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Universidade Nova de Lisboa

Garantia Bancária

Autónoma Sumário: 1. Noção de garantia bancária autónoma e distinção em relação à fiança. 2.

Origem e fundamento da garantia autónoma. 3. Processo conducente à relação jurídica

no âmbito da qual se encontra a garantia bancária autónoma propriamente dita. 4.

Causalidade e Abstracção. 5. Qualificação da relação jurídica entre o garante e o

beneficiário – a garantia bancária autónoma como contrato. 6. Qualificação da relação

jurídica entre o garante e o beneficiário – a garantia bancária autónoma como negócio

jurídico unilateral. 7. A relação entre o dador de ordem e o garante é qualificável de

contrato a favor de terceiro? 8. Modalidades de garantia bancária autónoma: garantia

simples e à primeira interpelação (on first demand). 9. Fundamento de recusa legítima

de pagamento pelo garante ao beneficiário - limite à autonomia. 10. Bibliografia. 11.

Jurisprudência.

Ano lectivo 2010/2011, 1.º semestre

Cadeira: Direito Bancário e dos Seguros

Elaborado por: Lisete Rodrigues, n.º 1271

Miguel Archer, n.º 1065

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1. Noção de garantia bancária autónoma e distinção em relação à fiança.

A garantia bancária autónoma1 é uma garantia pessoal, prestada por uma instituição

de crédito (geralmente um banco) que tem como propósito indemnizar alguém em

determinado montante pela verificação de determinado evento a que as partes tenham

atribuído relevância num contrato celebrado entre elas (normalmente designado de

contrato base). Esse evento é, em princípio, o alegado incumprimento do contrato base.

Como indica o nome, esta garantia caracteriza-se pela sua autonomia, distinguindo-se,

por isso, claramente da fiança, cuja característica essencial é a acessoriedade.

A distinção entre a fiança e a garantia bancária autónoma passa necessariamente por

distinguir as suas características essenciais: a acessoriedade e a autonomia. Enquanto a

acessoriedade da fiança se traduz no facto de a obrigação do fiador se moldar

necessariamente à do afiançado – arts. 627.º/1 e /2 e 634.º CC, a autonomia significa

que o garante assegura a verificação de um determinado resultado, totalmente

independente da obrigação assumida pelo devedor no contrato base2.

Em termos práticos, na fiança, o fiador pode invocar a invalidade da fiança por

causa da invalidade da obrigação principal (632.º/1 CC), bem como invocar contra o

credor quaisquer meios de defesa que competem ao devedor (637.º/1 CC). Na garantia

bancária autónoma, o garante não pode invocar, em princípio3, quaisquer meios de

defesa provenientes de relações jurídicas distintas da assumida por este com o

beneficiário.

Por outras palavras, a autonomia destas garantias traduz-se na inoposição de

excepções por parte do garante ao beneficiário, salvo os meios de defesa que forem

próprios do garante na relação que tenha com o beneficiário.

Veja-se, a este propósito, a síntese feita pelo recente Acórdão do STJ de 19-05-

20104, dizendo que da autonomia retira-se que não podem ser opostas ao beneficiário

pelo garante excepções relacionadas com o contrato garantido, mas tão só com o

negócio de garantia, concretizando-se no facto de que o garante não tem possibilidade

de invocar a prévia excussão de bens do garantido ou a invalidade ou impossibilidade

da obrigação por este contraída (vão exactamente no mesmo sentido outros tantos

acórdãos – TRC 27-01-20045 e TRP 08-05-2008

6, a título de exemplo).

1 Doravante as expressões garantia bancária autónoma e garantia autónoma serão usadas como sinónimos.

2 Veja-se sobre a distinção desenvolvida entre a figura da fiança e da garantia autónoma e sobre a característica da

autonomia, entre outros, INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, “Garantia bancária autónoma” in O Direito, Associação Promotora de «O Direito», Lisboa, ano 120, III e IV, Julho-Dezembro 1988, pp. 275-279 e 284-286; FRANCISCO CORTEZ, “A garantia bancária autónoma – Alguns problemas”, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 52, vol. II, Julho 1992, pp. 532-535 e 546-558;; MÓNICA JARDIM, A garantia autónoma, Almedina, Coimbra, 2002, pp. 115-150 e 169-199; PEDRO ROMANO MARTINEZ/PEDRO FUZETA DA PONTE, Garantias de cumprimento, Almedina, Coimbra, 5.ª ed. 2006, pp. 127-129. Veja-se também genericamente sobre o assunto JOÃO DE MATOS ANTUNES VARELA, Das obrigações em geral, vol. II, Almedina, Coimbra, 7.ª ed., 1997 (3.ª reimpressão), p. 515; LUÍS MANUEL TELES DE MENEZES LEITÃO, Direito das obrigações, vol. II, Almedina, Coimbra, 2007, p. 342. 3 V. infra, n.º 9.

4 Acórdão do STJ 19-05-2010 (Azevedo Ramos), in www.dgsi.pt.

5 Acórdão do TRC de 27-01-2004 (Távora Victor), CJ, ano XXIX, 2004, tomo I, pp. 17-21.

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Ora, a qualificação de fiança ou de garantia autónoma só se poderá aferir no

caso concreto, tendo de se interpretar o sentido das declarações efectuadas pelo

garante, interpretação que deve ser feita por recurso às regras dos arts. 236.º/1 e

238.º/1 CC, sobre o sentido normal da declaração7. Assim, se os tribunais

consideram que existem elementos no clausulado da garantia que apontam para a sua

autonomia, nos termos enunciados, valerá a garantia em causa como garantia bancária

autónoma.

2. Origem e fundamento da garantia autónoma.

O grande desenvolvimento do comércio internacional na 2ª metade do século XX

fez disparar o recurso a garantias autónomas pelos comerciantes, procura essa que foi

atendida pelos bancos e companhias de seguros. Esta grande procura por parte dos

comerciantes tem justificação nas fragilidades da fiança, que conferem ao fiador

demasiadas defesas, não sendo por isso vocacionada para as relações comerciais, pois o

beneficiário não se sente suficientemente salvaguardado.

O comerciante (em princípio, o adquirente) nas transacções comerciais que realiza

(contratos de fornecimento de bens, empreitada, etc.), pretende e exige uma garantia,

pois na maior parte dos casos não conhece nem confia na contraparte. E,

particularmente, exige que essa garantia seja prestada por um garante conhecido pela

sua forte solvabilidade, daí que normalmente exija que seja prestada por um banco ou

por uma companhia de seguros. Só nesses termos é que o contrato base será levado

avante.

