada a Política Nacional de Habitação (no âmbito do Programa de
governo - Brasil em ação (1994-1997) e Avança Brasil (1998-2001), tendo como premissas:
1. Universalização do acesso à moradia, por meio de soluções
adequadas à natureza da demanda, considerando-se as
características regionais e as condições sócio-econômicas dos
diversos grupos sociais;
2. Articulações das ações governamentais com a atuação da
sociedade civil, especialmente o setor privado e as populações
beneficiárias;
3. Democratização da gestão dos programas habitacionais,
institucionalizando-se mecanismos de participação e de controle
social;
4. Promoção do desenvolvimento institucional das entidades que
atuam no setor habitacional (FREIRE, 2010, p.39)
Essas diretrizes se aproximam do Brasil real (Freire, 2010) onde o governo começa a
priorizar áreas degradadas e inovar no reconhecimento das favelas como parte da cidade e a
possibilidade de integra-las em condições de habitabilidade mantendo os moradores no local.
Diversos programas de alternativas para habitações populares desenvolvidos nesse
período: O Programa Habitar – Brasil tem foco na reurbanização de áreas degradadas e
melhorias habitacionais, para famílias com até três salários mínimos, repassando recursos do
OGU ao governo local, a fundo perdido, sem contrapartida da população; O Pró Moradia
possuía os mesmos objetivos do Habitar -Brasil, contudo com recursos do FGTS exigindo
contrapartidas e exigências especificas aos estados e municípios; O Habitar-Brasil/BID tem o
mesmo objetivo e mesmo público, contudo o financiamento era proveniente além da OGU e
FGTS também do BID, com intervenções em infraestruturas urbanas, entre outros.
Como desdobrando e marco de todos os esforços pela luta da reforma urbana, o direito
a cidade e a institucionalização de uma política urbana, em setembro de 2001, o Estatuto da
Cidade (Lei 10.257/01) foi aprovado após 11 anos de tramitação no Congresso, criando o
instrumento da assistência técnica e jurídica gratuita para comunidades e grupos sociais
menos favorecidos.
O Estatuto da Cidade estabelece as diretrizes gerais da política urbana a ser adotada
pelos Municípios brasileiros quando da elaboração do plano diretor, respeitando:
“ A garantia de cidades sustentáveis – entendida como o direito
à terra urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho
e ao lazer, para as presentes e futuras gerações. Para fazer valer
este direito – de moradia digna – os Municípios têm que, em seu
plano diretor, regulamentar os instrumentos previstos no
Estatuto da Cidade de forma a promover habitação consoante o
que dispõe o art. 2º, VI sem qualquer discriminação social,
condição econômica, raça, cor, sexo ou idade. Para isso é
necessário que se faça a cumprir a função social da
propriedade.” ( Holz e Monteiro, 2008, p.6 ).
Em 2014 é instituída a Política Nacional de Habitação - PNH que considera a moradia
como um direito do cidadão; direito humano básico previsto na declaração universal de
direitos humanos e na constituição de 1988; em caráter mais amplo, devendo garantir um
padrão mínimo de habitabilidade e acesso a equipamentos e infraestrutura urbana, tais como
transporte, educação, saúde, saneamento, entre outros.
A PNH é subdividida no Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social - SNHIS,
através da Lei 11.124/05, com o objetivo de implementar investimentos e subsídios advindos
do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social - FNHIS para viabilizar o acesso à
moradia digna e sustentável às populações de menor renda e no subsistema de Financiamento
a Habitação de Mercado, renda acima de 5 salários mínimos.
A criação do SNHIS colabora para o fortalecimento das políticas públicas de
promoção da habitação em todo o país e, como consequência quase direta, começam a ser
elaborados, em municípios de todo o país, os Planos Locais de Habitação de Interesse
Social17.
O Programa Minha Casa Minha Vida é lançado em 2009 a partir das diretrizes do
Programa de Aceleração de Crescimento - PAC. O programa institui modalidades para
famílias com renda até 03 salários mínimos; de 03 a 10 salários mínimos e a modalidade
Entidades – Operações coletivas urbanas e rurais em parceria com associações e cooperativas.
