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Este é o número com que o Fazendo retoma as suas edições mensais e é também um número de sorte e bem-aventurança para a cultura chinesa. Nesse ano do século passado, o escritor micaelense, João de Melo, escreve: “Nuno Miguel sentiu-se levado ao contrário: o seu espírito saiu das horas diurnas de Lisboa para a noite pesada da província. Atravessou o país na diagonal, em companhia de dois homens sorridentes que durante três horas se esforçaram em vão por entender o seu discurso açoriano” e é o vencedor da edição do Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores (APE), com o romance “Gente Feliz com Lágrimas”. Na freguesia de Gualupe, na Ilha Graciosa, dá-se um encontro de vinte e quatro tocadores de viola da terra que decidem tocar todos juntos as suas violas de arame. As eleições açorianas, que resultaram na vitória do PSD de Mota Amaral, obtêm a abstenção de 41,15%, ou seja, dos 180.214 eleitores recenseados votaram 106.049. Na arquitectura o prémio Mies van der Rohe, instituído nesse ano, é atribuído ao arquitecto português Álvaro Siza Vieira, com o edifício Borges& Irmão em Vila do Conde. O cinema mundial é obsequiado com os filmes “Dead Ringers”, de David Cronenberg, “Dangerous Liasions”, de Stephen Frears, Bird, de Clint Eastwood.

8 8

a m b a s a s d u a s

ed

ito

ria

l

c a p a

d i r e c ç ã o

aurora ribeiro

tomás melo

c a p a

ambas as duas

c o l a b o r a d o r e s

ana alves

ana lúcia almeida

andré nogueira de melo

antónio de névada

carlos alberto machado

carolina furtado

cristina lourido

émilie beffara

fernando nunes

inês ribeiro

joão stattmiller

lia goulart

mauro santos pereira

micael nunes

miguel machete

miratecarts

paulo vilela raimundo

sandra cristina sousa

sílvia lino

victor rui dores

a m i g o s f a z e n d o

maria noémia pacheco

terry costa

zumo massimo gelich

d e s i g n e d i t o r i a l

ambas as duas

p a g i n a ç ã o

ambas as duas

r e v i s ã o

aurora ribeiro

p r o p r i e d a d e

associação cultural fazendo

s e d e

rua conselheiro medeiros

nº 19 — 9900 horta

p e r i o d i c i d a d e

mensal

t i r a g e m

500 exemplares

i m p r e s s ã o

gráfica o telégrapho

d i s t r i b u i ç ã o n o f a i a l

associação cultural fazendo

d i s t r i b u i ç ã o n o p i c o

miratecarts

d i s t r i b u i ç ã o n a t e r c e i r a

exec eventos

d i s t r i b u i ç ã o e m s ã o m i g u e l agecta

registado na erc com o nº125988

O F a z e n d O e s t á v i v O ,

g r a ç a s a t O d O s .

O Fazendo, jornal comunitário, gratuito

e independente sobre aquilo que por cá se faz

regressa agora às ruas. E esse retorno foi possível

graças a apoiantes privados, públicos, individuais

e colectivos…

Após três anos de financiamento continuado pela

DRAC (Direcção Regional de Cultura do Governo

dos Açores), a Associação Cultural Fazendo viu

ser recusada a sua candidatura de 2013 para

publicação do Jornal Fazendo. Duas soluções

pareciam possíveis: a primeira era deixar o projecto

por aqui, a segunda passar a uma versão livre

de custos - publicação exclusivamente on-line.

Após milhares de exaustivas sondagens nas quais

ambas as hipóteses foram liminarmente rejeitadas,

surgiu então uma última: a angariação de fundos

entre os interessados no jornal - colaboradores,

leitores, simpatizantes, instituições, empresas…

Mais importante do que a contabilização em Euros

do sucesso desta campanha é para nós a motivação

que nos chega por ver tanta gente empenhada em

garantir o futuro de um pedacinho de papel com

tinta… Esperamos que o novo formato (já se sabe

que mudamos todos os anos) agrade e que se nos

junte mais gente para enriquecer os conteúdos

deste testemunho do que se faz e pensa nos Açores.

A d i r e c ç ã o

Joana Tavares e Cristina Viana, ambas Designers de Comunicação, têm trabalhado com diversas plataformas de produção cultural, estruturas criativas e clientes individuais.

Juntas desenvolvem estratégias de investigação e projecto específicas para cada desafio - profissional ou onírico, promovendo sociedades criativas com outros colaboradores.

w w w. A m b A s A s d u A s . c o m

JOÃO DE MELO

Gente Feliz com Lágrimas

este jornal comunitário,

não-lucrativo e independente

está a ser financiado pela

comunidade de leitores,

colaboradores e parceiros.

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o l h a n d o e m r e d o r

c r ó n i c a d o m ê s

Q u e m g a n h a c O m O F a c t O d e O s p O r t u g u e s e s s e r e m

O s p i O r e s c O n s u m i d O r e s d e c u l t u r a d a u n i ã O

e u r O p e i a ?

Um inquérito vindo recentemente a público elaborado pelo Eurosat, demonstra que num universo de vinte sete países que constituem a U.E., é em Portugal que a participação da população em eventos culturais é menos significativa, equiparando-se apenas ao Chipre e à Grécia.

Para esse estudo quantificaram-se comparativamente, e para uma temporalidade anual, dados tão diversificados como nº de livros lidos, idas ao cinema, ao teatro, a espetáculos de dança ou ópera, a visita de museus e/ou monumentos… enfim, caracterizando-se exaustivamente todos estes aspetos e deixando claro que (…em certos casos não existem coincidências!) os países do sul da Europa associam a sua situação politico-financeira frágil a uma maior indiferença para com os aspetos e produtos culturais.

Perante estas conclusões, não podemos deixar de nos sentir incomodados pelo risco que a aculturação da nossa sociedade poderá acarretar para o nosso futuro coletivo. Pois, como é sabido, sempre foi mais fácil “manobrar rebanhos” que liderar cidadãos conscientes e cultos.Não quero com isto almejar a que toda a “polis” portuguesa se torne culta e interessada de um momento para o outro. Apenas acredito que a cultura será obrigatoriamente o mecanismo de valorização individual e identitária que, potenciando o alargamento das elites resultantes do desenvolvimento e valorização do mérito individual (e não das condições politico-financeiras do meio social, partidário, religioso ou outros), poderá contribuir claramente para o reerguer do nosso país, com vista à recuperação da sua independência e em defesa do seu direito inalienável de decidir (conscientemente) o futuro.Esta obrigação, contrariamente ao que sectorialmente se pratica no nosso país, não é exclusiva dos governos, nem das escolas, nem das famílias por si só, mas transversal a toda a nossa sociedade e missão de todos nós.

Terá de assumir-se que, não sendo obrigatoriamente oneroso o acesso à cultura (veja-se a panóplia de eventospromovidos na Região, e um pouco por todo o território nacional pelos diferente governos [central, regionais ou autárquicos], bem como pelos numerosos e generalizadamente disseminados agentes culturais associativos) é obrigação de todos nós consumir esses conteúdos e incentivar o próximo a fazê-lo.

Que essa obrigação cultural e formativa seja assumida por todos, como um dos mecanismos de recuperação nacional, é o desafio que vos deixo.

não podemos deixar de nos sentir

incomodados pelo risco que a aculturação

da nossa sociedade poderá acarretar para

o nosso futuro coletivo.

PA u l o V i l e l A r A i m u n d o

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a i l h a d o s n á u f r a g o s(L'Isola dei Naufraghi) de Lorenzo Brunetti

t e a t r o e c i n e m a

A Ilha dos Náufragos (L’Isola dei Naufraghi) de Lorenzo

Brunetti é um documentário sóbrio e intimista, com uma

visão muito particular da Ilha das Flores e a merecer toda

a nossa atenção. O filme germina enquanto documento

familiar, já que foi filmado e realizado por Raffaele Brunetti

no fim do século passado, contou posteriormente com

a montagem da sua companheira Ilaria de Laurentiis, tendo

sido concluído e editado já neste século pelo filho do casal,

Lorenzo Brunetti, todos eles ligados pela empresa familiar

B&B Films, ainda hoje em franca actividade.