Assim, a garantia autónoma é uma garantia mais enérgica que a fiança, porque

confere mais segurança, celeridade e eficácia à satisfação do interesse do seu

beneficiário8. Se, por um lado, esta garantia incentiva o cumprimento do devedor (que

responderá posteriormente perante o banco garante, no caso de não cumprir ou cumprir

defeituosamente), por outro lado, o beneficiário está seguro de que receberá a quantia

determinada a título de garantia, mesmo que existam controvérsias entre si e o devedor

do contrato base acerca da validade, subsistência ou cumprimento da obrigação

garantida.

O desenvolvimento das garantias autónomas no comércio internacional culminou

com o esforço da CCI (Câmara de Comércio Internacional) para criar regras de

6 Acórdão do TRP 08-05-2008 (Manuel Capelo), in www.dgsi.pt .

7 Veja-se as decisões citadas nesta página. O citado Acórdão do TRP 08-05-2008 é bem claro: “a definição da

verdadeira natureza da garantia bancária accionada é matéria que se prende com a interpretação da declaração

negocial que nela se contém (…)”. 8 Veja-se, neste sentido, INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, ob. cit., pp. 280 e 282-283; FRANCISCO CORTEZ, ob. cit., pp.

517-519; MÓNICA JARDIM, ob. cit., pp. 35-41.

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uniformização das cláusulas de tais garantias, de modo a que não se suscitassem

dúvidas quanto à sua natureza e condições de aplicação.

Pode-se assim dizer que o fundamento deste tipo de garantias nas práticas

comerciais é o de atribuir ao beneficiário uma solução rápida e eficaz, evidenciando-se

como preferível a outro tipo de garantias.

3. Processo conducente à relação jurídica no âmbito da qual se encontra a

garantia bancária autónoma propriamente dita, ou “o processo genético

de emissão de uma garantia bancária autónoma”9.

Feita a introdução à figura da garantia autónoma, e tendo sempre presente as suas

características10

, constatamos que esta é a mais enérgica das garantias e serve não só os

fins do comércio internacional, mas também os do comércio interno. É de uso corrente

entre nós, nomeadamente na área dos concursos de obras públicas e dos contratos de

empreitada, sendo eleita pelos agentes dos negócios como a mais segura, expedita e

eficaz das garantias11

.

A figura da garantia bancária autónoma exige no mínimo três intervenientes, a

saber: um ordenante, que também será devedor (na relação subjacente) e garantido; um

banco que será o garante e um beneficiário que será também credor. Teremos, então,

três intervenientes, que assumirão estas diferentes designações de acordo com a relação

que estaremos a tratar, que vão dar lugar a três relações jurídicas entre si. Podemos,

desta forma, constatar que o processo de formação de uma garantia bancária autónoma

assenta num triângulo cujas três faces são três relações jurídicas distintas, normalmente

contratuais12

13

.

9Expressão usada pela jurisprudência, veja-se, a título de exemplo, os acórdãos do STJ de 21-11-2002 (Azevedo

Ramos), CJ/Supremo ano X, 2002, tomo III, pp. 148 -152 (148) e do TRC de 27-01-2004 (Távora Victor), CJ, ano XXIX, 2004, tomo I, pp. 17-21 (19). 10

V. supra, n.º 1. e 2. 11

Neste sentido, MÓNICA JARDIM, ob. cit. p. 14, “ Nos nossos dias é prática corrente a prestação de uma garantia autónoma, sobretudo na sua modalidade de garantia “on first demand” ou “à primeira solicitação”, e ela assume uma enorme e inegável importância prática tendo como campo de eleição o comércio externo. A garantia surge para cobrir contratos base vultuosos, de execução relativamente demorada, entre empresas que não têm um seguro conhecimento recíproco e uma total confiança mútua. É na área da construção civil, dos fornecimentos, do engeneering e da cooperação industrial, que ela se manifesta com mais frequência.” 12

C. FRANCISCO CORTEZ, ob. cit. p. 523. 13

Normalmente contratuais, pois como teremos oportunidade de analisar, apesar da jurisprudência e da doutrina maioritárias considerarem que a relação que se desenvolve entre o banco garante e o beneficiário é uma relação contratual, só uma análise casuística nos permitirá qualificar tal relação. Não se pode, na nossa opinião, estabelecer sem mais, sem analisar o caso concreto, que a relação no âmbito da qual se desenvolve e é prestada a garantia bancária autónoma, é uma relação contratual, pois na prática não se espera uma aceitação por parte do beneficiário, o que nos levaria para o campo dos negócios jurídicos unilaterais. A questão da qualificação do regime da garantia bancária autónoma será objecto de tratamento nos pontos 5., 6. e 7.

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5

Pensamos ser útil traduzir esta ideia num esquema simples, na medida em que se

revelará num elemento precioso na análise da figura.

Fig. 1

C

Contrato de Cobertura Garantia Bancária Autónoma

A B

Contrato-Base

Este esquema triangular14

tem subjacente a doutrina e a jurisprudência maioritárias e

será o ponto de partida para a explicação de cada uma das faces do triângulo, isto é, de

cada uma das relações até chegarmos à figura que é aqui objecto de tratamento.

Vamos agora analisar cada uma das relações jurídicas.

14

Como tivemos oportunidade de referir a figura da garantia bancária autónoma exige no mínimo três intervenientes, mas pode ter mais do que três. A figura que aqui deixamos representada consiste no processo de emissão de uma garantia bancária autónoma na sua formação tripartida e usada com maior frequência na ordem interna, isto é quando banco e beneficiário se localizam no mesmo país. Mas localizando-se o banco garante e o beneficiário em países diferentes, este pode exigir que seja um banco do seu próprio país a prestar a garantia. Este novo banco será o quarto interveniente (que prestará a garantia bancária autónoma), o que faz com que ao invés de um triângulo passemos a ter um quadrado com dois bancos garantes que se relacionam entre si (formação quadripartida).

Devedor

Ordenante

Garantido

Credor

Beneficiário

Banco

Garante

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6

1ª Relação jurídica: entre devedor e credor do contrato base

Fig. 1.1

contrato base

Consideremos o seguinte exemplo: A (devedor) e B (credor) celebram um contrato

entre si, um contrato de compra e venda internacional15

. Este contrato constitui a relação

jurídica principal ou subjacente que se pretende garantir e como tal vai ser a base do

nosso triângulo16

.

