UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
MEMÓRIA, RITOS FUNERÁRIOS E CANONIZAÇÕES POPULARES
EM DOIS CEMITÉRIOS NO RIO GRANDE DO NORTE
Eliane Tânia Martins de Freitas
Rio de Janeiro
2006
II
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais
Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia
MEMÓRIA, RITOS FUNERÁRIOS E CANONIZAÇÕES POPULARES
EM DOIS CEMITÉRIOS NO RIO GRANDE DO NORTE
Eliane Tânia Martins de Freitas
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-
Gradução em Sociologia e Antropologia,
da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de Doutor em Ciências Humanas
(Antropologia Cultural)
Orientadora: Profª. Dra. Regina Célia Reyes Novaes
Rio de Janeiro
2006
III
MEMÓRIA, RITOS FUNERÁRIOS E CANONIZAÇÕES POPULARES
EM DOIS CEMITÉRIOS NO RIO GRANDE DO NORTE
Eliane Tânia Martins de Freitas
Orientadora: Profª. Dra. Regina Célia Reyes Novaes
Tese de Doutorado submetida ao programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ – como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciências Humanas (Antropologia Cultural).
Aprovada por:
_________________________________________________________
Presidente, Profa. Dra. Regina Célia Reyes Novaes
_________________________________________________________
Profª. Dra. Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti
_________________________________________________________
Prof. Dr. Emerson Alessandro Giumbelli
_________________________________________________________
Profª. Dra. Márcia Pereira Leite
_________________________________________________________
Profª. Dra. Cecília Loreto Mariz
_________________________________________________________
Profª. Dra. Sandra Maria Correa de Sá Carneiro (Suplente)
____________________________________________________
Profª. Dra. Gláucia Villas-Boas (Suplente)
Rio de Janeiro
Agosto de 2006
IV
Freitas, Eliane Tânia Martins de Memória, Cultos Funerários e Canonizações Populares em Dois Cemitérios no Rio Grande do Norte/Eliane Tânia Martins de Freitas – Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS, 2006 XIII; 211f.; 21 X 29,7 cm Orientadora: Regina Reyes Novaes Tese (doutorado) – UFRJ/Instituto de Filosofia e Ciências Sociais/Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, 2006 Referências Bibliográficas: f. 212-221 1. Religião. 2. Canonização 3. Cemitério. 4. Memória. I. Freitas, Eliane Tânia Martins de. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia. III. Título.
V
Este trabalho é dedicado
aos meus pais Aleixo e Maria,
às minhas irmãs Cris e Rose
e aos meus sobrinhos João e Letícia.
VI
Agradecimentos
Agradeço em primeiro lugar ao Departamento de Antropologia da UFRN, Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, onde sou professora desde 1996, pela licença que me
concedeu para cursar o doutorado. Agradeço, especialmente, pela amizade e apoio no
dia a dia de trabalho, aos colegas professores Luiz Assunção, Taciana Jales, Conceição
Almeida e Lisabete Coradini.
Agradeço a Capes, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, pela
concessão da bolsa que me permitiu dedicação aos estudos durante o curso de
doutorado.
Agradeço à Profª Dra. Regina Novaes por haver aceito o encargo de orientação desta
tese junto ao Programa de Pós-Graduação.
Agradeço aos professores que aceitaram o convite para compor a banca: Márcia Pereira
Leite, Emerson Alessando Giumbelli, Cecília Loreto Mariz, Sandra Maria Correia de Sá
Carneiro, Gláucia Villas-Boas e Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti. A todos
agradeço pela leitura e pelas críticas e sugestões apresentadas, que procurarei levar em
conta em qualquer revisão futura deste trabalho.
Agradeço às funcionárias da secretaria, Claudia e Denise, pelo suporte administrativo,
pela competência e pela paciência.
Agradeço aos professores que, durante os créditos do doutorado, contribuíram para
minha formação de um modo decisivo: Gláucia Villas-Boas, José Reginaldo Gonçalves
e Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti.
Agradeço ainda à professora Elsje Lagrou que, na qualidade de coordenadora da Pós-
Graduação, me ofereceu seu apoio em um momento em que ele era extremamente
necessário.
VII
Agradeço em especial aos que me abriram suas casas e me contaram suas experiências
de vida, suas lembranças. Sem eles, e sua receptividade e confiança, este trabalho não
teria sido possível.
Agradeço aos colegas que iniciaram comigo o doutorado e que, graças à sua inteligência
e bom humor, tornaram esse percurso menos árduo e muitas vezes divertido: Maria
Elisabeth Costa, Nilton Santos, Astréia Soares, Ricardo Gomes de Lima, Alexandre
Weber, Maria Cristina Peixoto e Márcia Leitão Pinheiro. O mesmo vale para as então
mestrandas, com quem dividi algumas salas de aula e algumas boas horas de muita
conversa e risadas: Guacira Waldeck e Edileuza Lobo.
Às amigas e colegas Beth Costa e Eloísa Martin um agradecimento muito especial pela
leitura de alguns capítulos da tese, o que foi uma ajuda fundamental para mim, pela qual
serei sempre grata e que espero no futuro poder retribuir.
Aos amigos da comunidade virtual de antropologia que modero no site de
relacionamentos orkut desde 26 de agosto de 2004 e que nestes quase dois anos
tornaram-se parte da minha vida, alguns dos quais já tendo ultrapassado o mundo dos
bytes: Wilton Silva, Laura Graziela Gomes, Silvana Rubino, Antonio Marcos Pereira,
Andrea Ciacchi, Thaís Nascimento e Robson Cruz, dentre muitos outros. Com eles
tenho aprendido muito nesse convívio, e me divertido outro tanto também.
A todos os amigos que tiveram compreensão em relação a pouca disponibilidade para a
vida social durante todo esse período longo e que me ajudaram a atravessá-lo de
maneira mais saudável e leve: Édipo Elder, Black Ubiratan, Cecília Chrispim, Marina
Morena, Luisa Góes, Yara Saads, Lílian Canen, Ercilia Damaris, Daniel Maia, Severo
Matias, Erlon Arnoud, Cris Brandão, Gabriel Galvão e Andrei Gurgel.
Agradeço, por fim, à minha família que, mesmo estando longe, no Rio de Janeiro, está
sempre presente como um apoio fundamental na minha vida. E à minha querida Ciçoca,
VIII
filhota felina, que me acompanha nas minhas andanças há anos, entre Natal e Rio.
Tenho certeza de que ela sabe que a sua humana finalmente acabou a tal tese...
IX
É possível, como diz Homero, que os deuses tenham enviado os
infortúnios aos mortais para que eles pudessem contá-los, e que nesta
possibilidade a palavra encontre seu infinito manancial; é bem possível
que a aproximação da morte, seu gesto soberano, sua proeminência na
memória dos homens cavem no ser e no presente o vazio a partir do qual
e em direção ao qual se fala.
Michel Foucault, Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema, p.47.
X
RESUMO
MEMÓRIA, RITOS FUNERÁRIOS E CANONIZAÇÕES POPULARES
EM DOIS CEMITÉRIOS NO RIO GRANDE DO NORTE
Eliane Tânia Martins de Freitas
Orientadora: Profa. Dra. Regina Célia Reyes Novaes
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ – como parte dos requisitos necessários à obtenção
do título de Doutor em Ciências Humanas (Antropologia Cultural).
Esta tese apresenta e analisa alguns aspectos de dois processos de “santificação” popular
em cemitérios do estado do Rio Grande do Norte, nordeste do Brasil. Seu objetivo é
identificar algumas das representações sociais que sustentam essas práticas devocionais
e analisar os ritos que as constituem, tomando-os como suporte para a elaboração, por
parte dos devotos, de uma memória sobre o morto santificado. A construção do santo é
também a construção de diversos tipos de narrativas de sua história por seus devotos,
que não tem como não ser também a história de quem a narra, e que consiste em uma
‘leitura’ sobre fatos relativamente recentes que pertencem à história do lugar, mas
também às suas próprias biografias. A etnografia do ritual está centrada na grande data
anual que é o Dia de Finados. Devido à assimilação, principalmente no plano das
prestações rituais, do culto aos mortos milagrosos, ou santos, às prestações funerárias, a
tese procura explorar os significados sociais do cemitério e da morte, especialmente dos
casos de morte violenta, que parecem exigir das pessoas que os testemunham um
trabalho simbólico mais elaborado.
Palavras-Chave: Religião; Canonização; Cemitério; Memória.
XI
ABSTRACT
MEMORY, FUNERARY RITES AND POPULAR CANONIZATIONS IN TWO
CEMETERIES IN RIO GRANDE DO NORTE
Eliane Tânia Martins de Freitas
Orientadora: Profa. Dra. Regina Célia Reyes Novaes
Abstract of the PhD Thesis submitted to the Program of Sociology and Anthropology, Institute of Philosophy and Social Sciences, of the Federal University of Rio de Janeiro. UFRJ. as part of the requirements to the Doctor's title in Human Sciences (Cultural Anthropology) .
This theory presents and it analyzes some aspects of two processes of popular
"sanctification" in cemeteries of the state of Rio Grande do Norte, northeast of Brazil.
Its objective is to identify some of the social representations that sustain those
devotional practices and to analyze the rites that constitute them, taking them as support
for the elaboration, on the part of the worshippers, of a memory on the sanctified dead.
The saint's construction is also the construction of several types of narratives of his/her
history by these worshippers, that is also their own history, and that consists of a
'reading' on facts relatively recent that belong to the history of the place, but also to their
own biographies. The ethnography of the ritual is centered in the great annual date that
is All Souls' Day. Due to the assimilation, mainly in the plan of the ritual, of the cult to
the miraculous deads, or saints, to the funerary cults, the thesis tries to explore the social
meanings of the cemetery and of the death, especially of the cases of violent death, that
seem to demand of the people who testify them a much more elaborated symbolic work.
Key-words: Religion; Canonization; Cemetery; Memory.
XII
Sumário
Introdução........................................................................................................................1
Capítulo 1. Santos Feitos à Mão: Devoção e Memória Popular.....................................14
O Trabalho de Campo......................................................................................................24
Santos “Feitos à Mão”.....................................................................................................43
Capítulo 2. O Ritual e as Narrativas da História............................................................54
João Baracho....................................................................................................................56
José Leite de Santana, o Jararaca.....................................................................................61
O “Primeiro Milagre”......................................................................................................73
Os Ritos e a Devoção.......................................................................................................76
As Oferendas: Preces, Velas, Ex-Votos..........................................................................95
As preces..............................................................................................................96
As velas................................................................................................................99
Os Ex-Votos.......................................................................................................106
Primeiro contato com essas devoções...........................................................................108
Capítulo 3. Os Cemitérios: História, Significados e Usos Sociais...............................113
Um Pouco de História....................................................................................................113
O Cemitério na Paisagem Cotidiana..............................................................................128
Trabalhadores dos Cemitérios.......................................................................................129
O Cemitério no Imaginário Social: Fantasmas e Assombrações...................................138
O Cemitério como Exílio para Quem ou o Que se Esconde.........................................142
XIII
Capítulo 4. A Devoção Falada......................................................................................145
Quem fala, e como?....................................................................................................152
Do quê se fala?.........................................................................................................156
Promessas e Milagres.......................................................................156
Testemunhos..........................................................................................161
Histórias de Baracho, Histórias de Jararaca..........................................165
Histórias Maravilhosas..............................................................165
Legendário da Vida de Bandido................................................177
Jararaca......................................................................................177
Baracho......................................................................................181
Hagiografias Populares..............................................................184
Uma Nota: Milagres, Maravilhas, Exemplos........................................192
A Fala Acusatória:.................................................................................196
Considerações Finais...................................................................................................204
Bibliografia...................................................................................................................211
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Introdução
Esta tese apresenta e analisa dois casos de canonização popular no estado do Rio
Grande do Norte, nas cidades de Natal e Mossoró. Na capital, o objeto da devoção é
João Baracho, bandido fuzilado pela polícia em 1962, após fuga da cadeia; em Mossoró,
é José Leite de Santana, o Jararaca, cangaceiro enterrado vivo após ser retirado da
cadeia pela própria polícia que o capturara após a fracassada invasão da cidade pelo
bando de Lampião, em 1927. Nos dois casos, os fatos que cercaram sua morte, trágica e
pública, são narrados em torno de um eixo principal que acentua seu sofrimento
incomum: o cangaceiro foi enterrado vivo, o ladrão morreu com sede. Ambos teriam
tido nesse momento da morte uma oportunidade de arrependimento e conversão, dos
quais teria decorrido o perdão divino. Pois desse modo os devotos explicam, mais
comumente, que um bandido possa virar santo e fazer milagres. Fato, portanto, que,
mesmo do seu ponto de vista, precisa de uma explicação, ou melhor, demanda alguma
elaboração na tentativa de compreendê-lo, inclusive da parte daqueles que o endossam.
Dessas crenças e das práticas rituais no cemitério trata este trabalho. Seu objetivo é
tentar compreender os processos envolvidos nessas canonizações, tanto no plano
ideológico (representações, crenças, memórias) como no ritual, o que acredito ser válido
até pela escassez de registros e discussões sobre essas manifestações menos festivas e
visíveis da chamada religiosidade popular. Elas não estão vinculadas a uma instituição
nem podem ser identificadas estritamente a qualquer segmento religioso. Aliás, para
algumas pessoas que lá vão para rezar e acender velas, sequer se trata de ‘religião’, mas
antes de ‘tradição’ ou ‘costume’.
Apesar de não se tratar de culto institucionalizado, ele encontra suas condições de
emergência e parte do seu sentido na celebração do Dia Finados, em 2 de Novembro,
- 2 -
que, de certa forma, também lhe fornece uma espécie de abrigo, “escondendo”-o e
tornando possível para seus devotos mostrar-se em público, sob a proteção de sua
extrema visibilidade e legitimidade social e religiosa.
Todavia, o Dia de Finados celebra antes o oposto do que representam esses santos:
celebra os mortos privados, da e pela família, justamente o que Baracho e Jararaca não
são. Eles não têm famílias que os visitem em seu túmulo nesse dia, e são, por definição,
mortos ‘públicos’ – tornados públicos não apenas pelo fato de as circunstâncias de sua
morte terem sido notícia de jornal, mas também pelo tipo de vida célebre que tiveram,
vidas de bandido, sempre recordadas e recontadas por narrações que vão, ao longo do
tempo, se incorporando ao repertório oral popular de suas localidades e podem chegar a
ultrapassá-las, ganhando, a cada vez que são narradas, novos sentidos, alguns dos quais
podem ser surpreendentes.
Em seu livro The Cult of Saints, Peter Brown cunhou a expressão “very special dead”,
mortos muito especiais, para referir-se àqueles que, em sua tumba no cemitério,
tornavam-se objeto de culto. Esse culto aos mortos, no final da Antigüidade, logo se
tornaria culto aos mártires, mortos em nome de sua fé, os primeiros santos do
cristianismo. O objeto desta tese são essas duas canonizações populares no Rio Grande
do Norte, esses dois mortos tornados especiais pelo movimento devocional estabelecido
em torno de seus túmulos nos cemitérios. Esses bandidos, temidos em vida, mas
também admirados, são hoje, para seus devotos, intercessores, protetores e taumaturgos.
O que não impede que, para outros segmentos sociais, seja em nome de sua
religiosidade ou não, eles sejam vistos como indignos de qualquer tratamento ritual
póstumo, mesmo do mais elementar cuidado devido aos mortos em nome da piedade
cristã. Para esses segmentos, eles são ainda vistos, antes de mais nada parte do domínio
do mal, do perigo e da sujeira, o que se manifesta no espaço do cemitério e nas falas
- 3 -
acusatórias feitas contra seus devotos. Estes devotos, por sua vez, não ignoram tal
rejeição social, e isso faz com que esta tenha efeitos sobre a devoção e sobre o culto que
a manifesta, efeitos que são decisivos para a definição de sua fisionomia singular, da
qual procurarei estabelecer os contornos aqui.
Este trabalho baseia-se em uma pesquisa de campo realizada junto aos devotos, com
especial atenção ao culto coletivo e público que tem lugar no cemitério, junto ao túmulo
do que eles chamam morto “milagroso”. Esse trabalho de campo ocorreu entre 1998 e
fevereiro de 2001, e teve uma segunda fase entre outubro de 2003 e novembro de 2004.
No intervalo, estive morando no Rio de Janeiro para cursar os créditos do curso de
doutorado e prestar o exame de qualificação do projeto de pesquisa.
A partir dos contatos feitos no cemitério, durante o culto, e também por indicação de
alguns conhecidos nas cidades, travei relacionamento com algumas pessoas que
mantinham voto com esses “santos” ou que haviam feito promessa para eles. Ouvi seus
depoimentos e retornei para mais algumas conversas ao longo da pesquisa. Por meio
deles, pude saber de outras histórias, acontecidas com outras pessoas, e algumas vezes
consegui chegar a elas por intermédio desses informantes. Assim, constituí aos poucos
uma rede de relações dentro da qual me movi ao longo do trabalho.
Devoção desprovida de qualquer enquadramento institucional ou corpo de mediadores
que pudesse fornecer uma “leitura autorizada” do santo ou do seu culto, esse objeto é,
de certa forma, móvel. Para entendê-lo, é preciso seguir os devotos, do local do culto até
sua casa, sua rua, sua vizinhança. No entanto, por sua natureza dúbia, sua associação
freqüente com as forças do mal – como veremos na tese – encontrar esse devoto em
casa nem sempre é fácil, fazê-lo falar na frente de mais alguém, seja parente ou vizinho,
nem sempre é possível. Mesmo durante a prestação do culto no cemitério, mesmo após
acender velas ou depositar sobre (ou atrás de) o túmulo um ex-voto como pagamento de
- 4 -
promessa, nem todo mundo – poucos, aliás – se dispõe a falar e contar sobre sua
devoção. Como veremos, os devotos preferem falar, e o fazem animadamente, sobre os
casos que ocorreram com outras pessoas ou até sobre os que lhes ocorreram, desde que
no passado, assunto já resolvido. A graça de que se fala é a graça já alcançada.
Meu objetivo aqui, então, é fazer uma etnografia do culto ao santo do cemitério no Dia
de Finados, data preferida pelas pessoas para pagamento de promessas, mas também
data que enseja, e ensejou no passado, para muitos devotos a oportunidade de um
primeiro contato com essa devoção. Ao visitar seu parente ali sepultado, ou acompanhar
um vizinho nessa visita, a curiosidade causada pela aglomeração incomum em torno
daquele túmulo funciona como um atrativo. Ao aproximar-se, ouvirá então as histórias
sobre o morto ali sepultado, pois que se trata justamente de um morto que tem história e
de uma história que a todos diz respeito, pois que pública, veiculada pelos jornais da
época de sua morte e pelos jornais de hoje. E ouvirá também inúmeros testemunhos de
milagres alcançados e depoimentos sobre milagres de que se ouviu falar, alcançados por
outras pessoas, alguns indeterminados, com tanto sabor de causo quanto as histórias
sobre o passado de bandido do morto e sua morte trágica.
Minha análise dos ritos no cemitério terá como foco sua dimensão oral, narrativa, e,
nesse sentido, irá privilegiar seu papel na elaboração de uma memória, que é memória
do passado tal como pode e quer ser visto a partir do presente, do enquadramento
particular escolhido pela perspectiva – ou perspectivas - dos devotos. Essa memória
confere uma existência singular a esse morto em um novo registro, uma nova narrativa
da história do lugar. Por meio dela, ela adquire sentidos imprevistos. E os próprios
devotos se inserem nessa história, que concorre com as narrativas históricas oficiais, ou
institucionalizadas. Memória feita de retalhos de diversas outras narrativas, as chamadas
- 5 -
históricas, as jornalísticas, a poesia popular, os contos maravilhosos que circulam pelos
bairros de boca em boca.
Mas, em outro plano do ritual, mais referido à religiosidade propriamente dita,
especialmente às crenças muito comuns sobre o destino das almas dos mortos – e ao
culto às almas, de grande adesão popular – os devotos constroem para si um lugar, uma
posição relativa a essa ‘santidade’ conferida ao morto. É raro que afirmem que ele é
santo. É mais comum que digam: dizem que é santo; ou que se refiram ao que ele pode
fazer mais do que ao que ele seria. Não há grandes preocupações em definir e fechar um
discurso ontológico sobre Baracho ou Jararaca.
Por outro lado, essas pessoas ora se definem como devotas - peguei devoção nele ou
peguei fé nele – ora como solidárias com o morto, dispostas a orar a Deus pelo perdão
de seus pecados e sua salvação, em nome da piedade e solidariedade cristã. Em qualquer
dos casos, elas se atribuem, a si próprias, um papel ativo, que posiciona o morto de uma
forma ou de outra, ora como potencial (ou atual) santo, ora como alma necessitada de
oração. Elas assumem um papel ali onde a indiferença lhes seria possível e, a princípio,
talvez mais provável, já que o culto aos mortos no Dia de Finados é concebido
tradicionalmente como um culto privado.
Porém, o que se vê – não apenas no caso das canonizações espontâneas e populares,
como essas de que tratamos aqui, mas também nas homenagens aos mortos célebres de
modo geral, como os artistas – é que não é bem isso o que acontece. Os mortos públicos
são privatizados e alguns mortos de fama duvidosa – em termos morais e também
porque sua celebridade se prende a fatos quase esquecidos – são resgatados em um
movimento modesto, discreto, porém, persistente, que insiste em ramificar nos
subterrâneos, na sombra.
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Não há muita bibliografia sobre esse fenômeno, que, no entanto, ocorre em cemitérios
em diversos países do mundo, na Europa, nos Estados Unidos e em outros países da
América Latina, como Argentina, Colômbia, Chile. Mortos vítimas de morte violenta,
cuja morte causa comoção popular, artistas que morreram no auge da fama, ou pessoas
que gozaram de alguma forma de celebridade, positiva ou negativa de um ponto de vista
moral, têm sido canonizados pela iniciativa popular. E têm sido lá, como aqui, objeto de
uma multiplicidade de discursos, favoráveis e contrários, e de diferentes reações por
parte de diferentes segmentos sociais. Alguns suscitam reações hostis ou críticas da
parte da Igreja católica e outros segmentos religiosos, outros – como Baracho e Jararaca
– são quase completamente ou completamente ignorados por essa hierarquia.
De certa forma, acredito que a escassez de estudos – em particular de etnografias –
sobre esse fenômeno se deva ao pouco valor atribuído às manifestações sociais, e
religiosas, que não estão sob enquadramento institucional nem pertencem ao corpo de
alguma tradição local pública e prestigiada. Mas também é possível que o próprio fato
de persistir nos estudos sobre religião uma dicotomia entre religião – institucionalizada
e comunitária, ordenada em grupos sociais como igrejas ou outras organizações – e
magia ou outras práticas e crenças vistas como residuais, possa contribuir para o
descaso frente a esse objeto, no entanto tão numeroso comum. Basta abrir os olhos para
ele e se poderá encontrá-lo em toda parte. Não há uma única comunidade modesta que
não tenha seu santo local, seu milagroso pau para toda obra, que não necessita – e
muitas vezes nem se deseja – reconhecimento de instituição oficial nenhuma para existir
e persistir como tal. Há um modesto Juazeiro em cada cemitério de bairro, em cada cruz
fincada numa beira de estrada onde morreu alguém de uma má morte. A diferença entre
o culto de fama nacional, de uma personagem que consta nos registros da história
oficial, e o culto nos cemitérios desses milagrosos pouco conhecidos para além do local
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ou da região, é antes de grau que de natureza. No entanto, essa diferença tem, sim,
alguns efeitos. Mas suas implicações podem ser positivas. Há nele um espaço de
indeterminação maior, que tende a ser ocupado pelos devotos. Eles constroem seus
santos, à sua maneira, e devotam-se a uma empreitada de salvação e resgate, que tem
seus próprios motivos. Não necessariamente religiosos, embora também o sejam, e
sejam conceptualizados nesses termos.
Nem só de ‘grandes acontecimentos’ é feita a vida social, nem só deles vive a memória
de um povo. Aliás, o que é ‘grande’ ou ‘pequeno’, mais ou menos significativo,
obviamente é relativo ao ponto de vista no qual cada um – ou cada segmento social – se
coloca. Como determinar que tal ou tal objeto é insignificante, quando em torno dele
são tecidas narrações entrelaçadas a outras narrações, e a lendas tradicionais, contos
maravilhosos, narrativas históricas, crônicas jornalísticas, depoimentos pessoais,
lembranças de infância... E tudo isso continua sendo transmitido diariamente, não
apenas na grande ocasião de encontro e reconhecimento recíproco que o Dia de Finados
anualmente propicia. O pensamento selvagem toma emprestado de diversos domínios
seus materiais para fazer algo novo-velho, já muito visto, porém inédito, nunca o
mesmo. Nem um morto milagroso é igual ao outro, embora os casos – inclusive
estrangeiros – tenham muito em comum.
Não posso dizer que tenha propriamente escolhido os casos de que tratarei aqui, posto
que um encontro fortuito me colocasse diante de um deles, e que me permiti segui-lo
sem saber a princípio muito bem atrás do quê eu seguia. Sei que não é exatamente isso o
que se espera que se diga na apresentação de um trabalho acadêmico. Porém, acredito
que faz parte da originalidade desse trabalho tomar emprestado de seu objeto algo de
sua indefinição, de sua hesitação em ser, e aceitar sua fluidez como uma característica
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positiva e singular desse pensamento e desse modo de estar no mundo. E aqui já não sei
se falo da devoção, do santo ou de mim mesma.
Os mortos que hoje fazem milagres em Mossoró e Natal não são, do ponto de vista de
seus devotos e simpatizantes, exatamente santos, no entanto são tratados por eles como
tais; não são exatamente mortos da família a serem visitados obrigatoriamente no Dia de
Finados, mas são tratados como tais; não foram no passado exatamente Robin Hoods,
protetores dos pobres, mas para muitos é o que foram; e para esses mesmos foram
também criminosos, ou bandidos, cruéis, destacados em sua época por sua maldade
incomum. Sua conversão teria se seguido ao seu arrependimento pelos mal feitos, e
esta, por sua vez, teria decorrido da experiência transformadora – e, portanto,
positivamente valorizada - do sofrimento intenso vivido nas circunstâncias que
culminaram em sua morte. Essa morte é tratada, assim, como um rito de passagem que
instaura para eles – menos que uma identidade – uma nova situação: o bandido vira
santo. Mas essa transformação está ainda em processo, ela nunca se consumou nem
parece que se consumará. O bandido menos é santo do que está santo, e isto somente na
medida em que algumas pessoas se dispõem a ser devotas, em uma dinâmica sempre
instável, tão incerta quanto o destino póstumo do morto, alvo de constantes
especulações, parece ser.
No próximo capítulo, apresentarei um breve perfil de cada caso e os contornos gerais
que caracterizam essas devoções, nesses dois casos. Esse perfil será baseado nas
diversas narrativas, de diferentes tipos, que circulam sobre eles, e principalmente
naquelas que colhi diretamente nas entrevistas e conversas com seus devotos. Trata-se,
portanto, de narrativas parciais, construídas a partir de um lugar interessado – como de
resto todos os outros tipos de narrativas o são, inclusive aquelas formuladas por
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historiadores profissionais e jornalistas que afirmam narrar os fatos, ou o que realmente
aconteceu.
Nesse primeiro capítulo falo também sobre a construção do objeto de pesquisa, o
desenrolar do trabalho de campo. Sobre como esse campo, pela singularidade do seu
objeto, só poderia ser desenvolvido ao longo de um período relativamente extenso de
tempo, que tornasse possível vivê-lo em seu dinamismo e instabilidade. O próprio fato
de seu ponto alto, no plano ritual, estar preso a uma manifestação anual, coloca
determinações que precisam ser levadas em conta na escolha e elaboração de uma
metodologia de trabalho. Ressalto, ainda, nesse capítulo o caráter artesanal dessas
devoções no cemitério, o caráter espontâneo dessas canonizações e suas implicações e
possíveis significados. Por quê, com tantos santos já tradicionais e tão queridos, e
mesmo alguns milagreiros populares já legitimados pela tradição (como Padre Cícero
ou, em Natal, Frei Damião e Padre João Maria), o povo teima em continuar inventando
novos santos, teima em tornar milagrosos determinados mortos? Aliás, quais os critérios
para a seleção desses mortos? Por que alguns recebem esse tratamento ritual póstumo, e
não outros? Elaboro então algumas interpretações sobre essas devoções e procuro
delinear alguns dos seus possíveis critérios e contornos sociais e simbólicos.
No capítulo 2, inicio pelas narrativas consagradas sobre a história de Jose Leite de
Santana, o Jararaca, e de João Baracho. Narrativas estas que tomam por referência obras
de jornalistas e historiadores, bem como o saber popular que passa de boca em boca,
sobre os fatos não tão remotos em que foram (tornados) personagens centrais. Não
privilegio um tipo de narrativa como sendo, a princípio, mais verdadeira – ou factual –
do que outra, até porque quase tudo o que pude encontrar em livros de história ou
sociologia do cangaço relativo à invasão de Mossoró e Jararaca tinha como fonte as
notícias dos jornais da época, aos quais tive acesso direto. Ou seja, uma fonte informa e
- 10 -
contamina a outra, que a reelabora. Desse circuito, faz parte, inclusive, esta tese, a partir
de agora. ´
É nesse segundo capítulo que apresento uma etnografia das prestações rituais oferecidas
a esses santos no cemitério, na qual descrevo os ritos, os comportamentos dos devotos e
dos demais presentes no local, as oferendas mais comuns e seus possíveis significados.
Para tanto, não deixo de considerar o contexto mais abrangente no qual tais ritos têm
lugar: o Dia de Finados, dia de prestações de cultos funerários, sua localização no
campo santo que é o cemitério, e as religiosidades que o atravessam e confere sentido a
muitas de suas práticas.
O cemitério será o assunto do capítulo 3. Achei importante, para contextualizar melhor
as devoções que nele têm lugar, saber mais sobre sua história, sua inserção na paisagem
urbana cotidiana – nesses casos específicos – e as relações sociais que ocorrem dentro
dele, no cotidiano. O cemitério é sagrado e profano, é trivial e é tabu. Depende da
relação que se tem com ele, mas também depende do momento, da situação. Para aquele
que trabalha dentro dele diariamente pode ser um lugar como outro qualquer, assim
como para quem mora nas suas vizinhanças. Ou não. Mesmo a proximidade pode ser
incapaz de apagar a nota de alteridade que parece caracterizá-lo para a maioria das
pessoas. Cemitério é um lugar aonde não se vai, de modo geral, nessas duas cidades. Ao
contrário do que ocorre em outros lugares – e já foi comum em outras épocas – o
cemitério não é lugar agradável e tranqüilo para meditação, nem local de passeio e
diversão. Pelo contrário, via de regra é local a ser evitado, associado que está à morte
como perda, ao luto e ao sofrimento. Sem falar nos perigos sobrenaturais. Sobre esses
perigos também falarei: há todo um conjunto de contos maravilhosos e crenças em torno
de mortos perigosos, vingativos, assombrações e almas penadas. Mas, além do perigo
dos mortos, falo também do perigo dos vivos vistos como ameaçadores: os criminosos e
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os bruxos, que têm suas próprias regras no uso desse espaço, inclusive têm para isso um
tempo próprio, a escuridão da noite. O cemitério: ganha-pão, perigo sobrenatural,
abrigo, exílio e ocultamento.
No quarto e último capítulo, retomarei o fio da descrição dos ritos e o das narrativas
maravilhosas, dentre outras falas típicas do culto no cemitério, ao focar a análise na
dimensão discursiva do ritual. Falar é fazer: a fala no rito, ao narrar o milagre
alcançado, principalmente sob a forma de testemunho direto daquilo que se viveu, não
apenas comenta sobre o culto, mas o sustenta. Sustenta a crença em sua eficácia e
contribui para sua reprodução social, sua permanência. Procurei então descrever quem
pode e deve falar, sobre o quê e de qual forma. Qual o valor de cada tipo de fala
enunciada durante o culto?
Há, basicamente, um desdobramento entre as falas sobre o passado e as falas sobre os
milagres póstumos. Estas últimas são falas do tipo depoimentos e testemunhos, mas
algumas também assumem uma conotação de causo, de lenda. Não é necessário nem
produtivo opor relatos factuais a causos maravilhosos, posto que em toda narrativa
sobre milagre, a despeito de sua extrema naturalidade, sempre resta um quê de
maravilhoso. A própria fala que anuncia o milagre acontecido parece ser miraculosa,
capaz de semear a fé no coração do passante incrédulo ou indiferente.
As narrações sobre o passado eu distingui em três categorias, mais como recurso para
organizar a exposição do que por suas diferenças intrínsecas, posto que uma categoria
possa sobrepor-se a outra: as histórias maravilhosas, que procuram mostrar um Baracho
e um Jararaca já com um pé no sobrenatural, seres incomuns já durante sua vida; as
lendas da “vida de bandido”, as histórias sobre seu passado ‘histórico’; e as narrações
que contêm elementos típicos da hagiografia tradicional, com seus temas preferenciais,
como a redenção pelo sofrimento. Por fim, para encerrar o capítulo, falo sobre os
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conflitos verbais, que têm relação com as diferentes leituras que se faz do passado, mas
também com os diferentes valores que informam a visão de mundo de diferentes
segmentos sociais que se encontram no cemitério - mas também, é claro, fora dele.
Esses conflitos remetem freqüentemente para figuras que, a esta altura, já teremos
encontrado nos capítulos anteriores, como aquelas que associam o culto à sujeira
(capítulo 2 e 3) e às práticas sociais e religiosas ilegítimas (capítulo 3). Assim,
encerraremos este trabalho com o tema da controvérsia, da equivocidade desses santos,
sem dúvida, sua principal característica.
Mais do que tudo, meu interesse era flagrar e retratar um fenômeno vivo, uma
‘santidade’ em processo de fabricação, invenção, com um olhar que valorizasse o
pequeno, o instável, o aparentemente irrelevante. Fora do domínio dos discursos prontos
e dos espetáculos elaborados por determinados agentes e destinados a outros segmentos
sociais. Algumas palavras de Oscar Calávia Sáez, no primeiro livro (o único de um
antropólogo) que encontrei sobre devoções similares no cemitério da Saudade, em
Campinas, logo que comecei a me interessar em pesquisar o assunto, me acompanharam
durante todo esse tempo. Ele diz que os santos nascem, crescem e morrem e que esse
processo “merece ser descrito”. E contrapõe essa escolha àquela da tomada de sistemas
religiosos ‘prontos’ como objeto de pesquisa. É claro que ele sabe, e eu também, que
em certo sentido nada está, jamais, pronto. Tudo é processo. Mas, de fato, já se pode
notar uma diferença entre as possibilidades de trabalho, inclusive em termos de uma
metodologia, junto a uma canonização popular na qual a família se empenha como
mediadora, e uma inteiramente entregue à própria sorte. A escolha desta última traz
algumas dificuldades, de que falarei a seguir, mas também traz algumas possibilidades
que um objeto mais ‘fechado’ talvez não permitisse. Espero ter sido capaz de preservar
desse fenômeno, no meu próprio relato acadêmico, a sua vivacidade, a despeito do
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quanto possa ser estranho à rigidez da escrita e deste gênero de texto em particular, que
não tem como fugir a certas convenções.
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Capítulo 1. Santos Feitos à Mão: Devoção e Memória Popular
Sentimo-nos mais à vontade para estudar as crenças, religiosas ou outras,
quando compreendemos que a verdade é plural e analógica. Esta analogia da
verdade faz com que a heterogeneidade dos programas [de verdade] passe
despercebida; (...) a nossa sinceridade é total quando nos esquecemos dos
imperativos e usos da verdade de há cinco minutos para adotarmos os da nova
verdade.
(Veyne 1987)
Quando nasci, em Março de 1966, minha mãe, em cumprimento a uma promessa que
havia feito durante sua gravidez, batizou-me Tânia. A promessa fora feita ainda sob o
impacto das notícias e discussões sobre o crime cometido pela “Fera da Penha” seis
anos antes: a menina Taninha, Tania Maria Coelho Araújo, de 4 anos de idade, havia
sido assassinada pela ex-amante de seu pai, como vingança pelo fim do romance. Tânia
foi alvejada com um tiro na cabeça e teve seu corpo incendiado em um terreno atrás de
um matadouro na Penha, subúrbio do Rio de Janeiro. Nesse local, logo se estabeleceu
um pequeno santuário onde os visitantes oravam pela alma da menina e pediam-lhe
graças. Essa é a versão que circulava nos jornais, revistas e programas de rádio
populares na época e que foi, em 2003, dramatizada pela Rede Globo em uma edição
especial do programa policial Linha Direta1.
1 O site da OAB-RJ, Ordem dos Advogados do Brasil, contém um resumo dos acontecimentos desse caso: http://www.oab-rj.com.br/content.asp?cc=90&id=606 Ver também a matéria de O Cruzeiro de 30 de Julho de 1960, no site Memória Viva: http://www.memoriaviva.digi.com.br/ocruzeiro/30071960/300760_1.htm
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Minha mãe ficou então muito impressionada com esses acontecimentos, continuamente
comentados no rádio2, e juntou suas preces às de tantos outros fiéis que pediam graças a
Taninha, tendo feito, em casa mesmo, sua promessa: se sua primeira filha nascesse
saudável, ela lhe daria seu nome. Minha mãe tinha então dezenove anos. Capixaba, ela,
e meu pai paraibano. Nenhum dos dois tinha família no Rio de Janeiro. De fato, nasci
saudável, e a promessa foi devidamente cumprida.
Pouco mais de 30 anos depois, em novembro de 1998, quando orientava uma
monografia de final de curso de graduação3 sobre possíveis mudanças recentes nos
cultos funerários na cidade de Natal, decidi acompanhar a aluna, Maria do Socorro, em
uma pequena viagem a campo a Mossoró, cidade que fica a 277 km de Natal, a capital
do estado do Rio Grande do Norte. Ela queria observar os cultos no principal cemitério
daquela cidade durante o feriado de Finados, uma vez que já dispunha de material, que
coletava há algum tempo, sobre os cultos em Natal. Eu, por minha vez, me interessei em
Na matéria, lê-se: “O pequeno pedaço de chão onde a criança morreu queimada, após levar tiro na cabeça, foi cercado por barras de ferro, imitando um pequeno berço, por um popular anônimo. No dia seguinte à morte de Tânia, já se erguia no local uma cruz branca, e, desde então, a peregrinação não cessou. Começa de manhã e vai até altas horas da noite. Senhoras, moradoras nas imediações, contam que cerca de 1.000 pessoas por dia, muitas vindas de longe ou em trânsito pelas rodovias Rio - São Paulo e Rio - Petrópolis, vão até o local onde morreu a “Flor do Campo”. Este é o nome que poetas desconhecidos deram à pobre menina. À cruz estão pregados poemas de louvor e glorificação à pequena vítima. Esses poemas falam: “Ó Santa menina - O mundo não era teu - Tu foste predestinada - Para a glória do céu”. Também foi pregado à cruzinha branca o “Hino à Flor do Campo”, com estrofes assim: “Ó menina imaculada - Ó meu anjo salvador - Aqui, aqui te louvamos - Com a nossa imensa dor”. Continua: “Vamos todos para o campo - Lá morreu a nossa flor - Aqui, aqui te ofertamos - Todo nosso grande amor”. E o Hino termina: “Este campo consagrado - É da filha do Senhor - Aqui, aqui nós rezamos - Ó meu anjo salvador”. Em volta do pequeno carneiro improvisado, oram, ajoelhadas, mulheres idosas, mocinhas e crianças, como se estivessem ante um altar.” 2 Palavras da minha mãe: “Só se falava nisso na época”. Anos depois do crime, ele ainda era notícia, tanto pelo crime em si como pelas repercussões do culto religioso prestado a Taninha no santuário popular.
3 Em Ciências Sociais, com concentração em Antropologia, na época no Departamento de Ciências Sociais da UFRN, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, onde era professora dessa disciplina desde agosto de 1996. Atualmente estou lotada no Departamento de Antropologia, fundado posteriormente, na mesma universidade.
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acompanhá-la para conhecer a cidade em companhia de alguém que já a conhecia bem,
mas me propus também a acompanhá-la ao cemitério.
Durante essa visita ao cemitério, não tardou a que o aglomerado de pessoas em torno de
um túmulo simples pintado de azul, o qual assumia de tempos em tempos a forma de
uma fila que o circulava, me chamasse a atenção, tanto quanto o que me pareceram
pequenos focos de incêndio nas laterais do túmulo devidos ao excesso de velas. Supus
tratar-se de morto de prestígio, ainda que humilde fosse o túmulo, alguém muito querido
no lugar. Aproximei-me muito curiosa, mas antes mesmo de chegar muito perto, minha
aluna, que até então estava distraída por outro objeto, já começava a me contar: Esse aí
é o Jararaca, era cangaceiro... o povo diz que é santo, que faz milagre...
Jararaca, ou José Leite de Santana, foi um cangaceiro, ex-militar, que juntou seu
pequeno bando ao bando mais numeroso e conhecido chefiado por José Virgulino da
Silva, o Lampião, para participar do ataque à cidade de Mossoró em Junho de 1927.
Durante esse ataque, os cangaceiros foram recebidos à bala por uma força armada
formada por homens da cidade, que se organizaram para resistir a essa invasão e
obrigaram os cangaceiros a recuarem e fugirem em disparada. Até hoje, esse evento é
um marco na história da cidade e referência fundamental para sua elite política, para os
valores em torno dos quais sua imagem vem sendo construída por ela: resistência à
opressão em nome da liberdade e de outros valores identificados com a modernidade.
Afirmam os cronistas do cangaço que Lampião teria hesitado muito em tomar a decisão
de invadir Mossoró, posto que esta fosse, já então, uma cidade de perfil moderno, com
duas agências bancárias e quatro igrejas católicas, o que, para o misticismo do
cangaceiro, teria sido um mau presságio. Era, por outro lado, por essas mesmas razões,
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uma cidade próspera. O bando de cangaceiros4, familiarizados com o sertão à antiga,
invadiu a cidade e dela saiu derrotado.
Durante a fuga, Jararaca, um dos líderes, foi ferido à bala e deixado para trás pelo
bando. Delatado mais tarde em seu esconderijo, foi preso pela polícia e depois, segundo
se acredita, lançado ainda vivo em uma cova no cemitério São Sebastião, após levar
uma pancada na cabeça e um tiro. Isto foi o que ficou mais marcado na memória
popular: Jararaca teria sido enterrado vivo. É nisso que acreditam seus devotos, é isso
que narram os cronistas da invasão5. A versão oficial, veiculada pela própria polícia e
outras autoridades nos jornais, é que teria sido sepultado normalmente após sua morte
na prisão, ou que teria morrido durante o trajeto até a capital, para onde estaria sendo
transferido.
Fiquei a princípio mais curiosa e espantada do que interessada de maneira profissional
no caso de Jararaca. Tinha então poucas referências teóricas e etnográficas sobre o
assunto – fosse religiosidade popular, fosse cultos funerários, ou cangaço - e vinha, nos
últimos anos, desde o mestrado, estudando rituais indígenas das terras baixas da
América do Sul6.
Não tenho religião e sempre tive certa aversão pelo universo religioso, de certa forma
muito familiar, e um tanto sufocante para mim devido à intensa e sincrética
religiosidade do meu ambiente familiar e social mais imediato, onde me habituei a ver
4 Não se sabe o número exato, mas as narrativas de cordel e algumas versões jornalísticas falam em cerca de sessenta cangaceiros. 5 Cascudo 1999, Almeida 1981, dentre outros. 6 Uso ritual das bebidas fermentadas, principalmente durante as festas intertribais, que foi o assunto da minha dissertação de mestrado no PPGAS/Museu Nacional, sob orientação de Eduardo Viveiros de Castro.
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as pessoas irem da simpatia para encontrar um objeto perdido à devoção aos santos, da
doutrina espírita à conversão protestante.
Nunca acreditei em nada disso. Quando criança, abandonei por minha vontade o curso
de catecismo e me recusei a fazer Primeira Comunhão. Minha mãe me disse então que
não me forçaria a prosseguir porque tinha certeza de que mais tarde eu sentiria falta da
religião e a procuraria por iniciativa própria. Isso nunca aconteceu, embora eu tenha me
interessado pelo assunto desta outra maneira. Através do trabalho de pesquisa,
reencontrei não apenas a religião, mas, mais especificamente, esta forma de
religiosidade que teve um papel no começo da minha história.
Em um primeiro momento, enquanto observava a devoção mostrada por aquelas
pessoas, a maioria de aparência muito humilde, junto ao túmulo de Jararaca, me peguei
pensando com os meus botões que era um absurdo, um contra-senso, assimilar um
cangaceiro a um santo. Meus preconceitos vieram à tona. Eu pouco sabia sobre cangaço,
pouco sabia sobre santos, e menos ainda sabia sobre aquelas pessoas ou aquele lugar.
Mas na minha cabeça a oposição era entre um bandido e um santo, o mal e o bem, e foi
assim que a princípio pensei sobre o que estava vendo e ouvindo. Mais tarde eu veria
inúmeras vezes esse meu espanto inicial se replicar nas reações das pessoas que fui
conhecendo através dos anos de pesquisa, ou daquelas que me ouviam falar do tema
pela primeira vez.
No entanto, embora naquele dia, em Novembro de 1998, minha aluna estivesse
interessada em observar o movimento dentro e nos arredores do cemitério, e eu a
acompanhasse, eu não conseguia parar de pensar no que havia visto junto àquela
sepultura em particular, a de Jararaca, e minha atenção se voltava a todo o momento
para aquele ponto, para o aglomerado no local. Ainda retornamos lá mais uma vez antes
de irmos embora do cemitério. Tomei algumas notas em minha caderneta, fiz algumas
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perguntas aos devotos, tirei fotos. Gravei discretamente um tanto do burburinho geral,
peguei alguns trechos de conversas em andamento – nas quais pude ouvir variantes da
versão da história de Jararaca, principalmente de sua morte e dos milagres póstumos,
que minha aluna havia me contado resumidamente há pouco. Logo ensaiei participar de
uma ou outra conversa. Perguntas de novato as que eu fiz então, eu entenderia depois, as
mesmas que ouvi tantos outros fazerem depois de mim, e até para mim, como visitante
assídua que desde então me tornei.
Depois, saímos do cemitério, circulamos por seus arredores, repletos de comerciantes de
flores, velas, água mineral, e partimos, pois tínhamos já cumprido o objetivo principal
da viagem. Eu então não sabia quantas vezes ainda retornaria àquele lugar com o único
objetivo de conhecer mais sobre a devoção ao cangaceiro Jararaca, que logo se
expandiria para o interesse em conhecer mais sobre a cidade de Mossoró e sobre outras
devoções similares a essa. Nessa ocasião, eu não me lembrava que uma dessas devoções
estivera na origem do meu próprio nome.
De volta à Natal, com os jornais daquele feriado de Finados trazidos de Mossoró, que
estampavam na primeira página fotografias do túmulo de Jararaca, logo comecei a
indagar aqui e ali sobre o assunto e, de indagação em indagação, acabei encontrando
João Baracho, o ladrão e “matador de motoristas7”. A própria aluna Maria do Socorro,
que acompanhei a Mossoró, veio a me contar muito sobre esse caso, que se misturava às
memórias de sua infância em Natal.
Fui levada a Baracho pelas lembranças das pessoas, vizinhos, alunos, conhecidos com
quem conversava a respeito do que ouvira sobre Jararaca e que me diziam “tem também
7 Motoristas de jipe, o táxi de então (final dos anos 50-início dos 60). Baracho era ladrão, mas, após sua prisão por roubo, confessou o assassinato de um dos motoristas. Foi fuzilado pela polícia após fugir da cadeia, em 1962.
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o Baracho, que também era bandido e...” morreu, faz milagre, tem devoto, dizem que é
santo. Cada um completava a frase à sua maneira, mas parecia que a aproximação entre
essas duas personagens se dava em termos da sua localização em uma mesma categoria,
ainda que muito abrangente: a de bandido. Porque era raro, mesmo em Natal, que as
pessoas comparassem Jararaca a Frei Galvão ou Baracho ao Padre João Maria8.
Então, inicialmente, aceitei esse recorte apresentado nos discursos locais e parti para
uma investigação sobre quem seria Baracho, qual seria sua história e como seria seu
culto no cemitério. Neste caso, posso dizer que minha aproximação ao seu culto foi
precedida por algum conhecimento prévio, não só por meio de relatos orais, mas
também através da leitura das matérias publicadas nos jornais daquele ano sobre o Dia
de Finados e de uma monografia (TCC de Comunicação Social9) que sistematizava as
notícias publicadas nos jornais da época de sua morte. Nos jornais dos anos anteriores,
que vim a pesquisar depois nos arquivos das redações, pude observar a repercussão de
seu culto no cemitério, quase invariavelmente nas primeiras páginas dos jornais nas
chamadas das matérias relativas ao Dia de Finados, nas imediações da data anual. O
mesmo ocorria em relação ao culto a Jararaca em Mossoró.
Ao cemitério do Bom Pastor, bairro da periferia pobre de Natal, fui para pesquisar ao
longo do ano seguinte, 1999, e quando chegou a véspera do Dia de Finados estava já
munida de muitas informações. Nesse primeiro feriado de Finados em que pesquisei
8 Cultuado em seu túmulo no cemitério do Alecrim (Natal) e em uma praça mal cuidada no centro de Natal, onde existe um busto seu. João Maria Cavalcanti de Brito, nasceu em 23 de junho de 1848, no município de Jardim de Piranhas. Ordenado padre, no Ceará, com apenas 23 anos, realizou a primeira missa em Caicó e assumiu a paróquia de Nossa Senhora da Apresentação, em 1881. Morreu em 16 de outubro de 1905, de varíola. Ao “santo de Natal” são atribuídas inúmeras graças. Em 2002 teve início o processo para beatificá-lo e, desde então, suas graças vêm sendo registradas. Padre João Maria faz parte da memória oficial da cidade e do Estado, sendo uma de suas personagens ilustres. Dá nome a municípios, tem estátuas em sua homenagem e foi lembrado, na passagem do centenário da sua morte, em 2005, por várias instituições educacionais e culturais de Natal. 9 Sousa et alii 1994.
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lá10, levei os instrumentos habituais de pesquisadora de campo - além do principal:
olhos e ouvidos atentos - o caderninho de notas, o gravador, a máquina fotográfica. Mas
acabei não usando nada além de conversa, uma caixa de velas e outra de fósforos que
comprei de um ambulante junto ao portal principal do cemitério.
Eu já havia estado no cemitério antes, já sabia a localização do túmulo, mas mesmo que
não soubesse não teria sido preciso perguntar, pois lá estavam, sobre ele, alguns dos
índices da devoção popular de que já muito ouvira falar: algumas garrafas de água11,
flores, santos quebrados, um pé e um dorso de madeira, além de outros ex-votos, mais
antigos, atrás do túmulo... Também atrás, um queimador de velas, onde muitas já
haviam sido queimadas e outras ainda ardiam, ali e nas laterais. Os mesmos dons que
viriam a se multiplicar no decorrer da véspera e do Dia de Finados.
Tudo muito parecido ao que eu havia visto no túmulo de Jararaca, inclusive os ex-votos,
exceto pelas garrafas de água. Eu havia ouvido falar delas e visto fotos nas matérias dos
jornais Diário de Natal e Tribuna do Norte, mas o máximo que já havia encontrado em
visitas anteriores durante o ano foram não mais que duas ou três garrafas sobre o túmulo
e os velhos ex-votos de madeira (e algumas placas) atrás do túmulo, junto ao queimador
de velas.
“Baracho morreu com sede” parece ser o equivalente, no contexto do seu culto e de sua
história, a “Jararaca foi enterrado vivo”. São imagens emblemáticas. Ambas as frases
estão dentre as mais repetidas por aqueles que conhecem os eventos protagonizados por
eles, no passado e no presente. No passado: suas mortes violentas em diferentes épocas
e contextos de conflito social – Jararaca e a invasão fracassada a Mossoró, 1927;
Baracho e a busca ao “matador de motoristas” em Natal, 1962. Hoje: os rituais 10 Em parte lá, em parte em Mossoró. Eu começava a ir ao cemitério alguns dias antes de Finados, já sabendo que várias pessoas preferem antecipar as visitas aos parentes falecidos ou o pagamento de suas promessas aos mortos milagrosos ou ‘santos’ do cemitério. 11 Que se multiplicariam, como os ex-votos, nos dias 1 e 2 de Novembro, o Dia de Finados.
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póstumos que os sacralizam, diferenciando-os dos demais finados, sem deixar de estar
em continuidade com os cultos funerários tradicionais e com o culto dos santos
católicos oficiais.
