1
TRAÇOS DE UMA “RED” HAIFA: IMPRESSÕES VISUAIS E MENSAGENS
SOCIAIS ATRAVÉS DE CHARGES E ILUSTRAÇÕES DO ARTISTA
PALESTINO ABED ABDI (1972-1982).
CAROLINA FERREIRA DE FIGUEIREDO
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
Este estudo tem por objetivo abordar, a partir de um pequeno fragmento, a
singular interação entre o universo das imagens e a luta política na Palestina. Esta
questão foi suscitada a partir de um primeiro estudo da obra de três artistas, de gerações
diferentes, a partir de suas relações com o Al-Nakba, o que tornou possível
compreender como a linguagem visual serviu ao processo de expressão do trauma
(FIGUEIREDO, 2013, 2014). Visando aprofundar a compreensão das reverberações
visuais na experiência política de artistas (e) palestinos, serão exploradas imagens de
apelo cotidiano e de grande alcance, em especial charges e ilustrações, produzidas pelo
artista palestino Abed Abdi entre os anos de 1972 e 1982.
O termo Al-Nakba significa “catástrofe” em árabe, e foi cunhado para designar
os eventos de 1948, precisamente a criação do Estado de Israel. Abed Abdi é perpassado
pelo Al-Nakba, visto que, com 6 anos, foi obrigado a sair de Haifa, sua cidade natal.
Vivendo em um Campo de Refugiados no Líbano durante três anos, Abed e sua família
obtiveram a permissão para voltar a Haifa, que tornara-se território israelense, onde o
pai permanecera desde 1948.
Abed filiou-se ao Partido Comunista ainda muito jovem, fato determinante para
sua formação política e artística. Em 1962, tornou-se o primeiro árabe a fazer parte da
Israeli Artists Association, o que dois anos depois rendeu-lhe uma bolsa para estudar
arte na Europa Oriental patrocinada pelo Partido Comunista de Israel (ANKORI, 2006,
p. 19). Abdi morou e estudou arte por oito anos em Dresden, na Alemanha Oriental, e
teve como professores Lea Grundig, G. Bondzin e G. Kettner1. Sobre suas produções, o
artista ressalta a importância da arte com uma práxis.
1 Informações obtidas através do site oficial do artista. Disponível em:
<http://abedabdi.com/index.php/en/bio>. Acesso: nov./2013.
2
...Quando os canhões trovejaram em Golã [Colinas] e nos bancos do Canal
[de Suez], e quando o futuro da região estava em risco, eu relembrei das
palavras de Pablo Picasso e no meu trabalho eu disse “não à guerra” de
acordo com as minhas crenças artísticas; arte deve ser comprometida e ter um
papel.2
Em busca de compreender estes e outros processos de criação do artista, as
implicações de suas filiações ideológicas, delimitei a pesquisa para dois tipos de
produções do artista: (1) charges publicadas no Jornal Al-Itthad (1972-1981), (2)
ilustrações produzidas para a Revista Literária Al-Jadid (1980-1982). O jornal Al-Itthad
foi criado em Haifa em 1944, ainda antes da criação do Estado de Israel. Após 1948, o
jornal passou a ser o primeiro periódico em língua árabe produzido em Israel, sendo
considerado até hoje um dos jornais mais importantes da região. Pertence à Maki, o
Partido Comunista de Israel. A revista literária Al-Jadid publicou as crônicas do famoso
escritor Salman Natour, que estavam aglutinadas em um livro chamado Wa ma nasina
(Nós não esquecemos), sendo relatos de pessoas sobre o Al-Nakba de 1948. No período
de 1980-1982, cada história na revista começava com uma ilustração de Abdi.
Ainda que com objetivos diferentes, visto que a charge apresenta cunho mais
imediatista, enquanto as ilustrações apresentam diferentes formas de conexão com o
texto, bem como uma distinta carga dramática, procuro identificar possíveis relações
entre tais modos de expressão, partindo das intenções do artista na produção de suas
narrativas visuais. Procurarei analisá-las enquanto produções destinadas a diferentes
suportes e com finalidades singulares.
