Transcript

Gustavo Pocaia Souza

A CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO E O ESTADO

DE COISAS INCONSTITUCIONAL

Centro Universitário Toledo

Araçatuba

2019

Gustavo Pocaia Souza

A CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO E O ESTADO

DE COISAS INCONSTITUCIONAL

Monografia apresentada como requisito parcial para a

obtenção do grau de Bacharel em Direito à Banca

Examinadora do Centro Universitário Toledo, sob a

orientação do Prof. Me. Luciano Meneguetti Pereira.

Centro Universitário Toledo

Araçatuba

2019

Gustavo Pocaia Souza

A CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO E O ESTADO

DE COISAS INCONSTITUCIONAL

BANCA EXAMINADORA

______________________________

Prof. Luciano Meneguetti Pereira

______________________________

Prof.

______________________________

Prof.

Araçatuba, ___ de ________ de 2019.

À minha família, que nunca mediu esforços para

que eu alcançasse os meus objetivos.

AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar, não posso deixar de agradecer Àquele que, com bondade e

misericórdia, tem permitido que eu viva experiências incríveis. Foi consolo em momentos de

aflição e coragem em momentos de inquietação.

Agradeço à minha família e aos meus amigos pelo apoio incondicional, sem o qual eu

certamente não teria chegado até aqui. Obrigado por acreditarem no meu potencial inclusive

nos momentos em que eu mesmo duvidei dele. Vocês foram e são essenciais para mim.

Aos colegas com os quais tive o prazer de estagiar, meu muito obrigado. Levarei

comigo uma parte de cada um de vocês.

Por fim, agradeço ao meu orientador, Luciano Meneguetti Pereira, pelo suporte teórico

e pelo direcionamento na elaboração deste trabalho.

“Se quiseres conhecer a situação socioeconômica

do país visite os porões de seus presídios”.

Nelson Mandela

RESUMO

O presente trabalho teve como objetivo precípuo a análise da crise que acomete o sistema

penitenciário brasileiro e os seus reflexos na violação dos direitos fundamentais dos presos. A

discussão justifica-se pela relevância social do tema, tendo em vista que o Brasil apresenta

significativa população carcerária, ganhando destaque no cenário mundial pela falha do seu

sistema prisional. Em primeiro lugar, traçou-se um panorama geral da evolução histórica da

prisão e do direito de punir estatal, analisando seus fundamentos e limitações. Num segundo

momento, o estudo se concentrou no Estado de Coisas Inconstitucional e na identificação de

sua origem, seus fundamentos e pressupostos e na sua declaração no Brasil. Ao final, foram

retratados alguns dos maiores problemas enfrentados pelo sistema penitenciário brasileiro,

dentre os quais, a superlotação carcerária, a precariedade do ambiente, as falhas na assistência

prisional e a violência nas prisões. Quanto à metodologia utilizada, empregou-se o método

dedutivo, adotando-se como instrumentos de pesquisa e consulta obras literárias sobre a

temática, legislação, jurisprudência e dissertações.

Palavras-chave: Sistema penitenciário. Direitos fundamentais. Estado de Coisas

Inconstitucional.

ABSTRACT

The present study had as its main objective the analysis of the crisis affecting the Brazilian

penitentiary system and its repercussions on the violation of prisoner‟s fundamental rights.

The discussion is justified by the social relevance of the topic, considering that Brazil has a

significant prison population, gaining prominence in the world scenario due to the failure of

its prison system. First, an overview was given of the historical evolution of the prison and of

the State‟s right to punish, analyzing its foundations and limitations. In a second moment, the

study focused on the Unconstitutional State of Affairs and the identification of its origin, its

foundations and assumptions, and its declaration in Brazil. In the end, some of the major

problems faced by the Brazilian penitentiary system were portrayed, among them, prison

overcrowding, precariousness of the environment, failures in prison assistance and violence in

prisons. As to the methodology, the deductive method was used, adopting literary works on

the subject, legislation, jurisprudence and dissertations as research instruments and

consultation.

Keywords: Penitentiary system. Fundamental rights. Unconstitutional State of Affairs.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 09

I O SISTEMA PENITENCIÁIO .......................................................................................... 10

1.1 Origem e evolução histórica da prisão ........................................................................... 10

1.2 Ius puniendi: fundamentos e limitações ......................................................................... 14

1.3 Direitos dos presos ........................................................................................................... 18

1.4 Princípio da dignidade da pessoa humana .................................................................... 21

II O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL ........................................................ 25

2.1 Conceito e origem ............................................................................................................ 25

2.2 Fundamentos e pressupostos .......................................................................................... 30

2.3 O Estado de Coisas Inconstitucional no Brasil ............................................................. 35

2.4 Críticas ao Estado de Coisas Inconstitucional .............................................................. 40

III A CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO ...................................... 45

3.1 Superlotação carcerária .................................................................................................. 45

3.2 Precariedade do ambiente e falhas na assistência prisional ........................................ 49

3.3 Violência nas prisões ....................................................................................................... 52

3.4 Efeitos psicológicos da prisão ......................................................................................... 57

3.5 A privatização dos presídios ........................................................................................... 61

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................ 66

REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 68

9

INTRODUÇÃO

O presente trabalho está estruturado em três pilares fundamentais. Em primeiro lugar,

o estudo se concentra no exame do sistema penitenciário, com ênfase na origem e na evolução

histórica da prisão e na caracterização dos direitos dos presos, abordando temas centrais como

o ius puniendi e o princípio da dignidade da pessoa humana.

Num segundo momento, analisa-se o Estado de Coisas Inconstitucional, buscando

sistematizar o seu conceito e a sua origem, seus fundamentos e pressupostos e o seu

reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF nº 347.

Ao final, há a retratação de diversos aspectos da crise que acomete o sistema

penitenciário brasileiro, quais sejam: a superlotação carcerária, a precariedade do ambiente, as

falhas na assistência prisional e a violência nas prisões. Há, ainda, uma breve explanação

sobre a política de privatização dos presídios, vista por muitos como uma forma de superar o

colapso carcerário.

Nesse contexto, cabe ressaltar que o trabalho se justifica, sobretudo, pela relevância

social do tema, tendo em vista que o Brasil apresenta significativa população carcerária,

ganhando destaque no cenário mundial pela falha do seu sistema prisional. Ademais, não é

raro deparar-se com notícias da situação caótica vivenciada pelos reclusos nas penitenciárias

do país, o que tem fomentado discussões e debates da sociedade civil e do próprio poder

público.

O trabalho visa, portanto, propor uma reflexão sobre o sistema penitenciário do Brasil

e as suas implicações no âmbito dos direitos fundamentais dos encarcerados. Visa também

realizar uma análise crítica da atuação estatal na gestão de políticas públicas penitenciárias.

Trata-se de trabalho exploratório com abordagem qualitativa. As técnicas de pesquisa

adotadas foram a revisão bibliográfica e a análise documental. Os instrumentos de pesquisa e

consulta consistiram em obras literárias sobre a temática, legislação, jurisprudência e

dissertações.

10

I O SISTEMA PENITENCIÁRIO

O sistema penitenciário é uma complexa construção humana que encontra fundamento

no direito de punir do Estado. O próprio ordenamento jurídico permite que juízes e tribunais

restrinjam a liberdade de locomoção de homens e mulheres em situações excepcionais. Esse

sistema, aliás, passou por um longo processo de desenvolvimento histórico, culminando no

modelo contemporâneo, com todas as suas mazelas e controvérsias.

Com efeito, cumpre ressaltar que o presente capítulo se debruçará principalmente

sobre o estudo da origem e da evolução histórica da prisão, sobre a análise do ius puniendi

estatal e sobre a compreensão dos direitos fundamentais dos reclusos.

1.1 Origem e evolução histórica da prisão

A origem da prisão remonta ao surgimento das penas, as quais passaram por um

complexo processo de evolução. Atualmente, a pena representa uma resposta estatal ao

cometimento de atos ilegais, mas nem sempre foi assim, uma vez que inúmeras foram as

concepções atribuídas à reprimenda.

Na antiguidade, por exemplo, a privação de liberdade não possuía conotação de sanção

penal, justificando-se por outros fundamentos. Nesse sentido, Bitencourt (2004, p. 4) leciona:

A Antiguidade desconheceu totalmente a privação de liberdade estritamente

considerada como sanção penal. Embora seja inegável que o encarceramento de

delinquentes existiu desde tempos imemoráveis, não tinha caráter de pena e

repousava em outras razões. Até fins do século XVIII a prisão serviu somente aos

objetivos de contenção e guarda de réus, para preservá-los fisicamente até o

momento de serem julgados ou executados. Recorria-se, durante esse longo período

histórico, fundamentalmente, à pena de morte, às penas corporais (mutilações e

açoites) e às infamantes.

Alguns autores afirmam que a vingança privada foi a primeira modalidade de pena que

se teve notícia, sendo que seu único fundamento era a “pura e simples retribuição a alguém

pelo mal que havia praticado” (GRECO, 2017, p. 84).

Em razão de não ser regulamentada, porém, a vingança privada motivava diversos

embates sociais, tal como assevera Cunha (2016, p. 44):

11

Por não haver regulamentação por parte de um órgão próprio, a reação do ofendido

(ou do seu grupo) era normalmente desproporcional à ofensa, ultrapassando a pessoa

do delinquente, atingindo outros indivíduos a ele ligados de alguma forma,

acarretando frequentes conflitos entre coletividades inteiras.

A pena, nesse período histórico, possuía caráter aflitivo já que o homem respondia

pelos crimes com a sua integridade corporal e psicológica, sofrendo agressões físicas, que

muitas vezes resultavam em morte. A esse respeito:

Até basicamente o período iluminista, as penas possuíam um caráter aflitivo, ou

seja, o corpo do homem pagava pelo mal que ele havia praticado. Seus olhos eram

arrancados, seus membros, mutilados, seus corpos estivados até destroncarem-se,

sua vida esvaia-se numa cruz, enfim, o mal da infração penal era pago com o

sofrimento físico e mental do criminoso (GRECO, 2017, p. 86).

Instituída pelo Código de Hamurabi, a regra do talião representou grande avanço no

âmbito da aplicação das penas, uma vez que estabeleceu as primeiras noções de

proporcionalidade entre a punição e o dano. Nos dizeres de Cunha (2016, p. 44):

Em vista da evolução social, mas sem se distanciar da finalidade de vingança, o

Código de Hamurabi, na Babilônia, traz a regra do talião, onde a punição passou a

ser graduada de forma a se igualar à ofensa. Todavia, esse sistema, embora

adiantado em relação ao anterior, não evitava penas cruéis e desumanas, fazendo

distinção entre homens livres e escravos, prevendo maior rigor para os últimos,

ainda tratados como objetos.

Ainda sobre o Código de Hamurabi:

Da Babilônia procede o mais antigo direito penal conhecido, através do célebre

código do rei Hammurabi, do século XXIII a.C. (entre 2285 e 2242 a.C.), que

contém disposições civis e penais. Esse texto distinguia entre os homens livres e

escravos e estabelecia pena para vários delitos. A composição era admitida em

alguns delitos meramente patrimoniais, com a devolução do triplo do que havia sido

tomado (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2002, p. 183).

Posteriormente, passou-se a uma nova etapa: a composição. Esta, segundo Inacio de

Carvalho Neto (2013, p. 24), “substituía o cumprimento da pena pela reparação do dano

causado”.

Nesse sentido, Bitencourt (2017, p. 83-84) leciona:

Assim, evoluiu-se para a composição, sistema através do qual o infrator comprava a

sua liberdade, livrando-se do castigo. A composição, que foi largamente aceita na

12

sua época, constitui um dos antecedentes da moderna reparação do Direito Civil e

das penas pecuniárias do Direito Penal.

Com o desaparecimento das penas corporais e aflitivas, foi possível verificar uma

evolução de pensamento, na medida em que a eficácia das penas passa a ganhar força no

campo do abstrato, isto é, no medo que elas ocasionavam na população, e não mais na

punição concretamente considerada, conforme apontado por Focault (2009, p. 14):

A punição vai-se tornando, pois, a parte mais velada do processo penal, provocando

várias consequências: deixa o campo da percepção quase diária e entra no da

consciência abstrata; sua eficácia é atribuída à sua fatalidade, não à sua intensidade

visível; a certeza de ser punido é que deve desviar o homem do crime e não mais o

abominável teatro; a mecânica exemplar da punição muda as engrenagens. Por essa

razão, a justiça não mais assume publicamente a parte de violência que está ligada a

seu exercício. O fato de ela matar ou ferir já não é mais glorificação de sua força,

mas um elemento intrínseco a ela que ela é obrigada a tolerar e muito lhe custa ter

que impor.

Ao final, chega-se à etapa da jurisdição, por meio da qual o Estado toma para si o

encargo de dirimir os conflitos e aplicar as sanções aos infratores. Além disso, é por meio da

jurisdição que o direito é aplicado ao caso concreto. Nessa perspectiva é a lição de Greco

(2017, p. 85):

Em um último estágio, o Estado chamou para si a responsabilidade de não somente

resolver esses conflitos, como também a de aplicar a pena correspondente ao mal

praticado pelo agente. Era, portanto, o exercício da chamada jurisdição, ou seja, a

possibilidade que tinha o Estado de dizer o direito aplicável ao caso concreto, bem

como a de executar, ele próprio, as suas decisões.

No Brasil, porém, os colonizadores portugueses encontraram povos indígenas que

estabeleciam as relações jurídicas segundo suas tradições e costumes, aplicando, inclusive,

algumas sanções, tais como o açoite e a condenação à morte, conforme assevera Porto (2008,

p. 6):

Entre as punições mais frequente aplicadas pelos indígenas brasileiros, podemos

destacar o açoite e a condenação à morte. A primeira modalidade de punição

geralmente era aplicada pelos familiares do ofendido, proporcional ao mal causado e

na mesma região do corpo atingido pelo autor. A morte, por sua vez, não obedecia a

qualquer ritual, sendo aplicada até mesmo a crianças, fruto da infidelidade da

mulher. Nestas hipóteses, ocorria a chamada prole aviltante, devendo a criança ser

morta pelo homem traído. O aborto era permitido aos nossos silvícolas, como forma

de vingança pela mulher grávida ao marido que a maltratava. As crianças gêmeas

eram tidas como frutos do adultério praticado pela mulher, que poderia gerar de uma

só vez dois filhos através de relações sexuais com um único homem, devendo os

infantes ser mortos e enterrados ao nascer do sol.