Na matriz histórica desse culto aos santos católicos esteve um culto aos mortos
semelhante a este que podemos observar hoje. Esse culto aos mortos na Antiguidade
tardia (Brown 1984; Vauchez 1981 e 1994) logo se tornaria culto às relíquias, dando
origem a uma forma de santidade local: o morto sacralizado em um movimento popular
espontâneo, mais tarde impulsionado talvez por autoridades locais interessadas no
prestígio trazido pela existência de um santo, tornar-se-á o santo a ser cultuado na
tumba. O contato físico com o local, no cemitério, é fundamental nesse modelo de
santidade. Daí a valorização do deslocamento espacial como forma de penitência estar
vinculada ao surgimento desse tipo de santidade vinculada a um determinado espaço: as
romarias e peregrinações eram o único meio de conseguir estar próximo ao santo, às
suas relíquias12.
Por ter se tornado incompatível com o anseio de centralização do poder pela Igreja,
novos mecanismos para controlar o surgimento dos santos viriam a ser estabelecidos e
esse tipo de santo – o mártir local, alçado a essa condição pelo julgamento popular -
logo seria substituído pelo homem de virtude, atestada por um processo de investigação
jurídica altamente regulado e inteiramente controlado pela hierarquia católica. O santo
local, tipicamente o mártir popular, desaparece para dar lugar ao homem virtuoso,
tipicamente um monge13. Isso não significa, porém, que, a despeito da reprovação pela
12 Mais tarde, o culto às imagens irá produzir o efeito inverso, liberando o fiel da necessidade de deslocamento, uma vez que tornará possível ter do santo uma representação caseira, no altar doméstico, e cultuá-lo ali mesmo. 13 É claro que estou nesse resumo esquematizando e simplificando, em termos polares, uma evolução complexa que teve gradações e vários modelos intermediários, mas que escapa aos objetivos deste trabalho explorar. Algumas obras importantes como referência desse processo em todas as suas nuances e variações históricas são Brown 1984 e Vauchez 1981 e 1995.
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Igreja, os mártires não tenham continuado a desfrutar de prestígio junto aos populares e
a receber o tratamento ritual devido aos santos ainda por muito tempo.
De certa forma, as sacralizações espontâneas dos mortos nos cemitérios, no Brasil e no
mundo14, parecem atestar uma continuidade desse primeiro modelo de santidade,
pautado menos na virtude do que no sofrimento purificador, positivo, como operador da
conversão à santificação. No entanto, trata-se menos aqui de afirmar continuidades
históricas – posto que o inventário das descontinuidades ou do sincretismo cultural do
qual emergiriam os sentidos dessas devoções em cada lugar possivelmente seriam ainda
maiores e mais significativos – do que de tomar essa aparente continuidade como um
sinal da profunda vitalidade e importância de que certos valores-base do cristianismo
continuam a desfrutar, a despeito de não serem os valores eleitos pela instituição.
O caráter redentor do sofrimento, e o necessário (não contingente) arrependimento que
decorreria dele, ainda parece ser a via preferencial para a santificação do ponto de vista
que poderíamos chamar de popular, isto é, nas santificações oficiosas. Mesmo em casos
como o das crianças doentes, como Odetinha, no Rio de Janeiro, e Antoninho da Rocha
Marmo, em São Paulo15, em cuja configuração bio-hagiográfica as precoces virtudes
cristãs muito valorizadas no modelo institucional – fé, caridade e resignação no
sofrimento – estão presentes no discurso popular, ainda é para o sofrimento que é dado
maior destaque. Para o sofrimento e para os milagres, tanto aqueles que teriam
promovido em vida (cura, vidência) como os póstumos. Para seus devotos, aliás, sequer
parece fazer sentido opor virtuoso a miraculoso – ou vida (santo-confessor) e morte
(santo-mártir) - posto que o milagre seja tomado como prova do merecimento do morto
em fazer o papel de intercessor entre Deus e aqueles que ainda penam aqui na terra. 14 Ver Terrain 1995, Losonczy 2001, Plath 1995, Coluccio 1986, Sáez 1996, Schneider 2001, Medeiros 1995, Frade 1987. 15 Para as fontes, ver, respectivamente, Frade 1987 e 1984; e Schneider 2001.
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Não importa, aliás, sequer que seja realmente santo, isto é, que esteja salvo; importa é
que a possibilidade de sua salvação esteja inscrita no rito ao alcance de cada humilde
fiel: acender a vela para sua alma e rezar por sua salvação. Nessa reza, pode-se incluir
um pedido de auxílio, uma promessa e, assim, nesse movimento, promovê-lo à condição
de intercessor, na qual se estabelece e se firma a cada milagre que lhe é atribuído.
Na formulação radical de uma devota que ouvi de passagem no Dia de Finados de 2005:
Somos tudo pecador. Quem matou, quem não matou, é tudo pecador do mesmo jeito.
Quem sou eu pra julgar. Aqui na terra é tudo pecador. Ou como me disse dona
Sebastiana, uma das primeiras informantes: Ninguém quer saber o que a pessoa fez [em
vida], minha filha. Quer saber é do coração.
O Trabalho de Campo
Como fazer um campo no cemitério? Primeiro, é possível fazer uma etnografia do
cemitério como espaço social, do seu cotidiano, de sua população fixa de trabalhadores,
dos visitantes, mas não era esse o objetivo principal do trabalho.
O objetivo principal da pesquisa era entender os processos de sacralização desses
mortos comuns e a singularidade dessa devoção, por meio da observação de seus ritos,
compreendidos como processos que incluiriam uma dimensão discursiva na qual é
elaborada uma memória social dessas personagens, de sua vida e de sua morte, para a
qual a distinção entre acontecimento e mito nem sempre é relevante, e mostra-se, de
toda forma, muito variável.
Por que, na boca dos informantes da pesquisa, mesmo fora do contexto imediato do
culto dentro do cemitério, a invasão de Mossoró é antes a história do Jararaca
“enterrado vivo” do que do prefeito Rodolfo Fernandes, que liderou a “resistência” aos
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cangaceiros e saiu vitorioso? Por que é o túmulo do cangaceiro o mais visitado do
cemitério São Sebastião no Dia de Finados, enquanto o mausoléu do prefeito, que o
discurso oficial apresenta como herói, permanece a maior parte do tempo esquecido?
Essa elaboração da memória do cangaceiro que foi enterrado vivo, bem como a do
“matador de motoristas” que “morreu pedindo água”, é realizada por seus devotos no
cemitério, durante o culto, mas também fora dele, nas conversas familiares e entre
vizinhos. Mas também por outros agentes sociais como os órgãos da imprensa
(principalmente os jornais) e cronistas da história local, como os cordelistas e os
historiadores e folcloristas16. Nesse sentido, o cemitério foi tratado inicialmente antes
como um cenário onde o culto se desenrolava do que como objeto em si a ser
investigado.
No entanto, na medida em que a pesquisa avançava ia ficando mais claro para mim que
a devoção era indissociável de outros cultos prestados dentro do cemitério, e dos
significados e valores, das normas e regras de conduta, associados ao próprio cemitério
como espaço social singular. Era também indissociável das idéias e condutas relativas à
morte e aos modos de morrer, tais como social e culturalmente percebidos e
classificados.
Compreendi que essas devoções são ainda uma espécie de culto funerário e que
entendê-las também é parte do caminho a ser percorrido para entendermos como certos
segmentos sociais enfrentam as interrogações em torno da morte, especialmente nos
casos em que ela irrompe no cenário da vida cotidiana de maneira considerada abrupta,
disruptiva, violenta. Falar sobre a exceção também ajuda a iluminar as regras, a rotina.
Por quê a morte violenta e pública dos bandidos e de outras personagens marginais, ou
melhor, excepcionais de alguma forma – a prostituta ou o mendigo, o escravo, a criança,
16 Almeida 1981; Cascudo 1999; Nonato 1955; e os cordelistas Gonçalo Ferreira da Silva, Concriz, Zé Saldanha, dentre outros.
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o artista, todos de alguma forma percebidos como não-triviais ou fora dos padrões
considerados rotineiros em sua época e lugar –, a despeito de suas diferenças, parece ser
tão indigesta a ponto de exigir da sociedade uma reação mais forte no sentido de
elaborá-la, de formular uma resposta e um tratamento ritual para lidar com a realidade
que ela instaura? Claro que toda reação à morte – ou a qualquer outro acontecimento
simbolicamente marcado do ciclo de vida humano – é socialmente elaborada, mas é
como se a morte violenta, ou disruptiva, fosse diferenciada em oposição à morte
considerada normal e previsível.
Mas não se trata apenas do problema de como pensar a morte, e lidar com ela, sobretudo
quando ocorre como um evento disruptivo, desorganizador; mais importante que isso,
neste caso, da possibilidade de lidar com quadros de conflitos sociais públicos e
manifestar em face dele, por meio do ritual, uma leitura divergente daquela apresentada
e veiculada pelas autoridades públicas da época e de agora. Pois que se a versão oficial
– ela própria apresentando suas divergências - da época da morte do bandido é a de que
quem o matou foi herói – os bravos resistentes de Mossoró ou a polícia, e os políticos,
de Natal – a versão popular responde com a promoção póstuma do bandido à condição
de santo, intercessor e auxiliar dos pobres, marginais sociais como ele. Mesmo a
reformulação de sua biografia aponta nessa direção e procura ver no bandido vivo um
Robin Hood, seja no sertão, seja na periferia urbana.
Se a versão dominante hoje, nos depoimentos prestados por representantes cultos e
autoridades públicas nos jornais, rádio e televisão atribuem a crença em Jararaca ou
Baracho à superstição popular, os devotos vêem nisso antes um indício de falta de fé. E
se a igreja católica os ignora ou critica, se sobrepõe ao milagre a virtude, esses devotos
seguem com suas promessas e vêem na eficácia de seus pedidos e de suas oferendas o
único elemento que importa: o sinal de que Deus se manifesta mesmo através das
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formas – e dos intercessores – mais improváveis e de que seus desígnios estão além da
compreensão do homem mais douto sobre a terra.
Mas voltemos então à pergunta: como fazer campo no cemitério? Em parte, dando conta
daquelas questões sobre o próprio cemitério: conhecendo seus usos rotineiros, sua
população de todo dia, e seus usos rituais. Freqüentando-o, portanto. Mas é impossível,
propriamente falando, freqüentar um cemitério. A presença no espaço quase vazio no
dia a dia logo chama a atenção, ainda mais em um lugar pequeno, um bairro residencial
(como é o caso em Natal, no Bom Pastor, onde está Baracho). Logo tive que dizer aos
administradores que fazia um estudo sobre os costumes funerários locais, para justificar
minha presença freqüente por ali. E logo passei a perguntar sobre Baracho e Jararaca
diretamente, sob a alegação de haver notado as oferendas e as manifestações de devoção
em seus túmulos.
Meus cuidados em não chamar a atenção de imediato sobre meu interesse sobre os casos
decorriam do receio de que o simples fato da pesquisa chamasse a atenção para o culto,
por parte dos locais, mas também por parte das autoridades, como os administradores
dos cemitérios e agentes da secretaria de cultura (em Mossoró) e da igreja católica, ou
mesmo a imprensa. Não é difícil chamar a atenção em um lugar relativamente pequeno
como Natal ou Mossoró, principalmente no caso de Jararaca, no qual há um
investimento político e cultural em construir uma leitura oficial dos acontecimentos que
levaram à sua morte e mesmo em consagrar seu túmulo como atração de um turismo
cultural, especialmente atrativo para os estudiosos da história da cidade e em particular
da história do cangaço17.
17 A cidade possui um Museu do Cangaço e é sede da SBEC, Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço, que promove um evento anual sobre o tema, que reúne especialistas do Brasil inteiro para debates e exposições artísticas sobre o tema. Também é responsável pela publicação de cordéis, dos quais alguns versam especificamente sobre a invasão de Mossoró pelos
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Há alguns anos atrás fui convidada a escrever sobre a pesquisa para um suplemento
cultural local que vinha encadernado mensalmente no exemplar de domingo de um
jornal de destaque em Natal, mas declinei18, pois temia provocar efeitos sobre meu
objeto de pesquisa que o modificaria ainda mais do que minha presença ali como
pesquisadora já, inevitavelmente, causava. Que o pesquisador esteja, ele próprio,
incluído no quadro pesquisado não tenho dúvidas. Mas procurei evitar uma interferência
direta e pesada, o que implicou não divulgar minha leitura desses cultos, o que poderia
promovê-los ou colocá-los em evidência de um modo forçado em um espaço da
imprensa que não costuma ser o seu. Poderia ter sido uma experiência, talvez
reveladora, mas confesso que preferi não arriscar.
Mas, ainda havia outro problema: como desenvolver um trabalho de campo sobre uma
devoção que se concentra em uma data anual? Como em toda pesquisa sobre eventos
anuais, como festas de padroeira e carnaval, logo se descobre que aquele momento
anual é apenas o ponto culminante, o mais público, de uma prática que pode estar
aquém, e ir além, dele; que supõe toda uma série de informações em circulação, de
crenças prévias, de idéias discutidas, de outras práticas correlatas. Há toda uma
freqüência ao cemitério diluída no dia a dia; há promessas a serem cumpridas o ano
todo; água a ser benta19 e levada para casa, onde será usada por certo período de tempo,
cangaceiros. Nenhum deles fala, todavia, da santificação póstuma de Jararaca; seu foco é a exaltação da bravura dos cidadãos e do prefeito da cidade, que liderou a “resistência”, embora seja tão importante quanto – o que é lógico – exaltar a bravura e força dos cangaceiros vencidos na batalha (Ver capítulo 1). 18 Convidada novamente este ano, aceitei, porém optei em centrar o pequeno artigo nos cultos funerários e canonizações populares em geral, ao invés de colocar em primeiro plano João Baracho e Jararaca. 19 Coloca-se a água sobre o túmulo e depois de passar algum tempo orando em frente ao recipiente, e uma vela acesa, leva-se a água para casa. Ou então, toma-se, no caso do culto a Baracho, no qual as vasilhas de água são comuns, alguma vasilha que já estava lá. A
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que pode chegar a semanas para tratar alguma doença; há os aniversários de morte dos
defuntos milagrosos20, quando é importante para os devotos mais fiéis (principalmente
os que têm voto com o santo) visitar o túmulo, e alguns vêm de longe para isso.
Além disso, o próprio fato de alguns devotos levarem água do túmulo, ou flores que
crescem junto a ele ou foram oferecidas por outro devoto, para suas casas, já mostra que
as práticas devocionais se estendem à esfera doméstica – o que ajuda a resolver também
o primeiro problema, da dificuldade de freqüentar o cemitério para conhecer a devoção,
pois os ritos não se concentram apenas lá, embora lá alcancem seu ponto alto, em
intensidade e visibilidade, durante o feriado de Finados21.
Encontrei nas casas de alguns devotos oratórios, pequenos altares domésticos, nos
quais, junto aos santos de devoção católicos, estavam também objetos que remetem a
Jararaca (cordéis, foto de jornal recortada, flores) ou a Baracho (vasilha de água é o
mais comum22). Isto quer dizer que a devoção se estende no eixo temporal, aquém e
além de datas como aniversário de morte e Finados, mas também no eixo espacial, do
cemitério – ou melhor, do túmulo sagrado – até a casa do devoto através da mediação de
permanência sobre o túmulo durante um intervalo maior de tempo parece contribuir para um grau maior de sacralização. Mas alguns só levam a própria vasilha que trouxeram. É menos comum esse uso do túmulo de Jararaca para abençoar água, mas também ocorre de modo isolado, individual. 20 José Leite de Santana, o Jararaca, teria nascido em 5 de maio de 1901; e morreu dia 19 de junho de 1927. João Baracho morreu dia 30 de abril de 1962. 21 Não apenas no Dia de Finados, 2 de Novembro, mas desde uns dois dias antes, quando os parentes começam a visitar seus mortos e os devotos começam a aparecer para pagar suas promessas ou prestar homenagens. Muitos preferem ir antes do feriado para evitar o tumulto no cemitério e imediações e para gozarem de maior privacidade no cumprimento dos ritos. 22 Nenhum dos meus informantes era devoto de ambos, embora muitos devotos de um soubessem sobre o outro. O fato de estarem vinculados a diferentes cidades, cujo relacionamento não deixa de ser marcado por certa rivalidade (qual a mais moderna? Qual a mais rica culturalmente? Quem é o melhor governador? O povo de Mossoró “quer ser melhor que os outros”, o povo de Natal “pensa que é melhor porque [Natal] é capital”, “Natal só tem praia, não tem cultura” etc.), talvez contribua para o pouco conhecimento ou interesse a respeito do santo do vizinho. Embora, por outro lado, é importante frisar, não ouvi discursos que desqualificassem abertamente o outro, no máximo alguma indiferença. E, algumas vezes, observei reações de curiosidade em ir à outra cidade para conhecer o outro ‘santo’.
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objetos sagrados como as vasilhas com água benta, as flores levadas do túmulo ou fotos
recortadas de jornais que reproduzem as imagens dos defuntos milagrosos ou santos, as
velas acesas ou mesmo as preces. E que do caminho do cemitério – onde
freqüentemente se toma contato com o ‘santo’ de forma casual – até em casa muitas
podem ser as paradas: na porta da vizinha, a quem se conta a novidade e com quem se
compartilha o assombro pelas histórias ouvidas, no balcão do boteco, na escola; e não se
pode esquecer que esse caminho tem mão-dupla: da vizinha, colega de escola ou irmão
de igreja, pode-se ouvir sobre uma promessa feita e uma graça alcançada, e daí partir
para a primeira visita ao túmulo em busca de ajuda espiritual.
Ficou claro que ir ao cemitério era somente uma parte do trabalho, embora meu
interesse central fosse estudar o ritual no Dia de Finados. Seria necessário encontrar os
devotos contatados no cemitério fora dos momentos rituais, porém, em sua vida
cotidiana. Desde o início da pesquisa de campo, pensei nesse dia também desta forma:
como o momento de travar contato com novos devotos, conhecê-los e tentar conseguir
entrevistas posteriores, em outro lugar.
Isso funcionou por várias razões. Apesar do cuidado de muitos em não falar de
promessa ainda em andamento, que ainda não foi cumprida, as pessoas que obtiveram
graças costumam ser prolixas em contar sua história. E também em contar histórias de
outros, conhecidos, vizinhos, parentes. Todos conhecem algum caso, ou conhecem
alguém que conhece. E, além disso, em Natal e em Mossoró não encontrei aquela
resistência que talvez pudesse esperar em uma cidade grande como o Rio de Janeiro ou
São Paulo, a desconfiança que poderia levar à recusa em dar seu endereço de casa ou do
trabalho. Quantas vezes, fazendo pesquisa de campo no Rio de Janeiro, tomei nota de
um endereço e indo ao local indicado, descobri que tal endereço não existia? Tal coisa
nunca aconteceu em Natal nem em Mossoró. Por outro lado, o fato de que parte dos
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informantes foi indicada por quem já havia conversado comigo antes sobre a devoção e
dado seu próprio depoimento obviamente explica esse sucesso.
Em Natal e em Mossoró, quando as pessoas engatavam uma boa conversa ao pé do
túmulo (ou na casa de um devoto) sempre pareciam querer conversar mais. No caso do
cemitério, isso muitas vezes me impediu de contactar outros presentes no local, que eu
observava enquanto rezavam e acendiam suas velas, ou que comentavam algo sobre
uma promessa feita durante conversa numa roda de vizinhos ou família, tamanha a
atenção exigida por aquele que estava com a palavra. Nessas ocasiões, por uma questão
de etiqueta, tive que abrir mão de conhecer mais, de escutar mais uma pessoa, mais uma
história. Ou tive que arriscar ao puxar conversa com outra pessoa enquanto alguém
ainda exigia minha atenção e quase sempre tentava conduzir a conversa. Vi-me, não
poucas vezes, na curiosa situação de presenciar o meu primeiro interlocutor naquele
momento entrevistar o potencial segundo ou terceiro, procurando ensinar-lhe sobre o
que eu, a ‘pesquisadora’ (ou ‘repórter’), queria saber, pois já estava me contando sobre
sua experiência no culto ou as histórias sobre Baracho/Jararaca há vários minutos, e
orientando as respostas dessas pessoas segundo seu próprio entendimento. Dessas
ocasiões surgiram algumas reações interessantes: algumas pessoas se irritavam com essa
atitude e encerravam a conversa indo logo embora; outras confrontavam com outro
ponto de vista e começavam um debate acalorado.
Eu mesma, confesso, algumas vezes vivi essa situação como autêntica ‘saia justa’, pois
não raro o mais eloqüente não era o mais interessante e inibia ativamente a expressão de
pessoas mais acanhadas que pareciam ter uma experiência rica para contar. Tive de
encontrar meios para driblar essas situações, como sair temporariamente do local para
dar uma volta e retornar algum tempo depois. Ou seguir a pessoa em quem estava
particularmente interessada e puxar conversa em local mais afastado. Muitas vezes, a
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própria presença de vizinhos e conhecidos pode ser um fator de inibição para alguns,
enquanto para outros é mais um incentivo e um fator de prestígio, que pode levá-los a
incrementar seus depoimentos com detalhes preciosos, às vezes visivelmente
exagerados ou provavelmente fictícios.
Mais difícil do que encontrar informantes, pois, era encerrar uma conversa ou tentar
outro contato com outra pessoa sem arrastar comigo quem já estava expondo há mais de
uma hora seu ponto de vista e provavelmente inibiria ou irritaria o outro devoto, no caso
deste ter um pensamento diferente ou não querer dar o depoimento na frente de um
vizinho ou de um estranho.
Houve ocasiões em que a dinâmica se deu de outro modo: um pequeno aglomerado de
pessoas se formava em torno de mim, só por me mostrar interessada em ouvir a história,
por fazer perguntas a respeito diretamente. Pois ao responder, logo alguém mais se
juntava para ouvir, quando não para reforçar ou modificar ligeiramente a resposta do
primeiro, quanto a algum detalhe; ou para antagonizar em alguma opinião.23. O grupo
de três ou quatro pessoas logo crescia e eu passava a ser crescentemente ignorada, como
mais uma na rodinha. Isso mudava se eu portava um gravador ou caderno de notas, pois
aí passava a ser vista como aquela para quem estavam falando e, nesse caso, as pessoas
tendiam a ir comigo assim que eu me deslocava, mesmo que eu pedisse licença para
falar com outra pessoa.
Muitos podiam falar ao mesmo tempo, um ou outro se sobressaindo mais, e versões
diferentes se chocavam, embora houvesse um núcleo comum consistente, em ambos os
casos (Mossoró e Natal), tanto quanto ao passado (a história dos acontecimentos que
precederam a morte) como quanto ao presente (a devoção, seu ritual e suas crenças).
23 Por ser o único dia em que o movimento de devotos junto ao túmulo, e no cemitério como um todo, é grande.
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Houve ocasiões, poucas, em que preferi chegar, acender minhas velas e ficar por ali
conversando sem perguntar nada diretamente, como uma devota qualquer. Apenas
respondia a alguma pergunta ou puxava conversa com algum devoto de modo casual.
Mas admito que nunca me senti à vontade assim.
Mais freqüentemente, eu explicava que precisava saber mais sobre o que as pessoas
pensavam de Jararaca/Baracho e de seu túmulo ser tão visitado no cemitério porque
estava fazendo uma pesquisa “para a faculdade” ou “para um livro” que iria escrever
sobre o assunto24, e assim pedia às pessoas que me recebessem em casa. Consegui,
então, uma lista inicial de contatos, endereços e telefones, tanto em Natal como em
Mossoró.
A pesquisa regular, dessa forma, começou no Dia de Finados de 1999. Mas nessa altura
eu já tinha alguns informantes que havia conseguido na base do boca a boca, por meio
de alunos e alguns vizinhos, entre o Finados de 98 e esse de 99; e já havia levantado
algumas fontes sobre os dois casos, como as matérias dos jornais de cada cidade,
folhetos de cordel e algumas poucas obras de história local/regional, crônicas e folclore,
numa tentativa de estabelecer um contexto para a compreensão daqueles cultos
observados nos cemitérios.
24 Notei que os lisonjeava ver que os costumes “do povo”, da sua cidade, podia ser assunto de um estudo para a faculdade ou para um livro. Além disso, de fato, alguns justificaram seu ato de acender velas como uma “obrigação com quem já morreu”, de modo a desmarcar qualquer ênfase no fato de tratar-se do túmulo de Baracho/Jararaca, como ato de piedade cristã. Mesmo “crentes”, isto é, protestantes, e pessoas que se declararam “sem religião” eu encontrei acendendo velas nesses túmulos em nome da “tradição” familiar ou do “hábito” anual da visita ao cemitério. Lembro de uma ocasião em que uma senhora, muito simpática e sorridente, após acender uma vela sobre o túmulo de Baracho, me disse (eu não havia perguntado nada, mas estava olhando) que não: não havia feito promessa nem acreditava “nessa história dele ser santo”. Quando perguntei com ar surpreso o porquê da vela ela me disse que era porque tinha “pena”, já que ele não tinha família por ali. Curioso é que seu túmulo nada tinha de abandonado, ao contrário de muitos outros, bem pobres e completamente esquecidos, nos quais não havia nem sinal de algum cuidado familiar. O de Baracho estava coberto de oferendas, como muitas garrafas de água e muitas velas, coroas modestas de papel crepom, e algumas flores, além de ex-votos característicos do pagamento de promessas.
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Essas fontes escritas, que abrangem obras de natureza muito heterogênea, tiveram um
lugar de referência para mim ao longo da pesquisa. Mas não é meu objetivo aqui
empreender uma análise separada desse material, de resto muito escasso, pois meu
objetivo é me ater às verdades produzidas e negociadas nas narrações em andamento,
como parte da invenção de uma tradição local por agentes populares, que tem como
ponto alto a performance no ritual, coletiva e pública. Nesse sentido, das fontes escritas,
somente a ‘fala’ dos jornais e a dos cordéis se comunicam com a fala diária dos devotos
desses cultos de uma maneira mais direta. O que não quer dizer, é claro, que o discurso
produzido nas fontes históricas, e publicados no formato livro, não encontrem alguma
forma de atualização e retomada nas falas populares, principalmente em se tratando das
fontes mais antigas e conhecidas, sobretudo aquelas de que as escolas eventualmente
fazem uso como fontes para a história regional e local.
O jornal muitas vezes fala pela boca do devoto. Este reproduz o que saiu no jornal,
citado como legitimador, dado o prestígio intrínseco conferido à escrita. Por outro lado,
o devoto fala pela escrita do jornal, principalmente os de cunho mais popular, que abre
freqüentemente espaço para depoimentos de devotos que afirmam haver alcançado
milagres25. Não é raro que o homem simples, que não tem o hábito de ler um livro, leia
o jornal, mesmo que somente o mais popular e mais barato, ou pare diariamente para ler
ao menos as manchetes da primeira página que estão à mostra na banca de jornais do
bairro. Os túmulos de Baracho e de Jararaca freqüentaram por muitos anos, na primeira
25 A importância da mídia, e particularmente dos jornais – e, mais ainda, dos jornais sensacionalistas – na divulgação desse tipo de santificação popular, com ênfase nos milagres, já foi apontada por Frade 1986: 4-6; Blanc 1995: 37; Schneider 2001: 122; McKevitt 1995: 100; Sáez 1996: 101, 107-8, 207.
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edição publicada após o Dia de Finados, a primeira página do jornal, antes de serem
preteridos nesse lugar de destaque em favor do moderno cemitério-parque (em Natal)26.
Esse tipo de contato e formação de rede é fundamental para quem desenvolve uma
pesquisa sobre um objeto como esse, que não conta com qualquer organização formal
explícita ou sede física, nenhuma associação de promotores ou mediadores
estabelecidos. Não há um grupo social pronto ao qual o pesquisador possa se dirigir,
ninguém é responsável por alguma visão oficial do culto. Não há oficiantes do culto,
por exemplo, ou mesmo algum membro da família do morto que se apresente
responsável pelo cuidado do túmulo ou promoção da devoção ou de sua memória27.
Nenhuma agenda de prestação de cultos, exceto aquelas datas significativas em que se
sabe que as homenagens acontecerão, mas não exatamente como, ou com qual
intensidade.
Houve um ano em que, eu cheia de expectativas, me dirigi ao cemitério, com uma lista
de aspectos que eu queria observar melhor, e com o objetivo de localizar novos
informantes, mas ainda no começo da manhã começou uma chuva intensa e, fato
incomum em Natal, durou até o meio da tarde. Meu dia de trabalho foi praticamente
arruinado. O cemitério ficou desolado, com uma freqüência bem menor do que a
comum, e nem havia como acender velas debaixo do aguaceiro. Uma pessoa ou outra
que chegou a aproximar-se do túmulo para rezar tratou de ir-se logo embora, sem me
dar qualquer oportunidade de conversa.
26 Mas, embora tenha perdido em Natal a primeira página, nestes últimos anos, Baracho e Jararaca continuam reinando, com seu túmulo cercado de devotos, nas páginas internas, nas matérias de cobertura do movimento nos cemitérios da cidade durante o dia 2 de Novembro a cada ano. 27 Como há nos casos do menino Antoninho, cultuado em São Paulo, ou da menina Odetinha. Ver, respectivamente, Sáez 1996 e Schneider 2001.
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Uma pesquisa como essa demanda tempo, inevitavelmente. Só pode se desenrolar ao
longo de um tempo razoável. Primeiro, pelo próprio fato de tratar-se de evento anual.
Segundo, para que se possa formar uma rede de informantes mínima, já que não se pode
contar com um grupo fixo ou semi-permanente em sede física. Meu objeto era (é)
móvel. Assim, tive que ser eu mesma móvel, sempre em trânsito, para acompanhar seus
movimentos e fluidez.
É possível estudar a devoção em qualquer época do ano, mas não há tantas
oportunidades, senão por acaso, para observar o ritual através do qual essa devoção se
manifesta fora do Dia de Finados: o culto no túmulo, com a prestação de oferendas, as
preces, os pedidos, o pagamento da promessa. Claro que há visitas individuais fora da
data funerária e pude presenciar algumas. Aliás, a prestação do culto pelo devoto, em si,
é individual. Mas os próprios devotos vêem o Dia de Finados como o momento de
prestação ritual por excelência. As demais visitas ficam por conta de eventuais
necessidades de intercessão a ser solicitada, pagamento de promessa ou do cuidado
zeloso com o morto28.
Para a própria pesquisa, todo o burburinho em torno do túmulo no dia 2 de novembro
foi fonte de informações ricas sobre a devoção, sobre os significados do culto, sobre as
representações em torno dele e do seu objeto, sobre as atividades rituais - muito mais do
que as explicações que podiam ser conscientemente formuladas por qualquer devoto
sobre suas razões para estar ali. Observá-los no local, pagando promessas, indagando
curiosos, criticando o comportamento de outros devotos ou antagonistas da devoção,
interagindo, conversando, discutindo, pôde trazer uma compreensão do dinamismo e de
algumas implicações dessas devoções, que de outra forma teria sido impossível.
28 Neste último caso, o morto é tratado como se fosse um finado da família, mais do que como um intercessor, um ‘santo’.
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Como eu disse antes, quase toda a pesquisa foi realizada por meio de conversas e
anotações. Usei pouco o gravador fora do local do culto, embora tenha gravado uma ou
outra conversa mais longa. Evitei o formato entrevista, mesmo informal, e sempre pedi
permissão para o uso do gravador. Exceto no cemitério. Algumas vezes escolhi o
formato enquete, apenas para atrair a atenção, conseguir novos contatos, ou ter uma
visão geral de quem eram as pessoas ali presentes naquele momento.
É importante ter claro que o fluxo de pessoas no Dia de Finados é enorme, as pessoas
vêm e vão ao longo da manhã, da tarde e da noite, com alguns momentos de vazio,
durante os quais parece que todos desaparecem, alternados com momentos de
aglomeração em torno do túmulo. Nesses momentos, as pessoas podem ter que esperar
sua vez para se aproximar e acender suas velas, deixar sua oferenda, e fazer suas preces,
pedidos e/ou agradecimentos. Se alguém sai e volta meia hora depois, serão outras as
pessoas ali. Então, era possível, para mim, alternar várias técnicas de aproximação, com
diferentes finalidades.
Outro recurso utilizado por mim para “quebrar o gelo” e iniciar uma conversa no
cemitério ou durante meus passeios pelo bairro onde se localiza o cemitério, era mostrar
alguma matéria de jornal sobre Jararaca ou Baracho, ou alguma fotografia do culto
tirada por mim. Ver as reações das pessoas nesses momentos, de reconhecimento ou até
de repulsa, sempre foi uma boa maneira de iniciar a conversa e conseguir mais
informações. Melhor do que chegar e perguntar a seco, o que quase nunca dava
resultado.
Fui recebida nas casas de alguns desses devotos. Com mais privacidade do que no
cemitério, porém raramente em particular. Ali estava sempre a família ou a vizinha, ou
vizinhas. Não raro alguém que não só não acreditava no milagre alegado, ou nas
histórias sobre milagres alcançados por outros conhecidos, mas que também não
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hesitava em dizer que seria tudo “uma bobagem”. Uma vez fui posta para fora por um
marido enraivecido que desaprovava a promessa feita pela esposa e discretamente
hostilizada por uma filha crente (da Universal) durante minha visita29. Mas em todas as
outras ocasiões fui bem recebida e pude observar os índices da religiosidade e do modo
de vida cotidiano dessas pessoas.
Há um forte preconceito, nas duas cidades onde pesquisei, contra as religiões afro-
brasileiras e, embora mais leve, também contra o espiritismo, embora as pessoas
admitam com muito mais facilidade a freqüência a um centro kardecista do que a um
terreiro de umbanda. Por outro lado, encontrei alguns protestantes participando do culto
a Baracho e a Jararaca, mas nunca nenhum que me dissesse ter feito promessa para ele
ou que acreditasse em sua santidade. Somente uma “crente”, da Assembléia de Deus,
admitiu estar ali para pagar promessa, mas me explicou que a promessa teria sido feita
por sua irmã, que se encontrava ainda acamada, em convalescença de grave doença, e
por isso lhe pedira que fosse até lá para pagar sua promessa em seu lugar. Isso não é
incomum, pelo contrário. Raro é que um crente aceite fazer isso. No entanto, o fato de
isso ser possível já indica o quanto poderia ser estéril tentar estabelecer demarcações
com base nos diferentes pertencimentos religiosos assumidos por cada indivíduo, de
saída.
Não há porque, a partir do que foi observado, determinar que se trate de um culto de
católicos, embora a devoção seja ordenada por uma gramática católica, sem dúvida, que
a aproxima do culto tradicional aos santos reconhecidos pela igreja católica. Mas isso é
menos uma subordinação do culto, ou de seus devotos, ao catolicismo, ou índice do
pertencimento de seus devotos ao catolicismo como opção religiosa, do que
29 A mãe era Filha de Maria na igreja católica do bairro e auxiliar de enfermagem no hospital da universidade.
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conseqüência da relação intrínseca que existe, histórica e ritualmente, entre o culto aos
santos e os cultos funerários, como ficará claro no capítulo dois30.
Ou ainda, pode-se supor, é fruto da cultura católica característica do nosso país, e muito
forte na região nordeste. Mesmo quem não é católico por formação familiar ou
freqüência assídua aos cultos na igreja, conhece as representações e compartilha em
alguma medida os valores católicos, ou, mais amplamente, cristãos, que são
constitutivos e enraizados na cultura brasileira, ao lado de outros herdados de outras
tradições religiosas e cosmologias, de origem européia ou nativas, principalmente. Na
famosa salada sincrética brasileira, nenhuma contradição é necessariamente percebida
entre cultos mediúnicos e cultos a santos católicos, e noções como alma “no limbo” e
espírito “em evolução” podem conviver pacificamente, sem que suas origens sejam
jamais nomeadas.
Não é tão marcada em Natal ou em Mossoró quanto o é no Rio de Janeiro, por exemplo
– embora isso venha mudando devagar, mas perceptivelmente, na última década – a
presença dos protestantes. Só agora eles estão aparecendo com mais força no cenário
público31, com suas bíblias nas mãos, roupas características e conversas sobre suas
igrejas em lugares públicos, naquele tom proselitista que lhes é tão característico. Nem é
fácil identificar as adesões às religiões mediúnicas, pois, o preconceito em relação a
30 O culto aos santos teria surgido como uma transformação histórica do culto funerário prestado aos mortos comuns (que, na condição de mártires da fé, passaram a ser santificados pelo povo do local e depois pela Igreja). 31 No início de 2006 foi inaugurada uma “Catedral da Fé”, uma sede física da Igreja Universal do Reino de Deus de tamanho tão grande e impressionante que foi durante todo o tempo de sua construção um dos assuntos preferidos na cidade. Criticada por muitos, tanto pelos aspectos religioso e político como pelo aspecto estético (a catedral seria “feia”, uma “monstruosidade”), a inauguração da catedral foi notícia em todos os meios de comunicação locais e continua sendo assunto nas rodinhas de conversa. A IURD já contava com algumas sedes em Natal, mas sua presença na cidade até então era bastante discreta, mesmo nos subúrbios onde fiz meu trabalho de campo, nos quais compartilhava espaço com as igrejas católicas, da Assembléia de Deus, Adventistas do Sétimo Dia, do Nazareno, dentre outras.
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essas religiões, em ambas as cidades, é muito marcado, inclusive nas camadas
populares. Os centros e terreiros existem, estão em toda parte, mas carregam a marca da
clandestinidade, e seus adeptos reagem a isso com reserva e silêncio.
Assim, não encontrei, no universo social pesquisado por mim, aquela predominância
das práticas mediúnicas apontada por alguns pesquisadores32 como sendo característica
das camadas populares no Brasil. Nem espiritismo kardecista nem umbanda são práticas
assumidas como freqüentes ou positivamente valorizadas pelos devotos junto aos quais
desenvolvi a pesquisa, embora sejam objetos de interlocução sempre presentes e a
rejeição explícita ou pública não implique necessariamente uma recusa total ou mesmo
verdadeira (factual), muito menos implica a ausência de compartilhamento de crenças e
representações provenientes dessas tradições. Dizendo de outra forma, essa negação não
esgota a realidade da relação dessas pessoas com os cultos mediúnicos, porém a
investigação dessa relação, especificamente, ultrapassa os objetivos desta pesquisa.
Fenômenos como essas devoções que têm lugar nos cemitérios têm sido pouco
estudados, ou melhor, têm sido tratados pela literatura antropológica como fenômenos
residuais, secundários em relação às práticas religiosas institucionalizadas. Quando
muito, são lançados para o território da magia e da “superstição popular” de tom
folclórico, sempre referidos em termos negativos, ou seja, pelo que lhes falta: seriam
práticas e crenças de caráter instrumental, imediato, passíveis de serem reduzidas à
relação mago (ou ’santo’) e cliente (o devoto), que resultariam da urgência de encontrar
32 Rodrigues 1980: 150, por exemplo. Ele afirma que, devido à hierarquização interna a cada religião, é possível que pessoas que estão nos mesmos estratos sociais se identifiquem, mesmo que pertençam a diferentes religiões. Quer dizer, além do corte vertical (superiores, subalternos), seria possível pensar cortes horizontais, com base na estratificação social. Pessoas no mesmo nível, com experiências sociais parecidas, tenderiam a valorizar os mesmos aspectos da religiosidade, independentemente das diferenças institucionais (ou doutrinais, rituais...). Por exemplo, quanto mais baixa a renda e o status social, maior a valorização da mediunidade e das práticas rituais expressivas (canto, dança) e de forte conteúdo emocional (carismáticas, por exemplo).
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solução para aflições individuais. Nesse caso, está subjacente aí a oposição à religião, na
medida em que a magia é percebida como prática de pouco rendimento social, incapaz
de mobilizar e congregar segmentos sociais em torno de suas crenças e rituais, incapaz
de formar igrejas e produzir coesão social em torno de certas doutrinas e valores, de
assumir uma forma social estruturada e organizada.
Esses objetos, a devoção e o culto, de certa forma estão fadados a certa invisibilidade e
até clandestinidade, por não estarem no quadro de uma instituição – embora sejam
assimiláveis ao culto funerário em si, até por se fazerem mais visíveis no Dia de
Finados do calendário oficial, e ao culto aos santos tradicional do catolicismo (mas que
não se limita a ele), pelo vocabulário e pelas formas rituais semelhantes; e também por
estarem atrelados a um lugar como o cemitério e a práticas rituais funerárias, elas
próprias, de modo geral, marcadas pelo silêncio em nossa sociedade, por um lugar
‘escondido’, pouco verbalizável (como a própria morte).
Outro fator que contribui para essa relativa invisibilidade é que essas devoções não
contam com representantes, mediadores, uma hierarquia, uma sede física. Porém, isso
não significa que não tenham uma estrutura, ou uma ordem perceptível. Apenas, ela está
em outro lugar, não no plano da morfologia ou da organização social empiricamente
observável; ela está em todo um conjunto de regras, idéias e valores que estão sendo
amplamente compartilhados por esses devotos, na atualização cotidiana (com seu
apogeu ritual anual) que, ao colocá-la em risco, a reafirma e, nesse processo, verdadeira
“obra (social) aberta”, a mantém viva. Está na “ética do segredo33”, na palavra que narra
o milagre sob a forma de testemunho, configurando um mecanismo de produção de
eficácia e reprodução do ritual e, assim, de sustentação da crença etc.
33 Diz-se que não se deve contar a graça solicitada nem a promessa feita ao santo para alcançá-la, pois, caso contrário, não se obtém sucesso no pedido. Promessa ainda não cumprida é assunto entre o devoto e o santo.
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A circulação oral dos depoimentos e testemunhos dos devotos, “da boca para o ouvido”,
traz novos devotos para o pé do túmulo e concorre para a criação de uma rede de
informações entre devotos, que, se não chega a formar grupos estáveis e claramente
delineáveis, nem por isso deixa de ter efeitos sociais. O culto é público e coletivo, ainda
que a devoção seja prestada de maneira individual. Mas mesmo esse caráter individual
da prestação ritual pode ser relativizado, pois é comum, por exemplo, que uma pessoa
pague promessa em lugar de outra, que, doente em recuperação, se encontre
impossibilitada; ou que um filho ou irmão mais novo herde o voto contraído com o
santo por um de seus pais ou irmãos mais velhos.
Para alguns freqüentadores do cemitério, as oferendas de casinhas de papel dobrado por
parte daqueles que pedem ajuda ao santo para conseguir a casa própria ou que as
ofertam como uma espécie de ex-voto após haver alcançado, as fotografias e bilhetes,
ou as representações em madeira de alguma parte do corpo (ex-voto), evocam todo um
imaginário da “bruxaria”, do “feitiço”, da “magia” – ou, como dizem em Natal e em
Mossoró, com mais freqüência, para significar tudo isso, em uma palavra: catimbó.
Mas, para outras pessoas é somente um modo de reforçar o pedido no momento de fazer
a promessa. Outros dizem que levar uma fotografia da pessoa doente para colocar sobre
o túmulo enquanto reza pedindo por sua saúde ou mesmo para deixar sobre o túmulo
como oferenda é algo suspeito, próximo da simpatia ou do catimbó – porque ninguém
sabe mesmo o que está sendo pedido para aquela pessoa.
Enfim, os signos, como se sabe, não têm significado intrínseco. Resta certa
ambigüidade do culto e uma ampla margem para interpretações que podem ser
conflitantes. A despeito de todas as dúvidas e desconfianças que possam suscitar,
porém, as práticas vistas como catimbó nunca têm sua eficiência questionada, mesmo
pelos que as condenam. O que é questionada é a fonte dessa eficácia, neste caso
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considerada diabólica34. E não deixam de despertar, junto com alguma possível aversão
e medo, o respeito normalmente votado às coisas tocadas pelo mistério.
Santos “feitos à mão”
Esse tipo de santo cultuado nos cemitérios parece estar em permanente construção por
seus devotos (e por seus críticos). Através de suas várias formas de narrativas orais, eles
articulam acontecimentos históricos relativos à memória local, regional e mesmo
nacional (invasão da cidade, perseguição policial, morte do bandido) e paradigma
(modelos éticos, cosmológicos, religiosos, morais), e constroem, através de práticas
rituais (prestações funerárias, promessas, testemunhos orais, discussões públicas que
obedecem a certos protocolos), um comentário social singular da realidade, do passado
e do presente. Por meio da ocasião pública que é o ritual de Finados, parte da estrutura
formal do calendário e da liturgia católicos, podem inscrever sua própria fala no registro
da história35 local ou regional e reclassificar (e ressignificar) dentro desse registro
personagens e episódios que lhes são caros.
34 O mesmo que os protestantes afirmam sobre os milagres alcançados nos cultos mediúnicos: sua fonte seria demoníaca. Por isso, os milagres em si não provam nada. Ver Mariz e Machado 1994: 31. 35 De forma semelhante, Losonczy (2001: 6, 21) vê nas canonizações populares nos cemitérios da Colômbia, especialmente nos Central e do Sul, uma forma de elaboração de uma “contra-memória coletiva da história nacional recente” que daria um outro lugar – ou algum lugar, já que no mais das vezes elas não têm nenhum – às vítimas do que ela chama violência multiforme, do governo militar, das guerrilhas de direita e de esquerda, e da violência urbana comum, de policiais e de bandidos. Dentre essas “vítimas” santificadas na Colômbia, há, inclusive, alguns bandidos tratados hoje como heróis ou santos locais, como Jairo Rodriguez (em Girardot) e Fabio Isaza (em Cúcuta), ambos mortos pela polícia em confrontos.
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Por isso, esses santos – e esses rituais - são singularmente interessantes para pessoas
situadas em posições sociais precárias, subalternas36, que dispõem de pouca ou
nenhuma oportunidade para ocupar no espaço público um lugar de onde possam
produzir e compartilhar sua leitura da história e expor seu pensamento e defender seus
valores. São também interessantes por permitirem, e até exigirem, que exerçam neles
um papel ativo em sua elaboração contínua, o que ultrapassa a idéia durkheimiana de
ritual como ação de reforço das representações, e da coesão social. Não se trata apenas
de reforço, mas de invenção e comunicação37, como também de reformulação do saber
socialmente disponível38.
Edmund Leach distinguiu dois tipos de comportamentos rituais: os comunicativos, que
transmitem informações através de códigos culturais, e os mágicos, cuja eficiência
decorre do que está, pela cultura, convencionado como tal. A novidade trazida por ele
para esse campo foi a não distinção entre os comportamentos verbais e não-verbais, ou
seja, entre aquilo que os autores anteriores costumavam opor como mito (verbo) e ritual
(ato). A idéia presente na afirmação de Leach “the enunciation of words was already a
ritual” está presente em cada página ao longo desta tese (sobretudo no capítulo 3).
Porém, à diferença dele, que, a despeito de sua afirmação, termina por enfatizar em sua
obra a análise do mito39, preferi colocar a ênfase sobre o ritual. Ou melhor, sobre o
36 Não estou dizendo que apenas os subalternos, as classes populares, os cultuam em toda parte (Sáez 1996 desmente isso para seus casos, em Campinas), mas apenas que isso tem sido verdade para os casos em exame aqui, salvo raríssimas exceções. Todos os que fizeram parte de minha pesquisa moravam em bairros periféricos nas cidades, alguns muito estigmatizados pela violência e péssimas condições sanitárias, e tinham profissões como pedreiros, domésticas, atendentes de supermercado, auxiliar de creche, merendeiras, faxineiras, donas-de-casa. 37 Leach 1966. 38 Douglas 1976 [1966]. 39 Peirano 2000.
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desempenho ritual, aquilo que Tambiah40 chama performance: a dimensão do rito, não
apenas como experiência vivida, mas também como ato produtivo e eficaz. Eficácia que
não tem porque ser considerada privilegiadamente, mesmo em um culto que envolve
promessas e milagres, apenas de um ponto de vista mágico-religioso, mas também
social, político, estético. As noções de cosmologia e de sagrado em Tambiah41 não se
restringem à esfera do religioso. Importa menos para este autor determinar o ritual como
uma espécie particular de comportamento do que tratá-lo como um evento
(acontecimento significativo em função das cosmologias); ou ainda, tomar os eventos42
(como as invasões, as peregrinações ao cemitério ou os fuzilamentos públicos) como
rituais43.
Pode-se, ainda, ver no ritual um suporte para a memória como prática social, feita das
reminiscências individuais despertadas na experiência do diálogo, da controvérsia, do
compartilhamento de lembranças e das versões conflitantes entreouvidas no espaço
público, na roda de conversa. Uma memória que se vai construindo artesanalmente, a
muitas mãos, e da qual ninguém tem completo controle. Uma memória não teleológica;
uma memória de narrador, como diria Walter Benjamin44, breve, consagrada a “muitos
fatos difusos”.
40 1985. 41 1985: 130. 42 Tambiah 1996. 43 Ou, ainda, como diria Sahlins (1990 [1985]), como eventos propriamente ditos: acontecimentos que só se tornam significativos para os que os vivem e observam porque inscritos em uma cosmologia, certa imagem da ordem do mundo. 44 1996 [1936]: 211. Nesse ensaio, Benjamin diagnostica a decadência da arte narrativa, causada, por sua vez, pela desvalorização da experiência, que seria seu fundamento. E afirma que a musa da narrativa seria a memória: “A reminiscência funda a cadeia da tradição, que transmite os acontecimentos de geração em geração. (...) Ela tece a rede que em última instância todas as historias constituem entre si”.
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Benjamin45 associa à cadeia de narrações e narradores que se estabeleceria ao longo do
tempo uma imagem do poeta Paul Valéry, para quem o perfeccionismo lento e calmo do
artesão remeteria a uma experiência de convívio íntimo com a morte, que, segundo
Benjamin, a modernidade teria perdido. As mudanças higiênicas e sociais que tiveram
lugar desde o século XIX na Europa teriam empurrado a morte para o fundo da cena46.
Morrer teria deixado de ser ato público e, assim, teria perdido seu caráter de
exemplaridade, que fazia dela a oportunidade para que o moribundo transmitisse sua
experiência, sua sabedoria e lhe conferia “aquela autoridade que mesmo um pobre-diabo
possui ao morrer”. Esta autoridade estaria na origem mesmo da narrativa. “É da morte
que ele [o narrador] deriva sua autoridade”.
Trata-se, sim, de mantê-los, a esses santos do cemitério, vivos por meio do ritual e de
estabelecer os contornos dessa existência, dessa nova identidade póstuma de que foram
dotados (quase santos, talvez santos, dizem que santos) no fluxo da própria narração,
ainda que se tenha todo um corpo de tradições, narrativas mitológicas e outros modelos
culturais47, anteriores, como referência. Aliás, como seria possível não tê-los?
Nada está amarrado ou fechado, e o ‘esboço’ é mantido como tal, e parece ser como tal
que interessa aos devotos. Não há uma hagiografia acabada, uma doutrina, um dogma,
sequer uma identidade bem definida – seja a identidade póstuma, seja aquela, resultado
da construção dos contemporâneos, sobre o bandido vivo e sua biografia. Ao contrário
dos santos oficiais, aceitos como dados (estruturais, e não da ordem do evento) -
tendencialmente caracterizados por alguma ‘especialização’, por atuar
45 1996 [1936]: 206-7. 46 Assunto do nosso capítulo 2. 47 Sahlins 1990 [1985].
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preferencialmente em alguma área da vida (desemprego, certa doença, conseguir
casamento)48 - o santo popular parece ter o tratamento de uma “obra aberta49” de autoria
coletiva, passível de receber um sentido sempre negociável, uma fisionomia sempre
inacabada. Santo artesanal, feito à mão – a muitas mãos -, ele não precisa de uma
definição consensual para existir50, seu lugar de existência é o diálogo, onde emerge em
toda a sua potência.
Há ainda uma outra questão, que reforça essa idéia: no plano da escatologia (destino
póstumo), esses ‘santos’ podem ser concebidos como almas pecadoras, devido à vida de
erros que teriam levado, não inteiramente redimida pelo arrependimento. Assim,
necessitariam das preces dos vivos, aí já não na qualidade de devotos que pedem a
intercessão do santo, mas na qualidade de cristãos piedosos capazes de interceder por
ele com suas rezas para pedir sua salvação e/ou confirmar seu merecimento em alcançá-
la. Não esqueçamos que, no universo cristão, salvação e santificação são sinônimos.