O documentário assume de imediato que estamos perante

uma ilha longínqua, reconhecendo o desconhecimento

e esquecimento a que foi votada a história da Ilha das Flores,

sendo esta desde os tempos das descobertas povoada por

piratas e náufragos, necessitando por isso de ser contada

e revelada ao mundo inteiro. No período das descobertas,

esta era a primeira terra que as naus avistavam na sua

rota de regresso à Europa e por ali ainda hoje permanece

nas casas e nas memórias das pessoas essa história rica

de aventuras marítimas.

A pergunta, no entanto, mantém-se: o que terá levado

Raffaele Brunetti a interessar-se por realizar um documentário

sobre a Ilha das Flores? O filme encontra-se, portanto,

dividido em capítulos e percebe-se desde o início que

a principal razão é seguir o trajecto de Pierluigi Bragaglia,

viajante e escritor, durante os seus primeiros momentos

na ilha, o realizador irá percorrer com ele os recantos da ilha

ao mesmo tempo que se irá descobrindo o passado recente

e misterioso desta mítica terra a meio caminho entre Lisboa

e Nova Iorque. A narração principia por situar a remota ilha

açoriana, citando assim o “Timeu” do grego Platão para

reavivar o mito da atlântida, esse continente perdido no

fundo do mar, salientando o provável conhecimento que

os fenícios e cartagineses teriam obtido das ilhas açorianas,

indicando ainda a passagem histórica e aventureira por

estes mares de Cristóvão Colombo a caminho das Índias

e das Américas. A partir desse período, começam as estórias

ILHA DAS FLORES

Açores, Portugal

por ali ainda hoje

permanece nas casas e nas

memórias das pessoas essa

história rica de aventuras

marítimas

de pirataria e naufrágios tão recorrentes ao longo dos tempos, enunciando

a destruição do navio “Revenge”, exemplar da marinha inglesa bem como

a inscrição numa pedra da ilha de um barco afundado e com antigas ligações

seculares à maçonaria. Episódio curioso é o que aborda o culto na freguesia

dos Mosteiros à Santa Filomena, igreja erguida através de donativos do “pirata”

António de Freitas, à altura traficante de ópio no oriente, tendo sido salvo pela

armada inglesa no seu regresso às Flores, daí o seu tributo da edificação da

igreja e da devoção à santa da freguesia. Muito embora a Igreja não

o reconheça, a população dos Mosteiros continua praticante do seu culto,

com festa e romaria anual.

O objecto fílmico de cinquenta e dois minutos mostra-nos esta viagem sobre

aquela que é a mais ocidental das ilhas do arquipélago dos Açores e o lugar

mais extremo do continente europeu. O afastamento da Ilha das Flores

transformou esta terra insular de natureza ainda virgem num lugar propício

à descoberta e curiosidade de histórias antiquíssimas. Com uma história rica

e carregada de aventuras marítimas, a maior parte transmitida de forma oral

ou pequenas súmulas de historiadores locais, a ilha tem dentro de si um vasto

conjunto de memórias e demais narrativas que seria importante dar a conhecer.

O documentário é neste caso, por si só interessante, pois faz revelações que

pouca gente sabe, seguindo os passos debutantes e de espanto de Pierluigi,

acompanhando o seu périplo e a sua geografia de pertença desde os primeiros

dias que ali aportou. O italiano, hoje detentor da Casa de Hóspedes Argonauta,

transformar-se-ia num incansável depositário e tradutor de estórias florentinas,

para além de um verdadeiro promotor de trilhos e actividades de recreação

da Fajã Grande e não só. O conhecimento, a fixação e transmissão de muitos

acontecimentos florentinos deve-se em muito aos seus escritos espalhados

por jornais e livros. Os autores do filme acreditam que os naufrágios, sinal

de desgraça e tragédia, resultaram sempre numa bendição para a população

florentina, aqui tão bem representada pelo habitante Félix. A bendição actual,

urgente e necessária para aquele território insular seria o atracar de um navio

do tamanho do Slavonia e que distribuísse centenas de famílias para habitar

e povoar o Lajedo, Mosteiros ou mesmo a Fajãzinha (74 habitantes e 7 crianças,

nos últimos censos). Ou então transformar aquelas correntes infindáveis

de água que abundam naquele espaço e cascatas em riqueza e actividade

económica rentável e sustentável para todo aquele território. A formosura deste

espaço insular assim o merecia.

F e r n A n d o n u n e s

Eu despertei para o cinema com os filmes de Charlie Chaplin.

Deslumbradíssimo, vi, na velha casa de cinema da vila da

minha infância, muitos filmes de Charlot, mas há três que

não esqueço: “O emigrante” (1917), “Uma vida de cão”

(1918) e “O garoto de Charlot” (1921).

Menino e moço, eu finava-me a rir com as tropelias

e as peripécias do Charlot dos filmes mudos: aquele seu

bigodinho cómico, aquelas calças informes, aqueles sapatos

desgastados, aquela bengala divertida. O Charlot dos

tiques e dos trejeitos e que tinha aquela maneira de andar...

O Charlot que era tudo e tudo fazia: vagabundo, fugitivo,

evadido, andarilho, atormentado, marinheiro, aprendiz,

emigrante, dentista, bombeiro, músico, polícia, aventureiro,

enfermeiro, patinador, maquinista, porteiro… O que ele

não perdia nunca era a compostura e tinha sempre aquele

sentido muito apurado de dignidade.

Mais tarde, pude apreciar essas obras-primas absolutas

que são: “A quimera do ouro” (1925), “Luzes da cidade”

(1931), “Tempos modernos” (1936), “O ditador” (1940),

“Luzes da ribalta” (1952), entre outras fitas do cinema falado.

o m e u c h a r l o t

Desde então sei isto: em Charles Spencer Chaplin comédia rima com drama.

E hoje não tenho dúvidas: Chaplin é o grande génio do século XX. Genial

é, por exemplo, o discurso que ele escreveu para o filme “O ditador”,

no qual o próprio, vestindo a pele de uma personagem, diz esta verdade tão

vibrante e atual: “We think too much, and feel too little”. Estamos perante um

criador, não um imitador. Foi ele que inventou a comédia burlesca e elevou

a pantomina a uma forma superior de arte. Com Chaplin aprendemos o bem

e o mal, a justiça e a intolerância, o porquê do pontapé no rabo do vilão

ou no traseiro da matrona… Com os seus “gags” geniais, ele fez a caricatura

dos nossos ridículos, das nossas manias e atribulações, das nossas

ambições e desesperos.

Na rua, na trincheira ou no circo, o coração de Chaplin sangrou pelos infortúnios

do mundo, ele que foi um Quixote, um sonhador, um poeta. Ainda hoje não

consigo ver o filme “Luzes da ribalta” sem que me comova até às lágrimas.

Os filmes de Chaplin são de uma profunda humanidade e de uma imensa

universalidade. Porque são filmes de todos os tempos e de todos os lugares

e que, pelos séculos dos séculos sem fim, hão-de continuar a ser apreciados

enquanto houver gente carenciada de sonho, amor e ternura.

V i c t o r r u i d o r e s

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c o r p o s ( c o m ) s e n t i d o s

t e a t r o e c i n e m a

Criação de uma peça de teatro a partir de histórias reais, recolhidas numa pesquisa sociológica sobre a problemática da violência doméstica.

Violência doméstica é um termo em evolução, onde os atos e as vítimas não se fazem entender da mesma maneira segundo os atores e as percepções. Sucintamente, esse termo refere-se às violências físicas e / ou psicológicas que um membro da família submete a um outro membro da mesma família. Pode ser um homem ou uma mulher, ou mesmo uma criança. E segundo os países e as culturas, a vítima não vai ser reconhecida como vítima da mesma maneira.

Em Portugal, a violência doméstica é reconhecida como crime público, o que significa que tem que haver um apoio jurídico, um sistema de proteção e uma investigação. É difícil de elencar realmente os casos de violência doméstica; só se podem mostrar estatísticas de estimativas. Na maioria dos casos tudo se confina ao interior das casas, é uma história de família, como se costuma ouvir.

A relação que temos com os nossos pares, com a sociedade onde vivemos e connosco próprios nem sempre nos permite decidir a direção que daremos à nossa vida, fazendo uso pleno da nossa capacidade intelectual, emocional, social e cultural. Certamente muita gente dirá: todos temos a possibilidade de escolha. E outros responderão: todos temos a escolha em função dos nossos hábitos. Com todas as subjetividades salvaguardadas, nem todos temos a possibilidade de escolha.

