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Gestão ambiental de terras indígenas, um pouco do Acre e os retrocessos das políticas indígena e ambiental brasileiras

Roberta Graf

Texto-base da fala na Mesa-Redonda da 66ª. SBPC, em Rio Branco, na UFAC, dia 24/07/2014:

“Políticas públicas, comunidades tradicionais e a questão da sustentabilidade (ABA)” (Revisto e finalizado em 22 de agosto de 2014)

Prefácio

Este é apenas um breve artigo nada científico, sem revisão bibliográfica e, por vezes, coloquial, relatando

um pouco da minha experiência em gestão ambiental de terras indígenas no Acre, suas potencialidades, mas em

confronto com os desmontes atuais, em curso e propostos, às políticas indígena e ambiental, que tenho acompanhado de perto, com muita preocupação.

Deixo claro, de início, uma vez que citarei partidos ao longo do texto, que eu não possuo filiação partidária e nem tenho nada contra partido algum, especificamente. Apenas aponto, como outros analistas, que o curso

das políticas (ou a falta delas) ambiental e indígena vai mal, como não víamos desde a ditadura militar – em alguns

pontos vemos retrocessos até em relação a esta época! E o retrocesso é suprapartidário, ou seja, composto de vários partidos, especialmente composto pelo setor ruralista (aliado ao de agrotóxicos e transgênicos) e das empreiteiras,

entre outros. Mas esta não é uma dura realidade só brasileira. O mundo todo em seu capitalismo selvagem expansionista tem sido, em sua maioria de governos e nos órgãos mundiais, cego-surdo-mudo pra estas questões. Há

países melhores e piores, e o Brasil infelizmente encontra-se no segundo grupo, há muito o que melhorar e que cuidar para não desabar ainda mais.

Agradeço imensamente o convite da Profa. Dra. Andreia Martini e o endosso da ABA por esta fala na

reunião da SBPC, que por sinal foi de ótima qualidade em todos os aspectos, contando inclusive com uma sessão especial intitulada “SBPC Indígena”, por esforço do Prof. Jacó Cesar Piccoli da UFAC, e outra “SBPC Extrativista”, por

esforço do PZ / UFAC (e colaboradores). A SBPC indígena particularmente foi extremamente exitosa, com indígenas de todo o Brasil e América Latina, grandes personalidades, palestras, feiras de artesanato indígena, apresentações culturais

e sessões espirituais (xamânicas, ou de pajelança, como eles preferem chamar). Os indígenas puderam, na ocasião,

fazer intercâmbios e assembleias do seu movimento social, bem como apresentaram uns aos outros os 2 candidatos indígenas do Acre, um a deputado estadual e um a federal,1 o que é de grande importância já que o Acre não teve, até

hoje, um deputado indígena, e possui pouquíssimos vereadores indígenas. Embora meu nome, na programação, tenha vindo como “Ibama”, instituição em que trabalhei até o mês

passado,2 eu não estou apresentei em nome do Instituto, mas sim como pesquisadora independente, embora descreva, brevemente, um programa do Ibama deveras exitoso junto aos indígenas que liderei no Acre, com muito prazer, até que

ele foi extinto, um dos muitos, no contexto de “enxugamento” do Ibama.

Minha formação é de gestão e política ambiental, tendo doutorado pela Unicamp. Em minha trajetória passei por temas como epistemologia científica e tecnológica, um pouco de antropologia, gestão ambiental de resíduos

sólidos, educação ambiental e ética ambiental. No Ibama tive a oportunidade de coordenar o Programa de Agentes Ambientais Voluntários (PAAV), com sucesso de 2006 a 2010 (e desacelerando em 2011 e 2012, por corte de recursos a

zero), no qual formava e apoiava populações tradicionais e afins3 na gestão ambiental de seus territórios, incluindo os

indígenas. Com estes o Programa foi mais exitoso, pois eles tiveram bastante seriedade e apreço por ele, sem dúvida por já praticarem, historicamente, a defesa e gestão de seus territórios com afinco. E então iniciou-se uma fortuita

cooperação profissional. Mesmo findo o Programa, eu segui me interessando pela temática de gestão ambiental de terras indígenas (GATI) e política indígena, um tanto por gosto particular (ensaio até um pós-doutorado no tema), e

outro tanto para prestar apoio às associações indígenas em seu movimento social.

Assim, esse artigo é uma panorâmica do cenário atual preocupante das questões indígenas e ambientais no Brasil. Eu, como servidora pública de um órgão (Ibama) e setor que, hoje, não pratica quase nenhuma educação

ambiental ou agenda positiva junto à sociedade (mas sim comando e controle), me vejo totalmente sem tempo para atuar nesses campos, “escravizada pela burocracia”, como já dizia Max Weber. Mas assim mesmo, creio que vale a pena

publicá-lo, podendo ser útil aos indígenas e seus parceiros, até porque consta um apanhado de importantes citações, ao

longo do texto e no item 6, que recomendo.

1 Manoel Gomes, da TI Colônia 27, etnia Huni Kuin (Kaxinawá), e Sabá Manchineri, da TI Mamoadate, etnia Manchineri, respectivamente. 2 Obtive a redistribuição ao ICMBio, o órgão irmão gêmeo do Ibama (de quando este foi divido ao meio na gestão Lula), onde estou desde 30 de julho último. 3 Trabalhamos com indígenas, extrativistas, pescadores, ribeirinhos, pequenos colonos e até, em menor quantidade, comunidades urbanas voltadas a gestão ambiental de algum território, em geral uma unidade de conservação.

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1. Gestão ambiental de terras indígenas, e um pouco dela no Acre

Desde junho de 2012 temos promulgado o Dec. n. 7.747, que regulamenta a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (Pngati), fruto de um amplo processo de consulta pública anterior, aos

indígenas e aos envolvidos com o tema. Até hoje, porém, pouco dela foi implementado de fato enquanto política

nacional, ou seja, com recursos, planejamentos e envolvimento das instituições. No ano de 2013 foi lançado um edital do PDPI para executá-la, com poucos recursos e apenas 16 terras (projetos) contemplados no país. Ou seja, ainda falta

muito, sendo uma política ainda quase que só teórica. Diz Márcio Santilli que a Pngati é da mais alta importância, afinal 13% do território do Brasil já está demarcado em TIs oficiais, mas não há recursos ou vontade política nessa direção.4

Haveria muito o que se dizer sobre a GATI, e há diversos autores e instituições se debruçando na teoria e prática do tema, mas, rapidamente, eu gostaria de destacar dois aspectos. Um é que os indígenas, historicamente

acostumados à abundância territorial sem limites, e vidas nômades ou seminômades, hoje são obrigados a mudar o foco

e se acostumar a terras limitadas e demarcadas, “para sempre confinados” (sendo algumas terras, inclusive bem pequenas, sobretudo fora da Amazônia). Portanto, eles precisam se preocupar cada vez mais com o bom manejo de

recursos naturais e gestão do território, pois precisam deles preservados para as futuras gerações, que inclusive estão crescendo em número. Outro aspecto é o de que, sabidamente, em diversos levantamentos produzidos por instituições

ambientais, as TIs são reconhecidas como áreas altamente preservadas, até mais do que as unidades de

conservação de proteção integral. Bem como, numa visão mais ousada, o modo de vida indígena aponta elementos que podem servir de modelo de escape ao próprio colapso ecológico da humanidade, com o agravar dos problemas

(segundo o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, citado por Moysés P. Neto,5 e autores do campo da Ética Ambiental). Sem dúvida pode em muito nos ensinar, sobre o convívio sustentável com a floresta (e outros ecossistemas)

e o etnoconhecimento vegetal e animal, por exemplo. A despeito da falta de vontade política do governo na PNGATI, já há algum avanço concreto no tema, em

boa parte por iniciativa dos próprio indígenas que procuram o MMA e instituições ambientalistas, em outra parte por

iniciativa deste Ministério, da Funai, dos OEMAs e do terceiro setor, como é o caso da CPI (Comissão Pró-Índio), no Acre, que há anos vem implementando projetos continuados de formação de agentes agroflorestais indígenas (AAFIs) e

apoio à GATI, na prática.6 A experiência do PAAV / Ibama também foi relevante, Brasil afora. Me recordo agora de pelo menos 6

estados em que houve trabalho assíduo junto a indígenas: Acre, Amazonas, Pará, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e

Maranhão. No Acre ele foi ativo de 2003 a 2012, mas foi mais produtivo, com recursos financeiros próprios (embora parcos - fazíamos “milagre” com eles) por 5 anos (de 2006 a 2010). Formamos no Acre e sudoeste do Amazonas um

total de 506 agentes, representantes de outros tantos agentes “informais” de suas comunidades, pois eles eram multiplicadores de toda uma práxis de gestão. Destes, na ativa (sem contar com as desistências), permanecemos ao

final com 172 indígenas, de 19 etnias (as 15 do Acre e mais 4 do Amazonas), de todas as terras povoadas no estado e

algumas no Amazonas (perfazendo 44 terras / áreas indígenas). O Programa no Acre funcionava a partir de cursos densos de 45 horas, envolvendo o principal da

legislação ambiental pertinente em cada caso, noções de ecologia e da questão ambiental, práticas de gestão e educação ambiental, bem como de vigilância e fiscalização dos territórios. Os 15 cursos que ministramos geralmente

possuíam públicos mistos, entre indígenas, extrativistas e pequenos colonos, por exemplo, embora alguns foram somente com indígenas. A integração e troca de experiências destes membros de populações tradicionais de diversas

origens, áreas e municípios diferentes era riquíssima para eles. Também procurávamos usar linguagem didática a partir

de fotos, figuras e vídeos, pois parte do público era analfabeto ou semianalfabeto, e técnicas participativas durante todo o curso, com dinâmicas e artes.

O Programa caiu como uma luva aos indígenas, que em muito se satisfaziam com o andamento, nos procuravam bastante, e sempre tentávamos apoiá-los como podíamos. O motivo central da cooperação exitosa entre os

indígenas e o Ibama, ao meu ver, é o fato da identificação profunda do indígena com sua terra, com a defesa

constante de seu território e recursos naturais. Por exemplo, quanto à vigilância e fiscalização ambiental contra invasores (que roubam caça, pesca e madeira e podem cometer outras infrações como desmate, queima, biopirataria e

captura de animais silvestres para tráfico), os indígenas sempre praticam, independente de apoio externo ou não, e já estão acostumados a encaminhar os invasores à polícia e/ou ao Ministério Público mais próximo. Isso é possível devido

à forte coesão e organização comunitária7 dos indígenas em cada aldeia e TI, bem como sua forte identificação com a própria terra, a natureza. Estas são questões centrais indígenas, e é por isso que antropólogos tanto insistem no fato de

4 Disponível em http://racismoambiental.net.br, de 19/07/2013. 5 Disponível em http://racismoambiental.net.br, de 07/07/2014. 6 Há diversas iniciativas exitosas resultantes, como implementação de agrofloresta, produção de frutas, criação de peixes e pequenos animais domésticos, educação ambiental, gestão de resíduos, saneamento, e vigilância e fiscalização de territórios. 7 A comunidade para os indígenas é bem coesa. As próprias relações de parentesco entre eles são ampliadas para além das relações sanguíneas, tecendo redes sociais fortes, intra e intercomunitárias, de trocas e ajuda mútua contínuas.

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que se pode até mesmo exterminar uma etnia indígena se uma hidrelétrica os expulsa de seu território natal, por exemplo.8

Voltando ao assunto, portanto, por meio do PAAV / Ibama, procurávamos apoiá-los com algum recurso

próprio para gasolina e alimentação (para os mutirões de vigilância, da Resolução Conama n. 03 de 1988), redigindo projetos para editais ambientais, indo às comunidades e dando palestras ao conjunto delas, observando e orientando

atividades práticas de gestão ambiental dos agentes e seus colegas. Bem como, prestávamos apoio ajudando-os a se integrar a redes de governança ambiental local e global (fazendo a ponte entre eles e órgãos públicos, ONGs e outras

instituições). Algumas TIs foram bastante beneficiadas com o Programa, é o caso, por exemplo, da TI Colônia 27, a

qual, com dezenas de famílias, possui somente 300 hectares, encostada à cidade de Tarauacá, e quando receberam a terra estava quase toda degradada com pastagem. A partir do primeiro curso do PAAV / Ibama em 2002 (na época,

ministrado por servidores de Brasília), os indígenas de lá “vestiram a camisa” ambiental e agroecológica, tiraram todo o gado e foram recuperando pouco a pouco toda a área de pasto em lindos pomares e SAFs, e hoje são professores e

referências para indígenas de várias TIs, sediando cursos e encontros. Concluindo, no caso do Acre, nosso Programa veio enriquecer o trabalho já efetuado há mais de duas décadas pela CPI, por meio dos AAFIs, aprimorando a formação

deles e envolvendo outros colegas seus como agentes ambientais voluntários. Fomos até aonde a instituição e os

recursos financeiros permitiram, com alta produtividade, até que o Programa foi oficialmente extinto pelo Ibama em maio de 2013.

No Acre as etnias indígenas costumam ser vistas como preservadoras, “ecológicas”, bem como, felizmente, aqui há uma situação de relativa ausência de conflitos de terra (exceto algumas pendências pequenas em

comparação com o restante do Brasil, como as demarcações das TIs Seringal Curralinho, Nawa e Kuntanawa). No geral,

também, pode-se dizer que as grandes degradações e conflitos socioambientais que vêm ocorrendo amiúde no Brasil ainda não chegaram, com força, no Acre, ou, o capital ainda não solapou a maior parte dos modos de vida das nossas

populações tradicionais. É claro que existem problemas, como a aprovação do milho transgênico pelo governo atual de Sebastião Viana (PT) que desrespeitou a própria lei estadual,9 algum desmate e queima ilegal, retirada de madeira ilegal

e planos de manejo madeireiro permissivos e não fiscalizados,10 etc. O problema de venda de carne de caça aqui no

Acre é seríssimo, com fortes quadrilhas, entranhado na má “prática cultural” de cidadãos urbanos, entre eles servidores públicos, políticos e membros do poder judiciário, até de alto escalão (!!!). Bem como será muito problemática a

exploração de petróleo e/ou gás natural que se vislumbra na região do Juruá (de alta relevância ecológica e permeada de UCs e TIs), e a passagem de rodovia e/ou ferrovia de Cruzeiro do Sul (AC) a Pucallpa (Peru), que sangrará o Parque

Nacional Serra do Divisor. As experiências exitosas de indígenas no Acre são diversas e presentes em praticamente todas as TIs e

áreas. Há iniciativas de SAFs, pomares, enriquecimento de capoeiras com madeireiras e frutíferas, criação de peixes e

pequenos animais, manejo de recursos naturais, artesanato com beneficiamento de produtos não-madeireiros (de sementes, palha, algodão – tecelagem, seringa – com destaque aos produtos encauchados da TI Nova Olinda, frutas –

como o batom de urucum da TI Rio Gregório), etc. Os indígenas costumam ser muito produtivos em produção de mudas plantio, por exemplo, é o caso dos Kuntanawa, que, no interior da Resex Alto Juruá, doam milhares de mudas,

anualmente, aos extrativistas vizinhos.11

Os indígenas acrianos também têm se destacado por seus festivais culturais, alguns bastante abertos a visitantes de fora, como o da Aldeia Nova Esperança, na TI Rio Gregório, que anualmente recebe centenas de visitantes

não-índios (“nawás”, como eles chamam) do Brasil e do mundo, agenciados por empresas de turismo. Há o festival das TIs Jordão e Independência, já crescendo anualmente, e há festivais menores em cada terra, cada vez mais organizados

e produtivos. Os festivais para eles são peça chave na afirmação e valorização cultural, no traçado de alianças interétnicas, interterras e deles com nawás brasileiros e estrangeiros em geral, que possam apoiá-los em projetos

8 Dizem os autores da Plataforma Dhesca “vida digna a estes povos, visto que a produção e reprodução de seu modo de ser está intimamente ligada ao espaço da ancestralidade, da terra (DHESCA, 2014, p. 17).” 9 Lei Estadual n. 1.534, de 22/01/2004, que "veda o cultivo, a manipulação, a importação, a industrialização e a comercialização de organismos geneticamente modificados (OGMs) no Estado do Acre". 10 Aliás os indígenas têm se preocupado amiúde com maciços manejos madeireiros na região do Rio Gregório, por exemplo, em que o governo vem construindo diversas serrarias de transbordo. Muitas destas áreas fazem divisa com a TI Rio Gregório, e milhares de hectares pertencem ao milionário televisivo “Ratinho”, cuja fama não é nada boa nestas paragens. O manejo madeireiro é muito criticado por cientistas e ambientalistas por, de fato, não ser ecologicamente sustentável, não ser bem monitorado pelos órgãos ambientais e abrir brecha futura ao desmate para instalação de pecuária, além de outros impactos socioculturais normalmente desprezados pela cadeia econômica envolvida (com boas exceções, no entanto). 11 É preciso fazer pelo menos outras duas menções honrosas aos Kuntanawa. Eles foram os protagonistas, na pessoa do patriarca “Seu Milton” e toda a família, junto a colegas extrativistas, na criação da primeira reserva extrativista do mundo, a Resex Alto Juruá. Na época, ainda não tinham retomado sua etnicidade Kuntanawa (cf FRANCO, 2008), mas há alguns anos sim, e estão demandando, então, uma TI específica. Outra é a do liderança jovem Haru Kuntanawa (AAV formado pelo Ibama, inclusive) que tem se destacado na defesa ambiental local à internacional, sendo membro de uma comissão da ONU pela paz mundial, e fazendo alianças com lideranças indígenas e ambientalistas do exterior. Aliás, há diversos indígenas acrianos famosos internacionalmente por seus trabalhos e presenças em convenções mundiais, como é o caso também dos AAVs Benki Pianko (da etnia Ashaninka), e Nilson Saboia (Tuwe, da etnia Huni Kuin, cineasta).