13

Após o descobrimento do Brasil, passou a vigorar no país o Direito Lusitano, marcado

por instrumentos denominados Ordenações, ganhando destaque as Ordenações Filipinas.

Nesse sentido, Bitencourt (2017, p. 100):

Formalmente, a lei penal que deveria ser aplicada no Brasil, naquela época, era a

contida nos 143 títulos do Livro V das Ordenações Filipinas, promulgadas por Filipe

II, em 1603. Orientava-se no sentido de uma ampla e generalizada criminalização,

com severas punições. Além do predomínio da pena de morte, utilizava outras

sanções cruéis, como açoite, amputação de membros, as galés, degredo etc. Não se

adotava o princípio da legalidade, ficando ao arbítrio do julgador a escolha da

sanção aplicável. Essa rigorosa legislação regeu a vida brasileira por mais de dois

séculos.

Desta forma, é possível concluir que havia um exagero nas punições, que só foi

superado com o surgimento do sistema carcerário, conforme os ensinamentos de Porto (2008,

p. 8):

O excesso na forma de punir, ligado ao poder do soberano, só foi modificado em

nosso ordenamento jurídico com o surgimento do sistema carcerário, que nos

permitiu legitimar o poder disciplinar, de forma a banir, ainda que através de método

falho, a forma de punição ligada à vingança, aplicada aos corpos dos condenados.

Sobre as prisões do período colonial, Carlos Aguirre (2009, p. 21) relata:

Durante o período colonial, as prisões e cárceres não constituíam espaços,

instituições que seus visitantes e hóspedes pudessem elogiar pela organização,

segurança, higiene ou efeitos positivos sobre os presos. De fato, as cadeias não eram

instituições demasiadamente importantes dentro dos esquemas punitivos

implementados pelas autoridades coloniais. Na maioria dos casos, tratava-se de

meros lugares de detenção para suspeitos que estavam sendo julgados ou para

delinquentes já condenados que aguardavam a execução da sentença.

Em 1850, foi instalada a primeira prisão brasileira, denominada “Casa de Correição da

Corte”. De clara influência norte-americana, a prisão buscava a reabilitação dos detentos por

meio da atividade laboral durante o dia e do isolamento à noite. A esse respeito, Porto (2008,

p. 15) leciona:

A primeira prisão brasileira foi inaugurada em 1850 e denominada Casa de

Correição da Corte, mais conhecida nos dias de hoje como Complexo Frei Caneca,

no Rio de Janeiro. Parodiando o modelo de Auburn, no estado de New York, famosa

por ser a primeira prisão a estabelecer o regime de cela única, a técnica punitiva

aplicada na Casa de Correição da Corte consistia na reabilitação dos presos através

do trabalho obrigatório nas oficinas durante o dia e o isolamento celular noturno.

14

Depreende-se, portanto, que a pena de prisão sofreu inúmeras transformações ao longo

do tempo, sendo concebida pelo homem de acordo com o contexto social no qual estava

inserido. Não se pode esquecer, todavia, que o fundamento que legitima a pena e,

consequentemente, a prisão é denominado ius puniendi ou direito de punir, o qual será

analisado a seguir.

1.2 Ius Puniendi: fundamentos e limitações

É certo que a criação de normas comportamentais é uma tarefa essencial para a vida

em sociedade, uma vez que, enquanto balizam as atitudes humanas, acabam funcionando

como instrumentos de pacificação social, evitando conflitos e limitando poderes.

No âmbito penal, tem-se o chamado ius puniendi, ou direito de punir, que, de acordo

com Greco (2017, p. 1):

[...] pode ser entendido tanto em sentido objetivo, quando o Estado, através de seu

Poder Legislativo, e mediante o sistema de freios e contrapesos, exercido pelo Poder

Executivo, cria as normas de natureza penal, proibindo ou impondo um determinado

comportamento, sob a ameaça de uma sanção, como também em sentido subjetivo,

quando esse mesmo Estado, através do seu Poder Judiciário, executa suas decisões

contra alguém que descumpriu o comando normativo, praticando uma infração

penal.

Verifica-se, pois, que o ius puniendi se concretiza em dois aspectos substanciais, quais

sejam, o objetivo e o subjetivo. O primeiro é exercido precipuamente pelo Poder Legislativo e

compreende a tipificação de condutas em leis e códigos, atribuindo a cada uma delas uma

reprimenda específica. De outro lado, o aspecto subjetivo, desempenhado pelo Poder

Judiciário, manifesta-se nos julgamentos dos litígios, por meio dos quais normas abstratas são

aplicadas a casos concretos.

A origem do direito de punir também remonta ao surgimento das penas, porque é

através delas que o Estado o exerce. Segundo o pensador italiano Cesare Beccaria (2012), a

sociedade primitiva abriu mão de parte de sua liberdade com o intuito de garantir a segurança

e a paz, uma vez que o estado de guerra era evidente.

15

Nesse sentido, Beccaria (2012, p. 12) assevera: “A soma de todas essas porções da

liberdade individual constitui a soberania de uma nação e foi depositada nas mãos do

soberano, como administrador legal”.

Da mesma forma, prelecionam Antônio Carlos de Araújo, Ada Pellegrini Grinover e

Cândido Rangel Dinamarco (2009, p. 27):

Nas fases primitivas da civilização dos povos, inexistia um Estado suficientemente

forte para superar os ímpetos individualistas dos homens e impor o direito acima da

vontade dos particulares: por isso, não só inexistia um órgão estatal que, com

soberania e autoridade, garantisse o cumprimento do direito, como ainda não havia

sequer as leis (normas gerais e abstratas impostas pelo Estado aos particulares).

Assim, quem pretendesse alguma coisa que outrem o impedisse de obter haveria de,

com sua própria força e na medida dela, tratar de conseguir, por si mesmo, a

satisfação de sua pretensão. A própria repressão aos atos criminosos se fazia em

regime de vingança privada e, quando o Estado chamou a si o jus punitionis, ele o

exerceu inicialmente mediante seus próprios critérios e decisões, sem a interposição

de órgãos ou pessoas imparciais independentes e desinteressadas. A esse regime

chama-se autotutela (ou autodefesa) [...].

Posteriormente e já revestido de soberania, o Estado passou a exercer o ius puniendi,

tomando para si o encargo de resolver os conflitos, aplicar o direito, fazer justiça e garantir a

paz social. De acordo com Guerra (2017, p. 420):

Ao ser conferida ao Estado a função de preservar e manter o pacto social pela

ortopedia social estruturada pelo panótipo, passou também a ser o único e legítimo

poder capaz de restringir a liberdade daqueles que efetivamente a violaram, por meio

de suas instâncias de controle social-penal (legislação, polícia, magistratura,

instituições penitenciárias). Legitimidade que lhe atribuiu o poder/dever de reprimir

a criminalidade responsável pelos comportamentos individuais desviados da

programação social estabelecida, com o fim de reafirmar os valores e as normas

sociais a partir da reprovação e condenação das condutas que uma lei previamente

estipulada determinou serem consideradas criminosas.

A titularidade do ius puniendi é exclusiva do Estado, pois este ente é dotado de poder

soberano, sendo certo que, até mesmo na chamada ação penal privada, “[...] o Estado somente

delega ao ofendido a legitimidade para dar início ao processo, isto é, confere-lhe o jus

persequendi in judicio, conservando consigo a exclusividade do jus puniendi” (CAPEZ, 2012,

p. 45).

A esse respeito, a propósito:

Assim, os conflitos interpessoais que historicamente se resolviam entre as partes

envolvidas passaram a ser entregues ao arbítrio do Estado, cuja decisão ficou

circunscrita aos parâmetros legais estabelecidos pela nova conformação social

implementada, conferindo-lhe, então, o monopólio da legitimidade de poder/dever

de punir, o denominado jus puniendi (GUERRA, 2017, p. 421).

16

Ressalta-se, ainda, que, num primeiro momento, o ius puniendi não atinge uma pessoa

específica, já que se dirige à sociedade em seu aspecto coletivo. Com o cometimento do

ilícito, porém, esse poder abstrato se materializa para atingir o agente infrator, demonstrando

a sua força coercitiva. Nesse sentido, Capez (2012, p. 46) explica:

No momento em que é cometida uma infração, esse poder, até então genérico,

concretiza-se, transformando-se em uma pretensão individualizada, dirigida

especificamente contra o transgressor. O Estado, que tinha um poder abstrato,

genérico e impessoal, passa a ter uma pretensão concreta de punir determinada

pessoa.

Nesse passo, impende salientar que o ius puniendi não constitui somente um direito do

qual o Estado é titular. Mais do que isso, caracteriza-se por ser também uma obrigação

dirigida ao próprio ente estatal, uma vez que o Estado tomou para si a responsabilidade de

resolver os conflitos e de garantir a pacificação social. Nas palavras de Leonardo Barreto

Moreira Alves (2018, p. 27):

Aliás, vale a pena ressaltar que, muito mais que um direito, há para o Estado um

verdadeiro dever de punir (poder-dever de punir), pois a partir do momento em que

ele assume para si a aplicação do Direito, mediante a jurisdição, afastando-se a tutela

privada, deve determinar a aplicação das sanções penais aos responsáveis por

infrações penais, sob pena de se colocar em risco a convivência social.

O direito de punir se fundamenta na necessidade e, sendo assim, o Estado somente

pode exercê-lo em casos extremos. Nesse sentido:

É sobre isso que está fundamentado o direito do soberano em punir os crimes; ou

seja, sobre a necessidade de defender a liberdade pública, confiada a seus cuidados,

da usurpação por indivíduos; e as penas são tão justas quanto mais sagrada e

inviolável é a liberdade que o soberano preserva aos súditos (BECCARIA, 2012,

p.13).

No que tange ao exercício do ius puniendi, cumpre observar que o Estado não pode

desempenhá-lo de maneira ilimitada, porque se assim o fizesse, estaria criando um ambiente

propício a injustiças e arbitrariedades, tal como ocorre nos regimes ditatoriais.

É nesse contexto que surgem os princípios penais fundamentais, os quais atuam como

verdadeiros limitadores do direito de punir estatal. Ademais, a despeito de não existir um

consenso quanto ao número de princípios, é certo que todos eles possuem fundamento no

princípio da dignidade da pessoa humana, o qual será analisado em tópico específico.

17

Segundo Greco (2017, p. 75):

Podemos dividir esses princípios penais fundamentais, limitadores do ius puniendi

do Estado, em dois grandes blocos, sem que, com isso, possamos falar em

exclusividade. O primeiro deles seria destinado ao legislador, que tem por finalidade

precípua a criação dos tipos penais, proibindo ou impondo determinado

comportamento, sob a ameaça de sanção. O segundo, seria dirigido ao Poder

encarregado de aplicar a lei penal, vale dizer, o Poder Judiciário.

Dentre os princípios que compõem o arcabouço limitante do ius puniendi, cinco deles

serão aqui analisados, quais sejam, os princípios da intervenção mínima, da lesividade, da

legalidade, da individualização das penas e da proporcionalidade.

Inicialmente, tem-se o princípio da intervenção mínima, a respeito do qual Bitencourt

(2017, p. 56) afirma:

O princípio da intervenção mínima, também conhecido como ultima ratio, orienta e

limita o poder incriminador do Estado, preconizando que a criminalização de uma

conduta só se legitima se constituir meio necessário para a prevenção de ataques

contra bens jurídicos importantes. Ademais, se outras formas de sanção ou outros

meios de controle social revelarem-se suficientes para a tutela desse bem, a sua

criminalização é inadequada e não recomendável.

Desta forma, é possível concluir que o Estado só deve intervir nas relações

interpessoais quando estritamente necessário e em último caso. Evitam-se, com isso, relações

de abuso de poder e interferências descabidas na vida privada dos cidadãos.

O princípio da lesividade, por sua vez, exige a efetiva ocorrência de lesão ao bem

jurídico para que o ente estatal atue. Assim, em não havendo ofensa concreta, o Estado

deveria abster-se de exercer o ius puniendi.

Nessa perspectiva, Cunha (2016, p. 94) ensina: “O princípio da ofensividade ou

lesividade (nullum crimen sine iniuria) exige que do fato praticado ocorra lesão ou perigo de

lesão ao bem jurídico tutelado”.

O princípio da legalidade constitui uma garantia fundamental e possui previsão

expressa na Carta Magna e no Código Penal. Por meio deste princípio, para que haja um

delito, é imperioso que a conduta criminosa esteja prevista em lei, consoante lição de Nucci

(2015, p. 20-21):

Trata-se do fixador do conteúdo das normas penais incriminadoras, ou seja, os tipos

penais, mormente os incriminadores, somente podem ser criados através de lei em

sentido estrito, emanada do Poder Legislativo, respeitado o procedimento previsto

na Constituição. Encontra-se previsto, expressamente, no art. 5.º, XXXIX, da CF,

bem como no art. 1.º do Código Penal.

18

Além disso, segundo Cunha (2016, p. 83): “Trata-se de real limitação ao poder estatal

de interferir na esfera de liberdades individuais, daí sua inclusão na Constituição entre os

direitos e garantias fundamentais”.

O princípio da individualização das penas também possui previsão expressa no texto

da Constituição Federal, que em seu artigo 5º, inciso XLVI, dispõe: “a lei regulará a

individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição de

liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou

interdição de direitos”.

Referido princípio, aliás, pode ser verificado em três fases, a saber: “a) fase de

cominação (de competência do legislador); b) fase da aplicação (de competência do julgador);

c) fase da execução das penas (também de competência do juiz)” (GRECO, 2017, p. 77).

Por fim, a respeito do princípio da proporcionalidade, Cunha leciona (2016, p. 401):

“Trata-se de princípio implícito, desdobramento lógico do mandamento da individualização

da pena. Para que a sanção penal compra a sua função, deve se ajustar à relevância do bem

jurídico tutelado, sem desconsiderar as condições pessoais do agente”.

Nas palavras de Capez (2015, p. 38):

Além disso, a pena, isto é, a resposta punitiva estatal ao crime, deve guardar

proporção com o mal infligido ao corpo social. Deve ser proporcional à extensão do

dano, não se admitindo penas idênticas para crimes de lesividades distintas, ou para

infrações dolosas e culposas.

De acordo com esse princípio, portanto, a reprimenda não pode ser aplicada

indistintamente, devendo guardar íntima relação com a infração praticada e com as condições

do caso concreto, sendo certo que, quanto mais valioso for o bem jurídico lesionado ou

quanto maior for a reprovabilidade da conduta do agente, maior será a sua sanção.