Este fenómeno não se limita a um grupo específico mas a todos: homem, mulher, criança, pobre, rico… podem estar, um dia, a confrontar-se direta ou indiretamente com essa realidade.

O objetivo do meu estágio na Direção Regional da Solidariedade Social dos Açores era o de desenvolver um projeto ligado a esta problemática. Não sendo dos Açores nem de Portugal, não me permiti desenvolver qualquer projeto sem perguntar aos atores que trabalham nesta área que tipo de projeto seria interessante realizar. Foi-me sugerido fazer uma peça de teatro. Depois de múltiplas propostas quanto ao público que poderia estar interessado em trabalhar comigo neste projeto, a companhia de teatro Alpendre disponibilizou-se para levar a peça à cena.Durante as primeiras oito semanas de estágio saí com uma câmara e um microfone e conversei com pessoas na rua, no jardim, nos cafés, nas suas casas; tanto cidadãos anónimos, como técnicos ou mulheres vítimas. Eu queria entender como é que estas pessoas se posicionam perante a questão da igualdade de género.

O facto de ser estrangeira facilitou muito o trabalho. As pessoas que pude entrevistar sentiram-se à vontade para me falar. Eu não vou ficar na ilha, logo o que eu ouvi partirá comigo no avião para França. Eu não pertenço a nenhuma família, a nenhuma casta, como se costuma dizer. Após os encontros que pude ter com as pessoas vítimas de violência doméstica, criei um texto para a peça. Tentei reconstruir o percurso daqueles e daquelas que saíram das suas casas de família porque a violência era o seu quotidiano e os seus dias não tinham mais sentido. Três histórias de vida constituem o coração da peça. O cruzamento destas histórias vai permitir a cada um a possibilidade de ver e entender.

Esta peça de teatro está focalizada em torno das vozes e do corpo. A cenografia é muito simples para deixar espaço a uma correspondência entre a palavra e o corpo. O silêncio tem o seu lugar. A caixa transparente com uma bailarina dentro pretende representar a nossa inocência, a nossa credulidade, tanto como esse corpo que se submete, que apanha, que aceita sem realmente dizer nada. Claro, às vezes o copo está cheio, mas o nosso interior é uma esponja real. Para mim, essa caixa é uma das partes mais importantes do nosso eu e aquela que tentamos imenso esconder debaixo de muitas camadas para poder esquecê-la, porque acontece que temos medo dela.

Estes corpos que guardam as feridas, estes corpos que captam o medo e a angústia, estes corpos que, por vezes, falam mais que a maior parte das nossas palavras. O nosso corpo não conhece a censura emocional.

Algumas mulheres disseram-me que se sentiram muito mais jovens, fisica e psicologicamente, depois de saírem do contexto de violência. A vida marca-nos e os nossos corpos são o primeiro desenho.

Nós trabalhamos a partir das vozes reais. Das mulheres que encontrei; alterámos alguns aspetos, a fim de garantir o anonimato. Traçámos o percurso psíquico e humano destas três mulheres, que poderiam ser homens. Não falamos das crianças enquanto vítimas.

Esta não é uma peça feminista. Também não é uma peça dramática em si mas um trabalho sobre formas de vida diversas e que ninguém tem o direito de julgar. Porque para mim, nos nossos percursos de vida conhecemos períodos mais ou menos longos onde somos sujeitos a fases difíceis.Não é uma questão de ter empatia. É uma questão de nos interrogarmos. De nos observarmos, a fim de não nos esquecermos de manter a autoconfiança, de não nos abandonarmos a ninguém.

Não podemos esquecer que somos seres pensantes e que há, em cada um de nós, uma quota parte de responsabilidade quanto à nossa situação de vida. É verdade que certas escolhas não são fáceis de tomar. Nalguns momentos é mais difícil do que noutros, deixam-nos mais sujeitos a ser dominados e manipulados.

A nossa cultura condiciona-nos mas podemos ultrapassar esse condicionamento se ela não nos subjugar. Podemos denunciar estas situações e não apontar o dedo às mulheres que têm que abandonar as suas casas porque os seus maridos as agridem. Podemos compreender que, se o casal de vizinhos já não se entende, não é simplesmente por causa da mulher. Podemos ultrapassar os nossos próprios preconceitos e guardar a nossa energia para outras coisas. Temos que preservar na memória que o nosso objetivo é o de sermos felizes. Nós e aqueles de quem gostamos. Não estamos aqui para fazer felizes os nossos vizinhos.

Esta peça pretende falar daquele esquecimento, da falta de confiança e do medo dos outros; da comunicação entre os nossos corpos, os nossos males, as nossas palavras.É m i l i e b e F FA r A

Acha que o teatro é caro? Que às vezes é longo e aborrecido? Que o obriga a sair do quentinho do lar e apanhar com o frio lá fora mesmo quando mora a 10 minutos da sala de espectáculos? Então temos a solução perfeita para si:Teatro a preço de jola, mais rápido que uma receita da Bimby e dentro da sua própria casa. “Desculpe? Em casa de quem?!” Da sua, leitor! Confuso? Passo a explicar:Nos dias 22 e 23 de Dezembro será apresentada uma peça de teatro cheia de pretensiosismo cómico na ilha do Faial. Digo “pretensiosismo” porque nada vos garante que tenha piada, “ilha” porque a peça poderá ser apresentada em qualquer casa das 13 freguesias. A escolha do local será feita a partir da venda de rifas (no valor de 1 euro) e posteriormente sorteadas para escolher assim o “palco” da dita peça. Fica depois ao cargo de vencedor convidar o público que quiser e se não lhe apetecer ter mais ninguém em casa, fazemos só para si. Caso não tenha a felicidade de ser o escolhido, pode sempre pedinchar a quem tiver tal sorte para assistir a este espectáculo.Para que não pense que haverá falcatruas e que no fim vai calhar na casa dos próprios actores e decorrer a porta fechada, o sorteio será realizado na Casa (de chá) no dia 19 às 18h30.Agora já sabe: quantas mais rifas comprar, mais hipóteses tem de ganhar!l i A G o u l A r t

Para mais informações contacte — [email protected]

t e a t r o

e m ( s u a ) c a s a

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v a r a d o u r o o u a v i d a d o c a r a c o l

Quem viu o documentário “Adormecido” de 2011 - interessante e exaltante poema visual e sonoro à volta do Vulcão dos Capelinhos – sabia de antemão que alguma coisa de maior poderia estar em germinação. Por isso, assistir à sessão inicial de Novembro do cineclube de Ponta Delgada e, concretamente, à apresentação pública de “Varadouro”, só podia confirmar os melhores augúrios. “Varadouro” é o segundo filme de Paulo Abreu filmado em solo açoriano e novamente na Ilha do Faial, revelando desta feita uma descomunal sensibilidade na captação da pulcritude dos espaços insulares e dos sons da “natureza extrema” que habitam esta ilha e de que o arquipélago é pródigo. É claro que muitas das instigantes soluções videográficas do “Brel nos Açores”, espectáculo de Nuno Costa Santos, pertenciam já a Paulo Abreu, confirmando assim o seu sentido estético e o desalmado gosto pela experimentação, para lá do risco que as paisagens e os barulhos insulares lhe sugerem. Este documento fílmico apresenta somente dez minutos de contemplação dessa piscina natural, desde o azul do atlântico até às suas profundezas, e, na verdade, é como se estivéssemos deleitados na capital de veraneio faialense, em plena costa ocidental, acompanhados por ilhéus a banhos,

t e a t r o e c i n e m a

c i ê n c i a s e a m b i e n t e

numa paisagem formada por rochas basálticas de lava incandescente e a memória de forasteiros de relevo que por ali passaram (Jacques Brel esteve lá em 1974, ou ainda sir Peter Ustinov e o escritor Mark Twain), acrescentando-lhe narrativas e ensejos pícaros com essa evocação. No fundo, tal como eles, é fácil deixar-se encantar por aquela fajã de clima ameno, quase tropical e dada a novos arrastamentos, à semelhança da vida do caracol, o popular tema musical açoriano cantado aqui pela excelsa voz do terceirense Carlinhos Medeiros. Este objecto cinematográfico contou ainda com a colaboração na realização de João da Ponte, conhecido cineclubista micaelense, tratando-se dum contributo desta dupla para o Doc s Kigdom, seminário internacional sobre cinema documental realizado recentemente na Ilha do Faial. Por fim, “Varadouro” obteve os contributos solares e presenças mitológicas de Norberto Serpa, Tiago Afonso, Maria Emanuel Albergaria, Frederico Lobo, André Laranjinha, Sérgio Gregório, João Pedro Gomes, Tomás Melo e Aurora Ribeiro. E é bem provável que com a ajuda dos cineclubes, este postal do estio com sabor a documentário, seja exibido numa sala bem perto de si.F e r n A n d o n u n e s

é F á c i l d e i x a r - s e

e n c a n t a r p O r a Q u e l a

F a j ã d e c l i m a a m e n O ,

Q u a s e t r O p i c a l e d a d a

a n O v O s a r r a s t a m e n t O s

Trabalho em Biotecnologia Marinha. Estou à procura de compostos marinhos que possam ajudar a travar uma das doenças que mais afecta a nossa sociedade: o cancro. Este projeto, que nasceu de uma teimosia em trabalhar em ciência aplicada, cresceu e nutre-se com o apoio de cientistas, mais ou menos experimentados, que foram corajosos o suficiente para embarcar comigo nesta epopeia difícil, especialmente num lugar como os Açores.