B, importador, teme o risco de incumprimento total ou parcial da obrigação, ou o

cumprimento tardio ou defeituoso por parte do exportador A, pois tal frustraria por

completo a utilidade da mercadoria. Uma forma de superar este risco consiste

precisamente na utilização da figura da garantia bancária autónoma. Para o efeito, A

obriga-se a conseguir um garante (normalmente um banco) que assegurará que o B,

beneficiário, receberá uma quantia pecuniária previamente fixada mediante a alegação

do incumprimento da outra parte ou ainda de preferência imediatamente, logo que o

banco seja interpelado para tal pelo B, mediante declaração. Esta obrigação do A, na

maior parte dos casos consta numa das cláusulas do contrato base e em certos casos este

contrato só é celebrado mediante a certeza de existência de garantia bancária.

15

Este contrato é um contrato sinalagmático como tal decorrem obrigações para as duas partes, a saber a entrega da coisa (mercadoria) e o pagamento do preço. Como tal, nada obsta a que o A, de modo a garantir o pagamento pelo B, também exija uma garantia bancária autónoma. De modo a simplificar, estamos a considerar que apenas o B (importador, credor no nosso triângulo) exigiu uma garantia bancária autónoma. 16

Aqui na maior parte dos casos estamos a falar de contratos que envolvem avultadas somas de capital, como tal podíamos estar perante um contrato de empreitada, de transferência de tecnologia, etc.

Devedor Credor

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7

2ª Relação Jurídica: entre ordenante e garante.

Fig. 1.2

Contrato de Cobertura

De modo a cumprir o acordo, ou a cláusula contratual, A vai incumbir um C, regra

geral um banco, de estabelecer uma relação jurídica com o B na qual prestará a referida

garantia ao beneficiário mediante o cumprimento de uma série de requisitos que

constarão do próprio texto da garantia. Aqui serão convencionadas as condições em que

o banco garante assume a referida garantia, as contrapartidas e demais obrigações17

.

Esta relação que se estabelece entre o devedor da relação principal e o banco garante

tem sido qualificada, entre nós, quer na doutrina, quer na jurisprudência, como sendo

um contrato de mandato: mandato sem representação nos termos do art. 1157.º e 1180.º

do CC, pelo qual o banco garante se obriga perante o devedor da relação principal,

também designado ordenante, em contrapartida de certa retribuição, a estabelecer com o

correlativo credor uma relação no âmbito da qual prestará uma garantia bancária

autónoma, mediante certas condições. O banco vai actuar em nome próprio, pois será

ele quem responderá pela obrigação de prestar garantia, sendo esta uma obrigação

própria. O banco actua em nome próprio, mas por conta do dador da ordem (devedor

garantido)18

.

17

Regra geral o banco exigirá uma contra garantia. 18

Apesar de esta ser a posição maioritária, entre nós, o professor CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA qualifica este contrato como contrato de prestação de serviços, argumentando que não se poderia estar perante um contrato de mandato, ainda que sem representação, pois a figura da garantia autónoma exige a intervenção de um terceiro, ou seja, a prestação a que se obriga o garante (terceiro), que é um acto futuro, não pode, por natureza, ser realizada pelo devedor. Assim sendo, não podemos qualificar tal contrato como de mandato, mas sim de prestação de serviços porque o garante age no interesse mas não por conta de outrem.

Ordenante

Garantido

Banco

Garante

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8

3ª Relação jurídica: entre o garante e o beneficiário

Fig. 1.3

Garantia Bancária Autónoma

É nesta última relação entre o garante e o beneficiário que se encontra a garantia

propriamente dita. Nesta relação o banco garante obriga-se a entregar uma soma

pecuniária determinada ao beneficiário, logo que este alegue o incumprimento da

relação jurídica subjacente e junte os documentos necessários para o efeito, ou de

imediato quando este simplesmente o interpele a realizar essa prestação, mediante

declaração. Nisto consiste a garantia bancária autónoma.

Esta relação vem sendo qualificada entre nós, tanto pela doutrina como pela

jurisprudência, como sendo uma relação contratual com carácter não sinalagmático, da

qual decorre para o garante a obrigação de prestar a garantia e para o beneficiário o

correlativo direito de crédito. Não nós vamos ocupar, por agora, da qualificação do

regime, pois fá-lo-emos mais à frente19

.

Feito o esquema e feita a explicação concernente a cada uma das relações, sem

prejuízo de certas questões voltarem a ser retomadas com maior pormenor, deixamos

19

V. infra n,º 5., 6. e 7.

Banco

Garante

Beneficiário

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9

aqui registado um excerto de um acórdão do TRC de 27-01-200420

que traduz o

esquema que realizamos e que qualifica a relação entre ordenante e garante como de

mandato, e a relação entre garante e beneficiário como contrato de garantia bancária

autónoma:

“(…) no processo genético de emissão de uma garantia bancária autónoma existe,

em primeiro lugar, um contrato base, entre o mandante da garantia e o beneficiário, a

que se segue um contrato qualificável como de mandato, mediante o qual o mandante

incumbe o banco a prestar garantia ao beneficiário e, por último, o contrato de

garantia, celebrado entre o banco e o beneficiário, em que o banco se obriga a pagar a

soma convencionada logo que o beneficiário o informe de que a obrigação garantida se

venceu e não foi paga(…). A emissão da garantia envolve pelo menos três tipos de

relações contratuais, dando origem a um grupo de contratos relacionados entre si.”

No mesmo sentido, mas agora no que à doutrina diz respeito FRANCISCO

CORTEZ21

trata do conceito de garantia autónoma como sendo tudo isto que tivemos

aqui a tratar, ou melhor, qualifica aquela relação entre garante e beneficiário como

sendo contratual e no conceito implica as outras relações, formando o esquema

triangular:

A garantia bancária autónoma é prestada através da celebração de um contrato

autónomo de garantia entre uma entidade (o garante), normalmente um banco – em

cumprimento de um contrato de mandato sem representação em que é mandante o

devedor de uma obrigação – e um beneficiário – titular do correlativo direito de crédito

– pelo qual o primeiro, o garante, se obriga a entregar uma quantia pecuniária

determinada ao segundo, o beneficiário, logo que, tratando-se duma garantia bancária

autónoma simples, este prove o pressuposto da constituição do seu direito de crédito

contra o garante – regra geral trata-se do incumprimento da obrigação do devedor – ou,

tratando-se de uma garantia bancária autónoma a pedido (on first demand) o interpele

simplesmente, pela forma acordada, para tal.

