1ª
SE
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ÃO
DE
CIN
EM
A
Eu, Pierre Rivière,
que degolei minha mãe,
minha irmã e meu irmão”
28 Nov 2013
Projeto de pesquisa
Estudos Foucaultianos
1ª Sessão de Cinema
“Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha
irmã e meu irmão”.
Cadernos Comentários Especializados
Filosofia: Marcos Alexandre Gomes Nalli
Análise do Discurso: Simone Reis
Psicologia: Andréia Parente da Silva
Psiquiatria: Eduardo Salviano Teixeira do Prado
Direito: Carlos José Cogo Milanez e José Ricardo Alvarez Vianna
1ª Sessão de Cinema
“Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão”.
Cadernos Comentários Especializados
Realização
Projeto de Pesquisa Estudos Foucaultianos
Promoção Estudos Foucaultianos
Centro de Estudos Sociais Aplicados
Departamento de Direito Privado
Colegiado de Curso de Letras Estrangeiras Modernas
Centro de Letras e Ciências Humanas
Apoio Centro Acadêmico Sete de Março (Direito)
Organização
Marcia Teshima
Simone Reis
Alcione Gonçalves Campos
Dhyego Câmara de Araújo
Deise Suzumura
Helena Barbieri Aranda
José Eduardo Ribeiro Balera
Juliana Orsini da Silva
Juliane D’Almas
Lilian Kemmer Chimentão
Liliane Mantovani
Paula Kracker Francescon
Rafael Leonardo da Silva
Thais Aranda Barrozo
Editoração e Design Gráfico
Alcione Gonçalves Campos
Apresentação
A 1ª Sessão de Cinema, com o filme “Eu, Pierre Rivière, que degolei minha
mãe, minha irmã e meu irmão”, foi uma iniciativa do grupo de pesquisa Estudos
Foucaultianos, com o intuito de proporcionar espaços para discussões acerca de
questões, temáticas e obras discutidas no âmbito do projeto.
Baseado na obra foucaultiana que lhe empresta o título, o drama produzido por
René Allio (1976) resgata a história de um jovem camponês francês, que, aos 20 anos,
assassinou sua mãe grávida de sete meses, irmã de 18 anos e irmão de sete anos. O
parricídio, amplamente noticiado em 1835, mobilizou fortes reações da opinião pública
e suscitou associação entre trabalhos jurídico e psiquiátrico.
Nesta publicação, apresentamos os comentários feitos por especialistas de
diferentes áreas do conhecimento e debate após a sessão. A transcrição dos comentários
foi feita na íntegra. Nosso intuito é socializar as falas especializadas que fomentaram as
discussões no evento.
Os Organizadores
Catalogação na publicação elaborada pela Divisão de Processos Técnicos da Biblioteca Central da Universidade Estadual de Londrina.
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
S493p Sessão de Cinema (1. : 2013 : Londrina, PR).
1ª Sessão de Cinema [livro eletrônico] : eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão : cadernos comentários especializados, 28 de novembro de 2013, Londrina, PR / realização: Projeto de Pesquisa Estudos Foucaultianos ; organização: Márcia Teshima...[et al.]. – Londrina : UEL, 2014. 1 livro digital.
Disponível em: http://www.uel.br/projetos/foucaultianos/
1. Cinema francês – História e crítica – Congressos. I. Projeto de
Pesquisa Estudos Foucaultianos. II. Teshima, Márcia. III. Título. IV. Título: Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão.
CDU 791.43
Comentários ao filme
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MARCOS ALEXANDRE GOMES NALLI: [06:35] Primeiramente, eu quero 1
agradecer o convite da professora Márcia para essa sessão de cinema. [...] 2
Como nosso tempo é muito curto, eu gostaria de começar dizendo mais ou 3
menos o seguinte. Eu, Marcos Nalli, que vi o filme “Eu, Pierre Rivière” de René 4
Allio ontem à noite, que li esta tarde o livro homônimo coordenado por Michel 5
Foucault, publicado originalmente em 1973, mas estudado no ano letivo de 6
1971/1972 no segundo curso do Collège de France, conhecido como “Teoria e 7
Instituições Penais”, que li um artigo sobre o interesse de Foucault pelo caso 8
de (Allan Graussard 07:18), que novamente voltei a ver o filme com vocês esta 9
noite e que aqui me encontro para, com os demais colegas aqui presentes, 10
incitá-los com o debate sobre o filme “Pierre Rivière” de Foucault, e digo, enfim, 11
boa noite. É interessante observar, segundo Foucault, Pierre Rivière não 12
apresenta, ao menos aparentemente, nada de extraordinário. Casos de 13
parricídio eram bastante comuns. Segundo Foucault, giravam na média entre 14
dez a quinze por ano. O que há de nota para começar a se interessar pelo 15
caso, ainda segundo Foucault – isto conforme a apresentação que ele faz no 16
livrinho “Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão”, 17
coordenado por ele – como o caso se situa num debate geral em torno da 18
controversa noção de monomania homicida introduzido por Esquirol em 1838, 19
pela extensão considerável à época, 1836, mas também a de Foucault, 1972 e 20
1973, no dossiê publicado e que, estranhamente, sobre o memorial, 21
rapidamente se silenciou. Se vocês fizerem uma continha básica, estamos há 22
exatos quarenta anos do livro e do filme. Ora, foi o manuscrito de Pierre Rivière 23
que encantou, foi sua beleza que deixou a todos, em particular Foucault, 24
estupefatos. Mas por quê? De que beleza Foucault fala? É difícil dizer. Mas há 25
uma pista que, certamente Allio sacrifica no filme – obviamente isso é a minha 26
estúpida opinião – [...] à medida que tenta preservá-la adaptando-a à 27
linguagem cinematográfica. Trata-se do fato que esse jovem plebeu, 28
campesino, agricultor e filho de agricultor, tido por seus coabitantes da comuna 29
de Aunay – atualmente conhecida Aunay-sur-Odon, departamento de 30
Calvados, região da Baixa Normandia – como idiota e imbecil, avaliado pelo 31
juiz, até então, como iletrado, escreve um memorial de sua vida e isto que é um 32
Comentários ao filme
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dos motivos que o levaram a matar sua mãe grávida, sua irmã e seu irmão. Ele 33
escreve em linguagem extraordinária um memorial que embaralha toda a 34
articulação – e é, provavelmente, isso que o qualifica como extraordinário – que 35
embaralha toda a articulação entre saber e poder, e entre a relação entre 36
Direito e Psiquiatria em particular, em sua condição infame – naquele sentido 37
da expressão que Foucault mesmo formula dos homens infames. Como diz 38
(Allan Graussard), numa tradução livre, e conseguinte, não corrigida, de um 39
artigo dele que, se tudo correr bem, deve sair no ano que vem (inint. 10:45) 40
aqui. “É bem sob este signo do absolutamente incalculável, irredutível – 41
palavras de (Graussard) – as condições de qualquer saber, que seja, que se 42
produz aqui o encontro entre o plebeu e o filósofo. Não somente o primeiro – 43
(inint. 11:03) o plebeu – se apropria da escrita como prometeu Foucault, mas 44
ele, se desarraigando daqueles pensadores de seu destino imemorial, de 45
quase animal, atado à sua (inint 11:15), produziu esse texto que escapa a toda 46
tentativa de classificação ou redução às condições de uma interpretação 47
qualquer, um (inint. 11:26) que sua beleza, mas isto que está aqui sem que 48
seja dito, bem mais no domínio do sublime que naquele do belo, protege contra 49
toda a espécie de apropriação ou de domesticação.” Qual é o ponto que eu 50
gostaria de chamar a atenção aqui, em particular? Foucault, um autor tão 51
avesso – conforme palavras do próprio (Graussard) – à monarquia do autor, se 52
dá o desfrute, por assim dizer, de permitir a publicação, de propiciar a 53
publicação, de trazer à luz um texto que tem, inclusive como título, a primeira 54
palavra “eu”. “Eu, Pierre Rivière”, um autor de um ato de ter matado sua mãe, 55
seu irmão e sua irmã, mas autor também de um texto, e que com esse texto 56
tumultua uma situação extremamente delicada naquele momento, que é a 57
dessa inter-relação entre dois saberes, e também, entre duas práticas, 58
basicamente entre a Psiquiatria e o Direito. Mas faz mais do que isso, tumultua, 59
inclusive, para nós da Filosofia – ou para nós da academia, para ser mais 60