Fazer o bem aos vivos (promessas e milagres) seria um sinal de que se arrependeram
dos males que fizeram em vida. Por outro lado, ao pedirem sua intercessão, seus
devotos mostram confiança no perdão divino como prêmio pelo arrependimento, por
sua vez propiciado pelo sofrimento intenso experimentado por eles e que os levaram à
morte violenta. Os milagres confirmam essa salvação, mas, mais que isso, a produzem e 48 Ainda que isso possa ser relativizado, pois mesmo a relação com os santos oficiais é caracterizada por uma intimidade e liberdade de negociação. Os santos podem ter uma especialidade mais marcada, porém os devotos recorrem a eles também para outras finalidades. Agradeço a Eloísa Martín por essa observação feita após sua leitura deste capítulo: de que a oposição mais acentuada parece ser aquela entre a visão oficial, institucional (que, neste caso, marca a especialidade do santo) e a visão popular dos santos, que se faz acompanhar por diferentes tratamentos rituais. 49 Para usar a expressão cunhada por Umberto Eco, para referir-se, dentre outros aspectos, à impossibilidade de determinar uma única interpretação correta para qualquer obra de arte. Nesse sentido (mas não apenas neste), toda obra de arte seria aberta. 50 Eade & Sallnow (1991) também falam a respeito de uma polifonia no ritual, uma multiplicidade de vozes e discursos distintos acerca dos sentidos da peregrinação como prática ritual. Essa visão também é adotada por Steil (1996) em seu estudo sobre a romaria ao santuário de Bom Jesus da Lapa.
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a atestam: é porque o morto está fazendo o bem, postumamente, que não há motivo para
duvidar de sua salvação e mesmo de sua santidade, que nada mais seria que sua
proximidade com Deus, que o teria tornado seu intermediário. Antes mesmo que o
milagre seja testemunhado por um fiel, a fé no arrependimento do pecador morto, e na
resposta divina (o perdão e a salvação) a esse arrependimento, já aponta para a
santificação virtual não apenas daquele que está ali sepultado, mas de todo e qualquer
outro pecador. Ainda mais se é levado em conta o perfil do morto, cuja associação com
o mal é sempre enfatizada, até para que sua ‘conversão’ (a intensidade do seu
arrependimento) seja ainda mais valorizada51.
Assim, os devotos têm um papel ativo também desse modo: dando ao morto a
oportunidade de fazer o bem e assim, das duas uma: provar que está salvo ou ir aos
poucos melhorando sua situação transitória e chegando mais perto do céu e da
santificação verdadeira. Esta é mais uma maneira de falar da presença dos mortos na
vida dos vivos, e vice-versa, e suas relações sociais de reciprocidade, cuja importância
para a compreensão da vida social e da cultura brasileira tem sido mostrada por autores
como Roberto DaMatta52. Ou seja: idéias religiosas como pecado (erro, em versão
laica), arrependimento, perdão, mitigação das penas no purgatório, sufrágio dos vivos
pelos mortos (preces, missas), dão suporte para que possam assumir esse papel ativo na
elaboração dessa nova condição póstuma particular, que é a de morto milagroso ou
‘santo’, por meio da atividade ritual individual ou coletiva.
51 Mariz 1997: 56. Cito: “Todo o mal que se viveu antes da conversão, toda a vida dissoluta são contados sem muito pudor pelos atuais crentes. Em alguns testemunhos se descreve o mal que se perpetrou, com muitos detalhes, e talvez até com certo “exagero”, pois quanto maior foi o pecado, maiores foram a libertação e a glória do poder de Deus.” 52 DaMatta 1985. Esse assunto é tratado no capítulo 2.
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Embora seja das diferenças que vivam as etnografias, confesso que, ao examinar a
pouca bibliografia existente sobre essas canonizações que têm o cemitério como lugar
geográfico e simbólico em países como Argentina, Colômbia, Estados Unidos, Espanha
e França53, e os casos que pude observar no Rio Grande do Norte, no Rio de Janeiro, em
São Paulo e Belém, não canso de me surpreender com as semelhanças entre eles.
Línguas diferentes, realidades sociais diferentes, mas algumas tendências claramente
discerníveis para o observador, pelo menos do ponto de vista no qual me coloquei aqui:
pessoas que, de lugares e posições marginais54 na sociedade ou comunidade local,
encontram para si um papel ativo na fabricação desses santos populares, e reafirmam
assim, valores que lhes são caros, e que no meio urbano contemporâneo muitas vezes
são considerados ultrapassados ou até indesejáveis.
Por outro lado, o recrutamento desses mortos, por parte dos que a eles sobreviveram em
sua própria época55, não se dá de modo aleatório. Quais, dentre tantos, são passíveis de
serem escolhidos para tal tratamento ritual que irá alterar para sempre sua identidade (e
as noções sobre sua Pessoa) no cenário público? Não mais apenas o ladrão, o matador
ou o cangaceiro; não mais a prostituta esquartejada pelo soldado ou a criança enferma
condenada ao isolamento, todos estigmatizados em vida, o que se constitui já numa
espécie de morte social que precederia a morte física; mas, sobretudo, não mais a
53 Por exemplo, Santa Héléna Soutade, cultuada no cemitério Salonique, em Toulouse. Ver Blanc 1995. 54 Pouca importa a espécie de marginalidade – social, econômica, moral. O fato de tratar-se de noção relativa, e contextual (o marginal pode ser o bom patrão cultuado em Bogotá, de que fala Losonczi 2001, rejeitado pelos pares de sua classe social e categoria profissional, porém amado pelos empregados), que supõe sempre um outro, central ou mais central, do qual seria a margem, não a invalida nem a torna menos interessante. 55 E que talvez tivessem então suas próprias razões, moduladas pela situação imediata, com ênfase possivelmente sobre outros valores, que não precisam ser os mesmos afirmados pelos devotos de hoje. Não é preciso supor uma continuidade substancial, nem quanto às motivações para as prestações funerárias nem quanto às crenças e ideologias.
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vítima, seja do poder da violência masculina, da fatalidade inexplicável ou das
autoridades políticas constituídas.
Acredito ser relevante que todos os cultos começaram logo após as mortes, de modo
relativamente espontâneo, isto é, sem que houvesse algum esforço institucional ou
organizado (mesmo por parte da família, ainda que em alguns casos esta exerça uma
mediação importante) para que isso ocorresse. Estou ciente, é claro, de que a noção de
espontaneidade, em se tratando de práticas e representações sociais amplamente
compartilhadas, precisa ser tratada com cuidado, sem ingenuidade. No entanto, falar
aqui em espontaneidade é um modo de ressaltar minha opção em focar nas escolhas e
interpretações dos agentes sociais, mais do que em qualquer espécie de determinismo
estrutural.
As tradições e alguns modelos culturais particulares (como o da canonização pela igreja
católica), bem como todo o arcabouço dos rituais religiosos (e profanos, como são para
alguns os cultos funerários privados) tornado familiar pelo costume, estão presentes aí,
mas como elementos de fundo, que permitem conferir um sentido aos acontecimentos
históricos locais e que emprestam elementos a serem apropriados e recombinados pela
imaginação instituinte do narrador, da testemunha, do crente.
A ação ritual e a religião como linguagem permitem a expressão livre de comentários
poéticos, críticas sociais e políticas, leituras alternativas e promoção social de mortos
que, tanto mais se tratem, como no caso de Jararaca e Baracho, de gente sem qualquer
pertencimento social estável mesmo o mais fundamental e valorizado – a família –
tenderia à condenação moral mais triste: o esquecimento, decorrente da falta de um
papel social a cumprir, pois que mesmo os mortos têm seus deveres, e zelar pelos seus
entes queridos na terra não é o menor deles.
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Enquanto desgarrados de qualquer vínculo social, exceto os precários laços que os
uniriam aos de vidas tão precárias quanto as suas, os mortos Baracho e Jararaca
continuam e confirmam sua vocação manifesta ainda em vida para funcionarem como
espécies de significantes flutuantes: eles podem ser o que quer que se faça deles e, seja
o que for, sempre terão força e poder. Primeiro como bandidos, em parte como papel
social marginal, mas principalmente como símbolo: de rebeldia, de negação, de valores
alternativos, de violência bruta, da crueldade e resistência “sobre-humana” que faz
fronteira com o demoníaco (logo, do sagrado perigoso, espécie de noção comum a
várias culturas), de possibilidades outras. Nesse papel social, realizam proezas
detestáveis, condenáveis, assustadoras, mas também admiráveis, espantosas, invejáveis,
que atestam rebeldia em relação à ordem social, mas também um quê de diabólico56 que
tanto atemoriza quanto fascina.
Os “bandidos” são marginais sociais de um tipo singular: eles parecem brincar com as
fronteiras entre a vida e a morte; a morte lhes é familiar. A seu respeito a imaginação
corre solta, não apenas literalmente, no sentido de inventar-lhes uma imagem
condizente com o que deles se diz ou se acredita, mas também no sentido de haver uma
ampla margem para fabulação. Baracho, diz-se, invurtava, isto é, ficava invisível, por
isso conseguira fugir mais de uma vez; Jararaca podia sobreviver, como todo
cangaceiro, no meio da caatinga, que de fome, frio ou sede não morria. E se as pessoas
sabem que essas coisas não são realmente possíveis, isso não as embaraça, pois que eles
eram “gente de antigamente”, e “antigamente era diferente”. Uma diferença é
introduzida no tecido do tempo, qualitativamente outro; e nesse outro tempo, Jararaca e
Baracho não eram apenas cangaceiro e ladrão: eram já matéria-prima de um legendário
56 As batalhas, as disputas poéticas e as mútuas trapaças entre os cangaceiros Lampião e o diabo estão dentre as mais recorrentes figuras da literatura de cordel.
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popular, de uma mitologia, que preparava o terreno para sua futura existência póstuma
extraordinária.
Entre o vivo e o morto, o bandido e o santo, há uma continuidade que a morte violenta e
pública57, como um rito de passagem, permite administrar de maneira mais focada, ao
fixá-lo em sua cova, em seu novo papel. Mas note-se que aqui ênfase está na
continuidade entre a excepcionalidade social do papel desempenhado em vida e daquele
que lhe é atribuído no domínio (físico, no cemitério, e espiritual) dos mortos, e não na
“morte violenta” em si, como tem sido comum nos trabalhos sobre canonizações
populares. Morto que ajuda aos necessitados para alcançar a própria salvação (portanto,
ainda não santo), ele é agora um work in progress, um santo em construção, menos um
ente que um existente precário. Por isso não parece ser tão importante determinar se é
ou não “santo” – quase ninguém usa esta palavra, aliás – ou se foi bom ou mau durante
sua vida, tampouco iniciar qualquer discussão ou movimento em prol de sua
canonização oficial58.
Se o morto não tem “dono” (parentes, que lhe devem cultos funerários privados), mas é
dotado de uma história e de uma forte carga simbólica, ele pode ser, como tem sido,
rapidamente apropriado pela comunidade local. Muitos outros restam, na morte
solitária, como indigentes na vala comum, mas não um bandido lendário; não alguém
em quem a coletividade já investiu tanto ao longo dos anos. Falo do investimento
simbólico feito pelos contemporâneos dos bandidos vivos e dos eventos que
culminaram em sua morte, posto que ambos figuravam, como personagens públicas
57 Assunto de domínio público, discutido nos jornais e programas de rádio populares, comentado nas casas, objeto de controvérsias. 58 Consistente com essa leitura, os únicos santos de cemitério que chegaram a ter algum movimento público em defesa de sua beatificação pela Igreja católica, e mesmo um processo iniciado nesse sentido, foram aqueles cujas famílias se empenharam pessoalmente nisso e organizaram uma estrutura mínima para ordenar o culto, que, assim, teria perdido em parte sua espontaneidade e sua rentabilidade social no sentido sugerido aqui.
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naquele domínio entre a lenda, as conversas de vizinhança, os versos do poeta e as
crônicas do jornal. Mas falo também do investimento acumulado ao longo dos anos
desde então, e que resultaram nas narrações atuais, em suas várias camadas sobrepostas
e arranjadas de diferentes maneiras conforme o narrador, atualizadas em torno dos
túmulos modestos e nas rodas de vizinhos, e ainda por aquelas mesmas vias que
contaram do bandido vivo, às quais esta tese, como mais uma variante de discurso, vem
se somar.
Se em vida ele já era um objeto bom para pensar, na morte o é ainda mais. O que
importa é que há ali bastante espaço para elaborar uma memória social local que o tome
como pretexto; para ler a realidade social de ontem e de hoje a partir de seus valores e
idéias; para reformular mitologias antigas ou tomá-las como pano de fundo para os
novos legendários que vão se constituindo, ali mesmo, ao vivo; para adubar uma nova
tradição a partir de sementes longínquas e boas, com a terra única do lugar e dos seus
testemunhos singulares, daquilo que só quem viu, escutou e viveu a partir de certo lugar
social pode saber.
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Capítulo 2. O Ritual e as Narrativas da História
Neste capítulo farei uma descrição mais detalhada dos dois casos focalizados na tese,
com a finalidade de apresentar essas personagens, Jose Leite de Santana, o Jararaca, e
João Baracho, tal como são construídas por diversas formas de narrativas históricas e
assim caracterizar sua excepcionalidade de um ponto de vista social. Como afirmei
antes, tal excepcionalidade estaria em continuidade com esse destino póstumo singular
que lhe foi reservado. Além disso, trata-se aqui de apresentar o ritual no cemitério, de
descrevê-lo em detalhe, uma vez que é por meio dele – sobretudo em sua forma mais
completa e mais rica, no Dia de Finados, que é estabelecida e reproduzida essa
canonização popular, bem como é por meio dele que os agentes populares se inscrevem,
a si próprios e a seu ‘santo’, no registro da história local e regional por meio de uma
releitura dela, através da qual é possível entrever toda uma visão de mundo, com seus
valores e significados próprios. É importante, então, que conheçamos essas histórias e
esse ritual.
O capítulo se desdobrará em dois momentos: no primeiro, apresentarei uma versão
resumida dessas narrativas da história, conforme me foi contada pelos devotos em seus
depoimentos, durante nossas conversas ao longo desses anos, mas também com base em
fontes escritas: os jornais, nos dois casos, e alguma bibliografia jornalística, histórica e
folclórica no caso do cangaceiro Jararaca59.
59 Há uma versão padrão de sua biografia e dos fatos que culminaram em sua morte que atravessa a aparente heterogeneidade das fontes e dos meios com surpreendente constância. Alguns dos livros que tratam da história do cangaço apresentam alguma descrição breve e marginal sobre a personagem Jararaca como parte do episódio da invasão a Mossoró. Mas mesmo esse episódio, que tem sua importância na trajetória do bando de Lampião, não tem merecido mais que umas poucas páginas. Ver, por exemplo, Luna 1972: 107-114, Macedo 1975 [1962]: 145-155 e Chandler 1980: 123-142. A exceção são duas obras, bastante datadas em seu estilo retórico que mistura impressões, opiniões dos autores e ‘fatos’, com pinceladas de literatura, e que em muitas passagens transcrevem literalmente as falas dos envolvidos nos acontecimentos tais quais eu já as havia encontrado nas páginas dos jornais de onde foram
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Tomei as narrativas dos livros como tantas outras que li nos jornais, que lhes serviram,
em parte, de fontes, e como as narrativas orais, os depoimentos que ouvi dos que
viveram essa época, mas principalmente dos contemporâneos da Natal e da Mossoró de
hoje que, em geral, reconstroem essa história a partir de fragmentos de suas memórias e
das memórias de terceiros, e de outras referências culturais mais gerais com as quais
estabelecem relações no presente. Essas narrativas orais podem estar mediadas algumas
vezes por esses escritos de “especialistas”, mas na maioria dos casos – principalmente
no universo dos devotos - somente pelas versões dos jornais de hoje, alguns poucos
versos de cordel (para o cangaceiro Jararaca) e pelas versões orais que passaram de pai
para filho, de vizinho para vizinho60.
No segundo momento, neste capitulo, apresentarei uma etnografia do culto no
cemitério, por meio do qual essa devoção tem se manifestado, que tem por base sua
observação no Dia de Finados durante esses anos de pesquisa. Essa é a data em que tal
devoção assume sua face mais pública, mais marcada, e os ritos, assim como tudo o
mais que se relaciona à crença nos milagres dos santos do cemitério, ganham
extraídas: Almeida 1981, obra de “reportagem social” de um jornalista que trata especificamente da participação de Jararaca no cangaço, com destaque para a invasão de Mossoró e até uma breve referência, no final, ao seu culto póstumo, e Nonato 1955, cuja obra consiste basicamente numa colagem de transcrições de documentos e matérias de jornais sobre a invasão de Mossoró, mesclados com alguns depoimentos de ‘intelectuais’ colhidos por ele diretamente. 60 Ou seja, escolhi não tratar à parte as informações originadas dessas fontes chamadas históricas, escritas por especialistas em história, posto que elas não apresentem uma elaboração analítica dos fatos narrados nem se afastem muito, qualitativamente, das demais narrativas nos jornais ou relatos orais. Pelo contrário, estão muito próximas da crônica do jornal e fazem um uso freqüente de trechos da literatura de cordel para ilustrar os acontecimentos focalizados. Este é um tópico que pretendo desenvolver em outro trabalho, mas que achei que não cabia aqui, posto que o objetivo deste trabalho é menos tratar das representações do cangaço em si do que do modo como tais representações incidem sobre a construção de um cangaceiro como santo popular, do ponto de vista dos devotos.
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visibilidade e uma oportunidade de vivência coletiva, rara fora das imediações dessa
data.
João Baracho, o ladrão, que entrou para a história da cidade de Natal, no Rio Grande
do Norte, através das crônicas policiais da época (1959-1962) como o “matador de
motoristas”, vivia de pequenos furtos: objetos miúdos, como relógios e bicicletas,
alimentos e peças de mobília, que revendia em sua barraca na feira. Segundo os
depoimentos de seus vizinhos aos jornais na época de sua morte, era “feirante e
pedreiro”. Ninguém afirmava que ele fosse ladrão – os vizinhos nunca o afirmaram,
mesmo após sua prisão e morte.
No entanto, preso após ser dedurado por seu comparsa Cosme, que o acompanhava nos
furtos, ele teria confessado – assinando com a digital, já que era analfabeto – o
assassinato de um motorista de jipe, Moisés, crime que ocupava então a principal página
policial dos jornais da cidade já há meses. Outros motoristas já haviam sido mortos,
após assalto à mão armada dentro do jipe (o táxi de então), de modo similar, e logo
Baracho ficou conhecido como o matador dos motoristas de jipe.
Para muitos, já na época e ainda hoje, João Baracho teria sido apenas um coitado que
serviu de bode expiatório para aplacar a ira e calar a boca dos que se insurgiam, no
jornal da oposição ao governo e nos programas de rádio populares, contra a inépcia do
então secretário de segurança, Rodolfo Pereira, e da polícia para dar solução ao caso.
Este já se arrastava por vários meses – sempre com muito destaque nos meios de
comunicação locais. Durante esse período, foi implementada, inclusive, uma campanha
pública de coleta de donativos, na entrada de um cinema e numa estação de rádio, para
as “viúvas dos motoristas assassinados”, com ampla cobertura pelos jornais e estações
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de rádio. Era ano eleitoral61 – fato freqüentemente recordado pelos devotos mais velhos
e por muitos dos cronistas daquele tempo – e o secretário de segurança pretendia
candidatar-se a Deputado Estadual pelo partido aluisista. Obviamente, o fracasso na
resolução do caso alimentava as críticas da oposição ao governador Aluísio Alves e
reduzia suas chances.
Baracho chegou a ser preso, em agosto de 1961, e confessou o crime. Porém, fugiu da
cadeia menos de um mês depois. No jornal Diário de Natal de 03 de Setembro de 1961
pode-se ler, na página oito:
Causou grande impacto emocional na população a notícia da evasão de
um dos xadrezes da Delegacia de Roubos e Furtos do criminoso João
Baracho, autor de uma série de arrombamentos e roubos de mercearias
e grupos escolares em nossa capital, receptador de vários outros furtos,
assassino confesso do motorista Moisés Luiz do Nascimento e provável
matador de dois outros profissionais do volante e de um sargento da
Polícia Militar.
Passou cerca de três meses desaparecido, enquanto as especulações sobre seu paradeiro
se multiplicavam nos jornais e programas de rádio, e ele se tornava notícia inclusive em
outros estados da região nordeste. A polícia do Rio Grande do Norte pediu cooperação à
polícia dos estados vizinhos para localizar seu paradeiro e realizar sua captura.
Finalmente encontrado e preso em Fortaleza, Baracho é levado de volta à Natal no dia
07 de Dezembro de 1961. Já no dia seguinte, pessoas de diversos pontos da cidade e do
Estado chegam à Delegacia, informadas de sua captura, e uma grande fila chega a
61 Haveria naquele 1962 eleições para os legislativos nacionais e para as prefeituras. Aluísio Alves era governador do estado, eleito em 1960 pelo PSD (Partido Social Democrático).
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formar-se diante dela, pois todos querem ver o famoso bandido de que tanto haviam
ouvido falar.
Mas Baracho fugiria novamente. Na madrugada do dia 30 de Abril, após cerrar as
grades de ferro de sua cela e passar por seis policiais de guarda, ele saiu pela porta
principal da Delegacia. Não demorou a que os policiais – civil e militar - fossem em seu
encalço, ainda naquela madrugada, na favela onde morara e onde ainda estava sua
mulher, Maria Lúcia. A polícia supôs, acertadamente, que Baracho tentaria voltar lá, e
de fato ele o fez assim que anoiteceu, na expectativa de que a escuridão da noite o
protegesse. Naquele tempo, não havia iluminação pública naquela área, cercada por
terrenos baldios. As casas só contavam com iluminação de lamparinas a querosene.
Ao chegar à favela, Baracho procura por seu amigo Pajeú, mas sua filha informa que a
polícia o levara e também a Maria Lúcia. Ele lhe pede que o deixe entrar em casa, mas
ela não concorda. Então, ele lhe pede água, por cima da porta. A moça lhe dá a água,
mas nesse momento alguém grita “Pega Baracho” e ele, antes de chegar a bebê-la, atira
a vasilha para dentro da cozinha e foge para os fundos do beco. Tiros são então
disparados por policiais, que estavam por ali à espreita em toda parte, e um deles o
atinge. Mesmo assim, pula o muro e uma cerca de arame farpado, e entra em um terreno
baldio. É quando surgem outros policiais e atiram. Mais dois tiros o acertam, mas ele
ainda continua a fugir e entra na casa 42 da Rua Jundiaís, onde morava dona Maria
Batista, uma senhora já idosa.
Dentro da casa, Baracho segue para um dos quartos, onde está sua sobrinha com uma
criança, a quem pede água. Enquanto isso, a polícia passa por essa casa e indaga a dona
Maria se teria visto Baracho e ela diz que não. Logo depois, no entanto, sua sobrinha sai
do quarto e lhe avisa que lá estaria um homem baleado e que este lhe pedira água. Dona
Maria entra no quarto e o encontra abaixado num canto, sangrando muito. Em
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depoimento a um jornal, ela contou depois que então teria dito a ele: Não lhe dou água
nem o senhor vai ficar aqui. Seu filho, que chega naquele momento, lhe ajuda a
empurrar Baracho para fora. Ele não tem forças para resistir, e ainda permanece no chão
em frente à casa por algum tempo, enquanto dona Maria Batista sai gritando pela rua
que o bandido está lá, em sua casa. Os policiais o encontram no beco e atiram. O laudo
cadavérico: sete ferimentos transfixantes (atravessaram o corpo), oito penetrantes e sete
tangenciais, todos de revólver calibre 38.
Isso aconteceu no dia 30 de Abril de 1962 e foi notícia de primeira página em todos os
jornais da cidade no dia 01 de Maio. A manchete: “Fuzilado Baracho”. Nas fotos, os
policiais reunidos em grande número, apresentados pelas legendas como os heróis que
haviam enfim derrotado o facínora há muito procurado.
Foi lá onde o homem matava bode, ali onde tinha o cruzeiro, mais pra cá.
Tem um pé de cajueiro. Aí todo mundo foi olhar. Na hora que ele foi morto, foi
assim de seis horas da noite. Eu morava em Nova Descoberta, era solteira. Eu
tava trabalhando na política de Aluísio Alvez, aí o vereador que tava sendo
candidato, o Claudionor, aí disse assim: ‘As componentes todas compareçam
aqui pra ir fazer um carnaval!’ Aí eu disse assim ‘Mamãe, carnaval uma hora
dessa?! Eles não disseram que hoje ninguém ia trabalhar em política?’ ‘Mas
olhe, minha filha, vai saber...’ Aí quando cheguei lá ele disse assim: ‘Bastinha –
ele me chamava de Bastinha – nós vamos tudo aí nesse caminhão andar com o
corpo de Baracho, que mataram aquele...’ [ela tapa a boca] e falou lá os
palavrão dele, né... ‘E agora nós vamos andar de rua em rua, o bairro todinho,
pra mostrar!’ Saíram mostrando! Eu digo: ‘Eu não vou não! Se o senhor quiser
riscar meu nome pode me tirar da ala, que eu não vou não. Eu não vou não!’
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Fizeram foi a politicagem com ele, andando das Rocas por todo o canto,
mostrando o corpo em cima do caminhão. Um corpão, que era um homem
bonito! Saíram pela avenida Kennedy, por todo canto. Eu não fui não! Todo
mundo queria ver, que o pessoal não conhecia, né? Foi o carro de alto-falante
falando: ‘Aqui se encontra o corpo de Baracho, peça qualquer coisa que eu tô
pagando!’ E Aluísio tocando, os outros tocando, meganha, tudo né... Mamãe me
disse: ‘você não vai não!’. E não fui. Mas aí no outro dia, ‘ah, vai sair o
enterro!’. Aí eu vim pra aqui, pra esperar aqui.62
No dia seguinte à publicação da notícia nos jornais, 02 de Maio, venceria o prazo para
que o secretário de segurança Rodolfo Pereira de Araújo, se desincompatibilizasse do
cargo e lançasse sua candidatura. O que de fato ele fez, auto-intitulando-se “candidato
dos motoristas”. Ele atuara como secretário de segurança desde setembro de 1961,
quando substituíra o coronel José Paulino, e fora o caso Baracho que lhe dera projeção
na imprensa e na vida pública. Porém, isso não foi suficiente para garantir-lhe sucesso
na eleição de 1962: alcançou apenas a quinta suplência do cargo que pleiteava pelo PTN
(Partido Trabalhista Nacional). O que, se não prova, ao menos sugere que o povo nem
sempre vê os acontecimentos da mesma forma que a elite dominante e seus serviçais –
os políticos, a polícia e a imprensa aliada ao governo. Pois àquela hora já a romaria ao
túmulo de Baracho era intensa e começavam a circular os boatos de que ele fizera o que
veio a ser conhecido como seu primeiro milagre, espécie de mito fundador: a viúva do
motorista Moisés, primeira vítima dos crimes contra motoristas de jipe na cidade cuja
culpa fora confessada por Baracho, teria rezado ao pé de seu túmulo um dia após seu
62 Dona Sebastiana, 58 anos, ex-diarista, costureira, católica, tem um filho, falecido há quatro anos, e sua mãe, que havia falecido há menos de um mês, sepultados ali no cemitério Bom Pastor.
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sepultamento. Teria lhe perdoado e pedido que intercedesse junto a Deus para a cura de
seu filho, órfão de pai, que se encontrava muito doente. E o menino logo se curou. A
força do perdão de uma das vítimas diretas, o apelo mítico dessa história, que até hoje é
recontada muitas e muitas vezes, foi muito mais forte do que a propaganda eleitoral do
ex-secretário de segurança. Ele naufragou nas urnas, mas até hoje, modesta e
silenciosamente, Baracho é lembrado e continua fazendo milagres para os que acreditam
nele.
José Leite de Santana, o Jararaca, teria formado seu bando cangaceiro em 1926, ao
retornar ao nordeste após algumas viagens pelo Brasil em missões militares com o
Exército brasileiro, no qual teria sido soldado, após seu alistamento em Maceió,
Alagoas, em 1921. Nasceu em Buíque63, Pernambuco, em 190164 e morreu em Mossoró,
em 19 de Junho de 1927, após ter sido ferido à bala durante a invasão à cidade
empreendida por seu bando em aliança com o bando maior e mais conhecido liderado
por Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião65.
É impossível contar sobre a biografia - da qual se sabe mesmo muito pouco, embora
mais do que sobre João Baracho - e a morte de Jararaca, e o que ela veio a significar
63 Ou Pajeú das Flores, segundo teria dito em sua entrevista na cadeia. Nonato 1955: 156. 64 Almeida 1981: 91. 65 Virgulino, o Lampião, nascido em 1900, entrara para o cangaço, no bando de Sinhô Pereira, em 1917. Em 1922, com o afastamento voluntário do líder, ele, que se tornara seu braço direito, assumira a chefia do bando, cuja atuação no sertão nordestino foi até 1938, quando Lampião foi morto numa emboscada com sua companheira Maria Bonita e outros cangaceiros do bando. Dois anos depois morreria Corisco, que havia pertencido a seu bando, mas então liderava um outro, independente. O cangaço, movimento social (ou forma de banditismo) que colocou o Nordeste em evidência para o restante do Brasil, e que tem sido desde então um constante objeto de pesquisas, teve ali o seu fim, como movimento organizado. Ver Queiroz 1997, Chandler 1980, Barros, 2000, Mello 2004.
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para muitos em Mossoró, sem contar um pouco da empreitada em que consistiu a
invasão da cidade pelos cangaceiros.
A gradual aproximação do bando foi precedida de notícias que corriam de boca em
boca. Houve tempo para que a população de mulheres, crianças e idosos fosse evacuada
da cidade. Naquela época, isso era comum, pois, à passagem do bando em uma cidade,
produzia-se um efeito em cadeia, um enorme alvoroço, nas localidades vizinhas, que já
antecipavam uma possível invasão ali também e temiam tal ameaça. Mas, nesse caso,
foi mais que isso: Lampião aprisionou três dos cidadãos de Mossoró, inclusive um
ilustre coronel de nome Antonio Gurgel, com a finalidade de obter resgate por eles,
quando ainda se encontrava a alguma distância da cidade. Porém, mudou de idéia e
decidiu enviar ao prefeito de Mossoró, o também Coronel Rodolfo Fernandes, uma
carta na qual exigia quatrocentos contos de réis, uma grande soma então, em troca da
qual abdicaria do ataque por meio do qual ameaçava saquear e incendiar a cidade. Se
recebesse o dinheiro exigido, passaria ao largo de Mossoró; caso contrário, a atacaria. O
próprio Coronel Gurgel, aprisionado, redigiu a carta para Lampião66:
13 de junho de 1927
Meu caro Rodolpho Fernandes:
Desde ontem estou aprisionado do grupo de “Lampião” o qual está aqui
aquartelado aqui bem perto da cidade, manda porém um acordo para não
atacar mediante a soma de quatrocentos contos de réis – 400.000$000. Posso
adiantar sem receio que o grupo é numeroso cerca de 150 homens bem
equipados e municiados a farta. Creio que seria de bom alvitre você mandar um
parlamentar até aqui que me disse o próprio “Lampião” seria bem recebido.
Para evitar o pânico e derramamento de sangue, penso que o sacrifício
66 Almeida 1981: 43-44.
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compensa, tnato que ele promete não voltar mais a Mossoró. Diga sem falta ao
Jaime [seu genro, Jaime Guedes, gerente de uma agência bancária] que os 21
contos que pedi ontem para o meu resgate não chegaram até aqui e se vieram o
portador se desencontrou, assim peço por vida de Iolanda para mandar o cobre
por uma pessoa de confiança para salvar a vida do pobre velho. Devo adiantar
que todo o grupo me tem tratado com muita deferência, mas eu bem avalio o
risco que estou correndo. Creia no meu respeito.
Antonio Gurgel do Amaral
Àquela altura, as autoridades públicas de Mossoró já se encontravam mobilizadas para
organizar a defesa da cidade e o prefeito respondeu prontamente com outro bilhete,
curto, no qual afirmava não possuir tal quantia – os quatrocentos contos – nem saber do
paradeiro do senhor Jaime, que se encontraria “refugiado”. E concluía: “Estamos
dispostos a recebê-los na altura em que eles desejarem. Nossa situação oferece absoluta
confiança e inteira segurança67.”
Lampião ficou furioso com tal resposta e enviou novo bilhete, redigido desta vez por ele
mesmo, no qual o tom já era outro e se resumia a: manda logo o dinheiro que exigi ou
“vai haver muito estrago”. E ainda deixava bem claro que estava sendo bondoso ao dar
esse aviso. Um emissário, Formiga, levou o bilhete.
Novamente o prefeito respondeu com outro bilhete – desta vez endereçado ao próprio
Lampião – no qual afirmava que não possuía aquela soma nem o comércio a possuía; e
que o Banco se encontrava fechado, pois todos os funcionários haviam se retirado da
cidade. Outra vez concluía seu bilhete com palavras destemidas: “Estamos dispostos a
acarretar com tudo que o Sr. queira fazer contra nós. A cidade acha-se firmemente
67 Almeida 1981: 44-45.
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inabalável na sua defesa confiando na mesma.” Pelo que se sabe, Lampião nem teria
chegado a receber esse bilhete. Segundo Almeida68,provavelmente porque o emissário
temera retornar com tal resposta e sofrer na pele as conseqüências do ódio de Lampião
diante dessa recusa definitiva.
Seu bando, aliás, junto aos outros bandos liderados por Jararaca e por Massilon Leite, já
estava em marcha rumo a Mossoró, enquanto a prefeitura cuidava em armar cerca de
200 homens para resistir à invasão, à bala. Não apenas à bala, na verdade: reuniu-se
todo o armamento, de facas de cozinha a facões, foices, paus e pedras. Ao todo,
Almeida69, e outras fontes como os jornais de então, falam em até 400 homens
mobilizados e armados à espera dos cangaceiros. O comando geral coube ao capitão
Abdon Nunes, mas as guarnições eram compostas predominantemente de civis.
As trincheiras70, uma no palacete do prefeito, outra na estrada de ferro, no Telégrafo
Nacional, no Colégio Santa Luzia, na principal firma de exportação, nas principais
praças da cidade e nas quatro igrejas: Santa Luzia (a Matriz), Coração de Jesus, São
Vicente de Paulo e Nossa Senhora da Conceição. A propósito dessas quatro igrejas,
aliás, corre uma das mais saborosas passagens dessa história, que contribui para dar a
ela um acentuado sabor de lenda: no momento em que avistou a cidade do Alto da
Conceição, Lampião teria dito71 ao companheiro Sabino Gomes e a Massilon Benevides
que “cidade de quatro torres” não lhe trazia bom agouro... Essa passagem é repetida
vezes sem conta nas crônicas sobre Mossoró, mas também naquelas que tomam como
foco o cangaceiro Lampião e seu misticismo. Lampião temia a proteção religiosa sob a
68 1981: 46. 69 1981: 48. 70 Almeida 1981: 48-49. 71 Almeida 1981: 51.
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qual estaria a cidade, mas, mais importante, entendia o que aquilo significava como
sinal de desenvolvimento. Mossoró72 era, para os padrões da época, uma cidade
moderna, que não ficava a dever à capital. Além das quatro torres, isto é, das quatro
igrejas católicas, também contava com duas agências bancárias, o que era um indício de
prosperidade.
E foi o sino da igreja de São Vicente que anunciou para os entrincheirados e toda a
população que restara na cidade escondida em suas casas – também fortificadas dentro
do possível – a entrada dos cangaceiros na cidade, já no Alto da Conceição73, área
urbana, que caminhavam para em direção ao centro. Cerca de quarenta homens
seguiam com Lampião nessa marcha, enquanto outros eram mantidos na retaguarda. Por
volta das 16:30, soaram os primeiros tiros, ainda de alerta, da parte de um dos soldados
de Mossoró, sob uma chuva fina. Todos souberam então que havia chegado o momento
do confronto.
72 Antiga povoação de Santa Luzia (sua padroeira até hoje), em 1870 é elevada à condição de cidade, já então um empório comercial, entreposto, para uma vasta região que incluía parte do sertão do Rio Grande do Norte, Paraíba e Ceará. Mossoró fica localizada no oeste do estado do Rio Grande do Norte, situada entre o litoral semi-árido (o litoral salineiro) e o sertão da Chapada do Apodi, que é cortada pelo rio Apodi-Mossoró. Era no final daquela década de 70 do século XIX, a cidade mais rica da região, lugar para onde os flagelados da seca de 1877 correram a buscar trabalho, oferecendo às salinas, às obras públicas e aos demais setores sua mão-de-obra barata, o que teria impulsionado a economia local. A Mossoró contemporânea acrescentou ao sal, riqueza emblemática da cidade, à agroindústria (principalmente, o algodão, até sua crise nos anos 80 devido a uma praga e à seca) e à pecuária, mais recentemente, a exploração de petróleo e gás, com a instalação da Petrobrás, e as culturas de frutas tropicais como o melão e o caju, possíveis graças às técnicas de irrigação que tornaram propícias para esse plantio as terras da Chapada do Apodi. Desde os anos 20, todavia, a cidade já tinha ares de cidade industrial, com suas salinas, suas mineradoras (gipsita: gesso) e suas unidades agroindustriais que produziam matérias-primas para o Centro-Sul do país, principalmente São Paulo. (Felipe 2001: 79-88, 170-1). 73 Almeida 1981: 51-52.
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Lampião dividiu seu grupo74 em três facções: uma chefiada por ele, as outras por Sabino
e Massilon Benevides. A dele atacaria a estrada de ferro, a de Sabino a trincheira
guardada pelo Coronel Rodolfo, o prefeito, e a de Massilon, a do Telégrafo.
Nas imediações da estrada de ferro, a facção chefiada por Lampião começou a dar tiros
que provocaram enorme barulho, todos ao mesmo tempo, e foram logo acompanhados
por aqueles que, chefiados por Sabino, estavam atrás da igreja de São Vicente,
aguardando o momento de tomar a trincheira chefiada pelo prefeito. Logo teve início o
tiroteio cerrado75 sob a chuva, entre os cangaceiros que se esgueiravam pelas laterais
das ruas e mesmo cruzavam o meio das ruas e praças, entre gritos, tiros, relâmpagos e
trovões, e os homens entrincheirados no alto da torre da igreja, no parapeito do palácio
do prefeito, na Praça 6 de Janeiro.
Contra a trincheira armada na Estrada de Ferro, Lampião também não estava tendo mais
sucesso. Logo, ele se entrincheirou com seus homens em um prédio próximo, para
tentar equilibrar a situação, já que seus homens estavam a descoberto. Enquanto isso, na
praça da igreja de São Vicente tombava Colchete, morto no meio da rua por um tiro
disparado da torre no momento em que tentava alcançar uma barricada que ali se
encontrava. Nesse momento, Jararaca correu para junto do corpo de seu companheiro,
expondo-se ao mesmo risco, para retirar dele a arma e todos os objetos de valor76 que
pudesse ter no bornal77. Foi quando o feriram também, no pulmão direito e depois,
74 Almeida 1981: 56. 75 Almeida 1981: 56. 76 Para que não caíssem nas mãos dos inimigos, prática costumeira dos cangaceiros nessas circunstâncias. 77 Saco de pano ou couro levado à tiracolo, espécie de bolsa.
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enquanto fugia, na perna esquerda. Ainda assim, conseguiu fugir da praça e sumir da
vista dos atiradores78.
De repente o tiroteio cessou. Os cangaceiros se retiravam, vencidos, após não mais que
vinte minutos de tiroteio intenso. Contam os cronistas79 que não durou mais que isso: 20
minutos. Após alguns instantes de silêncio, novos tiros partiram das trincheiras dos
homens de Mossoró, mas os cangaceiros não responderam. Naquele instante, ninguém
sabia direito o que estava acontecendo.
Permaneceram em seus postos, aguardando, a noite toda, madrugada de 13 para 14 de
Junho de 1927. Ninguém dormiu, nem nas trincheiras nem nas casas. Mas os homens de
Lampião àquela hora já rumavam para o Ceará, tendo deixado para trás o companheiro
Jararaca que então se escondia em algum matagal...
E de fato foi no meio do mato próximo à margem do rio, logo após a ponte da estrada
de ferro, que um cidadão chamado Pedro Tomé, encontrou o cangaceiro ferido em
estado grave na manhã do dia 14. Ouviu seus gemidos e aproximou-se, já imaginando
então de quem se tratava, conforme declarou depois. Jararaca então lhe ofereceu
dinheiro em troca de seu silêncio e ajuda na obtenção de algumas substâncias que lhe
permitisse tratar, ele próprio, seus ferimentos. Pedro foi embora com o dinheiro e logo
retornou com a polícia, que prendeu Jararaca na cadeia da cidade, para onde logo
acorreu uma ruma de gente curiosa para ver o cangaceiro.
Ninguém pôde vê-lo inicialmente, porém, somente o engenheiro da Estrada de Ferro e
um jornalista, Lauro da Escóssia, do jornal O Mossoroense80, que veio a entrevistá-lo
78 Almeida 1981: 59-60. 79 Almeida 1981: 62. 80 Que existe até hoje.
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antes mesmo de seu depoimento à própria polícia. Além deles, somente o médico teve
acesso imediato a Jararaca na prisão.
Durante a entrevista com o jornalista, Jararaca sentia muitas dores, mas não deixou por
isso de fazer comentários sarcásticos, de lisonjear a beleza de uma moça da sociedade
local que invadiu a sala pela curiosidade de ver a todo custo o cangaceiro e de gargalhar
entre uma careta de dor e outra. E ainda disse: “Eu nunca matei ninguém!81”.
Jararaca permaneceu na cadeia do dia 14 até o dia 18, enquanto seus ferimentos eram
tratados pelo médico e ele apresentava uma visível melhora. No entanto, na noite do dia
18, já bem tarde, o capitão Abdon Nunes de Carvalho, comandante da polícia, mandou
alguns de seus homens à cadeia com a informação de que deveriam conduzi-lo para o
presídio de Natal. Foi colocado em um caminhão particular contratado para esse
serviço, de tal Homero Couto, e este, no meio do trajeto, recebeu ordens para mudar o
rumo: não mais para fora da cidade, mas para o cemitério local. Àquela hora uma cova
aberta já esperava por Jararaca.
Assim, enquanto toda a cidade de Mossoró dormia, Jararaca morria – ou, como crêem
muitos até hoje, era lançado ainda vivo nessa cova e sepultado sob a terra82. Durante
dias, todos pensaram na cidade que ele havia mesmo sido transferido para Natal. Porém,
81 Li essa entrevista no jornal O Mossoroense de 19 de Junho de 1927. A entrevista não tem a forma atual de perguntas & respostas. Nela, as declarações de Jararaca estão inseridas na crônica dos fatos relativos à invasão, redigida pelo jornalista Lauro da Escóssia, na qual, bem de acordo com o estilo retórico da época nesse meio, é às vezes difícil saber o que é pensamento do entrevistado e o que é opinião (ou impressão) do entrevistador. 82 Lauro da Escóssia nas anotações para seu livro Memórias de um Jornalista Provinciano escreveu: “Jararaca foi sangrado, de maneira bárbara, fria e covarde, pelo soldado João Arcanjo, um sujeito de pequena estatura e de grande perversidade. Estava com as mãos atadas às costas, sendo-lhe impossível qualquer gesto de defesa.” Depois disso. Conta que ele teria sido pisoteado por seu assassino logo após ter levado uma coronhada de revólver e uma punhalada. Teria sido então empurrado com os pés para que rolasse para dentro da cova, onde teria sido, em seguida, coberto de terra enquanto agonizava, com os olhos ainda abertos. “Não lhe deram tempo sequer de morrer. Jararaca foi sepultado ainda com vida.” Consultei as notas do livro de Lauro da Escóssia nos arquivos do Museu do Cangaço, em Mossoró.
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muitos cronistas, jornalistas e historiadores83 – e o jornal O Mossoroense – registram
que o capitão Abdon Nunes teria contado a verdadeira história algum tempo depois, em
um inquérito que, obviamente, não deu em nada.
Palavras do jornalista, “homem de algumas ciências” e também “sociólogo84” já quase
no final de seu livro, após narrar os fatos, conforme noticiados nos jornais daquela
época, que teriam levado à morte de José Leite de Santana, o Jararaca:
Ao ver a cova que lhe fora preparada, Jararaca tornou a falar:
- Vocês querem me matar. Mas não vão me ver chorar de medo não. Nem pedir
de mãos postas pra não me tirar a vida. Você vão ver como é que morre um
cangaceiro.
Dito isso, mergulhou num silêncio do qual não mais saiu. Aquelas foram suas
últimas palavras.
E – fato curioso! – não havia ódio nos gestos e nas palavras de Jararaca. Havia
desprezo, isto sim, muito desprezo; não ódio. Foi o que me garantiu o repórter
Lauro da Escóssia, do O Mossoroense, que entrevistou um dos carrascos de
Jararaca, conseguindo arrancar-lhe essa confissão preciosa. E eu acredito nele.
Porque eu sei que só os fracos sentem ódio. E José Leite, o conhecido Jararaca,
algumas vezes lugar-tenente de Lampião, não era um fraco. Era daquela raça
de homens rijos, de resistência física e de fortaleza de ânimo inquebrantáveis,
decantada pelo repórter-sociólogo de Os Sertões, que afirmou ser o sertanejo
antes de tudo um forte. Jararaca sentia apenas desprezo pelos soldados que o
prenderam à custa de uma traição e agora o escoltavam para a morte; sentia
83 Almeida 1981: 81. 84 Segundo as definições elogiosas do seu prefaciador Jader de Carvalho.
- 70 -
apenas desdém por aqueles “macacos do governo”. Não os temia; por isso não
sentia ódio.
Não é difícil entender que se tal foi a visão dos fatos veiculada por jornalistas do peso
de Fénelon Almeida85 e Lauro da Escóssia - este morador da cidade e contemporâneo
desses fatos86 - não muito diferente terá sido a visão popular construída a partir daí. A
fala dos jornalistas teve um papel considerável na constituição desse objeto de culto
póstumo, com sua linguagem capaz de chegar tão perto da fala popular e das imagens e
representações caras à cultura local. Se os jornais em Natal estamparam os “heróis” da
polícia que haviam matado João Baracho ao invés de prendê-lo, os de Mossoró também
cantaram em verso e prosa a resistência vitoriosa do povo da cidade, seus valentes
homens. Mas a vitória desses homens foi apresentada nessas matérias e percebida pela
população como uma vitória da cidade, do povo unificado enquanto tal contra uma
ameaça externa, representada pelos cangaceiros, bandidos nômades que eram de lugar
nenhum. Porém, isso não eliminou as críticas à conduta imoral, desumana, cruel da
polícia, que teria matado um homem preso, já vencido. Aquelas declarações do carrasco
anônimo entrevistado por Lauro da Escóssia, a que Almeida fez referência, foram
publicadas n’O Mossoroense e ganharam a boca do povo. Aliás, já corriam à boca
pequena pela cidade.
85 Que com o livro Jararaca: o Cangaceiro que Virou Santo ganhou o “Prêmio Associação Cearense de Imprensa” em 1980, “concedido anualmente ao melhor trabalho sobre tema social, econômico ou cultural publicado na imprensa do Ceará” (conforme consta na folha de rosto do livro, editado pela Guararapes, em Recife, em 1981). 86 E hoje grande personalidade da história de Mossoró, que dá nome ao Museu que é popularmente conhecido como “Museu do Cangaço”, onde se encontram documentos escritos, jornais e fotos relativos à invasão, inclusive fotografias de Jararaca durante seu tempo na cadeia. O Museu também sedia alguns encontros de estudos e simpósios da Sociedade Brasileira para o Estudo do Cangaço, SBEC, do qual cheguei a participar algumas vezes.
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No caso de Baracho, em Natal, também não faltaram críticas à ação da polícia, que o
fuzilou quando já o havia encurralado em um beco, a ele que estava desarmado. Críticas
que nos jornais foram discretas, mas que encontraram espaço maior nos programas de
rádio populares e na boca do povo. Pois que Baracho não era, ao contrário de Jararaca,
percebido como um estrangeiro contra o qual o povo do lugar se unificara87, antes era
“um deles”. Principalmente para seus vizinhos, posto que morreu e veio a ser sepultado
no bairro onde morara.
É certo que ali não tinha vínculos sociais de caráter permanente ou intensos com os
vizinhos, exceto uma companheira, Maria Lúcia, com quem morava há pouco tempo, e
que era feirante como ele. Não tinha parentes em Natal, apenas no interior do Estado.
Mas os depoimentos dos vizinhos à imprensa na época, seu tom, suas palavras – e os
depoimentos dos moradores do local e arredores hoje – deixam claro que Baracho era, e
é, percebido antes como semelhante do que como um estranho, a despeito do quanto o
noticiário policial o tenha exotizado e distanciado na construção de sua identidade
pública enquanto bandido, algo mitificado, por meio dos termos e imagens comuns no
jornalismo policial da época, com seu excesso de adjetivos e tom afetivo na descrição
dos crimes e dos criminosos, que recebiam às vezes em um único parágrafo da
reportagem três ou quatro desses adjetivos: facínora, algoz, carnífice, fera, homicida,
sanguinário, perverso, cruel, sicário, e, mais suaves, meliante, biltre, infame, vil. Suas
ações também eram superlativas: atrozes, sinistras, medonhas, perversas, monstruosas...
87 O que é claro que também não aconteceu realmente em Mossoró, posto que maior parte da população tratasse de fugir bem depressa à notícia da aproximação dos cangaceiros. Mas o que importa é que assim os fatos foram contados; e que os homens armados pelas autoridades que lá ficaram estavam representando o povo da cidade, defendendo seu prefeito, suas igrejas, seu Telégrafo, e não apenas o patrimônio privado de alguém. A invasão de um bando de cangaceiros, que tinha por hábito saquear a cidade e deixá-la destruída, era uma ameaça contra todos, ainda que as representações dos cangaceiros pudessem ser as mais diversas para cada grupo familiar ou indivíduo, e que não faltassem os que nessas ocasiões se juntassem ao bando, insatisfeitos com a própria miséria, desejosos de vingança contra os poderosos da cidade ou por pura ambição de riqueza.
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No entanto, o pedreiro e feirante Baracho, embora alguns afirmassem depois suspeitar
que também fosse um ladrão ou até assaltante à mão armada, não chegava sequer perto,
no final dos anos cinqüenta, da representação popular do cangaceiro do final dos anos
vinte. Baracho parecia ser, no máximo, para seus vizinhos, um bandido urbano daqueles
que o povo chama marginal, sujeito de vida meio incerta, sem estudo e sem trabalho,
sem família que se conheça, enfim, um perdido, como me disse certa vez dona
Margarida, uma devota. Mas também alguém do bairro, da favela88, alguém que não
ameaçava aos vizinhos, mas que eles também não estavam dispostos a proteger, pois a
corda sempre arrebenta do lado do mais fraco e a polícia já estava atrás. (seu
Adailton).
Houve, sim, toda uma construção do bandido Baracho “matador de motoristas”, porém
essa construção, se surtiu um efeito, foi antes no sentido de contribuir para sua
mitificação ainda em vida – que culminará, em um processo contínuo, em sua
santificação póstuma, após aquela morte pública e dramática, que o colocou de imediato
na boca do povo já em um outro registro. Não mais o suposto facínora, o vizinho
comum que virara por algum tempo o estranho de que falava os jornais, mas uma
vítima, como eles, do abuso das autoridades que ao invés de defendê-los estavam
prontas a invadir os becos da favela atirando para todos os lados. E que matava quando
tinha a possibilidade de cumprir a lei e apenas prendê-lo e reconduzi-lo à cadeia, de
onde, aliás, só saíra por incompetência ou má-fé sua.
Esse discurso que levanta a hipótese – para muitos hoje uma certeza – de que essa fuga
teria sido facilitada para ensejar e justificar uma caçada encenada ao bandido, que 88 Lembro certo rapaz muito jovem, porém adulto, que estava ajoelhado rezando na véspera do Dia de Finados. Negro, magro, de shorts. Quando ele se levantou após ter acendido sua vela e feito sua oração breve e passou por mim eu perguntei se ele havia feito promessa. Ele mal parou, só respondeu que não, que só viera rezar por Baracho. Eu perguntei porquê. Ele parou e me disse “Porque é costume... Mataram o mano aí, então todo ano é costume: o povo vem rezar pra ele. Eu também venho.” E foi-se embora sem dizer mais nada, sem sequer se interessar em saber o porquê das minhas perguntas.
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levaria o caso de volta para a primeira página dos jornais com uma vitória sensacional
da polícia, é extremamente comum e endossado por muitas pessoas. Não apenas por
“ingênuos” devotos, mas também por muitas pessoas que nunca dariam água para
Baracho, nem em vida nem após sua morte.
Por outro lado, essa visão é muito mais uma forma de falar de política (e criticar o
populismo aluisista) do que de avaliar com objetividade as possibilidades de uma fuga
da cadeia pública, nem tão remotas a julgar pelas condições descritas com detalhes na
imprensa da época. Os guardas simplesmente estariam dormindo enquanto Baracho
cerrava as grades para fugir. Teria saído pela porta da frente da delegacia sem ser visto.