4. Causalidade e Abstracção.

Já sabemos que a autonomia é a principal característica da garantia bancária

autónoma, cumpre agora aprofundar o tema.

Através da garantia bancária autónoma o garante não se obriga a produzir o

resultado a que está obrigado o devedor (ordenante), ao invés responsabiliza-se pelo

risco da sua não produção. O garante obriga-se, mediante certas condições, a entregar

20

Acórdão do TRC de 27-01-2004 (Távora Victor), CJ, ano XXIX, 2004, tomo I, pp. 17-21 (19), sublinhado próprio, no mesmo sentido os acórdãos: do STJ de 09-01-97 (Sousa Inês), CJ/Supremo, ano V, 1997, tomo I, pp. 35-37 (36) e de 21-11-2002 (Azevedo Ramos), CJ/Supremo, ano X, 2002, tomo III, pp. 148-152 (149); do TRP de 08-05-2008 (Manuel Capelo) e do TRL de 15-04-2010 (Fátima Galante), estes últimos in www.dgsi.pt. 21

C. FRANCISCO CORTEZ, ob. cit., p. 531. Também MÓNICA JARDIM, ob. cit, p. 13.

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10

uma determinada quantia pecuniária, não se obriga em nenhum caso a cumprir a

obrigação que o devedor deixou de satisfazer.

Como consta do acórdão do STJ de 27-05-201022

, “a função da garantia autónoma

não é a de assegurar o cumprimento de um determinado contrato, visando antes

assegurar que o beneficiário receberá, nas condições previstas no texto da garantia, uma

determinada quantia em dinheiro. Assumindo o garante uma obrigação própria,

desligada do contrato base sendo tal obrigação, nessa medida autónoma, independente,

não acessória da obrigação do devedor principal”.

O garante abdica, desde logo, da possibilidade de vir a opor ao beneficiário

quaisquer excepções derivadas tanto da sua relação com o garantido, como da relação

base23

.

Relacionadas com a autonomia estão a causalidade e a abstracção, mas que com

aquela não se confundem.

A questão da admissibilidade legal24

da garantia bancária autónoma, surge,

frequentemente, ligada ao problema dos negócios abstractos25

.

Entre nós ao contrário do que ocorre na Alemanha, vale o princípio da causalidade,

e a abstracção negocial, isto é, “omissão textual de causa final do acto”26

, só é permitida

num conjunto fechado de tipos negociais, pense-se nos títulos de crédito. Os títulos de

crédito (letras, livranças, cheques) são abstractos, tal não significa que não tenham uma

causa, significa sim que esta causa não releva, relevará sim no âmbito das relações

imediatas, não já nas mediatas.

Considerar a garantia bancária autónoma como abstracta seria obstar à sua

admissibilidade entre nós por força do princípio da causalidade. Mas se há autores que

integram a garantia bancária autónoma entre os negócios jurídicos causais e duvidam da

sua validade no nosso ordenamento jurídico27

, outros há que a apesar de a considerarem

um negócio abstracto concluem pela sua validade28

.

Cumpre então tomar posição deixando claros os conceitos em causa.

22

Acórdão do STJ de 27-05-2010 (Serra Baptista) in www.dgsi.pt. 23

Veremos que a autonomia tem limites, infra, n.º 9. 24

Sabendo que entre nós a figura não tem base legal. São poucos os países que a têm legalmente consagrada, v. g. França. 25

Como refere JORGE DUARTE PINHEIRO, “o caminho dos negócios causais abstractos não se afigura o melhor para tomar uma decisão acerca da admissibilidade da garantia bancária (…) porque o tema do negócio abstracto é reconhecidamente complexo, facto a que não é estranha a necessidade de estudar o conceito de causa, domínio onde reina a confusão, as disparidades abissais, as dificuldades, contradições e enganos”, in “Garantia Bancária Autónoma”, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 52, vol. II, Julho 1992, p. 441. 26

C. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos II, Conteúdo. Contratos de Troca, Almedina, 2007, p. 121, “negócios abstractos no direito português são apenas aqueles cujo regime jurídico, estabelecido por lei ou por convenção internacional vigente em Portugal, admita a omissão de uma função económico-social no respectivo conteúdo”. 27

Pelo menos no que concerne à garantia bancária à primeira solicitação, c. FERRER CORREIA, “Notas para o Estudo do contrato de garantia bancária”, in Revista de Direito e Economia, ano VIII, n.º 2, 1982, pp. 249-250, apud JORGE DUARTE PINHEIRO, ob. cit. p. 439. 28

C. JOSÉ SIMÕES PATRÍCIO, “Preliminares sobre a garantia ‘on first demand”, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 43, vol. III, Dezembro 1983, pp. 682-705.

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11

Sabendo que autonomia e abstracção não se confundem, na figura da garantia

bancária autónoma a autonomia consiste na inoponibilidade de excepções por parte do

garante ao beneficiário que derivem tanto da relação do garante com o garantido como

da relação base (entre garantido e beneficiário). Abstracção, por outro lado, consiste na

omissão da causa da garantia.

Nada obsta a que tenhamos actos causais dotados de autonomia, pois bem, tal ocorre

precisamente na garantia bancária autónoma. Quando pensamos na garantia autónoma

pensamos na sua autonomia em relação às outras relações que formam o triângulo, mas

esta não deixa de ser causal. E qual é a sua causa? Qual é a sua função económico-

social? É precisamente uma função de garantia como o seu próprio nome indica, isto é,

uma função de risco, o risco da não produção do resultado a que se obriga o devedor.

Neste sentido vai o acórdão do STJ de 09-01-9729

, no qual consta que “o contrato

de garantia autónoma é causal, mas apenas no sentido de que visa uma função de

garantia, não os sendo por ter a justificação no contrato base ou no mandato recebido da

dadora da ordem”.

E o acórdão também do STJ, mas de 21-11-200230

, que refere que a validade da

figura já foi posta em causa precisamente pelo princípio da causalidade dos negócios

que vigora entre nós, mas constata o acórdão que tal questão não tem constituído

obstáculo à proliferação e reconhecimento da figura, pois tem-se entendido que a causa

reside na intenção de garantia que lhe subjaz.

5. Qualificação da relação jurídica entre o garante e o beneficiário – a

garantia bancária autónoma como contrato.

Para a grande parte da doutrina e jurisprudência é pacífico que a qualificação da

relação jurídica estabelecida entre o garante e o beneficiário se deve designar de

contrato de garantia autónoma. Neste sentido vão grande parte dos Autores31

.