1.3 Direitos dos presos

Inicialmente, parte-se do pressuposto de que o cidadão, ainda que tenha sua liberdade

restringida, seja por prisão definitiva, seja por prisão provisória, não perde a qualidade de

sujeito de direitos e, por conseguinte, a sua prerrogativa de receber amparo e proteção estatal.

19

O status de condenado configura uma complexa relação jurídica entre dito

condenado e o Estado. Portanto: o homem-pessoa em status de condenado tem

direitos que devem ser respeitados, e tem deveres que ele deve cumprir. Isto quer

dizer: a situação de condenado não é mera realidade, mera situação vital

naturalística, dentro da qual o condenado haja de ser considerado e tratado de modo

meramente naturalístico, como um composto biopsíquico, que não funcionou bem,

mas que, submetido a tal ou qual “tratamento”, vai funcionar bem, vai funcionar a

contento... (MIOTTO, 1975, p. 362).

É nesse contexto que o ordenamento jurídico confere uma série de direitos aos

detentos, conforme se verá adiante.

A Constituição Federal, por ser o fundamento de validade das demais normas, é a

responsável por traçar as diretrizes gerais no que se refere aos direitos fundamentais da pessoa

humana, os quais devem ser observados, sob pena de inconstitucionalidade.

Nesse sentido, tem-se o artigo 5º, inciso III, da Carta Magna, segundo o qual

“ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”.

Sobre a titularidade desse direito fundamental, Ingo Wolfgang Sarlet, Luiz Guilherme

Marinoni e Daniel Mitidiero (2018, p. 438) lecionam:

[...] no que diz com sua titularidade, portanto, o sujeito do direito a não ser

torturado, submetido a tratamento desumano ou degradante ou à imposição de penas

cruéis, cuida-se de toda e qualquer pessoa humana viva, por ser direito de

titularidade universal, já pelo fato de se tratar de projeção essencial à própria

dignidade humana.

O inciso XLVII do artigo 5º da Constituição Federal, por sua vez, veda expressamente

a pena de morte, exceto em caso de guerra declarada, a de caráter perpétuo, de trabalhos

forçados, de banimento e cruel.

A esse respeito: “Quanto ao segundo desdobramento, ou seja, o direito a uma vida

digna, a Constituição garante as necessidades vitais básicas do ser humano e proíbe qualquer

tratamento indigno, como a tortura, penas de caráter perpétuo, trabalhos forçados, cruéis, etc.”

(LENZA, 2018, p. 1187).

O inciso XLVIII do artigo 5º da CF dispõe que “a pena será cumprida em

estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado”.

Para Antonio Fernando Pires (2016, p. 252), “Busca-se, com este inciso, a dignidade

do preso. Homens e mulheres, por exemplo, não podem cumprir pena num mesmo

estabelecimento prisional”.

20

Importante, ainda, consignar o direito previsto no inciso XLIX do mesmo artigo, o

qual estabelece que “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”.

Entretanto, Mendes (2012, p. 345) adverte que “[...] a proibição de penas cruéis e a

exigência de respeito à integridade física e moral do preso não impedem o padecimento moral

ou físico experimentado pelo condenado, inerentes às penas supressivas da liberdade”.

Nos termos do inciso L do artigo 5º da Carta Constitucional, assegura-se às

presidiárias o direito de permanecerem com seus filhos durante o período de amamentação.

A respeito deste inciso: “Trata-se de novidade prevista pela CF/88, com o objetivo de

assegurar a maternidade e o direito do nascituro de ser amamentado, velando pelo princípio de

que a pena não deve passar da pessoa condenada” (ALMEIDA; APOLINÁRIO, 2011, p. 93).

No tocante às normas infraconstitucionais, tem-se a Lei de Execução Penal, que

também instituiu direitos aos presos.

De acordo com Adeildo Nunes (2013, p. 87):

Com a aquisição de uma série de direitos, somente alçados com o advento da Lei de

Execução Penal, além de outros existentes e definidos na Constituição Federal de

1988, sedimentou-se ao detento a condição de sujeito de direito, uma conquista dos

encarcerados e da própria dignidade humana. Com a LEP, finalmente, um conjunto

de direitos foi expressamente consagrado em benefício do preso, impondo-se a todas

as autoridades do País o respeito à integridade física e moral aos seus reclusos.

Nos dizeres de Renato Marcão (2018, p. 65): “A execução penal, no Estado

Democrático e de Direito, deve observar estritamente os limites da lei e do necessário ao

cumprimento da pena e da medida de segurança. Tudo o que excede aos limites contraria

direitos”.

Repisando a previsão constitucional do artigo 5º, inciso XLIX, anteriormente

mencionado, o artigo 40 da Lei de Execução Penal impõe às autoridades o respeito à

integridade física e moral dos detentos definitivos e provisórios.

O artigo 41, também da Lei de Execução Penal, elenca uma série de direitos

conferidos aos detentos, dentre os quais, alimentação e vestuário; atribuição de trabalho e sua

remuneração; previdência social; constituição de pecúlio; proporcionalidade na distribuição

do tempo para o trabalho, o descanso e a recreação; exercício das atividades profissionais,

intelectuais, artísticas e desportivas; assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social

e religiosa, proteção contra qualquer forma de sensacionalismo, entre outros.

21

Além dos direitos positivados no ordenamento jurídico brasileiro, outros benefícios

foram conferidos aos detentos. Tais benefícios, aliás, são observados na maioria das

penitenciárias embora não estejam previstos na legislação. Nesse sentido, Porto (2008, p. 31):

A visita íntima não está regulamentada, mas, ainda assim, tem sido permitida em

grande parte dos estabelecimentos prisionais brasileiros. A visita íntima de marido,

mulher, companheiro ou companheira tem sido condicionada ao comportamento do

preso, à segurança do presídio e às condições da unidade prisional sem perder de

vista a preservação da saúde das pessoas envolvidas e a defesa da família. Tratada

como um direito incontestável, a visita íntima tem sido apontada como elemento de

grande influência na manutenção dos laços afetivos e na ressocialização do preso.

Por derradeiro, cabe ressaltar que os direitos concedidos aos reclusos não se esgotam

naqueles positivados no ordenamento jurídico pátrio. Não se pode esquecer que o homem,

ainda que tenha a sua liberdade de locomoção restringida, não deixa de ser um sujeito de

direitos, merecendo, portanto, tratamento digno e respeito aos seus direitos fundamentais.

1.4 Princípio da dignidade da pessoa humana

A dignidade da pessoa humana é o valor que orienta os demais princípios e funciona

como um norte para o Estado em todas as esferas de atuação. Além disso, ressalta-se que

referido preceito se apresenta no texto constitucional de diversos países.

Nesse sentido, a própria Constituição Federal de 1988, em seu artigo 1º, inciso III,

elenca a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República Federativa do

Brasil.

No âmbito jurisprudencial, destaca-se o entendimento do Supremo Tribunal Federal

sobre este princípio:

[...] significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira

todo o ordenamento constitucional vigente em nosso País e que traduz, de modo

expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana e

democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo (STF, 2005)

Em que pese seja de difícil conceituação, a dignidade da pessoa humana, nas palavras

de Greco (2017, p. 65), pode ser entendida como:

22

[...] uma qualidade que integra a própria condição humana, sendo, em muitas

situações, considerada, ainda, como irrenunciável e inalienável. É algo inerente ao

ser humano, um valor que não pode ser suprimido, em virtude da sua própria

natureza. Até o mais vil, o homem mais detestável, o criminoso mais frio e cruel é

portador desse valor.

Ademais, a dignidade se revela como um valor que não pode ser renunciado ou

negociado pelo seu detentor, uma vez que é inerente ao próprio ser humano, devendo, ainda,

constar no ordenamento jurídico dos países. Nesse sentido:

O conceito de dignidade humana é apriorístico: precede a experiência jurídica. É

exigência ética mínima inalienável e irrenunciável, essencial à própria condição

humana. A jurisprudência espanhola tem considerado que, em qualquer situação, o

valor espiritual e moral inerente à pessoa humana deve permanecer inalterado. A

dignidade é o mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar

(SARMENTO, 2014, p. 13).

A dignidade da pessoa humana se projeto também no plano internacional,

representando um princípio orientador do constitucionalismo atual, conforme o entendimento

de Flávia Piovesan (2016, p. 101):

Assim, seja no âmbito internacional, seja no âmbito interno (à luz do Direito

Constitucional ocidental), a dignidade da pessoa humana é princípio que unifica e

centraliza todo o sistema normativo, assumindo especial prioridade. A dignidade

humana simboliza, desse modo, verdadeiro superprincípio constitucional, a norma

maior a orientar o constitucionalismo contemporâneo, nas esferas local e global,

dotando-lhe de especial racionalidade, unidade e sentido.

A respeito do desenvolvimento histórico do conceito de dignidade, Ricardo Castilho

(2018a) assegura que o tema já era discutido na Grécia antiga, sendo, porém, um valor

relativo, tendo em vista que alguns grupos sociais, a exemplo dos escravos, não eram

considerados dignos de possuí-lo.

Nesse contexto, a dignidade possuía um aspecto social e estava atrelada à classe que

os cidadãos ocupavam na sociedade. A esse respeito:

Prevalecia a ideia de dignidade como atributo – uma espécie de honraria ou título –

pelo qual se distinguia um indivíduo em razão do papel que exercia dentro da

sociedade, admitindo-se, assim, tanto a quantificação quanto a supressão da

dignidade, isto é, a possibilidade de haver indivíduos mais ou menos dignos do que

outros ou, ainda, indivíduos destituídos de qualquer dignidade (WEYNE, 2013, p.

33).

23

Foi na idade média, com o cristianismo, que o conceito sofreu grande evolução,

conforme aponta Castilho (2018a, p. 240):

A ideia de dignidade, de um núcleo imanente a todo ser humano, surge com o

pensamento clássico e com o cristianismo. Em sua gênese, a dignidade estava ligada

ao fato, descrito biblicamente, de ter sido o homem criado à imagem e semelhança

de Deus.

Para Bruno Cunha Weyne (2013, p. 41):

Se na Antiguidade greco-romana prevaleceu uma concepção de homem vinculada à

atividade política dirigida pela razão, por ser essa a única via capaz de efetivar a

natureza humana, na Idade Média predominará uma concepção de homem que se

fundamenta numa fonte transcendente, que é a divindade.

Na idade moderna, porém, a concepção de dignidade passou por um processo de

laicização, uma vez que deixou de estar associada ao cristianismo. Segundo Ricardo Castilho

(2018a, p. 240), o pensador Pico Della Mirandola “desenvolveu o princípio da dignidade,

dando-lhe sentido fora da teologia, tendo sido o pioneiro nesse aspecto”.

No campo do direito penal, o princípio da dignidade da pessoa humana ganha atenção

especial, eis que se constitui como fundamento de validade de outros princípios, além de

limitar o poder do ente estatal na elaboração de tipos penais e na aplicação das sanções. Nas

palavras de Capez (2015, p. 23):

No que diz respeito ao âmbito penal, há um gigantesco princípio a regular e orientar

todo o sistema, transformando-o em um direito penal democrático. Trata-se de um

braço genérico e abrangente, que deriva direta e imediatamente deste moderno perfil

político do Estado brasileiro, a partir do qual partem inúmeros outros princípios

próprios afetos à esfera criminal, que dele encontram guarida e orientam o legislador

na definição das condutas delituosas. Estamos falando do princípio da dignidade

humana (CF, art. 1º, III).

Para Cunha (2016, p. 100), a “ninguém pode ser imposta pena ofensiva à dignidade da

pessoa humana, vedando-se reprimenda indigna, cruel, desumana ou degradante. Este

mandamento guia o Estado na criação, aplicação e execução de leis penais”.

Segundo Alberto Jorge Correia de Barros Lima (2012, p. 34):

No Direito Penal, é correto afirmar que o cometimento do crime não retira do agente

o valor de ser humano, da posição que ele ocupa junto aos seus semelhantes, não faz

desaparecer a sua dignidade e, assim, a reação penal deve, necessariamente, partir

deste axioma normativo. Por outro lado, se for correta a tese de que a construção do

crime passa, em última análise, pela verificação de afetação aos direitos

24

fundamentais, a garantia de observância do princípio estende-se à pessoa da vítima,

exatamente em razão das reduções possíveis de direitos fundamentais impostas ao

condenado. A pena, nessa lógica, não deixa de ser a reafirmação da dignidade da

pessoa humana.

Nesse passo, cumpre salientar que, a despeito do princípio da dignidade da pessoa

humana possuir previsão constitucional, sendo, ainda, considerado por muitos autores como

um superprincípio, é certo que a sua violação já representa uma realidade. Esse desrespeito,

aliás, é atribuído muitas vezes ao próprio Estado, que, em tese, deveria zelar pela sua

observância.

O sistema penitenciário brasileiro é um bom exemplo. Não é raro deparar-se com a

negligência estatal nesse ambiente, tendo em vista que os detentos não possuem condições

mínimas de habitação e segurança, o que vai de encontro ao preceito constitucional.

Indivíduos que foram condenados ao cumprimento de uma pena privativa de

liberdade são afetados, diariamente em sua dignidade, enfrentando problemas como

superlotação carcerária, espancamentos, ausência de programas de reabilitação, falta

de cuidados médicos etc. (GRECO, 2017, p. 68).

É possível, portanto, verificar certa discrepância entre o princípio da dignidade da

pessoa humana abstratamente previsto na Constituição Federal e em documentos

internacionais, e a sua aplicação pragmática. Isso representa, em última análise, uma

contradição social grave, já que se o preceito básico não está sendo observado, tampouco os

demais estarão.

25

II O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL

De origem recente e com contornos pouco definidos, o Estado de Coisas

Inconstitucional (ECI) constitui uma nova modalidade de decisão empregada por algumas

cortes constitucionais. Mais do que um mero instituto jurídico, o ECI representa uma nova

possibilidade de se concretizar o princípio da dignidade da pessoa humana em face da

omissão estatal desenfreada, conforme se verá adiante.

2.1 Conceito e origem

O Estado de Coisas Inconstitucional (ECI) pode ser entendido como uma modalidade

de decisão que “busca conduzir o Estado a observar a dignidade da pessoa humana e as

garantias dos direitos fundamentais uma vez que esteja em curso graves violações a esses

direitos por omissão dos poderes públicos” (CAMPOS, 2016, p. 96).