O universo visual, nesse cenário, mostra-se um canal eficiente e fundamental na
construção do problema. Os vínculos singulares estabelecidos entre arte e política na
trajetória de Abed Abdi dão mostra dos papéis delegados às imagens, verdadeiros
instrumentos de luta, resistência e identificação. É através de narrativas visuais que são
compartilhados estímulos sensoriais e sentimentais que funcionam como símbolos
culturais no interior de um olhar formado no seio da conflituosa história política da
região. Assim, é possível enviesar a análise desses documentos sob duas perspectivas: a
2 Tradução livre do original: “...When the cannons thundered on the Golan [Heights] and the banks of the
[Suez] Canal, and when the future of the region was at risk, I recalled the words of Pablo Picasso and in
my work I said “no to war” in accordance with my artistic beliefs; art must be committed and play a role”.
Disponível em: <http://abedabdi.com/index.php/en/reviews/142-abed-abdi-wa-ma-nasina-we-have-not-
forgotten>. Acesso: nov./2013.
3
primeira se refere aos procedimentos e tecnologias específicas mobilizadas pela
linguagem pictórica; a segunda se refere à característica da (re)apresentação dos artistas,
isto é, ao “conteúdo” narrativo propriamente dito. Justo nesta articulação encontra-se a
perspectiva de análise aqui adotada, buscando relacionar a sensibilidade aos elementos
visuais e ao ímpeto de estabelecer relações temporais tão caros ao historiador.
As charges produzidas por Abdi estão inseridas dentro do contexto do jornal,
portanto, apresentam afinidade com o periódico. Entretanto, é necessário investigar a
inserção dessas charges uma vez que este processo pode ter ocorrido de forma não
necessariamente pacífica e harmônica. Nesse sentido, uma análise das charges enquanto
meras promotoras do sentido ideológico do periódico seria extremamente redutora.
Segundo Gombrich, as charges adquirem a característica de “fornecer algum tipo de
foco momentâneo” (GOMBRICH, 1999, p. 131), como podemos observar nas Imagens
1, 2 e 3, produzidas por Abed Abdi e fontes de análise para a pesquisa3. A linguagem
utilizada, enfatizando um cenário ou um personagem, mostra algum assunto que foi
gerado naquele momento, onde as expressões, rápidas e curtas frases em árabe,
ambientam (satirizam, criticam, entre outros) o caráter cotidiano dos eventos. Na
Imagem 1 o sujeito é caracterizado com um tapa olho, no caso Moshe Dayan, um
elemento estereotipado que serve como identificação rápida. Na Imagem 2, é possível
perceber elementos ‘típicos’ das nações Egito e Rússia. Com o complemento da frase
em árabe com a palavra “forte” (no sentido de cumprimento), se tem uma ideia
(percepções ou mesmo aspirações) das relações políticas mantidas na época. A Imagem
3 também mostra uma temática que estava sendo discutida no momento, como a disputa
e negociação pelo petróleo.
3 Para a pesquisa, foram selecionadas 25 charges, todas disponíveis no site do artista:
<www.abedabdi.com>.
4
Estes conteúdos das charges reúnem, portanto, elementos capazes de “romper
com a internalização dos sentimentos, desejos e pulsões nos indivíduos frente ao
controle e à regulação impostos pela sociedade, provocando, então, momentos em que
valores e atitudes estariam confrontados” (PETRY, 2008, p. 49). Nesse sentido, apesar
do posicionamento claro – pró-palestina e de esquerda – do jornal para qual trabalhava
Abdi, suas charges prometem evidenciar significados em certo sentido autônomos,
Charges: Imagem 1 (esquerda acima); Imagem 2 (direita acima); Imagem 3 (abaixo). Produzidas por Abed Abdi para o Jornal Al-
Itthad entre os anos de 1972 a 1981. Sem data precisa de cada charge.
5
únicos, evocando outros níveis de sentido no interior da complexa relação instituída nas
práticas políticas do povo Palestino depois de 1948, e em especial nas décadas de 1970
e 80, auge da atuação de Abdi.