A jurisprudência, salvo raras excepções, refere-se sempre a contrato de garantia

autónoma, tomando-o por assente, fundamentando-se no princípio da liberdade

contratual (art. 405.º CC), depois de interpretar se, no caso concreto, as partes

pretenderam qualificar aquela garantia de garantia autónoma, recorrendo às referidas

regras estabelecidas nos arts. 236.º e 238.º CC.

Neste sentido vai o antigo Acórdão do TRL 11-12-199032

, que diz que “o contrato

de garantia bancária é um contrato inominado fruto da autonomia privada que preside à

29

Acórdão do STJ de 09-01-97 (Sousa Inês), CJ/Supremo, ano V, 1997, tomo I, pp. 35-37 (36). 30

Acórdão do STJ de 21-11-2002 (Azevedo Ramos), CJ/Supremo, ano X, 2002, tomo III, pp.148-152 (149). 31

Veja-se INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, ob. cit., p. 287; FRANCISCO CORTEZ, ob. cit., pp. 528-531; JOÃO DE MATOS

ANTUNES VARELA, ob. cit., pp. 515-517; MÓNICA JARDIM, ob. cit., pp. 60-65 e 101-150; PEDRO ROMANO

MARTINEZ/PEDRO FUZETA DA PONTE, ob. cit. p. 125 e pp. 132-135; LUÍS MANUEL TELES DE MENEZES LEITÃO, ob.

cit., p. 341.

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formação dos contratos e que entre nós ainda não teve consagração legislativa”, mas tal

posição continua actualmente a ser defendida pelos tribunais (como por exemplo, o do

TRP 08-05-200833

).

Define-se, por isso, o contrato de garantia autónoma como contrato legalmente

atípico (porque não regulado na lei), mas socialmente típico, querendo-se com isto

dizer que há uma prática reiterada e aceite na comunidade jurídica deste tipo de

contratos34

.

A prática é a de que o beneficiário recebe um documento (uma carta de garantia)

enviado pelo banco garante. Defendendo-se que a garantia autónoma assenta num

contrato, o conteúdo desta carta consistirá na proposta contratual, tendo

necessariamente que ser completa, precisa e formalmente adequada, a qual terá

que ser aceite pelo beneficiário, nos termos do art. 232.º CC.

Ora, a prática é também no sentido de que não haverá uma resposta por parte do

beneficiário a essa carta de garantia.

Defende-se, então, nestes casos, que há uma aceitação tácita por parte do

beneficiário, quer anterior quer posterior. Por um lado, é anterior porque resulta de um

comportamento manifestado no contrato base, exigindo ao devedor que arranjasse um

garante que emitisse a garantia. Por outro lado é posterior, porque o beneficiário, nos

termos do art. 234.º CC, não manifestou por qualquer forma não a pretender.

Nestes termos, justifica a doutrina que o facto de a garantia constar normalmente

apenas de um documento assinado pelo banco, não lhe retira o seu carácter contratual: é

necessária aceitação da proposta contratual, mas esta não tem que ser escrita (219.º CC);

e essa declaração pode ser tácita35

.

A jurisprudência mal se refere a esta questão da aceitação ou falta de aceitação,

dando por assente, na maior parte dos casos, que se está perante contrato de garantia

bancária autónoma.

A verdade é que, se há casos em que é óbvio estar-se perante um contrato de

garantia bancária autónoma, nos termos em que o banco faz uma verdadeira proposta ao

beneficiário, ainda que este aceite tacitamente, podem suscitar-se casos em que a carta

de garantia se parece dever qualificar de negócio jurídico unilateral. Isto leva-nos à

conclusão de que só apreciando o caso concreto, tendo em conta todo o processo

conducente à emissão da garantia, é que o intérprete poderá qualificar ou não a garantia

em causa de contrato.

32

Acórdão do TRL de 11-12-1990 (Santos Monteiro), CJ, ano XV, 1990, tomo V, pp. 135 e ss. 33

Acórdão do TRP 08-05-2008 (Manuel Capelo), in www.dgsi.pt . 34

Veja-se designadamente neste sentido, FRANCISCO CORTEZ, ob. cit., p. 530; e MÓNICA JARDIM, ob. cit., p. 22. 35

Veja-se neste sentido FRANCISCO CORTEZ, ob. cit., p. 529; e MÓNICA JARDIM, ob. cit., pp. 101-103.

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6. Qualificação da relação jurídica entre o garante e o beneficiário – a

garantia bancária autónoma como negócio jurídico unilateral.

Como vimos, a posição maioritária, quer na doutrina, quer na jurisprudência é a de

que a relação que se estabelece entre o banco (garante) e o beneficiário é uma relação

contratual.

Mas na verdade, só perante uma análise casuística é que se poderá aferir.

Na prática, a declaração do banco (garante) é no sentido de pôr à disposição do

beneficiário tal montante pecuniário, quando este prove o incumprimento da obrigação a

que o devedor estava adstrito no contrato base, ou quando este a solicite, nos termos

previstos na garantia, mediante a apresentação de uma declaração. Isto é, não se espera

uma aceitação por parte do beneficiário e na maior parte dos casos esta aceitação não

ocorre, quer expressa ou tacitamente, o que nos levaria a dizer que certos casos parecem

consubstanciar um negócio jurídico unilateral e não já um contrato, pois há apenas uma

única declaração negocial da qual resultam todos os efeitos jurídicos estipulados.

Esta simples declaração negocial parece vincular o seu autor (banco/garante), em

termos da constituição da obrigação de prestação da garantia autónoma.

Ocorre que entre nós se encontra consagrado, no art. 457.º do CC, o princípio da

tipicidade dos negócios jurídicos unilaterais enquanto fonte de obrigações, e de

acordo com FRANCISCO CORTEZ “se defendêssemos a tese de que a relação entre

garante e beneficiário se consubstancia num negócio jurídico unilateral – posição

isolada na doutrina – teríamos que rejeitar liminarmente a admissibilidade da figura no

direito português face ao princípio da tipicidade nos negócios jurídicos unilaterais (art.

457.º CC)” 36

.

O professor CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA defende que em certos casos

podemos estar perante um negócio jurídico unilateral, legitimando esta posição por

força do costume internacional. O costume é uma das fontes primárias do direito

internacional e consiste na prática reiterada dos sujeitos do Direito Internacional, isto é,

numa prática geral aceite como sendo direito. Pois a prática é a da emissão da

declaração por parte do garante (banco) dando conta da existência de uma garantia

constituída a favor do beneficiário e não se espera a aceitação deste, nem a declaração

do banco está formulada nesse sentido. Parece que esta declaração do banco o vincula

em termos de constituição da obrigação de prestação de garantia, não estando sujeita a

aceitação.