correto – a própria relação de apropriação em que temos, que procuramos ter, 61
com um texto, como um produto, com uma feitura, como (inint. 13:04) de 62
alguém, que por ser tomado como um iletrado, no caso, um plebeu; no caso, 63
um infame; no caso, Pierre Rivière. A questão, então, que eu colocaria é, para 64
Comentários ao filme
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a gente poder pensar um pouco, como se pode pensar esse fenômeno, esse 65
estranho que, de algum modo, encantou Foucault não porque era belo, mas 66
porque era sublime, e que, portanto, nos sufoca, nos impede uma palavra, nos 67
impede a possibilidade de falar tão prontamente, tão resolvidamente, e que 68
nesse caso atende por “Eu, Pierre Rivière”? Obrigado. ((palmas)) 69
SIMONE REIS: [13:52] Boa noite. Eu vou pular a parte do latim e vou direto 70
para as considerações da análise do discurso. Eu fiz um recorte para analisar, 71
e em análise do discurso é possível a gente escrever uma tese inteira em cima 72
de uma única frase, então eu escolhi um fragmento que tem a duração de 73
pouco mais de seis minutos, é justamente a parte em que se dá o primeiro 74
interrogatório e dele participam, então, o escrivão, no início, o juiz e o acusado. 75
Então se perguntarmos “o que estavam fazendo?”, “para que estavam 76
reunidos?”, aqueles participantes estavam reunidos a propósito de um 77
interrogatório para a averiguação de fatos, mas não somente isso. Do crime 78
ocorrido no dia três de junho de 1835, então próximo à entrada do verão, e no 79
tempo em que isso se desdobrava, que era no dia nove de julho, pouco mais 80
de um mês depois do crime. Olhando, então, iniciando pelos participantes 81
daquela prática social – porque quando as pessoas estão falando, interagindo, 82
elas estão produzindo uma prática – quem eram esses participantes? O juiz, na 83
posição dele de poder institucional; Pierre, o objeto do poder. Pelo aspecto do 84
letramento, o juiz altamente instruído; Pierre, por inferência, com baixo 85
letramento, por ser justamente um plebeu, um campesino. Sob o ponto de vista 86
da religião, do conhecimento ou da influência da religião, poderíamos dizer que 87
o juiz tinha a religião sob o ponto de vista instrucional, enquanto Pierre uma 88
influência acentuada. Com relação à posição física dos participantes, no 89
espaço físico que eles ocupavam o juiz e Pierre, no início, sentados. Com 90
relação à apresentação textual – porque isso diz, isto é linguagem – o juiz 91
apresenta-se asseado, em traje urbano, formal; Pierre sujo, em traje 92
campesino, rural. Quando a gente olha para os enunciados, para aquilo que 93
eles dizem, eu olho para a base que eles tomam para fazer as afirmações ou 94
para produzirem os enunciados. O juiz tem como base os fatos relatados por 95
laudos e testemunhas, um número de testemunhas. Já Pierre, ele faz 96
Comentários ao filme
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atribuição externa a processos verbais de entidade superior, no caso, Deus – 97
ele vai sempre fazer atribuição à uma entidade superior – e atribuição interna, 98
então se referindo a processos mentais, processos comportamentais, 99
fisiológicos, testemunhais; e de processos verbais, que são visíveis também no 100
mundo material, ações do mundo material e processos mentais que ele atribui 101
a outras pessoas, a terceiros. Por exemplo, quando ele diz “minha mãe 102
odiava”, “minha mãe desprezava”, isso implica em processos mentais com 103
resultados no mundo material, que podem ser observados e também que 104
podem ser verbais, porque o desprezo, a raiva, eles poderiam ser expressos 105
em linguagem de tal forma verbal. Mas se esquecermos, deixarmos de lado por 106
enquanto isto, a gente poderia dizer: “O que estava acontecendo naquela 107
prática?” Estava acontecendo naquela prática, naquela sala, a propósito de um 108
interrogatório, estava havendo ali uma disputa de poder. A gente poderia 109
assumir, inicialmente, que o juiz tinha todo o poder institucional a ele conferido, 110
enquanto Pierre, totalmente destituído de poder. No entanto, se a gente olhar 111
rapidamente para as interações, a gente veria o seguinte: que o juiz adotou 112
algumas estratégias durante o interrogatório. Dentre as estratégias estavam 113
alternância entre perguntas abertas de caráter informativo, fáceis de responder, 114
perguntas retóricas, com formulação fechada, com presunção factual de 115
processos materiais, comportamentais e mentais, e volitivos. Quando é 116
pergunta de formulação fechada, então vai ser uma pergunta que requer uma 117
resposta do tipo “sim” ou “não”, ou então, ele já dá a opção “ou isso ou aquilo”. 118
Mas a presunção do juiz faz com que ele se coloque de uma forma muito maior 119
de poder porque ele exerce o poder de estar presente e estar ciente, então há 120
a onipresença e há onisciência. Com relação aos fatos e com relação aos 121
pensamentos, aquilo que se passava na mente do acusado, ele também adota 122
uma estratégia que é de confrontação. Conforme ele vê que não está 123
conseguindo levar esse interrogatório pra onde ele pretende, ele faz o 124
confronto. De que modo? Ele resgata os princípios deontológicos. 125
Deontológicos, no caso, a gente tem um conjunto de regras, a gente segue as 126
regras cegamente, a gente não muda regras. Então ele confronta Pierre com 127
os princípios deontológicos: “Como você pôde fazer tal coisa, se Deus não 128
Comentários ao filme
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permite?” – ou se para Deus não é possível você matar alguém? Só que essa 129
estratégia não encontra sucesso. Por quê? Porque Pierre, então, exerce poder 130
de resgatar e citar trechos bíblicos. Então, esse conhecimento religioso 131
novamente está fazendo uma atribuição externa à própria ação. Como 132
estratégia, o Pierre tem, então, a afirmação e a reafirmação sempre de 133
atribuição externa à entidade espiritual superior, no caso, Deus. Há citação dos 134
trechos bíblicos, conforme eu já disse, e o relato de observação experiencial e 135
o julgamento de processos mentais de terceiros. Podem esses terceiros, como 136
vimos, não estarem ali para se defender. No interrogatório, ele admite de forma 137
muito sutil a autoria do crime, de forma enviesada, respaldada pela 138
interpretação subjetiva de atribuição externa. E eu coloco aqui as palavras 139
dele. Ele diz: “Eu repito, Deus me ordenou que fizesse o que eu fiz. O cura 140
disse ao meu pai que rezasse e Deus o livraria de seus problemas.” Portanto, 141
Deus e o cura, entidades religiosas acima dele. “Se ele não fosse auxiliado” – 142
“ele” é o pai – “Se ele não fosse auxiliado, duvidaríamos da existência e da 143
justiça de Deus.” Então implicitamente ele está dizendo a motivação dele para 144
o crime. Como a gente vê no restante do interrogatório, Pierre só vai confessar 145
depois que o juiz, impaciente, se levanta e declara que ele está se colocando 146
acima da justiça. Ao se levantar, ao fazer este gesto, este movimento, ele está 147
se colocando fisicamente acima de Pierre. Vai à porta, abre a porta e mais uma 148
vez o confronta com a testemunha. É neste momento que Pierre, então, 149
declara que não quer mais fazer o jogo nem se submeter àquele método. É só, 150
obrigada. ((palmas)) 151
ANDRÉIA PARENTE DA SILVA: [22:39] [...] Quando eu li o título do filme, o 152
que a gente pensa, não é? Uma pessoa que está admitindo o assassinato da 153
mãe e de dois irmãos. “Nossa, o cara deve ser um psicopata”, não é? E aí você 154
se depara com um filme onde no final você acaba ficando com “dózinha” dele, 155
não é? Você fala: “Putz, que mãe insuportável” Todo mundo deve ter pensado 156
em algum momento, não é? “Ai, que bom que (inint. 23:25)”, não é? Todo 157
mundo acaba pensando isso. Duvido que as pessoas não acabaram tendo uma 158