Segundo Gianfranco Faggin Mastro Andréa (2018, p. 66):

[...] define-se ECI como técnica de decisão voltada a sanar um quadro de violação

massiva, generalizada e sistemática de direitos fundamentais, decorrente de ações

e/ou omissões em função de bloqueios políticos e/ou institucionais de diferentes

autoridades/órgãos/poderes públicos que prejudicam um grupo vulnerável de

pessoas.

Não se trata, portanto, de uma ação judicial autônoma, mas sim de um instrumento

processual utilizado para declarar uma situação insustentável de violação a direitos

fundamentais, conforme leciona Campos (2016, p. 185):

Trata-se de técnica decisória por meio da qual se declara uma “realidade

inconstitucional”. Não é uma ação judicial propriamente dita, e sim uma ferramenta

processual pela qual cortes produzem uma norma declaratória da contradição

insuportável entre o texto constitucional e realidade social.

Além disso, importante consignar que o ECI não se confunde com a declaração de

inconstitucionalidade por omissão, tendo em vista que:

26

[...] a Corte Constitucional, após a declaração do ECI e estabelecimento de prazos

para o oferecimento de planos e solução por parte dos órgãos e/ou poderes públicos,

mantém uma “jurisdição supervisória”, ou seja, há o monitoramento da

implementação das políticas públicas necessárias para superação do ECI com

fiscalização e ordens judiciais flexíveis para readequação dos planos. Isso é o que há

de melhor na figura do ECI: o monitoramento judicial (ANDRÉA, 2018, p. 66).

Com efeito, diante de um quadro sistêmico de omissão estatal e de violação

desenfreada dos direitos fundamentais, o Estado de Coisas Inconstitucional funciona como

um mecanismo jurídico que tutela a dignidade da pessoa humana e as demais garantias

estabelecidas na Constituição Federal. Nesse sentido:

Em face de sistemática omissão estatal, incluída a omissão legislativa, a Corte busca

estabelecer um modelo coordenado de ação que alcança diferentes atores, voltado a

reverter o quadro de massiva transgressão de direitos fundamentais. Dessa forma,

tanto interfere em escolhas políticas quanto procura assegurar que essas escolhas se

concretizem e surtam efeitos reais (CAMPOS, 2016, p. 97).

Segundo Castilho (2018b, p. 342), o ECI se verifica em um cenário de:

[...] violação maciça de direitos fundamentais de um número significativo de

pessoas, cujo combate ou superação depende de complexas e coordenadas medidas

até então não adotadas em razão da falta de vontade política ou da desarticulação

institucional entre as diferentes instâncias de poder.

No que tange à finalidade do instituto, Dirley da Cunha Júnior (2015) leciona que o

ECI se destina à “construção de soluções estruturais voltadas à superação desse lamentável

quadro de violação massiva de direitos das populações vulneráveis em face das omissões do

poder público”.

A Corte Constitucional Colombiana (CCC) declarou o Estado de Coisas

Inconstitucional pela primeira vez em 1997, na sentença SU-559, em um processo no qual se

discutia a recusa estatal em garantir direitos previdenciários a professores municipais. A esse

respeito, Campos (2016, p. 121) leciona:

Foi na SU – 559, de 1997, que a Corte Constitucional declarou, pela primeira vez, o

ECI. Na espécie, 45 professores dos municípios de María La Baja e Zambrano

tiveram os direitos previdenciários recusados pelas autoridades locais. Os

professores contribuíam com 5% de seus subsídios para um fundo previdenciário

denominado Fundo de Prestación Social. Todavia, não recebiam cobertura de saúde

ou de seguridade social.

27

Constatou-se que os municípios não respeitavam os mandamentos legais e que, por

conseguinte, não incluíam os professores no fundo previdenciário, consoante relatado por

Andréa (2018, p. 32):

Diante de tal situação, e após levantamento de que a maior parte dos municípios não

estava cumprindo as legislações de regência, no sentido de incluir os professores

municipais no Fundo Nacional de Prestações Sociais do Magistério, a CCC,

antevendo a possibilidade de que milhares de acciones de tutela poderiam ser

propostas, declarou, pela primeira vez, um “Estado de Coisas Inconstitucional”, em

6 de novembro de 1997.

A respeito dessa decisão paradigmática que marcou a origem do Estado de Coisas

Inconstitucional, Vieira Junior (2015, p. 17) assevera:

Nesse caso, a Corte Constitucional constatou existir um descumprimento

generalizado dos direitos previdenciários de um grupo de 45 (quarenta e cinco)

professores de dois municípios colombianos e de um grupo ainda maior que era

alcançado pela situação. Declarou o „estado de coisas inconstitucional‟ e determinou

que os municípios envolvidos encontrassem solução para a inconstitucionalidade em

prazo razoável.

O professor Pietro de Jesús Lora Alarcón (2017, p. 89), esmiuçando a decisão

proferida pela Corte Constitucional Colombiana, destacou os parâmetros de interpretação

utilizados, a saber:

a) a Corte assume a tarefa de colaborar de maneira harmônica com o restante dos

órgãos do Estado para a realização de seus fins. Do mesmo modo que se deve

comunicar à autoridade competente a notícia relativa à comissão de um delito, não

há razão para omitir a notificação de que um determinado estado de coisas resulta

violador da Constituição; b) para a corte, a guarda da Constituição implica sua

legitimidade para instar o cumprimento das obrigações constitucionais pelas quais

deve responder uma autoridade, evitando-se a utilização excessiva dos mesmos

recursos jurídicos para o mesmo fim; c) o ECI deve guardar relação direta com a

violação dos direitos fundamentais; d) a Corte sustenta que, neste caso, a notificação

da irregularidade existente poderá ser acompanhada de um requerimento específico

ou genérico dirigido às autoridades para que realizem ou se abstenham de realizar

uma ação [...].

Ao final do julgamento, a Corte Colombiana:

(1) declarou o ECI; (2) determinou que os municípios que se encontrassem em

situação similar corrigissem a inconstitucionalidade em prazo razoável; (3) ordenou

o envio de cópias da sentença aos Ministros da Educação e da Fazenda e do Crédito

Público, ao Diretor do Departamento Nacional de Planejamento, aos membros do

CONPES social, aos Governadores e Assembleias, aos Prefeitos e aos Conselhos

Municipais para providências (CAMPOS, 2016, p. 124).

28

No ano seguinte, a mesma Corte reconheceu o Estado de Coisas Inconstitucional pela

segunda vez. Nesta oportunidade, a decisão foi proferida no bojo de um processo em que se

discutia a mora da Caixa Nacional da Previdência, conforme narrado por Andréa (2018, p.

35):

O segundo caso em que a CCC declarou o ECI foi por meio da sentencia T-068, de 5

de março de 1998. Naquela oportunidade, demandou-se contra a Caixa Nacional da

Previdência, sob o fundamento de que aludido órgão estatal estaria em mora para

responder as petições de aposentados e pensionistas que visavam à obtenção de

recálculos e pagamentos de diferenças das verbas previdenciárias.

A Corte Constitucional Colombiana, entendendo estarem presentes todos os requisitos

autorizadores do ECI, reconheceu a existência de um cenário grave de violação ao direito de

petição. A esse respeito, Campos (2016, p. 125-126) assevera:

Julgando em conjunto cinco acciones de tutela, a Corte concluiu estar presente um

quadro insuportável de ineficiência administrativa, que vulnerava permanentemente

o direito fundamental de petição dos administrados e gerava grande quantidade de

acciones contra a entidade previdenciária.

Sobre a decisão proferida na sentença T-068, Andréa (2018, p. 35) afirma:

Constatou-se que a entidade tinha um acúmulo de 45 mil petições a serem

apreciadas e que demoraria de 2 a 3 anos para se obter uma resposta. Diante dessa

situação a CCC considerou que existia um problema estrutural de ineficiência e

ineficácia administrativa que requeria uma reestruturação, além disso assinalou que

a deficiência administrativa afetava não só os direitos dos pensionistas e

aposentados, mas também todo o aparato jurisdicional em razão do

congestionamento de inúmeras “tutelas” ajuizadas com fulcro no mesmo motivo.

Dentre as diversas medidas ordenadas pela Corte, destacam-se:

(1) ordenou à Caixa Nacional de Previdência que resolvesse o direito de fundo dos

demandantes em 48 horas; (2) declarou o ECI; (3) ordenou fosse tal declaração

comunicada aos Ministros da Fazenda e do Crédito Público e do Trabalho e da

Seguridade Social, ao Chefe do Departamento Administrativo da Função Pública e à

gerência da Caixa Nacional de Previdência Social para que, dentro do prazo de seis

meses, “corrigissem, na prática, dentro dos parâmetros legais, as falhas de

organização e procedimento” que resultaram no ECI declarado; (4) comunicou a

decisão ao Procurador Geral da Nação e ao Controlador-Geral da República para

que vigiassem o cumprimento da sentença e o exercício diligente e eficiente das

respostas pela Caixa Nacional de Previdência às petições de aposentados e

pensionistas; (5) comunicou ao Defensor do Povo para velar pelo respeito aos

direitos humanos dos aposentados e pensionistas, devendo informar à Corte

Constitucional sobre a situação (CAMPOS, 2016, p. 127-128).

29

Em outras ocasiões, a Corte Colombiana continuou reconhecendo o ECI. Uma das

decisões de maior notoriedade foi a proferida no caso do sistema carcerário colombiano, em

que ficaram constatadas diversas violações a direitos fundamentais dos detentos, conforme

preleciona Vieira Junior (2015, p. 17):

A Corte colombiana passou a aperfeiçoar o instituto em decisões posteriores. Um

dos casos de maior destaque foi o tratado na Sentencia de Tutela (T) nº 153, de

1998, em que a Corte Constitucional declarou o “estado de coisas inconstitucional”

relativo ao quadro de superlotação das penitenciárias do país. A Corte constatou que

o quadro de descumprimento de direitos fundamentais era generalizado. A

superlotação e o império da violência nas penitenciárias eram mazelas nacionais, de

responsabilidade de um conjunto de autoridades. Além de declarar o “estado de

coisas inconstitucional”, ordenou a elaboração de um plano de construção e

reparação das unidades carcerárias e determinou a alocação de recursos

orçamentários necessários.

Diversos direitos fundamentais estavam comprometidos por causa da superlotação

carcerária. Nesse sentido, aliás:

A Corte Constitucional identificou que o quadro de superlotação das penitenciárias

colombianas implicava a violação massiva dos direitos à dignidade humana, à vida,

à integridade física, à família, à saúde, enfim, a amplo conjunto de direitos

fundamentais. A violação massiva, pode-se dizer, estava dirigida à Constituição

como um todo (CAMPOS, 2016, p. 129).

A declaração do Estado de Coisas Inconstitucional foi motivada, sobretudo, pela

inexistência de políticas públicas que tutelassem os direitos básicos dos detentos, conforme

afirma Andréa (2018, p. 37-38):

O caso do sistema carcerário colombiano apresenta-se como a primeira decisão

efetivamente estrutural diante da situação dos presos. A CCC justificou a declaração

do ECI dada a ausência de políticas públicas que garantissem um mínimo de

proteção aos direitos fundamentais dos detentos.

Em sua decisão final, a Corte:

1) ordenou fossem notificados do ECI os Presidentes da República, do Senado, da

Câmara, da Turma de Direito Penal da Corte Suprema de Justiça, das Turmas

Administrativa e Jurisdicional Disciplinar do Conselho Superior da Judicatura, o

Fiscal Geral da Nação, os Governadores e Prefeitos, os Presidentes das Assembleias

dos Departamentos e dos Conselhos Municipais; 2) ordenou ao Instituto Nacional

Penitenciário e Carcerário – INPEC, ao Ministério da Justiça e do Direito e ao

Departamento Nacional de Planejamento a elaboração, dentro de três meses, de um

plano de construção e reparação das unidades carcerárias de modo a assegurar

condições dignas aos presos, bem como a direção da realização total do plano que

30

deveria se dar no prazo máximo de quatro anos; 3) determinou que o Governo

nacional providenciasse os recursos orçamentários e demais medidas necessárias à

execução do aludido plano; 4) incumbiu a Defensoria do Povo e a Procuradoria-

Geral da Nação de supervisionarem essa execução; 5) ordenou ao Instituto Nacional

Penitenciário e Carcerário – INPEC que promovesse, no prazo máximo de 4 anos, a

separação total dos presos provisórios daqueles já condenados; 6) ordenou ao

Instituto Nacional Penitenciário – INPEC e aos Ministérios da Justiça e do Direito e

da Fazenda a tomada de providências necessárias para solucionar a carência de

pessoal especializado nas prisões; 7) ordenou aos Governadores, Prefeitos e

Presidentes das Assembleias dos Departamentos e Conselhos Municipais que

cumprissem com a obrigação de criar e manter presídios próprios; 8) por fim,

ordenou ao Presidente da República, como suprema autoridade administrativa do

país, e ao Ministro da Justiça e do Direito que, enquanto estivessem andamento as

obras públicas determinadas, “tomassem as medidas necessárias para assegurar a

ordem pública e o respeito dos direitos fundamentais dos internos nos

estabelecimentos de reclusão do país” (CAMPOS, 2016, p. 131-132).

Embora com alguns entraves, referida decisão foi acatada pelos gestores, produzindo

diversos efeitos positivos no sistema penitenciário colombiano, nos termos do que ressalta

Andréa (2018, p. 42):

A despeito dos atrasos, a decisão da CCC foi executada pelas autoridades

competentes e gerou mais de 20 mil vagas no sistema prisional colombiano. A

principal determinação da decisão foi a construção e reforma de prisões. Na verdade,

o maior ponto positivo nesta decisão foi colocar a crise do sistema carcerário

colombiano na pauta do país e apontar para uma nova abordagem da questão pela

Corte Constitucional, capaz de agir como mola propulsora no sentido de retirar da

inércia os órgãos e autoridades públicas.

Verifica-se, portanto, que o Estado de Coisas Inconstitucional, a despeito de ser um

mecanismo relativamente recente, possui grande relevância no contexto jurídico

contemporâneo e já tem orientado a jurisprudência de diversos tribunais. Além disso, constitui

um instrumento capaz de tutelar e concretizar os direitos fundamentais dos cidadãos em face

da omissão estatal.

2.2 Fundamentos e pressupostos

No presente tópico serão analisados os fundamentos e os pressupostos que embasam a

teoria do Estado de Coisas Inconstitucional.