O “Primeiro Milagre”
É difícil precisar quando começaram as visitas aos túmulos de Jararaca e Baracho para
pedir milagres. As narrativas que contam os primeiros milagres de ambos têm uma
conotação mítica, não há relatos registrados em nenhuma fonte escrita, nenhum
documento. Só mesmo os relatos orais. As homenagens fúnebres começaram no próprio
enterro no caso de Baracho e algum tempo depois do enterro, quando começou a
circular a notícia de que Jararaca estava morto e sepultado em Mossoró. Pois o enterro
do até há pouco quase anônimo João-Ninguém Baracho foi público tanto quanto sua
morte e a exibição de seu cadáver pelas ruas da cidade89, mas o do temido cangaceiro90
José Leite de Santana foi sua morte e foi tão clandestino quanto a notícia dela.
89 Fato de que não tenho qualquer comprovação documental, somente depoimentos orais. 90 Digo ‘temido’ não tanto enquanto indivíduo, mas pelo que o cangaço e a figura do cangaceiro representavam no imaginário do povo sertanejo naquele final dos anos vinte: fonte de temor, até de terror, mas também de admiração, de respeito, reverência, matriz de incontáveis narrativas de sabor lendário; encarnação da violência bruta, mas também de princípios de honra masculina e vingança, de acordo com toda uma moralidade e uma lógica de reciprocidade social familiares aos sertanejos. Além disso, montados em seus cavalos, com suas armas potentes e riquezas reais
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O primeiro milagre, fundador da santidade de Jararaca, é um milagre onírico que
pertence ao repertório da tradição oral não apenas do cangaço, mas dos contos
maravilhosos em geral: é a história do tesouro enterrado que o morto não teve tempo de
desenterrar ou passar como herança a alguém. E que, enquanto permanecer enterrado,
faz com que sua alma vague em estado de desassossego. Trata-se aí, dentre outros
possíveis significados, de uma moral anti-avareza. É preciso, pois, desenterrar o tesouro
para que o morto descanse em paz. Essa tarefa cabe normalmente àquele que recebe a
mensagem do morto, seu pedido de ajuda do Além. Ele pode surgir para o vivo em
vigília como uma aparição fantasmagórica ou uma voz no escuro ou como uma visão
onírica. Assim foi com o tesouro de Jararaca. Este sonho eu conto em detalhes no
capítulo 3.
Aqui o que importa é que este foi o primeiro milagre: um casal pobre teria desenterrado
o tesouro, após receberem o pedido de Jararaca em sonho, e assim enriquecido e
mudado de vida (e de cidade) para sempre. Conta-se essa história em torno do túmulo
de Jararaca, em Mossoró, mas todos a contam com um sorriso nos lábios, como quem
contradiz com uma piscadela o que conta, pois sabe que não é verdade. Ou que não
precisa ser verdade para continuar sendo narrado. Mas eu não tenho dúvidas de que
algumas vezes ouvi uma sincera esperança na voz que, em meio a um depoimento mais
pessoal, sobre uma situação de aflição familiar por motivo de doença ou desemprego,
recordava essa história. Jararaca bem pode aparecer e apontar para um tesouro que só
estaria esperando ser descoberto: um novo emprego, uma cura para a doença, um
horizonte de vida mais feliz, uma porta aberta em algum lugar.
(frutos dos saques, resgates e “presentes” feitos pelas autoridades aliadas) e imaginárias (os tesouros escondidos), eles vinham ao encontro de toda uma antiga tradição na região de narrativas das façanhas heróicas de personagens como os Doze Pares de França e Carlos Magno. (Queiroz 1997: 45)
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Já o primeiro milagre de Baracho eu já contei: a cura do filho da viúva do homem que
ele teria assassinado. Alguns duvidam que fosse mesmo a tal viúva, mas apenas para
dizer: não era ela não, era uma mulher lá de Igapó, que veio rezar pra ele no dia
seguinte do enterro com a filhinha muito doente. Outros dizem que a mulher nem era de
Natal, que teria vindo de longe; ou que não era uma filha, mas um filho, que estava
doente; ou que o filho/a estava à beira da morte no hospital e, sabendo da morte de
Baracho daquele jeito, a mulher teria vindo, comovida, orar por sua alma sem pedir
nada. Essa mulher, em qualquer das variantes do mito, é uma mãe que pede uma cura
para o filho/a.
Mas a versão mais forte, sem dúvida a que reúne o maior número de elementos
significativos, é aquela que a faz viúva de uma das vítimas, pois que nesta o elemento
do perdão aparece explicitamente marcado – e esse é um tema caro ao universo católico
popular, e presente de modo central nos discursos dos devotos de Baracho e Jararaca
sobre sua ‘conversão’ póstuma à santidade. Note-se que na mera presença – que nunca é
‘mera’ – das pessoas na cerimônia do enterro (ou a quaisquer outras homenagens
funerárias, depois), ainda que possa ser em parte imputada à curiosidade humana em
torno de uma figura pública, já é realizada certa “reintegração” à sociedade, pois as
homenagens fúnebres são parte dos circuitos de troca de obrigações rituais entre pessoas
que se reconhecem como pertencentes à mesma coletividade social. No entanto, como
Baracho (ou Jararaca) poderia retribuir se não era membro de nenhuma parentela no
local? Sua retribuição só poderia mesmo ser de outro tipo: espiritual. E outra invariante
no milagre mítico, além da maternidade da mulher que reza ao pé do túmulo, é que, de
fato, a criança é curada.
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Os Ritos e a Devoção
Apresentarei aqui uma descrição baseada nas observações da freqüência aos cemitérios
nos dias que antecedem ao Dia de Finados, 2 de Novembro, e nesta data, durante a qual
esses cultos aos mortos milagrosos como Baracho e Jararaca tornam-se visíveis em toda
a sua plenitude. Farei uma descrição unificada, uma vez que não há diferenças
significativas entre um e outro culto, em Natal e Mossoró; qualquer ressalva que se faça
necessária será apresentada ao longo da descrição. Esse é, aliás, um primeiro dado que
salta à vista: são tantas as diferenças histórico-biográficas entre João Baracho e Jararaca
e, no entanto, a forma ritual assumida por seu culto hoje, em duas diferentes cidades do
Estado do Rio Grande do Norte, é a mesma91: um culto funerário acrescido das
prestações rituais oferecidas em função do binômio promessa/milagre, que o qualifica
como uma espécie de santo. Como já foi dito, o cristianismo em seus primórdios contou
mesmo com um santo cujo culto era caracteristicamente um culto funerário: o mártir,
cujas relíquias eram dotadas de poder miraculoso e que exigia, para seu culto, o
deslocamento até o local de seu sepultamento.
O culto funerário remonta à Antigüidade, porém o Dia de Finados, 2 de Novembro, foi
instituído no final do século X pelo abade Odilon. Segundo Vauchez92, em um contexto
de crescente preocupação com o destino póstumo dos defuntos e com o destino incerto
dos vivos nas proximidades do Ano Mil. A prece litúrgica era, naquele momento,
menos uma forma de louvação a Deus do que de pedido de intercessão dirigido àqueles
que, santos, isto é, salvos junto a Deus, poderiam ampará-los. Esse papel cabia por
excelência aos monges mortos, cujo favorecimento pelo expressivo e inédito aumento
91 Similar também a todas as outras devoções do mesmo tipo que pululam pelos cemitérios, não apenas no Brasil. 92 1995 [1994]: 24, 38.
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no número de missas votivas naquele período seria retribuído, esperava-se, com
proteção extra aos vivos piedosos.
É interessante observar que o Dia de Todos os Santos foi instituído pela Igreja Católica
um século antes do Dia de Finados, como uma forma de atender a uma demanda da
piedade popular, já então inclinada a devotar-se à salvação das almas dos defuntos. E
também para assimilar essa tendência e neutralizar as práticas funerárias pagãs – os
cultos dos mortos - que nunca haviam deixado de ser realizadas pelo povo. Todavia, a
despeito do fortalecimento do culto dos santos nesse mesmo século IX – quando eram
vistos, como os anjos, como intercessores junto a Deus - a celebração da Festa de Todos
os Santos jamais chegaria a alcançar junto à população na Europa a mesma
popularidade que viria a ter o Dia de Finados.
Pode-se dizer o mesmo para o que se observa hoje no Brasil: Finados, apesar de ter
menos um caráter festivo (como no México) do que solene (ou pelo menos contido,
ainda que afetivo) e de rememoração dos mortos da família e dos finados ilustres,
termina por ganhar ares de festa com o burburinho dos cemitérios cheios de gente, os
vendedores ambulantes, as missas, os repórteres, os túmulos enfeitados. Já o Dia de
Todos os Santos, 1º de Novembro, só é lembrado mesmo como uma data no calendário
religioso, que só chega a ser significativa para quem é católico “praticante”, como se diz
no Brasil. Não é uma data de vocação popular.
O dia 2 de Novembro, a despeito de sua instituição religiosa como parte do calendário
católico, é para muitos uma prática leiga, uma espécie de culto secular ou profano, de
caráter privado, que consiste na homenagem ao finado socialmente próximo,
tipicamente um parente. Ariès93 chega a dizer que nos dias de hoje, na França, é para os
anti-religiosos a única ‘religião’ que teria restado, a única ainda praticada: a visita ao
93 2003 [1975]: 75.
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cemitério no Dia de Finados. Nesse dia, a morte, tão camuflada e esquecida no
cotidiano do mundo de hoje, tratada como um assunto indesejável a ser evitado, vai para
o primeiro plano, e as imagens dos cemitérios-parque e dos túmulos mais visitados,
como os dos mortos milagrosos (quase) anônimos e os artistas famosos, vão para a
primeira página dos jornais e para as reportagens de televisão e rádio.
Assim vejo o culto a Baracho, a Jararaca e a todos os mortos milagrosos: um culto
funerário que é também um culto a um santo. De certa forma, parece tratar-se de uma
manifestação da piedade popular em tudo semelhante àquela característica da
espiritualidade cristã medieval européia94, para a qual a princípio qualquer morto salvo
é um intermediário a quem pode ser dirigida uma prece, que é caracteristicamente um
pedido de intercessão em seu benefício. Ora, esse é o procedimento ritual face aos
santos oficiais tradicionais da Igreja católica; assim são eles vistos, aliás, desde o seu
surgimento. Historicamente, os primeiros santos a serem consagrados como tais, foram
os mártires, e, mais tarde, os confessores. No caso destes últimos, a santidade repousava
menos na vivência da Paixão (sofrimento em nome da fé) que precedera sua morte,
como para os mártires, do que no cumprimento exemplar das virtudes cristãs durante
sua vida.
Baracho, Jararaca e os inúmeros mortos milagrosos de que se tem notícia são
caracteristicamente mortos-mártires, cuja morte foi precedida de violência representada
como incomum, de um sofrimento extremo e, por isso, redentor. No caso dos bandidos,
ou das santas prostitutas, por exemplo, o modelo da vida virtuosa parece estar fora de
alcance, embora haja tentativas da parte dos devotos de tingir de bondade suas
biografias póstumas95.
94 Vauchez 1995 [1994] e 1981. 95 Como já foi dito, há um esforço para aproximá-los do tipo conhecido na literatura sociológica e histórica como “bandido social” (Hobsbawn 1975), o revoltado que “rouba dos pobres para
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Ao chegar ao cemitério um ou dois dias antes do Dia de Finados já se pode encontrar
uma movimentação de pessoas incomum. Muitas preferem visitar o túmulo dos parentes
para as homenagens fúnebres antes do dia 2, sob a alegação de que neste dia haveria
muito tumulto e, principalmente, muito comércio, o que lhes soa como desrespeito ao
significado religioso da data e do local. Esse discurso é corrente, presente também nas
mídias. É grande o número de pedreiros e zeladores que reformam e limpam os túmulos
a pedido dos parentes dos defuntos ou a cargo da própria administração do cemitério.
Tudo para que no feriado eles se encontrem no melhor estado de conservação possível
para receber a família que virá acrescentar a esses cuidados outras oferendas, como
velas e flores, além das preces e declarações de saudade.
Numa primeira observação, no Dia de Finados, o que distingue o túmulo de um morto
milagroso, ou santo do cemitério, do de qualquer outro morto bem visitado é o número
incomum de pessoas que se quedam junto a ele, e o vai-e-vem constante o dia inteiro,
que pode começar já na véspera. A aproximação das pessoas dá-se de maneira variável
conforme sejam já devotas, familiarizadas com a existência da devoção ou apenas
passantes que lá estão indo pela primeira vez para visitar um finado próximo. Os
devotos chegam de maneira reservada, discreta, geralmente muito calados e focados na
intenção de cumprir sua prestação ritual. É inútil tentar abordá-los nesse momento.
Se for grande o número de pessoas agachadas junto às laterais do túmulo, junto à sua
cabeceira (onde se encontra o queimador de velas, nos dois casos) ou em toda a sua
volta, elas esperam pacientemente, talvez trocando algumas palavras com seus
acompanhantes, enquanto observam os que fazem suas prestações. Por outro lado, os
dar ao povo”. Ouvi essa afirmativa a respeito do cangaceiro Jararaca – representação, aliás, muito comum quando se trata de cangaço, mesmo entre intelectuais – mas também a respeito de João Baracho. Trata-se de um discurso difundido em Mossoró e em Natal. Porém, mesmo quem o faz nunca deixa de contar sobre seus supostos crimes, a partir do que afirma saber.
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que não têm promessa a pagar nem foram “rezar para” Baracho/Jararaca, nem por isso
deixam de parar também para um dedo de prosa. São raros os que apenas passam, sem
dizer palavra. O número incomum de pessoas, de velas e, no caso de Baracho, as
chamativas garrafas de água, chamam a atenção e atraem comentários. “Esse aí é
o...(Baracho/Jararaca)” Freqüentemente, é nesse momento que a pessoa para e aponta o
túmulo ou as oferendas sobre ele para seu interlocutor e conta a história. Ou afirma:
“Dizem que faz milagre”.
Poucos são os que não param, dentre estes os que já vão ao cemitério há vários anos,
são familiarizados com o culto nessa data, e, não tendo voto com o morto ou piedade
que justifique lhe acender uma vela de intenção funerária pelo dia dos mortos,
simplesmente passam direto.
Mas há os que, ao passar, tecem comentários negativos, críticos, por vezes muito
ácidos, no qual podem estar presentes acusações e até ofensas às pessoas que ali rezam.
Os comentários e gestos negativos, de reprovação ou desagrado, são bastante comuns,
mas as agressões aos devotos e simpatizantes do morto, não, estes são mais raros.
Consistem geralmente em comentários como “Acender vela pra assassino!” ou
“Podendo pedir a Jesus, preferem pedir a esse aí”.
Aqueles que aguardavam sua vez de se aproximar da beira do túmulo, logo que podem
abaixam-se junto a ele – é o mais típico – e procuram um canto protegido do vento para
acender suas velas. Podem permanecer ali algum tempo, abaixados ou já de pé após
acenderem as velas, para orar e executar outros ritos – como passar sobre uma parte
doente do corpo um pouco da água de uma das vasilhas de Baracho, ali mesmo (outros
preferem levar para casa essa água benta).
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Ilustração 1: Jararaca, véspera de Finados de 1999.
Enquanto rezam, mantêm a cabeça baixa e os olhos fechados, movendo os lábios numa
prece que seria inaudível mesmo sem o burburinho que costuma haver nessa ocasião.
Podem, durante essa oração, manter uma mão ou ambas em contato com o túmulo,
como para reforçar o contato com o santo, ou antes, com toda a sacralidade de que tal
lugar físico se encontraria naquele momento investida. Outros não se abaixam: apenas
colocam a oferenda96 sobre o túmulo, uma coroa de flores de papel ou uma garrafa de
água, por exemplo, e permanecem de pé ao seu lado para rezar, com a cabeça baixa,
após se inclinarem para acender sua vela. Alguns poucos acendem as velas sobre o
túmulo.
96 Descrição das oferendas a seguir.
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Ilustração 2: Aglomeração próxima ao túmulo de Jararaca no Dia de Finados de 2000, por volta das oito da
manhã. Note a presença da reportagem, à esquerda.
Em volta do túmulo, a quantidade de pessoas é enorme. Entrar e sair do cemitério
durante o Dia de Finados significa andar lentamente, muitas vezes ser empurrada na
alameda principal, em meio a uma multidão de pessoas, na qual se misturam os que
caminham nos dois sentidos, os que tentam chegar aos túmulos e os que deles partem
em direção à saída.
Lá fora, outro tumulto: vendedores se apinham junto às entradas principais, com
carrocinhas de milho, cachorro quente, pipoca; mesinhas improvisadas, nas quais
vendem velas brancas e fósforos, placas votivas97; grandes caixas de isopor com
refrigerantes e água mineral etc. A rua em frente ao portão principal do cemitério, tanto
em Natal como em Mossoró, fica o dia todo interditada ao tráfego de veículos e somente
um carro da polícia pode ser visto ali, para cuidar da segurança no local.
97 Com texto já pronto, como “Saudades eternas da sua esposa e filhos” ou para ser gravado, ao gosto do freguês, no local.
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Ilustração 3: Água para quem tem sede. Túmulo de Baracho na véspera do Dia de Finados de 2000. Quase seis
horas da tarde, sol ainda quente.
À primeira vista, então, o que distingue o comportamento ritual do devoto do
comportamento do visitante de outro túmulo? No caso de Baracho, que tem uma
oferenda emblemática, relacionada a um aspecto mitologizado de sua “hagiografia”
popular – o fato de que “morreu com sede” – é fácil apontar uma diferença na própria
atitude do devoto de levar e depositar sobre o túmulo uma vasilha cheia de água. Já no
caso de Jararaca, as oferendas costumam ser as mesmas velas brancas comuns e as
flores e coroas de flores modestas, compradas na entrada do cemitério, também vistas
sobre o túmulo de Baracho.
Porém, um olhar mais cuidadoso logo percebe outros sinais diferenciadores nas próprias
oferendas: embora as plaquetas de madeira ou metal gravadas tenham sido por algum
tempo vendidas pelos ambulantes, numa espécie de modismo funerário que já não
observei no ano passado, somente sobre o túmulo do milagroso pode-se ver placas e
bilhetes escritos à mão. As placas são de agradecimento; os bilhetes mais comumente
levam pedidos, queixas, longas confissões das tristezas e descrições dos problemas em
função dos quais se necessita e se pede a ajuda do morto.
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Ilustração 4: Ex-Votos antigos, atrás do túmulo de Baracho.
Além disso, lá estão também outros ex-votos98 (além das placas), mais comumente de
madeira, rústicos: cabeça, pé, perna; e ainda mais raramente alguma fotografia do
necessitado, que se deixa na cabeceira do túmulo ou em algum canto junto a ele, mais
abrigado do sol e da chuva. Este último procedimento é mais comum quando o pedido
ou agradecimento é feito por alguém em benefício de outro, ausente99, o que não é raro,
principalmente quando a graça pedida ou o milagre alcançado tem relação com doença 98 O ex-voto, redução da frase ex-voto suscepto (Scarano 2004), é uma oferta votiva, que é feita retribuição pela graça alcançada. Devido a seu suporte material, ele é capaz, ele é capaz de ultrapassar a fugacidade do momento e persistir como um testemunho do milagre alcançado pelo devoto e, portanto, da eficácia do santo. Pode assumir várias formas: pinturas sobre tabuletas que representam a situação do doente ou a parte do corpo curada, ou a situação resolvida; pequenas esculturas do corpo ou de parte dele; textos de agradecimentos e afirmação de fé gravados sobre placas metálicas ou de madeira, dentre outras. 99 O oferecimento de uma fotografia, ou de uma miniatura física da pessoa (o que nunca vi, mas me foi descrito por uma devota e por uma testemunha hostil ao culto e contrária à sua continuidade) é frequentemente associada à feitiçaria, geralmente designada pelo nome de catimbó. Nesses casos, quando surgem tais suspeitas, as palavras feitiçaria, bruxaria e catimbó são empregadas alternativamente para designar o mesmo: uma ação simbólica de intenção maléfica contra alguém. Os que a praticam são os bruxos ou catimbozeiros.
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grave. Neste caso, não costuma ser o doente o autor da promessa nem o responsável
pelo seu pagamento, até por estar então em convalescença, mas sim seu parente. Mesmo
quando é a própria pessoa que pede o benefício para si, outro pode pagar a promessa no
seu lugar caso se encontre impossibilitada.
Portanto, a entrega dessas oferendas típicas do universo do pagamento de promessas e
da crença em milagres – isto é, do universo católico tradicional, especialmente no
âmbito disso que é chamado catolicismo popular – é um dos traços distintivos que
permitem ao observador perceber que não se trata de um culto funerário comum. O
morto privado, que recebe somente a visita de sua própria família e amigos mais
chegados, também recebe velas, que é a oferenda religiosa por excelência, carregada de
significados, mas não recebe ex-votos; pode receber uma cartinha amorosa, depositada
simbolicamente sobre a sepultura junto a flores, mas não receberá vasilhas de água.
Esse morto privado também recebe as orações de seus familiares, os votos de que
descanse em paz e até pedidos para que zele pelos seus do Além. Mas não recebe
promessas. Sendo um parente, dele se espera que zele pelos seus por definição, tanto
quanto se reconhece a obrigação de manter por sua memória o devido zelo, no
cumprimento dos ritos anuais100.
Mortos milagrosos são, portanto, mortos públicos, e disso a quantidade e constância das
visitas que se sucedem ao longo do dia, e desde as vésperas de Finados, já dão uma
pista. Não é, todavia, uma questão de quantidade somente, mas de domínio público:
Baracho e Jararaca são um assunto de todos. Eles não têm parentes no local que zelem
por seus túmulos, no entanto cheguei a ver um devoto que esperava que alguém, em
pagamento por uma promessa, terminasse de pintar o túmulo de Baracho de azul, para
100 Geralmente, não passa disso, já que no cotidiano a política de evitação do assunto morte prevalece nesse segmento social como em todos os demais, embora os mortos compareçam nas conversas, sempre citados, quando há algum drama familiar em questão.
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que ele, para pagar a sua própria, o pintasse por cima de amarelo. Não se pode dizer que
seus túmulos estejam abandonados, principalmente nas imediações da data ritual.
O burburinho em torno de seu túmulo aponta para isso: eles são mortos que dizem
respeito a todos, aos que lhes se devotam, aos que neles crêem (em seus milagres) sem
se comprometer diretamente com algum pedido, aos que lhes prestam culto funerário
por uma questão de piedade cristã, por solidariedade, chamando a si o cuidado do
morto, aos que apenas são curiosos e atraídos pela boa conversa em torno do túmulo,
principalmente nas horas mais calmas, de cemitério menos cheio, e até aos que lhe são
antipáticos, hostis. Pois que todos se importam.
Por outro lado, o culto privado de cada família diz respeito somente a ela. Ninguém se
atreveria a interromper e perguntar algo sobre o finado quando aquelas poucas pessoas
se aproximam do túmulo, muitas vezes somente duas ou três, quando não uma só, para
acender suas velas e rezar. Mesmo os catadores de cera, que recolhem os restos das
velas queimadas, por vezes de modo meio afoito, não deixam de ter cuidado ao
passarem perto de uma família que homenageia seu parente finado. Jamais vi um deles
se aproximar ou tocar o túmulo que estivesse naquele momento recebendo a visita dos
parentes. Já nos túmulos de Baracho e de Jararaca eles mal esperam que a vela de certo
devoto acabe de queimar para ir lá raspar do chão o resíduo de cera e mesmo algumas
velas pela metade. E isto ao lado de outro devoto que ainda reza junto às suas próprias
velas.
Outra diferença é que a família logo vai embora, tão logo termina a oração. É raro que
as pessoas permaneçam algum tempo mais próximas ao túmulo, mas, por outro lado, é
comum que circulem pelo cemitério para ir a mais alguns túmulos de outros parentes
que tenham sepultados ali ou de mortos célebres, mortos públicos. No cemitério do
Bom Pastor, em Natal, por exemplo, está enterrado o cantor potiguar Carlos Alexandre.
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Até alguns anos atrás sua sepultura era outro ponto que atraía intensa visitação, porém
isso já não ocorre atualmente. Ano passado ao seu lado só estavam três fãs fiéis, um
deles com vários dos seus velhos LPs e um álbum de recortes do seu tempo de glória101.
Além disso, o próprio deslocamento até o cemitério, em se tratando de um morto que
não seja da família, é visto como uma dádiva, um sacrifício, como costumam ser
representadas as peregrinações102 e romarias em geral. O esforço físico de ir até lá
também conta, embora seja verdade que o mais comum seja que as pessoas vão até lá
para visitar seus parentes e descubram acidentalmente o culto, o qual passam a incluir
em sua visita daí em diante, em alguns casos mesmo quando não há promessa ou voto
envolvido.
Dentro dos cemitérios de São Sebastião, em Mossoró, e do Bom Pastor, em Natal, os
túmulos de Jararaca e de Baracho encontram-se em uma localização privilegiada,
101 Nasceu em Nova Cruz - RN como Pedro Soares Bezerra. Gravou pela RGE o compacto com as músicas: “Arma de Vingança” e “Canção do Paralítico”, vendendo mais de 100 mil cópias. No entanto, foi o LP “Feiticeira”, gravado também em Castelhano, que o consagrou com 250 mil cópias vendidas. Outro grande sucesso foi a música “Ciganinha”. Carlos Alexandre deixou mais de 200 músicas gravadas em 3 compactos, 14 Lp‘s, além de diversas coletâneas, que lhe renderam 15 discos de ouro durante sua curta carreira. A morte, trágica, resultado de um acidente na estrada, do artista ainda jovem e no auge do sucesso e popularidade, causou forte comoção popular. Ele foi sepultado no cemitério Bom Pastor, o mesmo no qual se encontra João Baracho, e embora atualmente as homenagens estejam se tornando escassas em número (praticamente só recebe visitas numerosas no Dia de Finados) e em qualidade – apenas seus parentes e alguns fãs fiéis , membros de alguns fã-clubes, ainda o recordam durante a homenagem aos mortos e em seu aniversário, fazendo com que perca em número de visitantes e homenagens, de longe, para Baracho, cujo túmulo está relativamente perto, mas em outra parte, mais central do cemitério. Os fãs costumam estar lá com os velhos LPs e usam camisetas com a estampa de seu ídolo.
102 Uma peregrinação como aquela realizada em Iasi, na Moldávia, na festa de Paraschiva, santa oficial de grande destaque como símbolo nacional, guarda um caráter funerário tanto nos ritos que a constituem – cantos fúnebres, a exposição da relíquia da santa em seu caixão, com o qual os devotos procuram algum contato físico que seria fonte de bênçãos – como pelo próprio simbolismo associado à face menos oficial da santa, conhecida como Vendredi e associada aos cemitérios e à morte, concebida como “viagem”. Paraschiva teria sido, ela própria, uma viajante que teria escapado, milagrosamente, da morte diversas vezes ao longo de sua vida. A procissão que percorre as ruas atrás de sua relíquia é chamada “Grande Vendredi” ou “Grande Sexta-Feira”. (Fabre-Vassas 1995: 59, 67). Sobre peregrinações em geral, ver Eade & Sallnow 1991.
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próximos à alameda central. O de Baracho é ainda mais fácil de ser localizado, posto
que se encontre logo em frente a essa alameda. Mas não era assim quando do seu
sepultamento, em 1962, quando aquele cemitério ainda era novo, encravado no meio
daquele bairro periférico e estigmatizado, cercado de matagal. Hoje, a rua em frente é
asfaltada e o cemitério está lotado de túmulos caros, alguns de mármore, quase
suntuosos, embora não haja ali os mausoléus de famílias ricas que se pode ver no
cemitério de Mossoró.
Baracho e Jararaca habitam hoje o centro bem localizado e mais bem cuidado dos
cemitérios103, enquanto na periferia, às margens dos muros, podem ser encontradas
aquelas tumbas velhas e abandonadas, algumas marcadas somente por uma cruz de
madeira, outras onde se pode ver o concreto quebrado do que foi alguma vez um
túmulo. Nessas tumbas abandonadas, sem cuidado, vez ou outra surge uma oferenda
com todas as características do catimbó, segundo a caracterização da fala popular: uma
garrafa de cachaça, uma vela vermelha. Dizem que são trabalhos para Exu104.
103 Ao contrário do que acontece com os santos do Cemitério Central de Bogotá, pesquisados por Losonczy (2001: 10, 11,14), que ocupam lá a periferia, longe das vistas dos passantes, que precisariam então buscá-las. Eles estão próximos à vala comum dos indigentes, aos defuntos mais pobres, às tumbas malcuidadas e esquecidas. No entanto, observo, lá também o que chama a atenção é justamente o fato de que não caem no esquecimento, pelo contrário: a despeito da duplicação de sua marginalidade social na própria localização que lhes coube no cemitério, seus devotos os resgatam através da homenagem funerária e da devoção religiosa que tem por modelo a devoção aos santos católicos e, mais longinquamente, aos próprios defuntos fiéis. Esses mortos milagrosos do cemitério de Bogotá são, dentre outros, Salomé, La Milagrosa, que ascendeu da fossa comum na periferia pobre do cemitério para um túmulo na ala central considerada nobre, e uma biografia, ou seja, foi individualizada desde que começou a se espalhar a notícia de seus milagres; General Rojas, um político que teria tentado acabar com a onda de violência que assolava o país ao assumir o poder, mas teria sido destituído e morto logo depois; e Kopp, um industrial alemão que teria adotado o modelo da cooperativa em sua empresa, construído habitações populares, dentre outras iniciativas no mesmo sentido, e ganhado assim a hostilidade das classes altas e a simpatia popular como um “bom patrão”. 104 Entidade da Umbanda, que o senso comum costuma associar à alguma potência diabólica. Na verdade, espécie de auxiliar e mensageiro dos orixás, sua entidades mais importantes. Ver Trindade 1985a e 1985b. Sáez (1996) também encontrou esse tipo de uso das tumbas velhas e abandonadas no cemitério de Campinas, onde pesquisou.
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A ida ao túmulo é, então, central nesse tipo de devoção. Daí ocorrerem oferendas como
as fotografias do doente para quem se faz o pedido ou pelo menos um bilhete escrito
pelo próprio, pois seria uma forma de estabelecer, por essa mediação material, um
contato físico entre o necessitado da ajuda do santo, para quem se pede o benefício, e a
tumba, suporte material de todo o valor simbólico e atributos de santidade creditados ao
morto. Portanto, além do valor penitencial da peregrinação105 até o cemitério, está
presente aí também o valor intrínseco e insubstituível do contato físico com o morto
milagroso, numa espécie de culto às relíquias que tem suas raízes longe na história da
cristandade e sempre teve fortíssimo apelo popular.
O túmulo é, também, um “lugar de memória”, para usar a terminologia conhecida de
Pierre Nora106, na medida em que nele, vai, aos poucos, ficando materializados uma
série de sinais que o diferenciam – ainda que de maneira sutil, em um lugar já tão
carregado de simbolismo como é o cemitério – dos demais. É o caso das oferendas de
santos quebrados, despojados por seus ex-donos ali, junto à sua cabeceira, ou de um ou
outro ex-voto mais antigo que persiste apesar das insistentes limpezas promovidas pela
administração do lugar.
Note-se que o túmulo como santuário enfrenta essa situação ambígua: é local sagrado
por definição, sendo o próprio cemitério um campo santo; e, como qualquer sepultura,
deve ser mantido segundo certa ética administrativa e certa visão particular de sua
sacralidade, que inclui aspectos como limpeza e respeito pelo morto e sua família. Nem
sempre é fácil determinar o limite entre a prestação de culto devota e respeitosa e o que
já pode ser considerado abuso, do ponto de vista dos que zelam pelo cemitério e dos
parentes dos outros defuntos, que o freqüentam. Mas é freqüente que as oferendas que
105 Blanc 1995: 37 106 Nora 1985.
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sejam associadas ao catimbó e religiões afro-brasileiras em geral, segundo uma visão de
senso comum amplamente compartilhada, são muito mal vistas, abertamente
reprovadas. Foi o que ocorreu com essa vasilha de cerâmica que continha substância
indeterminada, que se pode ver sobre o túmulo de Baracho:
Ilustração 5: a cuia de cerâmica foi vista como oferenda suspeita, possível feitiço ou catimbó.
Mesmo as garrafas de água para Baracho provocam da parte de algumas reações hostis e
são percebidas como desordem e sujeira quando em grande quantidade, ainda que
estejam apenas sobre o túmulo daquele a quem foram ofertadas. E aqui é útil ter
presente a análise de Mary Douglas segundo a qual a noção de sujeira (ou poluição)
seria uma forma de tratar conceitualmente uma realidade percebida como desordem no
plano cognitivo. Ou como disse a autora inglesa: “Onde há sujeira, há sistema107”. Ou
ainda, a idéia de que santidade exclui confusão: “A moralidade não conflitua com
santidade, mas a santidade é mais uma questão de separar aquilo que deve ser separado
107 1976 [1966]: 50.
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do que proteger os direitos dos maridos e irmãos108”. Assim, além do quanto possa
haver de reprovação ao culto “a um bandido” ou à crença nos milagres do morto como
mera “superstição” popular, parece haver também uma dificuldade de lidar com os
objetos imprevistos que o ritual da devoção em diferentes ‘chaves’ simbólicas traz para
aquele local. Garrafas de água mineral em pequena quantidade podem passar
despercebidas, mas não em quantidade suficiente para cobrir todo o túmulo.
Como foi observado por outros pesquisadores desses cultos em cemitério109, os outros
freqüentadores do cemitério manifestam, de modo assistemático é verdade, certo
descontentamento, que pode chegar às queixas feitas diretamente aos devotos ou aos
administradores, com a ocupação simbólica e ritual do espaço compartilhado por seus
entes queridos para a realização de práticas que não compreendem ou desaprovam. Essa
irritação é visível e manifesta nos protestantes, de modo geral, embora nem dentre eles
seja consensual.
Essa ocupação não se dá somente por meio dos objetos que circulam e são expostos à
vista, mas também pela própria freqüência, pela execução dos ritos da prece, pela
demonstração explícita da devoção a uma personagem não reconhecida por qualquer
das ortodoxias ou instituições religiosas. Tudo isso pode ser percebido como agressão
por algumas pessoas, sobretudo quando pensado – como sempre é – em um quadro
global, na relação com os demais túmulos.
Ouvi com freqüência comparações entre o túmulo de Baracho e o esquecido túmulo,
muito mais luxuoso, do cantor Carlos Alexandre, em Natal; e entre o rico mausoléu de
família, onde se encontram os restos do prefeito Rodolfo Fernandes, que liderou a
“resistência” à invasão de Mossoró pelos cangaceiros, completamente vazio e
108 Douglas 1976 [1966]: 70. 109 O artigo de Losonczy, por exemplo, 2001: 15.
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“esquecido pelo povo”, e o túmulo de Jararaca, o cangaceiro, cercado de gente e de
homenagens funerárias, pedidos e pagamentos de promessas no Dia de Finados. Os
parentes dos mortos comuns, anônimos, muitas vezes também fazem tais comparações e
parecem sentir as homenagens a esses mortos como uma ofensa aos seus mortos
privados.
Mas trata-se de um lugar de memória também no sentido de que é ali, em torno do
túmulo, que o rito se cumpre e, em cumprir-se, reelabora toda uma versão do passado do
morto – ou melhor, várias versões, postas então a dialogar entre si. Ainda com Mary
Douglas, podemos afirmar que o ritual enseja a reformulação da experiência passada110
e neste caso pouca importa de quem seja a experiência, de si ou de outrem, vivida agora
há pouco ou há algumas décadas. Assim, afirma ela, “aquilo que deveria ter sido
prevalece sobre o que era, a intenção permanentemente boa prevalece sobre a aberração
temporária”.
Também isso os devotos realizam por meio do culto: eles reformulam a história de
Baracho e de Jararaca, eles os “salvam” pela via do presumido arrependimento e do
inevitável perdão divino que a ele se seguiria, dentro de uma lógica cristã reforçada pela
piedade popular intensamente afetiva que caracteriza esses segmentos sociais111,
manifesta no gestual durante os ritos de devoção, nos recortes escolhidos para contar a
história, no tom comovido da voz que relata a graça recebida, na confiança em que o
pedido será atendido.
O Baracho “matador de motoristas” ou o Jararaca que “matava criancinhas” foram
aberrações históricas que essas pessoas procuram reinventar por meio das tramas do 110 1976 [1966]: 85. 111 Esses devotos são predominantemente do sexo feminino e acima dos vinte e cinco anos, a maioria acima dos trinta, moradoras da periferia dessas cidades e oriundas das camadas populares, quase sempre com instrução secundária (geralmente os mais jovens), primária, alguns apenas semi-alfabetizados.
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ritual, a partir de possibilidades inscritas nas estruturas simbólicas a partir da qual lêem
o mundo e seus acontecimentos raros, improváveis ou “indigestos”. Aí entram o mito
do bom bandido, o Robin Hood do sertão ou da periferia urbana pobre – o vingador dos
cordéis -, mas também os paradigmas cristãos mais caros à piedade popular, como a
Paixão de Cristo, com suas humilhações e sofrimentos impostos pelos poderosos, bem
como a crença no poder do perdão, na cura (espiritual, sempre) e na conversão-salvação.
Não vejo nesses devotos qualquer preocupação com a aprovação das autoridades
institucionais, sejam as do cemitério, sejam as das igrejas, ou da Igreja católica em
particular. A possibilidade de canonização oficial ou qualquer outro reconhecimento
por parte da Igreja, que os ignora112, nunca foi sequer mencionada por eles, embora o
assunto surgisse de passagem a propósito de um outro defunto milagroso de Natal, o
Padre João Maria. Já por se tratar de um padre a situação deste é completamente
diferente: ele é um “de dentro” da instituição religiosa, membro bem posicionado na
hierarquia eclesiástica, prestigiado pelas camadas sociais mais altas, inclusive. E,
sobretudo, sua figura pública é desde sempre vinculada à esfera da religiosidade. A
visita ao padre por parte dos devotos de Baracho113 parece enquadrar-se na categoria
peregrinação a um lugar santo, especialmente devido a sua importância histórica e
cultural na cidade, nos veículos institucionais, e divulgação nas mídias. Ao contrário do
112 No caso de Baracho ou de Jararaca, a postura da Igreja católica tem sido a de, nas raríssimas vezes em que algum agente da instituição manifestou (nunca em caráter oficial) opinião em público a respeito dos cultos, atribuir às superstições ou ao “coração ingênuo” do povo. A política oficial tem sido a de ignorá-los. Durante certo Dia de Finados pude observar uma missa que se desenrolava a poucos metros do túmulo de Baracho. O padre falava para um punhado de pessoas, sua voz saindo por um alto-falante, enquanto outras tantas pessoas continuavam passando e parando em torno ao túmulo de Baracho, àquela hora, no meio da tarde, já coberto de vasilhas de água, flores e outras oferendas, principalmente velas. 113 Alguns dos devotos de Baracho me contaram que costumam “rezar para o Padre João Maria” no cemitério e em casa, diante de uma vela acesa ou de um pequeno oratório doméstico. Não consegui, no entanto, identificar situações especifícas ou especializações que ambos pudessem ter, do ponto de vista dos devotos. Pareceu-me que recorrem um tanto indiferentemente a um ou a outro.
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marginal Baracho e, até certo ponto, de Jararaca, Padre João Maria é uma personagem
vinculada à tradição local em sua versão ortodoxa, oficial. Tem até mesmo um busto em
uma praça no centro da cidade, onde também recebe algumas manifestações, discretas,
de devoção.
Aquela atitude de indiferença ou mesmo rejeição114 a uma possível beatificação pela
Igreja católica é muito comum nos devotos dos santos do cemitério, quer exista ou não
em aberto uma discussão sobre uma possível canonização do morto milagroso. Mesmo
nos casos nos quais chegou a haver uma tentativa de abertura de processo de
beatificação, ou nos quais o processo foi aberto, como é o caso do menino Antoninho da
Rocha Marmo115, de São Paulo, o modo como os devotos lidam com a rejeição e
reprovação por parte da igreja católica é por meio da minimização da importância de
sua aprovação ou mesmo pela afirmação de sua inutilidade, posto que o que
comprovaria a santidade desses defuntos seria sua eficácia em produzir os milagres
esperados pelos devotos, prova de que estariam salvos (ou a caminho da salvação),
conforme a vontade de Deus.
Para a Igreja católica as coisas são bem mais complicadas: a eficiência não prova nada,
os milagres não são, aliás, muito bem vistos, assim como as experiências místicas. É
difícil prová-los, pois sempre deixam margem fraudes, ou podem resultar de processos
mentais patológicos ou poderes diabólicos. E mesmo os critérios para determinar o que
seja ou não um milagre dependem do estado do conhecimento da época, posto que a
definição de milagre suponha, atualmente, algo para o qual não possa haver uma
explicação racional segundo a ordem natural das coisas. Sua possibilidade é preservada,
e ainda faz parte do longo processo oficial de produção de um santo católico a exigência
114 Blanc 1995: 41, McKevitt 1995: 97. 115 Schneider 2001: 99.
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de dois milagres (para a canonização, que é sua última etapa, após ter sido aceito como
beato e, antes, como servo de Deus). Mas a tendência é desenfatizar esse aspecto em
favor da valorização da vida virtuosa e do respeito à doutrina da Igreja, nos processos de
seleção dos novos servos de Deus, beatos e santos116.
As oferendas: preces, velas, ex-votos e água
A prece já foi definida, em um ensaio clássico de Marcel Mauss117 como rito religioso
oral voltado para o que a sociedade define como sagrado. Nessa linha de pensamento,
durkheimiana, o sagrado engloba o religioso, é mais abrangente que ele, posto que sua
fonte última seja a sociedade. O religioso, por sua vez, abrange dois níveis, o dos atos –
os ritos – e os das representações religiosas – as crenças. Segundo a definição de Mauss,
a prece seria um desses atos. E como ato ritual ela não se distinguiria de qualquer outro,
como os gestos ou a dança.
A prece em lugares santos costuma ser precedida por algum gesto simbólico como o
sinal da cruz ou a bênção, que consistem em toques da mão direita sobre o rosto de uma
maneira prescrita. É comum, embora não necessário, que os devotos de Baracho e de
Jararaca se benzam antes de iniciar sua oração/reza ao pé do túmulo, diante das velas
acesas.
116 Esses processos podem se arrastar durante muitos anos, em cada uma das três etapas principais, cada uma delas subdividida em muitas outras etapas. O modelo é o do processo judiciário, com a investigação e coleta de provas para posterior exame por especialistas. A vida do candidato é investigada minuciosamente por meio de testemunhos e documentos. A primeira etapa culmina na sua promoção a Servo de Deus. Aí então tem início o exame de sua candidatura a Beato, que pode ou não ser aprovada, e levará mais alguns anos sob exame. Por fim, se tornado Beato, poderá um dia vir a ser canonizado (ou não). 117 1981: 246.
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Dentre as oferendas ofertadas nos cemitérios, começarei por aquelas presentes de modo
muito significativo nos dois casos em estudo aqui e em todos os outros casos
conhecidos a partir da minha experiência direta ou da leitura da bibliografia: as preces e
as velas. Há outras oferendas de igual importância, mas cujo caráter é particular ao culto
e só se explica em função de sua mitologia própria (a água de Baracho). Destas falarei
mais tarde, como também dos ex-votos.
As preces
A prece não é a única espécie de palavra ritualizada presente nesses cultos. Considero
também as recordações, junto com os relatos das graças alcançadas e dos problemas que
os levaram até ali, como parte desse repertório. A diferença é que o discurso da prece é
um discurso que remete de imediato para o domínio do religioso, enquanto o discurso
da memória não, embora possa ter como efeito involuntário ou objetivo confesso
sacralizar seu objeto.
Outra diferença é que a prece é um rito verbal que o devoto dirige ao Além, ao divino,
ao transcendente, enquanto as recordações são contadas para outrem, em uma
experiência horizontal, compartilhada, na qual o ouvinte rapidamente torna-se
interlocutor, fazendo com que as memórias que emergem nessa interação se constituam
em uma espécie de patchwork simbólico feito das recordações e invenções de cada um,
cuja aparência final nunca fica completamente definida ou bem acabada, ou seja, nunca
é realmente final. A prece é dirigida a Deus por meio do santo, ou ao próprio santo,
enquanto a recordação é dirigida a um outro ser humano, em situação similar, que pode
ser um devoto ou apenas um curioso que pergunta “quem é esse aí?”.
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Pode-se usar a palavra prece ou oração para referir-se a preces tradicionais como a Ave-
Maria ou o Pai-Nosso ou, ainda, para referir-se aos pedidos endereçados a Deus em
favor da salvação da alma do morto. Neste caso, o santo seria o beneficiário do pedido,
dirigido diretamente a Deus.
Uma distinção no âmbito da própria prece é aquela apontada por alguns dos devotos
entre orar e rezar: “rezar para” Baracho ou Jararaca (ou qualquer outro santo) seria o
mesmo que pedir sua intercessão, rogar a ele alguma graça. Enquanto orar seria fazer
uma oração por sua alma, pedindo a Deus que o perdoe e lhe conceda a salvação. Os
protestantes da Assembléia de Deus do bairro Bom Pastor118 que encontrei orando à
beira do túmulo de Baracho no cemitério, e até acendendo velas, são os que fazem mais
questão de frisar essa diferença. Eles dizem que não “rezam para Baracho”, que é o
modo usual de os devotos se referirem ao motivo de estar lá (“vim rezar para Baracho”).
Durante a reza para o santo, o devoto pode fazer uma promessa ou voto119. Promessa é
uma espécie de contrato firmado com o santo, por meio do qual o agora devoto – pois
que alguém se torna devoto no momento mesmo em que se devota, se consagra, a algo
ou alguém, isto é, como efeito performativo de sua ação – se compromete a pagar algo
em troca do benefício pedido em oração. É uma operação diferente do sacrifício,
ofertado antes da concessão da graça, normalmente para agradar ou acalmar a(s)
118 Protestantes, como dona Maria, 59 anos, viúva, auxiliar de cozinha numa escola pública, freqüenta a Assembléia de Deus há sete anos. Ela acendeu velas no túmulo de Baracho, mas negou qualquer promessa para ele (“Milagres só de Jesus”), o que não a impediu de participar ativamente das conversas no local, de modo a enfatizar seu conhecimento direto de pessoas que o teriam conhecido pessoalmente e testemunhado os fatos que levaram à sua morte, capital de alto valor simbólico nesse santuário fúnebre que é o túmulo do morto milagroso. 119 A promessa limita-se a uma única operação, que, uma vez encerrada (pedido e promessa, graça alcançada, promessa cumprida), encerra o relacionamento entre o santo e o devoto. Embora isso, na prática, quase nunca aconteça, pois o milagre reforça a fé e o crédito inicial dado ao santo pode converter-se em devoção contínua, embora de duração e qualidade indeterminada. O voto é diferente: ele implica um vínculo duradouro, posto que suponha renovação periódica das prestações rituais que sustentam esse vínculo vertical entre o homem e o divino.
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divindade(s) e conseguir, assim, seu favorecimento. Na promessa, a iniciativa cabe ao
homem, mas a eficácia cabe ao santo; ele é que tem que “mostrar serviço” se quiser ser,
e permanecer, acreditado por aquele que deu o primeiro passo e se dispôs à devoção120.
Não é como no sacrifício – por exemplo, nas oferendas rituais das religiões afro-
brasileiras ou em algumas receitas mágicas – que busca influir na disposição da
divindade frente aos homens ou, no caso da magia, diretamente na cadeia de relações
causais que governam as coisas; aqui sim cabe a dúvida sobre o desempenho ritual do
sacrificante, que pode não ter oferecido o suficiente ou não ter sido sincero em sua
oferta, bem como do mago, que pode ter falhado em algum detalhe durante a execução
do trabalho.
O mais comum é que o recurso à explicação pela fé da eficácia do rito (milagre), nesse
contexto do culto ao santo do cemitério, apareça como explicação de um ponto de vista
que só pode ser definido como ‘externo’. Essa explicação aparece, sobretudo, na fala de
quem não acredita no morto como santo – no sentido estrito de ser, como um santo
católico, um intercessor –, mas, ainda assim pretende justificar a eficácia alcançada
através da promessa. Se a pessoa pedir com fé, consegue. Tudo é a fé. Tudo é a fé.121
Diz que não acredita nos milagres de Baracho, Milagre só de Jesus, mas é simpática ao
culto porque diz que Deus tudo pode e que ele então pode estar fazendo milagres por
meio de Baracho. Mesmo assim, insiste, os milagres são de Deus, de Jesus, não de
Baracho, que seria, segundo ela, apenas um mortal igual a qualquer um de nós. Seu
120 Claude Lévi-Strauss (1949) já falava na “superioridade moral” daquele que se confia e se arrisca ao dar o primeiro passo para estabelecer com o outro uma relação de troca. Confiança em que a reciprocidade ocorrerá, ou seja, que o outro retribuirá a fé depositada nele. O pagamento da promessa não é, desse ponto de vista, uma retribuição, não é propriamente pagamento; já é contra-contra-prestação. 121 Dona Maria, 59 anos, ver nota 61.
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Adailton122 também diz que os milagres acontecem por causa da fé das pessoas, pois se
disse católico, porém um “católico desacreditado”, isto é, descrente.
Há que se notar quanto a este último ponto que nem os céticos nem os que se recusam a
comungar da devoção devido ao que percebem como uma incompatibilidade com sua
própria religião, nenhum deles nega a possibilidade de eficácia do ritual quanto aos
objetivos buscados pelos devotos. Ou seja, ninguém duvida que os milagres atribuídos a
Baracho ou a Jararaca ocorram de fato. A questão é outra: a quem, ou a quê, atribuí-los
e qual a razão de ocorrerem. O diabo engana as pessoas. Sabe enganar. Ele era
criminoso, só pode estar no inferno agora. Milagre só se for do diabo123.
As velas
Vela branca é a oferenda por excelência em praticamente todos os cultos religiosos124,
em qualquer santuário, das igrejas, com seus cruzeiros125, aos cemitérios (que também
122 Adailton Moreira dos Santos, 61 anos, não informou a profissão. Morador do Bom Pastor desde criança, afirmou ter conhecido Baracho “quando ele era vivo”. 123 Conceição da Silva Costa, 34 anos, zeladora no cemitério Bom Pastor, mora no mesmo bairro. Essas suas palavras foram quase replicadas na boca de Katiane, 18 anos, ex-católica (“não acredito mais nesse negócio de santo não. Santo de barro não pode se mover.”), que afirma não freqüentar mais igrejas, mas já ter freqüentado a Igreja do Nazareno, ali mesmo no bairro (Bom Pastor). Hoje só crê na Bíblia. Ela manifestou revolta diante do culto e chegou a agredir a coletividade dos devotos, ao dirigir-lhes palavras como “É um absurdo isso. Rezar pra assassino!” “Santo nada, ele tá é mortinho, aí debaixo da terra. Se fosse santo tava lá junto de Deus, mas que santo o quê!” Segundo ela, “isso [apontando para as garrafas d’água e velas sobre o túmulo, signos de promessas cumpridas, logo de graças alcançadas) é coisa do diabo”. Em torno do túmulo de Jararaca, em Mossoró, presenciei muitas pessoas que, ao passarem próximas, soltavam entre elas algum comentário de reprovação em voz alta, mas nada tão hostil quanto o que cheguei a presenciar no local do culto a Baracho, em Natal. 124 Ou mesmo em cultos laicos, como o culto à memória dos mortos, que tenham como modelo o culto religioso. 125 Local assinalado com uma cruz destinado à oferta de velas, mas que também pode receber ex-votos e outras oferendas menos comuns. Esses lugares costumam receber um maior número de oferendas às segundas-feiras, “dia das almas”. Junto às velas e algumas placas de
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tem como local privilegiado de oferendas um ou mais cruzeiros), passando pelos
santuários locais, tradicionais, como aqueles associados a aparições de santos.
Acender a vela ou – como é mais comum no caso do culto aos mortos milagrosos – as
velas126 é o rito mais comum, junto à prece. Na verdade, são ritos simultâneos, embora
eu já tenha visto algumas vezes pessoas que se aproximam do túmulo e saem
rapidamente após arremessarem ao fogaréu das velas que já queimam uma caixa inteira
de velas, ou mais, ainda fechadas. Oferenda ‘bruta’, acompanhada de um pensamento
que assinala sua intenção: seu caráter de oblação, e talvez um pedido, agradecimento ou
homenagem. A fogueira é um conhecido símbolo sagrado em muitos rituais religiosos,
como nos cultos protestantes nos quais se encaminha a Deus queixas e pedidos através
de bilhetes que são destruídos ritualmente, por meio do fogo.