Veja-se a este propósito o art. 6.º das Regras Uniformes para as garantias autónomas

à primeira solicitação da Câmara de Comércio Internacional37

do qual se retira que a

tendência é da emissão da declaração pelo banco sem se verificar a aceitação do

beneficiário como se fosse usual a sua não ocorrência, e tal em nada prejudica tal

relação, pois esta existe e produz os seus efeitos.

36

C. FRANCISCO CORTEZ, ob. cit., p. 530. 37

C. ROY GOODE, Guide to the ICC Uniform Rules for Demand Guarantees, ICC Publishing, Paris, 1992, p. 57.

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7. Relação entre o dador de ordem e o garante é qualificável de contrato

a favor de terceiro?38

Se respondermos que sim, o problema que se levanta é que o direito do terceiro

(beneficiário) está dependente das vicissitudes da relação entre promitente e promissário

(garante e dador de ordem) – art. 449.º CC. Isto é, o promitente (banco) poderá opor os

meios de defesa derivados do contrato celebrado com o promissário. Daí que se

argumente que, se considerarmos que tal relação entre o dador de ordem e o garante é

qualificável como contrato a favor de terceiro, a característica essencial da autonomia se

perderia.

Questão que se coloca é se a norma do art. 449.º CC será supletiva ou imperativa?

Se for imperativa, não é afastável e, por isso, prejudica-se a autonomia da garantia; mas,

por outro lado, se for supletiva, o promitente e o promissário poderão afastá-la e, nesse

caso, a autonomia da garantia não fica prejudicada.

Em qualquer caso, a qualificação de contrato a favor de terceiro tem a consequência

de alterar a figura triangular de relações já enunciada, uma vez que a garantia seria um

mero efeito decorrente desse contrato, nos termos do art. 444.º/1 CC. Isto significa que a

garantia bancária autónoma nasceria directamente do contrato a favor de terceiro, não se

podendo qualificar nem de contrato nem de negócio jurídico unilateral – a garantia não

seria um negócio jurídico.

Na verdade, a tendência jurisprudencial, tendo em conta as decisões por nós

analisadas, não vai no sentido de qualificar tal relação entre o devedor e o banco de

contrato a favor de terceiro, não se chegando sequer a indagar sobre a sua configuração

no que respeita à garantia bancária autónoma.

8. Modalidades de garantia bancária autónoma: garantia simples e à primeira

interpelação (on first demand)39

.

Para a distinguir as garantias bancárias autónomas simples das garantias bancárias

autónomas à primeira solicitação, devemos ter em linha de conta a evolução das regras

uniformes da CCI. Em 1978 foram publicadas as Uniform Rules for Contract

Guarantees, que uniformizaram na prática internacional as designadas garantias

autónomas simples (em que se exige ao beneficiário prova do incumprimento do

contrato-base por parte do devedor); posteriormente, em 1992, em resposta a problemas

suscitados pela exigência de prova ao beneficiário das garantias autónomas simples,

foram publicadas as Uniform Rules for Demand Guarantees, que se referem às garantias

38

Veja-se FRANCISCO CORTEZ, ob. cit., p. 526, nota de rodapé 38; MÓNICA JARDIM, ob. cit., pp. 51-52; PEDRO ROMANO MARTINEZ/PEDRO FUZETA DA PONTE, ob. cit., p. 134. 39

Sobre as modalidades das garantias autónomas, veja-se INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, ob. cit., pp. 280-282 (confundindo os conceitos de autonomia e de automaticidade); FRANCISCO CORTEZ, ob. cit., pp. 535-541; MÓNICA JARDIM, ob. cit., pp. 84-92; PEDRO ROMANO MARTINEZ/PEDRO FUZETA DA PONTE, ob. cit., pp. 135-137 e nota de rodapé 330; LUÍS MANUEL TELES DE MENEZES LEITÃO, ob. cit., pp. 342-345.

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autónomas à solicitação, as quais apenas requerem, em princípio, a exigência de pedido

por escrito por parte do beneficiário para o pagamento da garantia.40

Assim, pode-se sintetizar a diferença entre tais modalidades dizendo que as

simples são garantias condicionais e que as on first demand, são incondicionais (ou

quase incondicionais).

O Acórdão do TRC de 26-11-199641

faz uma sucinta distinção de tais

modalidades, dizendo que na “garantia simples, o beneficiário, para exigir a obrigação

do garante, tem de provar a ocorrência dos pressupostos que condicionam o seu direito,

na garantia à primeira solicitação, não tem esse ónus” e que “por não ter esse ónus o

pagamento não lhe pode ser recusado por não se demonstrar que se verificam os

pressupostos do incumprimento por parte do garantido”.

A prática jurisprudencial portuguesa é a de interpretar, no caso concreto, nos

termos das regras de interpretação constantes dos arts. 236.º/1 e 238.º/1 CC, as

cláusulas da carta de garantia de modo a determinar se se deve entender tal garantia

autónoma por uma garantia autónoma simples ou por uma garantia autónoma à primeira

solicitação ou on first demand.

O TRC na decisão mencionada considerou que o mandante, ao autorizar o banco a

pagar qualquer importância que porventura viesse a ser pedida pela entidade a quem era

prestada a garantia, sem que por qualquer forma tivesse de averiguar a razão da

exigência, configurava uma cláusula típica das garantias bancárias em pagamento à

primeira solicitação.

Outro exemplo será o do Acórdão do STJ de 19-05-201042

, em que o tribunal

considerou que “a utilização das expressões garantia incondicional e irrevogável e a

obrigação de pagar ao beneficiário por interpelação e imediatamente não podem deixar

de conferir a natureza de garantia autónoma „on first demand‟, ou seja, à primeira

solicitação ou primeira interpelação.”

No sentido da garantia bancária autónoma simples foi a decisão do TRC de 27-01-

200443

que, apreciando as cláusulas em concreto, considerou que “além de não se

encontrar inserida no contrato qualquer cláusula expressa no sentido da garantia on first

demand, o que a tornaria incondicional, certo é que do teor do instrumento em análise

consta ainda que essa responsabilidade só se verificará se a garantida faltando ao

cumprimento das suas obrigações, não entrar com as importâncias que deva em devido

tempo”.