Do ponto de vista filosófico, o ECI está amparado na filosofia política liberal-

igualitária, conforme os ensinamentos de Campos (2016, p. 158):

31

Sob o ângulo filosófico, a doutrina encontra fundamento na filosofia política liberal-

igualitária, por exemplo, na teoria da justiça de John Rawls, mais precisamente em

sua noção de mínimo social (social minimum). Para Rawls, questões de justiça

básica alcançam preocupações com a desigualdade social e econômica e a

distribuição desigual de oportunidades, no entanto, essas questões devem ser

deixadas às decisões do legislador democrático. Por sua vez, a negativa de

liberdades básicas, incluída a circunstância de uma determinada sociedade

democrática recusar qualquer mínimo social adequado a determinados grupos, pode

ser controlado pelas cortes no âmbito da judicial review.

Sobre a teoria de John Rawls, a propósito, Paulo Nader (2015, p. 78-79) leciona:

A teoria da justiça equitativa, desenvolvida pelo norte-americano John Rawls

(1921-2002), difere da generalidade das abordagens relativas à causa final do

Direito, pois não se aplica às relações interindividuais, aos fatos do cotidiano, mas às

instituições sociais mais importantes. A sua teoria está voltada à justiça distributiva,

pois estuda os parâmetros a serem considerados na atribuição de direitos e deveres

pelos organismos sociais. O foco de seu estudo concentra-se na constituição política

e nas disposições sociais e econômicas mais relevantes, enquanto as desigualdades

sociais são questionadas com sólido embasamento filosófico.

Incumbe, portanto, à justiça constitucional tutelar os direitos fundamentais básicos,

tendo em vista que o mínimo existencial, núcleo da dignidade da pessoa humana, não pode ser

violado. Nesse sentido, as palavras de Campos (2016, p. 158):

Em síntese, as necessidades básicas dos seres humanos, dentro de uma perspectiva

não ideal, devem ser asseguradas pela justiça constitucional em razão de a “garantia

do mínimo social ser um elemento constitucional essencial”. A proposta rawlsiana

serve para justificar o papel da Corte Constitucional colombiana na tutela do mínimo

existencial violado nos casos de ECI.

A inércia estatal em efetivar os direitos básicos das pessoas representa verdadeira

inconstitucionalidade, já que, ao se omitir, acaba por afrontar diretamente os preceitos da

Constituição, conforme apontado por Andréa (2018, p. 21):

Com efeito, não é só uma ação normativa que pode gerar uma inconstitucionalidade.

A falta de ação total ou parcial indevida por parte do poder público também é capaz

de gerar inconstitucionalidade: trata-se da inconstitucionalidade por omissão. Não é

qualquer omissão, mas sim aquela indevida, ou seja, que consiste em não se fazer

aquilo que está constitucionalmente obrigado a fazer.

Desta forma, por meio da efetivação de políticas públicas, os poderes Executivo e

Legislativo deveriam assegurar uma vida digna aos cidadãos, marcada principalmente pelo

respeito ao mínimo existencial e aos direitos fundamentais básicos. Havendo, porém, omissão

32

estatal reiterada nessa função, o Poder Judiciário estaria autorizado a intervir para garantir a

dignidade da pessoa humana, consoante lição de Campos (2016, p. 159):

A Corte reconhece a prioridade dos poderes políticos, mediante políticas públicas e

normas orçamentárias, de darem efetividade às condições de vida digna. No entanto,

deixa claro que, sob circunstâncias de omissão reiterada, ela pode interferir para que

os problemas existentes entrem na agenda do governo.

Da mesma forma, sustenta Andréa (2018, p. 66):

E neste sentido, somente transformações estruturais em relação a atuação do Poder

Público serão capazes de modificar a situação de inconstitucionalidade, a tal ponto

que, diante da profunda gravidade do quadro, uma vez provocada, a Corte

Constitucional passa a interferir na formulação e implementação de políticas

públicas e, até alocação de recursos orçamentários, sendo essas interferências

dotadas essencialmente de caráter coordenador para a efetivação de medidas

concretas imprescindíveis para a superação do “Estado de Coisas Inconstitucional”,

valendo-se do monitoramento judicial ou jurisdição supervisória como medida de

excelência para garantia do sucesso, inclusive.

Por outro lado, do ponto de vista jurídico, o Estado de Coisas Inconstitucional está

amparado no neoconstitucionalismo, uma das vertentes do constitucionalismo

contemporâneo. Isso porque ambos sustentam propostas idênticas, que podem ser resumidas

em duas, quais sejam, a proteção dos direitos fundamentais e a limitação do poder estatal,

conforme asseverado por Campos (2016, p. 160):

Sob a perspectiva da teoria constitucional, a Corte funda-se em elementos essenciais

do constitucionalismo contemporâneo, como a limitação do poder político

majoritário em prol dos direitos das minorias e a proteção prioritária dos direitos

fundamentais. Aproxima-se, como tal, das propostas da corrente teórica denominada

neoconstitucionalismo: reconhece a normatividade e a importância dos princípios

jurídicos; rejeita formalismos no processo de interpretação e aplicação das normas

constitucionais; enxerga os atores públicos e privados como vinculados às normas

de direitos fundamentais; compreende o Direito sob a perspectiva da Moral ante a

relevância normativa de princípios constitucionais como a dignidade da pessoa

humana, liberdade e igualdade; admite doses de ativismo judicial e o exercício de

poderes políticos se assim se manifestar indispensável para a concretização de

direitos fundamentais.

A respeito do neoconstitucionalismo, Barroso (2018, p. 289) afirma:

O novo direito constitucional ou neoconstitucionalismo é, em parte, produto desse

reencontro entre a ciência jurídica e a filosofia do Direito. Para poderem beneficiar-

se do amplo instrumental do Direito, migrando do plano ético para o mundo

jurídico, os valores morais compartilhados por toda a comunidade, em dado

momento e lugar, materializam-se em princípios, que passam a estar abrigados na

Constituição, explícita ou implicitamente. Alguns nela já se inscreviam de longa

33

data, como a liberdade e a igualdade, sem embargo da evolução constante de seus

significados. Outros, conquanto clássicos, sofreram releituras e revelaram novas

sutilezas, como a democracia, a República e a separação de Poderes. Houve, ainda,

princípios cujas potencialidades só foram desenvolvidas mais recentemente, como o

da dignidade da pessoa humana e o da razoabilidade.

Sob o enfoque metodológico, o Estado de Coisas Inconstitucional constitui uma

censura ao formalismo jurídico, tendo em vista que “[...] a violação generalizada de direitos

fundamentais no ECI não é uma questão pura e simples de texto e conteúdos semânticos, e

sim de falta de efetividade desses direitos, do distanciamento entre as promessas

constitucionais e a realidade” (CAMPOS, 2016, p. 161-162).

Trata-se, portanto, de um mecanismo que analisa a realidade para além do que está

previsto no texto da Constituição, consoante lição de Andréa (2018, p. 67):

O ECI é um instrumento de verdadeira leitura da realidade fática. O que ocorre é que

em países como a Colômbia (onde a proteção constitucional de direitos

fundamentais é ampla, mas é país periférico), verifica-se grande desigualdade social

apresentando verdadeiro vácuo entre a realidade e o que se encontra estampado na

Constituição. O ECI, como criação jurisprudencial da Corte Constitucional da

Colômbia foi uma maneira de denunciar esse vácuo, bem como apontar o

descumprimento dos direitos fundamentais constitucionalizados.

Já em relação aos pressupostos do Estado de Coisas Inconstitucional, cumpre ressaltar

que a sua identificação precisa ser cuidadosa, uma vez que, ao ser reconhecido pelo Poder

Judiciário, haverá interferência direta na atuação dos demais poderes estatais.

Nesse sentido: “[...] por mexer na estrutura e na dinâmica de atuação dos outros

poderes, a Corte deve ser não apenas cautelosa, mas rígida quanto à configuração e

identificação desses pressupostos” (CAMPOS, 2016, p. 179).

A doutrina tem identificado quatro pressupostos essenciais para que o ECI possa ser

devidamente constatado no caso concreto e, posteriormente, declarado pelas cortes

constitucionais, os quais serão agora analisados.

O primeiro pressuposto diz respeito à “constatação de um quadro não simplesmente de

proteção deficiente, e sim de violação massiva, generalizada e sistemática de direitos

fundamentais que afeta um número amplo de pessoas” (ANDRÉA, 2018, p. 67).

Segundo Campos (2016, p. 180):

Para que seja racional a identificação desse primeiro fator, é necessário que três

aspectos estejam presentes: violação massiva e contínua de direitos; variedade de

direitos fundamentais violados; e o número amplo e expressivo de pessoas e grupos

afetados. Portanto, para configuração desse primeiro pressuposto, (i) não se trata de

violação a qualquer norma constitucional, mas apenas àquelas relativas, direta ou

34

indiretamente, a direitos fundamentais, e não basta qualquer violação de direitos,

mas apenas aquela espacial e qualitativamente massiva, sistemática e contínua; (ii)

não basta o envolvimento de um direito fundamental específico, e sim de uma

variedade desses (liberdades fundamentais, direitos sociais e econômicos, dignidade

humana, mínimo existencial); (iii) não se trata de violações que alcancem

populações locais ou restritas e sim número elevado e amplo de pessoas e grupos,

máxime, minorias e grupos vulneráveis.

O segundo pressuposto, por sua vez,

[...] consiste na omissão reiterada e persistente das autoridades públicas no

cumprimento das obrigações de defesa e promoção dos direitos fundamentais

caracterizada pela falta de coordenação entre medidas legislativas, administrativas,

orçamentárias e até judiciais, verdadeira “falha estatal estrutural”, que gera tanto a

violação sistemática dos direitos quanto a perpetuação e agravamento da situação

(ANDRÉA, 2018, p. 67).

Essa falha estrutural, aliás, pode ser verificada tanto em relação à ineficiência do poder

Legislativo em editar leis e regulamentos, quanto em relação à omissão do poder Executivo

em formular políticas públicas que efetivamente tutelem os direitos fundamentais. Nesse

sentido, Campos (2016, p. 181) afirma:

A falha estatal estrutural pode ter início na omissão legislativa ou na falta de

regulamentação normativa independentemente das tipologias dos enunciados

normativos constitucionais, na falta de vontade política ou na ausência de

coordenação entre leis e medidas administrativas de execução. Leis e

regulamentações defeituosas, insuficientes, que promovem proteção deficiente de

direitos fundamentais podem ser o ponto de partida de falhas estruturais, mesmo se

ausente disposição constitucional expressa do dever de legislar ou regulamentar.

O terceiro pressuposto se refere não à falha estrutural em si, mas às possíveis soluções

que serão intentadas para superá-la. Assim como o quadro de violação dos direitos

fundamentais se dá de maneira ampla e generalizada, as soluções também devem ser

estruturais e plurais.

No plano das soluções, haverá o ECI quando a superação dos problemas de violação

de direitos exigir a expedição de remédios e ordens dirigidas não apenas a um órgão,

mas a um conjunto desses. A responsabilidade deve ser atribuída a uma pluralidade

de atores públicos. O mesmo fator estrutural que se faz presente na origem e

manutenção das violações existe quanto à busca por soluções (CAMPOS, 2016, p.

183).

A respeito desse pressuposto, Andréa (2018, p. 68) assevera: “Em relação ao terceiro

pressuposto, tem-se que a superação das inconstitucionalidades deve se dar com “remédios

35

estruturais” por meio da declaração do ECI, a fim de que se retirem os órgãos estatais da

inação e os coloquem para trabalhar em conjunto”.

Por fim, o quarto pressuposto está relacionado com a agilidade do Poder Judiciário em

resolver os litígios que lhe são apresentados, uma vez que a demanda estrutural, que afeta

pessoas indeterminadas, pode se transformar em diversas causas individuais, o que,

fatalmente, ocasionaria um congestionamento nos tribunais. A esse respeito, Campos (2016,

p. 185) leciona:

O quarto e último pressuposto diz respeito à potencialidade de um número elevado

de afetados transformarem a violação de direitos em demandas judiciais, que se

somariam às já existentes, produzindo grave congestionamento da máquina

judiciária. Preocupada com sua funcionalidade, a Corte busca resolver a situação de

uma única vez, alcançando o maior número de afetados possível.

Feita a análise dos fundamentos e dos pressupostos do Estado de Coisas

Inconstitucional, passa-se ao estudo de sua declaração pelo Supremo Tribunal Federal.

2.3 O Estado de Coisas Inconstitucional no Brasil

Antes de analisar a declaração do ECI no Brasil, não se pode perder de vista que a

intervenção judicial por meio do instituto possui como objetivo precípuo a superação de

omissões estatais e, por conseguinte, a tutela dos direitos fundamentais.

Dirigida a superar omissões estatais, especialmente a formulação e implementação

deficientes de políticas públicas, juízes e cortes procuram defender a ordem objetiva

de valores, a ideia de Constituição como um todo, o projeto constitucional

originário. A preocupação é com a efetividade dos direitos fundamentais, com a

proteção deficiente de direitos independentemente da tipologia normativa dos

dispositivos constitucionais envolvidos (CAMPOS, 2016, p. 257).

Impende, nesse passo, ressaltar que Brasil e Colômbia apresentam aspectos sociais

muito semelhantes de modo que é plenamente possível importar o ECI, criação colombiana,

para a realidade nacional, conforme defende Andréa (2018, p. 150):

Destarte, o que se extrai de aludidos dados é que os dois países encontram-se muito

próximos no que se refere a questões de saúde, educação e renda per capita. Sendo

possível conceber que a figura do ECI colombiano não seria incompatível com a

realidade brasileira. Tanto é verdade que o mecanismo já foi importado e

36

incorporado no seio do próprio Supremo Tribunal Federal de maneira expressa no

julgamento da medida cautelar na ADPF nº 347/2015, ingressando para o

vocabulário constitucional. Trata-se do fenômeno da importação constitucional.

Além disso, do ponto de vista jurídico e processual, o Brasil apresenta mecanismos

aptos à declaração do Estado de Coisas Inconstitucional, tais como a Arguição de

Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF, consoante assinalado por Campos (2016,

p. 261-262):

Em síntese, somado nosso sistema de direitos fundamentais ao modelo de ações

constitucionais, máxima a ADPF, têm-se que a Carta de 1988 oferece desenhos

institucionais que permitem seja cogitada, no Brasil pelo Supremo Tribunal Federal,

a prática de declaração do ECI voltada a enfrentar falhas estruturais causadoras de

violação massiva de direitos fundamentais.