empatia com o Pierre. Eu gosto muito desse filme porque ele traz uma análise. 159
Eu acho que foi a primeira vez em que o Direito e a Medicina – foi verídico, é 160
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uma história verídica – é a primeira vez que Medicina e o Direito se unem para 161
avaliar sob uma nova perspectiva o comportamento humano. Então a gente 162
tem em cima de uma narrativa o que é sinal de loucura, o que é prova de 163
lucidez. O comportamento humano é muito questionável e a gente tem que 164
avaliar sob uma perspectiva extremamente contingencial e muito ampla, e eu 165
acho que esse filme favorece a gente a pensar. [...] Eu tentei levantar alguns 166
ambientes em que a gente consegue observar o Pierre, para a gente chegar 167
numa hipótese do por que desse assassinato. O que a gente descobre? Que 168
desde a infância ele apresenta alguns comportamentos que eu chamei de 169
inadequados – isso pelos relatos que a gente tem que foram descritos no filme. 170
Eu acho muito importante a gente colocar essa questão – o Eduardo 171
provavelmente no diagnóstico vai falar – quando a gente vai descobrindo 172
interferências biológicas na infância, na fase adulta, como que isso faz 173
diferença na avaliação. A gente avalia um comportamento por níveis 174
filogenéticos, ontogenéticos e culturais. Então a gente vai olhar isso. A gente 175
percebeu que ele ria e conversava sozinho. Em alguns momentos a gente se 176
pergunta: “Nossa, será que ele delirava?” E com a descrição do que a gente foi 177
observando, a gente viu que não. Ele tinha uma tendência ao isolamento e ele 178
tinha uma rica atividade imaginária, ele era um menino extremamente criativo, 179
inteligente, e aí, por isso, ele até acabava rindo e conversando sozinho. Ele 180
maltratava os animais por prazer, então ele tinha uma frieza emocional sim, 181
essa era uma característica dele. [...] No ambiente social dele, o que a gente 182
percebe? Ele vive a maior parte do tempo isolado, por uma vontade dele; ele 183
não tinha muita necessidade de ambiente social, ele não se relacionava com 184
mulheres – nem todas as pessoas que tem problemas com mães, os meninos 185
não se relacionam com mulheres, essa era uma característica do Pierre – e ele 186
era visto como louco desde a infância. Essa questão do estigma social, eu 187
acredito que influenciou bastante na conduta do Pierre, porque o ambiente 188
fortaleceu muito essa conduta. A gente acredita muito que todo comportamento 189
é reforçado pelo ambiente e fortalecido. Essa conduta dele, de ser 190
estigmatizado, foi se fortalecendo ao longo dos anos pelo ambiente social. O 191
ambiente familiar dele, o pai e a mãe viviam em ambientes separados, eles 192
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tinham uma comunicação muito ruim, a gente percebe que ele não coloca em 193
momento algum o sentimento de empatia, de afetividade, adequados, acho que 194
é só com a avó que isso aparece, nem com o pai, ele tem um distanciamento 195
muito grande, apenas a descrição verbal, de comportamentos extremamente 196
prejudiciais para uma percepção de uma criança, de um adolescente. Ele 197
atribui a sua ação a uma tentativa de libertar o pai, então a gente percebe o 198
quê? Que ao mesmo tempo em que a gente tem uma pessoa extremamente 199
fria, que vai lá e judia dos animais e se distancia das pessoas, a gente tem uma 200
pessoa extremamente sensível ao que está acontecendo com o outro. Isso 201
mostra que o Pierre tem uma percepção interna e externa, o que é diferente, 202
por exemplo, de um esquizofrênico quando ele se... O Eduardo, eu não sei se 203
ele vai fazer a diferença das patologias... Eduardo, eu não sei o que você 204
preparou, mas a gente começa a dar uma mapeada, uma filtrada nos 205
diagnósticos. Então assim, a esquizofrenia começa a ficar um pouco de lado e 206
a gente começa a olhar para outras patologias em relação a Pierre. [...] O 207
contexto em que ele percebe o pai, eu acho que também é extremamente 208
determinante do problema dele. [...] Um contexto importante é que ele percebe 209
que a mulher naquela época – lembrem-se daquele momento em que ele vai 210
conversar com o juiz, com a mãe e o pai, e o juiz fala para o pai que ele perde 211
todos os direitos e que ele tem que pagar para mãe, e que o bebê vai ficar com 212
o pai – então ele fala que essa mãe é tirana, e a sociedade reforça essa mulher 213
tirana. Então o Pierre não vê saída para esse pai. Então o contexto social 214
também determina o desespero nesse menino para ele ter uma atitude dessas. 215
Se esse juiz, de repente, toma uma atitude diferente, talvez esse menino 216
perceba algo diferente. Então o que a gente descobre? Que ele tem uma 217
personalidade esquizoide. Isso não é esquizofrenia, isso não é psicopatia. 218
Algumas características que eu encontrei no critério do DCM (Disfunção 219
Craniomandibular), que aparece em Pierre: ele não deseja nem aprecia 220
relações íntimas, ele quase sempre escolhe atividades solitárias, ele tem pouca 221
– se alguma – vontade de relações sexuais, ele tem falta de amigos íntimos, 222
ele tem diferença a críticas ou elogios – que é a questão do cavalo, que as 223
pessoas criticam ele e ele ri – ele tem uma frieza emocional, distância ou 224
Comentários ao filme
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afetividade limitada. [...] A Psicologia acredita que a linguagem, o 225
comportamento verbal operante, eles vão favorecer a uma pessoa ser 226
adequada ou {se} vai desenvolver um sofrimento. Então o ambiente em que a 227
gente vive, e a linguagem, é como você... Eu falo que palavras soam como um 228
estupro ou palavras podem ser extremamente favoráveis para nossa vida. E a 229
Psicologia acredita nisso. E tem uma situação que ele fala “que diferentes 230
contingências constroem pessoas possivelmente dentro da mesma pele.” 231
Então dependendo do ambiente em que a gente vive, a gente pode ter 232
determinadas pessoas se comportando diferente. O que eu acredito? Eu 233
acredito que a história de vida desse menino, as contingências filo ou 234
ontogenéticas e culturais, o ambiente dele familiar, esse ambiente social que 235
ele percebia, mais essa personalidade esquizoide, é que foram determinantes 236
para esse menino cometer esse assassinato. E aí o que eu queria questionar 237
com vocês é: o que vocês têm construído verbalmente no ambiente de vocês, o 238
que vocês têm fortalecido dentro da casa de vocês, com a comunicação verbal 239
de vocês, com a fala de vocês, para as pessoas que convivem com vocês. 240
Obrigada. ((palmas)) 241
EDUARDO SALVIANO TEIXEIRA DO PRADO: [31:41] Boa noite. [...] (inint. 242
31:49) aí é uma coisa fazendo um link com o que a Andréia falou, que é uma 243
frase que eu gosto muito, do filósofo Ortega y Gasset, que diz: “Eu sou eu e 244
minha circunstância”. Então os fatores constitucionais e os fatores ambientais, 245
às vezes, são difíceis de distinguir. [...] O caso do Pierre Rivière é a certidão de 246
nascimento da Psiquiatria Forense, entre 1835. Foi o primeiro caso em que a 247
Psiquiatria influenciou uma conduta jurídica, então para muitos autores ele é o 248
marco de nascimento da Psiquiatria Forense. E ele traz um debate fundamental 249
que é a questão da sanidade e insanidade, que dá a imputabilidade ou semi-250
imputabilidade, a questão da culpabilidade em relação à sanidade. Quando 251
Pierre é preso, ele faz uma alegação psicótica à primeira vez: “Deus ordenou 252
que eu fizesse isso.” Mas com o andar do julgamento a gente vê que isso era 253
uma forma de esquiva consciente que ele criou e com a evolução do 254
julgamento ele exprime a verdade, que na verdade ele matou a mãe porque ela 255
estava levando seu pai ao suicídio, e matou a irmã porque amava a mãe, e ao 256
Comentários ao filme
EU, PIERRE RIVIÈRE, QUE DEGOLEI MINHA MÃE, MINHA IRMÃ E MEU IRMÃO.