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futuros, bem como, este é um fator que amplia a consciência indígena da população não-indígena em geral, o que é de fato positivo e uma necessidade, diante dos novos levantes racistas anti-indígenas que vem surgindo com crescente

força no Brasil (falaremos desse tema mais adiante). Se os festivais são, sem dúvida, positivos, até pelo aporte direto de

recursos financeiros pelo etnoturismo da ocasião e pela venda de artesanato, são também carregados de riscos, como sempre alertamos aos indígenas, porque com os visitantes vêm numerosos impactos culturais, possíveis doenças,

possíveis crimes ambientais “na surdina”, possíveis crimes culturais de uso indevido de imagens e de apropriação de patrimônio imaterial (kenês, cantos, conhecimentos de pajelança), portanto é preciso se ter um alto nível de cuidado,

triagem e orientação aos visitantes, para minimizar os impactos. A simples presença do nawá urbano em sua terra,

repleto de botas chiques, roupas, mochilas, equipamentos audiovisuais sofisticados, etc, já cria um enorme desafio aos indígenas para reverter a tendência de saída de indígenas para as cidades.

Outro aspecto relevante das TIs do Acre (e que certamente devem se verificar em TIs brasileiras), que salta aos olhos dos observadores, é a democracia, transparência, harmonia de gestão e convivência internas. Tudo é

resolvido em longas e harmônicas reuniões, e os lideranças são legítimos representantes do seu povo. Quando não estão desempenhando bem seu papel, são trocados por outros. Os indígenas em sua coesão de laços coletivos internos

são muito avançados nesses aspectos de organização social. Sabem resolver bem problemas internos, tendo eles

próprios, às vezes, seguranças em ronda e “cadeias” (para situações-limite), já que tudo é resolvido no consenso, e na máxima inclusão das demandas. Esse aspecto democrático é facilitado, sem dúvida, pelo relativamente baixo

contingente populacional, mas o fator determinante é o cultural. E por falar em cultura, o que é central, realmente, em todos os casos, e também para o êxito da gestão

ambiental e territorial, é a valorização cultural. Muitos indígenas têm lutado com afinco para pesquisar com seus

anciãos a própria cultura, reavivar a língua materna e todos os elementos, da arte à cosmologia, dos conhecimentos agrícolas e ecológicos. Se os indígenas em seu processo de contato crescente com a cultura ocidental urbana perderem

sua cultura, futuramente poderão correr o risco de perder os territórios, pois o capitalismo globalizante se estende a tudo, a batalha pelo território inevitavelmente chegará a todos os rincões12 e, sem a cultura, a tendência é que o poder

reinante destine apenas algumas dezenas de hectares por família, como no modelo da reforma agrária. Com a cultura

preservada, justifica-se, além da ligação visceral dos indígenas com seu território materno por questões sagradas e dos seus cemitérios, por exemplo, a necessidade de sobrevivência em função da disponibilidade de recursos naturais vastos,

incluindo água, vegetais e animais de caça e pesca, entre outros elementos. Uma outra boa característica que é comum às 15 etnias indígenas do Acre é o uso da bebida ayahuaska

(chamada por eles de cipó, nishi pãe, huni, kamarãpi e outros nomes, a depender da etnia e contexto). Sabe-se que o xamanismo com uso de plantas de poder,13 ritualizadas em contextos sagrados, é usado por praticamente todas as

etnias brasileiras, mas a ayahuaska possui de fato um dom especial de coesão, união e harmonização do ser humano

com a natureza, e talvez ela tenha ajudado os indígenas acrianos a manterem um bom desempenho na gestão ambiental – é o que se torna nítido para nós, que também conhecemos esta bebida e sua ritualística.

Finalizando, do que pude observar em campo, as TIs acrianas estão num ótimo caminho de gestão ambiental, mas há 4 alertas importantes que eu gostaria de salientar, para os indígenas e os gestores que forem

trabalhar em cooperação com eles:

a) Como já foi analisado, a sempre central e presente necessidade da valorização cultural.

b) A segurança alimentar com base agroecológica local. Por conta da proximidade e/ou facilidade de acesso às

cidades, bem como do aporte de mais recursos financeiros regulares às famílias (tais como bolsas-família, auxílios-natalidade e aposentadorias), muitos indígenas têm alterado seus hábitos alimentares quase completamente, trocando a

plantação, caça, pesca e coleta pelos produtos industrializados mais baratos (macarrão, “frango de granja”, arroz

refinado do sul do país, suco “de saquinho - em pó”, e muitos outros itens), a maioria de baixo valor nutritivo, e de alto teor contaminante (agrotóxicos, transgênicos, corantes, conservantes, hormônios). É patente o crescimento de casos de

diabetes (por conta do excesso de açúcar), gastrite e câncer nos indígenas por conta dessa má alimentação. Ora, a segurança alimentar própria, além de ser pilar cultural, é vital a longo prazo para manter as sementes e mudas, os

conhecimentos e técnicos da rica agrobiodiversidade que eles possuem, por exemplo, os indígenas cultivam diversas

espécies de mandioca, cará, inhame e milho, para muito além do uso comum na cultura ocidental. Ou seja, é muito importante que sigam plantando, e sempre mais, inclusive frutas nativas e exóticas, espécies madeireiras e palmeiras

(para suas construções), etc, sem cair na tentação de usar o dinheiro para a (má) alimentação da cidade. Em termos de proteína animal, também, é importante o foco na criação de peixes e animais de pequeno porte (galinha, pato, ovelha,

porco – com os devidos cuidados do manejo de cada um), e até mesmo silvestres, para alimentação, ao invés da

criação de gado, de alto impacto e não recomendável ao bioma amazônico. Felizmente já são pouquíssimos indígenas acrianos que ainda mantêm gado em suas terras, e a tendência é diminuir os rebanhos, pelo que temos visto dos Planos

12 Principalmente no Brasil, em que os grandes latifundiários, os “ruralistas”, possuem muito poder político e estão avidamente se estendendo por vastos territórios, inclusive com expulsão de populações tradicionais (falaremos mais sobre isso adiante). 13 Os indígenas acrianos utilizam de muitas outras plantas de poder, componentes do rapé (incluindo o tabaco) e o muká, ou irarê, considerado ainda mais sagrada, de uso restrito a iniciados com autorização de um pajé, e que exige severas dietas para se utilizar.

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de Gestão Ambiental aprovados e revisados. Enfim, estes assuntos são do cotidiano dos AAFIs, mas é importante que obtenham mais apoio ao seu trabalho de multiplicadores, para garantir a manutenção e enriquecimento da

agrobiodiversidade pelas famílias das TIs.

c) É preciso mais cuidado com a gestão de resíduos sólidos e saneamento. Infelizmente, em muitas terras, apesar

dos agentes indígenas de saúde (AISs) e de saneamento (Aisans), estes itens têm sido negligenciados, ocorrendo diversos casos de poluição já evidentes, que contribuem em curto prazo em doenças como verminoses e infecções, e,

no longo prazo, câncer e outras doenças graves. Afinal, cada vez mais, os indígenas trazem produtos industrializados e

embalagens para as aldeias, bem como a população está aumentando e às vezes não se tem o devido cuidado com as águas servidas (esgoto), que fica espalhado em pequenos igarapés, açudes e em torno das casas. Destacam-se os

seguintes subitens, para os quais é necessário uma contínua e dedicada educação ambiental:

c.1) Cada família ou conjunto de famílias deve fazer banheiro ainda que simples, com fossas sépticas longe de corpos d’água, e orientem efetivamente a todos para não espalhar fezes pelos arredores.

c.2) Para as águas de lavagem de louças e roupas, é necessário fazer sistemas de drenagem adequados, se possível até tratar estas águas (há sistemas caseiros relativamente simples de se adotar).

c.3) Não lavar roupa ou louça com sabão em igarapés pequenos, e, em hipótese nenhuma, em açudes, pois estes

rapidamente eutrofizam (“apodrecem”), com o uso de sabão.

c.4) Evitar usar sabão, e usar mais sabão em barra tipo neutro do que os “azuis”, e os em pó. Evitar detergente e

cosméticos (shampoos, cremes), altamente poluentes.

c.5) Evitar o consumo de produtos industrializados, informar-se acerca dos mais tóxicos, usar somente o que se precisa

realmente. Fazer educação ambiental anti-consumismo, explicando à população tudo o que está envolvido no produto, da fabricação ao descarte na forma de lixo. Evitar a todo custo trazer embalagens para as aldeias (deixá-las nas

cidades), usar paneiros e sacolas permanentes.

c.6) Efetuar a coleta seletiva de lixo casa a casa efetivamente, pelo menos para separar entre orgânicos, recicláveis, tóxicos e rejeitos. Os orgânicos devem ser destinados à compostagem para adubo (e não espalhados em volta das casas

ou nos barrancos dos rios, pois assim poluem). Os recicláveis podem ser reaproveitados na aldeia mesmo, para alguma

utilidade de armazenagem ou até para artesanato, e o excedente pode ser comercializado ou doado nas cidades (há prefeituras se preparando para a coleta nas aldeias, senão os próprios indígenas devem se organizar para levar). Os

rejeitos e tóxicos também devem ser levados às cidades, sendo que os tóxicos devem ser cuidadosamente separados e jamais deixados ou enterrados nas aldeias, são eles os mais comuns: pilhas e baterias, lâmpadas fluorescentes,

remédios e tintas. No caso de não se conseguir, esgotando-se diversas tentativas, levar o lixo para a cidade, é

necessário enterrar na aldeia mesmo, num lugar organizado, seguro, sinalizado e distante de corpos d’água, porém, repito, jamais enterrem os resíduos tóxicos – estes devem retornar à cidade, custe o que custar.

d) Manter as iniciativas sustentáveis como produção de artesanato, cadeias produtivas de não-madeireiros em geral,

etnoturismo (incluindo os festivais e olimpíadas – porém com os devidos cuidados exigidos no controle da entrada e permanência de nawás nas aldeias, por exemplo, é recomendável que as arenas, kupixaus14 e hospedarias sejam

distantes das aldeias em si, cujo acesso deve ser bem mais restrito).

Os indígenas são os nossos exemplos de vida ecológica, portanto, vamos manter as aldeias

ecologicamente, como as ecovilas que tantos nawás lutam para manter em meio ao capitalismo degradador, pois é isto que vai nos sustentar, cada vez mais, no futuro!

2. O contexto indígena e ambiental, no Brasil e no mundo

É impossível falar em gestão ambiental de terras indígenas sem olhar para o contexto geral de como anda a questão ambiental e a questão indígena no Brasil e no mundo. É preciso que se esteja atento aos retrocessos

que estão ocorrendo e propostos nas políticas indígena e ambiental em nosso país, e na tendência se o cenário político

não melhorar, para que possamos, crescentemente, atuar em movimentos sociais. No caso dos indígenas, populações tradicionais e afins, pela garantia de seus direitos humanos e territoriais, tão suadamente conquistados após anos de

dominação colonial. A questão ambiental, ou ecológica, é a mais importante que existe, ao meu ver, e conforme muitos

14 Kupixau ou kupixawa é o nome dado aos “chapéus de palha” ou arenas cobertas, destinadas a reuniões, festas e rituais sagrados.

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cientistas e atuantes na área. É a questão da própria vida, da sobrevivência humana e de todas as espécies, da manutenção da água potável disponível, do solo saudável agricultável e do próprio clima, pois, como se sabe, somos

fragilmente dependentes da estabilidade climática. Hoje já é de mais amplo conhecimento que estamos num caminho

rápido ecocida, que ruma à extinção da própria espécie humana, e não só de tantas vegetais e animais que ocorre em ritmo alarmante. As mudanças climáticas com eventos extremos (enchentes e secas, muito calor ou muito frio), a

poluição e contaminação de vastas áreas (terras, rios, oceanos e atmosfera), a extinção de espécies, a perda de agrobiodiversidade e conhecimento tradicional associado, a escassez de recursos naturais, as guerras pela água e por

petróleo, a escravidão e contaminação de trabalhadores com agrotóxicos e mineração, a expulsão de moradores

(indígenas, ribeirinhos e populações tradicionais) e degradação de vastos territórios pelas hidrelétricas, etc, são sinais de colapso socioambiental e ecológico de toda uma cultura, de todo um modelo de “civilização”.

Apesar disso, os grandes blocos político-econômicos mundiais, capitalistas, fecham os olhos e os ouvidos, e as convenções ambientais mundiais pelo clima, pela biodiversidade e outras, seguem apenas no papel. A

governabilidade global de tais questões será inevitável, pois os impactos já são globais, por exemplo, o mundo está sofrendo a radioatividade da usina nuclear japonesa de Fukushima que explodiu sob uma tsunami em mar/2011

(embora se escamoteie essa informação na grande mídia). A falada “desmaterialização da economia” ou a “economia

pós-industrial”, que seria ambientalmente mais adequada, ainda é ínfima. A “economia verde” e o “desenvolvimento sustentável”, termos quando usados pelo mercado, são um conjunto de paliativos, muitos deles questionáveis, ou que

não passam de um “marketing verde” com propaganda enganosa. Os desastres socioambientais na China e África, por exemplo, que sustentam boa parte da industrialização e fornecimento de matérias-primas ao consumismo mundial, são

catastróficos, mas de pouca atenção, já que suas populações são mais pobres e dominadas num colonialismo que nunca

deixou de existir. Vivemos mesmo numa situação de “genocídio planetário”, denunciado por exemplo num manifesto de mais de 250 cientistas (IHU, 2014), ou numa sociedade suicida, ou ecocida, como apontam ecólogos e analistas há pelo

menos duas décadas. Fatalmente precisaremos de fortes contingências e planificações no futuro para se limitar o consumo e a

poluição. Por exemplo, não é possível seguir incentivando ao extremo a indústria automobilística, porque as cidades

viram um caos de carros, totalmente inviáveis. E é fato de que é muito difícil construir esta governabilidade de forma democrática, pois a ONU e seus organismos, sabe-se, ou são inefetivos ou não democráticos, e a tendência é,

novamente, a repetição da supremacia dos grandes blocos político-econômicos dos EUA (principalmente), Europa e Japão sobre os demais, cujo desenvolvimento se dá a custa dos outros. As iniciativas sustentáveis ainda são muito

tímidas. Apesar disso há bons sinais, como programas da FAO, do Pnuma e do PNUD, mas que em muito precisam crescer.