A vela, além de ser a oferenda mais comum feita aos santos católicos, é um elemento
fundamental em um dos cultos mais tradicionais e populares do catolicismo, o culto às
agradecimento, pode-se encontrar com freqüência uma oração, muito conhecida, chamada Oração das 13 Almas Benditas:
Oh! minhas 13 almas benditas, sabidas e entendidas a vós peço pelo amor de Deus, atendei o meu pedido. Minhas 13 almas benditas, sabidas e entendidas a vós peço pelo sangue que Jesus derramou, atendei o meu pedido. Pelas gotas de suor que Jesus derramou do seu sagrado corpo, atendei o meu pedido. Meu Senhor Jesus Cristo, que a vossa proteção me cubra, vossos braços me guardem no vosso coração e me proteja com os vossos olhos. Oh! Deus de bondade vós sois meu advogado na vida e na morte, peço-vos, pois, que atendei os meus pedidos e me livrai dos males e dá-me sorte na vida. Segui meus inimigos que olhos do mal não me vejam, cortai as forças dos meus inimigos. Minhas 13 almas benditas, sabidas e entendidas se me fizerem alcançar essa graça, ficarei devoto de vós e mandarei imprimir um cento desta oração mandando também rezar uma missa. Reza-se 13 Pai Nossos e 13 Aves Marias 13 dias.
126 Tornou-se comum que o devoto ou o recém-chegado ao culto, que vai rezar para o morto pela primeira vez para pedir algum auxílio, leve como oferenda inicial pelo menos toda uma caixa de velas. Somado ao pagamento das graças alcançadas, o que se costuma ver são pequenos focos de incêndio em torno do túmulo, fogaréus que deixam as laterais enegrecidas pela fumaça e que fazem o calor nas proximidades chegar a um ponto quase insuportável. Para não falar na fumaça e no cheiro de cera queimada, sob o inclemente sol do Rio Grande do Norte.
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almas do purgatório127. Geralmente, a lógica que preside seu oferecimento se sustenta
no binômio luz/escuridão, formas de representação do destino póstumo do indivíduo. O
que se diz é que a vela acesa em intenção da alma do defunto ajuda o morto a encontrar
o caminho ou a iluminar o caminho, imagem a que subjaz uma noção da morte como
viagem, trajeto a ser percorrido pela alma do finado. Nesse trajeto, as almas em boa
situação espiritual (póstuma) nem precisariam tanto dessa luz ofertada pelos vivos, mas
as almas em estado de sofrimento, sim.
A vela seria, então, uma instância mediadora entre a luz (a salvação póstuma) e a
escuridão (a perdição, a danação). Como símbolo que realiza uma mediação, ela teria
afinidade com o santo, intercessor, e com o purgatório, aquele “terceiro lugar” de que
falava Le Goff128, para onde seguem as almas que não cometeram pecados mortais e
foram logo despachadas para o inferno, mas pecaram o suficiente para não irem de
imediato para o repouso celeste até o dia do Juízo Final. Estas almas pecadoras são
enviadas para um período de espera, no purgatório, onde permanecem em um estado
reversível de sofrimento. Para a viabilização de tal reversão, dependem dos sufrágios129
dos humanos, que concorreriam para a mitigação de suas penas e poderiam levar à sua
total absolvição, junto com o efeito do próprio sofrimento, visto como purificador,
expiatório. O purgatório é, portanto, um lugar simbólico que enseja um vínculo de
dependência entre o morto pecador e seus parentes vivos, que têm por dever rezar por
sua salvação.
Esse modelo ternário – céu, purgatório, inferno – persiste, vivo, no imaginário popular,
e teria, então, como efeito reforçar o papel vivos, especialmente dos que mantêm 127 Medeiros 1995 e Sáez 1996 examinam o lugar dessa devoção, o primeiro enfocando o catolicismo popular e o segundo especificamente os cultos aos santos do cemitério (no caso, no cemitério da Saudade, em Campinas, São Paulo). 128 1981. 129 Por meio de missas, preces individuais e oferendas de velas em intenção de sua alma.
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vínculos de parentesco e vínculos afetivos, no sentido de continuar zelando pelos seus
mesmo após a morte. A reciprocidade social que cimenta as relações entre os vivos não
é menor entre vivos e mortos, sobretudo em contextos onde prevalece uma visão de
mundo mais tradicional, na qual o parentesco tem um peso considerável. DaMatta
(1985) já afirmou que esse modelo ainda seria o dominante para diversos segmentos
sociais da sociedade brasileira, devido ao que ele denomina seu caráter relacional, e
posso afirmar que é extremamente verdadeiro para aqueles pesquisados aqui.
Observo que, principalmente em Natal, onde os devotos são moradores da periferia130
mais desfavorecida, e oriundos, a maioria, de famílias que migraram de outras cidades,
do interior – como, aliás, o próprio Baracho – a prestação de culto aos mortos da
parentela torna possível o reavivamento de um sentimento de continuidade temporal do
grupo de parentesco a que se pertence. O que não pode ser subestimado quando se trata
de grupos sociais cuja identidade social está fortemente ancorada nesse tipo de vínculo e
em todas as obrigações e direitos que ele implica. A mudança para a capital é vista
como positiva por trazer oportunidades para a família, sobretudo para seus membros
mais jovens, mas pode implicar também uma perda de referências culturais importantes,
normalmente transmitidas oralmente e para cuja transmissão os membros mais velhos
da parentela são fundamentais – e muito valorizados.
Não parece ser à toa que os túmulos abandonados sejam tão mal vistos, portanto131. E,
nesse mesmo sentido, chamar a si a responsabilidade por mortos solitários, e
publicamente vitimados, como Baracho e Jararaca, vistos como marginais sociais,
“desgarrados”, também seria uma forma de assinalar isso. Mas, mais que isso, ao 130 A maioria dos entrevistados mora em bairros muito pobres, socialmente desvalorizados e estigmatizados, como as Quintas, Cidade Satélite e o próprio Bom Pastor – este último, aliás, é frequentemente referido na imprensa como “favela”, designação que alguns moradores também usam (e alguns rejeitam). 131 Trato desse aspecto com mais vagar no capítulo 2.
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mitologizá-los, é possível, por meio de suas (dos mortos) biografias públicas,
construírem nesse espaço urbano, sem passarem pela necessidade de aprovação de
instituições que os ignoram (aos mortos e aos vivos), toda uma nova mitologia local,
uma vez que aquela outra, ligada ao pertencimento à terra natal, com suas antigas
memórias passadas de geração em geração, ficou para trás, irremediavelmente perdida.
É importante levar em conta o quanto as memórias são vinculadas ao lugar, tanto as da
cidade pequena e do meio rural, como as da “cidade grande”, da capital: elas
dificilmente podem ser separadas do enquadramento físico, do suporte material e de
referências extremamente concretas como na frase Foi ali que aconteceu, bem ali onde
o homem matava bodes, onde era um matadouro e hoje é a Urbana132. Aqui,
novamente, os mais velhos são chamados a contar: aquilo que viram ainda crianças, ou
ouviram em primeira mão de seus pais; aquilo que sabem mais e melhor que
ninguém133, devido à sua sabedoria, ao conhecimento derivado da experiência, de que
falava Walter Benjamin134.
Há ainda um outro aspecto: embora haja participação, inclusive como devotos
constantes e contínuos, de pessoas jovens, na faixa dos dezoito aos trinta anos, e de
adolescentes e crianças, de ambos os sexos, os devotos mais comprometidos com o
culto – os que têm um “voto com o santo”, que recorreram a ele repetidas vezes em suas
aflições ou o freqüentam com assiduidade há anos, além de fazerem visitas individuais
ao cemitério para rezar – são majoritariamente pessoas acima dos trinta anos, do sexo
feminino. Observei mais de um caso em que, a devoção da esposa/mãe tendo sido
inicialmente reprovada pelos parentes mais jovens (filhos) e/ou do sexo masculino,
principalmente o cônjuge, essa atitude mudou após o sucesso da promessa. Alguns 132 Companhia de Limpeza Urbana da Cidade de Natal. 133 Ver capítulo 3. 134 1996 [1936].
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maridos inicialmente hostis à devoção tornaram-se devotos e fizeram também suas
promessas. Um deles (em Mossoró) atribui a cura de uma insistente ferida na perna ao
“santo” Jararaca; outro (em Natal) conseguiu um emprego após promessa feita para
Baracho; e outro (em Mossoró) juntou-se à esposa no pagamento de uma promessa feita
por ela que, segundo eles, lhes teria valido a sonhada casa própria. O que a princípio era
rejeição tornou-se devoção fervorosa e implicou uma radical mudança de postura frente
ao culto e adesão a ele, através da mediação feminina.
O papel das mulheres aí, como esposas e mães (ou avós; nutrizes e “cuidadoras”), é,
portanto, fundamental, na divulgação do culto e atração de novos potenciais devotos
para ele. E esse papel de mediação da esposa e mãe na relação com o universo
sagrado135 é reforçado pelo respeito devido àqueles, relativamente, mais velhos136 no
grupo familiar.
E ainda, quanto à predominância dos mais velhos: a preocupação com a morte, tema em
geral ausente das conversas, e até considerado desagradável, é muito mais presente e
explícita nesse segmento etário. Os idosos – pouco importa a idade cronológica, pois a
representação da “velhice” é variável – tendem a lidar com a realidade da morte de uma
maneira mais relaxada, principalmente os que foram socializados no interior do Estado
ou no meio rural. E tendem a ver o universo dos mortos como uma ‘sociedade’ da qual
135 Presente também no universo social pesquisado por Machado 1996: 127. 136 Note-se que ao referir-me aos “mais velhos” não estou necessariamente me referindo à chamada “terceira idade”. Nas camadas populares, nas quais são comuns o casamento e a maternidade/paternidade precoces, é raro que alguém nessa situação seja considerado “jovem”. Jovens, geralmente, são os solteiros, desde que não tenham ultrapassada a faixa dos vinte e quatro anos, aproximadamente. Não é raro que mulheres ainda com menos de trinta anos sejam percebidas, inclusive por si mesmas, como “senhoras”, “mães de família”, e que aos quarenta anos se representem como “velhas” (“velhas demais para...” ou “agora que eu já estou velha...”). Mesmo sua aparência física está longe dos padrões burgueses de cuidado pessoal e culto da juventude, uma vez que, mesmo se vaidosas, o trabalho manual (ou no comércio) e a “vida dura” no vai-e-vem dos transportes públicos que as obriga a perder horas de sono – além da famosa dupla jornada de trabalho – lhes tira cedo o viço e faz com que aparentem ter bem mais idade do que realmente têm.
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irão em breve fazer parte. A solidariedade para com os mortos integra aquele circuito de
reciprocidade que engloba vivos e mortos, pois que, dentre estes, aqueles que já
encontraram no Além o seu descanso também protegeriam na terra os seus entes
queridos. Além disso, ao orar por eles está-se, ao mesmo tempo, cuidando do próprio
futuro póstumo, pois que a piedade é uma virtude que contribuiria para cimentar o
caminho póstumo que a alma virá, na morte, a percorrer.
As “almas benditas” são objeto de devoção tanto quanto os santos, e de modo similar.
A diferença fundamental entre a devoção, tão popular, às almas e a devoção aos mortos
milagrosos, os santos do cemitério, é a mesma diferença entre a devoção às almas e aos
santos católicos: as almas são representadas e referidas como coletividade, enquanto os
mortos e os santos são individualizados, dotados de biografia (hagiografia) e de um
legendário particular. Na verdade, o processo por meio do qual um morto acede à
condição de ‘santo’ passa por sua individualização, que o tira da condição de alma (ou
espírito137) e o dota de uma personalidade, de uma história, de uma memória que, no
caso do santo do cemitério, vai sendo forjada no próprio culto.
137 Numa linguagem influenciada pelo espiritismo kardecista, difundido por meio de livros psicografados, muito populares, ou pela freqüência a centros espíritas, freqüentemente procurados quando da morte de um parente por pessoas que se dizem católicas e que não assumem a prática de freqüência ao centro como opção religiosa. Há que se notar que, sobretudo no caso do culto a Baracho, no qual a água é oferenda distintiva, várias noções espíritas podem estar presentes, ainda que não designadas como tais pelos devotos – que, aliás, não manifestam qualquer preocupação com demarcação de fronteiras religiosas. A água “fluidificada” pelos espíritos durante uma sessão espírita ou abençoada por uma oração – o que já foi (ainda é?) prática popular em programas de rádio durante muitos anos, diariamente às seis horas da tarde – é também um elemento central do culto às almas benditas. Mesmo em casa, as pessoas costumam colocar um copo de água ao lado da vela ofertada à alma do morto – em casa, mas não dentro de casa, sempre no quintal, quando não no cruzeiro da igreja ou do cemitério, que é o lugar certo para isso. Dizem que “é perigoso” acender vela para as almas dos mortos dentro de casa, pois poderia atraí-los para lá. Isso não seria seguro, já que não se pode ter certeza de seu status póstumo.
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Os Ex-Votos
Além das preces e das velas, outra oferenda importante são os ex-votos, que consistem
em placas metálicas ou de madeira com gravações de imagens ou inscrições de
agradecimento (estas mais comuns no cemitério), ou representações em cera ou madeira
de órgãos humanos que teriam sido curados pela intercessão do santo.
Ilustração 6: Casinhas de papel sobre o túmulo de Baracho.
Mas podem também ser feitos de papel, como as casinhas que encontrei algumas vezes
tanto no túmulo de Baracho como no de Jararaca, deixadas por aqueles que agradeciam
a ajuda do santo na compra da casa própria ou mesmo na solução de um abrigo
temporário.
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Não é tão fácil encontrar ex-votos sobre os túmulos fora do Dia de Finados ou mesmo
logo após a data, pois são frequentemente descartados pouco tempo após terem sido
ofertados, pelos zeladores encarregados da limpeza. Ou seja, são tratados como lixo138,
assim como as garrafas de água para Baracho e todas as demais oferendas. Porém,
alguns, notadamente os de madeira e metal, resistem por mais tempo, principalmente os
que são colocados junto ao queimador de velas que ambos os túmulos, de Baracho e
Jararaca, têm.
Ao contrário do que ocorre nos locais de culto “especializados”, nos quais, com ou sem
o reconhecimento oficial de alguma instituição, o espaço para o oferecimento de
dádivas materiais ao santo gozaria de legitimidade social, no cemitério sua apresentação
pública, como os ex-votos e as vasilhas de água, concorreria com a representação desse
espaço como espaço público ao qual teriam direito os outros mortos e seus parentes, e
entraria em conflito com suas diretrizes administrativas, como já foi dito. Isso levaria a
essa impermanência de um signo religioso feito para, por definição, durar, e que a
princípio teria como função, justamente, dar um testemunho do milagre alcançado, para
além do tempo imediato.
Porém, longe de inutilizar os ex-votos, isso permite evidenciar, ainda uma vez, a
precariedade e raridade do culto, sua forma peculiar, e fugaz, de realidade que, como a
da escultura, mais se faz do que lhe é tirado do que do que lhe é oferecido. É dos
contornos que surgem da matéria que lhe é arrancada, dos silêncios impostos pelo
constrangimento causado pela reprovação pública e familiar – driblada no Dia de
Finados pelo sentimento de pertença e apoio recíproco que o ritual em sua forma
coletiva e plena torna possível – que se vai definindo um perfil para esses santos “em
construção” e para essa devoção “aberta”; um papel para seus devotos como seus
138 Esse assunto já foi abordado no capítulo 1 e retornará no capítulo 3.
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construtores, e uma fisionomia própria para esse ritual a meio caminho entre as
prestações funerárias privadas, o culto às almas e a devoção aos santos católicos139.
Primeiro contato com essas devoções.
A maioria dos devotos desses mortos milagrosos afirma ter tomado conhecimento deles
pela primeira vez quando estiveram no cemitério para sepultar ou visitar algum parente,
vizinho ou colega de trabalho. Ou seja, o primeiro contato com essas devoções nos
cemitérios costuma ser mediado pela prestação funerária tradicional ou pelo culto no
Dia de Finados e aniversários de morte do falecido. Nessa ida anual ou periódica ao
cemitério, a pessoa termina por travar um primeiro contato com o culto público prestado
a esse outro morto, a princípio desconhecido, “que faz milagres”. Este, que não pertence
à sua parentela nem a de qualquer outro devoto, mas que é, nesse momento da
homenagem pública e tradicional aos mortos, tratado como um parente – lembrado,
homenageado, e que recebe pedidos de proteção. Ou seja, é raro que alguém se dirija ao
cemitério especificamente para ir ao túmulo do milagroso140.
A primeira aproximação ao túmulo não costuma ocorrer de modo diferente daquele
como se deu minha própria aproximação. Sem saber, fiz eu também o percurso feito por
todo potencial devoto, ao me acercar do túmulo movida pela curiosidade causada pela 139 Evidentemente, seria possível explorar outros aspectos que permitiriam aproximar esses cultos de outras religiosidades, como a afro-brasileira ou a doutrina espírita, mas esse foi um caminho do qual meu trabalho de campo não me aproximou e do qual não dispunha, no momento, de material que me permitisse explorar mais. Penso que isso se deve à situação estigmatizada dessas práticas, principalmente das religiões afro-brasileiras. Não há, nem mesmo por um viés “folclorizado”, uma visão positiva desses cultos no universo que pesquisei. Mesmo quando algum devoto admitiu freqüentar esporadicamente algum terreiro ou centro espírita – muito mais comum este último – isso não se deu sem muitas ressalvas, muitas explicações não solicitadas do tipo “mas lá só faz o bem”, “não tem nada a ver com catimbó” etc. Isso foi uma constante, como frisei também em outros capítulos. 140 Menos raro, porém, no caso de Jararaca, já que se trata de morto célebre, recordado como personagem de uma saga histórica tradicional anualmente comemorada – e rememorada – por um evento oficial: a apresentação teatral Chuva de Balas no País de Mossoró. Além disso, esse episódio é fundamental no discurso político dos governantes da cidade, ou melhor, do “país de Mossoró”, “terra da resistência”.
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aglomeração de pessoas em torno dele e pelo número incomum de velas e outras
dádivas. Tampouco a equação moral que formulei em minha cabeça inicialmente,
segundo a qual o passado de bandido tornava estranho e improvável aquele papel de
santo atribuído ao morto, gozava de qualquer originalidade. Essa foi a reação mais
comum entre os recém-chegados, que presenciei. Esse espanto inicial, e o interesse em
ouvir dos presentes as proezas dos bandidos, não conflitua com a disposição aberta a
aceitar, de boa fé, os relatos dos milagres. Embora boa parte das discussões girasse em
torno de controvérsias sobre a reiterada versão do “Robin Hood” que roubava dos ricos
para dar aos pobres, a possibilidade da fé em sua intercessão miraculosa para a solução
dos problemas levados a ele parece estar realmente além, ou aquém, dessa questão.
Todavia, nem todos os recém-chegados, em toda a sua boa fé e simpatia, hão de se
tornar devotos. Há muitas formas de inserção nesses cultos e nem todas implicam uma
adesão propriamente dita. Há formas mais ‘leves’ de participação no culto, menos
comprometidas em termos de continuidade ou de obrigações.
A forma mais contínua e comprometida seria a que está justificada pelo voto, que
implica um retorno anual ao cemitério para exercer a devoção de maneira ritualizada,
com pagamento renovado de oferendas. Outra forma, porém por definição temporária,
seria a promessa: uma vez feita a promessa, o devoto deverá retornar ao local do culto
para cumpri-la, após ter sido atendido. Há um vínculo instaurado aí pelo imperativo
social da reciprocidade: trata-se de uma troca iniciada com a promessa, que, por sua
vez, implica um ato de fé, um crédito de confiança dado por aquele que pede. Nesse
momento ele pode ou não ser um devoto; ou seja, pode ou não ter devoção por aquele
morto milagroso. Mas, o atendimento do pedido, que o levará a cumprir a promessa,
idealmente, tende a transformá-lo em um devoto efetivo: uma vez que a confiança
depositada no santo foi recompensada, ele passará a ter devoção por ele. Devoção é uma
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espécie de dedicação, fruto da confiança alimentada e renovada em sua capacidade de
intervenção milagrosa, e o modo por excelência de manifestação da devoção é o culto,
uma prestação ritualizada segundo um modelo prescrito, calcado neste caso no culto
tradicional aos santos católicos.
Há muitas pessoas que não vão com freqüência regular ao cemitério, nem mesmo todos
os anos, mas se consideram e se referem a si próprias como devotas de Baracho ou
Jararaca, por conhecê-los nessa situação de mortos milagrosos há muito tempo; por
rezarem por sua alma sempre que vão ao cemitério, mesmo que nunca tenham pedido
nada para si e para os seus; por acreditarem em seus milagres...
Assim, a presença esporádica no cemitério não as desqualifica como devotas nem
diminui sua devoção, do seu próprio ponto de vista141. Não foram poucos os que, diante
da declaração de um vizinho ou algum outro presente próximo no cemitério de que vai
ao cemitério todas as segundas-feiras (Dia das Almas) ou todos os anos em Finados e no
aniversário de morte de Baracho/Jararaca, apressaram-se em se defender com
explicações sobre sua freqüência menor. Essas explicações vão desde a distância da sua
moradia – alguns afirmaram morar em outra cidade, vizinha, ou em bairros distantes –
até uma opinião que desqualifica a presença física e o deslocamento espacial até o
cemitério pela afirmação de que o que importaria mesmo seria a fé: devoção é fé,
dedicação. Ou seja, o que vale é intenção, a lembrança, a prece que pode ser dita diante
do santo que está no seu oratório doméstico.
141 Mas em alguns momentos referi-me a “simpatizantes” do culto para falar de pessoas que não se dizem devotas e não se caracterizam como tais, pelos critérios da prática cultual, mas se mostram interessadas e receptivas, muitas vezes mais nas histórias de Baracho e Jararaca do que na religiosidade em si.
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A prece, não necessitando de suporte material, pode ser feita em qualquer lugar142,
embora se considere geralmente que a presença no local sagrado e o contato físico com
o túmulo a potencialize. Porém, isso, e a ausência de imagens sagradas (como os
santinhos) que representem esses mortos, não impede que eles sejam objetos também de
culto doméstico. Algumas pessoas me contaram – e algumas me mostraram – que têm
em casa um altar para seus santos de devoção onde está incluída uma foto de Jararaca
recortada de algum jornal143 ou uma garrafinha de água de Baracho, colocada sobre o
túmulo para ser abençoada no momento da reza e depois levada de volta para casa,
como objeto sagrado144.
Nenhum dos cultos nos cemitérios conta com oficiantes ou mediadores formais.
Alguém que, como ocorre em outros cultos similares em cemitérios, assumisse a função
de organizador do culto ou mentor para os potenciais devotos, que fosse capaz de se
encarregar da apresentação do morto aos recém-chegados – o que fica a cargo de
qualquer dos devotos presentes no local e mais freqüentemente das pessoas mais velhas.
Ou alguma “autoridade” no culto que cuidasse da distribuição, mais ou menos
planejada, de algum material de divulgação, como santinhos com alguma representação
icônica do morto, ou da condução de uma prestação ritual coletiva145.
142 E, portanto, contribui para a difusão do culto e sua desvinculação do local sagrado, tanto quanto o culto às imagens. 143 Não esquecer que Jararaca é personagem de uma história cara à memória de Mossoró (ver capítulo 1) e, portanto, suas poucas imagens estão disponíveis no Museu do Cangaço, que costuma ser visitado por estudantes em excursão escolar e turistas, e são eventualmente reproduzidas nas matérias de jornal sobre a história da cidade, o cangaço ou sobre seu culto atual no cemitério. 144 A água é freqüentemente aplicada sobre partes do corpo enfermas ou ingerida, com a finalidade de promover a cura física ou espiritual (ou psicológica) do doente. 145 Elementos que estão presentes nos cultos aos santos crianças Antoninho da Rocha Marmo e Odetinha, em São Paulo e no Rio de Janeiro, respectivamente, nos quais as famílias dos defuntos têm um papel essencial como mediadoras na relação com os devotos.
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Assim, como vimos, o culto ao santo do cemitério se define por sua semelhança, mas
também, em outro plano, por sua tensão, com o culto funerário prestado ao morto
‘comum’ (não-milagroso). Define-se por sua semelhança na medida em que não deixa
de ser, ele também, um culto funerário (como o próprio culto ao santo-mártir católico o
era); porém, mantém com o culto aos mortos no cemitério uma relação tensa, uma vez
que é percebido por muitos como um desrespeito à função social do cemitério e aos seus
significados como campo santo e morada das almas. O tratamento diferenciado dado ao
morto milagroso por seus devotos é percebido como afronta aos direitos dos demais
finados e a suas famílias, bem como pela administração dos cemitérios.
No entanto, o cemitério é bem mais que um cenário para a emergência e continuidade
de tais devoções; seus significados sociais e todo o simbolismo de que é
tradicionalmente investido são fundamentais para a configuração de certa fisionomia
para o culto. Da mesma forma, as representações sociais em torno da morte, os valores e
comportamentos prescritos frente a ela, também o são. Estes serão os temas do próximo
capítulo.
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Capítulo 3. Os Cemitérios: História, Significados e Usos Sociais
Um pouco de história
É impossível falar da história dos cemitérios sem falar dos costumes fúnebres. No
Brasil, desde a colônia, foi instituído o sepultamento eclesiástico, que se manteve em
vigor até meados do século XIX. Era assim que a maioria da população era sepultada.
Esse costume testemunhava aquela familiaridade entre vivos e mortos, aquele convívio
próximo no espaço que durante muito tempo foi característico do modo como a morte e
os mortos foram percebidos em muitas sociedades ocidentais. Eles permaneciam entre
os vivos, no espaço sagrado da Igreja, espaço de especial valor, portanto. A eles era
reservado esse direito. Quando os vivos caminhavam sobre o solo sagrado da igreja para
direcionar aos céus suas preces, era sobre seus mortos familiares que pisavam; eles
estavam ali, próximos, ainda terrenos, mas já lá, no alto, pertencentes, que eram, aos
dois planos da existência humana.
Foram as nascentes questões higienistas, no início do século XIX, resultado de um saber
médico cada vez mais valorizado e difundido no país, que trouxeram a preocupação
inteiramente nova com a possível insalubridade provocada pela proximidade física
desses mortos, já agora vistos como perigosos, possíveis causadores de doenças. Toda
uma sensibilidade em relação ao cheiro dos corpos sepultados nas igrejas146 surgiu
nesse momento e esse cheiro dos mortos passou a representar o cheiro da morte. Era
preciso, pois, afastar esse perigo, que nada tinha de sobrenatural.
146 Ver Cláudia Rodrigues, Lugares dos Mortos na Cidade dos Vivos: Tradições e Transformações Fúnebres no Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura/DGDIC, 1997, pp. 59, 66.
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No entanto, essa discussão foi longa. Claro, um costume funerário tão antigo, e tão
sistematicamente enraizado em um modo particular de ver a morte e os mortos, não
poderia desaparecer de uma hora para outra. Foi preciso aguardar até a metade daquele
século para que, no Rio de Janeiro, com as graves conseqüências da febre amarela, os
cadáveres fossem definitivamente expulsos da igreja e mesmo da cidade, para irem
ocupar os recém-criados cemitérios públicos147.
Não era apenas dentro das igrejas que os mortos eram enterrados até então, mas também
em terrenos contíguos a elas e às irmandades religiosas. Para escravos africanos,
escravos indígenas e indigentes em geral havia os cemitérios contíguos a hospitais
públicos e cemitérios de escravos, dentro da cidade, em áreas residenciais.
Foi essa proximidade que causou os primeiros protestos contra o que antes era apenas
um fato natural e corriqueiro. Já desde a segunda década do século XIX, com a difusão
das novas noções médicas sobre Higiene, surgiu a figura do cadáver como objeto
poluente, e difundiu-se a noção de miasma, espécie de eflúvio que emanaria dos corpos
e poderia contaminar os vivos e, assim, adoecê-los148. A partir daí, passou a ser comum
uma atitude de evitação em relação aos mortos e aos espaços físicos ocupados por eles,
sobretudo nas camadas mais educadas e medicalizadas, mas não apenas nelas, já que
tais noções se difundiam rapidamente pela sociedade, com todas as possíveis distorções
e exageros.
147 Decreto nº 583 de 1850, que estabelecia que cabia ao governo a determinação do número e localização dos cemitérios, desde que nos subúrbios do Rio de Janeiro, bem como a estipulação dos preços de todos os produtos e serviços envolvidos no sepultamento e, ainda, a definição de uma irmandade, corporação civil ou religiosa ou empresários encarregados de administrá-los, segundo suas normas, obrigados a prestar-lhe contas anualmente. (Rodrigues 1997: 124-5) 148 Rodrigues 1997:68, 74ss.
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Requerimentos e abaixo-assinados de moradores de algumas freguesias urbanas
da Corte às autoridades municipais e imperiais foram feitos no sentido de
solicitar a interdição de alguns cemitérios considerados insalubres, o embargo
das obras de construção de outros e o impedimento à edificação de cemitérios
próximos às moradias. Nestes documentos, aparecem sedimentados alguns
pontos das teses médicas. Em todos os casos, alegava-se o prejuízo que a
proximidade com os referidos cemitérios causaria à salubridade das casas149.
Nessa passagem, Cláudia Rodrigues refere-se aos protestos dos habitantes do Rio de
Janeiro durante a primeira metade do século XIX, mas tais situações se repetiram em
outros estados e países, como parte de uma mudança em maior escala150 na maneira
como os vivos pensavam e viviam sua relação com os mortos, que se manifestava,
sobretudo, nos costumes funerários.
A idéia de que se precisava acabar com os enterramentos nas igrejas e transferi-los para
fora das áreas urbanas vinha desde o século XVIII. Todavia, como vimos, isso não
significou qualquer tomada de providências imediatas, com exceção de algumas
mudanças de atitude relativamente isoladas e movimentos sociais de protestos esparsos,
que foram se multiplicando à medida que o século seguinte avançava.
Nesse processo, a imprensa teve um papel de destaque, pela veiculação das noções
médicas que estabeleciam uma relação de causalidade entre a proximidade do cemitério
e seus miasmas poluentes e o surgimento e proliferação das epidemias nas cidades. Seus
artigos contribuíram para o reforço daquela sensibilidade nova em relação aos maus
149 Rodrigues 1997: 68. 150 Fontes: João José Reis, A Morte é uma Festa: Ritos Fúnebres e Revolta Popular no Brasil do Século XIX, São Paulo, Companhia das Letras, 1991; Philippe Ariès, História da Morte no Ocidente da Idade Média aos Nossos Dias, Rio de Janeiro, Ediouro, 2003 [1975] e O Homem Diante da Morte, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1982 [1977].
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odores emanados pelos cadáveres. Neles, as pessoas encontravam a confirmação de suas
suspeitas e uma espécie de legitimação do que, no boca a boca, poderia ser tomado
como um medo infundado.
Essa difusão por meio da imprensa tornou acessível a um número maior de pessoas -
que não necessariamente teriam acesso a informes da área médica por meio de livros,
contatos acadêmicos ou consultas com os profissionais da área médica - aquelas novas
noções sobre higiene urbana. A imprensa cumpria aí aquele papel “civilizador” e
educador que parece freqüentemente se atribuir como parte das camadas
intelectualizadas da sociedade, que teriam a incumbência moral de ilustrar o restante da
população, de modo a exercer uma mediação entre o saber acadêmico e sua linguagem
elitizada e o que hoje chamamos opinião pública.
No Rio de Janeiro do século XIX, estudado por Cláudia Rodrigues, o clero repetiu a
postura151 já identificada por Philippe Ariès152, de apoio à criação dos cemitérios
públicos ou, pelo menos, de preferência pelo enterramento fora das igrejas, no terreno
contíguo a ela. Os enterros em seu interior chegaram mesmo a ser proibidos, com
exceção do sepultamento de religiosos e alguns raros leigos aos quais era concedido
esse privilégio.
Retornando à questão da familiaridade entre vivos e mortos, aspecto muito presente na
sociedade brasileira – ressaltado por autores como Gilberto Freyre e Roberto DaMatta –
é preciso lembrar que não apenas a proximidade física dava testemunho disso, mas
também o hábito de os vivos realizarem sufrágios pelos mortos, numa ação de
solidariedade em face deles, o que tem por base, no plano religioso, a crença no
Purgatório e, mais ainda, a doutrina da “comunhão dos santos”, isto é, a comunhão entre
151 1997: 131. 152 1975: 50-2.
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todos os fiéis católicos, vivos e mortos, estejam no céu ou na terra. Está claro que, no
universo pesquisado, essa crença de origem católica não necessariamente está restrita
aos segmentos que se auto-identificam com a religião católica.
Já na Idade Média a existência das confrarias se justificava em parte pela necessidade de
rezar pelas almas no Purgatório, já que o amor ao próximo deveria ultrapassar a barreira
da morte. Também as almas mereciam e deviam receber a solidariedade dos vivos que
fossem bons cristãos – e, na medida em que o fossem, também contariam com a
solidariedade dos vivos quando estivessem já no Além. Assim foi reforçada a
importância de orar pelos mortos nessa nova forma de piedade exercida pelas confrarias
com base na idéia de comunhão entre vivos e mortos, vivos e almas – isto é, com base
na importância dessas orações realizadas pelos vivos para alívio das almas que no
Purgatório estariam a pagar suas penas em grande sofrimento.
Assim, além da proximidade física haveria ainda uma espécie de irmandade moral entre
vivos e mortos. Essa situação corresponde, no plano dos costumes funerários, ao que
Philippe Ariès153, em sua obra hoje clássica chama “morte domesticada”, aquela visão
da morte e atitude diante dela que implicam em vê-la como algo próximo e familiar.
Nem sempre foi assim. Peter Brown154 conta como na Antiguidade ainda persistia um
horror aos mortos e à morte, vista como degradação, espetáculo feio que devia ser
evitado. Lá, naquele contexto, os cemitérios estavam fora da cidade, fora do convívio
humano. Os mortos eram alvo de repulsa e temor intensos. Somente no final desse
período essa situação começou a mudar, com o fortalecimento do cristianismo e toda
uma outra forma de pensar e sentir a morte e os mortos. É no cristianismo que se enraíza
153 1975. 154 1984.
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essa atitude que foi tão comum na Europa, e veio a ser tão característica da cultura
brasileira: a familiaridade com os mortos.
Vários fatores favoreceram o desenvolvimento dessa nova atitude. A necessidade de
veneração dos túmulos para apaziguamento dos mortos, que assim desistiriam de
retornar ao mundo dos vivos de forma ameaçadora – crença muito comum e duradoura
no Ocidente – foi uma delas. Essa veneração, todavia, era tingida pelo medo e pelo
asco, o que não a impedia de ser já uma aproximação. No entanto, esses túmulos
estavam naqueles cemitérios fora da cidade, à beira das estradas155, isto é, eram
mantidos à distância dos locais de residência dos vivos, já então com base em crenças
relativas ao perigo de poluição que esses mortos e seus “fluidos” poderiam representar –
embora, claro, sem o discurso médico que viria a surgir somente séculos mais tarde.
Parte dos cultos funerários que se desenvolveram naquele momento tiveram origem
naquela necessidade de manter os mortos à distância, saciá-los com o possível para que
não pedissem o impossível retorno ao mundo dos vivos. Trago para cá a citação de São
João Crisóstomo feita por Philippe Ariès:
Cuide de nunca erguer um túmulo dentro da cidade. Se alguém deixasse um
cadáver no lugar em que dormes e comes, o que não farias? E entretanto deixas
os cadáveres não onde dormes e comes, mas nos membros do Cristo.
Isto é, São João está falando contra o enterramento no interior das igrejas, proibido pelo
direito canônico. Todavia, essa prática tornar-se-á dominante e trará para dentro das
cidades – e das igrejas e seu entorno – os mortos há muito expulsos dela.
155 Como a Via Appia, em Roma. Ver Ariès 2003 [1975]: 36 e Rodrigues 1997: 224.
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Tudo teve início quando, somado aos cultos funerários que se realizavam como
veneração aos túmulos, teve início na Europa o culto dos mártires, de origem africana,
que, em si, nada tinha de cristão. Esses mártires – mortos em nome de sua fé,
geralmente supliciados, vítimas de perseguições – eram enterrados naqueles cemitérios
fora das urbes, compartilhados por cristãos e pagãos, e atraíam uma veneração que foi
se tornando cada vez mais intensa. Por sua vez, tal veneração dotou seus túmulos de
um sobre-valor, um valor sagrado, que atraiu para sua vizinhança sepulturas de pessoas
comuns que acreditavam num suposto benefício, para seu cadáver e para seu espírito, de
tal vizinhança com um morto especial. Nesses cemitérios, logo se estabeleceram
basílicas, em torno das quais os cristãos agora queriam ser enterrados. Ou seja, o
cemitério, de área marginal excluída, poluente e perigosa, de ameaça para o corpo físico
(fluidos que poderiam causar doença) e para o espírito (visão da morte como visão da
decadência física, mortos que voltam e perseguem os vivos), passou a área atrativa,
sacralizado pela presença em seu solo de homens santificados pelo sofrimento em nome
da fé. Ou seja, passou a ser território santo, do qual a Igreja não poderia estar ausente.
Assim, se as basílicas foram instalar-se nos cemitérios fora da cidade, seguindo os
passos da multiplicação, lá, das sepulturas dos cristãos, e, em seguida, atraindo novos
residentes para seu entorno – verdadeiras cidades surgiram em torno dos cemitérios –
evidentemente a relação com a necrópole se inverteu. Agora, todos queriam estar perto
dos santos. Assim, os vivos foram morar junto dos mortos, bairros e cidades surgiram
próximos aos cemitérios e logo as fronteiras entre essa periferia – e o próprio caráter
periférico das necrópoles com suas abadias cemiteriais – e a cidade propriamente dita
desapareceram. Já não se sabia onde terminava uma e começava a outra. E já não mais
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era necessário saber. Os mortos foram assim, como quem não quer nada, sem discussão,
voltando à cidade, e já “não houve mais diferença entre a igreja e o cemitério156”.
E se um morto podia ser um santo, que melhor lugar para um santo do que a igreja? Que
melhor lugar para um vivo que almejasse a santidade na morte do que ser sepultado ao
pé do santo, o mais próximo possível dele e, até, dentro da igreja? Logo os
enterramentos nas igrejas e no seu entorno tornou-se comum. Porém não para todos, já
que, exíguo o espaço interno, este era primeiro reservado para os religiosos e homens de
mais alto status e influência. O mesmo movimento que se viu na Corte brasileira.
O poder atrativo do mártir estava vinculado a duas crenças: a da incorruptibilidade do
corpo do santo, para o que a inviolabilidade do túmulo seria um requisito – daí a
necessidade do culto funerário, que por ele zelava; e a da correlata salvação da alma,
associada à crença na ressurreição: o morto deveria dormir o sono da morte em sua
sepultura sem ser perturbado por profanadores até que chegasse o dia de ressuscitar dos
mortos, no Juízo Final. Estar próximo ao túmulo do mártir, e depois nas igrejas, seria,
nesse caso, uma forma de assegurar proteção espiritual, inclusive para o corpo (para o
túmulo). Essa proteção não dispensava os cuidados rituais funerários, mas deslocava a
ênfase para a vizinhança e solidariedade espiritual entre os mortos que habitavam a
necrópole, para as quais os cuidados exercidos pelos vivos seriam um complemento.
Os mortos já não causam repulsa: eles são agora sagrados. Qualquer morto pode estar
dentre os salvos, dentre os que levantarão no dia da ressurreição. E os cemitérios
tornaram-se, então, campo santo, tendo mudado o sentido do culto funerário a partir daí:
tratava-se agora não de apaziguar uma ameaça ou apenas de proteger o túmulo, mas de
veneração religiosa que implicava orar pelas almas dos mortos e, pela crença na
incorruptibilidade de seus corpos, proteger e respeitar seus túmulos.
156 Ariès 2003 [1975]: 40.
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Na medida em que sofreram tal transformação social, os cemitérios passaram a ser
objeto do interesse da Igreja, que logo cuidou em assumir certo controle. Era agora um
direito ser enterrado em campo santo, mas que, como tal, não cabia a quem não
estivesse em boa situação segundo os critérios cristãos. Quem morresse de maneira
desonrosa, reprovável segundo os preceitos cristãos, não podia ter lugar no campo
santo. Assim como também não tardaria a que essa mesma Igreja se esforçasse para
assumir certo controle do processo, logo multiplicado, de surgimento de novos mártires,
os santos da época. De certa forma, um processo prenuncia e está intrinsecamente
vinculado ao outro.
Mas é interessante observar que, já então, os cemitérios, por santos que fossem, também
se tornaram locais públicos, destinados, como tais, a outros usos sociais, não funerários
ou sagrados, pela população. Segundo Ariès157, até mais do que local de enterramento,
os cemitérios passaram a ser vistos, sobretudo a partir da presença da abadia no local,
como asilos, refúgios sob o domínio eclesiástico. Estar ao pé da Igreja tinha lá suas
vantagens fiscais e dominiais. E não era, de modo algum, novidade, para esses homens
medievais, a concepção de uma cidade cercada por muros. Portanto, por que não
construir casas dentro dos cemitérios e ir logo morar lá? Foi o que fizeram muitos, e
logo se formaram bairros dentro dos cemitérios, em torno da igreja, local de reunião
social, comércio, jogos, danças, tendas, ofertas de serviços (como o dos escribas
públicos).
Porém, isso logo inquietou a Igreja, que tentou disciplinar esses usos. Dançar dentro dos
cemitérios e igrejas – e lembremos aqui o quanto era difícil diferenciá-los – passou a ser
proibido sob pena de excomunhão158 pelo concílio de Rouen, em 1231. Tudo leva a crer
157 2003 [1975]: 42-4. 158 Ariès 2003 [1975]: 44.
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que tal proibição pouco adiantou, pois em 1405 outro concílio baixou o mesmo decreto,
estendendo-o também aos jogos e exercício de qualquer outra atividade “suspeita”,
como mímica, prestidigitação, música, charlatanismo...
Já na segunda metade do século XVII, ainda não se havia encontrado um modo de
disciplinar os usos dos espaços internos do cemitério e os enterramentos eram
realizados em meio a toda sorte de atividades profanas. Aliás, os próprios mortos, a
princípio aceitos por sua sacralidade a partir de sua assimilação com os santos mártires,
eram já agora parte da paisagem diária, seus ossos assomando à superfície do solo à
vista de todos. Já não assustavam ninguém sua aparência descarnada ou semiputrefata
(visível quando se abria uma sepultura que receberia novos cadáveres), nem seus odores
fétidos que exalavam do solo remexido. Eram agora os mortos familiares que somente a
medicalização da sociedade moderna viria a novamente afastar do convívio dos vivos,
processo que já começaria a ter lugar no final desse mesmo século XVII, mas que
levaria ainda muito tempo para se consumar e tornar novamente, porém por novas
razões, a morte interdita, tabu para os vivos, outra vez objeto de uma relação
socialmente prescrita de evitação.
No Brasil, o enterramento eclesiástico foi também o costume dominante no campo das
práticas funerárias desde a Colônia, trazido pelos portugueses, e que, por sua vez,
remontava àquela tradição ocidental cristã de que acabei de falar. Isso se concretizou
com o uso das áreas contíguas às igrejas, capelas e confrarias religiosas como
cemitérios. Dentro mesmo das igrejas, como já vimos, somente uns poucos eram
sepultados, geralmente religiosos e uns poucos privilegiados. Mas não era tão comum –
até pelo espaço limitado dos edifícios - e nunca foi prática formalmente aceita pelo
direito canônico.
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Não se pode deixar de dizer, todavia, que havia no Rio de Janeiro (e outras cidades) as
igrejas de irmandades de negros (escravos e livres), onde eles eram sepultados, o que
podia acontecer, e acontecia, em outras igrejas inicialmente, mas era muito menos
comum – assim como, na medida em que o espaço tornou-se escasso, tornou-se cada
vez menos provável o sepultamento de um branco pobre ou de um escravo dentro do
espaço valorizado da igreja.
Por questões de fortuna e ventura, nem todos os mortos eram, antes de 1850,
enterrados nas igrejas ou ao seu redor. Os escravos e homens livres pobres que
não pertencessem às irmandades e/ou não pudessem pagar por uma cova ou
catacumba de igreja; os justiçados, a quem era vedado o sepultamento em local
sagrado; os indigentes e os não católicos tinham como destino um dos vários
cemitérios que existiram na cidade.159
Vimos como as novas idéias médicas e o impacto provocado pelos efeitos devastadores
das epidemias na cidade do Rio de Janeiro levaram a que, finalmente, após muitos
protestos, os cemitérios públicos fossem criados e estabelecidos como os únicos locais
permitidos para sepultamentos. Essa obrigatoriedade implicava, é claro, a proibição do
enterramento nas igrejas.
Essa mudança, que aconteceu não apenas nesta cidade, mas em todo o país e no mundo,
sinalizava toda uma mudança de atitude e sentimentos em relação aos mortos e á morte,
como já foi dito. Em estudos como os de João José Reis (1991), sobre Salvador, Bahia,
e Cláudia Rodrigues (1997), sobre o Rio de Janeiro, podemos encontrar um retrato
159 Rodrigues 1997: 236.
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acurado dos cultos funerários que antecederam essas mudanças e que se configuravam
de acordo com aquilo que Michel Vovelle160 chamou “morte barroca”: uma morte
temida e que exigia grande preparação, como quer Ariès, mas também uma morte-
espetáculo, marcada por uma supervisibilidade, por uma ostentação de detalhes no
cerimonial, por todo um aparato mortuário tão rico quanto possível, por todo um
excesso nos comportamentos dos presentes: muito barulho durante as prestações rituais,
um tom festivo que caracterizava da aproximação à residência do morto (ou moribundo)
ao cortejo que seguiria pelas ruas da cidade e ao enterramento no cemitério eclesiástico
ou no interior da igreja.
Reis chega mesmo a dizer que “a morte é uma festa” para os baianos do século XIX –
frase que dá título a seu livro161 sobre os costumes funerários na Salvador de então. –
vendo nisso uma atualização do modelo proposto por Vovelle para a Europa. Só que
aqui, como bem aponta Rodrigues162, esse modelo europeu encontrou reforços nas
tradições africanas trazidas pelos escravos, que também enfatizavam o cerimonial e
implicavam toda uma elaboração simbólica da qual não estava ausente a conotação
festiva, com seus aparatos, vestimentas e sons, música e gestual específicos para a
ocasião.
Para morrer a “boa morte” era necessário então que fossem ministrados os sacramentos
adequados ao moribundo antes que lhe subtraísse aos vivos a morte. Esta deveria
encontrá-lo preparado, pronto para seguir a “viagem” com a confiança de haver
recebido, de um servo privilegiado de Deus (um sacerdote, um mediador) a graça
divina. Eram três os sacramentos que deveriam preceder a boa morte: a penitência, a
160 Michel Vovelle. Ideologias e Mentalidades. São Paulo, Brasiliense, 1991. p. 353. 161 1991. 162 1997: 167.
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eucaristia e a extrema-unção, todas direcionadas para a situação específica, fúnebre. A
preparação para a morte, assim que vista como inevitável, incluía a presença do padre,
solicitada pelo próprio moribundo, sempre que estivesse lúcido.
Não se fazia grandes dramas (Ariès 2003 [1975]: 32-3), tampouco havia qualquer sinal
de revolta diante da aproximação da morte, fosse da parte do moribundo ou da parte dos
familiares. A morte domada, como Ariès chama essa atitude socialmente prescrita
diante da morte (inclusive da própria morte), se caracterizava pela familiaridade
acentuada, mas também por uma espécie de indiferença, anterior a qualquer
sentimentalização do morrer. O homem já sabe que irá extinguir-se um dia e para isso
deve estar preparado, de certa forma em guarda para não ser colhido de surpresa pela
morte repentina, esta sim catastrófica. Morrer de repente significaria não ter o tempo
necessário para passar pelos rituais, de forma pública e controlada – daí o valor negativo
da morte violenta – não apenas por razões de ordem moral. Morrer repentinamente
sozinho seria ainda pior.
A morte domada era, por definição, uma morte domesticada, previsível, vivida
gradualmente em etapas, em uma lenta aproximação ao inexorável, de modo ritualizado,
simbolicamente elaborado, carregado de significações, no qual até mesmo as emoções
teriam seu lugar e não deveriam ultrapassá-lo. Essa preparação anterior ao
acontecimento da morte não era incompatível com o caráter festivo e também público
dos cultos funerários que se seguiam, com seu caráter pomposo. A morte barroca de
que falou Vovelle. Porque tão ruim quanto morrer de repente e sozinho era ser
sepultado em silêncio, sem as devidas cerimônias, sem receber dos vivos as
indispensáveis prestações rituais, como um indigente esquecido. O morto quer ser
visível e, se não mais pode falar e cantar, quer que falem e cantem por ele durante sua
passagem para o que se esperava que fosse o descanso até a salvação definitiva. O bom
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cristão tem direito a uma boa morte, modelo que prevaleceu no Brasil católico mesmo
entre os inicialmente não católicos. Mais que católico, modelo cristão de raízes
longínquas.
Se a morte como acontecimento biográfico deveria ser precedida por rituais singulares,
adequados; se após o ocorrido ela deveria ser tornada pública e vivida de modo solidário
pelos vizinhos que se reuniriam no cortejo para conduzir o morto à sua “última morada”
no cemitério; todos esses ritos do ‘antes’ e ‘durante’ estavam, e estão, longe de encerrar
o ritual da morte. Antes pelo contrário, o reconhecimento social da passagem daquele
indivíduo à condição de morto (alma, espírito) criava, instantaneamente, para os que
ficaram, uma série de obrigações, inclusive de novas prestações fúnebres. Primeiro, os
formais: encomendação da alma (em casa ou na igreja) e missa de corpo presente, por
conta do pároco, durante os quais se orava pela salvação da alma do morto; depois,
orações por sua alma na igreja ou junto a seu túmulo para diminuir suas penas no
Purgatório e, assim, contribuir para sua salvação. Portanto, a morte não os desobrigava
da solidariedade que os unia em vida ao morto e até poderia aproximá-los, posto que
mesmo para alguém não tão próximo se deveria prestar homenagem quando de sua
morte ou oferecer orações no cemitério.
Essas obrigações estavam longe de ser penosas: os velórios, cortejos e enterros eram,
então, ocasiões festivas não apenas por aquele aspecto barroco, festivo, mas também por
serem ocasiões de encontros entre aqueles que há muito não se viam, por reunir os
parentes que moravam longe, juntar os vizinhos, propiciar a sociabilidade, as fofocas, os
namoricos, enfim a convivência social163.
163 Rodrigues 1997: 218.
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Mesmo a morte resultante do que é descrito como uma tragédia, com o tom lacrimoso
reforçado a posteriori, pode ter sido vivida, na ocasião, como uma grande algazarra, um
grande acontecimento a reunir as gentes e animar o povo. Há que se notar que a visita
ao cemitério para orar pelo morto, que pode tornar-se verdadeira romaria quando se
trata de um morto de prestígio ou de um morto milagroso164, guarda certo parentesco
com o cortejo funerário. Trata-se em ambos os casos de deslocamento espacial
ritualizado, um para conduzir o morto, a outra para visitá-lo em sua nova morada.
No caso brasileiro, as mudanças trazidas com o final dos enterramentos eclesiásticos,
implicaram novas atitudes frente à morte e transformações também nos rituais
funerários, que transformaram os grandes espetáculos públicos que eram os cortejos
fúnebres em coisa do passado. A preparação do moribundo era agora algo privado, aos
cuidados da família, e que só a ela e aos mais chegados dizia respeito. A encomendação
da alma já não era feita nas igrejas, mas em casa. A morte voltara a ser feia e
assustadora, após tanto tempo de convivência pacífica com os homens. Depois de todas
as perdas e sofrimentos provocados pelas epidemias que grassavam nas cidades, depois
das pestes na Europa noticiadas aqui, depois da febre amarela na Corte, já não havia
mais motivos para festa. A morte continuava familiar, mas agora o parentesco era
indesejado; continuava próxima, ainda, mas deveria ser evitada. Doença e morte
passaram a caminhar lado a lado, no mesmo campo semântico, no mesmo terreno
perigoso. Caminhar sobre um poderia levar a escorregar rapidamente para os domínios
do outro, sem possibilidade de retorno. Doença, por sua vez, passou a ser associada a
contágio, nesse contexto, e, assim, de associação em associação, o doente contagioso
tornou-se o morto contagioso, que deveria ser levado para longe e mantido lá. A morte
foi privatizada, escondida, bem como seus rituais, agora reduzidos a uma forma mínima
164 Um descendente direto daqueles “mortos especiais” de que fala Peter Brown (1984).
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e familiar, e não levou muito tempo para que, num movimento que no Brasil replicou o
que ocorria no resto do mundo, se tornasse um evento quase vergonhoso, um tabu – nos
termos do historiador Philippe Ariès, tornou-se a morte interdita.
O cemitério na paisagem cotidiana
Longe de ser, hoje, para a maioria da população da cidade onde este estudo foi
realizado, ou mesmo para os moradores dos bairros onde se localiza, um lugar de
passagem, é preciso um bom motivo para ir ao cemitério. Geralmente, só se vai lá para
enterrar um parente ou amigo ou para visitá-lo no Dia de Finados. Se o finado for
pessoa muito próxima - principalmente pais, avós, cônjuge ou filhos – ou se for um
‘santo’ por quem se tem devoção, a visita também pode ser feita no dia do aniversário
de nascimento ou de morte, além de se estender durante vários anos, ou até décadas, em
02 de Novembro.
