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Estado, (Neo) desenvolvimentismo e a atualização da cultura de “solidariedade” e

“participação” como estratégias de controle do poder hegemônico

Karênina Fonsêca Silva1 Lisiane de Oliveira Costa Castro2

RESUMO Este artigo discute o Estado capitalista e a estratégia (neo) desenvolvimentista, como forma de organização das forças produtivas, das relações entre as classes e como sistema de regras e condutas que regulam o mercado. Nessa direção, aponta as estratégias homogeneizadoras da noção de “solidariedade” e de “participação”, difundidas por meio de discursos e práticas envolventes na garantia da produção, reprodução e ampliação do capital e de controle do poder hegemônico. Traz uma reflexão sobre as lutas sociais como força política e pedagógica na construção de uma nova cultura de participação para uma emancipação humana. Palavras-chave: Estado. (Neo) desenvolvimentismo. Cultura. Hegemonia. Solidariedade.

State, ( Neo) developmentalismandupdatingthecultureof " solidarity " and "

participation " as control strategies of the hegemonic power

ABSTRACT

This article discusses the capitalist state and the strategy ( neo) developmentalist as a form of organization of the productive forces , the relations between the classes and how rules and conducts system regulating the market. In this direction, pointing the homogenizing strategies of the concept of " solidarity " and "participation" , disseminated through speeches and engaging practices in ensuring the production, reproduction and expansion of capital and control of the hegemonic power. A reflection on the social struggles as a political and educational force in building a new culture of participation for human emancipation. Keywords : State. ( Neo) developmentalism . Culture. Hegemony. Solidarity..

1 Assistente Social e Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal

do Maranhão (UFMA). Email: [email protected] 2 Assistente Social e Mestre em Educação pela Universidade Católica de Brasília (UCB). Email:

[email protected]

1 INTRODUÇÃO

Entende-se que o Estado capitalista representa os interesses e garantias de

uma classe social, em favor da propriedade privada e acumulação de riqueza, sendo que,

de maneira polarizada, diante de conflitos emergentes, subsidia estrategicamente políticas

que atendam às necessidades da classe dominada para mediar os conflitos. Assim, o

Estado capitalista não pode ser outra coisa que não instrumento de dominação de classe,

pois se organiza para sustentar a relação básica entre capital e trabalho (MARX e ENGELS,

1984, p. 99).Nessa direção, Mészáros (2002, p.106) aponta que a formação e

desenvolvimento do Estado moderno traz, em sua estrutura, o “comando político” para

“assegurar e proteger permanentemente a produtividade do sistema do capital, articulado à

necessidade material da ordem sociometabólica do capital”.

Assim, o (neo) desenvolvimentismo surge, no século XXI, como uma estratégia

que acompanha a crise estrutural do capital e, portanto, a crise do Estado, considerando

este como expressão política do capital, como a forma de organização das forças

produtivas, das relações entre as classes e como sistema de regras e condutas que regulam

o mercado.

Dessa forma, torna-se fundamental compreender que a política

neodesenvolvimentista assume a expansão dos valores de mercado e a disseminação de

uma cultura de classe que vem se desenvolvendo, historicamente, por intermédio da

pedagogia da hegemonia, com práticas e ideologias que se tornam essenciais e quase

únicas, a saber: a catequese de superação da crise econômica, com medidas de contenção

de gastos, gerenciamento público, com o extermínio de direitos sociais e trabalhistas,

privatizações e terceirizações, em defesa de impulso do crescimento econômico, sob as

ordens do capital financeiro internacional e, portanto, de legitimação ao processo de

acumulação capitalista e de manutenção do status quo, com dimensões e determinações

ideopolíticas na formação de consensos de classe, negando seus antagonismos.

Nessa perspectiva, Oliveira (2010) nominou de “hegemonia às avessas” a

estratégia de cooptação dos trabalhadores, que assumem como suas ou são constrangidos

a assumir como suas as ideias propostas da burguesia. Esse movimento da hegemonia das

classes dominantes, ganha força mediante as estratégias da despolitização da classe

trabalhadora, versadas do discurso da eficiência, privatização e mercantilização das

políticas públicas, da apologia ao empreendedorismo e à empregabilidade, reforçando a

responsabilização dos “insucessos” e “exclusão” ao indivíduo.