Na verdade precisaríamos de outro modelo de desenvolvimento, pautado pela igualdade e justiça social

ampla, democracia, Ética Ambiental, pela Economia Ecológica, e aí surgem ideias muito pertinentes como a teoria do Crescimento Zero, postulando que o crescimento econômico não é viável por definição, num planeta limitado.15 Mas

quando, e se chegaremos, a essa virada positiva na humanidade, é uma incógnita difícil de responder, e não se vislumbra nada parecido no médio prazo, antes o contrário, a não ser louváveis iniciativas pontuais de pequena escala.

Algumas constituições como a da Bolívia e do Equador já incluem temas da Ética Ambiental, na linha do “bem viver” e

do direito intrínseco das demais espécies e dos elementos naturais existirem (visão ecocêntrica, ao contrário da antropocêntrica), mas a prática de seus governos tem sido opostas ao que está escrito!

O próprio capitalismo é, intrinsecamente, socialmente injusto e ecologicamente predatório. Além disso, é intensamente globalizante, como já diziam Karl Marx e Friedrich Engels em seu famoso Manifesto Comunista de 1848,

expandido seus domínios a todo o espaço global e territórios, aos poucos solapando os povos “primitivos” ou não-capitalistas existentes (neles se incluem as populações indígenas). Ou seja, a não ser que tenhamos um firme

propósito de proteger as culturas originárias indígenas e de populações tradicionais em geral, que

possuem relações não-monetárias com a natureza, vasto conhecimento e o direito intrínseco a manterem sua existência dessa forma, com amparo jurídico e de políticas públicas fortes, a tendência do capitalismo

é de homogeneização de todos os povos na cultura ocidental dominante, com todo o seu arcabouço anti-ecológico e socialmente excludente.

No Brasil não é diferente, e mais, é um dos piores exemplos. Nosso governo, em particular na gestão

federal em vigor chefiada por Dilma Roussef (do PT, em forte aliança com o PMDB), segue o mais anti-ambiental jamais visto, como observam diversos analistas. Com o seu PAC, o governo pauta-se no crescimentismo econômico de curto

prazo a todo custo (e não “desenvolvimento”), e pior, enriquecendo as oligarquias das mais degradadoras possíveis para manter nosso modelo primário exportador. Produzimos soja, gado e outros produtos agropecuários (empanturrados de

agrotóxicos e transgênicos, sendo o Brasil campeão mundial de consumo de agrotóxicos desde 2008), alumínio, ferro e

outros minerais de baixo valor agregado (e de alto impacto ambiental). A ênfase econômica é esta, em que o governo apoia sobremaneira os conglomerados econômicos envolvidos, como os ruralistas do agronegócio, negligenciando

outros setores, e com quase nenhum investimento em CT&I para que pudéssemos alavancar setores econômicos de

15 Na economia ecológica, consultar autores como Robert Constanza e Clóvis Cavalcanti, e sobre o Crescimento Zero ou Decrescimento, consultar N. Georgescu-Roegen, Meadows et al. (Limites do crescimento, de 1972), Herman Daly e Serge Latouche.

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ponta. Na ampliação da infraestrutura, o Brasil tem priorizado as desastrosas mega-hidrelétricas na Amazônia,16

também refém do grande poder das gigantes empreiteiras, entre outros problemas como rodovias sem os devidos

cuidados ambientais. Temos o caso da insana UHE Belo Monte, cujos empreendedores já sofreram dezenas de processos judiciais e ações civis públicas, cujas condicionantes do licenciamento ambiental não têm sido obedecidas, e

cujos impactos socioambientais e ecológicos são gigantes. Pelo mesmo caminho seguem as UHEs dos Rios Tapajós e Teles Pires. Recentemente, tivemos o desastre da enchente histórica do Rio Madeira, agravado pelas UHEs Jirau e Santo

Antônio, próximas a Porto Velho, que causou calamidades públicas em Rondônia, Acre e Bolívia. Como se não bastasse,

o Brasil vem estendendo suas obras, em parcerias do governo federal com as empreiteiras, para construir algumas UHEs no Peru e na Bolívia, cujos impactos previstos também são enormes, inclusive às bacias hidrográficas do Acre e

Rondônia. Em todos os casos destas hidrelétricas em curso, o licenciamento ambiental tem sido frágil17 e, na

questão indígena e de populações tradicionais ou residentes afetadas ou expulsas, tem sido trágico, sem nenhum cumprimento da Convenção 169 de 1989 da OIT (consulta prévia, livre e informada). Às vezes há até assassinatos de

lideranças, como foi o caso dos Munduruku por conta de sua resistência às hidrelétricas dos Rios Tapajós e Teles Pires.

Tal fato motivou, inclusive, a edição de um decreto federal para a entrada da Força Nacional nas áreas a serem afetadas por estes mega-empreendimentos, algo tipicamente ditador (Dec. n. 7.957 de 2013). O governo também desafetou

cerca de 150 mil hectares de sete UCs na Bacia do Rio Tapajós (por medida provisória, transformada na Lei n. 12.678 de 2012) para as futuras hidrelétricas. E as mazelas oriundas da construção das UHEs, como aumento da desordem e

crimes urbanos e no entorno de Altamira, são alarmantes.18

Há outras linhas de ação ambientalmente terríveis deste governo, como o apoio aos agrotóxicos e transgênicos (com instâncias de aprovação e legislação flexibilizadas), a exploração de petróleo na Amazônia e no pré-

sal, a abertura de leilões para a exploração de xisto (gás de folhelho, ou fracking – intensamente impactante) e a proposta de novas usinas nucleares.

Tudo isso faz do atual governo o pior que já se viu na área ambiental e, mais a frente, veremos que é

também o mais anti-indígena. Some-se a isso o fato de que nosso governo é oligárquico, patrimonialista, coronelista, que não largou

sua herança de ditadura e exploracionismo colonial.19 Um governo de interesses próprios, e um dos mais corruptos do mundo. Cargos do executivo e legislativo são conquistados na base de doações e alianças com grupos econômicos de

grande histórico anti-ambiental e de injustiças sociais. E o pior, neste governo de elites, temos uma elite “burra”, que aposta nos modelos da mais alta exploração social e ecológica, sem uma boa visão da realidade. No judiciário os cargos

superiores são nomeados, e não fogem à regra e, infelizmente, nos juízes concursados, também há bastante corrupção,

e quase nenhuma consciência ambiental ou indígena.20 Some-se a isso a ineficiência e gigantismo burocrático da própria estrutura estatal. Precisamos, sobremaneira, de uma boa reforma política, democrática e popular.

Os órgãos públicos que trabalham com meio ambiente, populações tradicionais, indígenas, da agricultura familiar e afins, estão extremamente sucateados, até mesmo com golpes intervencionistas em alguns momentos, como

o Ibama, o ICMBio, a Anvisa, a Funai e o Incra. Os orçamentos e políticas públicas nestes assuntos também são ínfimos.

Da mesma forma, sofremos de falta de um bom sistema educacional e cultural, de forma até proposital, das elites capitalistas. Para manter o consumismo e as elites no poder, é preciso manter a população alienada e

desinformada. Daí a péssima programação da mídia dominante, e o sucateamento da educação. Nesse contexto, vemos que ainda é muito pobre a consciência ambiental e indígena da sociedade, e em alguns casos mais graves de municípios

conflituosos de domínio ruralista ou dos mega-empreendimentos, as elites dominantes têm feito verdadeiras campanhas

16 Há décadas se sabe que a Amazônia é inadequada a hidrelétricas, pois o impacto socioambiental e ecológico é enorme. Hoje se sabe mais, por exemplo, que elas são verdadeiras “fábricas de metano”, um poderoso gás estufa (palestra do brilhante pesquisador do INPA, Philip Fearnside nesta SBPC, em 25/07/2014). No que se refere às PCHs (pequenas centrais hidrelétricas), também, o impacto tem sido considerável, pois seria necessário uma avaliação ambiental estratégica (AAE) de toda uma região, pois várias PCHs somadas são também de alto impacto, mas isso nunca é feito, outrossim, temos licenciamentos ambientais pontuais cada vez mais simplificados. Há dezenas de hidrelétricas previstas ou em construção na Amazônia, Pantanal (um bioma que também é muito sensível) e outras regiões brasileiras, em detrimento de um parco investimento em energias alternativas, eficiência energética e repotenciação das UHEs existentes. Além disso, sabe-se que a grossa parte da energia elétrica prevista destina-se às indústrias energointensivas como a do alumínio, e que a demanda desta energia não é assim tão grande como o governo anuncia (falácia do perigo de “apagões”). 17 Tanto pela crescente flexibilização da legislação a respeito quanto pelo sucateamento dos órgãos licenciadores (Ibama e OEMAs). Neste mês o governo anunciou que breve sairão novas medidas de flexibilização, algo já perigosamente apelidado de “licenciamento express”, para agilizar e facilitar os empreendimentos. 18 A este respeito, consultar diversas matérias nos sites de Telma Monteiro, Combate ao Racismo Ambiental e Ecodebate, e textos do Prof. Rodolfo Salm, da UFPA em Altamira, de Claret Fernandes, de Célio Bermann e de A. Oswaldo Sevá Filho. 19 E às vezes, até hoje, os ativistas sofrem perseguição e espionagem. A ditadura parece ter amansado e trocado de mãos, porém não ter sido extinta. 20 Na questão dos agrotóxicos e transgênicos observamos muito as empresas multinacionais ganhando ações na justiça, vergonhosas, contra a Anvisa, que embora sucateada, é um órgão que procura de toda a forma proteger a saúde pública da população, no controle destes venenos.

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anti-ambientais e anti-indígenas, com pronunciamentos, panfletos e organizações incitando ódio na população, como se os indígenas e outros atores destas causas fossem “anti-progresso”, ou “anti-tudo o que é bom”.21 Estamos vivendo

uma nova onda de racismo indígena, presente também na grande mídia.

3. Detalhando o cenário indígena no Brasil: A ofensiva (ou barbárie) ruralista22

Na ânsia pela máxima expansão do latifúndio do agronegócio23 – esta é a verdade – as organizações ruralistas como a CNA e a FPA tem agido com força pela tomada de territórios indígenas, bem como pelo

enfraquecimento de leis ambientais (como ocorreu com o novo Código (Des)Florestal, Lei n. 12.651 de 2012, que vergonhosamente anistia 10 anos das multas ambientais, por exemplo) e indígenas, e lançado PLs nocivos, indígena e

ambientalmente. Em algumas regiões, estamos vivendo uma verdadeira barbárie, com destaque sem dúvida ao Mato Grosso do Sul, em que Guaranis, Kaiowás e outras etnias, confinados e expulsos, têm sofrido um verdadeiro genocídio.

Situações terríveis também, atualmente, têm sido vividas pelos Munduruku24, Tenharim (aviltados por madeireiros

ilegais),25 e também ataques aos Terena (MS), Tupinambá (BA), Kaingang (PR) e Awá-Guajá (MA, também invadidos por madeireiros), para citar apenas os mais graves e recentes. Em todos os casos têm havido assassinatos de lideranças

indígenas, prisões violentas e injustas, perseguições e incitações de racismo indígena nos municípios.26 Na última década, 360 indígenas foram assassinados nos conflitos de terra (APIB, mai/2014).

Também está crescendo sobremaneira o índice de suicídios entre indígenas, maior no Mato Grosso do

Sul, presente até mesmo em adolescentes jovens. Nesse estado, foram 928 suicídios em 28 anos (mais de 33 por ano), e os índices triplicaram na recente década.27 Nesse estado também foram 273 assassinados nas últimas três décadas. Lá

é comum os jagunços dos fazendeiros entrarem nas áreas ou acampamentos indígenas atirando. Recentemente a sede da Funai na TI Guarani foi invadida e os computadores da sede roubados, com importantes documentos.28 Vários

indígenas foram envenenados com cachaça adulterada. E ocorrem muitas mortes por doenças, desnutrição e atropelamentos (estando vários acampamentos deles em beira de estrada). Afora as doenças e outros problemas sociais

comuns do êxodo às cidades (como mendicância, alcoolismo e prostituição, o que vem acontecendo recentemente nas

comunidades expulsas pelos canteiros da UHE Belo Monte, e ocorre em todos os casos dos atingidos por barragens, já que nunca há políticas públicas suficientes de atendimento a estas comunidades). No Mato Grosso do Sul vive a

segunda maior população indígena do país, são 80 mil indígenas, que ocupam apenas 0,2% do estado.29 Na TI Dourados, encostada na cidade homônima, vivem 13 mil indígenas encurralados em 3,6 hectares.

No Mato Grosso do Sul a barbárie da ofensiva ruralista é caso para intervenção da ONU há muito tempo,

é praticamente uma guerra civil em início, uma “crise humanitária” (DHESCA, 2014). Os ruralistas de lá chegaram a organizar o “Leilão da Resistência”, conclamando e ludibriando até pequenos produtores a seu favor, vendendo bois e

angariando mais de R$ 1 milhão para contratação de milícias particulares para expulsar indígenas das terras em conflito. Felizmente, até o momento, o Ministério Público bloqueou este dinheiro. Nesse estado o racismo indígena foi agravado

por situações locais, pois as etnias Guarani e Kaiowá são abundantes no Paraguai, e parte delas lutou do lado de lá, na

guerra entre o Brasil e este país. São chamados de “bugres” e outros xingamentos com a maior normalidade, no cotidiano das cidades.