No caso das pessoas com quem não se têm laços de descendência até duas gerações ou
de conjugalidade, ou até mesmo no caso de amigos e vizinhos antigos, a visita ao
cemitério no Dia de Finados já não é mais tão comum. A tendência parece ser o
comparecimento ao sepultamento e a visitação no cemitério apenas no aniversário de
um ano do falecimento. Isso, no entanto, deixa de ser verdade quando esses vizinhos,
amigos ou parentes mais distantes estão sepultados no mesmo local em que estão os
parentes próximos. Neste caso, é comum que o visitante faça verdadeira peregrinação
dentro do cemitério, indo de túmulo em túmulo para rezar um pouco em cada um deles.
A freqüência ao espaço interno do cemitério não faz parte do cotidiano nem é o
cemitério lugar onde as pessoas lamentem não poder ir com mais freqüência. Pode-se
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notar de uma forma geral certa atitude de evitação frente a esse espaço, que raramente é
percebido como moralmente neutro ou inteiramente profano.
Isso, porém, não é tudo o que se pode dizer sobre esse lugar. Ele também é parte da
paisagem cotidiana para outras pessoas, para os que moram em seu entorno ou têm
alguma atividade remunerada que implica sua freqüência cotidiana ou em certos
períodos. Note que dizer cotidiano não necessariamente significa dizer banal ou despido
do respeito que se deve às coisas que conservam algum grau de sacralidade ou que, pelo
menos, demandam algum cuidado especial no comportamento. Quem atravessa por
dentro do cemitério para, numa urgência, cortar caminho, pode ter o cuidado de retirar o
calçado dos pés antes de entrar em casa, movido seja por uma vaga idéia do perigo de
contágio e preocupações com a saúde, seja por preocupações de ordem místico-
religiosa. Pode, ainda, benzer-se, como é comum nas proximidades de lugares
considerados sagrados.
Como vimos anteriormente, para muitas pessoas, adultos e crianças, homens e
mulheres, o cemitério é um local de trabalho, fonte parcial ou total de renda. Assim
como para algumas crianças e adolescentes da vizinhança pobre do bairro periférico
Bom Pastor – referido em muitas matérias de jornais atuais como “favela”, devido a
suas residências humildes e valas de esgoto a céu aberto junto ao meio-fio – o cemitério
é local de brincadeiras, com suas vielas entre os túmulos e larga avenida central por
onde correm descalços dia após dia, sob o olhar indiferente dos zeladores, salvo uma ou
outra eventual reprimenda. O mesmo não se vê comumente no cemitério público de
Mossoró, talvez por sua localização mais central, por não estar tão integrado a um bairro
residencial popular como é o caso do Bom Pastor.
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Trabalhadores dos cemitérios
Quando se aproxima o Dia de Finados, muitos desempregados dos bairros vizinhos ao
cemitério arranjam um dinheiro extra por meio da prestação de serviço como zeladores
temporários dos túmulos, pintores ou pedreiros. Outros armam uma banquinha de flores
de papel ou plástico, coroas modestas, velas e fósforos; alguns outros vendem flores
naturais. Há os que levam um carrinho de cachorro quente para a entrada do cemitério
nas datas de maior visitação, principalmente Finados, 02 de novembro. Lá estão
também as várias banquinhas de doces, os isopores com água mineral e refrigerantes e
uma ou outra mesinha com ofertas de placas de metal onde pode ser gravada na hora
uma mensagem de homenagem dirigida ao finado para ser colocada sobre o túmulo. É
possível, inclusive, colocar nela um retrato do morto.
Não apenas adultos, mas também as crianças exercem essas funções, principalmente as
internas ao cemitério, como lavagem dos túmulos. É muito comum vê-las, como aos
adultos, com seu baldinho, sabão, pano de chão e vassoura ou rodo nas mãos. Quando
se trata de criança, é mais comum vê-las em duplas, meninos e meninas
indiferentemente. É também comum vê-las acompanhando uma mulher, filhos que são
levados para ajudar no serviço ou para conseguir um número maior de túmulos para
cuidar.
Outro trabalhador comum no cemitério é o catador de cera, que sai raspando o resto das
velas já queimadas nos cruzeiros e nas laterais e sobre os túmulos. É mais comum ver
nessa função mulheres e crianças. A cera assim coletada será depois vendida a pequenas
fábricas de vela da região, de modo a constituir um movimento circular, pois a mesma
vela fabricada por elas e vendida na porta do cemitério irá retornar, derretida, por um
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preço módico de centavos. Em 02 de novembro de 2005 eu pude comprar uma caixa de
velas e uma caixa de fósforos por um real na porta do cemitério Bom Pastor.
Algumas pessoas levam como oferendas várias caixas de velas e nem chegam a abri-las
para acender uma por uma; apenas lançam as caixas no cruzeiro, por vezes já um
pequeno incêndio, com chama alta, em torno do qual faz um calor intenso e muito
incômodo, que impede as pessoas de chegarem muito perto. Nesses casos, quando está
impossível acender as velas uma a uma ali, as pessoas acendem nas laterais do túmulo,
sobre ele, ou apenas substituem o ritual de orar diante da vela acesa por esse outro da
oferenda das suas velas para aquela chama sagrada que já está ali, ardendo. Pois que não
parece haver qualquer depreciação ou desrespeito nesse ato de colocar lá, no fogo, uma
caixa de velas fechada. E, nesse gesto, ainda está presente, como acompanhamento
necessário, o ato de rezar para e pela alma do morto.
Sendo a vela a oferenda por excelência nesse tipo de culto, os catadores conseguem
encontrar uma quantidade razoável de cera para venda. Observei que as pessoas que
exercem esta função estão dentre as mais modestas na população já modesta que
compõe esse contingente de trabalhadores do cemitério. Muitos circulam por entre as
covas rasas e sepulturas caras descalços, com os pés e pernas muito sujos, inclusive as
mulheres adultas. Costumam ficar meio distantes do túmulo à espera que os familiares
se afastem e que as velas terminem de queimar.
Só uma vez observei uma mulher que não quis esperar e apagou velas grandes e de boa
qualidade que ainda mal começavam a queimar, assim que a família se afastou do
túmulo; apagou-as e as lançou em sua sacola sem se importar com quem via. Há que se
notar que, a rigor, o ritual de acender as velas faz-se acompanhar da oração que deve se
desenrolar no tempo de modo a acompanhar a consumição da vela pela chama. Se a
família apenas as acendeu e logo se afastou, aquelas velas talvez parecessem para a
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humilde mulher que as apanhou apenas objetos que não haviam sido investidos da
devida sacralidade pela oração familiar. Dedução minha, já que não consegui iniciar
uma conversa com ela.
Conversar com os catadores de cera é bem mais difícil do que com os zeladores do
quadro permanente do cemitério e, com estes é bem mais fácil do que com os
temporários. Os que catam a cera têm o comportamento de quem cata os restos de outro,
sempre meio furtivo. Ouvi de algumas pessoas afirmações defensivas que revelam que
esperam a reprovação alheia: “por que alguém ia ligar? Não vai servir pra nada mesmo,
não tem nada de errado em pegar depois que já acabou [de queimar165]”.
Uma mulher que notou que eu a vira retirar de cima de um túmulo algumas velas quase
inteiras, porém apagadas, já começou a se justificar falando diretamente para mim (que
não dissera nada, até procurara olhar para o outro lado para não encabulá-la): “Tá
apagada, né filha, acho que não tem nada de mais eu pegar”. Concordei e perguntei, já
informada sobre essa prática no cemitério, se seria fácil vender lá fora aquela cera e ela
me disse que sim, que não dava muita coisa, mas sempre dava pra conseguir “umas
pratas”. Não me disse o valor, mas a venda é com base no peso. Com tanta concorrência
dentro do cemitério, é óbvio que essas pratas serão poucas. E isso só torna ainda mais
evidente a precariedade da situação sócio-econômica dessas pessoas.
Os zeladores do quadro permanente do cemitério estão em outra situação. Eles têm um
emprego. Embora a ampla maioria dos que vemos trabalhando nas proximidades do Dia
de Finados sejam temporários ou contratados diretamente pelas famílias dos finados
para reformar, limpar ou decorar os túmulos para a data anual comemorativa, outros
tantos exercem essas funções durante o ano inteiro. Com esses pude conversar mais
extensamente e alguns dentre eles foram informantes preciosos sobre a movimentação
165 Kaliane, menina que recolhia cera no Bom Pastor no Finados de 2003.
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em torno dos túmulos dos ‘santos’ sobretudo fora do período comemorativo em que o
culto aparece na mídia e é realmente visível no cemitério. Foram também eles que me
contaram sobre os trabalhos de ‘umbanda’ ou ‘catimbó’ que seriam freqüentemente
encontrados sobre os túmulos pela manhã – e também no cruzeiro do cemitério – pois
são os primeiros a entrar logo cedo e isso diariamente.
Por meio dessas conversas com eles pude saber que a segunda-feira é mesmo o dia mais
concorrido no cruzeiro onde muitas velas são acesas, confirmando o que já sabia de
outros ambientes religiosos católicos onde ser pratica o culto das almas: segunda-feira é
Dia das Almas, velha tradição popular. Por isso mesmo, não apenas o cruzeiro do
cemitério – e o das igrejas – recebe um número maior de visitas e oferendas de velas
nesse dia da semana, mas também as sepulturas são mais visitadas, as almas dos mortos
familiares e dos defuntos milagrosos como Baracho e Jararaca recebem mais oferendas
e pedidos. A freqüência ao cemitério e igrejas nesse dia cresce também em decorrência
da crença de que não se deve a cender velas para os mortos dentro de casa, somente a
céu aberto ou sob a proteção do espaço sagrado das igrejas e cruzeiros, feitos para isso.
Mas além dos trabalhadores braçais, que constroem os túmulos, reformam-nos, que os
lavam, limpam e enfeitam, os dois cemitérios têm seus administradores, que dão
expediente diário dentro do escritório administrativo situado no cemitério. Lá, há um ou
dois auxiliares administrativos que os secretariam, encarregados de cuidar dos registros
relativos aos sepultamentos e outras atividades internas, e o administrador propriamente
dito.
No Bom Pastor a administradora, dona Albaniza, mostrou-se muito receptiva à pesquisa
logo no início. Porém, logo ouvi de alguns zeladores que ela reprovava fortemente a
devoção a Baracho por ser “crente”. Disseram-me que ela mandava limpar todas as
oferendas de cima do túmulo logo após o encerramento do expediente do Dia de
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Finados ou em qualquer outra ocasião em que o túmulo estivesse mais cheio dessas
dádivas. Teria partido dela a iniciativa de reclamação na secretaria de saúde contra as
garrafinhas de água abertas que os devotos costumam deixar lá para “matar a sede de
Baracho”.
Tudo fofoca para a qual não obtive qualquer confirmação. Muitas vezes voltei ao
cemitério na manhã do dia seguinte a Finados e encontrei o túmulo ainda com as
oferendas como na véspera, embora de fato elas logo sumissem, principalmente as
garrafas e outra vasilhas de água. Mas não é possível saber se sumiram porque foram
jogadas fora ou se foram recolhidas pelas mesmas pessoas que as colocaram lá, posto
que é comum a crença de que seria necessário deixar a água em contato com a fonte
sagrada para que se torne ‘benta’ e seja depois levada para casa para fins curativos.
Em minhas conversas com dona Albaniza, sempre gentil, mas cuidadosa em manter
distância ao longo do trabalho a despeito de minhas tentativas de aproximação, nunca
escutei qualquer declaração de reprovação explícita ao culto, embora tenha percebido
uma tentativa de esvaziamento de sua importância, de forma sutil:
Isso aí está acabando. Não é mais o que já foi. Antigamente sim, ficava cheio
ali em volta, cheio demais. Tinha dia que era um incêndio ali na cova de
tanta vela. Agora, só um pouquinho de gente que ainda vem.
De fato, eu mesma pude presenciar uma diminuição no número de pessoas em torno do
túmulo ao longo dos dias da véspera e no Dia de Finados ao longo desses anos, desde
1998. Mas isso não significa que o culto estaria “acabando”. Ou seria mais um daqueles
“objetos em extinção” tão comuns no campo da antropologia, que na verdade parecem
ser por definição fenômenos “à beira” de extinguir-se, como que carentes de uma
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ontologia mais precisa, e sempre passíveis desse tipo de avaliação negativa (como “os
índios”, por exemplo)? Porque, pelo que pude observar, a despeito de uma redução na
sua visibilidade e efervescência aparente, pelo contrário, o que se vê é sua continuidade
desdobrada em outras formas que ultrapassam o ritual do Dia de Finados e são
incorporadas ao cotidiano. Aqueles que têm vínculo votivo com o santo há muitos anos
hoje já freqüentam o cemitério fora dessa data pública, preferindo reservar para a sua
devoção um momento mais privado, mais reservado, assim como fazem muitas das
pessoas que levam a sério e com rigor o culto aos parentes mortos e trocam a
homenagem no Dia de Finados, quando o cemitério fica cheio, tumultuado e cheio de
vendedores ambulantes, pela oração no ambiente tranqüilo dos dias comuns. Sem falar
que muitos fazem dessas homenagens e desse contato com os mortos uma rotina
semanal, às segundas-feiras, dia das almas.
Só uma vez dona Albaniza fez referência à sua religião em um contexto de referência ao
culto a Baracho. Disse-me, sem mais nem menos:
Não é porque sou crente que vou ser contra que o pessoal venha aí e acenda
suas velas. Se eles acreditam, eu respeito. Mas eu não acredito não, só
respeito porque tem que respeitar, né? Cada um tem um pensamento.
Ana, zeladora no cemitério Bom Pastor, onde trabalhava ao lado de sua sogra, também
zeladora, devota ardorosa de Baracho que me contou haver se curado de uma cólica
menstrual muito intensa de que sofria “desde mocinha” após ter-se lavado algumas
vezes com a “água milagrosa” de seu túmulo (deixada lá por outro devoto) mostrou-se
“revoltada” – termos usados por ela, Ana – com a postura de dona Albaniza que, me
confidenciou em segredo, falando muito baixo – mesmo não havendo ninguém por
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perto - daria mesmo ordens para jogar tudo fora, a água milagrosa inclusive, que,
segundo ela diria, “só serve pra causar dengue”.
Ignorância, muita ignorância, dizia Ana desolada. Mas fazer o quê, ela manda
eu tenho que obedecer. Mas eu peço perdão a Deus. Levo pra casa umas, o
resto jogo aí, ela que manda. Outro dia mesmo levei pra um vizinho meu que
tava com dor nas costas, reumatismo, que [é como] os médicos chamam. Ficou
bom. Mas essa gente assim a gente fala mas eles não acreditam, crente é assim.
É o jeito deles, eles são tudo assim.
Essa franqueza de Ana quanto a formular e expressar uma opinião a respeito da suposta
rejeição do culto a Baracho pela administradora do cemitério foi uma exceção em toda a
pesquisa. Nenhum outro funcionário permanente declarou abertamente saber de uma
reprovação ao culto por parte do administrador ou outra autoridade. Muito pelo
contrário, sempre se mostraram evasivos. Em parte, acredito que por receio de ter
problemas com o chefe, mas em parte por ser essa postura evasiva a mais característica
de modo geral em qualquer ocasião em que a devoção a Baracho e a Jararaca fossem
abordadas diretamente.
Os trabalhadores do cemitério, tanto os permanentes como os esporádicos, têm atitudes,
no mais, muito variadas no que diz respeito ao culto. Encontrei desde uns poucos que se
autodescreveram como devotos ou como crentes em Baracho/Jararaca (em seus
milagres, independente de como o definisse, ‘milagreiro’, ‘santo’, um morto através do
qual Jesus, somente ele, faz milagre, concede graça) até os que me evitaram
sistematicamente e apenas me viravam a cara a qualquer nova tentativa de aproximação
tamanha sua rejeição a essa prática cultual dentro do cemitério. Em quase todos esses
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casos tive a oportunidade de confirmar depois que se tratava de adeptos de religiões
protestantes.
Apenas uma das zeladoras que criticam abertamente a devoção concordou em conversar
comigo, aliás, mais de uma vez: Conceição, 27 anos, zeladora no Bom Pastor, que é
católica “praticante” e afirma que Baracho “é santo nada” e que os objetos que se pode
ver em seu túmulo (ex-votos de madeira como pernas, pés, cabeças, cabaças com
alimento, muitas garrafas de água) são “bruxaria”. Segundo ela, pode até ser que vá lá
pedir para ele uma pessoa inocente, mas a maioria seria composta pelo que ela chama de
“os bruxos” ou “gente que vem pedir o mal dos outros”. Ela enfatizou muito a
existência de “bonecas espetadas com alfinete” dentre as oferendas, o que para ela
caracterizaria a oferenda maligna por excelência, que disse ser muito comum. Confesso
que ao longo desses anos de visitas regulares a esses túmulos nunca vi bonecas
espetadas (ou fotografias espetadas), embora já tenha visto daquelas cabaças de
cerâmica comuns em oferendas da umbanda.
Em Mossoró não encontrei a mesma disponibilidade e franqueza da parte dos
funcionários; nem uma devota entusiasmada e disposta a dar seu testemunho contra a
opinião e atitudes de seu próprio chefe como Ana, nem uma antagonista ferrenha e
eloqüente como Conceição. Pelo contrário, todos se mostraram mais reservados e
menos “pessoais”, embora sem a mesma atitude de rejeição tão explícita, muitas vezes
nitidamente de viés religioso e moral, como pude ver no Bom Pastor, em Natal.
Talvez isto possa ser explicado pelo fato de Jararaca ser famoso, personagem de uma
narrativa mais ‘pública’, na qual a própria política pública cultural da cidade faz
investimentos, a respeito do qual existe um discurso oficial que circula e que é de
domínio público. Seu túmulo é freqüentemente procurado por estrangeiros em visita à
cidade, que para lá seguem, curiosos, após uma visita ao Museu do Cangaço ou após
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assistirem ao evento denominado Chuva de Balas no País de Mossoró – uma encenação
teatral da invasão e derrota do bando de Lampião, na qual Jararaca é enfocado como o
bandido capturado pela polícia brava e heróica, e que têm várias apresentações ao longo
dos dez a quinze dias que chega a durar a festa junina mossoroense, sempre com grande
audiência. Nessa encenação, o que importa é a vitória “do povo de Mossoró”, o discurso
da “resistência” e “bravura”, e nela nada costuma ser dito sobre a morte de Jararaca,
mas apenas sobre sua captura e prisão. No entanto, é impossível estar no meio do
público e não ouvir, ainda durante a apresentação, murmúrios que comentam sobre os
milagres de Jararaca, seja com admiração e aprovação, seja com espanto, reprovação,
escárnio, ceticismo.
Jararaca e Baracho são mortos milagrosos, santos ou, para tantos outros, entes
demoníacos que continuam fazendo o mal mesmo depois de mortos e que, como tais, se
juntam a tantos outros entes sobrenaturais duvidosos que habitam o espaço sagrado do
cemitério.
O cemitério no imaginário social: fantasmas e assombrações
Os cemitérios povoam a imaginação das pessoas como lugares perigosos. E isso tanto
no plano sagrado ou sobrenatural como no plano profano. Mesmo aquelas para quem
ele é parte do cotidiano em maior ou menor grau, ainda manifestam certo cuidado ou
ambigüidade frente a ele, nas atitudes, nos sentimentos, nas formas de falar sobre ele.
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Cemitério é lugar mal assombrado166. O fato de que lá repousam os corpos dos mortos
logo leva à dedução de que por lá também passeiam suas almas (não quaisquer almas,
porém, mas as almas penadas ou aflitas) ou espíritos, que podem não ser amistosos. Há
muitas histórias rondando esses lugares, geralmente histórias de aparições, de
fantasmas, de assombrações, que compõem um repertório amplamente conhecido e
ainda mais rico nas pequenas cidades do interior do país, mas também numa pequena
capital como Natal.
Daí decorrem atitudes de evitação do lugar e seus arredores mais imediatos,
principalmente à noite e em dias e horários carregados de significação especial no
terreno místico e religioso, como as sextas-feiras e a meia-noite. A evitação não elimina
nem entra em contradição com o convívio amistoso, antes é uma forma de respeito167 ao
espaço e tempo próprio dos falecidos, de suas almas, que se acredita manifestarem-se e
aparecerem168 por ali e que poderiam, se desrespeitadas pelo que pode ser concebido
como uma invasão, se tornar ameaçadoras para os vivos. Esse respeito e até reverência
convivem com o temor, que também está presente nessa atitude de evitação e nos
sentimentos e representações acerca desse lugar que, no plano espacial, material e
simbólico, é mediador entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. De forma mais
166 “Várias obras em francês antigo (por exemplo, Amadas et Idoine e Perlesvaus) retomam o motivo do cemitério assombrado – o ‘cemitério perigoso’ – ou da capela na qual repousa um cavaleiro morto que se ergue em seu caixão à aproximação do herói. É seu tratamento romanesco e a forma versificada que distinguem essas obras, mas os temas são reencontrados nos mirabilia latinos e mesmo, quanto a alguns, nos exempla dos pregadores.” (Schmitt 1999 [1994]) 167 É claro que tenho em mente, aqui, a clássica análise de Radcliffe-Brown de certo sistema de parentesco africano no qual a atitude prescrita de evitação conotaria respeito pelo parente. 168 Jean-Claude Schmitt (1999 [1994]: 204), a propósito da época medieval, diz: “O cemitério está entre os lugares mais propícios às aparições. Do ano 1000 ao século XVIII, a proximidade do espaço dos vivos e do espaço dos mortos é um traço muito importante da história das sociedades e das mentalidades tradicionais da Europa.”
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concreta, essa mediação é estabelecida por meio do contato com o túmulo, que, por sua
vez, encapsula o corpo do finado.
Assim, tanto os espaços físicos como o tempo recebem qualificações que variam com as
crenças e significados construídos nas relações sociais e por meio delas. O lugar dos
mortos não é apenas um lugar físico, mas também social, e não é marcado pela
negatividade: ausência, nada, silêncio ou ameaça. Próximos ou não, parentes ou não,
distantes ou não, os mortos são percebidos como parte de um processo de interação
social regulado, como todos, por normas sociais, sujeito a ‘desvios’, objeto de
sentimentos contraditórios que podem ir da veneração a repulsa, e de atitudes que
buscam aproximar-se deles e evitá-los quase sempre na mesma medida.
Mas nunca de forma homogênea, pois que a própria designação ‘mortos’ só faz sentido
numa abordagem de média distância. Mais de perto, nunca se trata de ‘gente morta’,
mas sim do finado pai, avô, do finado Baracho que foi morto pela polícia debaixo do
cajueiro, ou do infeliz que morreu sozinho e abandonado e agora sofre sem descanso e
por isso insiste em ainda se agarrar à Terra... Isto é, o morto é uma pessoa, é alguém,
assim como quem tenha por ventura – ou melhor, por desventura – visto sua aparição
nos arredores do cemitério e que irá fazer de tal experiência a matéria de um relato a ser
construído, como qualquer outro relato, como um artefato cultural, tecido de
representações sociais, de significantes compartilhados, que farão sentido como parte de
uma cadeia na qual outros relatos semelhantes o precederam e o seguirão, num fluxo de
narrações contínuas. Por meio da circulação desses relatos, os mortos continuarão
vivendo e multiplicando suas aparições, intenções, significados.
Como já foi dito, quando se trata de assombrações, de aparições de mortos, não é de
qualquer alma ou espírito que se fala. Também nesse plano, há especificações que
identificam esses mortos e lhes tornam ameaçadores: pois somente os que não
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encontraram na morte o descanso voltariam em forma corpórea, visível, para esse
convívio não desejado e sempre temido pelos vivos. É comum que tanto católicos
quanto espíritas expliquem as manifestações dos mortos percebidas pelos vivos como
sinal de que teriam deixado aqui na terra assuntos mal resolvidos, pendências,
provavelmente vinculados a comportamentos moralmente reprováveis que tiveram em
vida. Neste caso, o morto volta a aparecer em outros espaços também, “espaços dos
vivos”, a casa onde viveu, suas imediações, mas mais comumente o lugar onde se deu
sua morte, principalmente nos casos de morte violenta. Aparece também em sonhos. Em
qualquer dos casos, como assombração ou visão onírica, o morto busca comunicar-se
com os vivos, geralmente para pedir que rezem por sua alma que se encontra em estado
de sofrimento, que rezem missas ou concluam por ele algum assunto que teria deixado
pendente ao morrer.
No entanto, essa concepção da alma sofredora não esgota as possibilidades do morto
que retorna. Este também pode estar aqui para prejudicar os vivos, por tratar-se de um
morto maléfico, danado, que apenas quer arrastar consigo alguma vítima para o mesmo
tipo de morte trágica e infeliz que ele provavelmente teve.
É interessante observar que tanto os danados como os santos continuam a ter o corpo
como mediador fundamental no contato com os vivos. Há uma crença corrente, e muito
antiga, de que tanto um como o outro podem permanecer incorruptos sob a terra após
seu sepultamento. A diferença é que o santo não sai de sua sepultura e o contato com ele
é buscado pelo seu devoto por meio da aproximação a esse lugar, enquanto o morto
maléfico levanta-se da sepultura, como uma espécie de zumbi - representação do corpo
que anda - ou como uma aparição - uma imagem do corpo não-material, porém
reconhecível – para mostrar-se aos vivos ou para persegui-los. Ninguém procura por ele,
muito pelo contrário: à mera suspeita de que em certo lugar costumam aparecer é
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suficiente para torná-lo deserto, abandonado, o que, por sua vez, concorre, de modo
circular, para o reforço de tal fama de mal assombrado.
A norma cristã é o repouso da alma após a morte, ausência total do corpo (embora se
venere a tumba onde ele descansa) e descanso da alma, que não procura contato com os
vivos. O corpo desaparece, a alma silencia e sua memória se estabelece e se sustenta por
meio de cultos socialmente sancionados, como os cultos funerários anuais e o oratório
familiar.
Assim, tanto os mortos maléficos como os santos constituem, quanto ao corpo, casos
desviantes dessa norma. E em casos tão ambíguos quanto os de mortos como Baracho e
Jararaca não é surpreendente que haja lugar para tantas controvérsias a respeito não
somente de sua santidade mas também de sua malignidade, posto que, na quase
ausência de suportes iconográficos (imagens em ‘santinhos’, gravadas ou esculpidas)
ou de qualquer espaço de culto especializado, sua existência – o único suporte material
para seu culto - está reduzida ao local do seu enterramento, o cemitério com toda a sua
carga simbólica, positiva e negativa, sagrada e perigosa. Portanto, seja sua santidade,
seja sua malignidade, é inseparável dos significados atribuídos ao seu corpo, ao seu
túmulo, à sua morte e a esse lugar que é o cemitério.
Schmitt169 inventaria algumas das formas mais antigas de representações dos mortos no
ocidente, especialmente aquelas correspondentes a categorias como aparições,
fantasmas e assombrações. E aponta para uma diabolização dessas manifestações dos
mortos entre os vivos, que teria sido concomitante à rejeição protestante das almas do
purgatório. A partir daí, ao longo dos séculos que se seguiram, teria se tornado cada vez
mais comum a associação desse tipo de fenômeno com a “feitiçaria”, geralmente como
parte de um discurso acusatório, e com o “espiritismo”, como doutrina e ciência da
169 1999 [1994]: 246-7.
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domesticação dos contatos entre vivos e mortos dentro de regras bem estabelecidas, de
modo controlado.
A crescente folclorização (sobretudo durante o período iluminista) dos relatos sobre
‘mortos que voltam’ e se comunicam ou ameaçam os vivos teria levado, mais tarde, à
difusão da categoria ‘crenças populares’ – ou superstições populares170.
O cemitério como exílio para quem e o quê se esconde: fugitivos e bruxos
Todavia, não são somente os mortos demoníacos que representam perigo no cemitério.
Além das histórias de assombrações e aparições, circulam histórias sobre relações que
se dariam entre esses mortos (“almas”, “eguns”, “espíritos”, “santos”, “assombrações”),
outros habitantes do cemitério de natureza sobrenatural (como os “exus” e orixás como
Omulú171) e os vivos, também qualificados de diferentes maneiras (“devotos”,
“espíritas172”, bruxos173).
170 Desde o século XVIII, “a crença nos fantasmas, tendo perdido a legitimidade que lhe conferiam a onipotência da Igreja católica e o culto das almas do purgatório, é rechaçada para o campo das ‘superstições’. É aí, no domínio ambíguo das ‘crenças populares’, que a etnologia nascente se aplicará em redescobri-la.” (Schmitt 1999 [1994]: 247-8) 171 Do ponto de vista das religiões afro-brasileiras, como o catimbó nordestino. 172 De modo geral, adeptos de religiões afro-brasileiras como a umbanda e o catimbó auto-denominam-se ‘espíritas’, de modo que, a menos que haja alguma referência específica à freqüência a certo centro ou certo terreiro, por exemplo, ou algum outro elemento contextual a partir do qual se possa fazer alguma inferência, é impossível determinar somente com base na auto-definição breve que se trate de umbandista ou de espírita kardecista, dentre outras possibilidades. 173 Esse termo nunca aparece, é claro, como auto-designação, mas somente como categoria acusatória, geralmente como referência a religiões afro-brasileiras ou práticas de curandeirismo populares. Estas últimas costumam ser muito valorizadas e muito procuradas, mas nem por isso deixam de ser vistas como práticas ambíguas, pois se prestam, a princípio, tanto a fazer o bem como a fazer o mal. Aliás, assim como os pedidos feitos ao santo, o bem de um pode ser o mal de outro, como nos pedidos para que o santo (ou o curandeiro) faça o mal a alguém como vingança por um mal sofrido por parte daquela pessoa. Isso não é, do ponto de vista daquele que pede, concebido como “fazer o mal” ou como vingança, mas como simples questão de justiça.
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Mas além dessas relações que podemos chamar de verticais, entre o Céu e a Terra, entre
o sobrenatural e o humano, temos também as relações humanas, horizontais, que se
movem na sombra, associadas principalmente à vida noturna do cemitério. É no mesmo
escuro da noite em que os catimbozeiros pulam o muro do cemitério para preparar seus
rituais e lá deixar seus ‘trabalhos’, seus ebós174, que os ladrões pulam esses mesmos
muros para roubar dos túmulos o que puderem ter de precioso – mármore, ferro, algum
adereço caro – ou mesmo para profanar sepulturas, com a mesma intenção175.
É também nesse mesmo escuro que os fugitivos da polícia ou de algum inimigo, e os
pobres desabrigados, sem teto, procuram abrigo no cemitério, atualizando aquela sua
velha vocação de refúgio, asilo ou mesmo moradia.
Assim, entre o perigo e o abrigo, entre a ameaça dos mortos ameaçadores e a proteção
dos mortos santos, o cemitério continua sendo objeto de forte investimento simbólico e,
em particular, de uma multiplicidade de práticas cultuais e religiosas. O objetivo aqui é
focalizar uma delas: a emergência e desenvolvimento de um novo santo, por meio de
práticas cultuais que o constituem enquanto tal, no processo mesmo de sua realização.
Para tanto, retomarei sua descrição no próximo capítulo, com ênfase nos seus aspectos
verbais, isto é, nos testemunhos e nas histórias que lhes dão sua feição particular,
concorrem para, e reforçam, sua eficiência simbólica e constroem para ele uma
memória.
174 Oferendas constituídas por alimentos, velas coloridas etc., escolhidos de acordo com a entidade a quem são oferecidos. 175 Acontecimentos recentes em Mossoró, nesse sentido, foram noticiados nos jornais locais e da capital, bem como nas emissoras de televisão. Várias sepulturas foram violadas, quebradas, no cemitério público com objetivo de roubo, o que causou grande indignação na população. Nada aconteceu na sepultura de Jararaca.
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Capítulo 4. A devoção falada
Neste capítulo, quero apresentar e discutir um panorama das falas que têm lugar nos
ritos que constituem parte da devoção aos mortos milagrosos, bem como definir quem
são seus agentes sociais, quem pode ou deve preferencialmente falar, e como; e quem
tem o direito de esperar ser ouvido176. Quero também mostrar como essas falas
constituem-se em parte intrínseca do ritual. Não se trata de uma fala sobre o ritual, mas
uma fala que é o ritual. Tão importante quanto o comportamento corporal - os gestos,
por exemplo - é o que as pessoas dizem durante o tempo do culto, mas também depois
dele.
O culto ao morto milagroso, embora tenha como momento central os ritos que são
prestados no cemitério, o ultrapassa. Muitos devotos mantêm altares domésticos onde
rezam para seus santos diante de objetos relacionados à devoção, como um folheto de
cordel ou recorte de jornal, uma pedra retirada do chão do cemitério e colocada sobre o
túmulo para ser rezada ou uma vasilha de água.
Trata-se também aqui de inventariar os tipos de falas em que consiste o ritual e seus
temas recorrentes. Em primeiro lugar, podemos caracterizar os depoimentos pessoais,
narrações que se ancoram na experiência singular do devoto em sua relação com o
culto. Esses depoimentos contam o que se passou e o que se passa no presente, em sua
vida, antes, durante ou depois de entrar em contato com a devoção. Seu ponto alto, via
de regra é o relato da experiência do milagre alcançado após a reza para o santo ou após
o compromisso de uma promessa ou voto.
Outro objeto desses depoimentos são as narrações sobre a vida dos santos, em termos
dos acontecimentos “reais” que lhes teriam ocorrido no passado – sua “vida de
176 Tema que remete para um ensaio clássico de Pierre Clastres, “O dever de palavra” (1974).
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bandido”, suas proezas, principalmente aquelas que precederam imediatamente sua
morte. Neste caso, é freqüente que seja feita referência aos jornais – quase sempre os
contemporâneos, em poucos casos, os jornais da época177 - como instância legitimadora
do relato. “Saiu até na Tribuna, eu li”. Não raro me recomendavam que lesse também
para me informar sobre o que realmente acontecera na época de sua morte ou, o que era
bem mais freqüente, para encontrar neles muitos outros relatos de milagres alcançados
por outros devotos. A verdade é que nessas matérias de jornais contemporâneos fala-se
menos dos milagres do que da freqüência ao túmulo de Baracho e Jararaca no Dia de
Finados, sempre maior que em outros túmulos nos mesmos cemitérios e sempre mais
destacada do que a freqüência ao túmulo de Padre João Maria no cemitério do Alecrim
(em Natal).
Esses relatos, assim como aqueles sobre os milagres alcançados pela própria pessoa que
os enuncia ou por um outro sobre quem ela conta, podem ou não apresentar um sentido
de testemunho, que tem por base uma experiência vivida seja no culto – como ter
sentido uma melhora imediata só por estar ali ou tocar o objeto sagrado - ou após o
culto ter sido prestado, como conseqüência dele – como quando se alcança um milagre.
Porém, oferece-se testemunho também dos acontecimentos relativos às biografias das
personagens em torno das quais o culto se realiza. É com orgulho indisfarçável que
muitos dizem: “Eu conheci Baracho” ou “Meu pai conheceu Jararaca” ou “viveu nesse
tempo aí, ele contava.” A rigor, neste último caso, já não se trata de um testemunho
direto, porém, é preciso levar em conta a lógica que lhe dá sentido do ponto de vista de
quem a enuncia, pois o indivíduo que fala acentua a continuidade familiar, a qual torna
possível que seu pai fale pela sua boca. Se seu pai viu, ele viu.
177 No caso de Jararaca é mais freqüente a referência aos jornais da época de sua vida/morte, já que eles estão disponíveis no Museu do Cangaço e este é local de pesquisa escolar e visitas turísticas na cidade. Algumas matérias de jornais, com fotos, ficam expostas nas paredes de uma das salas do Museu e mesmo no seu hall de entrada.
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Além dos depoimentos pessoais acerca das experiências percebidas como singulares a
cada indivíduo – quer narrem a própria experiência ou a de um outro -, que têm como
principal tema as promessas e os milagres, e dos testemunhos oferecidos às histórias de
Baracho e de Jararaca, encontramos também narrações baseadas em “ouvir dizer”, que
não têm uma fonte precisa. São simplesmente coisas que todo mundo sabe ou que
“dizem por aí”. São as lendas ou contos, muitos de caráter maravilhoso, de ampla
circulação social, que não necessariamente giram em torno de Baracho ou Jararaca, mas
de figuras similares que habitariam o mesmo paradigma, originários de uma mesma
matriz simbólica. Esse saber oral em circulação nesse ambiente social lhes
proporcionariam, aos mortos milagrosos, sobretudo no que se refere às suas vidas, um
contexto a partir do qual podem ganhar uma inteligibilidade imediata. Chamarei a essas
narrações ‘histórias178’, e neste capítulo estarei contando um pouco, especificamente,
sobre o que “todo mundo sabe” sobre Jararaca e sobre Baracho, embora nunca tenha
sido assunto de jornal nem tenha sido testemunhado por ninguém.
Essas histórias têm quase sempre um sabor fantástico, um quê de implausibilidade, que
em nada lhes desacredita ou reduz o prestígio, muito pelo contrário. Aqui estamos no
terreno do imaginário, que desconhece fronteiras entre local, regional e nacional (ou
mesmo além). Como dizem alguns estudiosos do cordel179 nordestino, muitas de suas
histórias tinham – têm – como inspiração antigas narrações européias que migraram
178 Prefiro ‘história’ a ‘conto’, posto que nunca ouvi ninguém dizer “isso aí é conto desse povo” como ouvi tantas vezes “isso aí é história desse povo, é invenção”, para referir-se a qualquer narração de sabor lendário ou conotação maravilhosa. São ‘histórias’... 179 “Consiste, basicamente, em longos poemas narrativos, chamados ‘romances’ ou ‘histórias’, impressos em folhetins ou panfletos de 32 ou, raramente, 64 páginas, que falam de amores, sofrimentos ou aventuras, num discurso heróico de ficção.” Há também um outro tipo, “o folheto com oito páginas de poesia circunstancial ou de acontecido, também contribui para o corpus total.” O cordel teria “características tanto populares quanto folclóricas, ou seja, é um meio impresso, com autoria designada, consumido por um número expressivo de leitores numa área geográfica ampla, enquanto exibe métricas, temas e performance da tradição oral. Além disso, conta com a participação direta do público, como platéia.” (Curran 2001: 17).
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para o Brasil por diversas rotas - como Carlos Magno e Os doze pares de França e
tantos outros contos europeus180 cujas origens remontam às tradições orais naquele
continente, anteriores a quaisquer registros escritos ou impressos.
Em se tratando do Nordeste brasileiro, pisamos em um terreno tão fértil quanto
escorregadio, cheio de portas falsas, tesouros enterrados, velhos casarões mal
assombrados, mortos que não descansam e teimam em aparecer nos ermos das velhas
fábricas abandonadas, debaixo daquela árvore centenária ou ali, onde algum infeliz
encontrou a funesta morte repentina. Baracho, aliás, teria morrido no terreno de um
matadouro de animais – o que não deixa de ser acentuado pelos narradores de sua
história -, onde hoje funciona a sede da companhia de limpeza urbana.
Todas essas falas ocorrem em um contexto de interação social pública. Nenhuma
acontece sob a forma de um monólogo, mesmo quando parece sê-lo, pois todas supõem
inúmeros e diversificados elos de narração, anteriores, presentes e posteriores, os
ouvintes ali presentes durante o culto, os transmissores da versão ouvida e agora narrada
(quando não é testemunho de experiência própria). Mesmo quando se trata de um
depoimento somente para a pesquisadora, essa fala supõe e inclui – retoma, reitera,
contradiz – aqueles outros elos da cadeia narrativa na qual vem se inserir. O narrador
nunca fala somente para seu ouvinte naquele momento, pois sua fala, no momento
mesmo da enunciação, é dita com a intenção de que seja repetida. Não é gratuita a
repetição de fórmulas, a enunciação insistente de certas verdades-chave, a sabedoria a
ser transmitida ou a “lição de moral” da história, depoimento, testemunho.
Mas a fala pública no cemitério, durante o culto, ainda que ritual – portanto,
formalizada em algum grau (ainda que frouxamente), prescrita, repetitiva e, até certo
ponto, previsível – também pode ser uma fala equívoca. Ou melhor, o ritual não é
180 Cascudo 2001c; Curran 2001; Pereira de Queiroz 1997.
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incompatível com a polifonia, com a manifestação coetânea de uma multiplicidade de
vozes, de discursos. Não se trata apenas das diferenças de “conteúdo”, de opiniões, que
refletem valores diversos e polissemias; ou de versões diferentes para uma mesma
história, seja do passado “histórico”, seja do passado “lendário”, seja ainda dos
acontecimentos “sobrenaturais” nos dias de hoje. Trata-se, também, de uma diferença já
na intenção que move os diferentes devotos, no plano emocional, da própria motivação
para estar ali à beira do túmulo no cemitério. Sua voz se ergue comovida para dar
testemunho da verdade do milagre; para contar com prazer indisfarçável das proezas do
famigerado cangaceiro; para discutir o que “realmente aconteceu” quando de sua morte,
com base no que ouviu de parentes mais velhos ou no que leu; etc. São motivações
diferentes e nem sempre a pessoa que se interessa por uma dessas
enunciações/discussões, se interessaria também por outra. Alguns, por exemplo, jamais
entrariam numa disputa sobre se Baracho ou Jararaca eram “bons ladrões” ou não; para
estes, o que importa é o que deles foi feito após sua morte.
O fato de não haver no culto uma normatização ou padronização do discurso, ou de
algumas de suas formas, imposta por mediadores, dá ampla margem para conflitos de
saberes (ou opiniões) e versões discordantes. Não há, por exemplo, uma biografia
‘autorizada’, como há para aqueles ‘santos’ cuja canonização popular foi encampada em
primeiro lugar por suas famílias ou por autoridades públicas181.
A presença de pessoas contrárias à realização desses cultos, e que algumas vezes lhes
reprovam abertamente, fomenta ainda mais esse caráter de controvérsia. As
justificativas alegadas para a rejeição ao culto podem variar de motivos religiosos (os
evangélicos, por ex., em geral o reprovam, mas também muitos católicos) a razões de
saúde pública (as garrafas abertas da água de Baracho seriam um fator de disseminação
181 Frade 1987 e Schneider 2001, por exemplo.
- 150 -
da dengue no bairro do Bom Pastor), passando pela avaliação negativa dessas práticas
como “superstição de gente ignorante”, “bruxaria” exercida por “gente ruim” ou “falta
de Jesus no coração”.
Nesse contexto, então, surgem as falas acusatórias que trazem em seu bojo toda uma
gama de representações negativas sobre o que na região costuma ser referido como
catimbó182. Aí pode estar uma das chaves para a compreensão de muito do silêncio e
aura de clandestinidade que cercam esses cultos quando não estão no quadro
legitimador do tradicional culto aos mortos no Dia de Finados ou, pelo menos, do
aniversário de morte do finado.
É muito difícil para um pesquisador obter qualquer sucesso numa abordagem direta do
assunto. Sobre Jararaca, todos admitem ter, no mínimo, “ouvido falar”, já que se trata de
personagem histórica – aliás, não qualquer uma, mas parte de uma das mais queridas
sagas mossoroenses. Porém, João Baracho dorme no limbo de um relativo esquecimento
no cotidiano. Ladrão anônimo, sem nenhum contexto “histórico” que lhe empreste
prestígio e algum grau de legitimação para o cultivo de sua memória, ou instituição
pública que nela tenha interesse, ele é ‘apenas’ um joão-ninguém que foi assassinado
em público, na rua, no matadouro de animais, sob a vista de seus vizinhos. Ou não: teria
sido um “facínora” perigoso, como diziam os jornais da época de sua morte, em 1962,
um ‘outro’ a ser esquecido.
De certa forma, Baracho, por essa identidade tão fluida, e de certa forma mais comum,
imediatamente assimilado ao domínio da criminalidade – ainda que também passível de
ser visto, como de fato é, como o “bom ladrão” que rouba dos ricos para dar aos pobres 182 Trata-se de uma religião afro-brasileira, porém no contexto em questão o termo é usado de modo genérico para designar práticas cultuais e crenças percebidas como maléficas. Além do catimbó propriamente dito, quaisquer práticas da umbanda, curas religiosas, magia amorosa, ‘espiritismo’, podem eventualmente ser situadas nessa categoria, segundo o ponto de vista e a intenção de reprová-las ou excluí-las do campo da religiosidade ‘respeitável’. O que cada um – católico, católico carismático, espírita kardecista, protestante – vai chamar de catimbó, obviamente, varia. Sobre umbanda no Rio Grande do Norte, ver Assunção 2006.
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– é mais facilmente – e livremente - apropriável por uma gama mais ampla de
representações sociais, sejam elas do campo da religiosidade, do imaginário urbano
nordestino, do legendário local, da crônica policial. E aí entram as leituras que fazem
dele, mais do que de Jararaca, um potencial agente sobrenatural de figuras variáveis do
Mal, que remetem para o demoníaco ou para – nem sempre é a mesma coisa – a (ainda)
ausência de Deus, que pode ou não ser passível de ser revertida.
Talvez com Jararaca se tome menos liberdade pelo próprio fato de sua identidade de
cangaceiro já o determinar em grande parte: existe um rico corpo de histórias sobre o
cangaço, muito conhecido. E uma das imagens mais comuns do ‘cangaceiro’ alinha à
sua bravura e brutalidade um quê de traquinagem, uma diabolização que costuma seguir
antes pela via da jocosidade do que da pura negatividade. Isso o aproxima da figura do
trickster, tão comum nas mitologias183, espécie de trapaceiro, figura liminar entre o bem
e o mal. Nem por isso, no entanto, o cangaceiro deixa de despertar aquele tipo de
respeito que costuma andar de mãos dadas com o temor. Afinal, se o diabo brinca184,
com o diabo não se brinca.
Enfim, o cemitério, como local em si mesmo carregado de significações ambíguas e
muitas negativas (perigoso, mal assombrado, escuro, deserto à noite, “lugar onde vão
fumar o que não presta”), também favorece essa apropriação que, ao contrário da
santificação, diaboliza esses que para muitos outros seriam santos ou estariam no
caminho para a santificação por meio dos milagres que concedem a seus devotos.
183 Lévi-Strauss 1971 e Hynes & Doty 1993. 184 Ver o número especial da revista Religião e Sociedade, 12/2, de Outubro de 1985, que explora sob diferentes aspectos a presença do diabo na cultura popular, em especial o artigo de Eduardo Diatahy B. de Menezes, “A quotidianidade do demônio na cultura popular” (pp. 92-130).
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Quem fala, e como?
Quem detém, no culto do Dia de Finados, a possibilidade real de falar que, a princípio,
em se tratando de um culto não-institucionalizado nem organizado hierarquicamente,
poderia ser de qualquer um? Se não há prescrições sobre quem e como pode falar, ou o
quê pode ser falado, há, todavia, regras relativas aos costumes e à moralidade dos
segmentos sociais, e essas regras colocam determinadas condicionantes para essas falas.
O ritual não se dá em um vácuo de valores nem implica ruptura com o saber cotidiano.
Assim como são as mulheres que agenciam o contato com as potências religiosas, são
também elas que falam mais, e de modo mais expressivo, sobre as experiências de
obtenção de graças por meio das promessas ou votos. Suas falas costumam ser
altamente emotivas e facilmente percorrem uma linha que vai do presente imediato – a
razão de estar ali – até o passado, as causas do problema para o qual busca solução, as
origens da situação, a história da família. Seu enfoque é subjetivo, pessoal, e seu tema é
o sofrimento experienciado, por ela ou por um dos seus entes queridos (filho, marido ou
um dos pais, mais comumente).
Não que os homens não contem sobre milagres alcançados por eles, mas eles, quando
falam sobre isso, geralmente o fazem de maneira diferente, com a ênfase caindo sobre o
sucesso (ou insucesso) da promessa. Seu olhar, e suas narrativas, vão do presente para o
futuro. É raro que insistam em contar sobre a experiência de sofrimento que os levou até
ali, exceto quando se trata de desemprego, um dos motivos mais comuns para a procura
do milagre por parte dos homens. Todavia, os homens tomam a palavra com muito mais
freqüência, e eloqüência, quando se trata de narrar os fatos passados durante a vida dos
bandidos. Basta que um senhor de mais idade se ponha a contar as famosas proezas de
Jararaca – geralmente pela sempre repetida passagem “jogou a criança para o alto e
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aparou na ponta do facão”, acompanhada dos gestos e, quase sempre, de um tom de
incredulidade divertida – para que logo outros homens, e algumas mulheres, se juntem
ao seu redor lembrando outros ‘fatos’ conhecidos.
Além das diferenças de comportamento relacionadas ao gênero, também se pode
perceber, de modo ainda mais marcado, o peso das diferenças etárias. É claro o respeito
devido aos mais velhos, especialmente aos anciãos. Se um destes está presente numa
roda de conversa, na aglomeração próxima ao túmulo, ainda que resista certo
burburinho, a tendência será que a atenção das pessoas próximas esteja focada nele
enquanto narra o que viveu, o que testemunhou ou o que ouviu dos que testemunharam
diretamente aqueles fatos. Tive o prazer de ouvir diversas vezes, no bairro Bom Pastor,
em Natal, junto ao túmulo de Baracho ou na casa de alguém, um desses idosos,
moradores do bairro desde a infância (do “tempo de Baracho”), narrar suas recordações.
Alguns diziam recordar a fisionomia de Baracho, “eu conheci ele assim como estou
vendo a senhora”.
Essa preferência concedida aos mais velhos na tomada da palavra em uma ocasião
pública de caráter nitidamente religioso – mas que a religiosidade não esgota – pode
passar por dois eixos: pela atitude socialmente prescrita de ‘respeito’ pela pessoa mais
velha, que conhece mais esses assuntos “da tradição” - e, nesses segmentos sociais,
religião parece ser mesmo assunto de gente mais velha, assim como a tarefa de contar o
passado – e que, portanto, detém um saber fundado na experiência que, por isso mesmo,
não lhe pode ser tomado nem alcançado por um mais jovem. Essa valorização desse
saber é inseparável da referência a uma ordem moral e visão de mundo, que estão longe
do individualismo burguês que, numa visão pelo alto, pareceria, a princípio, caracterizar
a sociedade urbana moderna, ou pelo menos seus segmentos de camadas médias.
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O segundo eixo que ordenaria tal tomada da palavra pelos mais velhos parece estar
relacionado ao alto valor conferido nesse ambiente social à narrativa do tipo testemunho
direto. Ora, são eles, os mais velhos que de fato estavam lá ou, pelo menos, estavam,
numa linha diacrônica, mais próximos de quem estava – de quem viu, ouviu, leu no
jornal do dia, ouviu no rádio, sentiu na pele o susto, a surpresa, o calor do
acontecimento. Enfim, de quem não apenas “ouviu falar”, mas sabe. São eles, os que
sabem, os que devem falar em primeiro lugar, se estão presentes.
Se estiverem com a palavra, não se deve interromper - e há os que o fazem, sim: os
jovens “sem educação”. Mas há também os que, da mesma faixa etária, podem entrar
numa espécie de disputa pela palavra que pode tornar-se rapidamente uma disputa de
versões ou conflito de opiniões – que só é ‘opinião’ do ponto de vista do outro, pois que
cada um acredita que o que afirma é, cada um apenas diz o que sabe.
Nessas ocasiões surgem também as disputas pela narrativa mais precisa, em torno dos
detalhes. E tomem desmentidos e teimosias que parecem nunca chegar a uma conclusão.
Foi em 1951 ou já em 1952 que tal fato teve lugar? E como era mesmo o nome da viúva
do último motorista que ele matou? Convém não interromper, pois, quando menos se
espera, tais discussões podem descortinar um aspecto significativo da história passada
ou da devoção hoje.
É comum que essas disputas se dêem de modo pacífico, com a desistência de um dos
lados. Se forem dois homens, a teimosia pode durar mais. Porém, se os mais eloqüentes
dentre os idosos presentes forem de sexos diferentes, o mais comum é que a mulher se
cale, com as raras exceções mais extrovertidas ou agressivas. Existe, porém, a figura do
senhor ou senhora de muita idade, o ancião/ã, quase venerável, que ninguém interrompe
ou a quem mesmo um homem na casa dos cinqüenta anos muito teimoso diz apenas,
com jeito, um “acho que a senhora se enganou”. Todavia, na disputa verbal entre pares
- 155 -
da mesma geração, os homens levam a melhor quando o assunto é o passado das
personagens cultuadas ou as origens do culto. Assim, a divisão do trabalho entre os
sexos e idades no ritual parece reservar para as senhoras o papel de confirmar a
eficiência do santo, por meio de uma fala testemunhal, caracterizada pela
expressividade e calcada na experiência pessoal, e para os senhores o papel de narrar o
passado e elaborar a memória dos fatos de domínio público. Isso, obviamente, não quer
dizer que as mulheres não contem as proezas dos bandidos ou o que sabem sobre o
surgimento do culto, pois elas o fazem185; nem, como já foi dito, que os homens não
gostem de falar sobre os milagres que alcançaram ou do voto que contraíram com o
santo.