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irmão porque amava a mãe e a irmã. Confirmando a questão do diagnóstico, 257
ele não é psicótico no sentido esquizofrênico, no sentido de alucinação e 258
delírio. Quer dizer, ele não estava em um surto psicótico naquele momento, 259
{mas sim} ordenado por Deus – vamos dizer assim – como ele alega. Na 260
verdade ele tinha uma percepção da realidade naquele momento. Mas no 261
julgamento alguns julgaram o Pierre como louco, outros como lúcido e, na 262
verdade, ele foi, inicialmente, sentenciado à morte, que era a pena por 263
parricídio na época. E uma coisa que traz uma beleza a todo esse quadro é 264
que, depois dessa condenação, alguns médicos, psiquiatras experientes do 265
Collège de France, entre eles o grande Esquirol, que foi discípulo do Philippe 266
Pinel, estudaram por um ano esse caso, e depois dessa alegação, confirmando 267
uma certa insanidade, que ele não estava psicótico, mas estava num quadro 268
psicopatológico, que eles conseguiram esclarecer através na análise do relato 269
do Pierre Rivière, e eles mudaram a pena de pena de morte para prisão 270
perpétua. E cinco anos depois ele comete suicídio. Esse dossiê sobre o caso é 271
de um ano depois, de 1836. Nele a gente tem essas três visões. Do doutor 272
Bouchard, que era o médico da província, que dizia que ele não tinha patologia 273
nenhuma, que era aquela exaltação momentânea e que ele era completamente 274
responsável pelo assassinato. Mas é o mesmo que a gente vê hoje, alguns 275
casos de doença psiquiátrica. Fala: “Isso é falta de vergonha na cara, falta de 276
vontade, falta de uma enxada”, então as pessoas tem essa visão ainda de não 277
entender os meandros do comportamento. E o médico da cidade, doutor 278
Vastel, apontava o Pierre como um idiota desde a infância porque ele tinha 279
uma incoerência intelectual, que ele não era responsável pelo assassinato e 280
deveria não ser condenado à morte. O diagnóstico que o Esquirol e os experts 281
deram foi de monomania homicida. A monomania é aquele estado onde a 282
pessoa fica com a ideia fixa, obsessiva. É um diagnóstico comum na época. O 283
Esquirol teve uma importância na Psiquiatria, ele foi quem inventou o termo 284
“alucinação”, por exemplo, pra descrever o estado alucinatório. Ele fez alguns 285
estudos onde diferenciava a demência da amência, onde ele falava que o 286
demente era a pessoa louca e o amente era o retardado mental, na época, que 287
eles chamavam de idiota. E eles pediam clemência e conseguiam esse indulto 288
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da pena de morte. A questão do diagnóstico eu acho que a Andréia falou. [...] 289
Realmente é um transtorno de personalidade esquizoide que você vê... O 290
transtorno de personalidade esquizoide é um transtorno raro, então há a 291
prevalência de menos de um por cento e ele seria geneticamente ligado à 292
esquizofrenia, mas seria uma esquizofrenia – vamos dizer assim – pré-293
psicótica, onde o paciente não teve o surto psicótico. Seria uma variante de 294
baixo grau da esquizofrenia, onde ele fica só com o que a gente chama de 295
sintomas negativos, que é um distanciamento afetivo, um embotamento 296
emocional, uma falta de desejo, de iniciativa, uma falta de afiliação social. E 297
ele, por esse distanciamento emocional, pode, às vezes, ter condutas 298
psicopáticas sem ser um psicopata. Ele pode ter – como ele tinha – condutas 299
de torturar animais e depois o homicídio que ele cometeu, mas dentro de uma 300
lógica na cabeça dele assim, sem um furor emocional psicótico como a gente 301
vê nos esquizofrênicos. O estereótipo hoje em dia do esquizoide seria aquele 302
sujeito socialmente desajeitado, que não tem déficit cognitivo nem psicose. O 303
estereótipo básico é o hacker de computador isolado, uma pessoa que não tem 304
muita ligação social e não tem muitos vínculos de empatia. Esse caso foi um 305
caso seminal, que fomentou o nascimento da Psiquiatria Forense, e eu queria 306
aproveitar essa discussão para colocar aqui uma coisa que é relativamente 307
nova e que eu queria chamar a atenção de vocês, que por muito tempo a 308
Psiquiatria ficou num âmbito filosófico e psicológico e hoje em dia ela avançou 309
muito o conhecimento da neurociência e esse conhecimento de neurociência 310
tem se estendido pra todas as áreas, inclusive a Filosofia, pra Psicologia e 311
também para o Direito. Então a gente tem vários estudos de (neurolol? 40:36), 312
que é como a neurociência entende o comportamento humano, o que ela 313
confirma – que é uma área que eu particularmente gosto muito e estudo 314
bastante a questão psiquiátrica, mas tem implicações para (inint. 40:52), todas 315
as áreas onde o comportamento humano flui, principalmente na questão do 316
Direito. E a neurociência entende a mente como um processo cerebral. E um 317
livro que eu sugiro a vocês é um livro chamado “O erro de Descartes”, de 318
António Damásio, que traz essa ideia de que o ser humano é conduzido muito 319
por redes emocionais não conscientes. É como se a iniciativa, o (drive) de 320
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ação, viesse primeiro e o processo consciente viesse depois como se fosse um 321
filme explicando a história. Então o sistema legal baseia-se em duas premissas 322
de (responsabilidade) criminal. Nós somos pensadores racionais e temos 323
capacidades equivalentes, mas a neurociência contradiz isso. E, às vezes, 324
você buscar explicar o comportamento não é redimir a culpa. E talvez o que eu 325
queria dizer é que a culpabilidade não seja o foco e, talvez, uma busca de uma 326
sentença mais racional. Talvez a culpabilidade não seja a questão fundamental 327
porque ela pressupõe o quanto é culpa é sua e o quanto é culpa da sua 328
biologia. Talvez isso não haja diferença. O que fazer talvez seja buscar uma 329
sentença racional baseada não no princípio de punição no retributivismo, onde 330
você tem uma punição altruística – você estuprou, você fica preso; você matou, 331
você vai ser condenado à morte – que é um fim em si mesmo e, olha pra trás, 332
mas num princípio de punição utilitarista, baseado numa probabilidade recidiva, 333
e olhando pra frente, e analisando realmente quais os riscos desse cidadão e 334
qual a possibilidade de tratamento dentro de uma possível psicopatologia. E 335
era mais ou menos isso que eu queria passar pra vocês. Obrigado. ((palmas)) 336
JOSÉ RICARDO ALVAREZ VIANA: [43:17] Boa noite, boa noite a todos. 337
Agradeço o convite que me foi feito pela professora Márcia Teshima. Gostaria 338
também de cumprimentar pela iniciativa do evento, conciliando cinema, 339
conciliando várias áreas do conhecimento, inclusive o Direito, da qual nós 340
somos parte aqui. Eu tenho um tempo um pouco mais curto, porque são duas 341
pessoas do Direito, então eu vou procurar ser bem objetivo. Dentro desse 342
contexto envolvendo outras áreas do conhecimento há uma frase que tem sido 343
apregoada no Direito, que diz o seguinte: “Aquele que sabe só o Direito, não 344
sabe nem direito.” Por quê? O Direito, na medida em que ele visa disciplinar o 345
convívio social humano, na medida em que ele se dirige à conduta humana, ao 346
ser humano, ele tem que conhecer o ser humano, porque se ele disciplinar 347
regras que são irrealizáveis, isso não vai facilitar ou contribuir para que esse 348
convívio social se realize de maneira harmônica. E o filme, e esse nosso 349
debate aqui, tem essa abertura. Quanto ao filme, eu vi alguns aspectos 350
bastante interessantes. Primeiro: trabalha muito com linguagem – e quando eu 351
digo linguagem, eu vejo subjetividade. Não por acaso, o filme tem o título, logo 352
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no começo, a expressão “eu” – “Eu, Pierre” já mostra uma subjetividade – e 353
quando eu falo de linguagem, não estou falando como meio de comunicação. A 354
linguagem – como a professora aqui (inint.44:56) linguagem – também é uma 355
forma de percepção, de captação, de significação de mundo. E nesta 356