Há mais de uma década, pelo menos, o CIMI e as organizações indígenas do Mato Grosso do Sul vêm publicando livros, relatórios e cartas às autoridades e à sociedade denunciando as graves violações de direitos humanos

indígenas locais. Recentemente, houve o relatório da Plataforma Dhesca, igualmente contundente (DHESCA, 2014). O

21 É o caso de vários municípios no Mato Grosso do Sul, Humaitá e Manicoré, no Amazonas, e Altamira, no Pará. 22 Ver o site www.republicadosruralistas.com.br, lançado pelas organizações ISA, CTI, CIMI, APIB e Greenpeace. 23 Em “agronegócio” lê-se a produção de vastas monoculturas de exportação com baixo valor agregado, com destaque à soja, sempre aliadas ao alto consumo de agrotóxicos e transgênicos, em que o setor ruralista é também aliado das multinacionais do ramo, como Monsanto, Syngenta e Bayer. 24 Houve um violento ataque da PF em suas terras em 2013, supostamente para conter garimpeiros, mas quem sofreu violência foram os indígenas, um deles assassinado. Logo após os Munduruku terem contundentemente feito uma série de manifestos locais e em Brasília, diretamente com os maiores chefes de estado, contra as 7 hidrelétricas previstas que lhes afetam. Recentemente, em Jacareacanga, 70 professores Munduruku foram demitidos sem justa causa, sua casa de apoio foi incendiada e houve violência física em confrontos. O Ministério Público obrigou a prefeitura a recontratar os professores. O Dec. n. 7.957 que permite à Força Nacional conduzir estudos de licenciamento ambiental de hidrelétricas surgiu logo após esse contexto de resistência às hidrelétricas dos Rios Tapajós e Teles Pires. 25 O cacique Tenharim foi assassinado em dezembro de 2013 após ter denunciado os madeireiros invasores ao Ibama. Recentemente houve uma grande armação em que assassinaram três não-índios dentro da sua terra, e acusaram injustamente 5 indígenas por isto, os quais estão presos. Paralelamente, a sede e veículos da Funai em Humaitá (AM) foram invadidos e incendiados. As elites incitam ódio e racismo indígena na população deste município. 26 O Brasil não só tem sido liderança em assassinatos de indígenas como também de ambientalistas e ativistas sociais. 27 Disponível em http://racismoambiental.net.br, de 23/05/2014. 28 Aliás é comum servidores da Funai, Incra, Ibama e ICMBio serem perseguidos em suas ações pró indígenas e meio ambiente, quando poderosos fazendeiros, grileiros, madeireiros e outros criminosos são confrontados. 29 Enquanto isso, nesse estado há pelo menos 5 milhões de hectares degradados, improdutivos (dados da Embrapa citados por Márcio Santilli, apud CHIARETTI, 2014).

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Ministério Público sempre ajuda, mas no final os juízes têm sido morosos, brandos ou tendenciosos aos ruralistas. De qualquer forma, o caso de barbárie no Mato Grosso do Sul merecia soluções urgentes e sérias. Felizmente, lideranças

indígenas foram à ONU denunciar as situações que vivemos, e também a um encontro na Universidade de Coimbra,

Portugal, promovido pelo sociólogo Boaventura de Sousa Santos para apoiar o movimento social indígena, de populações tradicionais e camponesas.30

Os parlamentares federais ruralistas diretos são ao menos um quarto do total, além dos apoiadores. Eles têm lançado diversos PLs anti-indígenas e anti-ambientais. E o que é pior, há conivência tácita e ativa do governo

executivo federal, pois lançou a terrível Portaria n. 303 de 2012 da AGU. Está em vigor desde fevereiro de 2014, apesar

de ter sido suspensa por um tempo devido à pressão social. Essa Portaria é dos piores golpes anti-indígenas, pois abre as terras a empreendimentos em geral, viola a Convenção 169 da OIT, paralisa demarcações e ampliações e obriga à

revisão as demarcações existentes. E como diz Márcio Santilli, do ISA, boa parte dos conflitos fundiários ocorrem porque o governo não cumpre sua obrigação de indenizar os fazendeiros que possuíam titulação idônea nas terras indígenas

originárias, ou seja, há tremenda má vontade política. A pretexto de culpar o procedimento de demarcação de TIs e a Funai, têm sido propostos outros métodos, tais como submissão prévia dos processos aos Ministérios de Agricultura e

de Minas e Energia (claramente para priorizar beneficiar ruralistas e hidrelétricas)31 e paralisação de todos os processos

de demarcação em curso, inclusive os conclusos em que não há nenhum conflito!32 Ora, os procedimentos de demarcação já são densos e participativos com todos os atores envolvidos, este não é o problema. Pior ainda é a PEC n.

215 de 2000, relançada com força total, que transfere ao Congresso Nacional a tarefa de demarcar TIs. Isto não só é absurdo e infactível como é mais um golpe anti-indígena, que vai gerar mais conflitos e judicialização (segundo Márcio

Santilli e outros analistas). Inúmeras organizações e todo o movimento social indígena têm se manifestado frontalmente

contra esta PEC. Até o governo executivo já se declarou contra, mas às vezes silencia e/ou é contraditório, pois já houve manifestações favoráveis de um procurador geral da República (Eugênio Aragão).

É estarrecedor ver como os indígenas, já afrontados desde o “descobrimento” há mais de 500 anos, tendo lutado e conquistado uma série de direitos e territórios, principalmente após o importante marco da Constituição

Federal de 1988 (CF-88), hoje enfrentam uma nova onda de ataques, tão forte quanto os genocídios iniciais, em pleno

século XXI. Lembrando que houve um “alvará” do Brasil-colônia de 1680 que já garantia terra aos indígenas que ali habitassem antes do descobrimento, e que a CF-88 deu um prazo de cinco anos para demarcar todas as TIs existentes,

ou seja, estamos com pelo menos 21 anos de atraso oficial na demarcação de terras. Além do passivo das demarcações, há importantes PLs positivos engavetados. O PL n. 2.057 de 1991, do

novo Estatuto dos Povos Indígenas, está parado no Congresso Nacional há 23 anos. Ainda vale o Estatuto do Índio da Lei n. 6.001 de 1973, ruim e desatualizado, “com o propósito de preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional”, que não respeita o direito à sua particularidade cultural. A CNPI, Comissão

Nacional de Política Indigenista, continua dominada por interesses anti-indígenas e apenas consultiva. Deveria ser renomeada para “Conselho”, ser democraticamente representativa dos indígenas e deliberativa, uma luta também

antiga do movimento (PL n. 3.571 de 2008). Outro projeto perigoso é o PLP n. 227 de 2012, um dos piores. É um projeto de “vale tudo”, dentro das

TIs, entre mineração, obras, projetos de assentamento, arrendamento ao agronegócio e até vilas urbanas. Na pretensão

de regulamentar o § 6º do Art. 231 da CF-88, “tudo” entra como “relevante interesse público da União”.

Na verdade, levantamentos apontam que existem “... mais de 100 PLs contra TIs, quilombos, UCs e reforma agrária. São ações ruralistas de disputa pelo território (latifúndio). A novidade é que hoje existe um governo permeável à pressão ruralista, mais do que foi o governo militar. Dilma tem o pior desempenho em relação à titulação de quilombos, à criação de unidades de conservação, de reservas extrativistas, de assentamentos da reforma agrária. O governo Dilma é avesso à destinação de terras para fins socioambientais

(Márcio Santilli apud CHIARETTI, 2014).”

Paulo Quartiero, (DEM / RR), parlamentar ruralista dos mais anti-indígenas, que perdeu na justiça as áreas que invadia com arrozais na TI Raposa Serra do Sol, que possui multas ambientais e seis processos penais contra

ele, chegou ao cúmulo de propor, em junho, a revogação da assinatura brasileira da Convenção n. 169 da OIT (revogar

o Dec. n. 5.051 de 2004). Sendo que, até hoje no Brasil, esta importante Convenção, 25 anos depois, não é obedecida. Este ruralista é também coautor do PLP n. 227 e da PEC n. 215.33

30 Disponível em http://racismoambiental.net.br, de 02/07/2014. 31 “No ano de 2013, houve uma iniciativa da Casa Civil de deslegitimar a entidade [Funai] ao criticar estudos de demarcação com base em laudos da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), cessando a demarcação de terras indígenas em diversos Estados. Acerca disso, ressalta-se que a Casa Civil não possui qualquer capacitação técnica para, por meio da Embrapa, propor a reformulação da Portaria do Ministério da Justiça sobre os procedimentos demarcatórios (DHESCA, 2014, p. 20).” 32 Lembrando que há um passivo de demarcação de dois terços dos territórios ocupados ancestralmente por indígenas, pois, se na Amazônia a situação é mais ou menos encaminhada, há milhares de indígenas sem terra em outras regiões. 33 “Paulo Quartiero é do DEM, ruralista dos principais, arrozeiro invasor TI Raposa Serra do Sol em RR, é grileiro, possui ao menos 12 mil ha de terra. É réu em seis ações penais por sequestro e cárcere privado; por crime contra a liberdade pessoal e formação de quadrilha; crimes contra o patrimônio; crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social; e crimes contra a administração

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Esperamos que nas eleições que se aproximam a sociedade possa retirar parte destes ruralistas, mas o cenário não é bom, já que o domínio coronelista destas famílias em seus “feudos” é grande. Trata-se de uma aliança

suprapartidária, com ênfase em partidos como o PMDB e o PSD. A seguir um breve resumo dos piores PLs anti-

indígenas em curso, com alguns dos autores mais famosos, por partido (adaptado de CAPIBERIBE & BONILLA, 2013), sabendo que eles são quase todos da base aliada do governo, ou do próprio governo:

PMDB = 9 PLs = Valdir Colatto, do SC, ruralista, é autor de seis deles.

PSD = 5 = quatro de Homero Pereira (ex-PR), do MT, ruralista, inclui o PLP n. 227, tendo como coautor Moreira

Mendes (PSD-RO). Kátia Abreu, senadora, do TO, a “rainha ruralista”, de alto poder e influência na FPA e CNA,

autora do PLS n. 349 de 2013, que é grave, versando que “em áreas de conflito não podem ser demarcadas

TIs”. Ora, se as áreas indígenas são quase todas invadidas, há conflitos, portanto este projeto inviabilizaria praticamente qualquer nova demarcação.

PTB = 3 = dois deles de Mozarildo Cavalcanti, do RR, ruralista, inclui a PEC n. 38 de 1999 (parecida com a PEC

n. 215). PP = 3 = todos de Luiz Carlos Heinze, do RS, ruralista.

PT (Governo Dilma) = 2 = Portaria da AGU n. 303 e PL s/n do Ministério da Justiça (para alterar procedimentos

de demarcação).

DEM = 2 = todos de Romero Jucá, do RR, representante do setor da mineração, inclui o PL n. 1.610 de 1996

que abre completamente as TIs à mineração. PPB = 2 = um deles é a PEC n. 215, de Almir Sá, do RR.

PSDB = 2 (de menor impacto).

PSC = 01 = de Nelson Padovani, do Paraná, ruralista, PEC n. 237 de 2013 (que também abre as TIs à

concessão de agronegócio).

A seguir, algumas citações da ofensiva ruralista parlamentar, racista e criminosa, algumas proferidas inclusive em plenário. Como podem os parlamentares agir assim, com baixo nível, e continuar recebendo votos? Tomara

que nestas eleições o cenário melhore!

“Depois que nós finalizarmos a questão indígena, eu quero saber qual é o outro tema que eles vão inventar para poder atrapalhar a agropecuária brasileira (Kátia Abreu, senadora [PSD-TO], em pronunciamento na audiência pública da Comissão de Agricultura da Câmara dos Deputados, em 11/dez/2013 [MOLINA,

2013]).”

Da análise de Luísa Molina, com referência ao momento político do “Leilão da Resistência” no MS: “Os ruralistas estão se preparando para uma guerra, determinados a passar por cima de qualquer obstáculo. E no momento esse ‘obstáculo’ chama-se terras indígenas. (...) Os deputados da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) e da Comissão de Agricultura investiam em seus discursos a estratégia clássica de tentar uma aproximação com os trabalhadores na ‘luta contra o inimigo comum’ – os povos indígenas e seus apoiadores. E não faltaram falas, tanto de parlamentares como de trabalhadores, onde apareceram ‘índios importados do Paraguai’, ‘a rentável profissão de índio’, ‘a mão esmagadora da Funai’ e muito mais. Falam em ‘enfrentamento’ direto aos indígenas várias vezes. (...) ‘Nós vamos fazer esse enfrentamento. Um enfrentamento duro. Em Mato Grosso do Sul e em todo o país’, afirmou o senador Waldemir Moka (PMDB-MS). Aplausos e expressões de satisfação rondaram o auditório [do Congresso Nacional] quando o deputado Giovanni Queiroz (PDT-PA) falou de como lidaram com ‘o problema indígena’ no seu estado, com violência. ‘Ninguém mais contrata advogado. Entrou hoje [indígena na terra], sai na madrugada do dia seguinte. Sai debaixo de cacete’. Ele prossegue, aconselhando outros a contratarem empresas de segurança [leia-se milícias privadas]: ‘4 horas da manhã você aborda o pessoal [que entrou na terra], chega o cravo no primeiro que reclamar, dá-lhe um cacete, bota em cima de um caminhão e manda devolver’. Queiroz, sem disfarçar um racismo quase caricato, disse ainda: ‘[os índios] querem ser civilizados. Nós todos um dia fomos índios. Nós, aliás, fomos macacos’ (MOLINA, 2013).”

4. Aprofundando alguns elementos anti-ambientais do governo federal e aliados

Para o PAC da dinastia Lula – Dilma, qualquer mega-obra é “relevante interesse público da União”, para isso vieram o novo Código (Des)Florestal, a Lei n. 12.678 que desafetou sete UCs na Bacia do Tocantins e o Dec. n.

7.957 da Força Nacional para acompanhar licenciamentos ambientais. No PAC crescimentista e oligárquico, altamente

em geral, desobediência e desacato. É investigado por homicídio qualificado, crimes contra o patrimônio, crimes de responsabilidade, sonegação de contribuição previdenciária, crimes contra o meio ambiente e o patrimônio genético. É alvo de ação de execução fiscal movida pelo Ibama e foi responsabilizado pelo TCU por irregularidades em prestação de contas de convênio e condenado a pagar a dívida e multa. Entrou com recursos, mas a decisão foi mantida (http://www.republicadosruralistas.com.br/, jul/2014).”

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questionado sob todos os vieses técnicos e político-econômicos, dezenas de UHEs estão previstas na Amazônia, Pantanal e outros biomas, de grande impacto, sem contar com a necessária Avaliação Ambiental Estratégica (AAE) que

deveria prescindir os isolados licenciamentos ambientais de cada hidrelétrica, que não têm como abarcar os impactos

sinérgicos, regionais e nacionais. Sabe-se que o PAC é regido por poderosos interesses como as quatro gigantes empreiteiras,34 e que boa parte da energia é para fins industriais, como a exportação barata de alumínio.

O licenciamento ambiental tem sido mais frouxo do que era para ser, pois a pressão pela celeridade é grande, e seguidamente surgem novas normas de cada vez mais simplificação dos processos. Com o Ibama sucateado e

OEMAs politicamente calados ou sucateados, as condicionantes não são obedecidas nem monitoradas, e há numerosas

ações civis públicas do Ministério Público sobre todas as UHEs em construção e em licenciamento. Mas o governo e os consórcios empreiteiros, habilmente, têm conseguido seguir com as obras, uma a uma, apesar das ações judiciais, dos

protestos sociais variados e das seguidas greves de trabalhadores nos canteiros. Ora, há décadas cientistas e ambientalistas provam que mega-hidrelétricas não combinam com o bioma

amazônico, de planície, densa vegetação e rios sedimentosos. Philip Fearnside, renomado pesquisador do INPA, vem denominando estas hidrelétricas de “fábricas de metano”, devido aos ciclos de cheia e vazante em áreas de densa

vegetação, além da própria vegetação alagada pelas barragens, sendo o metano um gás estufa bem pior que o gás

carbônico. Ou seja, a alardeada “energia limpa” hidrelétrica é uma farsa, quando se trata de Amazônia. Temos o exemplo dos problemas até hoje vivenciados pelas malfadadas UHEs de Tucuruí (PA), Balbina (AM) e Samuel (RO). Hoje

se repetem os equívocos, com ainda maior desenvoltura agressiva. Este ano, sofremos a calamidade pública em Rondônia, Acre e Bolívia após a enchente histórica do Rio Madeira, em muito agravada pelas UHEs de Jirau e Santo

Antônio, e o problema tende a se repetir nos anos seguintes. Mas governo e empresas concessionárias se fazem de

sego-surdas-mudas, “não há como provar nada”, “a culpa é da chuva”, e tudo fica por isso mesmo, apesar do esforço, novamente, do Ministério Público de responsabilizá-los pelos danos e cobrar prevenção a novas calamidades.