As ilustrações, por outro lado, denotam a construção de narrativas do passado,
rememorações do Al-Nakba de 1948, onde os desenhos complementam e surgem como
elementos visuais para o que é contado literariamente, como podemos observar nas
Imagens 5 e 6, também produzidos por Abed e fontes de pesquisa4. Estas ilustrações
dão auxílio à história que segue, começando por elas o retrato do vivido, do contado. É
importante notar uma diferença estética percebida em duas edições somente, fator que
deve ser analisado e problematizado durante a pesquisa. Outro elemento que é
fundamental de ser estudado é a plasticidade da própria escrita árabe, que de diferentes
formas complementam o desenho e trazem significação linguística.
4 Para a pesquisa, foram selecionadas 13 ilustrações; estas se encontram numa página específica dedicada
ao Wa ma nasina (Nós não esquecemos), <www.wa-ma-nasima.com>, disponibilizada pela Hagar Art
Galley (Israel), com a curadoria de Tal Ben Zvi.
Ilustrações: Imagem 5 (esquerda); Imagem 6 (direita). Produzidas por Abed Abdi para a Revista Literária Al-Jadid, publicadas,
respectivamente, em 1981 e 1980.
6
Em se tratando de uma revista literária, também é possível levantar hipóteses
acerca de uma produção intelectual desse período na Palestina/Israel, em meio a qual
Abdi encontra-se mergulhado. Nesse sentido, “...os conceitos de lugares e redes de
sociabilidade, geração e cultura política constituem-se importante grelha de leitura para
compreender as formas de organização e ação dos intelectuais” (LUCA, 2006, p. 125).
Inclusive, o círculo de consumo da revista é um dado relevante de pesquisa, visto que
pode revelar quem eram seus leitores, talvez com perfis diferentes em relação aos que
liam os jornais e as charges do Al-Itthad. Aliando propostas estéticas e produções
“acadêmicas”, Abdi não dissocia questões sociopolíticas ao ilustrar cenas do Al-Nakba.
Visto que esta temática tornou-se recorrente e entranhado à constituição dos palestinos,
essa produção realizada durante os anos de 1980 a 1982 ganha um caráter de retomada
de discussões ao relembrar o acontecimento após ter passado trinta anos de alterações
radicais da/na Palestina.
Juntas, as fontes selecionadas para esta pesquisa oferecem importantes
contribuições ao estudo das formas de autorrepresentação dos palestinos. A relevância
desse problema fundamenta-se na percepção da heterogeneidade das produções visuais
palestinas e, especialmente, no singular papel delegado às imagens naquele contexto.
Atentar-se-á para as temáticas e técnicas transformadas neste novo contexto e, em
especial, a participação das imagens na construção de sentido das experiências políticas
na Palestina. As imagens tornaram-se um veículo importante à expressão destes novos
elementos de identificação e de denúncia.
Em trabalho anterior (FIGUEIREDO, 2013) discuti essa temática amparada no
livro de Dina Matar, intitulado “O que significa ser um Palestino” (2011). Para a
autora, há uma questão pontual sobre a característica contingencial “de ser”, onde não
há uma definição engessada sobre o que é ser palestino. Portanto, “o que significa ser
um palestino”, título de seu, “diz respeito a experiências vividas e condições de ser que
mudam e deslocam como resultado de circunstâncias e condições em evolução
(MATAR, 2011, p. 11). A tentativa de definição identitária envolve uma série de
referências culturais – que podem ser palestinas ou não, ou nem sequer estar enraizada a
um local especificamente. Neste viés, é enriquecedor perceber a identidade como
7
heterogênea e, portanto, compreendida melhor em sua pluralidade, identidades ou
mesmo identificações.
Esta perspectiva dialoga com noções presentes em outros trabalhos, como de
Stuart Hall, Da Diáspora (2009) e A Identidade Cultural na Pós-modernidade (2006),
bem como o de Homi Bhabha, O local da cultura (1998). A partir de estudos
específicos, ambos trabalham com as ideias de diáspora e de movimentação como
fatores positivos à construção de identidades. O caráter ‘híbrido’ dessas relações
permitem ampliar (não de forma simples ou mesmo não isenta de conflitos) a
compreensão de sujeitos em seus contextos. São, entre outros, os processos do “entre-
lugar” que Bhabha discorre em seu trabalho, um movimento “em direção a um encontro
com o processo ambivalente de cisão e hibridização que marca a identificação com a
diferença da cultura” (BHABHA, 1998, p. 308).