perspectiva, o que a gente vê? O mundo do Pierre. “Eu” é um mundo. O mundo 357
das outras pessoas, do pai, dos filhos, da mãe, dos juízes que atuaram no 358
caso, que, pra mim, representa o olhar não do juiz institucionalmente falando, 359
mas da sociedade, com seus pré-conceitos, com suas pré-compreensões, com 360
seus pré-julgamentos, com base numa superficialidade de alguns 361
acontecimentos. E, nesse contexto, da linguagem, para a gente compreender 362
melhor, não basta olhar os fatos apenas superficialmente. Nós temos que, na 363
medida do possível, ter o sentimento de empatia. Para que isso ocorra, 364
Sócrates já dizia: “Pra ser um bom juiz é preciso saber ouvir.” Gadamer, 365
filósofo da hermenêutica, diz que você também tem que estar aberto àquilo que 366
o outro tem a dizer, aberto ao que o texto ou ao que o outro tem a dizer, o que 367
é muito raro. As pessoas, de um modo geral, estão acostumadas a escutar, 368
mas não a ouvir. Isso fica claro na manifestação do juiz, que já traz todos os 369
preconceitos e trabalha com argumentos no sentido de ratificar aqueles pré-370
conceitos que ele já tinha. E, ainda nessa questão do argumento – é muito 371
interessante – tem uma passagem no Direito, que fala no Direito, que diz o 372
seguinte: “O que é que liga um cadáver, um homem ao lado desse cadáver e 373
uma faca no chão?” É o argumento. O filme traz isso para mim de uma maneira 374
muito clara. Na medida em que ele mostra a primeira cena do crime, que choca 375
a todo mundo, como foi dito aqui, cria até um sentimento de agressividade em 376
relação ao Pierre, mas depois mostra o outro lado e inverte a situação, ou seja, 377
trabalha com o argumento. E o Direito tem a questão “o que é direito, afinal?” É 378
lei? É justiça? É retórica? Como fica essa situação? Como fica, então, essa 379
situação? Para simplificar, para ser bem objetivo, o que nós devemos aprender 380
é que linguagem – repetindo – não é só comunicação, é perspectiva de mundo. 381
Daí a frase de Wittgenstein: “Os limites da minha linguagem são os limites do 382
meu mundo.” O que eu consigo captar, em termos de linguagem, é o que eu 383
posso significar. E nós significamos tudo, porque o ser humano tem 384
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necessidade de atribuir sentido às coisas. Mesmo quando ele não dá sentido, 385
ele já deu um sentido, que é a ausência de sentido. Então nós temos essa 386
tendência de significar. Para que essa significação se realize, tanto no Direito 387
quanto na Psicologia, quanto na Medicina, na Filosofia, é preciso que nós 388
estejamos abertos. E aí só poderá acontecer essa abertura se houver esse 389
diálogo, se houver uma relação dialógica. O Direito precisa se relacionar com a 390
Filosofia, com a Psicologia, com a Psiquiatria. Então não basta dizer que uma 391
conduta xis se amolda a um tipo penal que é considerado crime, no caso, o 392
parricídio. É preciso saber quem é esse outro, qual o contexto, não só o texto, 393
mas qual o contexto em que isso aconteceu, quais as patologias que acontecia, 394
qual a linguagem que ele tinha, pra aí sim fazer aquilo que os (inint. 48:44) já 395
diziam, do conceito de justiça: “Dar a cada um o que é seu.” E, no contexto de 396
igualdade, lá do Aristóteles: “Tratar igualmente os iguais e desigualmente os 397
desiguais.” Será que o Pierre era um igual? Só o juiz que julgou ele? Ou, 398
quando ele está indo lá, tentando se entregar e não consegue, um senhor fala 399
para ele assim: “Olha, você fez uma coisa muito ruim.” Tem um julgamento ali. 400
Mas ao mesmo tempo é contraditório, porque ele fala: “Olha, sai porque senão 401
a polícia vai te prender.” Isso mostra o que para mim? A complexidade da 402
natureza humana, que fala uma coisa e faz outra, e assim por diante. E, 403
colocando no ponto de vista do Direito, é com essa complexidade que nós 404
lidamos no dia a dia. E, para isso, não bastam só leis, só regras. Eu já devo ter 405
passado os meus cinco minutos aqui, o que é ótimo. Às vezes, é necessário 406
descumprir regras. ((risos)) Principalmente (inint. 49:43). Mas, enfim, é só 407
conhecendo o outro que a gente vai conhecer a si mesmo. Que é o que estava 408
lá nos gregos: “Conhece-te a ti mesmo.” Obrigado. ((palmas)) 409
CARLOS JOSÉ COGO MILANEZ: [50:03] Boa noite a todos. {Gostaria de} 410
agradecer a professora Márcia pelo convite. Estamos aqui hoje representando 411
o Direito ao analisarmos o filme. {Gostaria de} cumprimentar todos que 412
compõem a mesa. E, quando a gente assiste ao filme e traz o filme para o 413
mundo do Direito, dois aspectos devem ser observados. O primeiro deles a ser 414
observado é o Direito Penal, onde devo afirmar para vocês que Pierre praticou 415
um crime de homicídio privilegiado qualificado, e aumentado por um agravante 416
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pelo menos. Teria ele praticado o crime mediante relevante valor moral diante 417
do sofrimento que ele viu o pai passar durante toda a vida e, 418
consequentemente, ele, tentando acabar com o sofrimento do pai, ele acaba 419
matando a mãe e os dois irmãos. Isso acontece, e a gente vê muito 420
acontecendo, por exemplo, com a eutanásia. Para gente ver o fim do 421
sofrimento de alguém, a gente antecipa a morte daquela pessoa. Comete 422
Pierre um crime de homicídio qualificado. Incide a qualificadora no momento 423
em que ele age mediante surpresa. Ele chega com a sua foice escondida e 424
acaba matando a mãe, matando os irmãos, impossibilitando-os de se defender. 425
Está aí a qualificadora presente. E o parricídio, pessoal, aqui no nosso país, 426
matar pai, mãe, qualquer outro descendente, incide apenas e tão somente uma 427
agravante, de acordo com o artigo 61 do código penal, onde, aqui no Brasil, 428
também, a premeditação só foi considerada como qualificadora do crime de 429
homicídio no código penal imperial. O nosso atual código penal, apesar da 430
imprensa fazer um barulho todo quando o crime foi premeditado, a 431
premeditação é apenas e tão somente uma circunstância que pode gerar o 432
aumento da aplicação da pena base. A premeditação não qualifica o crime de 433
homicídio. Então ele teria em seu desfavor a premeditação, como um aumento 434
da culpabilidade e, consequentemente, uma elevação da pena base, e teria 435
ele, no caso, em seu desfavor, uma causa de aumento de pena por ter matado 436
um descendente e uma qualificadora em seu desfavor por ele ter agido 437
mediante surpresa. Mas o que me chamou excessivamente a atenção no filme 438
não foi o aspecto penal, mas sim o aspecto processual. Será que nós podemos 439
considerar as provas produzidas contra o Pierre, provas admissíveis hoje para 440
o nosso Direito? E nós vamos observar que se o julgamento do Pierre tivesse 441
acontecido hoje, Pierre deveria ter sido absolvido, pessoal. As provas foram 442
coletadas, todas elas, sem que o contraditório e a ampla defesa fossem 443
garantidos a ele. E, consequentemente, as provas são todas inadmissíveis. 444
Isso dá trabalho de conclusão de curso, isso dá tese de mestrado e até tese de 445
doutorado se vocês forem pensar na forma em que as provas foram coletadas. 446
Em momento algum Pierre teve um advogado ao seu lado orientando-o ou 447
permitindo que fosse garantido um dos princípios constitucionais primordiais 448
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para o nosso processo. Infelizmente. E, talvez, Pierre, se fosse julgado nos 449
dias atuais, deveria ter sido absolvido pela falta de provas, por incrível que 450
pareça. Agradeço a todos pela atenção e estamos à disposição caso tenham 451
alguma pergunta. ((palmas)) 452
JOSÉ EDUARDO BALERA: [54:28] Neste momento abrimos espaço ao público 453
para eventuais questionamentos. 454
P1: [54:40] Eu queria falar, é espetacular esse momento, né, com tantas 455
disciplinas reunidas. Eu queria saber um pouco mais do senhor Prado o que 456
ele quis dizer – porque a gente não conhece muito da área – com a questão da 457