O setor da mineração também se articulando com PLs de alto impacto ambiental e indígena, como o PL n. 3.682 de 2012 que abre a mineração dentro de UCs e o PL n. 1.610 que abre a mineração nas TIs. Boa parte dos

interesses envolvidos são poderosos e estrangeiros, e sempre têm gerado exportação de metais de baixo valor

agregado, ou seja, enriquecem as empresas e governos estrangeiros, e aqui sobram os impactos socioambientais. A velha exploração colonial.

O governo promoveu o sucateamento da gestão ambiental federal ao dividir o Ibama “ao meio” (“dividir para melhor dominar”), em 2007, com a criação do ICMBio, que funciona em extrema precariedade até hoje. O Ibama

também foi enfraquecido, quase todos os escritórios do Brasil foram (ilegalmente) fechados, e o golpe cabal sobre o órgão foi a LC n. 140 de dezembro de 2011, a partir da qual o Ibama se tornou bem mais minguado em atribuições,

teoricamente repassadas aos OEMAs (que por sua vez não as têm abrigado). Esta lei também foi fruto da ofensiva anti-

ambiental ruralista, como o novo Código (Des)Florestal. Quanto aos agrotóxicos e transgênicos a questão está gravíssima, sendo o Brasil o maior consumidor

mundial de agrotóxicos, havendo cidades e populações inteiras contaminadas, com destaque talvez ao Mato Grosso, Minas Gerais e Ceará. A Anvisa e o CTNBio, respectivamente, estão sucateados e dominados, e tudo se aprova (os

piores agrotóxicos e transgênicos). Os setores envolvidos estão propondo uma câmara especial para a aprovação de

agrotóxicos, que retire a Anvisa (Ministério da Saúde) e o Ibama (Ministério do Meio Ambiente) do páreo, restando apenas o Ministério da Agricultura e os setores empresariais. Se mais este golpe passar, imaginem a piora que está por

vir. Até temas de alto impactos e muito controversos como usinas nucleares e extração de xisto têm sido

alavancadas pelo governo federal atual. No Acre e sua divisa com Amazonas na porção mais oeste, há a problemática exploração de petróleo que

irá iniciar, ninguém sabe quando nem como, em áreas amazônicas de alta relevância ecológica e recheadas de TIs e

UCs. Ninguém está informado, nem a própria Funai, e há muita revolta, mas já há indígenas visivelmente iludidos com a promessa de compensação ambiental futura, o que é deveras preocupante. O xisto também foi incluído no leilão de

concessão de petróleo do Acre. Nos itens 4.1 e 6.19 seguem alguns detalhamentos sobre a questão. No Acre também há a enorme problemática da vinda de centenas de indígenas isolados, que fogem dos

impactos das petroleiras e madeireiras de toda a porção fronteiriça do Peru, país com ainda pior desempenho em

política indígena e ambiental. Os isolados fizeram recente contato mais forte na Aldeia Simpatia, dos Ashaninka do Rio Envira, sinalizando que a problemática irá se agravar na atualidade, pois há diversos conflitos com os indígenas

acrianos, bem como, sabidamente, os impactos socioculturais de saída do isolamento, principalmente as novas doenças para as quais os isolados não possuem defesa.

Há também os impactos futuros da estrada e ferrovia de Cruzeiro do Sul a Pucallpa (Peru), que irão

atravessar o Parque Nacional Serra do Divisor, de alto impacto ambiental. Bem como, já vivemos e viveremos cada vez mais os impactos das recentes pavimentações completas das BRs 364 e 317 (esta chamada de “Transoceânica” ou

34 Odebrecht, Camargo Correia, Andrade Gutierrez e OAS, que também têm faturado imensamente com as mega-obras da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016 (“As quatro irmãs: Odebrecht, OAS, Camargo Corrêa e Andrade Gutierrez”, em http://racismoambiental.net.br, em 01/07/2014), bem como faturarão nas hidrelétricas a serem construídas por iniciativa do governo brasileiro no Peru e na Bolívia, com dinheiro do BNDES envolvido.

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“Estrada do Pacífico”, pois por ela se chega à Lima, no Peru). Os processos de licenciamento e de compensação ambiental destas BRs são polêmicos, obscuros e cheios de falhas até hoje. Outros problemas no estado já foram

comentados acima.

4.1. A exploração vindoura de petróleo e/ou gás no Alto Juruá (AC e sua divisa oeste com o AM)

Da 12ª. rodada de leilões de concessão de lotes para exploração de petróleo e gás da ANP, de

28/11/2013, apenas o lote “AC-T-8” foi arrematado pela Petrobras. Não se sabe mais nada, se e quando a Petrobras

pretende iniciar a prospecção propriamente dita, ela tem 8 anos de prazo (a prospecção 3D, para além da sísmica, 2D, que já foi feita).35 Praticamente nenhum ator social envolvido, desde servidores públicos aos indígenas, sabem informar

detalhes. A única ocorrência recente foi o patrocínio de um show de música pela Petrobras, do cantor Lenine, em julho, e ele esteve passeando dentro da TI Puyanawa com este povo, um dos diretamente afetados (vizinho a 10m) ao lote

arrematado. O outro povo afetado diretamente é o Nukini, cuja TI fica a 39m do lote. Ambas possuem um perímetro de vários quilômetros circundando o lote (ver o mapa no item 7). Ambos os povos estão desinformados, e diz-se que já

estão de olho na possibilidade de compensação monetária, como se esta compensasse, de fato, algum impacto no curto

e longo prazos. A TI Vale do Javari ficou a 25km do bloco, mas antes ficava a 18m. Após a recomendação da Funai, a

ANP recuou na medida do lote. Este povo tem sido bastante avesso a qualquer exploração (ver itens 6.16 e 6.17), e diz que vai ao “enfrentamento” com a Petrobras e a ANP. Ela possui diversos povos, indígenas isolados, rica e preservada

biodiversidade e também muitos problemas sociais, sempre alvo de reivindicação, principalmente a falta de atendimento

à saúde indígena. Se o projeto se ampliar, pelo mapa, as outras TIs que serão diretamente afetadas futuramente (blocos

da sísmica que não foram adquiridos no leilão) são: TI Jaminawa-Arara do Igarapé Preto (8m, totalmente circundada pelo lote), TI Arara do Igarapé Humaitá (10m, em boa parte circundada) e TI Katukina do Campinas (26m, em boa

parte circundada). Os indígenas em geral estão desinformados e preocupados, e têm demandado à Funai que

intermedie a problemática e traga respostas e soluções, mas ainda, ao que parece, essa demanda tem sido pontual e desorganizada.

Em todos os casos, toda a região é de prioridade “extremamente alta” para a preservação ecológica, segundo os levantamentos mais recentes do MMA e instituições ambientais renomadas. Bem como a região amazônica é

altamente sensível e inadequada à exploração de petróleo, tanto pela rica floresta e biodiversidade, quanto pela abundância de água na superfície e no subsolo raso, quanto pela dificuldade de acesso e escoamento (o que preocupa

ainda mais em caso de acidentes e vazamentos, algo muito comum), presença de populações indígenas e tradicionais

(inclusive indígenas isolados), proximidade com diversas TIs e UCs (no caso desta região), e também de uma área de UC em criação para proteger um importante ecossistema local de campinaranas.36

“Por conta disso, recomenda-se que o licenciamento ambiental das fases exploratórias seja

absolutamente rigoroso na exigência das melhores práticas internacionais para atuação em áreas ambientalmente sensíveis (GTPEG, 2013)”.

Há ainda pelo menos 19 espécies ameaçadas de extinção nos blocos que foram a leilão nesta região, e solo arenoso, mais vulnerável aos impactos. Há também sobreposição de blocos com projetos de assentamento do

Incra. Preveem-se, ainda, impactos futuros de adensamento populacional (GTPEG, 2013) por conta do “desenvolvimento” do petróleo, em áreas que hoje são pouco adensadas e com bom nível de conservação. Há grande

preocupação, também, com a integridade futura do Parque Nacional Serra do Divisor, se a exploração vier. E já há

muitas pressões para desafetar esta UC. O governo brasileiro aventava explorar petróleo dentro desta área desde 1936, e chegou a prospectar com perfurações, na década de 80.

A exploração de petróleo em áreas semelhantes no Equador e no Peru tem demonstrado verdadeiras catástrofes ecológicas e socioambientais, não só nos acidentes frequentes como no cotidiano da exploração, o que

subsidia ainda mais as posições contrárias à exploração no Acre. Porém, não parece ainda haver uma articulação forte

do movimento social a este respeito - há muito o que avançar. Atores sociais locais como o CIMI, a CPT e algumas lideranças se posicionam contrários a qualquer

exploração local de petróleo (ver item 6.15). Acusam a ANP e os governos federal e estadual de não respeitarem o meio ambiente e as populações tradicionais, e as “audiências públicas” que houve de “pura propaganda” do empreendedor.

Também diz-se que os governos estaduais estão fazendo lobby para que o licenciamento ambiental seja feito em âmbito

local (pelos OEMAs do Acre e do Amazonas) e não pelo Ibama, como seria o mais adequado (por ser petróleo, por ser

35 Desde a prospecção sísmica o processo tem sido bastante criticado, localmente, por não ser participativo, nem mesmo com os órgãos públicos. 36 Está para ser criada a UC de proteção integral “Campinaranas do Rio Ipixuna”, com parte no Acre e outra bem maior no Amazonas, área de relevância ecológica extremamente alta, forte endemismo, de nascentes de vários rios do AM, e que fará corredor ecológico com a TI Vale do Javari. Além disso, há insuficiência de proteção desse tipo de ecossistema no Brasil (GTPEG, 2013).

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área de fronteira internacional e interestadual e por ser área extremamente vulnerável ecológica e socioculturalmente). E o pior, no leilão foi incluída a possibilidade de exploração de xisto, de gigante impacto ambiental, cuja exploração tem

sido criticada por várias organizações e impedida pelo MPF em alguns estados (propõe-se, na verdade, a moratória, ou

seja, abortar a ideia de se explorar xisto no Brasil).37

5. Rumos de melhoria do cenário: Afirmação dos direitos indígenas e de uma ética ambiental

5.1. O papel dos cientistas, pesquisadores e professores

Já dizia Robert Dahl, que em tudo há política permeada, até mesmo na ausência da ação. Além disso, a

ciência não é neutra. Já dizia Karl Marx também que a ciência poderia ser uma práxis revolucionária, por desvendar o oculto ao senso comum. A Sociologia e a Antropologia, se nasceram num contexto positivista de consolidação do

capitalismo, hoje se encontram num patamar bem mais amadurecido de apontar as igualdades de direitos, lutando pela justiça social, e o respeito à diferença cultural, entre etnias e grupos sociais que advogam seu legítimo direito de

subsistir resistentes ao capitalismo e consumismo globalizantes. Dessa forma, sociedades científicas como a ABA e a SBPC são fóruns legítimos de manifestação de posição diante de projetos de lei, consultas públicas, audiências,

conselhos, etc, e creio que têm exercido este papel, pois tenho visto se manifestarem publicamente, por exemplo

quando da polêmica mudança do Código Florestal, no lançamento da Portaria n. 303 da AGU, nos PLs anti-indígenas em geral, e nas campanhas agroecológicas e contra os agrotóxicos. E ações políticas dos cientistas, pesquisadores e

professores neste sentido são vitais, em suas organizações.38 Em junho, mais de 800 cientistas do mundo inteiro divulgaram um manifesto contra os transgênicos.39

Bem como, em julho, mais de 250 cientistas espanhóis divulgaram um manifesto contundente pela mudança radical no

modelo de civilização atual, devido aos limites socioambientais já atingidos, é o que denominaram de “Última Chamada”, contra o “genocídio planetário”. Dizem que já atingimos a capacidade de suporte limite, e, se não virarmos radicalmente

nosso leme agora para um modelo de vida não consumista e baseado e critérios ambientais, a espécie humana de fato está rumando à extinção (IHU, 2014).

Voltando ao Brasil há pesquisadores renomados como Philip Fearnside, do INPA, A. Oswaldo Sevá Filho,

da Unicamp, Célio Bermann, da USP, Rodolfo Salm, da UFPA, Marcelo Firpo e Tânia Pacheco, da Fiocruz, Manuela C. da Cunha, entre outros, que têm se manifestado diante das mega-hidrelétricas na Amazônia, agrotóxicos, transgênicos,

retrocessos nas políticas ambiental e indígena, perda de agrobiodiversidade nativa, perda de direitos humanos, lançando mapas e dados de conflitos socioambientais, etc.

Mas para além da necessária e importante manifestação política destes atores sociais, mais fundamental ainda é a nossa inserção, nas escolas, universidades, centros de pesquisa e etc, no sentido

de direcionar pesquisas, extensão e ensino para os temas ambientais e indígenas, pois há muita carência.

Em especial, devemos direcionar esforços numa educação mais ampla nesses temas, porque infelizmente a sociedade tem-se mostrado apática, ou mesmo contrária aos direitos indígenas e aos critérios e à ética

ambiental. Fruto de uma desconstrução orquestrada pela globalização reinante, os meios de comunicação de massa e a educação em franca decadência rumam exatamente no sentido da alienação, ou para não

dizer, “emburrecimento” da população, para que aceite de bom grado a destruição ambiental e indígena

em curso. E para não dizer que não falei das flores, extremamente necessária sempre, em tudo por tudo, é a

educação política e cidadã também, da mesma forma carente no Brasil, pois sem atuação de pouco valem a consciência e o conhecimento.

5.2. O papel dos movimentos sociais e do 3º. Setor

Sem dúvida o mais importante hoje, neste cenário, é o aprimoramento e toda a ação dos movimentos sociais, os ambientalistas, indigenistas, e principalmente, dos próprios atores atingidos pelos desmontes

(organizações dos próprios indígenas, dos atingidos por barragens, dos agricultores familiares, etc). Neste sentido têm

37 O xisto é obtido com um faturamento (fracking) de rochas profundas que contém bolhas deste gás. O faturamento é feito com jatos fortes de água. A técnica é de alto impacto e contamina fortemente águas superficiais e subterrâneas, e vem causando cânceres e malformações fetais em áreas dos EUA em exploração. Na Amazônia a exploração de xisto é simplesmente inconcebível, tamanho o impacto esperado numa área tão rica em água e frágil geologicamente (solo rico em areia e argila). 38 Me lembro também de sempre ver manifestadas associações de docentes e pesquisadores de universidades como UFPA, UEPA e UFRR, entre outras, por exemplo no caso das hidrelétricas na Amazônia. Também vemos associações de servidores públicos, como da Funai e Incra, e como do Ibama e ICMBio (Asibama, como quando pronunciou-se e exigiu posição do MMA em moratória contra a exploração de xisto). Idem para manifestações contra PLs anti-indígenas por parte da OAB e da associação de advogados públicos. Todas estas manifestações são de suma importância na arena política brasileira. 39 Carta aberta do site “Ecocosas”, disponibilizada por IHU em http://www.ecodebate.com.br, de 13/06/2014.

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despontado importantes organizações como o CIMI, o ISA, o CTI, o CPT, o IIEB, a Plataforma Dhesca, o Greenpeace, etc, e as de base, como as diversas associações de cada povo indígena ou território, a APIB, a Coiab, o MAB, o MST, a

Vila Campesina, etc. A arena política, ou o espaço público no Brasil, apesar da truculência ditadora das oligarquias no

poder, tem sido farta e movimentada, e é graças a estes movimentos que retrocessos ainda maiores não se efetivaram, bem como a existência de alguns PLs e programas positivos.