O programa é visto como positivo na perspectiva de redução do déficit habitacional,
mesmo que não necessariamente na faixa mais necessitada18. Apresentado como uma resposta
ao setor habitacional e a crise internacional, é amplamente criticado quanto ao seu público
17 No âmbito da arquitetura e urbanismo esse direito é uma grande conquista na implementação de serviços de arquitetura e
urbanismo a população de baixa renda, assim como a melhoria na qualidade e urbanização desses assentamentos 18 O déficit habitacional urbano de famílias entre 3 e 10 salários mínimos corresponde a apenas 15,2% do total [...] mas
receberá 60% das unidades e 53% do subsídio público [...] essa faixa poderá ser atendida em 70% do seu déficit, satisfazendo
o mercado imobiliário, que a considera mais lucrativa. Enquanto isso, 82,5% do déficit habitacional urbano concentra-se
abaixo dos 3 salários mínimos, mas receberá apenas 35% das unidades do pacote, o que corresponde a 8% do total do déficit
para esta faixa. No caso do déficit rural, [...] a porcentagem de atendimento é pífia, 3% do total necessário. (FIX; ARANTES,
2009).
alvo prioritário, tipologia com dimensões reduzidas, articulação urbana e relação das
empresas construtoras com o município no que tange ao planejamento habitacional e urbano.
Ao assumir como mote principal uma perspectiva quantitativa, o Programa Minha
Casa Minha Vida fortalece essa tradição, deixando em segundo plano aspectos de qualidade
arquitetônica e dos impactos urbanos da produção sendo a equação entre quantidade e
qualidade, um dos desafios mais difíceis para a boa arquitetura e o bom urbanismo.
A articulação urbana e rural está diretamente dependente de cada município e suas
restrições legislativas com relação ao uso e ocupação do solo, código de obras e demais
parâmetros urbanísticos, sendo portanto compartilhada a responsabilidade quanto a qualidade
e localização dos empreendimentos. Além da desarticulação com as políticas habitacionais já
existentes e sistemas em funcionamento.
4. POLÍTICAS AFIRMATIVAS: A trajetória de conquista de direitos
A Fundação Cultural Palmares - FCP foi a primeira instituição pública voltada para a
promoção e preservação da arte e da cultura afro-brasileira, responsável pela identificação e
certificação dos Remanescentes de Quilombo - CRQ, primeiro passo para a regularização
fundiária e acesso aos programas de políticas públicas voltadas para a igualdade racial e ao
combate à discriminação étnica.
A Lei 12.288 que institui o Estatuto da Igualdade Racial dispões de diretrizes gerais
visando “garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos
direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais
formas de intolerância étnica.”(BRASIL, 2000).
Dessa forma a partir do Estatuto de Igualdade racial são desenvolvidos diversos
aparatos institucionais e legais afim de garantir a implementação de diversas políticas de
ações afirmativas onde o Estado e a iniciativa privada buscam medidas especiais para
correção das desigualdades raciais e para a promoção da igualdade de oportunidades. O
Estatuto reafirma os artigos 215 e 216 da constituição federal sobre a preservação cultural do
patrimônio imaterial brasileiro, a garantia da autodefinição e versa nos capítulos IV e V sobre
o acesso a terra e moradia adequada.
Art. 31. Aos remanescentes das comunidades dos
quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a
propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos
respectivos.
Art. 32. O Poder Executivo federal elaborará e
desenvolverá políticas públicas especiais voltadas para o
desenvolvimento sustentável dos remanescentes das
comunidades dos quilombos, respeitando as tradições de
proteção ambiental das comunidades.
Art. 35. O poder público garantirá a implementação de
políticas públicas para assegurar o direito à moradia
adequada da população negra que vive em favelas, cortiços,
áreas urbanas subutilizadas, degradadas ou em processo de
degradação, a fim de reintegrá-las à dinâmica urbana e
promover melhorias no ambiente e na qualidade de vida.
Parágrafo único. O direito à moradia adequada, para os
efeitos desta Lei, inclui não apenas o provimento
habitacional, mas também a garantia da infraestrutura
urbana e dos equipamentos comunitários associados à
função habitacional, bem como a assistência técnica e
jurídica para a construção, a reforma ou a regularização
fundiária da habitação em área urbana. (BRASIL, 2000, p.5 -
grifo nosso)
A partir de 2003, se adensam as políticas públicas e órgãos de apoio as políticas
afirmativas. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA passa a ser o
responsável pelo reconhecimento, demarcação e titulação das terras ocupadas pelas
comunidades remanescentes de quilombos. A Coordenação de Desenvolvimento Agrário -
CDA se torna o órgão responsável por conduzir a regularização e titulação das terras, por
parte do governo do Estado, tornando viável a regularização das terras quilombolas em vistas
de que o INCRA não consegue dar vazão as demandas crescentes de comunidades
reconhecidas19.