Algumas considerações teórico-metodológicas
Esta discussão é amparada, em princípio, por dois eixos principais: a dimensão
da representação pictórica e a problemática da arte (palestina) em sua relação com a
política.
Ao trabalhar com imagens, é necessário pensar sobre seu estatuto de criação,
especialmente no que diz respeito à representação. Para E.H. Gombrich, em Arte e
Ilusão (1986), a arte é propriamente uma produção da mente humana. Assim, ao
considerar que nenhum artista é capaz de pintar literalmente o que vê, o teórico
problematiza o estatuto da representação e, porquanto, faz uma análise das percepções e
convenções geradas pela arte pictórica. Nesse sentido, existem, por detrás dos sentidos
narrativos ou naturalistas das imagens, camadas de significação e estratégias mentais
que articulam dados sensoriais, emocionais ou culturais derivados da visão, da memória
do tato, do movimento e da experiência de forma geral.
É por este viés que a análise das charges e das ilustrações de Abed Abdi ganham
um novo respaldo, visto que as categorias visuais também são colocadas numa
dimensão historicizante. Em outras palavras, estuda-se o uso de signos e símbolos num
contexto circunscrito. Inclusive, esta perspectiva complexifica a relação entre produção
e recepção já que, assim como Abed imprime intenções pictóricas, o espectador as
8
recebe em um ritmo visual específico, em que “a sequência da exploração óptica
progride de acordo com nossos hábitos gerais de apreensão das coisas e com pistas
especiais que o quadro fornece” (BAXANDALL, 2006, p. 35).
É importante lembrar que Abed Abdi percebe-se na década de 1970-80 na
posição de um árabe que mora no Estado de Israel e mesmo nesse contexto, vislumbra
questões do seu tempo presente, através das charges, ao mesmo tempo que recria as
histórias do Al-Nakba de 1948. Como Mônica Velloso (1996) identifica uma “cidade
paralela” no Rio de Janeiro, é possível deslocar esse termo (com todos os cuidados) para
a experiência de Abed. O artista é um árabe morando em Haifa – portanto, é um
outsider –, e em suas obras apresenta a Palestina, a ausência da mesma e o cenário
político da época – ou seja, apresenta uma “outra forma de participação política e de
liderança que destoava dos padrões vigentes” (VELLOSO, 1996, p. 16). Estes padrões
se relacionam a uma posição de contestação, imbricando os sentidos de arte e política,
como o próprio Abdi indicou, citado anteriormente.
A recorrência da temática do Al-Nakba, bem como a visibilização de questões
envolvendo Israel e o Mundo Árabe tem relação com a própria constituição histórica
visual da região. De um modo geral, as regiões do Oriente Médio passaram por um
processo acerca da dicotomia entre arte religiosa e arte secularizada (dita ‘nacional’),
envolvendo um processo de modernização nos países durante o século XX (SHABOUT,
2007). É identificado por Nada B. Shabout que os anos 1950 e 60 são momentos de
liberação da arte sob a perspectiva orientalista, período também de independências
coloniais concomitante à crise de identidade.
A Palestina deve ser problematizada individualmente, entre outros motivos, por
apresentar diferente periodização. Desde o início do século XX, a Palestina enfrenta a
questão da migração, que ficou mais fortemente visível na década de 1930 e que mais
tarde culminou na criação do Estado de Israel. Nesse sentido, amparo-me nos estudos de
Shabout para problematizar as alterações estéticas ocorridas a partir de 1948. Em outras
palavras, a literatura de Shabout auxiliará para pensar nessa ruptura, especialmente no
que diz respeito aos processos de alterações das formas de percepção e de identificação
dos palestinos sentidas no âmbito da arte.