Este movimento de dominação restaura as bases do processo de acumulação

capitalista sob o poder do “bom capitalismo”, do “ manto sagrado” da moral, da participação,

da solidariedade, com o intuito de responder à questão da desigualdade, de forma

superficial, focalizada, imediata, mas com o significado reiterado da “ajuda”, “benesse” e

“humanidade”, que assegura um novo consenso e conformismo, trabalhado pela terceira

via.É nessa imersão ideológica e política neodesenvolvimentista que o “espetáculo do

crescimento” é proposto, desistoricizando sua raiz econômica e de interesses políticos,

reanimando, fantasmagoricamente, as estratégias homogeneizadoras da noção de

“solidariedade” e de “participação”, com discursos e práticas envolventes na garantia da

produção, reprodução e ampliação do capital, sob a face oculta de garantia da sua

hegemonia.

No entanto, contrário a essa proposta, as lutas sociais têm descortinado a

encenação deste “espetáculo”, por meio da recriação de condições objetivas pela

sobrevivência, buscando espaços de intervenção e confronto, coletivizando demandas e

interesses em redes que alcançam um vínculo político, cultural, em defesa de uma

pedagogia para a emancipação humana.

Parte-se da compreensão de que as lutas sociais ocorrem em função das

necessidades reais, a partir dos processos de desigualdade social, fomentados pela

organização do modo de produção; nesse mesmo sentido, a existência de um movimento

que perpassa todas as classes sociais vai além da luta por direitos sociais, pois envolve

organização de uma cultura, de correlações de força que estão imbricadamente ligadas e

em oposição.

Dessa forma, este trabalho discute a questão do Estado e a ideologia

(neo)desenvolvimentista, diante da crise estrutural do capital e, no campo das disputas

e relações antagônicas que envolvem o movimento e a (re)organização da sociedade em

busca de uma direção e ordenamento das relações sociais, traz a necessidade de reflexão

sobre o entendimento de participação e solidariedade no âmbito da cultura e política, numa

luta pela emancipação ou pela manutenção da perspectiva de dominação.

2 ESTADO E O MERGULHO IDEOLÓGICO NO NEODESENVOLVIMENTISMO SOB O

“MANTO SAGRADO” DA CULTURA DE SOLIDARIEDADE E PARTICIPAÇÃO

Partindo da compreensão em Marx e Engels (1973, v.3, p.137 ), o Estado nem

sempre existiu, ele nasce a partir da necessidade de mediar o antagonismo das classes e,

logicamente, de atender prioritariamente a uma classe que detém as condições políticas e

econômicas para manter seus meios de repressão e exploração da classe oprimida.

Nessa compreensão, o Estado burguês, mediante a apropriação dos meios de

produção, mantém não somente o monopólio econômico, mas, também, o político, por meio

da cultura e direção espiritual e ideológica trabalhadas intelectualmente, com vistas ao

processo de manutenção de um consenso entre as classes quando da internalização de

valores, conduta, modos de vida, leis, transformando os interesses privados (da minoria que

detém os meios de produção) em ideais absorvidos pela classe oprimida, abrangendo

“toda” a sociedade.

O Estado, para Gramsci (1980), está articulado “organicamente” à sociedade,

ou seja, faz parte dela. Para ele, a distinção entre sociedade civil e Estado é de natureza

metodológica e não orgânica. Dessa forma, compreende o Estado como sendo ligado à

sociedade, amalgamado ao conjunto das vontades coletivas, que se articulam e organizam,

embora em condições opostas e que se expressam contraditoriamente nas relações e nas

subjetividades inerentes ao processo de acumulação do capital.

Segundo Coutinho (1992, p.76), Gramsci, ao analisar o processo de expansão

do capitalismo da sua época, percebe que, em sociedades nas quais o conjunto de

vontades coletivas são mais bem absorvidas, movidas pelo ideário vivenciado pelo senso

comum dessas sociedades e fortalecidas pela elaboração e difusão das ideologias, menor

será necessário o uso da força pelas instituições de repressão que representam a

hegemonia.