Nestas ilhas rodeadas de um mar profundo, passam barcos científicos grandes, cheios de novidades tecnológicas em que temos a sorte de podermos ir “à boleia” para recolher animais marinhos do fundo do mar. Mas por outro lado, estarmos no meio do mar não ajuda quando precisamos de trabalhar em laboratório com químicos especiais que não podem viajar de avião... podemos passar até 4 meses à espera que cheguem!

Mas voltando ao título, porquê “economicamente inviável”? Eu explico: a grande maioria dos artigos científicos que li sobre trabalhos similares ao que estou a desenvolver chegam a esta brilhante conclusão: “descobrimos um composto maravilhoso para matar células cancerígenas. Mas... fazendo as contas à vida, é caro demais para que as companhias farmacêuticas queiram investir num medicamento com este composto.”

Como cientista que estou a estudar para ser e acima de tudo, humana, conclusões como esta assombram-me. E, se depois dos 4 anos de projeto, encontrar um composto que pode fazer mesmo a diferença no tratamento do cancro e for caro demais para produzir a uma escala mundial? Páro, porque não é rentável para uma companhia farmacêutica...? Isso não faz sentido na ciência. E se conseguíssemos composto suficiente para tratar com eficácia a população dos Açores...? A única coisa que deveria ditar a inviabilidade nestes trabalhos deveria ser se os estudos seguintes comprovassem que os efeitos secundários fossem piores para a saúde do paciente do que o efeito positivo no tratamento! Por isso aqui estou para lembrar: nem tudo pode ser quantificado monetariamente. A ciência não gera dinheiro mas sim conhecimento. Esse conhecimento, tem um alto valor e investir em ciência traz riqueza à região, ao país, e melhoria de vida a quem lá vive. Mas não se pode começar pelo final. Tem de se começar pelo início. E isso em ciência significa uma questão. Neste caso, é esta: “será que

e c o n o m i c a m e n t e i n v i á v e lc r ó n i c a d e u m a c i ê n c i a Q u e n ã O d á d i n h e i r O

os animais que vivem no mar profundo têm compostos com propriedades anti-cancerígenas?”Nomes de cientistas importantes que mudaram as nossas vidas por não patentearem as suas descobertas: Marie Curie, que isolou o rádio (ganhou o prémio Nobel da Química por isso) mas foi mais longe e desenvolveu o seu uso para as radiografias; John Salk, que fez a vacina da Poliomielite, o que fez com que em poucos anos se erradicasse totalmente a doença da América do Norte e Europa.

Cada pessoa deve trabalhar para o seu aperfeiçoamento e, ao mesmo tempo, participar da responsabilidade colectiva por toda a humanidade.

O caminho do progresso não é rápido, nem é fácil.Marie Curie

Podes patentear o sol?John Salk

s í lV i A l i n o

Este e outros artigos sobre Ciência e Notícias sobre Mar Profundo em http://blogmarprofundo.wordpress.com/

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a p e d r a f i l o s o f a ln a , n a , n a a a , n a , n a , n a , n a a a

m ú s i c a e d a n ç a

Já vos aconteceu? No universo da música ligeira, popular

e afins, quando ouvimos uma canção, mesmo que cantada

na língua mãe, acompanhamos cantarolando sons que se

assemelham aos das palavras que lá estão. O que se diz,

como se diz, fica para outra oportunidade, na naaa na na que

daqui a pouco é que vem o melhor – se chega o refrão, parte

propositadamente gerada para ferrar o lombo esquerdo das

tolas, enchemos o peito de ar e aí vai disto que esta parte sei

eu de cor. Esta coisa que acontece assalta-me o juízo volta

e meia (até já saltou para as páginas do FAZENDO em Junho

de 2011) e dizem os entendidos, que perante realidades

semelhantes o melhor é deixar extravasar. Pronto.

Acredito que a canção nos é (deveria ser) oferecida com uma

condição: perceber-lhe as partes para desfrutar do todo,

ou seja, se a queremos verdadeiramente temos que lhe

ouvir o som, perceber o que nos quer dizer, e sentir a forma

como se expressa. Injustamente, o parente mais pobre

desta balalaica é, como já insinuei, o texto (e o contexto, por

arrasto) e por isso proponho-me e proponho-vos extravasar

aqui, em cada edição do FAZENDO (já falei com os Fazendus

e eles é que deixaram), com uma canção e a sua letra para

que possamos quedar-nos quietos por uns minutos pairando

sobre as palavras.

Depois logo se vê o que acontece...

P e d r A F i l o s o FA l ~ P o e m A d e A n t ó n i o G e d e ã o ,

m ú s i c A e i n t e r P r e tA ç ã o d e m A n u e l F r e i r e

Nos nossos dias, esta canção já lá vai. É antiguinha,

sofre de “interventite” típica da época, o Sr. Manuel

não é da cena e o Sr. António enfim. Não é moderna vá.

E fala de uma coisa descabida porque o sonho não comanda

vida nenhuma a não ser que sejam por exemplo, créditos

de sonho, PPRs de sonho, juros de empréstimo que só em

sonhos, declamados e gentilmente proporcionados pelo

capital amigo.

Mas deu-me para isto não sei porquê. Talvez a memória

do meu pai a cantar-me estas palavras antes de eu

adormecer (pieguices). Talvez a constatação que perante

o inevitável, isto é, igualdade, fraternidade, liberdade são

substantivos de uma língua moribunda, existam homens

que se atreveram e se atrevem a cantar o sonho e logo

desta forma. Inocentes, simplórios, tristes homens humanos

que se servem das palavras para falar do sonho como uma

coisa concreta, definida, qual pedra, qual ribeiro, como se

de uma ave se tratasse. Mais, como se o sonho tivesse uma

boca ávida, que lhe permitisse ultrapassar todo e qualquer

obstáculo! Não passa pela cabeça de ninguém (só pela

deles). Hoje não há quem rumine sonhos com tela e pincel,

arcos em ogiva, pináculos de catedral, sinfonias e máscaras

gregas. O mundo não é distante, submarinos não são

caravelas e o cabo voltou a ser o das tormentas. O Arlequim,

de florete partido, observa Columbinas na net e não sai dos

bastidores e quanto ao Bartolomeu, sejamos sérios, padres

cientistas em passarolas só quando ficamos agarrados a um

pára-raios ou nos passa uma locomotiva por cima. A cisão

do átomo nunca ninguém viu, o radar era óbvio, ultrasons

não se ouvem, a televisão é a televisão e por alguma razão,

nunca mais se ouviu falar de alguém que tivesse assentado

pé na lua. E depois terminam o devaneio afirmando que

sempre que um homem sonha o mundo pula e avança?

Por amor de deus. Parecem brincadeiras de criança.

Desculpem-me os leitores.

Prometo que a próxima não será assim.