O Decreto n 4887/2003 junto a Instrução normativa n.54/2003 regulamenta e define
procedimentos para a identificação e regularização das terras quilombolas, estruturando ações
que efetivam o direito e o acesso à terra dessas comunidades. Esse marco institucional é um
avança na garantia dos direitos dos povos e comunidades tradicionais, tendo em vista a já
mencionada necessidade de segurança com relação a questão fundiária para que se efetive
uma política habitacional eficiente.
19 Moreira e Germani (2016) observam que não é possível trabalhar políticas públicas habitacionais sem considerar a questão
agrária, verificando que na Bahia, a produção habitacional precária das comunidades tradicionais, demonstra que os conflitos
por terra geram insegurança e impossibilidade de investimentos em moradias de longa permanência, prevalecendo as
autoconstruções.
O Decreto n.6040/2007 que institui a Política Nacional de Desenvolvimento de Povos
e Comunidades Tradicionais – PNPCT, reconhece:
“Os povos e comunidades tradicionais os grupos culturalmente
diferenciados, que tem condições sociais, culturais, econômicas
e ambientais próprias. Organizam-se por seus próprios costumes
e tradições. [...] O seu modo de vida e suas instituições são
distintos da sociedade em geral, o que faz com que esses grupos
se auto reconheçam portadores de uma identidade própria. [...]
Associada a uma identidade étnico-racial negra ou indígena [...]
Mantêm relações especificas com o território e o meio
ambiente. O modo de vida tradicional respeita o princípio da
sustentabilidade, assegurando a sobrevivência da geração
presente sob os aspectos físico, cultural e econômico,
oferecendo as mesmas possibilidades a gerações futuras.”
(BRASIL, 2011)20
A partir do Programa Brasil Quilombola - PBQ, se estrutura enfim, políticas públicas
em quatro eixos principais: a) acesso à terra; b) infraestrutura e qualidade de vida; c)
desenvolvimento local e inclusão produtiva; e d) direitos e cidadania, garantindo, a
implementação dos programas governamentais no território tradicional.
A implementação e aplicação dessas políticas, é articulada por diversas secretarias a
nível estadual e federal, como a Secretária de Políticas de Promoção da Igualdade Racial -
SEPPIR, Secretaria de Promoção da Igualdade Racial do Governo do Estado da Bahia -
SEPROMI e Secretaria de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia - SEDUR, contudo
na legislação brasileira a gestão e o planejamento do campo e da cidade cabem ao município,
o qual deve buscar o equilíbrio ambiental, social e econômico, de acordo com o estabelecido
pelo Estatuto da Cidade, no artigos 2º, § 7º, onde estabelece como diretriz a “integração e
complementaridade entre as atividades urbanas e rurais”, expressa claramente que “o plano
diretor deverá englobar o território do município como um todo”. (BRASIL, 2001).21
5. PROGRAMA NACIONAL DE HABITAÇÃO RURAL: Conquista para as
Comunidades Tradicionais Quilombolas
20 Cartilha de Direitos de Povos e Comunidades Tradicionais, desenvolvida pela Secretaria da Promoção da Igualdade Racial
- SEPPIR, atráves da Coordenação de Políticas para as Comunidades Tradicionais - CPCT, em 2011. 21 Observações de Delania Azevedo Batista em sua dissertação:“ Políticas Urbanas e seus impactos na territorialidade do
Quilombo das Laranjeiras”.
As políticas Públicas voltadas para a habitação rural aparecem após as políticas
habitacionais destinadas as cidades, conforme descrito anteriormente. Apesar de figurarem na
lei 4.380/64, no artigo 4, da instituição do Sistema Financeiro de Habitação (SFH), o BNH
teve uma atuação restrita ao meio urbano.
Art. 1º – O Governo Federal, através do Ministro de
Planejamento, formulará a política nacional de habitação e de
planejamento territorial, coordenando a ação dos órgãos
públicos e orientando a iniciativa privada no sentido de
estimular a construção de habitações de interesse social e o
financiamento da aquisição da casa própria, especialmente pelas
classes da população de menor renda.
Art. 4º – Terão prioridade na aplicação dos recursos:
I – a construção de conjuntos habitacionais destinados à
eliminação de favelas, mocambos e outras aglomerações em
condições subumanas de habitação; [...]
IV – a construção de moradia para a população rural.