A reflexão gramsciana sobre hegemonia traz grande contribuição sobre os

aspectos de direção cultural e política que envolve essas relações interdependentes e

antagônicas. Nessa concepção, o poder não advém apenas da classe dominante, mas pelos

dois modos como se manifesta. Um pelo domínio e outro pela direção intelectual e moral.

Um grupo domina quando submete o grupo oposto e dirige quando se põe à frente dos

grupos afins ou aliados. O domínio pressupõe o acesso ao poder e o uso da força de

maneira coercitiva; e a direção intelectual e moral faz-se por meio da persuasão e da

adesão ideológica, que exercem a função hegemônica.

A hegemonia é um conceito atrelado ao entendimento da ideologia, capaz de

conduzir um grupo social e estabelecer as relações sociais ou mesmo as relações de

classe. Nesse sentido, Gramsci amplia a concepção de hegemonia e indica a possibilidade

de que a classe social dominada possa desenvolver sua direção intelectual e moral, apesar

de não ter acesso aos meios intelectuais de direção.

Na obra clássica de Marx e Engels, “A Ideologia Alemã” (1984), a produção de

ideias, de representações e da consciência está relacionada à atividade material dos

homens; é a maneira como se traduz a vida real e concreta em sociedade. As

representações, o pensamento e as ideias traduzem a realidade por intermédio das leis,

política, moral e religião de uma nação.Por isso, para Marx, não há história fora do processo

de produção da vida material, pois não é a consciência que determina a vida, mas a vida

que determina a consciência. Para ele, não se parte do que os homens dizem e pensam,

mas a partir do processo da vida real, do concreto, das relações representadas pela

ideologia dominante, que orienta esse cotidiano e as engendradas pelo capitalismo.

Nesse sentido, para o referido autor, a ideologia é um conjunto de ideias que

procuram ocultar sua própria origem nos interesses sociais de um grupo particular da

sociedade. Sua compreensão sobre ideologia trouxe à tona a função, implícita e explícita,

desse conjunto de ideias, para defender os interesses de uma classe em particular: a que

exerce a dominação política, como se fosse interesse universal e representasse os anseios

e pensamentos dos sujeitos sociais. Assim, a função da ideologia é a de ocultar ou

dissimular o domínio de uma classe sobre a outra. Marx (1984) afirma que o objetivo da

ideologia é evitar o conflito aberto entre dominados e dominantes e seria uma forma de

consciência, mas de uma consciência parcial e ilusória engendrada pela criação de

conceitos e preconceitos como instrumento de hegemonia.

O conceito de ideologia, na perspectiva gramsciana, vai além de um conjunto de

ideias defendidas e universalizadas pela classe dominante; passa a ser entendida como

consciência política ligada aos interesses de uma determinada classe. É uma visão de

mundo desenvolvida e vivenciada pelos sujeitos capazes de pensar, inspirar e orientar uma

ação ideológica e política, de acordo com o projeto de classe ou grupo social. E, ainda, para

Gramsci (1995, p. 65), é o terreno sobre o qual os homens movimentam-se, adquirem

consciência de sua posição e lutam.

O desenvolvimento capitalista faz-se por meio da produção econômica e da

propagação da ideologia. É no campo ideológico que os homens vivenciam e tomam

consciência dos conflitos no mundo econômico. A estrutura ideológica capitalista é

fundamentada a partir da relação ideológica e política disseminada pelos aparelhos

ideológicos do Estado, cabendo aqui a ideologia econômica, com políticas voltadas a

garantir a expansão econômica com a anuência do Estado.Sendo o Estado um dos

principais integrantes desse sistema, a ideologia que o controla está eminentemente

imbuída dessas relações. Uma determinada ideologia dominante não se define em função

da classe dominante, mas das relações entre as classes.