Ps: Boas escutas amigos alquimistas e até logo.

m i G u e l m A c h e t e

Pedra Filosofal

Eles não sabem que o sonho

É uma constante da vida

Tão concreta e definida

Como outra coisa qualquer

Como esta pedra cinzenta

Em que me sento e descanso

Como este ribeiro manso

Em serenos sobressaltos

Como estes pinheiros altos

Que em verde e oiro se agitam

Como estas aves que gritam

Em bebedeiras de azul

Eles não sabem que o sonho

É vinho, é espuma, é fermento

Bichinho alacre e sedento

De focinho pontiagudo

Em perpétuo movimento

Eles não sabem que o sonho

É tela, é cor, é pincel

Base, fuste ou capitel

Arco em ogiva, vitral,

Pináculo de catedral,

Contraponto, sinfonia,

Máscara grega, magia,

Que é retorta de alquimista

Mapa do mundo distante

Rosa dos ventos, infante

Caravela quinhentista

Que é cabo da boa-esperança

Ouro, canela, marfim

Florete de espadachim

Bastidor, passo de dança

Columbina e arlequim

Passarola voadora

Pára-raios, locomotiva

Barco de proa festiva

Alto-forno, geradora

Cisão do átomo, radar

Ultra-som, televisão

Desembarque em foguetão

Na superfície lunar

Eles não sabem nem sonham

Que o sonho comanda a vida

E que sempre que o homem sonha

O mundo pula e avança

Como bola colorida

Entre as mãos duma criança

o q u e s e d i z , c o m o

s e d i z , f i c a p a r a

o u t r a o p o r t u n i d a d e ,

n a n a a a n a n a q u e

d a q u i a p o u c o é q u e

v e m o m e l h o r

n a , n a , n a a a ,

n a , n a , n a ,

n a a a

A n t ó n i o G e d e ã o

Page 8: Fazendo 88

8

m ã o s d e v i m eg e n t e d a m i n h a t e r r a

v i t i v i n i c u l t u r a e m e s c r i t a e m ú s i c a

l i t e r a t u r a e s o c i e d a d e

c o n c u r s o

Manuel Morais é vimeiro de profissão. Há mais de meio século cria artesanato em vime e garante que já perdeu a conta às peças que lhe saíram das mãos. Podemos encontrá-lo, todos os dias, sentado no chão da garagem, a que chama “Museu do Vime”, em Santo Amaro do Pico, a trabalhar como se não houvesse amanhã. No rosto não lhe vemos os 84 anos de idade, nem nas palavras lhe encontramos queixumes de doenças e outros dissabores. Apenas nas mãos estão presentes, a olho nu, os longos e árduos anos de enlaçar o vime.

Quer chova, quer faça sol, mantém a porta aberta a ver quem passa, sempre pronto a receber visitas. Porque alia a atração turística ao rendimento artesanal, quando lhe entra um turista “porta dentro”, recebe-o como um amigo de longa data, mas nunca pára de laborar. Responde com paciência a todas as perguntas, como se fosse a primeira vez, quer o visitante lhe faça “gasto” comprando uma peça, quer não.

Para quem nunca passou pelo “Museu do Vime” o que vai encontrar é Manuel Morais sentado sobre um pedaço de tábua, de pernas estendidas, sempre na mesma posição, horas a fio. À sua volta estão pedaços de vime que vai cortando e separando à sua maneira para acrescentar à peça que está a construir na hora. Junto à parede estão separadas, pela sua mão, algumas das peças que vai terminando: açafates, cestos para as vindimas, cestos de diferentes tamanhos de uma e duas asas, baús para guardar roupa, cadeiras de exterior, fruteiras e tantas outras.

É homem de poucas ferramentas. As mais importantes, costuma dizer, são as suas mãos. Todos os anos é a mesma rotina: até dezembro, concentra todo o tempo para produzir o máximo de peças que irá vender durante o verão ou a respeitar possíveis encomendas.Depois, até abril, conta com a ajuda da esposa para tratar o vime que vão usar o resto do ano.

Agora compram, mas quando eram mais novos iam cortá-lo, “mas a idade já não permite essas aventuras”, assume. Mesmo assim têm de retirar as pernadas (pequenas ramificações da planta) para depois formar molhos e cozer em caldeiros abafados. Este processo demora. “Não nos podemos distrair. A água não pode evaporar, senão os vimes secam.” Quando os vimes saem dos caldeiros têm de ser descascados, separados por tamanhos e colocados ao sol para secar.

Manuel Morais também trabalha com vime cru. Esse é escolhido a dedo e metido dentro de um poço durante um mês a curtir. Lá para o verão é retirado descascado e trabalhado.Tudo o que Manuel Morais sabe aprendeu com o pai. “Esta coisa de entrançar e de tratar o vime não se aprende de um dia para o outro.” Inclusive nos últimos anos já lhe trouxeram peças criadas pelo pai para rematar. “Umas vezes são as pegas, outras são as dobradiças. Mas são peças de muitos anos. Fico espantado como é que ainda são usadas”.

Por isso, Manuel Morais tem como único pesar o fim da linha desta atividade na ilha do Pico, faltando quem queira aprender. Já ensinou a esposa, única pessoa que trabalha com ele, e já tentou ensinar outros, mas “ninguém quer aprender esta arte. Pensam que é um desperdício de tempo”. A verdade é que Manuel Morais fez e faz vida do artesanato. Assume não ser uma vida fácil, porque “é preciso trabalhar muito. Aqui, não se cumprem horários. Nós só apagamos a luz quando acabamos a peça. Tem de ser, porque o vime tem de ser moldado para ganhar a forma. “s A n d r A c r i s t i n A s o u s A

p O d e m O s e n c O n t r á - l O , t O d O s O s d i a s ,

s e n t a d O n O c h ã O d a g a r a g e m , a Q u e

c h a m a “ m u s e u d O v i m e ” , e m s a n t O

a m a r O d O p i c O , a t r a b a l h a r c O m O

s e n ã O h O u v e s s e a m a n h ã .

O novo concurso de escrita e música DiscoverAzores 2014 tem como tema “Vinhas, Vindimas, Vinho”. Escritores e músicos nos Açores têm mais uma oportunidade para mostrarem os seus talentos neste concurso da MiratecArts que dá prémios aos vencedores, incluindo participação no Azores Fringe Festival 2014 (inclui viagem entre-ilhas se não reside no Pico e estadia por uma semana durante o Festival em Junho 2014) assim como um cabaz de mais de 200 euros de produtos da Cooperativa Vitivinícola da Ilha do Pico incluindo o Lajido.

Poemas, contos, músicas, basicamente qualquer forma de escrita ou música (com ou sem letra) é bem vindo.

Qualificações: 1) O concorrente viver nos Açores e ser maior de 16 anos de idade;2) Inscrever-se no projeto www.discoverazores.eu mandando biografia artística e contatos para a associação;3) O texto ter no mínimo 50 carateres e no máximo 10 mil carateres em formato WORD DOC; a música original ser gravada com um mínimo de 2 minutos e um máximo de 5 minutos em formato mp3;4) O trabalho ter algo relacionado com o tema “Vinhas, Vindimas, Vinho”;5) Os trabalhos serem enviados através do email [email protected] até ao dia 30 de janeiro 2014;6) Na entrega do trabalho incluir na mensagem: nome, telefone e uma frase respondendo à pergunta “Porque participa neste concurso?”

Se tem algumas dúvidas ou perguntas por favor envie para: [email protected] ou visite www.mirateca.com

© Mauro Santos Pereira

© Mauro Santos Pereira © Mauro Santos Pereira

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9

m O n t r a d e l e r

l i t e r a t u r a e s o c i e d a d e

Gez Walsh

(versão em português de Helder Moura Pereira)

A BORBULHA NO RABO.

POEMAS TERRÍVEIS PARA MENINOS TERRÍVEIS

Edição da Companhia das Ilhas, Lajes do Pico, 2013,

colecção “do outro lado do espelho” (96 páginas)

Entre o proibido e o autorizado, dos meninos bem

comportados aos meninos terríveis, a linguagem

destes poemas revela um humor a dizer-nos como

não é preciso ter vergonha de quase nada. A versão

portuguesa do poeta Helder Moura Pereira recria

admiravelmente o original, com um humor muito

próprio, numa linguagem rigorosa e inventiva.

O PAPALVO

Tou-me a ralar em ir pá escola,

é qu’eu tenho uma cabeça que é do melhorio.

Os profes não me ensinam népias,

porque tenho uma cabeça maior do que o Rossio.

Prefiro ficar em casa

a ver tv,

aí é que s’aprende o que faz falta,

não é nos livros e outras pecarias

que são uma chatice pa toda a malta.

E quando os putos todos forem quescidos

têm de fazer inzames,

e depois acabam a escola

e começam a fazer planos pó futuro.

Uns vão pá univessidade,

outros vão trabalhar, cá o artista não,

vai ficar sentadinho a ver tv

porque não é o papalvo qu’eles são.

Alexandre Borges

O BOATO.