9
Shabout (2007) ainda argumenta sobre o papel da arte em países que foram
colonizados, e como a arte “...tornou-se uma ferramenta essencial na busca por criação,
e manutenção da consciência nacional e identidade” (p. 50)5. Assim, a autora
dimensiona a arte árabe como menos próxima da noção da “arte pela arte”, visto que a
base política-ideológica estaria na raiz na criação das próprias manifestações artísticas.
Esta discussão é relevante pois traz em perspectiva discussões acerca de uma arte
subordinada a um Estado, por exemplo, ou como temas políticos podem ‘engessar’ a
liberdade de produção dos artistas. É importante, então, discutir a dimensão de “arte
pela arte”, visto que não significa alienação, portanto não se opõe à luta. Além disso, a
insurgência de temas ditos políticos também ocorre a partir da demanda dos próprios
artistas que são fundamentalmente seres humanos atravessados por experiências
(traumáticas), como o Al-Nakba para os palestinos. Pintar o Al-Nakba não se apresenta
necessariamente como uma amarra ao tema, mas um modo de dar vazão aos
sentimentos, de compreensão, para sim (talvez) emergir como um modo de luta, ou
mesmo como forma de entendimento da sua própria história.
Marcos Napolitano (2011) apresenta algumas questões essenciais para pensar
esta arte militante e engajada, relevantes, portanto, para compreender a ação de Abed
Abdi enquanto um sujeito que fornece imagens que interferem na criação de uma
identidade, tanto no âmbito individual quanto na dimensão pública. Segundo o autor,
...a arte militante parte da política para atuar na tríade “agitação-propaganda-
protesto”, dirigida pelo partidos e grupos politicamente organizados,
enquanto a arte engajada chega na política a partir de uma atitude “voluntária
e refletida” sobre o mundo. Em ambas vertentes, o problema da autonomia da
arte (dimensão espiritual) e da linguagem (dimensão formal) está colocado
como desafio, não apenas para o artista que produziu a obra, mas também
para o crítico e o pesquisador que se debruçam sobre ela (NAPOLITANO,
2011, p. 29).
Essas dimensões da arte se complementam e muitas vezes integram as
discussões de um artista. Essas duas dimensões de arte também problematizam a
definição do intelectual de modo que este opera as dimensões reflexivas e práticas,
inserindo-se tanto na questão militante quanto na arte engajada.
5 Tradução livre do original: “…became an essential tool in the search for, creation, and maintenance of
national consciousness and identity” (SHABOUT, 2007, p. 50).
10
É fundamental ressaltar que estes três pilares conceituais são, mais do que blocos
estanques, complementares, no sentido que misturam-se ajudando a relativizar sua
eficácia isolada. Desta forma, refletir sobre a imagem e suas lógicas internas, por
exemplo, funciona, para além da história da arte, como forma de evitar
correspondências fáceis do universo da política e das provisões identitárias. Em suma, a
teoria visual ajuda a tornar mais maleável o conceito de arte engajada da mesma
maneira que a militância visual transcende uma identidade rígida. E por fim, como uma
compreensão de identidade mais solúvel liberta as produções visuais de amarras
nacionais e de subordinações rasas no âmbito da política-ideológica.
Algumas produções sobre o tema
Em se tratando de estudos sobre Oriente Médio, são fundantes (e
transformadores) os trabalhos de Edward Said. O livro intitulado Orientalismo (1996)
apresenta bases do pensamento Ocidental para com o dito “Oriente”, que inclusive
abarca uma região maior que o Oriente Médio propriamente, mas parte dessa ideia
generalizada e homogeneizadora de outros grupos e culturas. O estudo deste autor é
fundamental para se pensar o “Oriente” como dotado de uma historicidade muito
particular, gestada há séculos pelo Ocidente, que enxerga e reconhece a si mesmo a
partir da invenção do outro, o “oriental”, isto é, no movimento que o próprio autor
cunha de “orientalizando o Oriental” (SAID, 1996, p. 85). Este projeto cultural também
pode ser sentido na arte especialmente a partir da consolidação dos colonialismos nos
continentes africano e asiático nos séculos XVIII e XIX. Ainda que relevante, este
estudo para compreender o Oriente Médio auxiliará a presente pesquisa no sentido de
olhar não para um ‘Oriente’, mas uma Palestina, uma Israel e outros países do Oriente
Médio com suas próprias fontes, atentando às produções e aos sujeitos que forneçam
novos sentidos de compreensão das regiões e de suas singularidades históricas.