Também é de suma importância a aliança de movimentos sociais, como se vê na Campanha Permanente contra os Agrotóxicos, na campanha pelo plebiscito constituinte (reforma política), etc.40 Os golpes sofridos

pelos indígenas têm sido iguais aos das populações tradicionais, ribeirinhos, quilombolas e agricultores familiares. Estes

atores precisam se unir cada vez mais. Nos faz recordar, saudosos, da “Aliança dos Povos da Floresta”, nos idos dos anos 70 e 80 no Acre, em que o expoente Chico Mendes conquistou a modalidade das reservas extrativistas entre uma

visibilidade e mudança de paradigma sobre a Amazônia e populações tradicionais. Notemos que ele foi o expoente, mas havia muito mais gente unida, entre indígenas, seringueiros e apoiadores “urbanos” (movimentos organizados e

servidores públicos), neste movimento, estando alguns deles na luta até hoje. Foi muito bom ver nossas lideranças indígenas, recentemente, indo à ONU (20/05) e a

Portugal (24/06) denunciar os desmontes e se aliar a movimentos sociais internacionais. Há também boas inciativas

de integração de movimentos indígenas latino-americanos, como a Coica, porque, inclusive, países como o Peru, o Equador e a Argentina têm sido vítimas às vezes mais sofridas de exploração petrolífera, madeireira, transgênicos e, no

futuro próximo, mais hidrelétricas. A força do movimento indígena é sempre impressionante. Se até hoje a PEC n. 215 tão incutida

pelo poder ruralista não passou, foi por causa desta força. Eles fazem movimentos realmente poderosos, como foram as

ocupações do Congresso Nacional em abril de 2013. (Aliás, como diz o colega Juan Negret da Funai / Acre, foi este movimento o estopim de todo o rol de manifestações de rua que estouraram em junho de 2013.) Recentemente, de 26

a 29 de maio, uma nova mobilização indígena nacional tomou a marquise do Congresso. Bem como sempre há marchas e ocupações (de ministérios, auditórios, praças públicas e fazendas [que são áreas indígenas invadidas]) de povos como

os Munduruku, Guarani / Kaiowá, etc. Mesmo no Acre, em que os conflitos não são tão acirrados, houve ocupações por

meses da Funai em 2013 e por mais de um ano da Funasa entre 2012 e 2013, por exemplo, e eles nunca saem de mãos vazias destes movimentos – ficam até alguma vitória satisfatória. E é nesta força que se deposita a nossa maior

esperança para frear os retrocessos em curso, apesar das perdas, pois sabemos que há muitos feridos e assassinados nestes movimentos, sendo o Brasil atual campeão de assassinato de lideranças indígenas e ambientalistas,

mas isso já é no seu dia a dia, e nem tanto nas grandes mobilizações – para se ver a truculência dos governos e setores econômicos oligárquicos atuais, no país.

Além de denunciar e combater o que há de negativo, que tanto temos falado, há que se esforçar pela

luta em direção às positividades: demarcação e gestão de TIs, UCs e territórios quilombolas, reforma agrária, incentivos ao extrativismo sustentável e à agroecologia, incentivos a programas ambientais, de direitos humanos e

sociais e pela reforma política, etc. Citando mais especificamente, há a luta pela aprovação do novo Estatuto das Sociedades Indígenas, parado no Congresso Nacional desde 1991, a luta pela transformação da CNPI em conselho

paritário e deliberativo, a efetivação de políticas “no papel” ou, no mínimo, muito tímidas, como a Pngati, a Política de

Populações Tradicionais, a Política de Áreas Protegidas, a Política de Mudanças Climáticas, a Política de Agricultura Orgânica, o PAA, o PNAE, a Política de Resíduos Sólidos, a Política da Participação Social, o recentíssimo Pronara

(Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos), etc. Há muito o que pressionar pela melhoria do Estado / política / governos, penso eu, em 6

itens: presença (seriedade, ou eficiência), desburocratização, democracia, transparência, honestidade (fim da corrupção) e reforma política.

Por fim, não há como escapar da participação direta no sistema político vigente, ou seja, o ingresso e

participação cada vez mais qualificada nos partidos políticos, e a ocupação de posições nos governos executivo e legislativo. Há muito o que melhorar nesta seara, é certo, e por isso há um desânimo e ceticismo geral quanto à

atuação por dentro da política partidária, mas isso é um fenômeno mundial, não só privilégio do Brasil, e é com muita educação e informação que precisamos mudar este quadro, e tornar a nossa sociedade mais politizada (aumentar o

“estrato político” de Robert Dahl). Por exemplo, até hoje, não há partidos com programas e linhas ideológicas claras no

Brasil, e menos ainda os que seguem bandeiras ambientais e indígenas – de fato, e não de discurso, pois hoje “todo mundo se diz a favor do desenvolvimento sustentável”, sem nem mesmo saber o que é isso.

Além dos movimentos sociais quero enfatizar a ação do 3º. Setor, de ONGs e/ou microempresas que em muito têm enriquecido os próprios movimentos e os territórios indígenas e de populações tradicionais com projetos

afirmativos de sustentabilidade ambiental e afirmação de direitos humanos e sociais. Muitos deles alcançam longo

prazo, financiamentos constantes e ótimos resultados. Como exemplos há inúmeros, que embora pontuais e aparentemente de pequena escala, quando somados fazem toda a diferença, pois nem o Estado nem o mercado têm

respondido a estas demandas. É o caso da CPI-Acre e SOS Amazônia, no Acre, do CIR em Roraima, do Iepé no Amapá,

40 Um bom exemplo de aliança de movimentos sociais foi o “I Seminário Estadual dos Defensores e Defensoras de Direitos Humanos no Rio Grande do Sul”, de 09 a 11/jun/2014, que uniu indígenas, quilombolas, populações tradicionais e agricultores familiares. Posicionaram-se contra a aliança ruralista do agronegócio e as corporações transnacionais de agrotóxicos e transgênicos.

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do IIEB, do ISA, do Ipê, etc. Vida longa a estas inciativas, e que elas possam ser internalizadas pelas políticas públicas.

5.3. O papel do Ministério Público

Este é apenas um parágrafo em elogio à atuação frequente e vigilante do Ministério Público, nas esferas

estaduais, mas, principalmente, federal. Seus promotores têm sido atuantes em todos os casos de retrocessos indígenas e ambientais, por exemplo, quando declararam a PEC n. 215 inconstitucional. Recentemente fizeram a prefeitura de

Jacareacanga, PA, recontratar os 70 professores indígenas que havia demitido sem justa causa. Também sempre

efetuam ações civis públicas com relação ao vergonhoso não cumprimento das condicionantes dos licenciamentos das hidrelétricas, bem como tentam evitar o licenciamento de algumas, baseado nos impactos socioambientais. Idem para

outros mega-empreendimentos Brasil afora. Temos necessidade do Ministério Público cada vez mais fortalecido, neste país em que o

governo imediatista tem sido tão relapso na observância dos direitos sociais e da qualidade de vida.

5.4. O papel do jornalismo e da internet

O jornalismo consciente, contra a corrente hegemônica dos meios de comunicação de massa, é de suma

importância, e são eles aliados importantíssimos do movimento social. Não a toa, os jornalistas têm sido também perseguidos no Brasil, alguns até assassinados. Será que vivemos mesmo numa democracia, que exigiria liberdade de

expressão?

Mas aos poucos, com a insistência, algumas questões mais sérias vão ganhando espaço, na democratização da informação, e na qualificação desta. O aquecimento global e as mudanças climáticas até que enfim

são hoje populares nos meios de comunicação, de 2010 para cá, o que já era sabido e tratado por cientistas e ambientalistas, assiduamente, desde a década de 70. E assim será com os temas mais detalhados. Por exemplo, há

documentários de alta qualidade na TV Brasil (um canal de TV aberta, e, portanto, acessível). Recente eu pude assistir

nela a um antigo (e atual) importante documentário sobre os desastres das UHEs de Balbina e Tucuruí, bem como a outro da expulsão dos agricultores familiares com a chegada dos latifundiários da soja, subindo no eixo da BR-163

(Cuiabá-Santarém). Desse modo, fazemos votos de que os cursos de jornalismo sejam cada vez mais inclusivos com as questões políticas, indígenas e ambientais.

A internet é sem dúvida a invenção mais genial das últimas décadas, deve ser usada e incentivada ao máximo em todos os níveis. Mas até hoje na Amazônia nossos sinais de internet são péssimos, seja lá qual for o

provedor, até mesmo nas capitais. A inclusão digital é imperiosa, bem como a democratização efetiva do acesso

totalmente aberto, em todas as instituições e níveis, e medidas contra a espionagem e bloqueios.41 As petições eletrônicas também dão resultado, se bem que menor do que o concreto do “povo nas ruas”. Bem como as redes

sociais podem rapidamente organizar movimentos-relâmpago, e alterar expectativas de eleições na última hora (como aconteceu na “Primavera Árabe”).

Porém, sabemos que a internet é uma faca de dois gumes. Por exemplo, no uso das redes sociais, parece

que 90% do tempo são ocupados com assuntos vãos, sem conteúdo. Além de banalizante, pode ser alienante e individualista, por exemplo, hoje se vê grupos de pessoas “reunidas” (de todos os tipos e classes sociais), ou pessoas

sozinhas em todo lugar, absolutamente absortas nos seus celulares smartphones, mas sem nenhum contato humano efetivo! O que reflete, aliás, infelizmente, o baixo nível educacional e de consciência da sociedade brasileira. Mas nada

que não possa ser revertido, e aí voltamos à necessidade de melhoria da educação em todos os níveis. E a própria internet pode ser um apoio a essa melhoria, pois mesmo em redes sociais, usuários que se ocupem de assuntos mais

sérios (no nosso caso: políticos, ambientais e indígenas), podem aos poucos conquistar o interesse dos que não se

atentam. Não posso deixar de indicar alguns sites de suma importância, para as áreas indígena e ambiental, como

o Combate ao Racismo Ambiental, o conflitoambiental.icict.fiocruz.br, o Ecodebate, o do ISA, o republicadosruralistas.com.br, o Oeco, o do CIMI, o do CIR, o de Telma Monteiro, o de Philip Fearnside, o de Arsênio

Oswaldo Sevá Filho, o brasildefato.com.br, o agroecologia.org.br, o contraosagrotoxicos.org, o do Imazon, o do INESC e

o plebiscitoconstituinte.org.br.

5.5. Breve conclusão

Bem, caro leitor, creio que já falei demais, agradeço a atenção. Só peço mais um pouco de paciência à

leitura do item 6 abaixo, em que “pesquei” importantes citações atuais sobre as problemáticas tratadas. Em especial,

41 Infelizmente há notícia de que o governo brasileiro, não se sabe por quais meios, e mesmo por dentro de alguma instituições públicas, esteja praticando a espionagem da internet dos usuários, inclusive servidores públicos, o que é ilegal e lamentável. Bem como, nas instituições, apelida-se o sinal de internet de “net-ditadura”, pois inúmeros sites são bloqueados, não somente as redes sociais e o “youtube”, bem como sites importantes, como os ambientais e de organizações científicas. O que atrapalha sobremaneira o nosso trabalho.

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recomendo a leitura dos itens 6.6, 6.8 e 6.14, sobre o racismo indígena, e dos itens 6.12 e 6.18, sobre as questões indígenas gerais e do Mato Grosso do Sul.

Minha conclusão? É simples, e resume-se em dois itens:

1) Precisamos atuar, atuar e atuar, em qualquer forma de movimento social, de preferência em

aliança de movimentos sociais, em todos os níveis, explorando todos os canais de atuação, ocupação de espaços e comunicação, pela melhoria política e democrática do nosso país, e das políticas indígenas e ambientais.

2) Precisamos educar e constantemente nos auto-educar, educar e educar, praticar ensino, pesquisa e extensão, e ampliar ao máximo as informações, sobre as três temáticas acima.

6. Apêndice: Importantes citações

Observação: os parágrafos separados são descontinuidades nas citações dos textos originais, ou seja, “(...)”.

6.1. CIMI e outros, I Seminário Estadual dos Defensores e Defensoras de Direitos Humanos no Rio Grande do Sul, 09 a 11/jun/201442

“A omissão, negligência e conivência das três esferas de Estado (Judiciário, Legislativo e Executivo) promoveram ao longo dos últimos anos: a paralisação das demarcações das terras indígenas e quilombolas; a invasão aos territórios

ancestrais; o assassinato de milhares de jovens negros; o desalojamento de milhares de famílias de suas casas e terras; a implementação de megaprojetos criminosos realizados numa lógica de “desenvolvimento” predatória para a maioria

dos seres humanos e para o meio ambiente; a criminalização e prisão de lideranças indígenas, quilombolas e dos movimentos sociais.

As violações aos direitos humanos aumentam, mas a resistência também aumenta. Nós, entidades e movimentos, que lutamos pela defesa dos direitos humanos nos juntamos a todos aqueles que estão em luta pela garantia de direitos

sociais, políticos e nas lutas pela terra e contra o racismo institucionalizado.

Resistiremos e lutaremos contra o agronegócio, contra os projetos do capitalismo para o campo e as alianças entre os

ruralistas, as corporações transnacionais, o capital financeiro com os governos. Colocamo-nos contra o governo federal e estadual que estimulam o desenvolvimentismo e que pactuam com os crimes impostos pelo latifúndio e que geram

inclusive conflitos entre os pequenos.”

6.2. Sônia Guajajara, importante liderança indígena nacional, em entrevista para a BBC, jun/2014

(FELLET, 2014)

“Nas grandes obras, às vezes oferecem às comunidades algum dinheiro, achando que vão resolver os problemas. Mas para o indígena o dinheiro acaba sendo um ponto de conflito, porque não temos o costume de lidar com ele. Não temos

essa coisa de acumular riquezas.

Nossa lógica e nosso modo de vida são outros. O que a maioria dos indígenas nas aldeias quer é tranquilidade.

Qualidade de vida para nós é liberdade, e liberdade é ter nossos territórios livres de ameaças e invasões para produzir sem destruir, como fazemos milenarmente.

Em Mato Grosso do Sul, a questão é mais urgente por conta da violência. Os pistoleiros entram nas aldeias, e morre

gente todo dia.”

E em Portugal, jun/201443

“A situação atual não é muito diferente do período da ditadura militar do passado. Há repressão, violência, expulsões,

prisões. Mudou o regime, mas não mudou a postura.”

6.3. APIB, quando os indígenas se negaram a participar das “audiências públicas” da PEC 215, jun/201444

“Denunciamos, assim, que tais audiências respondem ainda às agendas eleitorais da bancada ruralista, que fazem delas

42 Disponível em http://racismoambiental.net.br, de 18/06/2014. 43 Disponível em http://racismoambiental.net.br, de 02/07/2014. 44 Carta aberta da APIB, COIAB, outras 6 organizações indígenas, CTI, CIMI, ISA e Greenpeace, de 04/06/2014, disponível em http://racismoambiental.net.br, de 05/06/2014.

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palco de incitação ao ódio, à violência, o racismo e a discriminação contra os povos indígenas e outros segmentos da população como os quilombolas e os sem terra. Por elas os parlamentares ruralistas tentam transformar a luta de um

grupo minoritário de latifundiários contra demarcação das terras indígenas em plataforma política. Nas audiências, tão

logo destilam ódio e informações mentirosas para pequenos agricultores e à população do entorno dos territórios indígenas, gerando um clima de angústia, insegurança e medo, tais deputados se apresentam como defensores dos

direitos destes agricultores no Congresso Nacional.”