(BRASIL. Lei 4.380, 1964, art.1 e 4 – grifo nosso).
Antes do Programa Nacional de Habitação Rural - PNHR22 a construção e melhorias
habitacionais não eram destinadas a esse público especifico, tendo suas ações realizadas
especialmente pelo INCRA, FUNASA, CAR, SEDUR e prefeituras dos municípios, de forma
desconexa e descontinua.
Antes de 2011, as intervenções habitacionais financiadas pelo Ministério das Cidades
enquadravam-se nos programas de financiamento existentes para uso do Fundo Nacional de
Habitação de Interesse Social (FNHIS). Porém, as ações governamentais mais efetivas,
quanto ao equacionamento do déficit habitacional do rural, vêm sendo observadas com a
implantação do subprograma do MCMV denominado Programa Nacional da Habitação Rural
(PNHR), implementado a partir de 2011. (GERMANI E MOREIRA, 2016, p.10)
Assim, a partir do PNHR, as comunidades tradicionais foram formalmente
introduzidas como público alvo da política habitacional que, beneficia agricultores,
pescadores artesanais, extrativistas, silvícolas, aquicultores, maricultores, piscicultores,
comunidades quilombolas e povos indígenas.23
22 Em 2009 como um dos eixos do Programa de Aceleração do Crescimento - PAC o Programa habitacional Minha Casa –
Minha Vida – MCMV, por intermédio da Medida Provisória nº 459, de 25 de março de 2009, transformada na Lei nº
11.977, de 7 de julho de 2009 e alterada pela Lei 12.424, de 16 de junho de 2011. (Germani e Moreira, 2016, p.10) 23 Os beneficiários de reforma agrária foram incluídos no PNHR a partir da portaria interministerial nº78, de 08/02/2013.
(Moreira e Germani, 2017, p.10).
O PNHR é viabilizado através de recursos do Orçamento Geral da União – OGU
destinados ao subsidio e do Fundo de Garantia e Tempo de Serviço – FGTS destinados ao
financiamento, gerido pelo Ministério das Cidades e operacionalizados pela Caixa Econômica
Federal. Os beneficiários devem possuir renda bruta anual de até R$15.000,00 e subsidiar 4%
do investimento.
As modalidades de execução contemplam os custos para os materiais de construção,
assistência técnica (arquitetura e engenharia) e trabalho social, podendo financiar novas
habitações ou reformas e ampliações. Germani e Moreira avaliam a implementação do
programa em diversos segmentos de comunidades tradicionais e constatam que o programa
vem atendendo algumas comunidades com maior e menor êxito em função da rejeição das
unidades habitacionais por algumas famílias, devido a inadequação dos projetos
arquitetônicos em relação ao modo de vida das comunidades atendidas.
“Apesar dos problemas elencados, o MCMV, através do
PNHR se constitui num avanço para as políticas públicas no que
concerne a habitação. É a primeira vez na história que as
comunidades tradicionais são consideradas, de forma específica,
para este tipo de política. A adequação e ampliação deste
programa só poderão ser viabilizadas pela pressão social dos
grupos envolvidos, além da compreensão técnica dos
profissionais responsáveis pela implementação do Programa.”
(Germani e Moreira, 2016, p.14)
Apesar da conquista de uma política habitacional especifica, a inexistência de projetos
participativos, a baixa qualidade do padrão construtivo e a desarticulação com a infraestrutura
de transporte e serviços básicos contribui para a ineficiência do programa. O não atendimento
das diretrizes do Estatuto da Igualdade Racial proporciona a dificuldade de adaptação das
comunidades às habitações, nos âmbitos espaciais, culturais e ambientais.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Primeiramente é fundamental reconhecer o avanço institucional na garantia de direitos
e políticas públicas específicas as comunidades tradicionais e especialmente quilombolas,
ressaltando seus modos de vida estão intrinsecamente ligado às noções de território e
etnicidade. A implementação e execução de estruturas físicas em seus territórios étnicos
devem, portanto, se adequar ao modo de fazer e viver dessas pessoas.
Diferente das dinâmicas exclusivamente urbanas, os povos tradicionais tem na
estância da terra a materialização de sua identidade étnica e cultural, o seu território, através
de seus modos de fazer e viver característica fundamental que os diferenciam e afirma, tendo
na casa um espaço não apenas para relações familiares, mas também sociais e produtivas, ou
seja, o território constitui o meio e o instrumento da reprodução material, social, cultural e
étnica das comunidades quilombolas.