INTRODUÇÃO AO PESSIMISMO

Edição da Companhia das Ilhas,

Lajes do Pico, 2013, colecção

“transeatlântico” (64 páginas)

«Uma sinopse é uma promessa

eleitoral. Uma declaração de

amor eterno. O candidato numa

entrevista de trabalho. O agente

imobiliário vendendo a casa.

A candidata a Miss Mundo

falando do sonho de salvar

as crianças de África.

É o melhor de nós, em poucas

linhas – a perfeição que não

resiste a algo maior do que um

affair. E não há qualquer mal

nisso – desde que feito entre

adultos. Esta é a sinopse d’

O BOATO, uma introdução ao

pessimismo em 187 aforismos.

Ou desaforismos. Entre Deus

e um moinho de café.»

(Alexandre Borges).

Fátima Soares (org.)

CALHETA DE NESQUIM.

TERRA DE HERÓIS

Edição da Junta de Freguesia

da Calheta de Nesquim, Calheta

de Nesquim, 2013 (308 páginas).

«Calheta de Nesquim - Terra

de Heróis ateou em mim não

só o desejo de conhecer

melhor este rincão da ilha mas

trouxe-me, também, uma nova

apetência para reler Dias de Melo

e confrontar a sua literatura

vernácula com as realidades

e valores etnológicos que, a

partir do presente trabalho, tenho

vindo a descobrir. Estou convicto

de que não faltarão leitores

dispostos a experimentarem

nas páginas seguintes,

relativamente a este naco

de terra do Pico, o ressurgimento

saboroso dos mais nobres

sentimentos que povoam os

corações afeiçoados e saudosos

do seu lugar de origem.»

(Terra Garcia, do Prefácio)

Manuel Paulino Costa

U-BOATS NOS MARES DOS AÇORES.

BATALHA DO ATLÂNTICO (1939-1945)

Edição da Associação de Defesa do Património

da Ilha do Pico, 2012 (122 páginas).

A obra resulta de um «trabalho louvável de minuciosa

investigação histórica e de importante consulta»,

segundo o jornalista Rúben Rodrigues, e relata a luta

pelo controlo dos mares perpetrada pelas flotilhas

de submarinos alemães e aliados, ocorrida durante

a batalha do Atlântico, dando ainda um forte contributo

para compreender a viagem fatídica do submarino

alemão U-581, que se afundou na costa do Guindaste –

Mirateca, após uma luta com destroyers ingleses.

Carlos Alberto Machado

Companhia das Ilhas

Natália Correia: A Feiticeira Cotovia é o título da exposição itinerante que irá habitar a sala de exposições da Biblioteca Pública e Arquivo Regional da Horta, até dia três de janeiro do próximo ano. Levada a cabo pela Direção Regional da Cultura do Governo dos Açores no âmbito das comemorações do nonagésimo aniversário do nascimento de Natália Correia e do vigésimo aniversário da sua morte, esta mostra tem como pretensão dar a conhecer o compêndio polimórfico da concepção literária de Natália, algumas das suas obras pictóricas, bem como o seu arrojado papel na defesa de ideais humanísticos e da cultura, no circuito político. Não obstante, revela-se a revisitação da vida e obra de uma mulher açoriana de beleza extraordinária, dotada de inteligência e talento. Uma mulher à frente do seu tempo.

Natália Correia, autora do poema que contempla a música do Hino dos Açores, é legitimada como uma figura de destaque no panorama nacional e internacional pela sua obra literária, contudo cultivou outros interesses não menos dignos de reconhecimento. Esta exposição desvenda-nos a sua protagonista. Natália é-nos desvendada como uma lenda. Foi poetisa, romancista, dramaturga, ensaísta, tradutora, conferencista, editora, deputada. Segundo Ana Paula Costa, “em qualquer um destes domínios lavrou e se afirmou, numa inquieta busca de uma verdade, de um sentido estético e ético que perseguiu toda a vida”.Na poesia, abraçou e evocou de modo simbólico e metafórico a figura da mãe, da ilha mãe e da mátria. Da ilha como repositório das memórias de infância pessoal, ligada ao sentimento religioso do Espírito Santo e associado à projecção profética do Sagrado. Utilizou a poesia como arma de luta contra a repressão de pensamento e criação artística. Na produção literária e dramática, firmou-se como porta-voz da mudança na destituição da credibilidade do Estado Novo e da Igreja. Natália reivindicou a liberdade. Na pintura encontrou a catarse de acontecimentos que marcariam a sua vida. A sua produção pictórica denuncia as influências dos movimentos artísticos vigentes – Cubismo analítico e Surrealismo.A seu tempo, na política viu nela o entusiasmo em debater-se pelas causas em que acreditava - “A minha causa é a causa de combater a extinção das causas. (…) O homem não pode aceitar passivamente ser apenas causado pela criação, ele tem de criar a sua causa que determine a sua acção superior”. Debateu-se pela causa feminina, pela defesa da cultura, pela salvaguarda do património, pela reivindicação dos direitos humanos.

Poetisa/Pitonisa; Cartase Pictórica; Obras Malditas e Paladinas das Causas Humanas são os subtítulos que estruturam os conteúdos referentes à exposição. É aqui que assistimos, que nos posicionamos como espetadores que somos, e nos deleitamos a presenciar as memórias, as utopias, os pensamentos, o verbo de uma criatura de génio que carimbou o seu marco na história. É aqui o repositório das obras da Natália. Aqui, são reunidas algumas obras da artista, objectos pessoais e documentação: o testemunho da vida e obra da Natália, e do contexto social, cultural e político da sua época.c A r o l i n A F u r tA d o

n a t á l i a c o r r e i a :

a f e i t i c e i r a c o t o v i an a b i b l i O t e c a d a h O r t a

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1 0

l i t e r a t u r a e s o c i e d a d e

O Museu de Angra do Heroísmo congratula-se com o refazer do “Fazendo” e conta fazer-se da casa. Neste número, faz a sua apresentação e, a partir de Janeiro, dará conta do que fez e irá fazer a cada mês.

o q u e s e f a z n o m A hn O m u s e u d e a n g r a

O que se Faz no MAH

Nos seus quase 65 anos de existência, o Museu de Angra do Heroísmo

forjou uma identidade, em que a preservação da memória se associa

a processos dinâmicos de construção de aprendizagens e cruzamento

de expressões culturais.

Detentor de um magnífico e variado espólio, o MAH tira partido da riqueza

e multiplicidade do seu acervo e do carater aprazível e amplo das suas

instalações, através de um programa sistemático de ações culturais de natureza

eclética, que, inspirando-se nos conteúdos temáticos das diversas exposições,

aproveita as sinergias disponíveis a nível local e regional, de forma a dar

resposta às necessidades e interesses dos diferentes perfis de público.

São cinco as grandes áreas de incidência de ação do MAH, definidas a partir

de diferentes faixas de público que visa congregar e servir:

museu educativo: abrange a grande área de utentes do Museu, ou seja,

o público escolar, englobando os Jardins de Infância, as escolas do 1.º ciclo

ao Secundário, as escolas profissionais, os programas de educação especial

e para adultos e ainda a Universidade. O caráter heterogéneo deste público

implica que sejam criados guiões de visitas orientadas adequados ao nível

de ensino, englobando necessariamente, no que respeita às faixas etárias

mais baixas e ao ensino especial, jogos e atividades expressivas que facilitem

a perceção de novos conhecimentos e criem uma vinculação afetiva ao Museu,

entendido como um espaço regrado mas aprazível.

museu Júnior: considera igualmente o público infantil, compreendendo

um conjunto de ateliês lúdico-pedagógicos vocacionados para crianças não

integradas em grupos escolares e, por isso, organizados em horário não letivo

e durante o período das interrupções letivas.

museu Familiar: destina-se a grupos organizados, integrando oficinas

e espetáculos de natureza cultural que implicam uma colaboração entre

crianças/jovens e adultos.

museu radical: apela ao público jovem com interesses e motivações que

à partida parecem distintas das ofertas passíveis de serem disponibilizadas por

um Museu e que é chamado a comparecer no mesmo, mediante a participação

em eventos de natureza marcadamente alternativa, em termos artísticos,

musicais ou desportivos.

museu Aberto: direciona-se para um público adulto e indiferenciado,

integrando iniciativas de espectro abrangente que, aproveitando as sinergias

existentes, fazem do Museu um centro de confluência do pulsar da própria

comunidade em que se insere.