6.4. Cléber Buzatto, CIMI, jun/201445

“... faz-se a dupla defesa do latifúndio e da concentração fundiária cada vez maior em nosso país, objetivo central da

estratégia ruralista ao defender a aprovação da PEC n. 215.”

6.5. João Pacheco de Oliveira, antropólogo, out/2012 (OLIVEIRA, 2012)

"A única manifestação favorável à portaria [n. 303 da AGU] foi feita pela senadora Kátia Abreu (principal liderança dos

ruralistas no Congresso Nacional), dizendo que era uma série de medidas lúcidas em relação aos índios. Eu não posso entender como esse homem [o advogado-geral da União, Luís Adams] atua desta maneira. A AGU não existe para

proteger a Confederação Nacional de Agricultores. Ela existe para proteger o Estado, para atuar em sintonia com o direito do cidadão. Deveria ter ouvido a Procuradoria Geral da República, ter se informado. O que surpreende é que a

atitude do Estado em relação à tão equivocada medida foi uma atitude leve. A Funai, o Ministério da Justiça, a

Secretaria Geral da Presidência da República, tiveram encontro com o presidente da AGU e a única solução concreta dada foi a suspensão temporária da portaria, enquanto deveria ser imediatamente revogada.”

6.6. Jorge Eremites de Oliveira, antropólogo, sobre o racismo indígena em Dourados, MS, jun/201446

“Isso ocorre porque para muitos eles não são percebidos sequer como seres humanos, quanto mais como Guarani, Kaiowá ou Terena, por exemplo. São vistos como ‘bugres’, termo racista e recorrente na região.”

Sobre o governador de Mato Grosso do Sul, André Puccinelli (PMDB): “é o mais anti-indígena desde a criação do

Estado”.

“Em Dourados e região o preconceito étnico-racial contra os indígenas é algo assustador para qualquer pessoa de fora

que chega à cidade. Este comportamento faz parte das estratégias colonialistas de propagar uma imagem de ‘bárbaro’, ‘selvagem’ e ‘bugre’ aos Guarani, Kaiowá e Terena. Há até pessoas que dizem que chamá-los de ‘bugres’ não tem nada

de preconceituoso. Quando assim dizem, demonstram por si só que o racismo já foi naturalizado na região, algo que é gravíssimo.

Esta situação também se deve ao papel de setores da imprensa local, por vezes mantidos com recursos públicos e pelo próprio movimento ruralista. Por isso sistematicamente divulgam uma imagem extremamente negativa a respeito dos

Kaiowá, Guarani, Terena e outros povos indígenas.

O que ocorre nesta e em outras partes do Estado é algo comparável a um verdadeiro holocausto, indicativo do quando a região precisa ser humanizada.”

Sobre a política anti-indígena definida e aplicada pelo atual governo federal e seus aliados: “Para isso serve muito bem o atual modelo desenvolvimentista nacional, baseado no paradigma do crescimento econômico a qualquer custo. Seguir

um paradigma assim tem reflexos negativos na política indígena oficial. Trata-se de um modelo colonialista que sistematicamente viola os direitos elementares dos povos indígenas e comunidades tradicionais, além de classes sociais

em situação de vulnerabilidade social”.

6.7. Fernando Prioste, advogado, sobre a proposta da revogação da Convenção 169 da OIT, jun/201447

“Se de um lado o Governo Federal não tem atuado para assegurar a realização de direitos dos povos do campo e da

floresta, por outro os ruralistas tentam derrubar as poucas leis que reconhecem direitos.”

6.8. Procurador da República Marco Antônio Delfino de Almeida, do MPF em Dourados (MS), sobre os

suicídios entre os Guarani, mai/201448

45 Disponível em http://racismoambiental.net.br, de 18/06/2014. 46 Disponível em http://racismoambiental.net.br, de 26/06/2014. 47 Disponível em http://racismoambiental.net.br, de 01/06/2014.

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18

“A discriminação e o ódio étnico, condutas incentivadas inclusive pelos meios de comunicação, acentuam sobremaneira

o problema dos suicídios. Os indígenas são pintados como entraves, empecilhos, obstáculos ao desenvolvimento. É

como se a mídia passasse a mensagem ‘se você quer ficar bem, tire o índio do seu caminho’.”

6.9. Deborah Duprat, Vice-procuradora Geral da República, mai/201449

Sobre a Reserva Indígena de Dourados, MS: “é a maior tragédia conhecida na questão indígena em todo o mundo”.

6.10. APIB na ONU, 20/mai/201450

“Contrariamente ao que o governo brasileiro divulga em espaços internacionais, a situação dos povos indígenas no Brasil hoje, é a mais grave desde a redemocratização do País, seja na quantidade de indígenas assassinados, seja nas

iniciativas de esfacelar nossos direitos conquistados ao sangue de nossos povos.

Há no Brasil uma virulenta campanha de criminalização, deslegitimação, discriminação e racismo contra os povos

indígenas. Informações midiáticas são difundidas visando burlar os fatos reais e projetar inverdades que constituem uma verdadeira inversão de direitos. Na concepção deles, os povos e comunidades indígenas se constituem em

invasores, subverteres da ordem e principalmente são obstáculos ao desenvolvimento nacional.”

6.11. Mulheres Guarani e Kaiowá, TI Sucuriy, MS, jun/201451

“Reafirmamos à presidente da Funai que a Aty Guasu não acredita e não participará mais das mesas de ‘negociação’ do ministro da Justiça, pois acreditamos que esta já se converteu em espaços de negação de direito e de sujeição do

processo de demarcação a setores ruralistas anti-indígenas, que já demonstraram por diversas vezes que não querem

negociar, pois ao mesmo tempo em que participam de mesas, atuam na surdina para modificar leis, judicializar os processos no Mato Grosso do Sul, e na formação de milícia armada para atacar nossas comunidades e matar nossas

lideranças.

Não aceitamos a ação do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, que impede, num gesto ilegal, a Funai de continuar com seu dever constitucional em demarcar nossas terras. O ministro brinca com o sangue de nossas lideranças ao nos

negar a terra que é nosso direito.”

6.12. Márcio Santilli, ISA, fev/2014 (CHIARETTI, 2014)

“Não tem muita terra para pouco índio, tem muita terra para pouco fazendeiro.

Desterrar um povo indígena é ameaçá-lo de morte.

Se o poder público se dispusesse a indenizar de maneira digna, reduziria o conflito. O poder público tem que assumir sua responsabilidade. O governo precisa definir como vai indenizar os casos que têm que indenizar. Não adianta fugir dessa

questão, é isso que pode reduzir o conflito. Não é mudar o procedimento de demarcação, que em diferentes etapas dá espaço a questionamentos de interesses contrariados. O problema não está no procedimento de demarcação.

Uma corrente diz que é mais barato fazer hidrelétrica. É mais barato porque não se computa o custo sócio-ambiental. Essas obras estão sendo feitas com o mesmo padrão incivilizatório da ditadura militar, em relação a todos os grupos

sociais afetados. Quem mais consome é que tem que pagar pelo impacto. É o eletro-intensivo, o lingote de alumínio que se vende lá fora com essa energia toda embutida a preço de banana. Temos que fomentar a geração individual, criar

redes inteligentes.”

E sobre o PLP n. 227, jul/201352

“Os ruralistas pretendem legalizar latifúndios, assentamentos rurais, cidades, estradas, empreendimentos econômicos,

projetos de desenvolvimento em terras indígenas com o pretexto de uma situação excepcional, prevista pela Constituição

para ser realizada numa situação de guerra ou epidemia.

48 Disponível em http://racismoambiental.net.br, de 23/05/2014. 49 Disponível em http://racismoambiental.net.br, de 23/05/2014. 50 Disponível em http://racismoambiental.net.br, de 20/05/2014. 51 Disponível em http://racismoambiental.net.br, de 01/07/2014. 52 Disponível em http://racismoambiental.net.br, de 19/07/2013.

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Relevante interesse público deveria ser em casos extremos. Usam como mote para legalizar todo tipo de ocupação não indígena em terras indígenas.

O que se fez na Comissão de Agricultura foi uma proposta à imagem e semelhança do latifúndio.

Até o momento se teve um quadro de retrocesso não só na política indígena, mas em todas as políticas federais que têm uma interface com a questão fundiária e a questão de terras públicas. Praticamente não houve demarcação de novas

terras indígenas, nem titulação de terras de quilombos, poucos casos de criação de unidades de conservação ambiental, uma paralisia na regularização de assentamento de reforma agrária. O que se vê é um recuo do governo Dilma em

relação à destinação de terras para fins sócio-ambientais.

Parece que a corrupção é normal, (...) nessa política de alianças nojenta que vemos no Congresso Nacional, a atuação

das empreiteiras, que definem a destinação da maior parte da capacidade de investimento do país.”

6.13. Boaventura de Sousa Santos, sociólogo, Universidade de Coimbra, Potugal, quando a APIB e outras

lideranças estiveram com ele, jun/201453

“... forças muito poderosas, compostas pelas elites políticas e econômicas tanto nacionais como transnacionais, têm transformado tudo em obstáculo ao dito ´desenvolvimento´.” De acordo com o sociólogo português, os indígenas têm

enfrentado a arrogância do modelo capitalista e colonialista em sua versão neoextrativista.54

Para “uma sociedade mais justa e igualitária”, Boaventura recomendou que os protagonistas das mobilizações em curso,

nos mais variados campos de atuação, se conheçam melhor e se ajudem uns aos outros. “Esse encontro busca apoiar as lutas dos povos indígenas no Brasil”.

6.14. Moysés Pinto Neto, sobre o racismo indígena, jul/201455

“Afora esse preconceito etnocêntrico, Eduardo Viveiros de Castro têm demonstrado ao lado de outros importantes antropólogos que a cultura indígena é também um referencial que pode ser uma linha de fuga para o colapso

civilizacional que o Ocidente vive em termos ecológicos, à medida que se contrapõe à nossa ‘necessidade extensiva’ como uma ‘suficiência intensiva’.

Por que o racismo contra os índios é o mais intenso hoje em dia? Simples: porque os setores políticos que se dirigem contra a injustiça ainda estão majoritariamente abastecidos pelo eurocentrismo e a ideologia do progresso.

Ela é totalitária, não aceita dissidência e pluralismo. Isso significa que, provando sua brutal ignorância antropológica, boa

parte da esquerda, e em especial a que hoje governa o país, considera que o índio é alguém que precisa ser ‘incluído’. Um projeto monolítico com uma única missão: progredir, produzir, consumir.

Nas linhas escritas pelos defensores do Governo Dilma os índios simplesmente não aparecem, a questão não existe. ‘Índios, pena que já morreram todos, não?’ Aliás, a própria questão do reconhecimento do índio é usada como contra-

argumento: ‘índio? Mas usa celular!’. De qualquer forma o índio sempre perde: se veste calça jeans, não é o índio; se não veste, é primitivo. As duas situações levam ao mesmo raciocínio: acabar com eles.

Assim, enquanto os movimentos negro, feminista e homossexual, por exemplo, conseguiram capitalizar suas demandas e transformar-se em força política de peso, inserindo suas demandas no quadro da política, os índios são objeto de uma

indiferença atroz: recebem o silêncio institucional como resposta. A indiferença da invisibilidade, da não-questão, da falta de importância.

Fazer piada com índios ou outro grupo é o último esconderijo do racismo.

53 Disponível em http://racismoambiental.net.br, de 02/07/2014. 54 Eu, pessoalmente, não gosto do uso desse termo neoextrativista neste contexto de exploração, isso me parece mais um problema de tradução de outras línguas ao português. Eu usaria mais neoexploracionismo, ou neopredacionismo. Afinal, extrativismo para nós brasileiros, e mais, para nós amazônicos, é uma atividade intrinsecamente sustentável, das populações tradicionais mantendo a floresta. José Rego, professor e ex-gestor público do Acre, cunhou o neoextrativismo, no início dos anos 2000, como emblema da florestania de Jorge Viana (senador do Acre pelo PT), e que significava algo também sustentável, qual seja, a aliança entre atividades extrativas sustentáveis, a pequena agricultura ecológica e a criação de pequenos animais, que em conjunto são práticas das populações tradicionais. 55 Disponível em http://racismoambiental.net.br, de 07/07/2014.

Page 20: Gestão ambiental de terras indígenas, um pouco do acre e os retrocessos das políticas indígena e ambiental brasileiras

20 Ninguém pode chegar na esfera pública e declarar que é racista ou que negros são isso ou aquilo. Uma pessoa pode,

como um candidato a senador do Rio Grande do Sul recentemente fez, dizer que ‘quantos índios no Brasil deixaram de ser índios e se tornaram profissionais respeitados?’ Com os índios, pode. Também tem gente de esquerda (ou de ex-

esquerda, dizem as más línguas) afirmando que a cultura indígena vai terminar mesmo, e o que se pode fazer é incluí-lo

e transformá-lo no pobre trabalhador. A ideologia do progresso está embutida nesse pensamento.

Os índios são o único grupo social a quem se pode dirigir na esfera pública propondo o extermínio da sua condição especial.

É a ofensiva anti-indígena mais intensa desde a época da ditadura militar que vivemos hoje em dia.”

6.15. CIMI, CPT e algumas lideranças indígenas, Seminário “Petróleo: Você Compra, a Natureza Paga”, Cruzeiro do Sul, AC, mar/201456

“Consideramos ilegítima a implementação de obras que viabilizarão a exploração do petróleo no Vale do Juruá, assim

como a criação da Lei 2308, de 22 de outubro de 2010, que cria o Sistema Estadual de Incentivos por Serviços

Ambientais (Lei SISA). Tivemos nossos direitos violados e exigimos revisão imediata desse processo, pois o que se chama de consulta, não atendeu aos critérios estabelecidos pela mencionada Convenção [169 da OIT]. / nos comprometemos a

firmar aliança coletiva, para o enfrentamento deste modelo de morte, que vem invadindo nossos espaços de vida. (...) Desta forma, nos posicionamos veementemente contra a exploração petroleira tanto no Vale do Juruá, quanto em toda a

Pan Amazônia.”

6.16. Jader Comapa, da Univaja (TI Vale do Javari), dez/2013 (FARIAS, 2013)

“A gente nem sabia direito o que estava acontecendo. Nada chegava para nós. A ANP fazia tudo escondido. Quando

começamos a nos informar, pedimos que o leilão fosse cancelado e não fomos atendidos. Mandamos cartas oficiais, denunciamos em Brasília, a coordenação regional da Funai denunciou. A ANP tentou falar na mídia dizendo que fomos

ouvidos, mas não é verdade.”

Com a compra do lote AC-T-8, os indígenas querem pressionar a Petrobras agora. “A gente vai partir para cima da

empresa. Não queremos que ela faça exploração na área. Vai ser uma catástrofe. A área arrematada e os demais blocos podem estar fora da TI Vale do Javari, mas ali é trânsito de índios isolados.”

6.17. Clóvis Rufino, da Univaja (TI Vale do Javari), dez/2013 (FARIAS, 2013)

Lembrou ainda que os povos indígenas do Vale do Javari têm uma relação de “sofrimento” com a Petrobras, quando a empresa iniciou atividade na área nos anos 80 (suspensa posteriormente).

“A Petrobras causou muito impacto naquela época. Levou doença, morte, não respeitou nossos cemitérios nem os índios

isolados. Mas agora, se não quiserem conversar, vão ter que nos enfrentar. Os índios avisaram que quem chegar perto,

vão reagir. Vão usar arma e flechar”, disse Rufino.

6.18. Plataforma Dhesca Brasil, jun/2014 (DHESCA, 2014)

* 3 prioridades (deste relatório):

- Revogação imediata da Portaria n. 303 da AGU.