Outros livros que tratam de temas mais contemporâneos de Said também são
fundamentais para se pensar nas relações constituídas entre Israel e Palestina, bem como
entender as posições de países externos. Em Cultura e Política (2003), o autor articula
discussões contemporâneas sobre realidades em torno do conflito, que partem
especialmente a partir dos cinquentas anos do Al-Nakba. Em Reflexões sobre exílio e
11
outros ensaios (2003), Said trata da questão das identidades e do pertencimento a partir
de uma visão como palestino.
Sobre a arte contemporânea ‘árabe’, mais desamarradas de estéticas orientalistas,
Nada Shabout desenvolve no livro Modern Arab Art (2007) pesquisas acerca da
modernização da arte no século XX no que diz respeito à problemática de uma arte
islâmica e uma arte secular. A autora também fornece dados acerca do contato com o
Ocidente e suas formas de representação e como a arte do Mundo Árabe incorporou
alguns elementos. Esta literatura é relevante ao desenvolvimento do projeto, pois
Shabout analisa os processos artísticos de diferentes países, como Egito, Iraque e
Palestina, tratando de uma visão não externa dessa modernização, mas ao mesmo tempo
não isolando os países (e seus artistas) das discussões artísticas mundiais.
Outros estudos sobre a arte Palestina também são relevantes, como os de Kamall
Boullata e Gannit Ankori, publicados nos respectivos livros: Palestinian Art: From
1850 to the Presente (2009) e Palestinian Art (2006). Boullata fornece um extenso
estudo sobre as formas de representação presentes na Palestina desde o século XIX,
importante para a minha pesquisa, pois o teórico mostra uma heterogeneidade e riqueza
de produções que auxiliam a perceber Abed como um sujeito singular e pertencente a
uma geração específica da arte palestina. Já os estudos de Ankori concentram-se na arte
pós-48 ao introduzir o conceito de “Des-orientalismo” e trabalhar com elementos
recorrentes na arte Palestina, como o corpo, o lar e a terra. Ankori discute também o
“ser árabe em Israel”, o que complexifica ainda mais os sentidos de identidade e
pertencimento de palestinos ao tratar de vozes do “interior” de Israel. A teórica afirma
que esses sujeitos são vistos como outsiders tanto por israelenses quanto por árabes,
pois, se por um lado possuem passaporte israelense e são considerados “cidadãos”, por
outro compõem um grupo étnico minoritário em Israel e comumente são tratados como
cidadãos de segunda classe (ANKORI, 2006). A heterogeneidade deste grupo é uma
preocupação central apontada por Ankori,
Apesar de serem considerados um grupo coerente por aqueles que julgam os
‘outsiders’, os ‘Árabes da linha verde’ [como são conhecidos os árabes que
moram em Israel] não abrangem um grupo homogêneo. Eles são moradores
de pequenas vilas, moradores de cidades e Beduínos; eles são Cristãos,
Muçulmanos, Druzos, ou homens e mulheres seculares; e eles provem de
diferentes backgrounds sócio-econômicos e culturais. Alguns se identificam
12
como palestinos, outros não. Alguns se consideram israelenses, outros não
(ANKORI, 2006, p. 177)6.
Partindo desta diversidade, os estudos de Ankori são importantes para perceber
esses sujeitos que habitam um entre-lugar, condição também vivida por Abed Abdi.
Portanto, utilizo esta mesma perspectiva para compreender o indivíduo-artista Abdi,
suas identificações e interlocuções entre Palestina e Israel.
Sobre a temática de charge e ilustração foram localizados poucos trabalhos,
embora os encontrados corroboram de alguma forma a hipótese aqui levantada relativa
ao uso comum deste tipo de arte no Oriente Médio e na Palestina mais especificamente.