Nestas circunstâncias, o MAH FAZ-SE um lugar de preservação da memória

e um espaço de conhecimento e de fruição, ao serviço do bem-estar

e do desenvolvimento da comunidade em que se insere.

A n A l ú c i A A l m e i d A

n a m i n h a i l h aF a z e n d O l i g a ç õ e s

http://

servicos.sram.azores.gov.pt/naminhailha/

ou escreve no google

“na minha ilha”

Page 11: Fazendo 88

1 1

l i t e r a t u r a e s o c i e d a d e

c a b o v e r d i a n a m e n t e

u m c h á n o j a r d i mO b j e c t O s p e l a c i d a d e

Na verdade não passamos incólumes pelos caminhos. Seja por acidente ou pela(s) bússola(s) que nos guia(m), não passamos pelo extramundano dos dias sem que a perplexidade nos confronte com uma leitura que excede o campo visual, os limites que se estabelecem como horizonte.

O Museu de Angra lançou-nos o mote Cabo Verde, Insularidades. E aceitamos o desafio partindo da questão ou do ancoradouro com que iniciamos estas linhas. A estrutura foi concebida em quatro sessões, 1.ª A História Socio-Identitária e a Cultura, 2.ª As Línguas Caboverdianas: O Caboverdiano e o Português, 3.ª A Literatura e a Poesia, 4.ª A Música e a Língua Cantada, seguida duma degustação Gastronómica. E o nome de batismo resultou da apropriação do Caboverdianamente, construção, meu amor. 2 Da sua aglutinação, mais propriamente.Cada uma das sessões apresentou, com necessária densidade e tanto quanto possível, uma proposta de leitura abrangente, mas onde não poderia deixar de estar presente a sublimação poética, um sucinto textual que permitisse estabelecer e transmitir o motivo, a password de entrada, para as tertúlias que se desenvolveram de forma franca e participativas. Diremos que foi possível deambularmos pelos temas com entusiasmo, sem nunca esquecermos a cientificidade que lhes é inerente. A imprensa escrita na Terceira dedicou atenção às sessões, divulgando de algum modo o seu conteúdo.

Assim nasceu e se fez o Caboverdianamente, tendo presente que a pluralidade é o conceito que pode de certo modo moldar o nosso tempo, e que a essa representação mental subjaz, sem dúvida, os contactos culturais e o encontro com o Outro. Foi neste contexto, o da partilha e do encontro, que apresentamos esta breve introdução à Cultura do arquipélago que deu as coordenadas ao Tratado de Tordesilhas (a 370 léguas a oeste da ilha de Santo Antão…), a Macaronésia mais a sul, o ponto mais ocidental da África Insular. Foi com este pretexto que fizemos uma viagem pelas correntes que ditaram o lançamento dos grandes encontros transcontinentais realizados a partir do século XV, as correntes oceânicas do Atlântico Norte que definem o Mar de Sargaços. E ancoramos no seu limite sul, lembrando que os Açores é o seu limite a norte. Em ambos o mar marca a sua presença de forma inequívoca. Soberana.

1 Nós somos o peso dos nossos amores, Santo Agostinho.

2 Do poeta Oswaldo Osório.

As insularidades que formam a região da Macaronésia foram os pilares, as plataformas, por onde se estabeleceram as pontes atlânticas transcontinentais. A sua ocupação e povoamento deram-se por razões geoestratégicas, e essa vocação não deve ser menosprezada ao olharmos de frente para a nossa contemporaneidade, para as nossas similitudes.

Temos por princípio que o ilhéu vive num grande navio-escola, não nos acobardamos com o mar aberto: é onde nos sentimos abençoados pelos deuses de Penates. Falamos de um ente que se entregou ao mar alto, à tensão harmónica dos cabos, ora laços ora rosnando, à mercê duma vida e da alma que se não amarra ao cais. Estes são os utensílios que nos permite ter a pretensão de reconstruir a modernidade.

Partilhar simboliza a oferenda, um gesto primordial, que as ilhas açorianas celebram com ênfase na religiosidade das suas festas! Cabo Verde não é uma terra de abundâncias. Ao longo da nossa história temos sido marcados pelo espectro da carência. A nossa verdadeira riqueza é de cariz imaterial. A alma caboverdiana alicerça-se fundamentalmente na perseverança, na irreverência ou inconformismo com que encaramos as dificuldades, a persistência na abordagem dos desafios. Alicerça-se numa espiritualidade que nos legou como herança que da desesperança poderemos semear a esperança, que da tristeza cultivamos a alegria. Somos crentes de que é possível, com o exercício da humildade, vindimar nos atos a nobreza dos sentimentos.E se a partilha é ofertar o melhor de nós, a alma caboverdiana é, quiçá, a nossa maior oferenda. Eis o que verdadeiramente partilhamos.

Sage é aquele que da retidão traça a prumo uma linha de conduta que vale apenas o valor da alma do Homem (é tudo o que se lhe pode retirar!):- Que a erosão cumprirá o seu propósito na proporção do tempo que habita o tempo…A n t ó n i o d e n É VA d A

A n A A lV e s

Quando questionamos:

Quem sou?

Quem somos nós?

De entre várias outras, a resposta que persiste teimosamente é esta:

Nós somos aquilo que amamos.1

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1 2

p e r c u r s o s u b a q u á t i c o

Aqui está a baía. E além os mergulhadores, de pé no cais. A luz vem a partir das seis, alastrando pelo Monte Brasil. A seguir aparece o sol, do lado da cidade, evapora o orvalho, aquece a água. Às oito é o esplendor no Porto de Pipas, a hora em que o dia promete. O mar, lugar grande e salgado, fica só “sendo”, “ser” é a sua actividade. Em dia azul, sem vento, de fatos de mergulho a fingir pinguins, cinco personagens distraidamente atentas submergem com o intuito de passear no único parque arqueológico subaquático do país.

Neste magnífico “museu” (criado em 2006), calcula-se que tenham ocorrido mais de 90 naufrágios, desde 1552. Muitos dos navios afundados ainda não foram identificados, assim como continuam desconhecidos inúmeros vestígios: fatias de barcos, maquinaria e carga diversa; testemunho da importância estratégica de Angra do Heroísmo ao longo dos séculos.

Estão assinalados três sítios de mergulho (diurno e nocturno), com bóias-pirilampo, cujo acesso pode ser feito pelo Clube Náutico:- Cemitério das Âncoras (entre os 22 e os 32m de profundidade) – encontram-se registadas trinta âncoras de vários tipos de embarcações, a partir do séc. XVI. Estes ferros derivam de erros de ancoragem, cometidos por pilotos não familiarizados com as características do fundo vulcânico da baía ou de manobras quase sempre desesperadas das embarcações em dificuldades que, na iminência de um naufrágio, cortavam as amarras, em busca de protecção no mar alto. Com essa manobra, contavam escapar aos perigosos ventos de Sul e Sueste, uma combinação conhecida localmente como “vento carpinteiro”, assim denominado por lançar contra a costa os navios cuja madeira era reaproveitada na construção de edifícios na cidade de Angra após naufragarem - “Run her” (70m de comprimento) – barco a vapor Confederado, que naufragou em 1863, devido a um erro de manobra do seu capitão. No contexto da Guerra Civil dos EUA (1861-1865)

esta embarcação fazia parte de uma frota de quatro furadores de bloqueio, que carregavam equipamento destinado à montagem e colocação de minas navais.

- “Lidador” ou barco do sal (78,67m de comprimento) – vapor brasileiro que naufragou em 1878, transportando passageiros e carga em geral. Vindo do Brasil, fez escala no Faial onde entraram emigrantes açorianos; à vista da cidade de Angra do Heroísmo lançou âncora, começando a operação de embarque de carga. Na noite de 6 de Fevereiro o temido “vento carpinteiro” provocou forte temporal que levou o navio a encalhar. Os náufragos foram salvos mas não as bagagens de passageiros e tripulantes, nem a carga. João de Vasconcellos Correia e Ávila acolheu, na sua própria casa oito mulheres e dezanove homens; o prelado da diocese abriu uma subscrição pública para auxiliar as vítimas. Ao mergulharmos sem truques, como um lírio ou um cachalote, com tudo o que temos nos pulmões, assoma-nos uma calma mágica, uma alegria fatal, uma coragem salgada. Só podes fazê-lo durante dois minutos? Muito bem, quer dizer que aquele é o nosso lugar durante dois minutos. Para uma grande baleia aquele é o seu lugar durante vinte minutos, para uma anchova aquele é o seu lugar durante um ano, parca diferença! Entretanto, é a essência que justifica a vida.