As políticas habitacionais para essas comunidades, e especialmente o PNHR são um
instrumento fundamental para a permanência e continuidade dos modos de vida desses povos
no campo, pois além da questão da garantia de acesso à terra e a água, a questão fundamental
para comunidades que conquistaram o direito ao território é: como os projetos habitacionais
para essas áreas podem garantir uma habitação adequada, desenvolvimento sustentável24 e a
preservação cultural do território?
“A terra constitui a base geográfica fundamental da manutenção
da comunidade e coletividade. Nesse sentido a territorialidade se
apresenta como um esforço coletivo do grupo social para firmar
a sua ocupação, manter seu ambiente e definir o território. [...]
Desta forma o território étnico seria o espaço construído,
materializado a partir das referências de identidade e
pertencimento ao território com uma origem comum. Esse tipo
de estrutura espacial possui historicamente conflitos com o
sistema dominante, exigindo dessas estruturas a organização de
uma instituição de autoafirmação política, social, econômica e
territorial.” (ANJOS, 2006)
Como já mencionado, a questão relevante em relação aos povos tradicionais é que para
a reprodução do modo de vida tradicional a casa isoladamente, não se sustenta. Sendo
impossível dissociar a questão fundiária da habitacional, com destaque para reforma agrária
nunca ocorrida no Brasil. Alentejano (2015) destaca a expansão e o fortalecimento do
agronegócio e o estancamento da tímida distribuição de terras entre camponeses indígenas e
quilombolas, que lutam desde os anos 80 contra a desigualdade na distribuição de terras no
Brasil, afirmando que os latifundiários permanecem controlando mais terras que os demais
segmentos da sociedade.
24 De acordo com a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais:
Desenvolvimento Sustentável é o uso equilibrado dos recursos naturais, voltado para a melhoria da qualidade de vida da
presente geração, garantindo as mesmas possibilidades para as gerações futuras.
A conceituação adotada de quilombos contemporâneos, parte da Constituição Federal
de 1988 e o artigo 68 das ADCT, onde o Estado não apenas reconhece a identidade política,
administrativa e legal dos quilombolas ao instituir a lei, mas também constitui um novo
sujeito social.23
Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que
estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade
definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.
(BRASIL, 1988)
Sendo assim, de acordo com a Associação Brasileira de Antropologia - ABA (1994)24
o termo quilombo para afirmar sua contemporaneidade recorre à “afirmação de uma
identidade coletiva definida pela referência histórica comum, construída a partir de vivências
e valores partilhados.” O conceito de “grupos étnicos”25, segundo Arruti (2003, p. 16)
delimita os grupos “remanescentes de quilombos” como “um tipo organizacional que confere
pertencimento através de normas e meios empregados para indicar afiliação ou exclusão”,
tendo na auto-atribuição, o reconhecimento em si mesmos, de valores e organização social
distinta da maioria. E então, finalmente, no Decreto 4887/2003, que regulamenta a
implementação do artigo 68 da constituição, são considerados remanescentes das
comunidades dos quilombos:
“Os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto atribuição,
com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais
específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada
com a resistência à opressão histórica sofrida. (BRASIL, 2003)
As políticas habitacionais para essas comunidades são um instrumento fundamental
para a permanência e continuidade dos modos de vida desses povos no campo. Sob a ótica
capitalista de produção, o modo de apropriação da terra pelas comunidades tradicionais, foge
a lógica capitalista de produção de valor para a mercantilização e reafirma vínculos
(ancestrais) territoriais com a terra e a solidariedade entre as pessoas, configurando como a
última fronteira de resistência ao agronegócio no território brasileiro.
A construção de unidades habitacionais que o PNHR promove em território
quilombola, ultrapassa a simples construção de habitações, na medida que se fixam e
consolidam as relações existentes naquele território, os vínculos e os laços entre as pessoas e a
25 grupos étnicos são categorias de atribuição e identificação dos próprios sujeitos, das características de organização e
interação de determinado grupo de pessoas. BARTH, Fredrik. Grupos étnicos e suas Fronteiras. São Paulo: UNESP, 1997.
terra – os modos de vida tradicionais. A permanência e consolidação dessas comunidades no
território, seja pela implementação de políticas habitacionais, ou por outras políticas
afirmativas, representa o avanço na construção significativa de outras referências de valores,
costumes e tradições para a sociedade como um todo, materializando outros paradigmas e
perpetuando a construção de territórios de identidade étnica.
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