Cabe, porém, consignar que no Brasil o Supremo Tribunal Federal se mostra como o

único órgão competente para declarar o ECI e, consequentemente, afastar a estagnação dos

demais poderes, conforme preleciona Andréa (2018, p. 153):

Neste contexto, o Poder Judiciário, na figura do Supremo Tribunal Federal,

apresenta-se como único órgão independente capaz de retirar da inércia os demais

poderes e esferas públicas, valendo-se do mecanismo do ECI para determinar a

elaboração de plano de política pública pelos órgãos inativos, submetendo-os à sua

fiscalização e monitoramento judicial, proporcionando o diálogo e deliberação

interinstitucionais entre os poderes e, também, com a sociedade civil interessada, por

meio de audiências públicas.

Foi por meio de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF)

que o Estado de Coisas Inconstitucional foi declarado pelo Supremo Tribunal Federal,

conforme leciona Castilho (2018b, p. 342): “De forma inédita, o STF reconheceu, ao

examinar os pedidos liminares na ADPF 347 MC/DF, que vige no sistema penitenciário

brasileiro um estado de coisas inconstitucional, nos termos da doutrina consagrada e

reconhecida pela Corte Constitucional Colombiana”.

A ADPF nº 347 foi proposta pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e discute as

condições desumanas constatadas no sistema penitenciário brasileiro. Pleiteou-se, por meio

desta ação, o reconhecimento do ECI e a efetivação de medidas com o objetivo de fazer cessar

as graves violações aos direitos fundamentais dos detentos. Nesse sentido:

A ação foi proposta pelo Partido Socialismo e Liberdade – PSOL que pediu seja

reconhecido, expressamente, o ECI relativo ao sistema penitenciário brasileiro e a

adoção de providências estruturais em face de lesões a preceitos fundamentais dos

37

detentos. Apontou que o quadro decorre de ações e omissões dos Poderes Públicos

da União, dos Estados e do Distrito Federal (CAMPOS, 2016, p. 285).

A respeito da realidade vivenciada pelos presos brasileiros, narra a petição inicial:

As prisões brasileiras são, em geral, verdadeiros infernos dantescos, com celas

superlotadas, imundas e insalubres, proliferação de doenças infectocontagiosas,

comida intragável, temperaturas extremas, falta de água potável e de produtos

higiênicos básicos. Homicídios, espancamentos, tortura e violência sexual contra os

presos são frequentes, praticadas por outros detentos ou por agentes do próprio

Estado. As instituições prisionais são comumente dominadas por facções

criminosas, que impõem nas cadeias o seu reino de terror, às vezes com a

cumplicidade do Poder Público. Faltam assistência judiciária adequada aos presos,

acesso à educação, à saúde e ao trabalho. O controle sobre o cumprimento das penas

deixa muito a desejar e não é incomum que se encontrem, em mutirões carcerários,

presos que já deveriam ter sido soltos há anos. Neste cenário revoltante, não é de se

admirar a frequência com que ocorrem rebeliões e motins nas prisões, cada vez mais

violentos (ADPF 347, 2015, p. 2).

Dentre os pedidos cautelares formulados pelo PSOL, citam-se:

[...] determinação para que todos os juízes e tribunais motivassem expressamente as

razões que impossibilitassem a aplicação de medidas cautelares diversas da prisão;

determinação para implementação das audiências de custódia no prazo máximo de

90 dias; determinação para que o quadro fático do sistema penitenciário fosse

considerado por juízes e tribunais no momento da concessão de cautelares penais, na

aplicação da pena e durante o processo de execução penal; afirmação de que o juízo

da execução penal tem o poder-dever de abrandar os requisitos temporais para

fruição de benefícios e direitos do preso, quando se evidenciar que as condições de

efetivo cumprimento da pena são significativamente mais severas do que as

estabelecidas em lei; reconhecimento de que o juízo da execução penal deve abater o

tempo de prisão cumprida se verificar as condições acima; imposição do imediato

descontingenciamento das verbas do Fundo Penitenciário Nacional – FUNPEN

(CASTILHO, 2018b, p. 342).

No mérito, o partido pleiteou a confirmação das medidas cautelares e o seguinte:

a) seja declarado o ECI do sistema penitenciário brasileiro; b) seja determinado ao

Governo Federal a elaboração e encaminhamento ao Supremo, no prazo máximo de

3 meses, de um plano nacional visando à superação, dentro do prazo de 3 anos, do

quadro dramático, do sistema penitenciário brasileiro; c) que a formulação do

aludido plano contenha propostas e metas voltadas, especialmente, à (i) redução da

superlotação dos presídios; (ii) contenção e reversão do processo de

hiperencarceramento existente no país; (ii) diminuição do número de presos

provisórios; (iii) adequação das instalações e alojamentos dos estabelecimentos

prisionais aos parâmetros normativos vigentes, no que tange a aspectos como espaço

mínimo, lotação máxima, salubridade e condições de higiene, conforto e segurança;

(iv) efetiva separação dos detentos de acordo com critérios como sexo, idade,

situação processual e natureza do delito; (v) garantia de assistência material, de

segurança, de alimentação adequada, de acesso à justiça, à educação, à assistência

médica integral e ao trabalho digno e remunerado para os presos; (vi) contratação e

capacitação de pessoal para as instituições prisionais; (vii) eliminação de tortura, de

maus tratos e de aplicação de penalidades sem o devido processo legal nos

38

estabelecimentos prisionais; (viii) adoção de medidas visando a propiciar o

tratamento adequado para grupos vulneráveis nas prisões, como mulheres e

população LGBT; d) que o plano ainda preveja a previsão dos recursos necessários

para a implementação das propostas, e cronograma para a efetivação das medidas; e)

que o plano seja submetido à análise do Conselho Nacional de Justiça, da

Procuradoria Geral da República, da Defensoria Geral da União, do Conselho

Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, do Conselho Nacional do Ministério

Público, e de outros órgãos e instituições que queiram se manifestar sobre o mesmo,

além de ouvir a sociedade civil, por meio da realização de uma ou mais audiências

públicas; f) que o Tribunal delibere sobre o plano, para homologá-lo ou impor

medidas alternativas ou complementares, podendo valer-se do auxílio do

Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema

de Execução de Medidas Socioeducativas do Conselho Nacional de Justiça; g) uma

vez homologado o plano, seja determinado aos governos dos estados e do Distrito

Federal que formulem e apresentem ao Supremo, no prazo de 3 meses, planos

próprios em harmonia com o nacional, contento metas e propostas específicas para a

superação do ECI na respectiva unidade federativa, no prazo máximo de 2 anos. Os

planos estaduais e distrital deverão abordar os mesmos aspectos do nacional e conter

previsão dos recursos necessários e cronograma; h) sejam submetidos os planos

estaduais e distrital à análise do Conselho Nacional de Justiça, da Procuradoria

Geral da República, do Ministério Público da respectiva unidade federativa, da

Defensoria Geral da União, da Defensoria Pública do ente federativo em questão, do

Conselho Seccional da OAB da unidade federativa, e de outros órgãos e instituições

que queiram se manifestar, à sociedade civil local em audiências públicas a serem

realizadas nas capitais dos respectivos entes federativos, podendo ser delegada a

realização das diligências a juízes auxiliares, ou mesmo a magistrados da localidade,

nos termos do artigo 22, inciso II, do Regimento Interno do Supremo; i) que o

Tribunal delibere sobre cada plano estadual e distrital, para homologá-lo ou impor

medidas alternativas ou complementares, podendo valer-se do auxílio do

Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema

de Execução de Medidas Socioeducativas do Conselho Nacional de Justiça; j) que o

Supremo monitore a implementação dos planos nacional, estaduais e distrital, com o

auxílio do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e

do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas do Conselho Nacional de

Justiça, em processo público e transparente, aberto à participação colaborativa da

sociedade civil (CAMPOS, 2016, p. 287-289).

O PSOL não se limitou a requerer apenas a construção de novas unidades prisionais

com o intuito de superar o problema da superlotação. Mais do que isso, o partido também se

preocupou com a aplicação e a interpretação das normas penais, nos termos do que relata

Andréa (2018, p. 162):

Neste diapasão, a situação calamitosa dos presídios brasileiros não é desconhecida

das autoridades do Executivo e dos parlamentares brasileiros. Trata-se de fato

notório. Ciente disso, a ADPF ajuizada pelo PSOL perante o Supremo Tribunal

Federal procurou ir além da mera problemática que envolve o dever do Poder

Público de realizar melhorias em presídios ou construção de novos prédios com a

finalidade de reduzir o déficit de vagas prisionais. Para tanto, pretendeu que fosse

adotada uma nova forma de interpretação e aplicação das leis penais e processuais

de modo a minimizar a crise carcerária, implantar uma forma eficiente de utilização

de recursos orçamentários do Fundo Penitenciário Nacional (Funpen) e, o dever de

colaboração, pela União, Estados e Distrito Federal, na elaboração de planos e

programas de ação dirigidos a racionalização do sistema prisional e extinção da

violação dos direitos fundamentais dos presos sujeitos às condições de superlotação

carcerária, acomodações insalubres e falta de acesso a elementos básicos como

39

saúde, educação, alimentação saudável, trabalho, assistência jurídica, permitindo

uma vida minimamente digna.

No exame das medidas cautelares, em setembro de 2015, o Supremo Tribunal Federal

deu parcial provimento ao pleito do PSOL, reconhecendo o Estado de Coisas Inconstitucional,

fixando prazo para a implantação da audiência de custódia e determinando a liberação de

saldo do Fundo Penitenciário Nacional, conforme afirma Castilho (2018b, p. 342-343):

Por maioria, em 9 de setembro de 2015, a Corte deferiu apenas em parte as medidas

cautelares pleiteadas. O mérito ainda não foi analisado. Reconheceu, como

mencionado o estado de coisas inconstitucional e fixou prazo de 90 dias para

implementação das audiências de custódia – prazo que em muito restou extrapolado,

a ponto de a solenidade ainda não ser realizada em expressivo número de cidades até

o presente momento, sem qualquer sanção, diga-se de passagem. Também

determinou a liberação do saldo acumulado do FUNPEN e, de ofício, ordenou que

União e Estados, em especial o de São Paulo, enviassem informações sobre seus

sistemas prisionais.

Ponto da decisão que merece destaque foi a determinação do descontingenciamento de

verbas do Fundo Penitenciário Nacional, consoante aduz Andréa (2018, p. 167):

O ministro relator Marco Aurélio deferiu parcialmente a liminar, sendo o ponto mais

importante de sua decisão a determinação do descontingenciamento de R$ 2,2

bilhões do Funpen, saldo este relativo ao fim de 2014. Fundamenta sua

determinação no fato de que a violação da dignidade da pessoa humana e do mínimo

existencial autoriza a judicialização do orçamento, ainda mais quando, em havendo

verba disponível para melhoria, tem-se uma má aplicação dos recursos.

Por meio dessa decisão paradigmática, o STF estabeleceu o momento inicial da

utilização do ECI no ordenamento jurídico brasileiro e, consequentemente, abriu espaço para

novas possibilidades de concretização dos direitos fundamentais. A esse respeito, leciona

Campos (2016, p. 290):

Ainda que em fase cautelar e sujeito aos limites do pedido, o Tribunal deu um passo

importante no que tange ao reconhecimento do ECI do sistema prisional brasileiro.

Do ponto de vista teórico, a decisão valeu como marco inicial de utilização do ECI

na jurisdição constitucional brasileira. Houve os que aplaudiram, mas não faltaram

os que criticaram.

Em seu voto, o ministro Marco Aurélio confirmou que o sistema penitenciário

brasileiro padece de graves falhas estruturais, das quais decorrem violações aos direitos

básicos dos detentos.

40

Diante de tais relatos, a conclusão deve ser única: no sistema prisional brasileiro,

ocorre violação generalizada de direitos fundamentais dos presos no tocante à

dignidade, higidez física e integridade psíquica. A superlotação carcerária e a

precariedade das instalações das delegacias e presídios, mais do que inobservância,

pelo Estado, da ordem jurídica correspondente, configuram tratamento degradante,

ultrajante e indigno a pessoas que se encontram sob custódia. As penas privativas de

liberdade aplicadas em nossos presídios convertem-se em penas cruéis e desumanas

(ADPF 347 MC/DF, 2015, p. 6-7).

Além disso, o ministro também atribuiu ao Poder Público a responsabilidade pela

situação calamitosa verificada no sistema penitenciário, asseverando que a omissão estatal é

geral e sistêmica.

A responsabilidade pelo estágio ao qual chegamos, como aduziu o requerente, não

pode ser atribuída a um único e exclusivo Poder, mas aos três – Legislativo,

Executivo e Judiciário –, e não só os da União, como também os dos estados e do

Distrito Federal. Há, na realidade, problemas tanto de formulação e implementação

de políticas públicas, quanto de interpretação e aplicação da lei penal. Falta

coordenação institucional. O quadro institucional de violação generalizada e

contínua dos direitos fundamentais dos presos é diariamente agravado em razão de

ações e omissões, falhas estruturais, de todos os poderes da União, dos estados e do

Distrito Federal, sobressaindo a sistemática inércia e incapacidade das autoridades

públicas em superá-lo (ADPF 347 MC/DF, 2015, p. 8-9).

Conforme se observa, a decisão proferida na ADPF nº 347 representa um marco no

ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que foi por meio dela que o Estado de Coisas

Inconstitucional foi declarado pela primeira vez no Brasil. Ademais, embora o mérito da ação

ainda não tenha sido apreciado, os pedidos cautelares deferidos pelo Supremo já impactaram

o mundo jurídico, sobretudo com a implantação das audiências de custódia pelos tribunais.

2.4 Críticas ao Estado de Coisas Inconstitucional

Por ser um instituto recente e estar atrelado, em certa medida, ao ativismo judicial, o

Estado de Coisas Inconstitucional recebeu diversas críticas. Neste tópico, três delas serão

analisadas, quais sejam, as referentes ao uso difuso do ECI, as que questionam o subjetivismo

decisório do mecanismo e as que alegam uma suposta violação ao princípio da separação de

poderes.