O trabalho de Sandy Sufian, intitulado Anatomy of the 1936-39 Revolt: Images of the
Body Political Cartoons of Mandatory Palestine (2008) faz uso da charge de maneira
similar ao que pretendo realizar. Sufian analisa as charges feitas por dois artistas de dois
jornais: um palestino e um judeu, que embora ideologicamente se digladiem, ambos
utilizam as mesmas técnicas para produzir as charges. Naquele momento a região estava
sob comando do Mandato Britânico, sendo que “imagens de charges políticas ajudaram
a guiar uma mensagem nacionalista para palestinos letrados e iletrados (...) [a] imprensa
diária influenciou significativamente com questões consideradas importantes durante a
Revolta” (SUFIAN, 2008, p. 26)7.
Ainda sobre charge em outros contextos, o trabalho de Mônica Pimenta Velloso
no livro Modernismo no Rio de Janeiro (1996) é fundamental, uma vez que a teórica
identifica outras facetas do Rio de Janeiro na virada do século XIX e XX a partir de
caricaturistas. Velloso problematiza o termo moderno, “buscando seu sentido na
dinâmica do cotidiano” (VELLOSO, 1996, p. 34), especialmente para pensar na atuação
desses artistas-intelectuais cariocas também marginalizados dos processos de construção
de uma nova Rio de Janeiro. Assim, “se debruçaram sobre o submundo, na tentativa de
captar nas ruas um ‘padrão de sociabilidade alternativo’ e uma ‘ambiência
6 Tradução livre do original: Although they are regarded as a coherent group by those who deem the
‘outsiders’, the ‘green line Arabs’ do not comprise a homogenous group. They are villagers, city dwellers
and Bedouins; they are Christians, Muslims, Druze, or secular men and women; and they come from
diverse socio-economic and cultural backgrounds. Some identify as Palestinians, others do not. Some
consider themselves Israelis, others do not (ANKORI, 2006, p. 177).
7 Tradução livre do original: “visual images in political cartoons helped drive a nationalist message for
both literate and illeterate Palestinians (...) daily press significantly influenced with issues were deemed
important during the revolt” (SUFIAN, 2008, p. 26).
13
organizadora’. É nessa perspectiva que eles se identificam com as camadas populares e
com a cidade como parte constitutiva de si mesmos” (VELLOSO, 1996, p. 27). Este
trabalho torna-se enriquecedor para a pesquisa no sentido de dialogar com esses outros
sujeitos em diferentes espaços, visto que é fundamental pensar em que “lugares sociais”
Abed Abdi ocupou em Israel nas décadas de 1970 e 80.
Desafios para a pesquisa
Os problemas detectados até o momento são tanto de procedência “prática”
quanto teórico-metodológico. Para enriquecer o trabalho, e inclusive para ter algumas
respostas aos questionamentos que me proponho a desenvolver, é importante fazer
contatos, por exemplo, com a equipe editorial do jornal na Palestina para ter acesso a
edições anteriores, ou mesmo para conseguir informações sobre leitores, o jornal,
periodização, formas de produção e outros. A familiarização com o periódico
certamente enriquecerá a análise da fonte de dados, especialmente no que tange à
datação de cada charge e sua respectiva contextualização. O mesmo processo ocorre
para a revista literária, pois o contato com membros do corpo editorial, bem como o
próprio artista, será fundamental. Outra questão importante a se considerar é a tradução
dos textos, visto que traduzir é fazer um exercício de entender a linguagem e os meios
de comunicação entre pessoas, considerando o período, as condições de produção e os
aspectos culturais.
O problema teórico-metodológico está colocado na análise de imagens, visto que
ainda não foi decidido o uso de um método ou de uma perspectiva de análise específica.
Como a pesquisa está em fase inicial, o foco para o momento são leituras sobre a
temática, buscando compreensão maior sobre o campo da visualidade. Há também que
se pensar sobre a transposição de “métodos” ou teorias no que diz respeito aos tipos de
arte, como no caso, uma arte não-Ocidental. Embora as fronteiras sejam fluídas, como é
possível perceber nas produções (tanto em termos estéticos quanto em meios de
reprodução) de Abed e em sua interação com artistas fora do circuito “palestino” ou
“árabe”, é necessário problematizar e visualizar essas expressões por suas próprias
características e preocupações.