- Cumprimento da Convenção 169 da OIT, inclusive quanto aos PLs. - Demarcação de todas as TIs pendentes (principalmente no MS).

“(...) críticas ao modelo de desenvolvimento brasileiro adotado e suas contradições, especialmente a falta de garantias de direitos humanos, sobretudo quando falamos em povos e comunidades tradicionais (p. 7).

(...) um longo processo histórico-social de negação de direitos aos povos indígenas no Brasil (p. 9).

A difícil situação dos indígenas no Mato Grosso do Sul se insere num cenário nacional de expropriação territorial.

Inclusive é um processo que percorre toda a América Latina, numa disputa por recursos naturais. O que alarda no caso

investigado é a dimensão do problema e o grau de acirramento que a questão assume no Estado com a segunda maior população indígena do país (p. 11).

56 Disponível em http://racismoambiental.net.br, de 23/03/2014.

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21

Ademais, a correlação de forças revela-se bastante desproporcional. Os indígenas são fortemente pressionados pelo agronegócio e por projetos de desenvolvimento. Sendo que há uma elite local ancorada em transnacionais da economia

para sobrepor seu modo de produção ao dos indígenas. Assim, tem imperado no Estado o respeito e incentivo às

commodities soja, açúcar e gado no lugar onde havia indígenas, cedro, aroeira e peroba (p. 12).

(...) a pobreza chega a afetar 38% da população indígena, enquanto a média nacional é de 15,5% da população (ANAYA, 2010) (p. 15).

A Constituição Federal de 1988 abre o caminho para a construção de um Estado pluriétnico e multicultural assegurando

aos indígenas direito à organização social, costumes, línguas, crenças e tradições; direitos originários e imprescritíveis

sobre as terras que tradicionalmente ocupam, consideradas inalienáveis e indisponíveis; obrigação da União de demarcar as terras indígenas, proteger e fazer respeitar todos os bens nelas existentes; direito à posse permanente sobre essas

terras; proibição de remoção dos povos indígenas de suas terras, salvo em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população ou no interesse da soberania do país, após deliberação do Congresso Nacional, garantido o direito de

retorno tão logo cesse o risco; usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes; uso de suas

línguas maternas e dos processos próprios de aprendizagem; e proteção e valorização das manifestações culturais indígenas, que passam a integrar o patrimônio cultural brasileiro (ARAÚJO, 2006) (p. 15).

Além disso, em todos estes grandes projetos vem junto o argumento do “relevante interesse público da União”, e assim

os direitos assegurados pela Constituição e tratados internacionais de domínio sobre os seus territórios ficam

subordinadas a este argumento abstrato. O mesmo argumento está presente na Portaria 303 da Advocacia Geral da União, ao dizer que frente a obras de interesse público da União caberia aos indígenas apenas “negociar ações

mitigadoras e compensatórias”. Logo, retira-se toda a sua autonomia e autodeterminação (INESC, 2012) (p. 20).

Em suma, há um verdadeiro cerco armado para rever os direitos indígenas à luz de compreensões sobre desenvolvimento nacional, com clara opção pelo agronegócio como grande ramo da economia brasileira (p. 24).

Entre 1915 e 1928 [tempo do SPI] foram criadas oito áreas: as reservas Amambai, Dourados, Caarapo, Porto Lindo, Taquaperi, Sassoró, Limão Verde e Pirajuí (CAVALCANTE, 2013, p. 84), para abrigar os Kaiowá e Guarani, com a

proposta de que cada uma delas tivesse cerca de 3.600ha. Contudo, algumas ficaram reduzidas tendo em vista a influência política da região. Na prática estas eram áreas para que os indígenas vivessem até que completassem o

processo de assimilação com a sociedade nacional, bem como suas terras fossem liberadas para as atividades

agropastoris. Deste modo, não houve qualquer preocupação com ancestralidade do território, e mesmo acesso a recursos, como água potável, já que o caráter era transitório até que os indígenas fossem integrados como trabalhadores

(CAVALCANTE, 2013) (p. 28).

Ora, os indígenas não costumavam organizar sua sociedade com limites determinados e precisos, sob a constituição de um documento formal (p. 28).”

6.19. Gtpeg (composto pelo Ibama e ICMBio), 03/out/2013 (GTPEG, 2013)

“A análise apresentada anteriormente neste item expõe a importância da região da Bacia do Acre para a conservação da biodiversidade, assim como para a subsistência de populações tradicionais. (...) Impactos potenciais relacionados aos

riscos de derramamentos de óleo (mesmo que residual associado a reservatórios de gás) em áreas de várzea e terras

baixas da região, podem ter efeitos deletérios de elevada magnitude e de difícil reversibilidade, com consequências imprevisíveis sobre a fauna aquática e a vegetação de áreas alagáveis, além de desdobramentos sobre a pesca enquanto

atividade essencial para a sobrevivência das populações locais.

O Relatório de Impacto Ambiental elaborado para o licenciamento do Gasoduto Urucu-Coari cita a ocorrência de um

descontrole de poço (blow out) em campanha de perfuração na Amazônia que demorou mais de 30 dias para ser contido. Ainda que os cenários de descontrole sejam eventos acidentais de baixa ocorrência, não se pode prognosticar o

alcance da dispersão dos poluentes gerados nestes eventos ou em derrames de menor expressão, mas que são comuns na indústria, sem estudos específicos que considerem a complexidade da circulação hidrológica existente. Somente um

criterioso estudo de vulnerabilidade poderia subsidiar uma tomada de decisão que assegure que o bloco formulado possui condições para permitir que as diversas fases da atividade possam ocorrer resguardadas por um plano de emergência

que tenha condições de salvaguardar os ativos ambientais. Além disto, há que se levar em conta as dificuldades para se

garantir o acesso de recursos extras de contingência com as condições atmosféricas instáveis que frequentemente impedem o translado aéreo na região.

Page 22: Gestão ambiental de terras indígenas, um pouco do acre e os retrocessos das políticas indígena e ambiental brasileiras

22 (...) o gerenciamento dos fluidos e cascalhos oriundos das atividades de perfuração exploratória e de desenvolvimento

dos reservatórios. Considerando o isolamento da região, a destinação adequada desses resíduos pode ser bastante problemática. Há que se considerar que mesmo se fazendo a gestão dos produtos que compõem os fluidos de perfuração

de base aquosa, menos agressivos que os fluidos sintéticos, eles necessariamente possuem elevado grau de salinidade

em função da manutenção da estabilidade do poço. Em atividades no meio marinho a salinidade não constitui um problema, mas o potencial de contaminação dos lençóis freáticos torna este aspecto significativo no ambiente terrestre,

já que há grandes volumes de material gerado e impossibilidade de transporte deste material para áreas remotas em função do custo. O encapsulamento de material poluente em aterros no meio da floresta é uma solução de eficácia

bastante discutível, especialmente nas terras baixas, sendo muito difícil garantir que não haverá contaminação das águas subterrâneas ou mesmo superficiais. Considera-se que é imprescindível uma discussão aprofundada e transparente sobre

o monitoramento ambiental das áreas de disposição deste material nos campos do polo Urucu para que se possa

estabelecer critérios para futuras atividades.

Outra fonte de significativa preocupação é o potencial de indução de ocupações secundárias que levem ao aumento do desmatamento na região dos blocos. Nesse sentido, é fundamental que o desenvolvimento das atividades na Bacia do

Acre possua a menor pegada ambiental possível, com o mínimo de intervenção e ocupação de áreas florestadas,

evitando-se a abertura de novos acessos e a instalação de novos aglomerados populacionais em função dos projetos petrolíferos. Recomenda-se a adoção do modelo de operação análogo ao de plataformas offshore, com os trabalhadores

em regime de escala, sem fixação de residência na região.

No que diz respeito à exploração de gás não convencional [xisto], o Gtpeg entende não haver elementos suficientes para

uma tomada de decisão informada sobre o assunto. É preciso intensificar o debate na sociedade brasileira sobre os impactos e riscos ambientais envolvidos nessa exploração e avançar na regulamentação e protocolos para atuação

segura. Recomenda-se a adoção de uma moratória para as operações de fraturamento hidráulico no país até que sejam realizados os estudos e debates necessários. A Avaliação Ambiental de Área Sedimentar – AAAS pode ser um instrumento

adequado para subsídio à tomada de decisão em determinada bacia de interesse.”

7. Anexo: Mapa dos blocos de exploração de petróleo planejados no Acre e sudoeste do Amazonas (FARIAS, 2013)

Referências bibliográficas e da internet

Page 23: Gestão ambiental de terras indígenas, um pouco do acre e os retrocessos das políticas indígena e ambiental brasileiras

23 - CAVALCANTE, T. L. V. (2013) Colonialismo, território e territorialidade: A luta pela terra dos Guarani e Kaiowá em

Mato Grosso do Sul. UNESP (Universidade Estadual Paulista): Assis. (Tese de Doutorado em História) - CAPIBERIBE, A. & BONILLA, O. (2013) O rolo compressor ruralista. http://www.brasildefato.com.br apud

http://racismoambiental.net.br de 18/12/2013.

- CHIARETTI, D. (2014) Brasil tem de reconhecer a terra indígena, diz especialista. Jornal Valor Econômico, 21/02/2014.

- DHESCA (Plataforma de Direitos Humanos - Dhesca Brasil). (2014) Violações de direitos humanos dos indígenas no Estado do Mato Grosso do Sul. Curitiba.

- FARIAS, E. (2013) Após leilão, índios prometem reagir contra exploração de petróleo. http://amazoniareal.com.br, em 09/12/2013.

- FELLET, J. (2014) “Dilma acha que precisamos consumir e ter chuveiro quente”, diz líder indígena. Disponível em:

http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2014/06/140607_copa_indios_protestos_entrevista_rb.shtml. Acesso em 09/06/2014.

- FRANCO, Mariana C. Pantoja. (2008) Os Milton: Cem anos de história nos seringais. Rio Branco: EDUFAC. - GTPEG (Grupo de Trabalho Interinstitucional de Atividades de Exploração e Produção de Óleo e Gás). (2013) Parecer

Técnico GTPEG n. 03/2013. Brasília. 03/10/2013.

- IHU (Instituto Humanitas Unisinos). (2014) O crescimento já é um genocídio em câmera lenta. Disponível em: http://www.ecodebate.com.br. Acesso em: 10/07/2014.

- INESC (Instituto de Estudos Socioeconômicos). (2012) Série Boletim Socioambiental 2012. Brasília. Disponível em: http://www.inesc.org.br/biblioteca/publicacoes/textos/serie-orcamento-socioambiental. Acesso em: 24/03/2014.

- MOLINA, L. (2013) O gatilho da ofensiva ruralista. http://wwwdiarioliberdade.org, apud

http://racismoambiental.net.br de 15/12/2013. - OLIVEIRA, J. P. de. (2012) Portaria da AGU é um ato de violência contra os indígenas. Manaus. Disponível em:

http://acritica.uol.com.br/amazonia/Portaria-AGU-violencia-indigenas-antropologo_0_791320884.html. Acesso em: 14/10/2012.

Lista de siglas

AAAS: avaliação ambiental de área sedimentar AAE: avaliação ambiental estratégica AAFI: agente agroflorestal indígena AAV: agente ambiental voluntário ABA: Associação Brasileira de Antropologia AC: Acre

AGU: Advocacia Geral da União AIS: agente indígena de saúde Aisan: agente indígena de saneamento AM: Amazonas ANP: Agência Nacional de Petróleo Anvisa: Agência Nacional de Vigilância Sanitária APIB: Articulação dos Povos Indígenas do Brasil Asibama: Associação dos servidores da carreira de especialista em meio ambiente BA: Bahia BBC: British Broadcasting Corporation (Corporação Britânica de Radiodifusão) BNDES: Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social BR: rodovia federal CF-88: Constituição Federal de 1988 CIMI: Conselho Indigenista Missionário CNA: Confederação Nacional da Agricultura CNPI: Comissão Nacional de Política Indigenista CNPT: Centro Nacional de Pesquisa e Conservação da Sociobiodiversidade Associada a Povos e Comunidades Tradicionais

Coiab: Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Coica: Coordinadora de las Organizaciones Indígenas de la Cuenca Amazónica (Coordenação das Organizações Indígenas da

Bacia Amazônica) Conama: Conselho Nacional do Meio Ambiente CPI: Comissão Pró-Índio CPT: Comissão Pastoral da Terra CT&I: ciência, tecnologia e inovação CTI: Comissão de Trabalho Indigenista CTNBio: Comissão Ténica Nacional de Biossegurança Dec.: decreto DEM: Partido “Democratas” Dhesca: Plataforma de Direitos Humanos - Dhesca Brasil DPCT: Departamento de Política Científica e Tecnológica

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Embrapa: Empresa Brasileira de Agropecuária EUA: Estados Unidos da América FAO: Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação

FPA: Frente Parlamentar Agropecuária Funai: Fundação Nacional do Índio Funasa: Fundação Nacional de Saúde GATI: gestão ambiental de terra indígena Gtpeg: Grupo de Trabalho Interinstitucional de Atividades de Exploração e Produção de Óleo e Gás Ibama: Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis ICMBio: Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade IHU: Instituto Humanitas Unisinos IIEB: Instituto Internacional de Educação do Brasil Incra: Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária INESC: Instituto de Estudos Socioeconômicos INPA: Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia ISA: Instituto Socioambiental LC: lei complementar MA: Maranhão MAB: Movimento dos Atingidos por Barragens MMA: Ministério do Meio Ambiente

MPF: Ministério Público Federal MS: Mato Grosso do Sul MST: Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra MT: Mato Grosso OAB: Ordem dos Advogados do Brasil OEMA: órgão estadual de meio ambiente OGM: organismo geneticamente modificado OIT: Organização Internacional do Trabalho ONG: organização não-governamental ONU: Organização das Nações Unidas PA: Pará PAA: Programa de Aquisição de Alimentos PAAV: Programa de Agentes Ambientais Voluntários PAC: Programa de Aceleração do Crescimento PCH: pequena central hidrelétrica PDPI: Projeto Demonstrativo dos Povos Indígenas PDT: Partido Democrático Trabalhista

PEC: Projeto de Emenda Constitucional PF: Polícia Federal PL: projeto de lei PLP: projeto de lei complementar PMDB: Partido do Movimento Democrático Brasileiro PNAE: Programa Nacional da Alimentação Escolar Pngati: Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas PNUD: Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento Pnuma: Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente PP: Partido Progressista PPB: Partido Pacifista Brasileiro PR: Partido da República Pronara: Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos PSC: Partido Social Cristão PSD: Partido Social Democrático PSDB: Partido da Social Democracia Brasileira PT: Partido dos Trabalhadores

PTB: Partido Trabalhista Brasileiro PZ: Parque Zoobotânico RO: Rondônia RR: Roraima RS: Rio Grande do Sul SAF: sistema agroflorestal SBPC: Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência SPI: Serviço de Proteção ao Índio TCU: Tribunal de Contas da União TI: terra indígena TO: Tocantins UC: unidade de conservação UEPA: Universidade Estadual do Pará UFAC: Universidade Federal do Acre

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UFPA: Universidade Federal do Pará UFRR: Universidade Federal de Roraima UHE: usina hidrelétrica

Ulbra: Universidade Luterana do Brasil Unicamp: Universidade Estadual de Campinas Unimep: Universidade Metodista de Piracicaba USP: Universidade de São Paulo

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Roberta Graf é doutora em Política Ambiental (DPCT / Unicamp), mestre em Gestão Ambiental e Energética (Unimep), graduada em Química (Unicamp), graduanda em Ciências Sociais (Ulbra), servidora do ICMBio / CNPT / Acre e ex-servidora do Ibama.


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