40

Veja-se ROY GOODE, ob. cit.; WILLEM J. H. WIGGERS, International Commercial Law: Source Materials, Kluwer Law International, The Hague, 2001, pp. 437-441 e 442-444. 41

Acórdão do TRC de 26-11-1996 (Santos Lourenço), CJ, ano XXI, 1996, tomo V, pp. 27-29. 42

Acórdão do STJ 19-05-2010 (Azevedo Ramos), in www.dgsi.pt . 43

Acórdão do TRC de 27-01-2004 (Távora Victor), CJ, ano XXIX, 2004, tomo I, pp. 17-21.

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Como se pode ver, tudo se resume à análise do clausulado da garantia autónoma

para se poder aferir se estamos em presença de uma garantia bancária autónoma simples

ou perante uma garantia bancária autónoma à primeira solicitação.

9. Fundamento de recusa legítima de pagamento pelo garante ao

beneficiário - limite à autonomia.

Vimos que a garantia bancária autónoma à primeira solicitação ou a pedido (on first

demand) faz com que a característica principal da figura, a autonomia, atinja o seu grau

máximo.

Mas será esta autonomia absoluta?

É pacificamente aceite que a autonomia da garantia não é absoluta, mas limitada. “A

questão mais controversa é a de saber quais são rigorosamente esses limites que atingem

a autonomia, sem ferir de morte a característica fundamental do instituto”44

. Ou melhor,

“a questão será apenas a de saber que meios de defesa pode usar quem a presta quando

o seu cumprimento é solicitado por quem dela beneficia”45

.

Que excepções poderá o garante opor ao beneficiário como fundamento de

recusa do cumprimento da obrigação, sem que se corra o risco de perder a “chave-

mestra”46

da garantia bancária autónoma?

Os fundamentos de recusa, pelo garante, podem, desde logo, ter por base a sua

relação com o beneficiário. É certo que as excepções que emanam da relação de

garantia autónoma propriamente dita podem ser usadas pelo garante contra o

beneficiário (a título de exemplo, a garantia autónoma que é solicitada após o termo da

sua validade; o beneficiário que solicita um montante superior ao que consta na garantia

autónoma47

).

Deixando de lado as excepções que são próprias da relação entre garante e

beneficiário, isto é, pressupondo que o beneficiário aquando da solicitação da

garantia cumpre todos os requisitos exigidos, pode, ainda assim o garante opor-lhe

alguma excepção?

Como vimos a autonomia significa inoponibilidade de excepções pelo garante ao

beneficiário, excepções derivadas tanto da sua relação com o garantido como da relação

base (entre garantido e beneficiário)48

. Mas esta autonomia não é absoluta, é sim

relativa, ou seja, o garante pode opor ao beneficiário excepções. Veremos quais e em

44

C. FRANCISCO CORTEZ, ob cit., p. 596. 45

Acórdão do TRP de 04-11-2008 (Cândido Lemos) in www.dgsi.pt. 46

Expressão usada por FRANCISCO CORTEZ, ob. cit., p. 597. 47

Para mais exemplos v. MÓNICA JARDIM, ob. cit., p. 280. 48

“O banco só tem de pagar o que consta do título de garantia e em harmonia com o respectivo teor, devendo pagar ao primeiro pedido, imediatamente, e sem discussão. Mas desde que o beneficiário respeite esse teor e reclame o que face à garantia lhe é devido, o banco não tem outro remédio senão pagar, de imediato, sem hesitações, sem discussão.”,

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que termos. Como refere Mónica Jardim, a garantia autónoma não tem só vantagens

pois envolve o risco de ser solicitada injustamente ou de forma abusiva49

.

Existem dois casos nucleares em que a doutrina e a jurisprudência consideram que o

garante deve recusar o cumprimento da prestação, a entrega do montante pecuniário

ao beneficiário: ilicitude da causa por violação da ordem pública e fraude manifesta

ou abuso evidente.

Quanto à primeira excepção a ilicitude da causa por violação da ordem pública,

para a maioria da doutrina, o garante, que se vinculou a não opor ao beneficiário

excepções derivadas do contrato base, pode opor ao credor a excepção de invalidade do

contrato de garantia, sempre que o contrato base seja contrário à ordem pública e aos

bons costumes (a título de exemplo, um contrato de tráfico de droga). Mas já não pode

fazê-lo se o contrato base for inválido por outro motivo que não a ilicitude da causa por

violação da ordem pública.

Quanto à segunda excepção, fraude manifesta ou abuso evidente, o garante deve ter

em seu poder prova líquida e inequívoca dessa fraude ou abuso na altura da solicitação.

O garante deverá recusar a entrega da soma sempre que a solicitação do beneficiário

seja fraudulenta, atento o princípio da boa fé e da proibição do abuso de direito. Assim,

é caso extremo em que o banco pode recusar o pagamento, o caso em que o importador

(beneficiário) reclama o pagamento alegando não ter recebido a mercadoria, quando o

garante tem em seu poder documento comprovativo do desalfandegamento no país do

destino. Em casos do género, não basta a alegação da má fé do beneficiário ainda que

esta seja patente, deve o garante, para tal, ter prova documental em seu poder, de modo

a agir em absoluta segurança. A prova deve ser pronta e líquida, isto é, deverá permitir a

percepção segura da fraude ou abuso.

Num acórdão do TRP de 04-11-200850

, em que estava em causa a oposição de

excepções pelo garante ao beneficiário, o tribunal decidiu da seguinte forma: “neste

caso resulta que o oponente (garante entenda-se) não tem qualquer prova,

nomeadamente documental, de que existe abuso de direito ou má fé por parte da

exequente (beneficiário) em peticionar o pagamento alegando o incumprimento do

contrato base e como tal não poderá opor essa matéria de excepção, devendo

proceder ao pagamento da quantia exequenda”. E continua o tribunal “deste modo,

embora seja lícita a oposição com fundamento em abuso de direito ou violação dos

princípios da boa fé, todavia terá de ser invocado abuso ou violação grosseira

oferecendo logo prova inequívoca dos mesmos. Não basta para tal alegar o

incumprimento da relação subjacente à emissão da garantia”.

49

MÓNICA JARDIM, ob. cit., pp. 279 e ss. 50

Acórdão do TRP de 04-11-2008 (Cândido Lemos), in www.dgsi.pt. No mesmo sentido de que o pagamento pelo garante só deve ser recusado com base em prova documental inequívoca vai o acórdão do TRP de 10-04-2008 (Freitas Vieira), in www.gdsi.pt.