punição (inint. 55:00), dentro da questão da neurociência, a gente está 458
observando, então, um horizonte que pode chegar nessa questão da punição 459
(inint. 55:11). 460
EDUARDO SALVIANO TEIXEIRA DO PRADO: [55:26] Na verdade, eu quis 461
lançar só uma ideia. Eu não me considero (apto) para opinar se é uma coisa 462
que deve ser buscada juridicamente, mas pela neurociência, a questão da 463
culpabilidade tem sido questionada, a questão do que move o indivíduo, o que 464
nos move. A gente tem a ideia o tempo todo de que nós somos seres 465
completamente racionais, que calculamos as nossas atitudes e que 466
escolhemos um cálculo de custo benefício que nós vamos fazer. Mas isso tem 467
sido contradito. Há algumas décadas assim, aí vem de forma crescente, que, 468
pelo que a neurociência traz, a razão não dá valor às circunstâncias, a razão é 469
fria, e o que leva você a se aproximar ou se afastar da circunstância é o valor 470
emocional que você dá para aquilo. Estudos, por exemplo, em pacientes com 471
lesão em áreas cognitivas do cérebro mostram que eles têm capacidade de 472
tomar decisões corretas na vida real. E pacientes com lesão lobo-frontal, como 473
o caso clássico de 1848 do Phineas Gage, que é amplamente conhecido, 474
estudos nesses pacientes recentemente mostram que eles conseguem dar 475
uma explicação racional, lógica, numa situação hipotética, mas na vida real 476
eles tomam decisões completamente prejudiciais, decisões que a gente 477
classificaria como erradas. Então eles têm dado um peso muito grande para a 478
questão emocional. Tem alguns casos, eu esqueci o nome agora de um 479
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assassino da Universidade do Texas, por exemplo, que matou algumas 480
pessoas, tipo, umas oito pessoas. Ele acordou num dia, matou a esposa com 481
uma arma, aí foi e matou mais uns oito na universidade, e ele tinha escrito uma 482
carta para se estudar ele porque alguma coisa muito errada estava 483
acontecendo com ele. E quando fizeram a autópsia, ele estava com um tumor 484
na amígdala, que é uma área que dá um valor emocional para as situações que 485
a gente vive. Então tinha uma propensão agressiva, mas talvez o tumor na 486
amígdala trouxe uma tendência psicopática. Aí a questão é assim: até que 487
ponto se deve punir o indivíduo pelo que ele fez, de forma retroativa, (inint. 488
58:21) esse altruísmo (inint. 58:22) – o que você fez, você paga – ou, 489
decorrente, deve olhar para frente para ver a perspectiva de conduta desse 490
indivíduo. Mais ou menos isso. 491
P2: [58:48] Eduardo, quando você comenta que, dentro da Medicina, ele não 492
era esquizofrênico e esquizoide – é que, pra quem é do Direito, você falar do 493
controle ou não controle – mas no momento do crime, se ele surtou – vamos 494
dizer assim – independente de qual doença ele tenha ou não, como você não 495
puniria? Com culpa ou não, o crime ocorreu. Dentro da Medicina, como que 496
você vê isso, em relação a essa punição, surtado ou não surtado, 497
independente ou não? Enfim, aconteceu. 498
EDUARDO SALVIANO TEIXEIRA DO PRADO: [59:35] Mas, assim, a diferença 499
é que, na verdade, ele não estava – no termo estigmatizado – louco. Ele não 500
estava louco. Porque o esquizofrênico, quando ele faz um crime, ele 501
geralmente está num quadro de delírio, numa distorção completa da realidade, 502
irrebatível a qualquer tipo de crítica, é lógico, ou alucinação. Então ele 503
realmente pode matar alguém porque “o demônio está mandando ele matar”. 504
Mas, assim, essa coisa do esquizofrênico ser violento é meio que um mito. Na 505
verdade, o risco de violência na esquizofrenia é mais baixo do que a população 506
em geral, mas tem alguns casos de crimes em esquizofrênicos. Nesse caso, 507
medicamente, num surto psicótico, ele não tem responsabilidade sobre o ato 508
dele e deve ser tratado. Acho que, agora, eu consideraria o Pierre, talvez, um 509
semi-imputável. Acho que ele não estava louco, mas ele tem um transtorno 510
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pré-esquizofrênico, que é o esquizoide. Se ele não fosse esquizoide, 511
provavelmente não faria esse crime. Mas ele não estava louco, ele não estava 512
surtado, ele estava com uma percepção adequada da realidade, só que ele tem 513
uma perda de afiliações emocionais, uma perda de vínculos emocionais, que 514
leva ele a possíveis condutas psicopáticas. Aí a importância do ambiente. Acho 515
que também se ele não tivesse uma mãe completamente descontrolada, uma 516
mãe completamente instável, talvez não fomentasse esse crime. 517
P2: [61:31] E, dentro da sua visão de médico, uma pessoa como o Pierre, em 518
tratamento, ela poderia estar vivendo em sociedade? 519
EDUARDO SALVIANO TEIXEIRA DO PRADO: [61:41] Poderia. Eu acho que 520
poderia. Porque se tivesse... Eu acho que deveria ser internado por um tempo, 521
tratado e, talvez, monitorado. Talvez ainda a gente use, em alguns casos, 522
antipsicóticos de (depósito) para garantir que o paciente mantenha o controle. 523
Não sei, se ele tivesse sendo bem acompanhado, num ambiente seguro, 524
depois de um tempo, eu acho que ele teria. 525
P2: [62:16] Às vezes, nem cometeria o crime. 526
EDUARDO SALVIANO TEIXEIRA DO PRADO: [62:19] É, se ele tivesse sido 527
tratado antes, acompanhado antes. 528
P3: [62:28] Eu queria fazer uma pergunta para o professor Marcos Nalli e, 529
depois, essa pergunta pode se estender para a professora Andréia e para o 530
professor José Ricardo. É que eu ouvi todo mundo falando neste “eu” [...] essa 531
questão da subjetividade. Essa é uma questão, porque ao tratar, ao falar do 532
assunto, já não está partindo de algo subjetivo, que é a leitura do psiquiatra e 533
do psicólogo? E, uma outra pergunta, é – aí já é bem específica para o 534
Eduardo e para a Andréia – de fato vocês acreditam realmente que o ser 535
humano tem cura, que a gente pode conhecer o homem? Esse ser humano 536
não é obscuro? Como é que se pode entender esse “eu”? E esse “eu” se pode 537
entender como o “eu” cartesiano, esse “eu” criado, inventado pela modernidade 538
ou coisa que o valha. Não sei... Então eu queria ouvir, que vocês comentassem 539
um pouco sobre isso. 540
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MARCOS ALEXANDRE GOMES NALLI: [63:41] Rodrigo, lá fora depois a gente 541
se acerta. ((risos)) Você pode recapitular um pouquinho só a parte inicial da 542
sua fala? 543
P3: [63:53] O que é esse “eu”? O “eu”, esse sujeito que se apresenta, que se 544
denuncia, esse “eu” cartesiano. O que é isso, esse sujeito? É pensado como 545
Descartes mesmo. 546
MARCOS ALEXANDRE GOMES NALLI: [64:11] Mas isso é em Descartes, 547
para Pierre Rivière? 548
P3: [64:13] Não, mas como que é aplicado isso na Psicologia, como que eu 549
conheço o “eu” do sujeito, esse ser pensante, cognitivo, solipsista? Como eu 550
posso analisar o ser humano, conhecer, cheio de traumas e complexos? 551
MARCOS ALEXANDRE GOMES NALLI: [64:33] Eu não saberia responder 552
isso. ((risos)) 553
ANDRÉIA PARENTE DA SILVA: [64:41] Eu acho a sua pergunta super difícil 554
porque a gente vem estudando isso há anos. A linguagem – eu acho que a 555
Simone pode falar melhor – ela é um recurso para isso. O comportamento não 556
verbal é um recurso para isso. O sofrimento é um recurso para isso. Eu acho 557
que entender o ser humano... Eu não tenho essa pretensão de acreditar que a 558
gente vá destrinchar esse ser humano dessa forma. Entende? Que você diz 559
assim: “Tem cura?” Eu não sei se existe isso, sabe? Às vezes, as pessoas 560
buscam isso, cura... Eu não acredito nisso. Eu acho que as pessoas... O que a 561
gente tenta é minimizar sofrimento, por exemplo, na Psicologia. A gente não 562
tem a pretensão de compreender dentro de uma complexidade muito grande o 563
ser humano porque nós somos esse ser, não é? Então quando a gente, por 564
exemplo, na Psicologia, interage, o que a gente tenta é através de uma 565
linguagem, de uma comunicação, principalmente verbal, estar buscando 566