Assim, a ideologia encarrega-se de conduzir as relações entre as classes sociais

com a intenção de organizar “a visão de mundo” dos sujeitos que se relacionam em

sociedade, bem com manter a ordem. Logicamente, como a classe dominante detém os

aparelhos ideológicos do Estado, encontra-se em situação privilegiada para criar e

disseminar a ideologia também dominante e intrinsecamente absorvida pela cultura, religião

e meios de comunicação, como algo universal e, ao mesmo tempo, particular, pois passa a

ter um caráter hegemônico.

Nesse contexto, a ideologia desenvolvimentista passa a ser uma formulação

necessária para a expansão econômica, para o aumento da riqueza e, consequentemente,

diminuição da pobreza, ditada por países “ricos” como uma fórmula ou etapa a ser seguida

para superar a pobreza e todos os seus males, como: a marginalidade, a falta de moradia, a

prostituição, entre outros. Esse modelo passa a ser seguido pelos países que se encontram

na posição de “atrasados”, a fim de alcançarem o patamar de desenvolvido ou mesmo de

“país rico”.

Acompanhando a lógica do capital, em seu processo de reestruturação, o novo

desenvolvimentismo apresenta-se, no século XXI, resgatando princípios da ideologia

desenvolvimentista, lançando uma nova ideia para novos tempos, com o discurso de

crescimento econômico, com equidade social, talvez ressuscitando aquele bolo que

cresceria para a posteriori e que, na essência do seu discurso, traz medidas políticas para a

economia, somadas a programas sociais de “promoção de igualdade”, “inclusão social”,

tendo a participação do setor privado de forma mais contundente, até porque a ideologia

assumida é a de que “a política do privado funciona melhor que a do público”, reforçando

uma nova versão do liberalismo culturalmente enraizado.Nessa perspectiva, o Estado

mergulha nessa ideologia que defende o crescimento econômico e o mercado, trazendo o

discurso da terceira via como alternativa para superação e da “parceria” para enfrentamento

da pobreza, por intermédio da cultura de “participação” e “solidariedade”.

Os teóricos da Terceira Via concordam com os neoliberais, quando afirmam que

a crise está no Estado, só que apontam como estratégia de superação o terceiro setor, que

é caracterizado como público não-estatal. Assim, a tarefa de execução das políticas sociais

é repassada para a sociedade, em nome da participação e democratização da democracia.

(GIDDENS, 2001)

Diante dessa concepção, a luta de classes é excluída pelo discurso ideológico

da “igualdade socioeconômica”, tirando do Estado a responsabilidade de distribuição de

renda, porque os problemas serão resolvidos pela privatização dos direitos sociais que são

transformados em serviços sociais, gerenciados pela lógica do mercado. A sociedade,

nesse contexto, é vista ideologicamente como aquela que é regulada pelo mercado, lócus

de criação e expressão da liberdade individual, de oportunidades e da justiça social, ou seja,

igual para todos. É nesse “espetáculo” direcionado ao imaginário das classes, que, diante

das incertezas econômicas e políticas, passa a valer a personalidade do político (sua

aparência na televisão, sua voz no rádio, sua foto nos jornais, seus hábitos sexuais, sua

vida moral, seus amigos) (CHAUÍ,1999).E ainda, conforme a autora, cristaliza-se, assim, a

ideologia pós-moderna do efêmero, volátil e intimista que destrói as ideias e práticas

republicanas e democráticas.

Segundo Lopes (1999, p.19), esta ideologia traz uma tendência ao retrocesso do

filantropismo, assistencialismo e participacionismo, travestidos de solidariedade e

participação que, na verdade, nunca desapareceram no processo de acumulação capitalista;

aliás, nem podem desaparecer.

Nessa perspectiva, a filantropia, a solidariedade e a participação tornam-se um

vasto consenso para aqueles que a praticam e aqueles que a recebem como novos

mecanismos e organizações de caridade, cooperação, ajuda que, de um lado promovem

lucros e legitimidade de uma hegemonia e, de outro, respondem ás necessidades imediatas

de sobrevivência e até de “agradecimento” à “boa-aventurança”, sob o “Manto Sagrado” da

“humanidade”, “ajuda” e perpetuação da cultura do conformismo e aceitação.