Um fator a se destacar aqui é a carga emocional de que podem ser dotadas as falas
nesses diálogos. Muitas vezes diálogos cruzados, nos quais várias pessoas – dada uma
situação de paridade etária - falam ao mesmo tempo, na ausência de um narrador
privilegiado. As falas são habitualmente pontuadas por gestos largos, sobretudo com os
braços, pausas significativas e alterações no tom da voz que denotam tristeza pelos
sofrimentos passados ou testemunhados, nostalgia do tempo passado, alegria e
exaltação pela graça recebida, desdém e raiva pelos que caçoam do culto.
É também comum que, em torno do túmulo, com a presença de pessoas que estão ali
pela primeira vez ou que pouco conhecem sobre a história do morto, essas pessoas
idosas se vejam de repente objeto de enorme interesse em seu ato de narrar e logo
aumentem o volume da voz no afã de corresponder à atenção de que estão sendo alvo.
Pode-se perceber nessas horas certa vaidade e orgulho de ser um dos que realmente
sabem o que se passa ali, “quem foi aquele” ou o que fez, ou, quanto ao culto, do que se
185 E aqui, como foram maioria dentre os informantes, claro que quase todas as falas sobre esse passado são delas. Porém, essa divisão do trabalho simbólica era bastante clara durante o culto no cemitério durante o Dia de Finados e, ainda, em conversas em grupo, públicas, numa roda de vizinhos, por exemplo.
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trata. Lembremos que, a todo o momento, durante o Dia de Finados ou mesmo num dia
comum quando o túmulo apresente alguma oferenda pouco usual como um ex-voto ou
as garrafas de água de Baracho, aparece alguém que pergunta “quem é esse aí? Por que
deixam essas coisas pra ele? Por que tanta vela?” ou, ainda, “Ouvi dizer que faz
milagre. É verdade?” E começa tudo de novo...
Do quê se fala?
Promessas e milagres
Quando me aproximava de alguém no cemitério pela primeira vez para iniciar uma
conversa, evitava perguntar diretamente sobre os motivos que o levara a rezar junto ao
túmulo do morto. Aprendi logo nos primeiros tempos de observação, e mesmo de outras
experiências nesse domínio da religião, que o segredo também pode ser parte da “alma
do negócio”. É raro que alguém vá logo contando o motivo da sua própria visita ali se
houver promessa (ou voto) envolvida. Embora gostem de falar sobre as graças
alcançadas, que testemunham sua fé e a autenticidade do culto e do santo, raramente
contam o que exatamente prometeram, ou qual aflição estaria na origem da promessa.
Mais fácil é que apresentem comentários espontâneos sobre outros relatos que já
estejam em andamento, de outras pessoas, sobre suas próprias experiências no culto –
promessas já pagas, graças já alcançadas – ou que contem sobre suas experiências
passadas ou sobre a experiência de algum conhecido - vizinho, colega ou parente, amigo
de um amigo - que teria feito promessa e alcançado a graça. É muito freqüente, aliás,
que atribuam sua presença ali, no culto, à confiança depositada no testemunho ouvido
da boca de alguém próximo e merecedor de crédito. Nesses casos, a história do
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conhecido é contada com detalhes, tanto mais que nela reside o fator que legitima sua
presença ali de boa fé, contra toda possível crítica ou suspeita.
É comum que, indagados diretamente sobre o motivo da promessa ou, mais ainda, sobre
o quê prometeram, se recusem sempre com a mesma justificativa baseada em uma
crença comum: “dá azar” ou “se falar, não acontece”, “promessa não se pode contar”.
Portanto, a negociação com o santo passa também por um outro tipo de pacto, o de
silêncio.
No entanto, pude saber que as causas mais comuns de aflição que levam a fazer uma
promessa são os problemas de saúde física. “Doença incurável” ou o estado de
“desenganado pelos médicos” são termos muito empregados como justificativa para a
procura do milagre junto ao santo. Alguns nem o procuram, mas, estando lá em Finados
para homenagear um parente, e tendo em família uma situação de doença, chegam-se ao
túmulo com uma oferta de velas e preces e recorrem ao santo com base na reputação de
milagroso da qual podem encontrar testemunhos ali mesmo. Sem qualquer
planejamento, pode devotar-se, dessa forma, ao morto milagroso, surpresa – ou nem
tanto – guardada pelos muros do cemitério. Se atendido, é quase certo que voltará, não
apenas para pagar sua promessa ou cumprir seu voto, mas também para contá-la a quem
por ali também esteja compartilhando da devoção. De certa forma, pode-se dizer que o
sentido da devoção individual se realiza, para o próprio devoto, na relação com a
devoção do outro; que, na impossibilidade ética de contar sua promessa, é seguro contar
a promessa do outro e ratificar sua boa escolha por aquela devoção pela narração da
graça alcançada por ele. Se não fosse verdade, o que essas pessoas estariam fazendo
aqui? Está todo mundo mentindo?
Nessas justificativas, quando se trata de doença, nem sempre o recurso ao milagre por
meio da mediação do santo exclui o recurso à medicina; aliás, raramente. O que se pode
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ver na maioria dos casos é uma concomitância, embora o recurso à medicina passe com
freqüência pelas dificuldades de acesso ao serviço privado e a submissão às enormes
dificuldades que caracterizam o atendimento nos hospitais e postos de saúde públicos,
seguidos das dificuldades ainda maiores para a obtenção dos medicamentos. No entanto,
a presença da sempre valorizada palavra do médico, o doutor, para atestar a gravidade
do caso ou mesmo sua impossibilidade de cura, está quase sempre presente na
justificativa da promessa – pode mesmo aumentar sua legitimidade186, pois não deixa
outra saída. Só mesmo um milagre pode resolver o que a medicina não resolveu.
Note-se que o fato de o recurso ao médico ser apresentado dessa forma não significa
que tal consulta ou tratamento tenha de fato ocorrido ou sido seguido da maneira
prescrita pelo médico, ou que os medicamentos tenham sido tomados de modo rigoroso.
O que importa é que o médico e os remédios sejam mencionados quase sempre. Isso
mostra que o recurso ao ‘sobrenatural’, ao ‘mágico’, ao milagroso, não ocorre, nesse
contexto, em decorrência de uma descrença na medicina ou na impossibilidade de ter
acesso a ela. Nem são vistos como recursos excludentes, mas antes complementares.
Pode-se notar, todavia, entre eles a existência de uma hierarquia. O médico, mesmo
quando acerta, é porque teve a ajuda do santo (ou de Deus) para o qual o doente rezou.
Tudo ocorre “porque Deus quis” (“se Deus quiser”) e o santo só ajuda porque Deus
entendeu ser justo o pedido feito e enviou a ajuda por meio dele. Depois de rezar para
Baracho, conta uma devota, o médico conseguiu descobrir o tratamento certo que não
descobria de jeito nenhum, nada dava jeito, e fiquei boa. Mas a “luz” veio de cima, do
céu, para iluminar a cabeça do médico que, com letras e tudo, não passa de uma criatura
186 Essa questão da legitimidade não deve ser subestimada, pois as pessoas mais humildes não deixam de perceber o tom recriminatório de que tal recurso ao religioso para sanar problemas físicos de saúde pode ser objeto. Elas podem se justificar e se defender perante um outro, estranho, ou que pareça mais letrado do que elas, pois elas também sabem que nem tudo o que é óbvio para elas o é para todos. Em parte, as explicações são feitas em nome da caridade frente à ignorância da outra pessoa; em parte, por receio de ser consideradas bobas ou “ignorantes”.
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humana como todos os outros. De certa forma, a recorrência dessa reafirmação da
vontade de Deus presente no acerto do médico, que parece denotar certa passividade e
fatalismo, também revela uma representação generosa da medicina, bem diferente
daquela que a ela costuma emprestar ares de quase onipotência sobre a vida e a morte.
É importante considerar que nesse campo da ‘doença’ cabe mais do que as doenças
físicas; cabe também aquilo que chamaríamos psicológico: o “nervoso”, “estar com os
nervos” ou “estar nos cascos” (agressividade), a tristeza sem motivo, o desânimo, os
pensamentos ruins (inclusive suicidas), o desespero, o stress, palavra de uso corrente
desde que se tornou correndo nas mídias. Cabem também na categoria doença
fenômenos que a princípio não chamaríamos assim, nem remeteriam para o patológico,
mas antes para a moralidade, como fenômenos sociais disruptivos, que perturbem a
ordem familiar. Aliás, “perturbado” é um termo correntemente aplicado ao “doente”.
Uma mãe que tem um filho que “anda com más companhias”, pessoas viciadas em
drogas ou baderneiras, diz que o filho está doente e precisa ser curado; uma esposa que
pede uma cura para o marido pode estar pedindo que ele se torne menos mulherengo ou
que consiga permanecer em um emprego. Se a vida está desorganizada, confusa, se a
pessoa tem dívidas, se está desempregada ou insatisfeita com o que tem, se tem vizinhos
“invejosos” – tudo isso pode ser conceptualizado no seu discurso como doença, que
demanda uma cura e justifica um pedido de intercessão ao santo, uma promessa ou até,
se o caso for muito grave, um voto para a vida inteira. Neste caso, aliás, nem se passa
pelo médico, porque se sabe que não é o caso. Vai-se direto a quem manda.
A diferença entre promessa e voto, tal qual observei nos usos dos dois termos, confirma
o que a literatura sobre religiosidade popular já mostrava: que o voto é entendido como
um compromisso por tempo indeterminado, passível de ser hereditário: transmitido,
como obrigação inescapável sob pena de castigo divino ou da vingança do parente
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morto, pelo menos até a próxima geração. Essa transmissão se dá geralmente através do
laço de filiação, até a geração +1 (filhos), mas pode passar também diretamente da avó
para uma neta ou, mais raramente, de uma irmã ou irmão mais velho para um mais
novo.
Por exemplo, é feito um voto pelo qual se assume o compromisso de acender vela no
dia do aniversário de morte do santo caso a graça pedida seja alcançada; isto então será
feito todos os anos, numa espécie de compromisso sem prazo para acabar ou pelo
menos até a morte daquele que tem o voto com o santo. Isto se ele não passar esse voto
para algum descendente ou parente colateral.
Já a promessa não; a promessa é episódica. Faz-se a promessa em função da graça que
se quer obter e, uma vez alcançada essa graça e paga a promessa, está encerrado o
assunto com o santo. No entanto, é comum que mesmo a pessoa que fez apenas uma
única promessa volte todos os anos no Dia de Finados, no aniversário de morte ou em
visitas breves ao túmulo e ao cruzeiro do cemitério, principalmente às segundas-feiras,
dia das almas, para acender velas como forma de mostrar gratidão pela graça alcançada.
Ou simplesmente que volte outras tantas vezes para rezar para o santo, posto que, como
é freqüente, a um problema resolvido logo se segue outro, e a ajuda do santo termina
por tornar-se um recurso incorporado ao cotidiano.
Outra possibilidade ainda é que uma pessoa faça uma promessa para beneficiar uma
outra – que talvez nem acredite ou saiba sobre o culto - ou que pague a promessa no
lugar de outra que se encontra temporariamente impossibilitada (por estar enferma, por
exemplo). Isso é extremamente comum. O caso mais interessante que observei foi o de
uma senhora que, sendo “crente”, como ela se definiu, da Assembléia de Deus, acendeu
velas em agradecimento por uma graça que teria sido alcançada por sua irmã, vitimada
por um câncer no ovário. Ela teria sido curada após promessa feita (pela doente) a
- 161 -
Baracho, mas ainda estava no hospital e, portanto, não tinha como ir até o local para
pagá-la. Vendo sua aflição, dona Maria concordou em ir até lá para oferecer as velas e
“orar” pela alma de Baracho, embora tenha frisado bem – como todos os outros
evangélicos com que conversei – que o milagre fosse “de Jesus”, do qual Baracho teria
sido apenas o instrumento. Mas um instrumento abençoado, porque se Deus entendeu
de fazer ele ajudar as pessoas é porque perdoou o que ele fez, não é?, seus crimes
durante sua vida.
Testemunhos
De uma senhora de menos de trinta anos, muito enfática e indignada com as
desconfianças manifestas por uma jovem sobre a honestidade do culto a Baracho e dos
seus freqüentadores, em pleno tumulto de um Dia de Finados, em 1999, pude ouvir:
E você acha que essas pessoas todas iam estar aqui por quê? Todo mundo é
mentiroso? Você não ouviu aquela senhora que tava aqui, não ouviu o que ela
contou?
Eu já havia ouvido uma afirmação parecida de uma outra informante quando ela me
contava o porquê de haver começado a rezar para Baracho. Segundo ela, decidiu fazer
um voto com ele após ouvir tantas histórias de milagre ali mesmo, nas imediações de
seu túmulo no cemitério. É que ali tem seus parentes, inclusive o pai, sepultado há anos,
e mantém, também há anos, o hábito de visitá-los no Dia de Finados. A aglomeração em
torno do túmulo e tantas oferendas de vasilhas de água lhe chamavam a atenção.
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Aproximava-se, ouvia o que contavam sobre ele, quem fora, e colhia aqui e ali um
depoimento sobre uma graça alcançada. Ficou impressionada. Decidiu que só pode ser
verdade, a gente não ia inventar isso. Pra quê que iam inventar? E então fez seu voto.
Não conta o que pediu, o que alcançou, mas conta que pretende continuar a sustentar
esse voto por toda a sua vida e diz que ficaria feliz se sua filha, no futuro, após sua
morte, o tomasse para si e o mantivesse vivo.
Esses dois exemplos, tomados de um conjunto de vários outros bastante similares,
indicam a importância conferida por essas pessoas aos testemunhos das graças
alcançadas.
Já falei um pouco sobre a importância dada a esse tipo de narração quando apresentei
algumas distinções entre os falantes no culto, especificamente sobre os mais idosos,
testemunhas do ‘santo vivo’ – ou seja, aqueles que trazem consigo recordações,
inseparáveis de sua experiência de vida, do tempo em que Baracho ou Jararaca187 ainda
viviam ou que, pelo menos, lembram dos fatos públicos e nada triviais que envolveram
sua morte – ainda que essa lembrança não seja da própria pessoa, mas seja mediada por
um parente muito próximo, como pais ou avós.
Iniciarei, porém, pelos testemunhos das graças alcançadas no presente. Do passado,
falarei depois.
Falar de milagre é, por definição, imprimir um quê de milagroso à própria fala, o que
transparece no tom emocionado da voz, no brilho no olhar, na expressão de
maravilhamento, na confiança renovada expressa na atitude em geral. A fala do milagre
é, ela própria, em grande medida, milagrosa, pois ela produz um efeito imediato nos 187 No caso de Jararaca, morto em 1927, nenhum dos informantes da pesquisa apresentou testemunho direto com base em recordações da infância, por não terem idade suficiente para isso, mas sim aquele tipo de testemunho de que falei no início do capítulo, quando reproduzem o que ouviram em primeira mão daqueles que tiveram a experiência, tipicamente, seus pais e avós.
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ouvintes, seja o de conhecimento das possibilidades virtuais daquele culto, seja seu
reconhecimento, quando se identifica na fala do outro a sua própria, quando se viveu
algo semelhante e apenas se acompanha a narrativa balançando a cabeça e sorrindo de
leve com sinal afirmativo; ou já falando sobre a fala do outro, ansioso para contar sua
própria história.
Quem conhece o culto geralmente o conhece pela palavra de alguém. Nunca se trata
apenas de observar de longe e aproximar-se resoluto para fazer uma promessa ou
mesmo rezar pela alma do morto. E raramente alguém que vai ao túmulo para fazer uma
promessa pela primeira vez já sai de casa para isso, com a exceção – justamente! –
daqueles que têm um parente ou conhecido que já alcançou uma graça ali e lhe contou.
Então, a palavra media a aproximação, mas a palavra durante o culto é também parte
dele: todas as falas, mesmo as dialogadas, parecem seguir um padrão, uma espécie de
roteiro, com aquela característica tão própria dos ritos que é a repetição, e o recurso às
fórmulas consagradas pelo costume. Já há ali uma pequena tradição, local, que, no
entanto, tem suas origens longe, nas negociações católicas (e sincréticas) populares com
os santos, marcadas pela familiaridade e informalidade, enraizadas no Brasil desde o
período colonial188. O recurso aos santos é sempre uma possibilidade presente, aquela
de que facilmente se pensa em lançar mão na hora da aflição. E por que não recorrer ao
santo do cemitério, do bairro, da vizinhança?
Nesse sentido, Baracho e Jararaca recebem um tratamento similar ao de qualquer santo
e parte de sua eficiência, e da manutenção de seu culto, repousa em sua reputação,
alimentada fundamentalmente pelos testemunhos que passam “da boca para o ouvido”,
conforme uma tradição que, na ausência de qualquer legitimação e organização
institucional – exceto o respeito devido aos mortos e a oficialidade de seu culto em
188 Mello e Souza 1989 [1986].
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Finados, data do calendário católico – tem por base a força da transmissão oral e a
confiança (fé) na palavra do outro.
Nesse sentido, pode ter lugar aí o “ouvi falar” ou “disseram que”, como é comum nesse
tipo de tradição sem registro letrado, mas é inegável o valor superior atribuído aos
testemunhos diretos daqueles que viveram o que só pode ser descrito como uma
experiência de fé. Principalmente quando se trata de graças alcançadas, as pessoas que
chegam para pagar uma promessa e depositam lá, sobre o túmulo, um pé de madeira,
uma cabeça de pedra ou mesmo um bilhete em um pedaço de folha de caderno como
agradecimento são olhadas com admiração e curiosidade. Se se dispõem a contar sua
história, é certo que não faltará quem lhes queira ouvir com respeito.
Não passa na cabeça de ninguém duvidar da pessoa que narra, embora possam
manifestar dúvidas sobre a explicação do fenômeno (a cura, a solução para o problema).
Para uns, pode ser “coisa do demônio, que sabe enganar” com “falsos milagres”; para
outros, pode ser efeito da fé, sim, mas não intervenção de Baracho ou Jararaca, pois
estes seriam apenas mortos comuns. No entanto, a maioria acredita em algum papel de
mediação exercido por eles na obtenção das graças relatadas. Ao reconhecer a
veracidade da graça, efeito do relato (o reconhecimento), essas pessoas estão
simultaneamente reconhecendo (ou conhecendo) a capacidade de intercessão desses
mortos, sua qualificação como santos.
Assim, é possível perceber o efeito que os testemunhos diretos podem ter sobre o
processo de aproximação e adesão (qualquer que seja o grau) ao culto, ou pelo menos
sobre uma primeira aproximação, cheia de boa fé, a ele. Ao atestarem a eficiência do
santo e legitimarem a aproximação do devoto, eles concorrem para que o culto
permaneça, no eixo temporal, que dure e se reproduza (novas adesões) a despeito de
tantas desconfianças e recriminações que também o cercam.
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Histórias de Baracho, histórias de Jararaca
Histórias maravilhosas
Dona Joaninha e seu marido eram muito pobres. Viviam de “matar bodes” em
um bairro bem afastado do centro de Mossoró. Um dia, após a dura lida, dona
Joaninha dormia quando recebeu, em um sonho que mudaria para sempre a sua
vida, a visita do falecido Jararaca, o famoso cangaceiro há pouco enterrado
vivo pela polícia após haver sido feito prisioneiro durante a fracassada tentativa
de invasão da cidade pelo bando de Lampião, do qual fazia parte.
No sonho, ele lhe contou que estava sofrendo muito nas trevas devido a um
tesouro que acumulara e que ficara enterrado após sua morte. E lhe pediu que
ela o ajudasse a sair daquela situação triste desenterrando esse tesouro, que
então passaria a ser seu. Mostrou-lhe, no sonho, o lugar onde a botija do
tesouro estaria enterrada. Tocada pelo sofrimento do pobre, dona Joaninha
prometeu-lhe que o atenderia. No entanto, no dia seguinte, embora
impressionada com o sonho, dona Joaninha esqueceu completamente o assunto
e seguiu para sua lida.
Duas semanas depois, eis que sonha novamente e neste novo sonho outra vez
Jararaca lhe aparece, ainda mais desesperado, para repetir o pedido. Desta
feita, dona Joaninha acredita no que ele lhe diz. “Deve existir mesmo a tal
botija cheia de moedas e jóias”, pensa ela, e decide ir então com o marido ao
lugar mostrado pelo cangaceiro, para desenterrá-la. É o que fazem, então.
Exatamente à meia-noite, o casal desenterra o tesouro no lugar exato indicado
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por ele. Depois do quê, matam um pinto e amarram em sua perna uma fita
encarnada. Isso deve ser feito por toda pessoa que encontra dinheiro enterrado,
senão a pessoa morre.
Essa narrativa faz parte da tradição oral em Mossoró e arredores, mas está presente em
muitos outros lugares, com pequenas variações nos detalhes. Todos conhecem a história
da pessoa que ficou rica e sumiu da cidade logo após haver desenterrado uma famosa
botija do tesouro – o que no caso de Jararaca teria ocorrido não muito tempo depois de
sua morte.
Não se passou muito tempo após sua morte para que seu túmulo começasse a receber
visitas de pessoas que lhe acreditavam capaz de intervenções milagrosas para auxiliá-
las189. Domesticado e preso para sempre ao solo da cidade que o derrotou, Jararaca foi
transformado de perigo (sobretudo para a elite, que se organizou no combate a
Lampião) em auxílio (sobretudo para os pobres, que logo passaram a procurá-lo em seu
túmulo em busca de ajuda espiritual). Enquanto isso, as especulações sobre os fatos que
teriam levado à sua morte ocupavam as páginas dos jornais e as conversas diárias, de
modo a multiplicar especulações de toda sorte. Especulações sobre a morte logo se
tornam especulações sobre o destino póstumo do morto, posto que a morte raramente
seja pensada – e por esses segmentos sociais pesquisados, quase nunca – como mero
cessar da existência física, mas antes como uma passagem para outra forma de
existência, de outra natureza. Assim, falar da morte e do morto é também,
inevitavelmente, falar da alma (ou espírito) e de seu destino. Então, se a morte foi
estranha, anômala, o que será da alma do morto? Como seria possível tratá-la como
uma alma comum?
189 Sobre isso, as fontes são, além dos depoimentos pessoais, os jornais da época e os poucos livros que abordam o assunto: Almeida, F. 1981, Nonato 1955 e Cascudo 1999.
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Ainda em 1998, quando iniciei meu trabalho de campo sobre esse assunto, em Mossoró,
contava-se que o motorista que havia levado Jararaca da prisão para o cemitério em seu
pequeno caminhão, na época o único transporte desse tipo na cidade, ainda vivia e
estava lúcido. Mas ninguém me dizia ao certo seu nome, tampouco sua localização.
Outros o desmentiram: esse senhor já havia morrido há muitos anos e nem mesmo
restaria na cidade algum parente seu. Como todos os elementos ligados à memória da
morte de Jararaca e à sua curta aventura na cidade, este também sempre oscilou entre o
registro factual e a fabulação lúdica, entre o espírito investigativo e malicioso e o
exagero romanesco. Pois este senhor teria declarado aos jornais que ouvira, após a
polícia haver retirado Jararaca vivo do automóvel, o barulho de um tiro disparado dentro
do cemitério. Depois, os policiais teriam voltado sem ele. Ou teria visto o cangaceiro ser
jogado na cova aberta pelos policiais, e nela ser sepultado ainda vivo. E depois, dizem
em tom cúmplice cheio de subentendidos, esse motorista também teria sumido. Outros
já desmentem tudo isso e dizem que ele viveu tranqüilamente na cidade até morrer de
velhice – mas, claro que esta versão não tem a mesma graça.
Aquela história do “tesouro de Jararaca” não é mais que uma variante de um tema muito
conhecido e difundido por todo o Brasil, especialmente nas áreas rurais e pequenas
cidades: o do rico avarento que, ao morrer, não encontra o descanso no Além justamente
por não haver compartilhado suas riquezas. Então, retorna da morte, seja como aparição
diante de alguém vivo, seja como visão onírica, para pedir a ajuda dos vivos para
solucionar essa situação de sofrimento póstumo. É muito difundido por todo o Brasil, e
nordeste em particular, esse tema do “tesouro enterrado”, não importa por quem ou
quais motivos, que poderia ser encontrado por qualquer pessoa de sorte ou por algum
escolhido dos céus, a partir de um ‘sinal’ sobrenatural ou mágico que indicaria sua
localização. Vemos, assim, que o sonho da lendária senhora que desenterrou o tesouro
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de Jararaca – que nunca saberemos se algum dia existiu em carne, osso e pé quente –
não é uma narração aleatória, oriunda de alguma imaginação idiossincrática, mas uma
variante de um tema consagrado no imaginário popular brasileiro, em sua mitologia.
Se não tive a sorte de conhecer dona Joaninha, conheci, todavia, dona Teresinha de
Jesus, outra senhora, de 46 anos, moradora de Açu, cidade vizinha a Mossoró, a “uma
hora de viagem”, que me contou com muita naturalidade haver sonhado com ele – e isso
num contexto em que menção alguma fora feita àquela narração onírica lendária. Em
suas palavras:
Eu pedi um teto a ele, que eu não tinha. Morava em casa alugada há muitos
anos. E ele foi e me mostrou assim um letreiro de luz: “Tá aqui! Agora, você
não diga a ninguém!” Ele atirava assim com o revólver, aí eu via numa pedra os
números da loteria. Ele disse “joga, mas fica só contigo190. Vá em frente!” Aí
naquilo eu acordei e anotei os números. Eu não jogava na loteria, nem sabia
nem como é que era, mas já que veio me dar eu vou, né? E joguei e deu! (rindo
muito). Deu pra mim comprar um carro, uma casa boa. Faz uns seis anos isso.
Ele é bem moreno. Fiquei em choque, porque eu queria falar, mas não podia, só
podia escutar. Não podia falar com ele, era só ele me falando.
Como vimos, dona Terezinha também “desenterrou” um tesouro, indicado agora por um
Jararaca já não prisioneiro de uma maldição, de um sofrimento atroz no Além, mas um
Jararaca protetor que vem socorrer os que sofrem neste mundo. Quando a encontrei
junto ao túmulo, dona Terezinha acendia suas velas e rezava. Note-se, porém, que em
momento algum ela me contou sobre ter feito promessa; seu benefício foi alcançado de
190 Novamente, e fora do contexto da promessa/voto, a obrigação do segredo.
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outra maneira. Seu marido, no entanto, contou-me que fez promessa para Jararaca duas
vezes: para “curar um problema” que tinha – e, pelo gesto de levar a mão espalmada ao
peito e fazer uma careta de imitação de dor, deduzi que se tratava neste caso de doença
física, que ele não quis nomear mais claramente; e para pedir que seu time de futebol, o
ABC, de Natal, fosse campeão do campeonato estadual daquele ano (2000). Com muita
alegria, contou-me ter tido sucesso nas duas promessas e que iria continuar pedindo para
Jararaca tudo o que precisasse, com confiança.
Não foi a única que me contou ter sonhado com o milagreiro do cemitério. Tampouco é
apenas Jararaca que tem esse costume de fazer visitas oníricas aos seus já então devotos;
também Baracho vez ou outra aparece em sonho a alguém e torna-se um emissário de
boas notícias e conselhos. No entanto, ninguém jamais me disse haver ganhado na
loteria por meio de sua ajuda, ninguém jamais ganhou por seu intermédio algum prêmio
ou encontrou uma botija de ouro, mesmo lendária, embora muitos aleguem ter
conseguido comprar a casa própria, um terreninho, um novo emprego, um salário
melhor ou notas mais altas na escola devido à sua intercessão.
De certa forma, apesar de muito similar em vários aspectos a Jararaca, Baracho parece
estar ainda mais próximo do cotidiano dos seus devotos, bem mais próximo também de
sua época e de sua realidade urbana. Ele próprio é referido pelos devotos como alguém
que viveu “de subemprego”, já que foi pedreiro e feirante, que não parecem ser
percebidas por todos como profissões propriamente ditas, mas como um jeito de se virar
e “ir ganhando algum”. Embora suas histórias estejam cheias de figurações do
maravilhoso, ele parece falar mais de perto ainda às pessoas no seu dia-a-dia do que
Jararaca – a despeito de um ou outro que eventualmente tome a liberdade de ir até
Jararaca para, de homem para homem, falar de futebol!
- 170 -
É como se, mesmo na morte, um cangaceiro fosse ainda, em alguma medida, uma
personagem demasiado importante. Cantado em verso e prosa pela tradição nordestina
do cordel, o cangaceiro sempre esteve associado, em suas façanhas, a elementos do
universo do conto maravilhoso e dos romances, a começar por seus próprios atributos
de bravura, resistência física e habilidade para, como um Macunaíma do sertão, um
trickster diabólico, driblar os “macacos” (a polícia) enviados em seu encalço e seus
delatores. Pelo menos, essa é uma das imagens fixadas na memória popular.
Como disse, o fato do humilde e solitário191 ladrão João Baracho, famoso na crônica
policial de Natal do final dos anos 50 e início dos 60 como o “matador de motoristas”,
não ter deixado nenhum tesouro enterrado não significa que ele não tenha sido, mesmo
em vida, investido de uma conotação maravilhosa. Duas das primeiras histórias que
ouvi a seu respeito ilustram bem esse aspecto de sua identidade, em dois momentos:
primeiro, como o misto de “bom bandido”, marginal vítima de injustiça social, forçado
a assinar com o dedo, já que era analfabeto, uma confissão de homicídio “debaixo de
pancada”;192 depois, como herói macunaímico que, com suas artes e esperteza, e uma
ajudinha que o povo admite que bem pode ter sido “coisa do demo”, conseguiu duas
vezes fugir da cadeia e ludibriar as buscas policiais193.
Como? Ele invurtava, disseram-me inúmeras vezes, com a mesma naturalidade com que
me diziam “era pedreiro”. ‘Invurtar’ ou ‘invultar’ significa ficar como um vulto ou ficar
invisível após dizer uma misteriosa oração – “Coisa dos antigos. Hoje ninguém mais
191 Porque agia sozinho ou, no máximo, com um comparsa, em seus crimes, e não em um bando ou quadrilha organizados, com uma estrutura hierarquizada e reconhecido prestígio social. 192 Ouvi isso vezes sem conta de seus devotos e mesmo de pessoas que ignoram ou rejeitam o culto, mas conhecem ou recordam os acontecimentos implicados em sua morte. 193 Existe também aquela outra versão, em chave política, que afirma que sua fuga teria sido facilitada para criar a oportunidade de matá-lo daquele modo espetacular, o que teria sido um meio para promover o então secretário de segurança que iria lançar-se candidato nas eleições daquele ano.
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sabe.” Crença correntemente aceita, ainda que na base do “Eu sei [que não é verdade
que isso ocorria de fato], mas mesmo assim...” acredito194. De certa forma, é como se a
própria existência da personagem pública Baracho pertencesse a um tempo de outra
qualidade no qual coisas assim podiam acontecer, pessoas extraordinárias – no sentido
literal da palavra – podiam existir. Por isso, Baracho fugiu da cadeia duas vezes, por
isso se manteve foragido tanto tempo:
Ele saía, ele saía! O povo podia amarrar e fechar, ele abria e saía, não
precisava de chave. Ele invurtava. (dona Sebastiana); Só pegaram ele, só
mataram ele, porque na hora que foram matar ele [durante sua fuga], ele
enguiçou numa cerca de arame. (seu Adailton); Não deu tempo ele rezar porque
ele já vinha sendo perseguido pra ser morto, pra ser preso, pegado novamente.
Aí então, quando ele passou a cerca do homem, que enguiçou, quando passou a
cerca: arame tem cruz, né? Aí a reza dele não serviu!195
Enquanto esteve na situação de foragido (após a primeira fuga), notícias contraditórias
davam conta de que ele teria sido visto em Macau, enquanto um ouvinte de um
programa de rádio denunciava sua presença em Recife ou em algum bairro da periferia
da própria Natal. Era como se fosse dotado de uma capacidade mágica de estar em
vários lugares ao mesmo tempo. Uma de minhas alunas, hoje já mãe de três rapazes, me
194 “Eu sei, mas mesmo assim...”, artigo do psicólogo O. Manoni (1969). 195 Dona Eutália, 58 anos, dona de casa, moradora de Natal, diz que é “crente”, mas não freqüenta nenhuma igreja. Afirma que acende vela para Baracho porque tem o costume desde o tempo em que ainda era católica. Toda a sua família é católica e, quando solteira, acompanhava os pais em romarias a Juazeiro, tinha santo de devoção, fazia promessa. Diz que, como seus pais já faleceram, faz ali, no túmulo de Baracho, o que sabe que eles fariam: “Eu faço minha vez por eles.” Porém, afirma que como é crente não faz promessa “com ele”. Só “com Jesus.” Afirma, no entanto, que, pelo que sabe, Baracho era bom, “ajudava muito a pobreza”.
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contou que em sua infância Baracho foi durante algum tempo “o bicho papão” usado
pelos adultos para assustar os pequenos: “Passa pra dentro senão Baracho te pega!”.
Fato é que, nunca é demais lembrar, naquele tempo não se vivia sob o império da
imagem, da disseminação instantânea das notícias em escala mundial por meios
audiovisuais (principalmente a televisão), sob o qual vivemos hoje. O rádio era a estrela
das comunicações e já então programas de notícias policiais faziam grande sucesso.
Mas ninguém tinha como, por meio deles, saber como seria a aparência de um
procurado pela polícia. Contava-se apenas com as fotos em preto-e-branco dos jornais,
de qualidade muito precária.
Isso explica em parte o tamanho enorme da fila em frente à delegacia quando Baracho
foi, após sua primeira fuga, recapturado. Todos os que lá tomaram seu lugar, sob sol
intenso, queriam ver de perto como era o famoso bandido procurado durante todos
aqueles meses, pois, se ele havia estado em todos aqueles lugares onde diziam que havia
estado, a verdade é que poucos o haviam visto de fato; poucos contavam com uma
figura humana a qual fazer corresponder aquele nome já tão familiar, que havia povoado
suas conversas e aguçado suas especulações nos últimos meses.
Aquilo que não tem propriamente uma imagem pode ganhar uma através dos exercícios
de imaginação, imagem em ação, aquela espécie de filme que a mente humana é capaz
de criar por sua própria conta a partir de um fiapo de informação. Assim, a lacuna
deixada pela ausência de conhecimento visual de Baracho deu lugar a uma imaginação
ativa da parte dos leitores de jornal, ouvintes de rádio ou dos que apenas ouviram falar
nele nas ruas, quitandas, botequins e quintais. Desta forma, os que arderam sob o sol em
nome da oportunidade de ver o Baracho real, em carne e osso, viram, em muitos casos,
apenas a confirmação do Baracho já presente em sua imaginação: Aí eu fui [à
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delegacia] e eu vi, as outras já me diziam: ele olhava pra gente dos pés pra cabeça196.
Ela abaixa a cabeça e imita o modo de olhar fixo, de baixo pra cima, com expressão
agressiva, misteriosa.
Não deixa de ser interessante pensar no quanto esse Baracho não-visível e invisível, mas
visto em toda parte enquanto vivo, passou a ser visto com freqüência ainda maior depois
de morto. Pois muitas foram as aparições de Baracho, principalmente debaixo do velho
cajueiro no Carrasco, onde hoje é o bairro Bom Pastor, no qual se encontra o cemitério
onde ele descansaria não fossem as inúmeras e freqüentes demandas de seus devotos
(inclusive daqueles menos ortodoxos, e “pouco católicos”, que o procuram até mesmo à
noite, depois de pular o muro do cemitério). Após sua morte, as estações de rádio e as
sedes dos jornais continuavam a ser procuradas por pessoas que juravam haver visto
Baracho, então já não mais o Baracho foragido da polícia, mas o Baracho assombração,
alma penada, que vagava nas imediações do local onde fora derramado seu sangue e
espalhava o medo entre seus moradores.
Como bem registrou mestre Câmara Cascudo197, Natal, apesar de seus ares de capital
litorânea, nunca deixou de ser habitada por fantasmas. Longe disso: lá estão os velhos
casarões cheios de história e memórias de gerações, com seus vultos e ruídos de
correntes e vidro se quebrando, que os vizinhos e os incautos que passam nas
imediações tarde da noite juram ouvir. Lá estão as ruínas abandonadas, os locais ermos,
as árvores centenárias. Em cada um desses locais, os rastros das assombrações que por
ali passaram e talvez ainda passem mesmo hoje em dia. Baracho não, ninguém mais
“vê” Baracho, exceto em sonhos. Tendo ganhado uma reputação – ainda que modesta e,
para muitos, duvidosa – de santidade, ainda que humilde e de porte local, sem qualquer 196 Dona Eutália. 197 Superstição no Brasil. São Paulo, Global, 2001 (1999); Contos Tradicionais do Brasil. Rio de Janeiro, Ediouro, 2001 (ver o conto A Moça e a Vela, por exemplo).
- 174 -
pompa ou organização, o morto parece ter-se contentado com os contatos individuais
com aqueles que por ele se interessam. No máximo, faz-lhes visitas oníricas198. Isso
acontece porque, dizem, ele está salvo lá no Céu, ou pelo menos está a caminho da
salvação; isto é, já não vaga pela Terra porque não está mais perdido, agarrado a esse
mundo de cá e às suas culpas199.
Aqui encontramos um tema muito comum no universo religioso do catolicismo popular:
o das almas e toda a série de concepções relacionadas a elas. Uma alma precisa
encontrar o ‘caminho’ para o Além e isso nem sempre é fácil, principalmente nos casos
de morte repentina ou violenta (crime, suicídio, acidente). Essa é uma idéia antiga e
difundida por todo o Brasil (e outros países). Nesse processo, as aparições do morto
durante a vigília ou o sono, como assombração ou em sonho, podem indicar uma
tentativa de conseguir a ajuda dos vivos para realizar isso que é representado
comumente como uma “passagem” (também na tradição espírita), uma transição ou,
como já o dissemos, uma viagem. Já dizia o poeta Mário Quintana: “Não é de uma vez
que se morre” ou, dito de outro modo, deixar este mundo não é visto como fato que
instaura, de imediato, outra realidade, positiva: não se está necessariamente em outro
lugar quando não se está aqui; não se está necessariamente morto quando não se está
mais vivo. É possível estar em lugar nenhum, nem morto nem vivo, e esta parece ser em
toda parte uma idéia muito assustadora.
É preciso, pois, ajudar o morto a morrer direito, mesmo quando seu corpo já repousa no
cemitério. Pois mais importante que o corpo é a alma, hierarquia muito marcada no
198 O que me lembra o que ouvi certa vez de um professor de filosofia: quando você sonha com alguém, é que a alma daquela pessoa veio te visitar enquanto você dormia. Se não me engano, ele falava de Epicuro ou Lucrécio, não estou certa. 199 O que seria característica das almas penadas, no catolicismo, ou dos espíritos que não conseguem aceitar ou perceber que morreram, no espiritismo.
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cristianismo200. Pode-se castigar o corpo para purificar e salvar a alma; pode-se perder o
corpo, mas não a alma. Se o corpo do Baracho morto ainda conserva uma imagem a ser
vista pelos vivos quando já se encontra em decomposição sob a terra é porque sua alma
está ameaçada e pede socorro. Note-se que, também neste caso, a imagem do corpo e o
corpo são independentes, mas agora seria a alma a controlar a aparição desse corpo, e
não a imaginação de um outro.
Outras duas típicas “histórias” do repertório de cada uma dessas duas devoções
examinadas aqui merecem ser contadas antes que passemos ao próximo ponto. Uma é a
história da quartinha de água de Baracho. Alguns devotos contaram-me o mesmo fato
como tendo ocorrido com eles: tendo levado para a casa a água em uma quartinha que
haviam colocado sobre o túmulo enquanto rezavam para Baracho – água portanto
tornada benta, segundo a lógica do culto, que ecoa outra ainda mais remota, do
catolicismo tradicional -, pegaram essa quartinha e levaram para casa, com a finalidade
de utilizá-la para cura, gradualmente. No entanto, por mais que usassem da água, a
quartinha voltava a aparecer cheia na manhã seguinte. Duas senhoras chegaram a jogar
fora a quartinha, tomadas de súbito por um enorme medo, pois, segundo me disse uma
delas, não dá pra ter certeza do que é201. Ou seja, que é mágico ou poderoso, isso é,
mas será coisa de Deus ou do diabo? Outra já me disse:
200 Há muitas fontes, mas fiquemos com André Vauchez, A Espiritualidade na Idade Média Ocidental: Séculos VIII a XIII. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1995; Oscar Calávia Sáez, Fantasmas Falados: Mitos e Mortos no Campo Religioso Brasileiro. Campinas, SP, Ed. da Unicamp, 1996; e Bartolomeu Tito Figueirôa de Medeiros, Entre Almas, Santos e Entidades Outras no Rio de Janeiro: os Mediadores. Tese de doutoramento, PPGAS/Museu Nacional/UFRJ, 1995. 201 Ana, zeladora do cemitério Bom Pastor desde 1978, católica, mora no bairro Salgado, em Natal. Passou a acreditar em Baracho desde que usou a água deixada sobre seu túmulo por um devoto para curar uma “dor de mulher” que tinha desde mocinha. Passou durante vários dias essa água sobre seu corpo e, desde então, nunca mais sentiu dor. A partir daí, diz, “peguei fé nele”.
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É igual vela, não se deve acender dentro de casa. É na igreja ou no
cruzeiro do cemitério. Pode ser até no quintal, dentro de casa não202.
A outra história é a das flores de Jararaca. Conta-se que as plantas que ali crescem são
milagrosas. O mesmo é dito sobre as plantas que florescem sobre o túmulo de Baracho.
Delas, dizem, pode-se fazer chá para, depois de coado, passar sobre a parte do corpo
que estiver doente. Alguns me disseram haver bebido esse chá. Mas a história mais
repetida é a das flores ou flor única que, arrancada do túmulo, permanecia em casa em
pleno viço durante um período bem maior do que seria o seu período de duração
normal. Houve também quem dissesse que o mesmo ocorre com as flores deixadas por
devotos, logo levadas por outro devoto para sua casa, como objeto consagrado, relíquia
do túmulo milagroso, logo elas também milagrosas203.
Um dado interessante a se notar aí é que esses dons levados pelo devoto para serem
ofertados ao morto santo, uma vez consagrados pelo efeito cumulativo das rezas e
outras prestações rituais coletivas, e pelo próprio contato com o local sagrado que é o
túmulo, passam a ter um valor sui generis, como objetos dotados de sacralidade. Se o
devoto se dá, a si próprio e à sua fé, ao santo, quando dá o objeto, a permanência sobre
o túmulo reforça ainda mais esse valor e faz com que ele tenda a voltar a circular: a
água ofertada por um devoto pode ser levada para casa por outro, bem como as flores,
202 Terezinha, 62 anos, moradora das Quintas, Natal. 203 Tanto o chá como a duração excepcional das flores do túmulo ocorrem também em outras devoções em cemitérios, a partir da mesma lógica que consagra, com base no princípio da contigüidade, qualquer objeto que permaneça algum tempo junto ao túmulo sagrado ou sob efeito da oração dita pelo (s) devoto (s). Ver Terrain 24.
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ou mesmo os testemunhos. Quantas dessas histórias narradas na primeira pessoa não
terão sido, na verdade, ao menos inicialmente, histórias vividas (e doadas) por outros?
Legendário da “vida de bandido”
É muito difícil – para não dizer improdutivo em um trabalho como este – procurar
distinguir o que é verdadeiro em termos factuais do que seria pura lenda, quando se trata
das narrações contemporâneas sobre personagens como Jararaca e Baracho. Como já
disse Eric Hobsbawn em dois livros hoje clássicos204, é muito comum que os bandidos
que alcancem fama na sua região de atuação, ou mesmo em todo o país, sejam alçados à
condição de mitos, a partir de um processo de idealização de sua pessoa, de sua
identidade e de seus feitos, logo narrados como proezas que suscitam a admiração
popular e são freqüentemente adaptadas em narrativas de cordel, novelas e romances,
não só no filão mais comercial, de apelo popular, mas também pela chamada alta
literatura.
Jararaca
As histórias que ouvi da boca de seus devotos e dos comentadores anônimos nas ruas
sobre a invasão de Mossoró pelo bando de Lampião205 não retratam um Jararaca muito
diferente daquele desenhado nos livros de História e crônicas jornalísticas: de uma 204 Rebeldes Primitivos: Estudos sobre Formas Arcaicas de Movimentos Sociais nos Séculos XIX e XX, Rio de Janeiro, Zahar, 1978 [1959] e Bandidos, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1975 [1969]. 205 Encenada anualmente em evento de calendário da cidade de Mossoró – Chuva de Balas no País de Mossoró - e, portanto, na boca do povo até hoje.
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família de vaqueiros, militar que se alistara no Exército brasileiro aos vinte anos de
idade206, em Maceió, Alagoas, ele logo foi transferido para o Rio de Janeiro (3º
Regimento de Infantaria). Teria, segundo Almeida207, participado da revolução
constitucionalista de São Paulo, em 1924. Mais tarde, deixaria o Exército e retornaria ao
nordeste, onde, em 1926, entraria para o cangaço, com um grupo próprio, por meio do
qual se tornaria respeitado e conhecido até pelo já prestigiado Lampião, seu aliado a
quem prestaria serviços eventuais e com quem também podia contar.
Foi assim que, em 1927, o pequeno bando de Jararaca teria se reunido ao de Lampião
para reforçar o time na empreitada difícil que seria atacar uma cidade grande onde, já na
época, havia duas agências bancárias e várias igrejas. Este último detalhe é sempre
reforçado nas narrativas, pois teria sido o maior motivo de preocupação de Lampião,
muito impressionado com tal desenvolvimento urbano. Vale lembrar que a ênfase nesse
detalhe faz parte do discurso de valorização da cidade hoje, da cultura local; é um
discurso ideológico que acentua o caráter progressista e de vanguarda de Mossoró,
muitas vezes num claro contraste com a capital, cuja única vantagem, desse ponto de
vista, seriam as belezas naturais, em contraponto com a Mossoró rica em cultura e
história.
Jararaca, como personagem individual, confunde-se com o modelo do cangaceiro
nordestino, amplamente conhecido na cultura brasileira, dos romances aos filmes,
passando pela literatura de cordel. Lá estão a bravura, a crueldade e uma eterna
ambivalência que o faz oscilar com freqüência entre ser a encarnação do Mal e o herói
dos pobres; a encarnação do demônio e o Robin Hood do sertão; o cabra esperto capaz
de enganar até ao diabo, que o cordel tanto gosta de retratar, e o bandido que tem um
206 Segundo Fénelon Almeida (1981), em 1921. 207 1981.
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pacto com o diabo que lhe dotaria de uma crueldade sem igual e habilidades sobre-
humanas; o criminoso que “não respeita nem a honra das moças donzelas” e o protetor
dos desvalidos, que exerce e exige dos seus cabras o cumprimento de um rígido código
de honra, em total acordo com os valores do povo sertanejo e com a moral da época.
Figurações do cangaço que são atualizadas de modo pleno nesse caso particular.
Jararaca, como todo cangaceiro, é e não é, e, para complicar ainda mais, continua sua
carreira de ambivalência mesmo após a morte, pois agora ele é e não é santo também;
ele faz e não faz milagres. Portanto, se ajuda ou não ajuda aos mais necessitados, se atua
para o Bem ou para o Mal, continua sendo matéria de interminável discussão na qual, ao
que parece, ninguém jamais terá a última palavra. Todavia, todos podem ter, a princípio,
todas as outras palavras e, com elas, entrar para essa cadeia aberta de narrações sobre o
que teria sido a vida do bandido Jararaca, tanto quanto sobre o que é hoje essa sua
santidade controversa.
Na escassez de fontes históricas sobre sua vida no, e fora do, banditismo, fiquemos com
o Jararaca dos cordéis e da tradição oral em geral. Como ocorre também no caso de
Baracho, há um mito fundador, aquele que é conhecido de todos, espécie de
acontecimento que sintetiza as qualidades da personagem e instaura para ela uma marca
registrada. No caso de Jararaca, não é de admirar que, em se tratando de um cangaceiro,
a marca escolhida tenha sido uma espécie de emblema de sua crueldade: para
exemplificar a que ponto ele era “desalmado”, as pessoas sempre contam que, certa vez,
ele jogou para o alto uma criança pequena e a aparou na ponta do seu facão!
Dona Sebastiana, uma das devotas com quem tive mais contato, há mais tempo e com
freqüência, me disse certa vez que, lá onde ele está, no Além, ele só não descansou
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ainda por causa desse ato extremo, que parece representar um excesso de maldade que
deixou um excedente de pecado ainda a ser pago.
Por isso que hoje ele faz o bem, ele ajuda as pessoas. Para conseguir o perdão
divino, por causa da criança que ele matou à toa, só por divertimento.
Esse sofrimento que caracteriza o estado póstumo de Jararaca teria caracterizado
também sua vida e sua morte. O mesmo para Baracho e talvez para todos os que fazem
da imposição do sofrimento aos outros sua profissão.
A vida no cangaço é representada na memória popular como uma vida dura, de
constantes deslocamentos, ausência e distância da família208. Os cangaceiros se metiam
pela caatinga adentro, ambiente físico inóspito onde o deslocamento é normalmente
muito difícil, e nela se moviam com habilidade incomum, sempre ressaltada. Mas isso
não quer dizer que a sobrevivência em tempos de mais intensas perseguições policiais
não fosse ela própria uma experiência cruel. Pelo menos, assim é percebida por muitos:
frio, fome, solidão, muitos espinhos pelo caminho estreito e cheio de perigos.
A solidão é, aliás, um capítulo à parte. Como já vimos, também no caso de Baracho,
Jararaca é visto como um desgarrado social, e isso de várias formas, que ao longo da
narrativa de sua vida só se multiplicam e reforçam. Primeiro, deixa o sítio onde mora
com a família, pois não quer para si a vida de vaqueiro ou agricultor servil e entra para o
Exército. Como soldado, é enviado para outro estado, o longínquo Rio de Janeiro,
depois São Paulo e, por fim, Rio Grande do Sul. O que o dotaria para sempre de um
título – soldado, militar – e poderia ter-lhe dado uma localização social sólida e um
pertencimento a um corpo institucional muito valorizado, o Exército. No entanto, ele
208 Pelo menos parcial, pois havia células familiares nos bandos cangaceiros, como grupos de irmãos e casais.
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logo o abandona e volta à vida civil, agora já há tempos longe da família e habilitado no
manejo das armas. Aonde vai um soldado sem Exército? Ele poderia ter sido recrutado
para a polícia – como muitos historiadores já disseram, a diferença entre ser cangaceiro
ou ser polícia era muitas vezes mera questão de oportunidade ou de quem recrutasse
primeiro – mas terminou formando seu próprio bando armado e se tornando parte
daquilo que ficou conhecido na história brasileira como movimento cangaceiro, ora
visto como um movimento social, ora como um tipo de banditismo e nada mais.
Baracho
Também Baracho, ora referido como mero “ladrão de galinhas” que praticava pequenos
furtos e teria assinado à força uma confissão na qual nem saberia o que estava escrito,
pois seria analfabeto; ora referido como o frio matador de motoristas de táxi, espécie de
assassino serial, é representado, e não só pelos que rezam para sua alma pedindo
milagres, como um desgarrado social, um migrante pobre que teria vindo do interior
para a capital atrás de vida melhor e nela só teria encontrado um lugar possível na
periferia mais abandonada, a então favela do Carrasco, até terminar morto no meio da
rua, com 22 tiros.
Não tinha nenhum parente na cidade, nenhum conhecido que lhe arrumasse um trabalho
ou lhe desse referências. Foi “peão de obra” (pedreiro) e feirante, além de praticar
pequenos furtos com o objetivo de vender os objetos furtados, que iam de relógio a
bicicleta.
Quando ele veio morar aqui, trouxe apenas uma cama, algumas cadeiras e umas
tábuas que serviam de forro. Parecia que tinham (ele e sua “amante” Maria
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Lúcia, que conhecera já em Natal) perdido tudo. Ocuparam um casebre de
apenas um vão, vizinho ao meu209.
Uma das crônicas famosas sobre ele é a do furto à escola, quando teria tentado roubar o
refeitório e as salas administrativas. Conta-se que teve, nesse episódio, um auxiliar, que
recolhia as peças que ia jogando por sobre o muro. Mas o detalhe que a memória
popular faz questão de frisar é que não seria a toa que ele estaria furtando justamente de
um refeitório: ele estaria buscando alimentos para distribuir para os pobres.
Sim, porque ninguém nega que ele fosse um ladrão, mas seus motivos e finalidades,
estes são matéria de controvérsia entre os que o vêem como o “bom ladrão” e aqueles
para quem ele foi apenas um ladrão comum ou talvez também um assassino.