Inspirar onze ou doze litros de ar é obra, é-se na realidade, fisicamente, diferente. Não só se é mais leve, mas é-se de certo modo subtilmente maior. Internamente o efeito dos pulmões insuflados de ar é muito mais que uma mera sensação: é consciência do imponderável, o mar por dentro.

A tendência do corpo-balão pleno de ar para voltar à superfície só é relevante nos primeiros metros, depois a pressão da água cria um equilíbrio perfeito e o esforço da descida é quase nulo. A reserva de ar nos nossos pulmões, rarefeita em oxigénio, combina-se com algo segregado pelas glândulas, e cria uma mistura semelhante a uma droga. É nesta altura que entra em

cena uma coisa extraordinariamente bela e terrivelmente perigosa: a euforia. Dizem os médicos, os que estudam estas particularidades. Eu chamo-lhe a nossa parte de Deus, e qualquer coisa do seu Ser em todo o lado e em todas as coisas. Ou então, conforme os humores, a nossa porção de anarquismo.

Ora, quando estamos lá em baixo pelos doze metros, e já se passou um bom minuto, temos a impressão de sermos verdadeiramente uma peça do mar, uma peça provisória que só por vontade muito firme pode deixar de sê-lo, porque já nada nos impele para cima, para a terra e o ar; mas um impulso enfeitiçado e alucinatório empresta-nos as asas de uma raia e leva-nos devagarinho, ainda, mais fundo, até à outra terra, ao continente de baixo.

Há uma explicação fisiológica, mas a questão não é essa. O que se sente é que se é feliz e infinito, totalmente feliz, absolutamente livre. Temos ainda um minuto, cinquenta segundos em contagem decrescente. Oh, somos apenas água, o corpo enfeitado de panos e borrachas arrefeceu o bastante para deixar de captar a diferença de temperatura. O céu de ar dentro dos pulmões imersos já não faz bem o seu trabalho para nutrir o cérebro de consciência. Flutuamos noutro tempo, os peixes não nos evitam nem fogem: sabem que somos do mar; sempre me espantei com isto, lá em baixo.

Invariavelmente, alguém em qualquer sítio dentro ou fora de mim dá uma pancada decidida nas barbatanas que eu levo nos pés e o meu corpo inicia a subida. Sem pressa, com a mágoa de deixar para trás o nosso átomo de Deus e a nossa veia de anarquia.

Celebrar a beleza das coisas e aceitar que nos contagie; às vezes, é só uma maravilha, este brilho de silêncio e luz. Apetece voltar a brincar no Parque Arqueológico Subaquático de Angra do Heroísmo.c r i s t i n A l o u r i d o

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«Enriquece à custa dos néscios e depois humilha-os, ostentando a tua riqueza!»: foi o que o Grande Satanás proclamou e só há que obedecer-lhe. Fiel aos ensinamentos demoníacos, o acólito Limalha dá o bom exemplo. Aliás, ele é mais que exemplar, é quase a Lei Satânica em pessoa. Com a ajuda de bebidas traiçoeiras, ditos espirituosos e retórica demagógica, engana os “irmãos” da terra, cuidando que os mais velhos sejam os mais enganados – a fraqueza da velhice causa-lhe inigualáveis arrepios de prazer. Quanto mais os engana, mais cresce o seu pecúlio. Não fora o que desperdiça em festins libidinosos – para os quais cativa os mais jovens, com feitiços e mezinhas – e hoje seria o diabrete mais rico da região. Aliás, por causa da sua enorme cobiça e do seu louco esbanjamento de riquezas, os seus pares não o suportam e estão constantemente a armar-lhe ciladas. Por isso, é ver o diabrete Limalha sem eira nem beira, de uma moradia para outra, quase um diabo nómada. Todavia, ele pouco se rala com isto. Com a riqueza arrancada aos mais pobres comprou máquinas diabólicas, máquinas brilhantes e potentes. E, como sempre se lembra dos ensinamentos de Satanás, a sua ambição cresce desmesuradamente. Almeja comprar máquinas rolantes revestidas de ouro, ultra-potentes, velozes como o raio diabólico, capazes mesmo de atravessar os oceanos. Por agora, contenta-se

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com o que de melhor fabricam os seus irmãos teutónicos. Mas chegará o tempo em que a máquina real oriunda da Grande Ilha dos Nevoeiros será dele – nem que para tal tenha que vender todos os templos do Demónio!

Para um diabo como ele, é fácil alardear roubos e riquezas em terras pobres. Vivesse ele em terras de abundância e o prazer de roubar e vilipendiar seria bem maior. Aqui, apenas exibe máquinas e bazófia; rouba e estupra os mais velhos, engana e embriaga os mais novos – e assim é feliz na sua vida demoníaca.

Ah, já nos esquecíamos, Limalha tem um sonho secreto: quer ficar na história da terra como O GRANDE CALADOR – nome advindo da cal com que cobre os cadáveres das vítimas; ou O GRANDE DESBOBINADOR, alusão clara à velocidade com que “desbobina” pelas estradas com o intuito de atropelar os velhos descuidados. GRANDE será, com certeza!

Envolto em chamas violentas e gases sulfurosos, o Grande Satã ri com gosto das façanhas do seu mais querido diabrete, o Grande Limalha!

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a r t e s v i s u a i s e a r q u i t e c t u r a

A “viagem” que hoje vos proponho baseia-se em três conceitos fundamentais [em período de hipervalorização dos trípticos (alusão à venda “faraónica” do trabalho de Francis Bacon por 106 milhões de euros)].

Reconhecimento / Parcerias / Contemporaneidade

Esta provocação positiva desafia-vos a visitar a exposição coletiva intitulada Desenhos Recentes / Casa da Cerca – Centro de Arte Contemporânea, da autoria de vários artistas portugueses e oriunda do seu próprio espólio, realizando-se no âmbito do vigésimo aniversário da sua abertura e que estará presente na sede social do Instituto Açoriano de Cultura, ao Alto das Covas, em Angra do Heroísmo, de 13 de dezembro de 2013 a 31 de janeiro de 2014.

Com o objetivo de reconhecer e divulgar o exemplar trabalho desenvolvido pela Casa da Cerca ao longo de duas décadas, associa-se o IAC ao vasto conjunto de ações culturais que homenageiam o trabalho relevante que vem sendo desenvolvido desde a liderança do pintor Rogério Ribeiro (seu primeiro diretor) até ao presente (desta feita já sobre a direção da Drª Ana Isabel Ribeiro).Nunca será demais referir o trabalho essencial para o concelho de Almada e para a região onde se insere, na divulgação de temáticas culturais, dirigida a diferentes escalões etários e sociais, que abrangendo um vasto leque de interesses, potencia e valoriza a sociedade envolvente.

Esta parceria dá corpo a um projeto claramente assumido de incentivar a consolidação de uma abrangente rede de agentes culturais, que independentemente do seu estatuto público ou associativo, contribuam para a divulgação de temáticas culturais, potenciando a valorização dos seus públicos e da sociedade em geral.

O conjunto de peças que constituem a exposição permite-nos questionar sistematicamente a noção de contemporaneidade dos seus criadores, divulgando o seu trabalho e arrastando-nos para um múltiplo diálogo entre eles.As obras em exposição são da autoria de Ruth Rosengarten, Domingos Loureiro, Filipe Franco, Rosário Forjaz, Sara Simões, Marcos Oliveira, Pedro Salgado, Pedro Saraiva, Pedro Vaz, Nádia Torres, Cristina Ataíde, Jorge Martins e Fátima Pinto.

Desassosseguem-se pois, e visitem-na!

PA u l o V i l e l A r A i m u n d o

d e s e n h o s r e c e n t e s

e x p O s i ç ã O

i l h a t e r c e i r a :

SARA SIMÕES

Longa vida ao dragoeiro! 2011

PEDRO SALGADO

Dragoeiro-o-outro, 2011

MARCOS OLIVEIRA

Dragoeiro, 2011

PEDRO VAZ

Dragoeiro, 2011

JORGE MARTINS

Sem Título, 1982

Acervo da Casa da Cerca

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a ç o r e s

c h a r l i e c h a p l i n

i n ê s r i b e i r o

l e t r A s ( 5 )