minimizar esse sofrimento. Mas eu acho que é a linguagem, porque ajuda 567
muito. 568
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JOSÉ RICARDO ALVAREZ VIANA: [66:14] Você fala duas expressões: “quem 569
é esse „eu‟?”, e se “esse „eu‟ tem cura?”. Ele está doente? 570
P3: [66:26] A questão foi tratada como algo patológico, por isso que eu falei da 571
cura. 572
JOSÉ RICARDO ALVAREZ VIANA: [66:30] Mas aí, então, o “eu” é ele, não é o 573
ser humano. É isso? A questão do conhecimento do “eu”, eu acho que desde 574
quando o homem, o ser humano passou a estudar, essa pergunta ela se faz. E 575
acredito que isso não tem resposta por conta até da própria linguagem, que ela 576
é, até por questões envolvendo a neurociência, de significações. Essa 577
subjetividade vai dando significados e ressignificados. Ao contrário até do 578
raciocínio cartesiano, que a racionalidade não esgota tudo aquilo que a gente 579
queria ou que alguns queriam que ela esgotasse, como foi dito aqui, d‟o “Erro 580
de Descartes”, não é? (Um nome francês). E a questão do filme, baseado no 581
livro, parece que é justamente essa crítica. Que ele, não por acaso, coloca o 582
título como “eu”, e aí ele mostra uma visão de mundo do Pierre e uma visão de 583
mundo de outros. Foi dito aqui que, tendo aquela mãe que ele tinha, aquilo 584
talvez tivesse contribuído para aquele quadro patológico do Pierre. Será que 585
ele tinha realmente aquela mãe? Ou será que era uma visão dele da mãe? 586
Porque quando as outras pessoas falavam do episódio, do fato, em nenhum 587
momento apareceu – salvo engano, eu só assisti ao filme hoje – em nenhum 588
momento apareceu qualquer comentário sobre a mãe. O comentário sobre a 589
mãe só vinha dele, o que é o “eu”, o que é linguagem. Tem uma passagem no 590
livro “Kant e o ornitorrinco” do Umberto Eco, e ele relata – até pra entender 591
melhor essa questão do “eu” e da linguagem, me parece que esse exemplo é 592
muito didático – ele transcreve ali algumas cartas do Marco Polo a caminho da 593
China. E ele chega num determinado local e se depara com um rinoceronte. E 594
ele vai procurar – na biografia dele, nas memórias dele, na razão dele, na 595
analogia que ele vai fazer – o que é aquele animal. E ele não consegue, porque 596
aquilo é um animal que ele jamais tinha visto. Até que ele, depois de muito 597
refletir, ele fala: “Eu já sei, é um unicórnio, porque é um quadrúpede com um 598
chifre na testa.” Na verdade não é um, são dois. E, muito ao contrário daquilo 599
Comentários ao filme
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que era relatado nos contos de fadas, o unicórnio não é dócil, nem parece um 600
cavalo. Ele é agressivo, ele é lento, ele é pesado, ele é feio. Estava tudo 601
errado. Mas ele, enquanto ser humano, na sua subjetividade, nos limites da 602
linguagem do seu mundo, ele tem que dar um significado para aquilo, e ele diz 603
que é um unicórnio e aquilo para ele basta. Essa questão de conhecer o ser 604
humano em toda a sua complexidade, me parece que isso nunca vai acontecer 605
porque o ser humano sempre vai estar ressignificando essa realidade que nos 606
é perceptível pelos nossos sentidos. Isso não acaba. Não acaba. Se acabasse 607
já teria acabado. 608
EDUARDO SALVIANO TEIXEIRA DO PRADO: [70:02] Só para complementar 609
a coisa da psicopatologia, é que, assim, esse “eu” depende da perspectiva. 610
Pode ser um “eu” completamente insondável e praticamente impossível de 611
definir. Mas na Psiquiatria a gente trabalha de uma forma descritiva e, assim, a 612
gente não pode ignorar que existe o cérebro, então a gente não trata o “eu” 613
metafísico, mas o comportamento a nível cerebral. Assim como um 614
cardiologista trata alterações cardíacas, o pneumologista trata alterações 615
pulmonares, o cérebro processa a linguagem, processa a memória, processa o 616
comportamento e as emoções num nível fisiológico. E a busca nossa não é 617
entender nada, mas descrever padrões de alteração. Se você perguntar: “O 618
que é um cachorro?” Eu não sei qual que é a essência de um cachorro, mas eu 619
sei que late, eu sei que tem quatro patas, tem o rabo, ou seja, um cachorro de 620
três patas eu vou saber que está alterado. Então a gente não sabe a essência 621
do ser humano, mas a gente sabe descrever como é o padrão do ser humano e 622
trabalhar no nível homeostático, num nível... O Espinosa falava muito da 623
homeostase, da questão... (inint. 71:39) grande filósofo, mas tem até um livro 624
interessante de neurociência que chama “Em busca de Espinosa”, que traz um 625
pouco da ideia da busca do equilíbrio na questão da forma e não do conteúdo. 626
A gente aborda mais a forma. Forma do comportamento. 627
SIMONE REIS: [72:01] Posso só acrescentar um comentário à sua pergunta? 628
Quando eu mencionei na minha fala que Pierre é confrontado pelo juiz 629
mediante um resgate de princípios deontológicos, eu só esqueci-me de fechar 630
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o seguinte: se a gente fosse ver pelo ponto de vista da ética, esse 631
interrogatório, o Pierre é confrontado com princípios deontológicos, e aí, pra 632
não se mostrar em contradição, ele vai fazer a citação bíblica. No entanto, 633
quando ele confessa lá no final, por tudo o que a gente vê no filme, e também é 634
muito literal com relação ao livro, a justificativa dele não é mais deontológica. A 635
justificativa dele é teleológica. O que é o teleológico? A ética teleológica vai 636
dizer assim: “Os fins justificam os meios.” Então, no final ele diz: “Era pra livrar 637
meu pai daquela tortura, daquele sofrimento.” Então, o meio era ele próprio. 638
Então ele tinha uma versão – e isso, ele tinha bastante consciência de que 639
essa era uma versão que ele ia apresentar antes de cometer o crime – mas 640
depois, quando ele o admite, a ética dele é outra. Então, a gente captura aí 641
uma contradição. Se você for pensar quem é esse “Eu, Pierre Rivière tal”, a 642
gente teria que olhar num contexto amplo, histórico, para ver que, por exemplo, 643
a concepção de loucura veio se desdobrando ao longo de séculos de forma 644
que, ora a loucura não era vista como algo tão estigmatizante, mas algo 645
atrativo que servia para entreter certas elites. Ela passa, em um certo 646
momento, a ser algo para ser excluído; é a anormalidade, para ser colocada à 647
margem da sociedade. Num determinado momento, ela é indesejável porque 648
ela representa o improdutivo, o anormal, o desviante. E, num outro momento, 649
que é na entrada da Idade Moderna, quando então, e principalmente, pela 650
influência cartesiana, quando o louco é visto como paciente. Então, ao invés de 651
se olhar a mente, está se olhando crânio. Então, a gente vê claramente no 652
filme uma ligação com isso, quando o médico apalpa a cabeça do Pierre e 653
pergunta se ele nunca bateu a cabeça. Já é justamente esse olhar cartesiano. 654
Então, o Pierre está numa sociedade, numa França em que o governo olha 655
muito mais para a classe produtiva e negligencia totalmente o povo. Então, é 656
nesse tempo histórico que ele se localiza. Era só isso que eu queria colocar 657
como forma de você pensar, colocar de volta para você pensar que “eu” de 658
Pierre era esse. 659
P4: [75:11] Eu gostaria de fazer um comentário. Meu nome é Lavínia. Está na 660
cara que eu sou irmã da professora Simone, irmã da professora Márcia. Eu 661
estou afastada da universidade há 30 anos, muito diferentemente das minhas 662
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irmãs estudiosas eu sou (inint. 75:28). E eu fiquei muito feliz com o convite que 663
elas me fizeram hoje para vir assistir ao filme e a uma discussão que haveria, 664
em seguida, desse filme. O que eu observo é que existe uma situação ali, 665
pessoal, do Pierre Rivière, mas isso pode ser trazido pra um sentido mais 666
amplo. Em primeiro lugar, eu gostaria de agradecer a todos vocês professores 667
e doutores, que deixaram suas casas, provavelmente sem ganhar nada, para 668
estarem aqui participando dessa discussão, porque eu acho que a gente ainda 669