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18

É ainda admitida a instauração pelo garantido de providências cautelares, de

carácter urgente, com o objectivo de impedir que o garante entregue a quantia

pecuniária ou que o beneficiário a receba, devendo para o efeito apresentar prova

líquida e inequívoca de fraude manifesta ou de abuso evidente do beneficiário.

O seguinte excerto do acórdão do TRL de 19-01-201051

traduz o pensamento da

jurisprudência em relação à admissibilidade de providências cautelares intentadas neste

âmbito: “a autonomia da garantia, designadamente, da garantia automática ou à

primeira solicitação, face ao contrato base, não é absoluta, já que, em caso de

fraude manifesta ou abuso evidente por parte do beneficiário, o garante pode e

deve mesmo recusar-se a pagar a garantia, porquanto, acima da regra acordada

pelas partes, estão os princípios da boa fé e da proibição do abuso do direito.

Assim, pretendendo o devedor lançar mão de medidas cautelares destinadas a

impedir o beneficiário de receber a garantia, o êxito final dessas medidas, que

constituem, inquestionavelmente, um excepcional meio de defesa, dependerá da

prova inequívoca do comportamento manifestamente fraudulento ou abusivo do

beneficiário. O que vale por dizer que, no âmbito da garantia autónoma, sempre

que a providência cautelar seja requerida como forma de obstar a um

aproveitamento abusivo da posição do beneficiário, deve ser exigida prova pronta

e líquida, sendo, pois, insuficiente a consideração do simples fumus bonus iuris,

típico das providências cautelares, sob pena de violação da essência da garantia

autónoma à primeira solicitação. A fraude manifesta e o abuso evidente implicam

a prova pronta e líquida, sendo que, a prova é pronta (preconstituída) quando não

se mostra necessário requerer a produção de provas suplementares e é líquida

(inequívoca) quando permite a percepção imediata e segura da fraude ou do abuso,

tornando-os óbvios”.

O acórdão do TRL de 16-04-200952

dá-nos conta do decretamento de uma

providência cautelar: “por douta decisão cautelar de 6 de Outubro de 2008, decretou-se

que a requerida, Cooperativa, se abstivesse de prosseguir com o pedido de pagamento

do montante de 41.542.15 €, por via do accionamento da garantia bancária, “on first

demand” nº125-02-0451208, emitida em 10 de Outubro de 2003 pelo Banco requerido,

até trânsito em julgado da acção que a requerente irá intentar contra os ora requeridos;

que o requerido Banco, S.A., se abstivesse de pagar à requerida Cooperativa o montante

de 41.542,15 €, em virtude do accionamento da identificada garantia bancária até

trânsito em julgado da acção que a requerente irá intentar contra os ora requeridos”.

Ocorre que a dita Cooperativa, CRL apelou de tal decisão, dando origem ao

mencionado acórdão do TRL de 16-04-2009, que julgou procedente a apelação da

Cooperativa, CRL e revogou a douta decisão cautelar de 6 de Outubro de 2008.

51

Acórdão do TRL de 19-01-2010 (Roque Nogueira), in www.dgsi.pt. 52

Acórdão do TRL de 16-04-2009 (Rui Ponte Gomes), in www.dgsi.pt.

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19

Ficam, assim elencados, com ilustração jurisprudencial, os casos que relativizam a

autonomia da garantia bancária autónoma: ilicitude da causa do contrato-base por

violação da ordem pública e fraude manifesta ou abuso evidente por parte do

beneficiário. Fica também registada a possibilidade de instauração pelo garantido de

providências cautelares com os fundamentos e os termos já mencionados.

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20

10. Bibliografia

ALMEIDA, CARLOS FERREIRA DE, Contratos II, Conteúdo. Contratos de Troca,

Almedina, 2007.

CORTEZ, FRANCISCO, “A Garantia Bancária Antónoma – Alguns problemas”, in

Revista da Ordem dos Advogados, ano 52, vol. II, Julho 1992 (pp. 513-610).

GOODE, ROY, Guide to the ICC Uniform Rules for Demand Guarantees, ICC

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JARDIM, MÓNICA, A Garantia Autónoma, Almedina, 2002.

LEITÃO, LUÍS MANUEL TELES DE MENEZES, Direito das obrigações, vol. II,

Almedina, Coimbra, 2007.

PATRÍCIO, JOSÉ SIMÕES, “Preliminares sobre a garantia „on first demand”, in

Revista da Ordem dos Advogados, ano 43, vol. III, Dezembro 1983 (pp. 677- 718).

PINHEIRO, JORGE DUARTE, “Garantia Bancária Autónoma”, in Revista da Ordem

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VARELA, JOÃO DE MATOS ANTUNES, Das obrigações em geral, vol. II,

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WIGGERS, WILLEM J. H., International Commercial Law: Source Materials,

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11. Jurisprudência

Acórdãos do STJ

Acórdão do STJ de 09-01-97 (Sousa Inês), CJ/Supremo, ano V, 1997, tomo I,

(pp. 35-37).

Acórdão do STJ de 21-11-2002 (Azevedo Ramos), CJ/Supremo, ano X, 2002,

tomo III, (pp. 148-152).

Acórdão do STJ 19-05-2010 (Azevedo Ramos), in www.dgsi.pt .

Acórdão do STJ de 27-05-2010 (Serra Baptista) in www.dgsi.pt.

Acórdãos do TRL

Acórdão do TRL de 11-12-1990 (Santos Monteiro), CJ, ano XV, 1990, tomo V,

(pp. 134-136).

Acórdão do TRL de 16-04-2009 (Rui Ponte Gomes), in www.dgsi.pt.

Acórdão do TRL de 15-04-2010 (Fátima Galante), in www.dgsi.pt.

Acórdão do TRL de 19-01-2010 (Roque Nogueira), in www.dgsi.pt.

Acórdãos do TRP

Acórdão do TRP de 10-04-2008 (Freitas Vieira), in www.dgsi.pt.

Acórdão do TRP 08-05-2008 (Manuel Capelo), in www.dgsi.pt .

Acórdão do TRP de 04-11-2008 (Cândido Lemos), in www.dgsi.pt.

Acórdãos do TRC

Acórdão do TRC de 26-11-1996 (Santos Lourenço), CJ, ano XXI, 1996, tomo V,

(pp. 27-29).

Acórdão do TRC de 27-01-2004 (Távora Victor), CJ, ano XXIX, 2004, tomo I,

(pp. 17-21).


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