41

Em relação ao posicionamento dos que defendem que o Estado de Coisas

Inconstitucional poderia ser utilizado de maneira difusa e ubíqua, Campos (2016, p. 293)

esclarece:

O primeiro conjunto de críticas aponta para o risco de ubiquidade e do uso difuso do

ECI: tudo poderia virar um ECI! Qualquer situação “errada”, simplesmente “ruim”,

não conforme à Constituição, poderia autorizar a qualquer juiz ou Tribunal declarar

um ECI e outorgar a si mesmo o poder de intervir em políticas públicas e nas

instituições em (mau) funcionamento.

O professor Lenio Luiz Streck (2015), inclusive, chega a caracterizar o ECI como uma

coisa “fluída”, “genérica” e “líquida”:

Tenho receio dessa coisa chamada ECI – Estado de Coisas Inconstitucional, que é

fluída, genérica e líquida. Por ela, tudo pode virar inconstitucionalidade. Das

doações em campanha ao sistema prisional (ADPF 347). Mas pergunto: o salário

mínimo não faz parte desse Estado de Coisas Inconstitucional? Os juros bancários -

os de cartão de crédito bateram nos 400% - não são, igualmente, uma “coisa

inconstitucional”? Peço perdão pela ironia, mas, diante do tamanho da crise, receio

que alguém entre com uma ação para declarar a inconstitucionalidade... do Brasil.

Referidos argumentos podem ser refutados, sobretudo, levando-se em conta o caráter

excepcional do ECI. Nesse sentido, aliás, Campos (2016, p. 293) sustenta:

Não obstante, as críticas servem de alerta ao dever de levar-se muito a sério o uso

excepcional do ECI. Mas como assegurar que a declaração do ECI seja sempre uma

medida excepcional? Com o Tribunal sendo rigoroso no reconhecimento dos seus

pressupostos, sempre. Com efeito, a declaração do ECI e a intervenção judicial

estrutural são excepcionais porque apenas justificam-se em casos extraordinários de

violação de direitos decorrentes de falhas estruturais. Do ponto de vista sistêmico, é

necessário distinguir situações verdadeiramente inconstitucionais daquelas ruins,

embora constitucionais.

Nas palavras do ministro Marco Aurélio:

Ante os pressupostos formulados pela Corte Constitucional da Colômbia para

apontar a configuração do “estado de coisas inconstitucional”, não seria possível

indicar, com segurança entre os muitos problemas de direitos enfrentados no Brasil,

como saneamento básico, saúde pública, violência urbana, todos que se encaixariam

nesse conceito. Todavia, as dificuldades em se definir o alcance maior do termo não

impedem, tendo em conta o quadro relatado, seja consignada uma zona de certeza

positiva: o sistema carcerário brasileiro encontra-se na denominação de “estado de

coisas inconstitucional” (ADPF 347 MC/DF, 2015, p. 12).

No que se refere ao posicionamento dos que afirmam que o ECI seria revestido de

certo subjetivismo decisório, Streck (2015) assevera:

42

O STF corre o risco de se meter em um terreno pantanoso e arranhar a sua imagem.

Isto porque, ao que se pode depreender da tese do ECI e da decisão do STF, fica-se

em face de uma espécie de substabelecimento auditado pelo Judiciário. A questão é:

por que a Teoria do Direito tem de girar em torno do ativismo? Para além de criar

álibis extrajurídicos para que o Judiciário atue de modo extrajurídico, porque não

perguntar quais direitos e procedimentos jurídicos e políticos (bem demarcadas uma

coisa e outra) a Constituição estabelece? Aparentemente, a solução sempre é

buscada pela via judicial, mas fora do direito, apelando em algum momento para a

discricionariedade dos juízes e/ou o seu olhar político e moral sobre a sociedade. Só

que isso, paradoxalmente, fragiliza o direito em sua autonomia. Mais do que isso, a

decisão judicial não é escolha, e de nada adianta motivação, diálogo e

procedimentalização se forem feitas de modo ad hoc.

Nesse passo, não se pode negar que a discricionariedade acaba por tornar-se inevitável

na declaração do Estado de Coisas Inconstitucional. Porém, com o intuito de se evitar abusos

de poder, faz-se imprescindível que o Tribunal identifique os pressupostos do ECI de maneira

objetiva e que motive adequadamente suas decisões. A esse respeito, Campos (2016, p. 298-

299) explica:

É verdade que, em razão do caráter complexo e policêntrico dos problemas

envolvidos, a discricionariedade judicial torna-se inevitável. Contudo, o rigor na

apreciação dos seus pressupostos de configuração serve a evitar decisões arbitrárias.

O juiz constitucional deve fundamentar de forma exaustiva a satisfação dos

requisitos do ECI, de forma que sua afirmação seja algo objetivo, e não fruto da

vontade individual ou de razões puramente ideológicas.

O ministro Marco Aurélio ressalta, ainda, a importância de haver diálogo entre os

poderes estatais, de modo a não permitir que o Poder Judiciário substitua os Poderes

Executivo e Legislativo:

Nada do que foi afirmado autoriza, todavia, o Supremo a substituir-se ao Legislativo

e ao Executivo na consecução de tarefas próprias. O Tribunal deve superar bloqueios

políticos e institucionais sem afastar esses Poderes dos processos de formulação e

implementação das soluções necessárias. Deve agir em diálogo com os outros

Poderes e com a sociedade. Cabe ao Supremo catalisar ações e políticas públicas,

coordenar a atuação dos órgãos do Estado dessas medidas e monitorar a eficiência

das soluções (ADPF 347 MC/DF, 2015, p. 18).

Por fim, cumpre ressaltar que há uma corrente defendendo que o Estado de Coisas

Inconstitucional violaria o princípio da separação de poderes. Esse, aliás, é o posicionamento

dos professores Giorgi, Faria e Campilongo (2015):

Historicamente, o conceito de ECI tem origem na ideia de “razão de Estado”. A

consequência é que a declaração de um ECI ameaça o princípio da separação dos

43

Poderes, além de ser paradoxal: Se, por exemplo, 51% dos deputados forem

acusados de corrupção, o STF declarará o ECI, ordenando o fechamento do

Congresso ou atribuirá a política a outros órgãos?

Rechaçando esse posicionamento, Campos (2016, p. 306) afirma:

Primeiramente, as críticas partem de uma concepção estática do princípio da

separação de poderes. Refletem um sistema político de poderes não apenas

separados, mas também distantes, quase incomunicáveis. Contudo, as pretensões

transformativa e inclusiva da Carta de 1988 requerem, ao contrário, um modelo

dinâmico, dialógico, cooperativo de poderes que, cada qual com ferramentas

próprias, deve compartilhar autoridade e responsabilidades em favor da efetividade

da Constituição e do seu núcleo axiológico e normativo: os direitos fundamentais.

Desta forma, de acordo com o autor, não é adequado conceber o princípio da

separação de poderes de maneira estática, tendo em vista que a Constituição Federal de 1988

trouxe uma nova modalidade de gestão administrativa baseada na cooperação e no diálogo

entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

Nas palavras no ministro Marco Aurélio:

Há dificuldades, no entanto, quanto à necessidade de o Supremo exercer função

atípica, excepcional, que é a de interferir em políticas públicas e escolhas

orçamentárias. Controvérsias teóricas não são aptas a afastar o convencimento no

sentido de que o reconhecimento de estarem atendidos os pressupostos do estado de

coisas inconstitucional resulta na possibilidade de o Tribunal tomar parte, na

adequada medida, em decisões primariamente políticas sem que se possa cogitar de

afronta ao princípio democrático e da separação de poderes (ADPF 347 MC/DF,

2015, p. 13).

Infere-se, portanto, que “esses poderes não podem ser tidos como adversários em um

jogo de tudo ou nada, mas sim como instrumentos que, em uma relação pluralista e dialética,

colaboram entre si e servem dinamicamente à efetividade dos direitos fundamentais”

(CAMPOS, 2016, p. 307).

Além disso, a intervenção judicial se torna legítima a partir do momento em que

omissões estatais são verificadas no caso concreto, uma vez que é inadmissível permitir que

direitos fundamentais sejam violados. Nesse sentido, aduz o ministro Marco Aurélio:

No tocante ao possível óbice atinente à separação de Poderes, à alegação das

capacidades institucionais superiores do Legislativo e do Executivo comparadas às

do Judiciário, há de se atentar para as falhas estruturais ante o vazio de políticas

públicas eficientes. É impertinente levar em conta, no caso examinado, essas

formulações teóricas, uma vez que é a própria atuação estatal deficiente o fator

apontado como a gerar e agravar a transgressão sistêmica e sistemática de direitos

fundamentais. A intervenção judicial é reclamada ante a incapacidade demonstrada

pelas instituições legislativas e administrativas, o que torna o argumento

44

comparativo sem sentido empírico. Daí por que a intervenção judicial equilibrada,

inclusive quando há envolvimento de escolhas orçamentárias, não pode ser indicada

como fator de afronta às capacidades institucionais de outros Poderes, se o exercício

vem se revelando desastroso (ADPF 347 MC/DF, 2015, p. 17-18).

Assim, é possível concluir que, a despeito das críticas, o Estado de Coisas

Inconstitucional representa uma nova ferramenta para tutelar a dignidade da pessoa humana

em face da insuficiência estatal. Ademais, é certo que a efetividade do instituto só será

verificada com o tempo, quando o ECI for declarado em outros casos e, consequentemente,

puder ser analisado em aspectos mais densos.

45

III A CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO

O sistema penitenciário brasileiro passa por um período de colapso, que é motivado,

sobretudo, pela inércia estatal em observar preceitos fundamentais e regras básicas da pena de

prisão. Além disso, valores e princípios contemplados na Constituição Federal e nas demais

normas do ordenamento jurídico não são respeitados pelo próprio Estado.

Nesse sentido, a propósito, Greco (2017, p. 231) assevera: “A crise carcerária é o

resultado, principalmente, da inobservância, pelo Estado, de algumas exigências

indispensáveis ao cumprimento da pena privativa de liberdade”.

Dentre os inúmeros problemas que assolam os presídios do país, é possível citar a

superlotação carcerária, as péssimas condições dos estabelecimentos prisionais, a falta de

produtos básicos e a ocorrência de tortura e violência sexual.

O recolhimento de pessoas, via de regra, acontece em celas imundas, desprovidas de

salubridade. Torturas, maus-tratos, proliferação de doenças infectocontagiosas, falta

de água potável, violência sexual, a comida estragada, falta de componentes básicos

de higiene pessoal, são alguns dos gravíssimos déficits apurados nas rotineiras

inspeções realizadas por juízes de todo o Brasil nos presídios sob sua respectiva

jurisdição (CASTRO, 2017, p. 12-13).

Com efeito, o presente capítulo examinará os principais fatores que caracterizam a

crise carcerária do Brasil.

3.1 Superlotação carcerária

Não é possível analisar a situação do sistema penitenciário brasileiro sem se deparar

com o problema da superlotação carcerária. Isso porque o número de detentos cresceu

exponencialmente nos últimos anos e atingiu níveis alarmantes.

Segundo dados coletados pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), em

2016 “a população prisional brasileira ultrapassou, pela primeira vez na história, a marca de

700 mil pessoas privadas de liberdade, o que representa um aumento da ordem de 707% em

relação ao total registrado no início da década de 90” (INFOPEN, 2017, p. 9).

46

Ainda de acordo com o DEPEN, São Paulo é o estado que possui a maior população

prisional do país, com mais de 240.000 presos.

O número de pessoas privadas de liberdade varia significativamente entre as

diferentes unidades da Federação, conforme gráfico 2. O estado de São Paulo

concentra 33,1% de toda a população prisional do país, com 240.061 pessoas presas.

O estado de Roraima apresenta a menor população prisional do país, com 2.339

pessoas privadas de liberdade, entre aquelas custodiadas em unidades do sistema

prisional e aquelas que se encontram em carceragens de delegacias (INFOPEN,

2017, p. 9).

Como bem apontado por Castilho (2018b, p. 337): “A despeito do avançado

tratamento legislativo conferido pela Constituição Federal e pela Lei de Execuções Penais, o

problema do encarceramento em massa só fez aumentar nas últimas décadas”.

No tocante ao déficit de vagas, dispõe o banco de dados do Departamento

Penitenciário Nacional que as “unidades prisionais estaduais somam 367.217 vagas em todo o

país e compõem um déficit de 359.058 vagas” (INFOPEN, 2017, p. 21).

Verifica-se, ademais, que a Administração Pública não respeita a destinação original

de inúmeras prisões, conforme aponta Castro (2017, p. 27):

No Brasil, existem, ao todo, 1.424 unidades prisionais. Quatro desses

estabelecimentos são penitenciárias federais. As demais unidades são

estabelecimentos estaduais. Importa salientar, desde logo, que há um desvirtuamento

da destinação originária de grande parte desses estabelecimentos. Mais da metade

dessas unidades constam originalmente como destinadas ao recolhimento de presos

provisórios. Porém, 84% delas também confinam pessoas em cumprimento de pena

definitiva. Nos estabelecimentos destinados ao cumprimento de pena em regime

fechado também existem condenados a outros regimes (80%).

Sobre a relação existente entre o déficit de vagas e o tipo de regime ou natureza da

prisão por Unidade da Federação, tem-se que, quanto aos presos sem condenação, “os estados

de Roraima, Mato Grosso do Sul e Acre apresentam as piores situações de superlotação.

Todos os estados da federação apresentavam déficit de vagas para presos sem condenação em

Junho de 2016” (INFOPEN, 2017, p. 25).

Já em relação ao regime fechado:

[...] os estados de Roraima, Amazonas, Pernambuco e Tocantins registram os

maiores déficits percentuais, seguindo a tendência já expressa no levantamento

referente a Dezembro de 2015. Cabe destacar que os estados de Alagoas e Rio

Grande do Sul não registraram déficits de vagas para o regime fechado (INFOPEN,

2017, p. 25).

47

Além disso, direitos que sequer foram restringidos na sentença penal condenatória

acabam sendo afetados ilegalmente pela superlotação carcerária. Nesse sentido:

A superlotação dos estabelecimentos penais brasileiros é um exemplo claro de

desvio de execução, vez que impõe à pessoa presa o sacrifício de direitos não

abarcados nos limites da sentença, de forma ilegal, inconstitucional e humanamente

intolerável. Em outras palavras, a superlotação resulta em um estado de permanente

ilegalidade. O contingente carcerário que o Brasil apresenta é absolutamente

incompatível com as estruturas de seus estabelecimentos penais ou as finalidades

preconizadas pela Lei de Execução Penal (CASTRO, 2017, p. 38).