está pensando no Direito e no crime como acontecia no tempo das cavernas 670
em que o camarada pegava o tacape e dava na cabeça do outro, e isto era 671
crime. Hoje, os crimes continuam acontecendo, o homem continua se 672
modificando, ele deixou de andar de quatro patas para se erguer e andar em 673
duas patas, hoje ele já foi para a lua, hoje ele já conversa pela internet e as 674
pessoas continuam mudando e o crime continua se modificando. Então, eu 675
acho que a gente pôde ver como um aspecto psicológico, como um aspecto de 676
situação emocional pode conduzir a uma situação de distorção de uma 677
personalidade. Então eu acho que a reunião de diferentes especialistas 678
contribui para que a gente possa analisar esses novos formatos de 679
personalidade e de crimes que se cometem hoje em dia. Então eu fico muito 680
grata a vocês. Eu, que estou muito longe da universidade, gostaria demais que 681
um doutorado não fosse aquela (ultra) especialização de uma pessoa, mas que 682
se pudesse pensar em teses de doutoramento, unir duas pessoas de 683
atividades totalmente diferentes, se se combinassem para fazer um estudo. 684
Porque eu acho que a Medicina pode ganhar com o Direito, como o Direito 685
pode ganhar com a Medicina. Eu fico contente que todos esses meninos 686
estejam aqui para assistir a isso, porque daqui sairão os novos pesquisadores. 687
Muito obrigada. ((palmas)) 688
P5: [78:09] Queria parabenizá-los antes. Eu li o texto que me parece que, entre 689
o dossiê propriamente dito, no filme se perde uma coisa muito essencial, 690
porque o que leva realmente uma pessoa (inint. 78:27) nesse texto me parece 691
que é uma ausência. Porque é uma ausência justamente desses (inint. 78:34), 692
seja no Direito, seja até na Psiquiatria, que não dá conta propriamente do que 693
está acontecendo ali. E o que está acontecendo ali é justamente esse 694
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nascimento desse “eu”, que na verdade, e (inint. 78:48) porque na verdade o 695
filme chama “Eu, Pierre Rivière” e no texto você chama de “Pierre Rivière” 696
porque o Pierre Rivière começa a redigir o texto, (inint. 79:03). Esse, na 697
verdade, é (inint. 79:05). E eu queria fazer uma pergunta (inint. 79:09) 698
justamente sobre o texto. O que é (inint. 79:13) dentro da Psicologia (inint. 699
79:16). Dentro, por exemplo, da Psicologia ou propriamente do Direito, que 700
importância fundamental tem nesse caso específico, nesse texto, de forma que 701
se Pierre Rivière não tivesse redigido, como modificaria a leitura de vocês? 702
Digamos assim, porque justamente em todo caso, para ter aquelas lembranças 703
dele de infância e como ele propriamente fez e tudo mais, me parece que foi 704
isso o curto-circuito, foi isso que veio a necessidade propriamente de trazer 705
disciplinas distas para (inint. 80:01) desse caso. Me parece, de antemão, e à 706
priore, que o caso estava resolvido. E parece que o Direito já tinha a sua 707
sentença e me parece, talvez um pouco (inint. 80:13), que ainda a Psiquiatria 708
tinha alguma coisa a se falar. E me parece que tínhamos um olhar sobre Pierre 709
Rivière diferente possivelmente desse, quando esse “eu” literário surge, né. 710
(inint. 80:25) propriamente essa modificação se dá (inint. 80:28), talvez não 711
precisa ser (inint. 80:30), mas (qual) a importância (inint. 80:33) mesmo pra 712
leitura e como poderíamos analisar, por exemplo, Pierre Rivière antes de 713
redigir esse texto, (inint. 80:40) o caso em questão, no decorrer desse caso? 714
Por que o texto provoca esse curto-circuito? 715
CARLOS JOSÉ COGO MILANEZ: [81:04] Analisando, talvez, para o Direito, 716
essa questão, o Pierre traz detalhes do fato que não haviam sido trazidos até 717
então. Fatos esses que acabariam talvez até modificando um possível 718
julgamento pelo que ele traz, pela forma em que ele o vê, por isso talvez o “eu”. 719
É a visão dele. O que ele o levou. Será que ele levaria você a fazer o que ele 720
fez? É esta talvez a visão que eu tenho deste “eu”. Eu sempre falo em sala de 721
aula e dou um exemplo, e talvez isso esteja muito ligado a este “eu”. Eu fiz um 722
júri onde eu fui nomeado defensor dativo, logo no comecinho da minha carreira, 723
e isso me marcou bastante pra eu ver esse “eu”, talvez esse “eu” levantado 724
hoje. O rapaz tinha o apelido de “Corvo de granja” e ele simplesmente odiava 725
esse apelido “Corvo de granja”. E ele matou uma pessoa por causa desse 726
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apelido. Ele matou. Será que, de repente, você mataria? Será que, de repente, 727
eu, ele, qualquer um de nós teríamos a mesma atitude? Talvez este “eu” 728
mostre a visão dele em relação ao crime que ele cometeu. Talvez com as 729
mesmas provas você não tenha a mesma visão. Você condenaria o Pierre pelo 730
que ele fez? Eu condenaria? Qualquer um aqui condenaria? Então, ele dá a 731
versão dele. Talvez por isso esse “eu” e a importância do texto para o caso 732
hoje. 733
JOSÉ RICARDO ALVAREZ VIANA: [83:05] Eu vou falar bem rapidinho 734
também. Eu concordo com você. Você pegou no ponto central da questão. O 735
texto do Foucault é uma grande crítica porque não foi dado, na sua linha de 736
raciocínio, que eu concordo também, não foi dada voz efetiva para ele no 737
contexto da apuração dos fatos. Foi o texto considerado o “eu”, Pierre. O que é 738
fundamental para a gente atenuar justamente essa questão de subjetividade, 739
para a gente entrar num diálogo. Não teve diálogo. Teve um pré-julgamento 740
muito simples, inclusive. Já estava tudo fechado. É o texto dele que faz – bem 741
na linha do professor Marcos – que faz com que tenha um aspecto sublime. 742
Por quê? Porque [...] de acordo com os anais oficiais é uma história, de acordo 743
com o texto dele, é uma outra história. Tem alguma coisa de errado aqui, no 744
Direito, na Psicologia, na Filosofia. Não está certo isso daqui. E acho que é 745
esse ponto que fez com que o Foucault trabalhasse com o texto e provocasse 746
essa reflexão que a gente ainda está fazendo aqui. 747
ANDRÉIA PARENTE DA SILVA: [84:44] Você leu o livro, não é? Você leu o 748
livro. O livro e as críticas, que são trabalhadas, tratam exatamente isso. Que 749
sem o manuscrito nós não temos condições de conseguir entender muito bem 750
o contexto amplo que faz a (atuação) do Pierre, levado a isso. A Psicologia 751
tenta buscar esse contexto amplo – como a minha apresentação tentou mostrar 752
– e o que eu percebo é que o senso comum julga, que é o que acontece no 753
começo do filme. Uma pessoa que mata, o senso comum chama do quê? 754
Geralmente o psicopata, o cara é monstro. (inint. 85:41) faz. Nós, da 755
Psicologia, a gente tenta evitar isso e tenta buscar algumas outras coisas que 756
estão mais encobertas aí, não tão declaradas e que o manuscrito oferece. Mas 757
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sem ele a gente não teria essa informação. Eu espero que não o julgamento 758
também. 759
MARCOS ALEXANDRE GOMES NALLI: [86:07] Eu posso só acrescentar uma 760
interrogação? Fazendo justiça a Descartes, antes de mais nada. Na verdade, 761
qual é a questão? A gente sempre lembra apenas da máxima cartesiano: 762
“Penso, logo desisto.” Mas a gente não lembra que o próprio Descartes, num 763
outro texto chamado “Tratado das paixões”, dizia assim: “Eu penso e sinto, me 764
emociono, percebo, choro.” Ou seja, esse mesmo ser, até então definido 765
friamente como pensante, ele é uma plêiade de outras tantas possibilidades de 766
âmbito... de muitas outras coisas. E o detalhe importante aqui, quem nos diz 767
isso é o próprio Descartes. Num segundo aspecto, até considerando o que 768
você falou agora, a questão que o senso comum julga. Mas o que é julgar? 769
Julgar, a grosso modo, não é outra coisa... duas definições básicas é separar o 770
joio do trigo, é separar o verdadeiro do falso. Mas julgar é também, 771
considerando uma outra maneira de colocar aqui, é classificar, enquadrar, 772
definir. 773