Abreu (2011, p.106), ao analisar a pedagogia da “participação”, sob a influência

da ideologia desenvolvimentista modernizadora, aponta que a noção de participação deve

ser redimensionada para além do processo de “ajuda”. E, ainda, salienta que a ideologia é

tanto elemento de dominação como de libertação. Assim, a participação pode ser concebida

na forma de pensar e agir para uma emancipação humana.

Nessa perspectiva de participação para a emancipação, Faleiros (2011, p.72),

refere-se à mobilização dos esforços individuais pela eliminação da acomodação. Uma

participação pela mudança de atitudes e comportamentos individuais e coletivos. Pressupõe

uma mudança de cultura.Entendendo cultura, a partir de uma análise gramsciana, a cultura

é entendida como concepção de mundo, conduta moral, ideias e opiniões. As concepções

de mundo, por sua vez, nascem, consolidam-se e desenvolvem-se a partir do entrelaçar-se

das relações nas quais os indivíduos, ou os agrupamentos humanos, já estão inseridos. É o

caso, por exemplo, do ambiente familiar, do peso das tradições locais, da realidade política,

econômica e cultural do lugar onde o indivíduo nasceu e na qual foi formado e das que ele

tece e desenvolve na sociedade. Isso significa que toda concepção de mundo é, ao mesmo

tempo, expressão das relações de produção dominantes, num dado agrupamento humano e

da ordem por elas estabelecida, de um determinado grau de reflexão pessoal e coletiva

sobre a realidade por elas criada e um dos fatores que, a cada momento, tende a

consolidar, atualizar ou superar os limites dessa ordem.

3 A FORÇA POLÍTICA E PEDAGÓGICA DAS LUTAS SOCIAIS PARA UMA

EMANCIPAÇAO HUMANA

Sabe-se que, diante das ameaças contra o status quo, o Estado, representado

pelo grupo dominante de pensamento conservador e neoliberal, inicia um verdadeiro

movimento de perseguição e criminalização aos movimentos sociais contrários aos seus

ideais de mercado e que atuam fora da esfera de participação social solidária, voluntária e

assistencialista vinculadas ao Estado.

Nessas circunstâncias, compreende-se que as lutas sociais surgem a partir de

descontentamentos e de inquietação de um coletivo social, podendo se transformar em uma

demanda coletiva. A fim de conter o movimento social, o Estado se utiliza da coerção e do

consenso mediante políticas compensatórias e que podem silenciar esse movimento.

Efetivamente, a contribuição de Marx a esse respeito continua na efervescência

dos ideais dos movimentos sociais contrários ao modo de produção capitalista. E,

infelizmente, a mão visível do Estado da coerção continua a elaborar e implementar

medidas que coíbem os processos emancipatórios, reelaborando as formas de participação

popular, difundindo os interesses dominantes e retrocedendo na esfera dos direitos sociais,

como forma de imobilizar a possibilidade de mudança.

É interessante ressaltar o pensamento de Marx (2008), quando afirma que a

concepção de classe só passa a existir, enquanto tal, a partir do momento em que começa a

adquirir consciência de si, quando começa a estabelecer uma relação entre a sua existência

e a consciência. Lukács destaca o caráter ativo do sujeito em que a consciência reflete a

realidade e, sobre essa base, torna possível intervir nessa realidade para modificá-la

(LUKÁCS,1978, p.3).Isso se deve à conformidade e à trivialidade com as quais a ideologia

neoliberal defende o imediatismo, um cotidiano colado nas instâncias da produção, do

ganho e do processo de alienação de si mesmo, de uma concepção de classe que

fragmenta as lutas sociais e incentiva a desesperança de um projeto contrário ao que é

fomentado pelo sistema capitalista. A esse respeito, MONTAÑO (2010), afirma que:

O projeto neoliberal quer uma sociedade civil dócil, sem confronto, cuja cotidianidade alienada, reificada seja a da “preocupação” e “ocupação” (não a do trabalho e lutas sociais) em atividades não criadoras, nem transformadoras, mas voltadas para as (auto) respostas imediatas às necessidades localizadas (MONTAÑO, 2010, p. 210).