14
REFERÊNCIAS
ABED ABDI. Site oficial. Disponível em: <http://abedabdi.com/index.php/en/>.
Acesso: nov./2013.
ANKORI, Gannit. Palestinian Art. California Press: 2006.
BAXANDALL, Michael. Padrões de Intenção: a explicação histórica dos quadros. São
Paulo: Companhia das Letras, 2006.
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. da UFMG 1998.
BOULLATA, Kamal. Palestinian Art: From 1850 to the present. Saqi, 2009.
FIGUEIREDO, Carolina F. de. Persistências e Ressignificações de Nakba: narrativas
palestinas segundo as artes de Ismail Shammout, Abdel Tamam e Manal Deeb. 2013.
103 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Bacharelado e Licenciatura em
História) – Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2013.
_________________________. Construindo novos sentidos para os palestinos:
narrativas visuais de Manal Deeb. Revista Fronteiras. Número 21. ANPUH/SC, 2014.
Disponível em: < http://www.anpuh-sc.org.br/revfront_21_sumario.htm>.
FONSECA, Joaquim da. Caricatura: a imagem gráfica do humor. Porto Alegre: Artes e
Ofícios, 1999.
GOMBRICH, E. H. Arte e Ilusão: um estudo da psicologia da representação pictórica.
São Paulo: Martins Fontes, 1986.
_______________. Meditações sobre um cavalinho de pau. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 1999.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11ª Ed. Rio de Janeiro:
DP&A, 2006.
___________. Da Diáspora: Identidades e Mediações Culturais. 1a
edição atualizada.
Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2009.
HAGAR ART GALLERY. Disponível em: <www.wa-ma-nasina.com>. Acesso:
nov./2013.
LUCA, Tânia Regina de. Fontes Impressas. In: PINSKY Carla Bassanezi; BACELLAR,
Carlos de Almeida Prado. Fontes históricas. 2ª edição. São Paulo: Contexto, 2006.
MATAR, Dina. What it means to be Palestinian: stories of Palestinian peoplehood.
New York: I.B. Tauris, 2011.
15
NAPOLITANO, Marcos. A relação entre arte e política: uma introdução teórico-
metodológica. Temáticas, Campinas, v. 19, n. 37/38, pp. 25-56, jan./dez. 2011.
___________________. Fontes Audiovisuais. In: PINSKY Carla Bassanezi;
BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Fontes históricas. 2ª edição. São Paulo:
Contexto, 2006.
NATOUR, Salman. The culture of “the Inside”: The Post-Identity Question. Jadal,
issue no. 12, January 2012.
PETRY, Michele Bete. Caricatura, charges e cartuns: um estudo sobre as expressões
gráficas de humor como fontes para a pesquisa em história. Monografia apresentada à
disciplina Orientação do Trabalho Monográfico, no Curso de História da Universidade
do Estado de Santa Catarina (UDESC), 2008.
SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das
Letras, 2003.
____________. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996.
____________. Cultura e Política. São Paulo: Boitempo, 2003.
SUFIAN, Sandy. Anatomy of the 1936-39 Revolt: Images of the Body in Political
Cartoons of Mandatory Palestine. Journal of Palestine Studies, Vol. 27, N. 2, 2008, pp.
23-42.
SHABOUT, Nada M. Modern Arab Art: formation of Arab Aesthetics. University Press
of Florida: 2007.
TAKEUTI, Norma Missae. Refazendo a margem pela Arte e Política. Nómadas (Col),
n. 32, abril, 2010, pp. 13-26.
VELLOSO, M. P. Modernismo no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Fundação
Getúlio Vargas, 1996.
ZOGHBI, Pascal. Arabic Graffiti. Germany: From here to fame Publishing, 2011.
ZVRI, Tal Ben. Disponível em: <http://abedabdi.com/index.php/en/reviews/142-abed-
abdi-wa-ma-nasina-we-have-not-forgotten>. Acesso: nov./2013.