Aqui encontramos, portanto, mais este motivo, também presente no perfil de Jararaca:
outro Robin Hood, e não menos ambíguo do que o outro, embora sem o mesmo
pedigree que o cangaço parece conferir a Jararaca. Dizer deste que se tratava de um
cangaceiro já é fornecer ao ouvinte uma série de informações articuladas a partir de um
referencial organizado e muito conhecido. Afinal, o cangaceiro povoa o imaginário do
nordestino, e não só dele.
Após a prisão de seu comparsa nesses roubos, e já no contexto da busca210 pela polícia
ao matador de motoristas que já então aterrorizava o povo e incendiava imaginações -
além de dar lugar a críticas políticas à inépcia da secretaria de segurança do estado para
solucionar o problema - Baracho é preso, após ser denunciado pelo cúmplice Cosme,
mas pouco tempo depois foge da cadeia. No jornal Diário de Natal de 03 de Setembro
de 1961 pode-se ler: 209 Ex-moradora da Rua 16 no bairro do Carrasco. Ver Souza, C. P. de, “Anatomia de uma notícia em branco-e-preto”, Monografia, Jornalismo/UFRN, 1994. p. 36. 210 Final de 1959 a 1961. No início de 1962 Baracho é preso pela segunda vez e foge novamente, para ser morto em seguida.
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Causou grande impacto emocional na população a notícia da evasão de um dos
xadrezes da Delegacia de Roubos e Furtos do criminoso João Baracho, autor de
uma série de arrombamentos e roubos de mercearias e grupos escolares em
nossa capital, receptador de vários outros furtos, assassino confesso do
motorista Moisés Luiz do Nascimento e provável matador de dois outros
profissionais do volante e de um sargento da Polícia Militar.
Foi durante esse período no qual esteve foragido que mais proliferaram especulações
sobre Baracho e seus supostos crimes, os reais, ou confessos (roubo e assassinato do
motorista Moisés, donde se deduziu que cometera também os outros homicídios de
motoristas que vinham ocorrendo em Natal) e os imaginados. Baracho teria matado
alguém em São José do Mipibú; mas, no mesmo dia, alguém jurava tê-lo visto em
Parnamirim durante um assalto, enquanto outros ainda procuravam um jornal para
denunciar sua presença naquele dia no Carrasco. Ou teria sido preso em Brasília.
Enfim, Baracho tornou-se ‘o’ criminoso, o culpado de todos os crimes virtuais e reais
durante aquele período de tempo. A ausência de conhecimento positivo sobre sua
localização espacial tornava possível que estivesse em qualquer lugar, fazendo qualquer
coisa. Mais uma vez, também nesse plano, a indefinição e desinformação abriam um
espaço virtualmente ilimitado para especulações no qual a imaginação podia reinar
absoluta.
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Hagiografias populares
Aquele sofrimento de que falei no item anterior é um fator fundamental para a
constituição de uma biografia adequada a um santo – ou quase santo – isto é, de uma
“hagiografia211”. Este é o momento de dizer que não é comum que as pessoas que se
afirmam devotas de Jararaca ou de Baracho refiram-se a eles como santos de maneira
direta e afirmativa212. Mais comum é a afirmação de que “dizem que ele é santo”, “ele
faz milagres” ou é “milagroso”. Porém, se indagados diretamente se ele é santo ou se é
santo como outro santo de sua devoção, como São José, o mais comum é a resposta:
não sei, só sei que rezo pra ele e alcanço. Ou: só quem pode saber é Deus, mas que ele
ajuda, ajuda.
O valor imputado ao sofrimento é familiar à tradição hagiográfica católica, mas também
a ultrapassa. De diversas formas, o sofrimento tem-se constituído num fator que atesta a
fortaleza moral da pessoa em uma perspectiva cristã, e se vivido de forma resignada em
nome da fé em Deus, é tomado como atestado de santificação da pessoa. Por isso, as
experiências de sofrimento físico, psicológico e moral, vividas durante a vida e,
principalmente, nos acontecimentos que precedem imediatamente a morte costumam ter
um lugar de destaque nos relatos biográficos das vidas dos santos.
Aqui não se pode deixar de considerar as várias figurações do sofrimento nas biografias
dos bandidos, tal como construídas por seus devotos:
211 É claro que não se trata propriamente de hagiografia, uma vez que não há uma escrita santificadora, uma biografia redigida com tal finalidade, segundo o modelo consagrado pela tradição. Mas, podemos falar em hagiografia em sentido figurado, ou antes, aproximado, para fazer referência às narrações orais que colocam em evidência os elementos valorizados por aquele modelo e que, em alguma medida, procuram manter-se fiel a ele. 212 Sáez (1996) afirma o mesmo para os casos estudados por ele no cemitério paulista da Consolação: Jandira, Toninho e as crianças anônimas.
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- o sofrimento característico da vida de bandido, o qual giraria em torno da solidão, da
rejeição social, da marginalidade, enfim, de tudo o que faz do bandido uma
representação do desgarrado, alguém que não tem um pertencimento social bem
definido a uma parentela ou rede social que lhe dê um suporte estável e contínuo,
material e emocional.
Ele pode estar referido a uma rede social, mas muito fluida, percebida como instável e
incerta, sustentada na base de trocas a serem, de cada vez, negociadas, naquele âmbito
que Marshall Sahlins certa vez chamou de reciprocidade equilibrada213, que ele
distingue, em uma elaboração da clássica discussão sobre a dádiva de Marcel Mauss, da
reciprocidade generalizada e da reciprocidade negativa.
O que faltaria aos bandidos focalizados aqui é justamente o pertencimento a qualquer
grupo social (tipicamente a parentela ou, mais estritamente, uma família) onde vigorasse
a reciprocidade generalizada, ou seja, a dádiva gratuita que não requer retribuição
imediata. Ter uma família, por exemplo, seria garantia de ter um abrigo ou um prato de
comida a qualquer momento em que necessitasse, sem ter que negociar um ‘pagamento’
em troca. Não é a toa que o signo por excelência da condição de sofrimento que a vida
de bandido impunha a Baracho é ter morrido com sede; não é a toa que Jararaca teria
sido, segundo se acredita, enterrado vivo, posto que, doente na cadeia – resultado do
ferimento à bala durante o combate que se seguiu à invasão da cidade de Mossoró por
seu bando – não tinha quem lhe prestasse assistência e acompanhasse de perto os
procedimentos das autoridades públicas. Ficou, portanto, à mercê daquilo que é visto
hoje por muitos, devotos e não devotos, como abuso de poder policial, assim como
Baracho teria ficado à mercê da má vontade de uma vizinha que temia a polícia e se
recusou a escondê-lo em casa durante sua fuga e de outra que, com má vontade ainda
213 A troca entre pares, que demanda sempre um retorno imediato, sob pena de se desfazer e transformar-se em seu oposto, a predação, a inimizade, a guerra. Sahlins 1972 e Mauss 1974.
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maior e muito mais repreensível, se recusou a dar-lhe um pouco de água para beber
enquanto ele já sangrava de seu ferimento à bala. Por fim, quando consegue que outra
lhe dê um pouco de água, a polícia se aproxima e ele tem que reiniciar a fuga antes de
conseguir tomar sequer um gole. Corre entre os corredores estreitos da favela, onde
morara por algum tempo, mas aonde realmente não chegara a ter sequer um amigo, um
aliado, alguém a quem seguramente pudesse recorrer em um momento extremo de
desamparo.
- O sofrimento que caracteriza a morte do bandido, sempre, tipicamente, uma morte
trágica, violenta e precoce,214 e que será providencial para a construção de um perfil de
santidade, será um momento fundamental das narrativas de tipo hagiográfico, que
recorrem ao modelo de hagiografia dos santos oficiais do catolicismo para elaborar os
traços de santidade de Baracho e Jararaca.
Para a santidade católica, a morte sempre teve um lugar de suma importância. Embora
os processos de canonização recentes venham dando mais ênfase às virtudes cristãs
mostradas pelos candidatos durante sua vida do que às circunstâncias de sua morte, esta
continua tendo, nesses processos, um lugar de peso.
No entanto, o que podemos observar é que, pelo modo como são enfatizados o caráter
trágico da morte violenta e de todas as circunstâncias que culminaram nela, com suas
implicações – abuso de poder, fuga facilitada para propiciar uma situação que
justificasse o homicídio, tratado como espetáculo político popular à guisa de
exemplaridade, injustiça, abandono social, crueldade - é o modelo mais antigo de
santidade, o do santo-mártir, que está sendo trazido à tona e atualizado aqui. Como
disseram vários dos devotos, quando confrontados por outras pessoas presentes no
cemitério, que lhes recordavam todos os malfeitos dos bandidos em vida, pouco importa
214 Esses traços caracterizam a curta trajetória da vida dos bandidos contemporâneos, apontados nos estudos sobre violência urbana. Zaluar 1985, Alvito 2001.
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o que fizeram, seus crimes, o que importa é que se arrependeram. Ou seja, pouco
importa sua virtude (ou ausência de). Importa seu sofrimento (paixão) em vida, sua
morte trágica e seus milagres póstumos. Isto, do ponto de vista da construção
hagiográfica.
O arrependimento do bandido na iminência de sua morte, auge do seu sofrimento, é
tratado – nos casos de Jararaca e de Baracho - como uma certeza, por seus devotos de
hoje, posto que seria impossível sofrer tanto e não se arrepender. Aqui se pode observar
as conexões estabelecidas entre o que seria um sofrimento excessivo, sobre-humano, e
uma reação demasiado humana, tratada como conseqüência necessária: o
arrependimento. Esse arrependimento parece ser menos visto como uma escolha do que
como uma porta aberta que sempre esteve, ali, virtual: como filho de Deus, qualquer um
pode se arrepender do caminho errado que trilhou no passado e seguir para essa porta
aberta, o que anularia, pelo menos em parte, suas dívidas morais e espirituais. Daí ser
possível, sim, a despeito de todos os erros (pecados) da vida pregressa, arrepender-se e
salvar-se. Daí ser possível a conversão e salvação mesmo do pior criminoso. Como ouvi
de uma senhora que passou ao meu lado e conversava com seu acompanhante – após
parar um pouco diante da cova de Baracho: Pecado é tudo igual. Errou, errou. Quem
não tem pecado?
Dona Terezinha de Jesus, em 1998, ainda no começo do meu
trabalho de campo em Mossoró, me disse estas palavras, que me acompanharam durante
todo esse tempo:
Ele tinha chorado muito antes de morrer, tinham enterrado ele vivo e ele
foi morrendo aos pouquinhos, aos pouquinhos... [ela se comove] Passou
um dia e uma noite, chorou muito. E então Deus deu um pouquinho do
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reino dele e por isso ele tá fazendo caridade ao povo. Pra que ele
pudesse subir ao espaço e chegasse aos pés de Jesus. Se ele fosse fazer o
mal cada vez afundava mais. Ele já tinha sofrido muito no cangaço e já
tinha sofrido muito depois que tinha morrido e queria o reino eterno. Por
isso que tá dando salvação às pessoas.
Há que se notar que tudo isso reaparece como temas sempre discutidos a cada
celebração anual do Dia de Finados. O próprio fato de seu túmulo não receber visitas de
parentes é visto como uma extensão desse sofrimento em vida. Vida de bandido é uma
vida ruim, quase fadada a uma “má morte” e abandono póstumo (esquecimento), sem
direito a nem mesmo uma reza por sua alma.
Para entender o que isso pode significar é preciso levar em conta a realidade social de
que estamos falando. Como bem mostrou, dentre outros, Roberto DaMatta215 e, antes
dele, Gilberto Freyre, os mortos continuam a tomar parte na vida da família e na vida
social. Os vivos têm obrigações para com eles, obrigações estas que, se cumpridas a
contento, assegurarão a estes, um destino póstumo seguro, um caminho tranqüilo até o
Céu para o descanso eterno. Condição triste e sempre lamentável é a de morto
esquecido pela família, morto que no Dia de Finados não recebe, como dádiva amorosa,
uma única vela, uma única flor, uma única reza sobre seu túmulo.
Em contrapartida, os mortos recordados por suas famílias procuram zelar por elas do
Além, proporcionando-lhes um bem nada desprezível dentro desse sistema de crenças:
proteção espiritual. Ao invés de aparecer-lhes como assombração atormentada e
atemorizante, a pedir-lhes rezas e outros ritos, eles é que dariam aos vivos sua proteção
e amparo espiritual. Ou seja, continuariam a exercer seu papel de parente,
215 DaMatta 1985 e Freyre 1977.
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principalmente no caso das pessoas mais velhas, tipicamente conselheiras e protetoras
dentro do quadro familiar tradicional.
No entanto, os túmulos dos “desgarrados” Baracho e Jararaca não se encontram de
modo algum abandonados no Dia de Finados e aniversários. Cheguei a ver alguém com
um baldinho de tinta colorida na espera que outro alguém acabasse de pintar o túmulo
para ir lá e pintar por cima. Promessa: pintar o túmulo e deixá-lo novinho – mais
tipicamente cumprida nas imediações de Finados, para que no Dia o túmulo esteja
bonito e bem cuidado, justamente pelo quanto isso significa em termos de respeito ao
morto e consideração para com sua pessoa. Essa é uma das promessas mais freqüentes.
Logo, ao longo da véspera do 2 de Novembro, o túmulo já começa a escurecer pelo
efeito da fumaça das inúmeras velas, as laterais e a parte de trás, onde há um queimador
(nos dois túmulos), escurecem primeiro, o que deixa novamente o aspecto feio. Não foi
raro ao longo desse período de campo deixar na véspera o túmulo azul para encontrá-lo
no dia seguinte já amarelo. O mesmo ocorria com o túmulo de Jararaca, mas agora não
mais, posto que foi coberto de mármore e já não pode ser pintado.
Tudo isso nos mostra como, nesses casos, a população, ao tomar conhecimento daquelas
mortes, naquelas circunstâncias trágicas, parece chamar a si as obrigações que caberiam
a princípio à família. Não deixa de ser significativo, nesse sentido, que a freqüência aos
seus túmulos tenha se seguido quase imediatamente a suas mortes. Muitos dizem ter-se
tratado de curiosidade, mas, assim como não tardou a que Jararaca e Baracho
aparecessem, fosse em sonhos, fosse como aparições sobrenaturais, aos moradores das
localidades onde morreram, também não tardou a que as devidas providências fossem
tomadas por esses mesmos moradores. Afinal, todos sabem da relação imediata, e
inquestionada, entre mortos esquecidos e perturbações sobrenaturais indesejadas e
temidas.
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Não foi possível convertê-los em pessoas de bem ainda em vida, fazê-los largar a vida
de bandido? Pois é possível convertê-los, de mortos perigosos e incômodos, de almas
penadas, em boas almas, talvez até em santos: basta iluminar-lhes o caminho com velas
e preces.
Na elaboração de uma história de vida para os bandidos que ateste sua possível
santidade, ou confira maior credibilidade à idéia de que eles podem fazer milagres, é
menos o milagre em si o que importa do que a adequação buscada ao modelo já
consagrado de narrativa hagiográfica. Não é à toa que a ênfase das narrativas
biográficas de Baracho e de Jararaca seja deslocada da vida para a morte, sendo esta
assimilada ao martírio cristão, enquanto a vida passa a ser lida naquela chave romântica
do banditismo social. O cangaceiro ou o ladrão assassino eram na verdade, cada um em
seu contexto, Robin Hoods brasileiros, e suas mortes tornam-se, então, símbolos da
injustiça social e da desordem do mundo humano.
posto que o típico da hagiografia é explorar a continuidade entre uma vida virtuosa,
conforme ao modelo cristão – o que não é, absolutamente, o caso deles - e uma
santificação póstuma, sendo que não é raro que se procure mostrar a realização de
milagres ainda em vida.216
Assim, ao lado do discurso que esvazia de importância a virtude e reforça a paixão-
morte, há um outro, que investe na continuidade entre a vida do bandido, virtuoso à sua
maneira, segundo uma lógica outra (“roubava dos ricos para ajudar a pobreza”), e a
tragédia de sua morte: essa variante está mais em conformidade com a hagiografia cristã
tradicional. 216 O que Schneider (2001) mostra ocorrer no caso do menino paulista Antoninho da Rocha Marmo, retratado em sua biografia, escrita por um padre, como modelo de virtude cristã, e dotado de dons espirituais incomuns atestados por seus parentes e conhecidos ainda durante sua breve vida. O menino morreu de tuberculose aos doze anos de idade após uma vida cercada de prodígios atribuídos a sua fé, ou assim elaborados por seu biógrafo, familiares e devotos após sua morte. Vários outros santos do cemitério são mostrados da mesma forma: foram em vida videntes, profetas, taumaturgos, magos.
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Mas há ainda outra maneira de acentuar a continuidade: pela ênfase nos elementos
incomuns, extraordinários, até sobrenaturais que estariam presentes em sua vida,
inclusive nas circunstâncias de sua morte. Assim, é acentuada sua afinidade com o
universo do encantamento, do mágico e do fora do comum, ainda durante sua vida. E
essa ênfase fornece um contexto que facilita a passagem para esse status póstumo
especial. Chega a fazer com que pareça óbvio e inevitável. Eles são, já em vida,
enquanto bandidos que alcançaram uma reputação, seres extraordinários a quem
dificilmente poderia caber um destino póstumo comum. Isso é perfeitamente coerente
com aquela continuidade entre a vida e a morte marcada nas hagiografias dos santos e
com a concepção da relação com os mortos como uma relação social que continua a
relação em vigor entre vivos.
Assim, os santos bandidos seriam menos os que viveram virtuosamente e seguiram sem
percalços para a santidade póstuma do que os que morreram tragicamente em estado de
profundo arrependimento e foram perdoados por Deus. Mas eles são ainda mais os que
só poderiam ter tido essa morte excepcional, tão boa pra pensar, tão fértil para a
elaboração de metáforas e lições de vida. Porque eles viveram umas vidas
desconformes, como gostam de dizer os devotos, umas vidas erradas, porém incomuns
também. Esse caráter excepcional, estaria ligado não apenas à condição de
marginalidade social derivada de sua atuação no mundo do crime e de sua baixa
condição econômica e relativo isolamento social, mas também aos atributos individuais
que lhes foram assinalados então e a posteriori. Essa excepcionalidade construída
oferece uma via para a continuidade entre sua vida e sua existência póstuma. O bandido
que invurtava hoje faz milagres; o bandido que sabia se virar na inóspita caatinga com
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uma habilidade e resistência que só podiam ser devidas a algum pacto com o demônio
hoje revela os números da loteria em sonhos.
Uma Nota: Milagres, Maravilhas, Exemplos
A distinção apresentada por Schmitt217 dos três tipos de gêneros narrativos que teriam
como objeto os “fantasmas”, os mortos em seu convívio com os vivos, e que se
caracterizariam por serem baseados em testemunhos escritos ou orais, anônimos ou
assinados, pode nos ajudar a identificar alguns elementos desses discursos de caráter
hagiográfico – e dos outros tipos de falas que examinamos aqui. Estes gêneros, segundo
Schmitt, muitas vezes apareciam sobrepostos uns aos outros, misturados.
- os miracula (milagres): relatos de acontecimentos miraculosos que tiveram
lugar caracteristicamente em certo mosteiro ou santuário e cuja narração tem por
finalidade celebrar a santidade do lugar, de seus monges, que tais fatos miraculosos
atestariam. Trata-se, assim, “de um gênero essencialmente hagiográfico218”,
indissociável do mais antigo modelo de santidade católico, aquele centrado no santo
local. Esses acontecimentos miraculosos são quase sempre visões e milagres, algumas
poucas visões oníricas, pois a maioria das visões ocorre em vigília.
Nesses relatos o que se vê é a afirmação da continuidade das relações, e obrigações,
com aqueles que agora estão mortos, mas que haviam feito parte da mesma comunidade
religiosa. Muitos desses relatos219 narram aparições de mortos, todas com o mesmo
objetivo: pedir sufrágios espirituais (missas e preces) por sua salvação, ou melhor:
217 1999 [1994]. 218 1999 [1994]: 77. 219 Na coleção de dezesseis milagres da abadia beneditina de Marmoutier, entre 1137 e o final do século, seis estão centrados nessas aparições. (Schmitt 1999 [1994]: 86-7)
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reivindicar aos vivos que estes cumpram essa sua obrigação para com seus mortos, pois
este seria seu direito220. Isto é, os miracula têm um papel fundamental na promoção da
liturgia dos defuntos, que, por sua vez, concorre para o enriquecimento material e
desenvolvimento espiritual das ordens religiosas.
É importante ainda considerar que milagres, no sentido empregado nessa tipologia, são
tanto as visões inspiradas por Deus como aquelas de origem diabólica221 que serviam
para atestar a força do poder divino que estaria por trás da santidade do mosteiro ou do
monge, do homem santo. Essas visões raramente são autobiográficas, pois, em quase
todas, conta-se a experiência que teria sido vivida por um outro. No entanto, as únicas
toldadas pela suspeita de inautenticidade são em geral as visões oníricas, posto que o
sonho fosse um dos veículos preferidos pelo diabo222, pai das ilusões, para enganar os
humanos com “falsos milagres”. Por isso, os relatos baseados em sonhos, próprios ou de
terceiros, são apresentados cercados de cuidados e reservas da parte do narrador. Devido
à importância dada à autenticidade dos relatos miraculosos, as aparições vistas em
estado de vigília tinham mais credibilidade, o que, no entanto, não elimina a apropriação
coletiva de uma experiência onírica respeitada, uma vez socializada através de um relato
considerado autêntico. Neste caso, o sonho de um indivíduo torna-se a visão de um
grupo, pois todos irão, por meio da narração, ver o que ele teria visto.
O milagre também traz uma lição de moral, como veremos ser característico de outro
gênero de narrativa, os exempla, mas seu compromisso primeiro é para com a defesa de
certas transformações no domínio eclesiástico (como o desenvolvimento de uma liturgia
dos mortos), com a valorização das ordens monásticas (ou de certo mosteiro) e da
220 Schmitt 1999 [1994]: 87. 221 Schmitt 1999 [1994]: 91. 222 Schmitt 1999 [1994]: 91.
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santidade (encarnada no santo local ou na abadia). Logo, as narrativas de milagres são
parte de um movimento de afirmação eclesiástica, mas, mais que isso, são instrumentos
fundamentais da expansão de um certo desenvolvimento político do catolicismo. Este,
até os dias de hoje, está fundado de maneira essencial na afirmação da possibilidade do
milagre, da intervenção divina como explicação última para todas as coisas que, de
outro modo, seriam reduzidas a maravilhas. Ainda que o modelo contemporâneo de
santidade tenda a colocar em segundo plano os milagres, as concepções populares –
temos visto - ainda insistem em reservar para eles um lugar central em sua experiência
religiosa.
- Os mirabilia (maravilhas): relatos maravilhosos que despertam a admiração e a
curiosidade das pessoas acerca do homem ou da natureza, mas que não implicam
necessariamente contradição da ordem natural nem tampouco a premissa de uma
intervenção divina que a justificasse. A admiração aqui é causada pela ignorância das
causas do fenômeno e suscita, coetaneamente, a busca das causas ainda desconhecidas.
Aqui se encontram especulações que estão mais próximas daquelas que cimentam o
surgimento e desenvolvimento de uma ciência ou de uma filosofia do que de
imperativos religiosos223. Segundo Schmitt224, a virada dos séculos XII-XIII teria sido o
grande momento dessa literatura latina.
223 “Ou seja, dois tipos de fenômenos aparentemente análogos, mas que diferem na relação com a ordem da Criação e suscitam atitudes muito diversas: o milagre convida a confiar-se à fé, a admitir a onipotência de Deus que transtorna a ordem que ele próprio estabeleceu. Aqui a razão humana pode apenas inclinar-se. Ao contrário, o maravilhoso suscita a curiositas do espírito humano, a busca de causas naturais ocultas, mas que um dia serão desveladas e compreendidas. É preciso ver nessa tentativa, na virada dos séculos XII-XIII, uma primeira forma de espírito científico que se preocupa com a investigação (inquisitio), com o testemunho verdadeiro e mesmo com a experiência (experimentum).” (Schmitt 1999 [1994]: 98-99. 224 1999 [1994]: 78.
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As narrativas folclóricas, as lendas maravilhosas e os relatos hoje chamados
fantásticos225 são parte do acervo das mirabilia, no qual um dos temas mais freqüentes é
justamente o do cemitério mal assombrado e perigoso e dos mortos que andam.
- Os exempla: estes são relatos que trazem uma “lição de moral”, com apelo ao
sobrenatural, mas que, ao contrário dos miracula, almejam um alcance universal. Não
são apanágio de uma ordem religiosa ou de um santo. Foram muito empregados por
pregadores seculares e religiosos das ordens mendicantes, que os difundiram em larga
escala a partir da primeira metade do século XIII até o final da Idade Média. Esses
relatos têm um caráter estereotipado, o que também os distingue dos mirabilia, sempre
singularizados em função da experiência vivida pelo autor da narração.
Baracho ser capaz de invurtar ou Jararaca, como os demais cangaceiros, ser capaz de
sobreviver durante meses na indomável região da caatinga são elementos que ganham
conotação maravilhosa nas narrações dos devotos, sobretudo naquelas centradas nas
proezas do bandido.
Já as falas que tratam dos feitos póstumos, que tendem a santificá-lo ou que apresentam
como centrais os temas da moralidade e da religiosidade, tendem a oscilar entre serem
narrativas exemplares – com suas incansáveis repetições e o recurso às figuras da
narrativa bíblica, principalmente ao paradigma da Paixão de Cristo – e/ou narrativas de
milagres. Como sugeriu o próprio autor que apresenta tal classificação de gêneros
narrativos, é difícil, além de desnecessário, tentar traçar fronteiras precisas entre os
gêneros e suas diferentes aplicações e funções, posto que é comum que os encontremos
mesclados em um mesmo discurso e situação.
225 “Mas, diferentemente dos mirabilia, fantasticus permanece marcado por um julgamento de valor, já que sobre ele pesa a velha suspeita da ilusão diabólica de que os sonhos são o principal instrumento.” (Schmitt 1999 [1994]: 104).
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Os elementos da biografia podem reforçar alguns elementos do culto tradicional – o
culto aos santos, por exemplo, parte de certa tradição religiosa popular -, e este pode
fornecer, por sua vez, um “frame” para os acontecimentos, vistos como singulares, que
compõem a biografia. Ou, como parece ser muito freqüente, sugerir certo
encaminhamento para o preenchimento dos furos da história, transmitida oralmente.
Pode ainda conferir maior inteligibilidade ou um valor afetivo singular a esses
acontecimentos e enriquecê-los com seus temas próprios, inerentes ao modelo.
A fala acusatória: Conflitos verbais e representações do mal
Quem reza pra bandido não pode estar pedindo boa coisa! Podendo pedir a
Jesus, vem pedir a esse aí226.
Nessa simples e breve fala, há um universo de questões possíveis. Podemos ver de
imediato uma equação entre a qualidade moral da pessoa que pede e a qualidade moral
da pessoa a quem é endereçado o pedido (que é a promessa/voto, o milagre que se
acredita possível).
Podemos ver que, para quem faz tal afirmação, e com tal tom indignado, quem se
encontra ali sepultado é ainda o bandido Jararaca, o cangaceiro, pouco importa o quanto
possa ter-se arrependido – no que, aliás, pouco acreditam.
Podemos ver também que é posto em questão o próprio pedido feito pelo devoto. Não
pode ser, dizem, boa coisa. A associação do bandido em vida com o campo do maligno,
do Mal, representado neste caso pelas ações criminosas, ilegais e imorais, de todo modo
226 Alguém que não quis se identificar, ao passar próximo ao túmulo de Jararaca no Dia
de Finados.
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reprováveis pelas pessoas de bem, é estendida a qualquer ação póstuma que esse
bandido possa realizar.
O que é notável é que a possibilidade de intervenção favorável (ao devoto) do morto,
por mais moralmente questionável que seja ele227 não é jamais posta em dúvida. O
questionamento é endereçado a quem escolhe pedir a ele - podendo pedir a Jesus -, não
à eficácia desse pedido. Pedir a ele pode, de fato, funcionar, pode ser eficaz. A pessoa
pode alcançar o que pediu; e, provavelmente, em se tratando de tal “santo”, não se terá
pedido senão o mal de outro. Trata-se então, desse ponto de vista, de um tripé maligno:
mau santo, mau devoto, mau pedido.
Por isso, nas discussões que pude testemunhar, no culto ou fora dele, o que era
freqüentemente posto em questão era essa escolha por parte de alguém – do ‘devoto’ - e
não sua eficiência. E como, então, ele “obra milagre”?
Porque o diabo confunde a mente das pessoas pra elas acreditarem que ele foi
santo. Só que ele não foi santo, santo só foi Cristo, que pode perdoar pecado,
que pode salvar, que pode curar. Foi morto e ressuscitou no terceiro dia. Ele
não. Ele tá aqui enterrado, mortinho. Tá é perdido no inferno228.
A fala desta jovem, que enunciou essas palavras em voz alta e tom de provocação,
despertou reações tão agressivas quanto seu comentário, com respostas em tom de voz
227 Jandira, a prostituta que teria se suicidado tocando fogo ao próprio corpo, é por muitos assimilada a uma pombagira, uma entidade da umbanda, em São Paulo. No entanto, mesmo os críticos do seu culto, não duvidam que ela, ou qualquer dos outros ‘santos’ do cemitério da Consolação, possa fazer milagres. A questão é se esses milagres são da santa (salva) Jandira, da pombagira Jandira, da entidade diabólica Jandira, ou de quem? (Sáez 1996) 228 Katiane, moradora do Bom Pastor, Natal.
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elevado. Esse foi um dos poucos episódios de conflito aberto229 no local do culto, em
pleno Dia de Finados, que presenciei durante meu trabalho de campo.
Esses episódios se repetem esporadicamente em torno dos túmulos de Baracho e de
Jararaca, mas também se repetem dentro dos lares, no seio das famílias, pois que a
freqüência ao culto, ou mesmo a presença esporádica, pode ser motivo para
controvérsias e brigas. Os mesmos questionamentos apresentados por Katiane são
recolocados sobre a mesa em cada um desses bate-bocas.
Em primeiro lugar, como já foi dito, é questionada nessas falas a mudança pela qual o
bandido teria passado devido ao sofrimento causado pelas experiências que o levaram à
morte. Aquela alquimia realizada pelo sofrimento-martírio, e o suposto
arrependimento, é totalmente desacreditada. Quem está ali, naquele túmulo, são o
cangaceiro e o matador de motoristas. Isso nos leva ao segundo ponto: se quem está
dentro da sepultura, recebendo as oferendas e as promessas, são os bandidos, quem
estaria ao lado dela, oferecendo tais dádivas?
O que vemos é que a má reputação do bandido contamina a do seu devoto ou mesmo do
freqüentador irregular que vez ou outra lhe acende uma vela ou oferece uma oração em
nome da caridade pela sua alma. Essa escolha tem conseqüências, ainda que não seja do
ponto de vista de quem reza uma escolha, mas sim uma obrigação – É claro que essa
reprovação também ocorre em graus variáveis; nem todos os que se negam a aceitar que
o bandido esteja salvo, ou que possa ser intercessor e fazer milagres, chegariam a lhe
recusar uma prece em intenção de sua alma.
229 Esses episódios não são freqüentes nem triviais, pelo contrário. O mais comum é a hostilidade velada e, no máximo, uma indireta ou crítica lançada através de uma frase solta. Afrontas aos fiéis de Baracho e Jararaca, durante o culto, vi poucas vezes, e não soube de muitas outras ocorrências no local.
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Mas a questão é que é impossível saber, à primeira vista, quem está ali para orar por sua
alma ou para “rezar para” ele, Baracho/Jararaca, isto é, para lhe encaminhar um pedido,
o que já seria devoção.
A primeira suspeita que recai sobre o devoto de Baracho e Jararaca é a de serem pessoas
“ignorantes” e “supersticiosas”. Até aí, crítica bastante comum dos segmentos sociais
urbanos de classe média, muitas vezes presente até nos jornais que fazem a cobertura do
Dia de Finados – que, desta forma assinalam seu empenho em afirmar sua identificação
com os valores “intelectuais”, “modernos”, que seriam supostamente os daqueles
segmentos. No entanto, pelo que observamos não apenas nos seus cultos e nos fatos
relativos a essas devoções, tanto as focalizadas neste trabalho, no Rio Grande do Norte,
como todas as outras, similares, encontradas em outros estudos, superstição (e magia) é
sempre a crença do outro, a crença que não compartilhamos. Então, essa não chega a
ser uma grande crítica, capaz de tirar o sono de algum devoto ou simpatizante da
devoção. A isso costumam simplesmente responder “a sua [crença] é que é
[superstição]” ou “ignorantes são eles”.
O que os deixa mesmo profundamente irritados ou muito constrangidos, e que por vezes
os leva a escolher freqüentar o cemitério para fazer suas rezas e oferendas somente nos
dias de menor movimento – e que os leva também a, em uma primeira aproximação,
negar qualquer interesse ou conhecimento da devoção – é a acusação não menos
comum, mas percebida como bem mais grave, de tratar-se de magia negra, bruxaria, ou
catimbó. No contexto em que tais acusações aparecem esses termos são apresentados
como intercambiáveis, muitas vezes utilizados pela mesma pessoa, sendo que o último,
talvez por ser mais preciso e dar nome ao que é conhecido como uma religião na região,
parece ser recebido pelos devotos como uma acusação mais séria, sobretudo quando não
corresponde ao pertencimento religioso assumido por ela. Ninguém se disse
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catimbozeiro (ou adepto do catimbó), nem umbandista. Porém, o termo ‘catimbozeiro’
surgiu com freqüência na boca dos devotos com um uso defensivo - Dizem que é coisa
de catimbozeiro, mas não tem nada disso não. Está claro aí um diálogo com os que
deles suspeitam.
Esse comportamento foi mais freqüente dentre os devotos de Baracho, aliás, como já foi
dito, um ‘santo’ mais marginal ainda que Jararaca, um santo joão-ninguém, sem
pedigree, sem estátua, nem museu. Sobre ele, localizei apenas um folheto de cordel;
sobre Jararaca – ou antes, sobre a invasão à Mossoró, com menções mais ou menos
extensas a ele, como cangaceiro – encontrei um punhado.
Catimbó, nesse contexto das falas acusatórias e defensivas, é não tanto a religião, mas
um sinônimo para toda e qualquer prática vista como magia negra ou bruxaria, e estas,
por sua vez, sempre são entendidas como ações que buscam auxílio de espíritos para
que intervenham na ordem natural das coisas, ou no curso dos acontecimentos, com o
objetivo de fazer o mal a alguém. Nesse caso, não se tem dúvida sobre a (falta de) moral
de quem pede.
Como é que uma pessoa dessa, que matava, fazia tanta maldade e ira santo?!
[faz que não com a cabeça, de modo enfático] Uma pessoa que faz uma
barbaridade dessa! Pessoa que faz milagre pro bem, né? Dizem... [irônica]
Colocam aí bonecas espetadas com alfinete, bonecas cortado o pescoço,
bonecas com o nome de gente dentro... É pra fazer uma bondade isso, é? 230
230 Conceição, zeladora do cemitério Bom Pastor. Na página 132 do livro de Sáez (1996), encontramos o mesmo discurso na boca de um informante muito ativo nos cultos do cemitério da Saudade, Campinas. Seu Bento, católico, falando de Jandira, prostituta suicida, para alguns, santa, para outros pomba-gira: “essa moça era rapariga e se matou com as próprias mãos, e então espírita e umbanda, quando viram os milagres que aqui aconteciam, achou graça fazer dela um santo... porque o demônio também faz milagres... aí nunca vi cego enxergar, aleijado andar. O único milagre que vi é mulher que quer marido da outra, e pedindo aí tira...”
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Se a causa dessas desconfianças está na origem, isto é, no primeiro elo da corrente, o
“bandido”, elas o devolvem, em um movimento circular, a essas mesmas origens,
postumamente: ao mal cósmico e à marginalidade social. Pois que seus cultos, já
circunscritos ao domínio espacial marginal que é o cemitério nas cidades de hoje
(inclusive nas duas focalizadas aqui), é tornado ainda mais periférico pela condenação
ao silêncio.231 Silêncio dos adeptos, dos devotos, dos simpatizantes; silêncio recente até
dos jornais, que tiveram um papel e tanto em toda a elaboração da imagem e do papel
do Baracho/Jararaca ‘santo popular’. Ninguém quer ser “mal visto”, ninguém quer ser
objeto das suspeitas dos vizinhos, da família. Ser acusado de supersticioso não é coisa
que mobilize ou provoque grandes reações, mas ser acusado de bruxaria, ser chamado
de catimbozeiro, é outra história.
Isso explicaria, em parte, o véu de silêncio que encobre essas devoções, principalmente
a de Baracho, e que faz com que a princípio ninguém seja devoto a menos que seja
flagrado no ato da devoção. Ainda assim, alguns afirmam estar ali pela primeira vez,
que não sabem de quem se trata, ou que estão apenas cumprindo a obrigação de
homenagear os mortos. Promessa, que promessa? Não é raro que, após alguns contatos,
essas pessoas mais retraídas venham a contar sobre sua devoção à alma de
Baracho/Jararaca, qualificada em cada caso de um modo variável.
É preciso saber ouvir o que esse silêncio pode estar dizendo, o que esta recusa de
existência – pois se não há devoto, não há santo - pode estar indicando. Destes nossos
casos potiguares, poderíamos, portanto, dizer o mesmo que é dito por Sáez232 a
231 Localização física e social, além dos valores ambíguos atribuídos a esse espaço como espaço do perigo: perigo dos vivos, já que é esconderijo de ladrões e criminosos e local preferido por bruxos para executarem seus trabalhos sempre mal vistos pela opinião pública; e perigo dos mortos, já que é seu território, que convém respeitar, e, portanto, um vivo nele não deve andar a não ser que tenha para isso uma finalidade séria, um bom motivo. 232 1996: 129.
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propósito do culto aos ‘santos’, mortos que fazem milagres, no cemitério da Saudade
em São Paulo: o não falado é posto à margem, mas essa margem é “uma reserva de
poder simbólico que pode se manifestar a qualquer momento. São as benesses do
silêncio”. Certas plantas crescem melhor na sombra. O silêncio e a invisibilidade
propiciam o ambiente de que essas devoções necessitam para continuar, em sua
marginalidade, já neste caso vista não como qualidade negativa, condição subalterna ou
periférica, mas como espaço de positividade, espaço instaurador de uma realidade sui
generis.
Voltando aos conflitos verbais: o que importa é entender que esses conflitos - sejam os
que concretamente ocorrem como trocas de palavras ásperas em torno do túmulo, sejam
os que estão implícitos quando um devoto ‘dialoga’ intimamente com tais acusações, ao
apressar-se em justificar sua adesão ao culto ou simpatia pelo santo – não são um
desvio, uma anomalia. Pelo contrário, eles são constitutivos da forma e do conteúdo de
tais devoções, já que estão intrinsecamente vinculados à identidade (ou identidades)
polêmica do bandido/morto/santo e à não menos controversa situação de sua morte.
Assim, não deixam de concorrer para seu reforço e permanência, tanto no eixo temporal
como no da sincronia: a transmissão “da boca para o ouvido”, o disse-que-disse, leva
notícias dessas devoções para além dos muros dos cemitérios e para além dos invisíveis
muros sociais que separam um segmento ou classe social de outro. E nada rende mais
assunto do que uma boa briga, um comentário irônico, e as reações a eles. Esses
comentários, aliás, também contribuem para divulgar esses cultos além da sua cidade de
origem.
Além de multiplicar os comentários, no entanto, esses conflitos também produzem
efeitos reais sobre o destino desses cultos, sobre sua fisionomia e sobre o
comportamento de seus devotos, que vão sendo cada vez mais definidos, no cotidiano –
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fora do quadro público legítimo oferecido pelo Dia de Finados - pela negatividade,
caracterizada aqui como silêncio, reserva, “clandestinidade” e recusa: não ver/não ser
visto, não ouvir/não ser ouvido, não conhecer, não acreditar, rezar escondido. No
entanto, os ex-votos estão lá, assim como os bilhetes, as velas, a água, e isso parece
contradizer a negação, o ocultamento. Mas na verdade, eles são, em sua materialidade e
precariedade, bons signos dessas devoções – pois, como vimos, eles também são sujeira
e não têm o direito de estar ali.
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Considerações Finais
Neste trabalho analisei alguns aspectos das canonizações populares de Baracho e de
Jararaca nos cemitérios de Mossoró e Natal, Rio Grande do Norte. Procurei mostrar o
quanto seu caráter relativamente indeterminado é produtivo; o quanto nessa
negatividade aparente há, antes que vazio ou falta, uma série de realidades sui generis
que se moldam a partir de tradições religiosas e leigas muito conhecidas, para constituir
um processo único, se não original, nem por isso menos rico de singularidades. Foram
esses fatores que o singularizam, em diversos planos, mas também aqueles que o
comunicam com outros ritos religiosos e laicos – como os que têm por objeto um culto
à memória ou as rodas de conversa nas quais os narradores contam suas histórias – que
examinei ao longo deste texto.
Procurei mostrar como esses ritos concorrem para a elaboração de uma memória social
que, ao focar no passado do morto milagroso, está também narrando sobre a vida do
próprio devoto e sobre a história do lugar. E está construindo uma narração alternativa,
que re-situa todos esses elementos e lhes confere novos significados, ainda que, como
toda fala narrativa, seja, por natureza, uma fala reiterativa, que retoma muitas narrativas
anteriores, inclusive de fontes escrita como os jornais.
A natureza precária, pequena, local, quase socialmente amorfa desses cultos – no
sentido de não contar com uma organização social ou uma sede física além do cemitério
– tende a fazer com que sejam vistos como manifestações de uma religiosidade
fragmentária e residual, ou, mais simplesmente, como fenômeno de pouca importância
social. Procurei mostrar aqui que, muito pelo contrário, nesse plano local que pouco ou
nada parece interessar aos segmentos sociais que controlam a elaboração das narrativas
oficiais, a partir de diversos lugares e instituições sociais, políticas e culturais, resta um
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espaço relativamente indeterminado e pleno de potência, onde a imaginação instituinte
das pessoas - de posição social subalterna e poucos recursos, inclusive domínio da
leitura e da escrita - pode inventar novos recursos simbólicos, novos significados sociais
e formular uma leitura própria de acontecimentos sociais locais dos quais se percebem
como participantes ativos. Eu conheci Baracho quando ele era vivo. Ou Eu vi quando
mataram ele, foi ali perto do cajueiro. Eu era criança, mas eu lembro. A história de
Baracho, e a de Jararaca, é também a história de cada um.
A marginalidade social desses mortos, que vinha desde sua vida, também não é estranha
a esses segmentos sociais, caracterizados por uma condição subalterna quanto às suas
condições de vida (instrução, moradia, trabalho, saúde). Ao afirmarem recorrentemente
que só aconteceu isso com ele, daquele jeito, porque era pobre. Ou porque não tinha
ninguém por ele, é de um desamparo social e político muito familiar à sua realidade
cotidiana que estão falando. Não é à toa que a esses santos se recorre para tratar das
coisas pequenas do dia-a-dia, dos erros baixos, dos conflitos sociais: o marido adúltero,
o filho drogado, a doença que o doutor não curou, mas também aquela dorzinha chata,
sem nome, que ataca de repente.
O mundo caótico da periferia urbana, o único que é possível para o migrante pobre, era
familiar a Baracho; e Jararaca, como cangaceiro, não era exatamente alguém que estava
à vontade naquele cenário urbano, onde, aliás, como contam os cordéis, só entrou para
morrer. Em seu tempo de soldado no Rio de Janeiro era arruaceiro, briguento, não se
conformava à ordem do exército e da cidade. Seu lugar era outro. Pude perceber, então,
certa identificação entre devotos e santo, nesse sentido, ao contrário do que outros
pesquisadores encontraram em suas pesquisas sobre casos similares.
Uma outra questão examinada aqui foi a da inserção dessas devoções na tradição das
prestações funerárias do Dia de Finados. Mais que uma tradição católica, trata-se de
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uma tradição cultural. Pois todos vão ao cemitério, independentemente de qual seja sua
opção ou formação religiosa, e cada um apropria-se da ocasião – feriado nacional – à
sua maneira, segundo os princípios, as crenças e os ritos consagrados por sua própria
religião. Os que não têm religião também visitam seus mortos, em nome do
reconhecimento de uma obrigação para com eles, que faz parte dos nossos costumes. No
Brasil, vivos e mortos mantém relações de cuidado recíproco, que podem, se
desrespeitadas, gerar situações de perigo sobrenatural para os vivos e infelicidade
póstuma para os mortos.
Nos segmentos sociais urbanos mais identificados com o individualismo moderno, com
um padrão de vida mais burguês, digamos assim, esses valores estão em desuso. Porém,
nas camadas sociais de que trato aqui, a visita ao cemitério – e não apenas no Dia de
Finados, mas também nos aniversários de nascimento e morte, e para alguns em muitas
segundas-feiras, dia das almas – é uma obrigação como outra qualquer, reconhecida e
aceita, logo cumprida. Como tal, é transmitida às novas gerações. É comum que no Dia
de Finados o cemitério esteja cheio de crianças, levadas por seus pais, avós ou irmãos
mais velhos. E entre os devotos de Baracho e de Jararaca não é raro que também as
crianças recebam dos adultos uma vela para acenderem junto ao túmulo, mesmo que a
promessa feita – quando é este o caso – não tenha qualquer relação com elas.
Devido a essa assimilação das devoções aos mortos milagrosos ao culto aos mortos em
geral, considerei necessário falar um pouco sobre a história dos costumes funerários e
das noções em torno da morte. Infelizmente, não localizei fontes etnográficas sobre
esses temas que tratassem especificamente sobre o Rio Grande do Norte, especialmente
sobre as cidades de Natal e Mossoró. Assim, ofereci tal introdução histórica antes como
uma forma de contextualização para o exame que vem a seguir, do cemitério como
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espaço social distinto, dotado de significados próprios, tanto religiosos como profanos,
e de usos variáveis.
No exame dos discursos dos devotos e na comparação com dados de outros estudos
sobre santos de cemitério, ficou claro que as idéias sobre o que seja a morte, ou as
formas socialmente adequadas de morrer, têm um peso significativo na determinação
dos critérios que definem quais os mortos passíveis de serem eleitos para tal forma de
santificação póstuma. Assim, um campo ilumina o outro, reciprocamente: entender as
idéias sobre a morte e os mortos ajuda a entender a canonização popular, e vice-versa.
Não há como tratar de um assunto sem abordar o outro. E, assim, as falas dos devotos
sobre o morto milagroso, falam, na verdade sobre todos os mortos. Ao definir uma má
morte está-se, por implicação, definindo o que seria o bem morrer.
De um ponto de vista sociológico, não pode ser inócuo que se preste culto funerário – o
que a devoção não deixa de ser – a um morto que a princípio pareceria destinado ao
abandono e ao esquecimento. Afinal, eram celebridades das páginas policiais dos
jornais, embora se precise considerar que em suas épocas os crimes considerados graves
não fossem tão comuns e a sensibilidade popular frente a fatos dessa ordem fosse outra.
Talvez gozassem de alguma celebridade póstuma por algum tempo, mas o fato de não
terem família reservaria para eles um futuro sem orações e sem visitas em Finados.
A iniciativa popular de prestação de culto ao seu túmulo, mas não aos heróis da
“resistência” de Mossoró e ou aos policiais heróicos que mataram Baracho, não pode ser
senão uma escolha significativa, um modo de afirmar algo de maneira contundente. Isso
que é dito é um contradiscurso, uma fala que se opõe ao que é percebido como
desumanidade, abuso e injustiça; uma oposição ao que as fontes oficiais preferiram
chamar bravura ou heroísmo – a foto dos policiais que fuzilaram Baracho à queima-
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roupa na primeira página dos jornais no dia seguinte, a exaltação dos bravos de
Mossoró.
Mas é também uma fala que, como bom patchwork, parte de fragmentos de matérias-
primas já disponíveis, boas demais para serem desperdiçadas: um bandido cheio de
histórias, figura já lendária na época de sua morte. A morte, embora possa ser
compreendida como um rito de passagem para a santificação póstuma quando se
enquadra em certos modelos (morte violenta, precoce, percebida como injusta,
assimilável ao martírio religioso), não esgota as condições para a emergência das duas
canonizações em foco aqui – e talvez isso possa ser generalizado para os outros casos. É
acentuada a continuidade com a excepcionalidade – construída, é claro – de suas vidas.
Neste sentido, sua condição de marginalidade social, relativa a certos poderes sociais e
políticos e a certos valores morais, não deixa de ter peso. Porém, também não é apenas
isso. Nem todo marginal vira santo, nem toda vítima de morte disruptiva e injusta é
passível desse tipo de prestação ritual póstuma. Precisa haver um investimento do que
chamei imaginário, ou imaginação, social – ou opinião pública, formulada
principalmente a partir da voz do homem ‘comum’, no boca a boca, e dos veículos de
comunicação social, principalmente jornais e programas de rádio populares, bem como
romances de cordel – para quem a instituição dos ritos póstumos e a crença em suas
capacidades miraculosas seja, do ponto de vista de quem os subscreve, menos um
divisor de águas do que uma continuação de sua vocação para a alteridade, apenas agora
direcionada de outra forma. Que, com a crescente reelaboração de sua história de vida já
nem será tão outra assim: logo ele será transformado, nas narrações de muitos devotos e
cronistas, no ‘bom bandido’, que ajudava muito a pobreza.
O santo popular, o morto milagroso, já está, de certa forma, em estado de potência no
vivo que é percebido em sua época como alguém excepcional, qualquer que seja a
- 209 -
natureza dessa excepcionalidade. No caso dos bandidos o que parece contrariar essa
continuidade, tão cara às hagiografias - que procuram mostrar que os santos eram, não
apenas pessoas virtuosas, mas pessoas que manifestavam poderes extraordinários (como
vidência, profecia e taumaturgia) ainda em vida – é sua associação ao campo do
maligno, no caso, da criminalidade ou banditismo. O mal e o bem são virtualidades do
sagrado: o santo que ajuda também castiga, o Deus que perdoa também pune, o morto
que faz “milagre para o bem” também atende pedidos que podem acarretar o mal de
outro. Aquele que tem poderes sagrados pode empregá-lo para ajudar o próximo, curar
uma doença, mas também pode empregá-lo de forma destrutiva. Não é à toa que em
toda parte a posição de xamã e curandeiro é vista como altamente ambígua, e um fardo
social. No entanto, os mortos não podem se queixar.
Foram colocados nesse papel por aqueles que se comportaram como devotos e, assim,
como efeito, os posicionaram como santos, em um papel similar ao dos santos católicos.
Há os que os vêem, e os usam, de outra maneira, porém desses não pude tratar neste
trabalho, senão de passagem. Os umbandistas, espíritas, catimbozeiros, apareceram aqui
antes por suas definições negativas caracterizadas por outros. Outros que talvez fossem
outros de si mesmos, uma vez que alguns dos que rejeitaram tais práticas e se referiram
a Baracho e a Jararaca em termos de uma gramática cristã, podem também estar, de
diversas formas, comprometidos com crenças ‘espíritas’, ou oriundas das religiões
mediúnicas em geral. Porém, o preconceito contra tais religiões era, nesses segmentos,
bastante marcado, e a referência a elas, quando não simplesmente negativa, de rejeição
ou alegado desconhecimento, remetia para a idéia de algo clandestino, de que não se
fala em público. Fica para um próximo trabalho a tentativa de conhecer um pouco mais
sobre esses segmentos religiosos nessas duas cidades.
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Por fim, o que pretendi foi acentuar a relevância de uma prática devocional local, que
cresce na sombra dos grandes eventos e das notícias que povoam os jornais de hoje.
Diante dos quais, em sua multiplicação incessante de barbaridades e escândalos,
Baracho e Jararaca já nem parecem mais, a ninguém, tão terríveis como já podem ter,
em outra época, parecido. Principalmente, Baracho.
Condenada em diversos de seus aspectos - marginalidade social do morto e de seus
devotos frente aos interesses e autoridades locais; condição periférica do cemitério
como espaço social; valor negativo da morte no mundo urbano moderno - a uma
situação de relativa ‘clandestinidade’ e silêncio da parte das camadas letradas e
instituições sociais que produzem os discursos ‘verdadeiros’ e definem o que tem ou
não valor social e cultural, e qual valor será esse, no entanto, uma pequena devoção
local como essa, quase invisível na esfera pública, pode nos ensinar um tanto sobre as
pessoas que, por meio dela, se identificam, procuram soluções para seus problemas,
contam sobre o passado – seu passado e do seu lugar – e fazem da sua própria fala um
milagre a ser compartilhado.
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