O cotidiano da sociedade civil é um lócus de interação social, de realizações, de

frustrações, de embates econômicos, políticos, culturais e ideológicos; por isso, é visto pela

classe dominante como manifestações que podem ser perigosas para o padrão de

acumulação capitalista.

Nesse sentido, tornam-se essenciais para a classe hegemônica do grande

capital a desarticulação da classe trabalhadora e a preponderância do viés ideológico desse

sistema, no individualismo, na competitividade e na imediaticidade, para que os sujeitos não

se vejam como portadores de força política e capazes de confrontar a ordem vigente. Para

Kosik (1989), o cotidiano é um produto histórico, assim como constitui um campo de

construção histórica.

As formas de organização da classe trabalhadora refletem o que Gramsci (1982,

p.21) entende, quando diz que uma massa humana não se distingue e não se torna

independente, por si, sem organizar-se; [...] e que não existe organização sem intelectuais,

isto é, sem organizadores e dirigentes. O modo de pensar e de se organizar politicamente

supõe um trabalho sistemático e de cunho educativo que leva à condição de subalternidade

daquele que se encontra a almejar sua superação.

A participação da sociedade civil organizada em movimentos sociais, em

partidos políticos, em sindicatos, em associações de moradores, é uma atividade, na

concepção marxiana, que constitui o motor da história; e, na interpretação gramsciana,

configura-se como espaços e formas de lutas de classes que visam à transformação social

da condição a que são submetidos. Dessa forma, as lutas desenvolvidas na sociedade civil

são fundamentais na vivência de um processo que busca a transformação social a caminho

da emancipação humana e da desvinculação de uma vida alienada.

O desvelamento da realidade ou a desalienação ao processo capitalista significa

o processo de mudança de uma esfera imutável e imediata na busca de uma vida plena de

direito. Conforme Kosik, para que o homem possa descobrir a verdade da cotidianidade

alienada deve conseguir dela se desligar, libertá-la da familiaridade, exercer sobre ela uma

‘violência’”. (1989, p.78). Nesse sentido, significa romper com o conformismo e a concepção

de mundo que compartilhamos no mesmo modo de pensar e agir. “Somos conformistas de

algum conformismo, somos sempre homens-massa ou homens-coletivos”. (GRAMSCI,2001,

p.94).

Então é preciso travar uma batalha além da esfera econômica e política. Envolve

uma batalha cultural, que precisa ser compreendida a partir das contradições e de que se

visualizem alternativas que possibilitem e ampliem as lutas nos espaços ideológicos, nos

meios de comunicação, nos processos de informação e formação dos sujeitos numa outra

direção: para emancipação humana.

Assim, no processo de lutas sociais quando que as classes se colocam em

defesa de um projeto ideológico e político, têm que considerar a necessidade e desafio de

criar os seus intelectuais orgânicos para o enfrentamento. Pois, partindo da compreensão

gramsciana, são os intelectuais que assumem a função de dirigir, organizar, educar e

conduzir a uma reflexão de classe que pense a partir de si mesma e que desperte do

processo de adestramento e possa realizar sua catarse, a fim de lutar pela sociedade sem

classe que, só ela, efetuará a emancipação humana mais profunda que a emancipação

política. (Marx,2005).

4 CONCLUSÃO

Neste artigo, discutiu-se que o Estado burguês, mediante a apropriação dos

meios de produção, mantém não somente o monopólio econômico, mas, também, o político

por meio da cultura e direção espiritual e ideológica, trabalhadas intelectualmente, com

vistas ao processo de manutenção de um consenso entre as classes, por meio da

internalização de valores, conduta, modos de vida, leis, transformando os interesses

privados (da minoria que detém os meios de produção) em ideais absorvidos pela classe

oprimida, abrangendo “toda” a sociedade.

Apontou-se a relevância na discussão e entendimento sobre o Estado e a

ideologia (neo) desenvolvimentista, diante da crise estrutural do capital e, no campo das

disputas e relações antagônicas que envolvem o movimento e a (re) organização da

sociedade, em busca de uma direção e ordenamento das relações sociais, que atualiza o

filantropismo, pela inserção e conotação de participação e solidariedade, no âmbito da

cultura e política para manutenção do status quo.

Nessa perspectiva de reatualização da participação e solidariedade, a sociedade

capitalista assume uma estratégia de fortalecimento do Estado, ao desconsiderar a luta de

classes pelo discurso ideológico da “igualdade socioeconômica”, tirando do Estado a

responsabilidade de distribuição de renda, porque os problemas serão resolvidos pela

privatização dos direitos sociais, que são transformados em serviços sociais gerenciados

pela lógica do mercado. A sociedade, nesse contexto, é vista ideologicamente como aquela

que é regulada pelo mercado, lócus de criação e expressão da liberdade individual, de

oportunidades e da justiça social, ou seja, igual para todos

No entanto, registrou-se que a existência de um movimento que perpassa todas

as classes sociais, vai além da luta por direitos sociais, pois envolve organização de uma

cultura, de correlações de força que estão imbricadamente ligadas e em oposição. Nesses

termos, buscou-se em Gramsci (1978) o entendimento de que a sociedade política e a

sociedade civil se entrelaçam de tal forma, imbricam-se e se conformam, revelando os

modos como a hegemonia se reveste de coerção, “como guerra de posições”.

E ainda, compreendeu-se, a partir de Mészàros (2015), que, embora o

capitalismo persiga a maximização de lucros e acumulação do capital, reforçando a

fragmentação do processo de trabalho, que é inerente ao processo, também traz consigo

resultados diametralmente opostos. Ou seja, ao mesmo tempo em que o processo de

expansão do capital tem o poder de concentrar e controlar essas relações, sobretudo em

relação à classe trabalhadora, também transfere a ela, mesmo que de forma irracional, a

própria perda do “controle incorrigível do capital”.

Diante do exposto, entendeu-se, a partir desses estudos, que a função da

ideologia é de ocultar ou dissimular o domínio de uma classe sobre a outra, ao que Marx

(1984) afirma que o objetivo da ideologia é evitar o conflito aberto entre dominados e

dominantes e seria uma forma de consciência, mas de uma consciência parcial e ilusória,

engendrada pela criação de conceitos e preconceitos como instrumento de hegemonia.

Partindo desse entendimento, como foi destacado em Gramsci, a cultura é

capaz de homogeneizar ideias para uma nova direção, compreendendo que a cultura é uma

visão de mundo desenvolvida e vivenciada pelos sujeitos capazes de pensar, inspirar e

orientar uma ação ideológica e política, de acordo com o projeto de classe ou grupo social.

E, ainda, a partir de Gramsci (1995, p. 65), entendeu-se que é o terreno sobre o qual os

homens movimentam-se, adquirem consciência de sua posição e lutam. Nesse sentido,

abordou-se que a ideologia é tanto elemento de dominação como de libertação. Assim, a

participação pode ser concebida na forma de pensar e agir para uma emancipação humana.

Nessa perspectiva, aponta-se que as lutas sociais expressam possibilidades de

superação, quando, no movimento de articulação de uma nova cultura que se contrapõe ao

poder hegemônico da classe dominante, podem transpor a noção de participação e de

solidariedade, adquirindo uma consciência de superação ao processo de dominação, em um

movimento de formação de uma vontade coletiva, como estratégia revolucionária, como

princípio organizador de uma nova maneira de pensar e agir, em que a solidariedade seja

pensada na essência de classe, numa construção de emancipação, libertação e de

inserções para a construção de um novo modo de produção e de uma nova cultura para

uma emancipação humana.

Dessa forma, as lutas sociais têm o poder, por meio de seus intelectuais, de

mudar, dirigir, organizar. Acredita-se que esses trabalhadores existem, pensam, têm voz,

articulam-se, organizam-se e criam suas estratégias, ganhando novos contornos no

enfrentamento. E, assim, vão além dos limites da sociabilidade do capital, na construção da

emancipação humana e superação dos discursos e das distorções da realidade social,

despertando o grito silenciado pelo processo de adestramento ideocultural, transpondo o

gorila amestrado para o homem consciente.

REFERÊNCIAS

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