Também de acordo com o levantamento do DEPEN, 78% dos presídios enfrentam o

problema da superlotação carcerária.

Em todo o Brasil, 89% da população prisional encontra-se privada de liberdade em

unidades com déficit de vagas, independente do regime de cumprimento da pena.

Em relação aos espaços de aprisionamento, 78% dos estabelecimentos penais em

todo o país estão superlotados (INFOPEN, 2017, p. 25).

Dentre os inúmeros fatores que contribuem para a superlotação dos presídios, é

possível citar a cultura de incentivo ao direito penal máximo e o uso indiscriminado da pena

privativa de liberdade pelo Poder Judiciário.

A esse respeito, Greco (2017, p. 233) leciona: “O movimento de lei e ordem, ou seja, a

adoção de um Direito Penal máximo, a cultura da prisão como resolução dos problemas

sociais têm contribuído, enormemente, para esse fenômeno”.

Sobre o uso excessivo da pena de prisão no ambiente jurídico, Castilho (2018b, p.

338) assevera: “[...] tem-se a preponderância, no meio forense, do discurso lei e ordem, que

preconiza aumento de penas e ampliação da punição – essencialmente, a corporal – como

primeira resposta estatal a ser dada à infração da lei penal. É a chamada „tolerância zero‟”.

Ainda nessa perspectiva:

Da mesma forma, o uso indiscriminado de privação cautelar de liberdade, ou seja, de

pessoas que aguardam presas os seus julgamentos, tem uma contribuição decisiva

para a situação atual de superlotação do sistema carcerário. Muitas vezes, essas

pessoas, que aguardam presas o seu julgamento, foram absolvidas, ou seja, foram

privadas ilegalmente do seu direito de liberdade (GRECO, 2017, p. 233).

Além desses fatores, é possível citar outras causas do problema, tais como a falta de

recursos para construir novas penitenciárias e o aumento da criminalidade no país, conforme

afirma Greco (2017, p. 234):

48

Outro argumento que conduz à superlotação carcerária diz respeito à falta de verbas

para a construção de novos presídios, bem como ao número excessivo de infrações

penais praticadas pela população em geral. Não fosse a corrupção praticada pelos

detentores do poder, os desvios de verbas, aliados a um Direito Penal máximo, cujo

simbolismo é reconhecido por todos, esse seria um problema a menos na lista de

ocupações do Estado.

Cumpre, nesse passo, ressaltar que da superlotação carcerária inúmeros problemas

podem advir, como, por exemplo, a formação de um ambiente propício ao surgimento de

facções e gangues, motivada, sobretudo, pela insuficiência de servidores penitenciários, tal

como relatado por Castilho (2018b, p. 338-339):

Certamente que a superlotação é a causa geradora da maioria dos problemas

encontrados, nos dias de hoje, nos presídios. Há razão, portanto, de ser um dos

primeiros pontos a serem solucionados. Por causa da superpopulação, por exemplo,

o efetivo de servidores passa rapidamente a ser insuficiente. Isso favorece a união

dos presidiários, formando-se gangues e facções.

Sobre as inúmeras complicações ocasionadas pela superlotação carcerária, Greco

(2017, p. 241) assevera:

De fato, ela gerava um atendimento inapropriado aos presos, ou seja, não havia

possibilidade de se disponibilizar trabalho a todos, a assistência médica tornava-se

ineficiente, pois não havia profissionais da saúde em número suficiente para atender

a toda aquela população carcerária; o lazer dos presos ficava prejudicado, pois os

pátios onde normalmente ocorria não suportavam aquele número excessivo de

pessoas, e assim sucessivamente.

Outra consequência da superlotação é a morte dos reclusos, tendo em vista que o

ambiente sobrecarregado facilita a proliferação de bactérias e doenças contagiosas. Sobre isso,

aliás, Porto (2008, p. 22) afirma:

A superlotação é o mais grave – e crônico – problema que aflige o sistema prisional

brasileiro. A par de inviabilizar qualquer técnica de ressocialização, a superlotação

tem ocasionado a morte de detentos face à propagação de doenças contagiosas,

como a tuberculose, entre a população carcerária.

Além de afetar os detentos, o cenário de risco proporcionado pela superlotação

também atinge os próprios servidores incumbidos de zelar pela organização e fiscalização dos

presídios.

49

A superlotação carcerária é um fator de risco não somente para os presos, que

cumprem suas penas em situações deprimentes, como também para os funcionários

encarregados de sua vigilância, pois o sistema penitenciário transforma-se em um

verdadeiro barril de pólvora, pronto a explodir a qualquer momento (GRECO, 2017,

p. 234).

É certo que a superlotação afetará, ainda, o abastecimento das penitenciárias, na

medida em que os suprimentos são escassos e não conseguem satisfazer as necessidades de

todos os encarcerados.

Nesse sentido: “Além disso, a superlotação refletirá, necessária e logicamente, na

escassez de alimentos, suprimentos, material de higiene pessoal, medicamentos, etc. Uma

clara violação dos mais básicos pilares da dignidade de qualquer ser humano” (CASTILHO,

2018b, p. 339).

Com efeito, impende consignar que, ao contrário do que se acredita, o aumento do

número de prisões não significou necessariamente a redução da taxa de criminalidade e a

elevação da segurança no país. Nesse sentido, aliás, Castro (2017, p. 12) assevera:

Curioso observar, ademais, que o vertical incremento da taxa de encarceramento nas

duas últimas décadas não conduziu à diminuição do índice de prática de crimes,

como desejado por aqueles que fazem da restrição da liberdade a regra para o

combate à criminalidade.

Diante do que foi exposto, é possível concluir que a superlotação carcerária é, em

última análise, uma afronta direta aos direitos humanos do detento, uma vez que o

impossibilita de viver em condições mínimas de existência. Referido problema, considerado

como um dos piores do atual sistema penitenciário, reverbera na vida privada do preso de

maneira tão violenta que o impede de fazer valer o princípio da dignidade da pessoa humana.

3.2 Precariedade do ambiente e falhas na assistência prisional

A precariedade do ambiente carcerário é outra questão que merece atenção. Isso

porque é possível vislumbrar certa discrepância entre as regras previstas no ordenamento

jurídico e o que efetivamente ocorre na prática.

Inicialmente, convém destacar que o artigo 88 da Lei de Execução Penal traça as

diretrizes básicas dos alojamentos penitenciários.

50

Segundo o caput do dispositivo, os condenados devem ser alojados em celas

individuais que contenham dormitório, sanitário e lavatório.

Além disso, o parágrafo único do mesmo artigo fornece os requisitos básicos da

unidade celular, quais sejam: “a) salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores de

aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana; b) área mínima

de 6,00m² (seis metros quadrados)”.

De outro lado, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), por

meio da Resolução nº 09 de 2011, desenvolveu as regras fundamentais para a arquitetura

penal. Segundo o documento:

A cela individual é a menor célula possível de um estabelecimento penal. Neste

cômodo devem ser previstos cama e área de higienização pessoal com pelo menos

lavatório e aparelho sanitário, além da circulação. O chuveiro pode ser configurado

fora da cela em local determinado. Podem ainda ser projetados: mesa com banco,

prateleiras, divisórias, entre outros elementos de apoio. Caso se opte também pode

ser incluído o chuveiro dentro da cela. A área mínima deverá ser de 6 metros

quadrados, incluindo os elementos básicos – cama e aparelho sanitário –

independentemente de o chuveiro localizar-se fora da cela ou não. A cubagem

mínima é de 15 (quinze) metros cúbicos. O diâmetro mínimo é de 2 (dois) metros

(2011, p. 34).

Sobre a localização dos estabelecimentos penais, o Conselho Nacional de Política

Criminal e Penitenciária sugere a observância de alguns parâmetros, dentre os quais:

[...] a facilidade de acesso, a presteza das comunicações e a conveniência

socioeconômica, ou seja, o aproveitamento dos serviços básicos e de comunicação

existentes (meios de transportes, rede de distribuição de água, de energia e serviço

de esgoto etc.) e das reservas disponíveis (hídricas, vegetais, minerais etc.), bem

como as peculiaridades do entorno (2011, p. 35-36).

Ao revés do que está previsto na Lei de Execução Penal e na Resolução do CNPCP, na

prática é possível verificar outra realidade. Se de um lado, o Poder Executivo não observa as

regras previstas no ordenamento jurídico, de outro, o Poder Judiciário não toma medidas

efetivas para fazer cessar a omissão administrativa. A esse respeito, Nucci (2018, p. 140)

sustenta:

O que se observa, na prática, é a pena de prisão ser cumprida ao arrepio do disposto

no art. 88 desta Lei, sem que o Judiciário tome medidas drásticas para impedir tal

situação, interditando, por exemplo, o local. Acostumado a contar com a

compreensão judicial, o Executivo deixa de cumprir sua obrigação e as celas não

adquirirem a forma prevista em lei. O vício perpetua-se, portanto, enquanto, de outra

banda, critica-se a pena privativa de liberdade, como se ela tivesse substituto

civilizado para destinar aos autores de crimes graves. Em nosso entendimento, é

51

pura ilusão. Qualquer outra medida, se for realmente séria, poderia implicar em

crueldade, o que a Constituição Federal veda (ex.: trocar o cárcere por castigo

corporal ou banimento).

Além de possuírem um ambiente físico adequado, as penitenciárias também devem

prestar assistência aos detentos em áreas básicas, como, por exemplo, na da educação, da

saúde e do trabalho.

É por isso que o artigo 83 da Lei de Execução Penal dispõe: “O estabelecimento penal,

conforme a sua natureza, deverá contar em suas dependências com áreas e serviços destinados

a dar assistência, educação, trabalho, recreação e prática esportiva”.

Ocorre, porém, que diversos estabelecimentos penais não foram desenvolvidos para

este fim, o que, inevitavelmente, acaba comprometendo o fornecimento desses serviços

assistenciais, conforme leciona Castro (2017, p. 28-29):

Com vistas a cumprir o previsto na Lei de Execução Penal, no que concerne à

ambiência prisional e arquitetura das unidades prisionais, os estabelecimentos penais

devem ser capazes de oferecer serviços de saúde, educação e trabalho, além de

outras características arquitetônicas essenciais. Apesar da complexidade indicada

para essas instalações, mais de um terço das unidades prisionais no país (36%) não

foram concebidas para serem estabelecimentos penais, mas acabaram adaptadas para

este fim. Este fato gera um impacto negativo, pois poucas instalações adaptadas

possuem módulos de saúde (22%), educação (40%) e trabalho (17%).

Diante da inexistência de um planejamento adequado, os estabelecimentos penais

tornam-se suscetíveis à proliferação de doenças contagiosas. Nesse sentido: “O ambiente

promíscuo e superlotado do cárcere é propício a toda sorte de doenças contagiosas.

Tuberculose, AIDS, doenças de pele, hepatite, enfim, o preso está sujeito a todo tipo de

doenças que, fatalmente, debilitarão a sua saúde” (GRECO, 2017, p. 235).

Nesse cenário, é inevitável que os detentos contraiam diversas enfermidades, tais

como a AIDS e a Tuberculose.

Há uma concentração importante de epidemias de HIV/Aids, Tuberculose, e outras

DST. Os dados nos informam que, a cada 100 pessoas presas em dezembro de 2014,

1,3 viviam com HIV. É uma taxa de prevalência bem superior à da população em

geral, que gira em torno de 0,4%. Da mesma forma, 0,5% da população prisional

vivia com sífilis, 0,6% com hepatite, 0,9% com tuberculose e 0,5% com outras

doenças (CASTRO, 2017, p. 36).

Nem mesmo as prisões mais recentes, cujas instalações foram bem projetadas e estão

melhores conservadas, são imunes à provocação de efeitos danosos aos reclusos, consoante

assevera Bitencourt (2004, p. 158).

52

Mesmo as prisões mais modernas, onde as instalações estão em nível mais aceitável

e onde não se produzem graves prejuízos à saúde dos presos, podem, no entanto,

produzir algum dano na condição físico-psíquica do interno já que, muitas vezes,

não há distribuição adequada do tempo dedicado ao ócio, ao trabalho, ao lazer e ao

exercício físico.

No tocante ao serviço de assistência à saúde, impende consignar que embora se

observe certo desenvolvimento nesta área, certo é que, a nível nacional, poucos detentos

acabam sendo alcançados pela política. Diante disso, é comum que o preso tenha que ser

deslocado para receber tratamento hospitalar, como bem informa Castro (2017, p. 33):

Há 271 equipes de saúde no sistema penitenciário (CNES, 2013), habilitadas em 239

unidades básicas de saúde prisional em penitenciárias, em 154 municípios.

Conquanto represente um grande avanço na política de saúde carcerária, essas

equipes alcançam apenas 30% do total de custodiados no país. Por isso, na maioria

das vezes, o preso tem de sair da unidade prisional para receber o tratamento médico

adequado. Os ambulatórios que sobrevivem à má administração não possuem as

mínimas condições para a devida assistência médica.

Referidos deslocamentos, somados à falta de profissionais e de ambiente adequado,

trazem uma série de transtornos ao sistema carcerário e à população em geral. A esse respeito,

Greco (2017, p. 235-236) informa:

Em muitas penitenciárias não há local adequado, tampouco profissionais

especializados na área da Saúde, razão pela qual os presos são levados a hospitais

próximos ao sistema carcerário onde se encontram recolhidos, causando, como já

dissemos, medo na população em geral, pois se juntam, durante a espera do

atendimento, aos demais membros da sociedade, que acabam por temer por sua vida,

uma vez que sempre existe a preocupação de um resgate, além do fato de que, por

serem atendidos prioritariamente, causam revolta naqueles que ali chegaram mais

cedo, a fim de receberem sua senha de atendimento.

Verifica-se, pois, que tanto o ambiente físico dos estabelecimentos penais quanto os

serviços assistenciais oferecidos se encontram em péssimas condições, maculando, por

conseguinte, o sistema prisional e lançando os detentos à própria sorte.

3.3 Violência nas prisões

53

Não é raro se deparar com notícias a respeito da ocorrência de rebeliões em presídios

brasileiros. Exposta pelos veículos de comunicação, a violência excessiva representa alto risco

à integridade dos detentos e da população em geral, uma vez que compromete uma das áreas

mais relevantes da atual conjuntura social: a segurança pública.

Em abril de 2018, o site Folha de S. Paulo elencou dez das maiores rebeliões ocorridas

nos estabelecimentos penais do Brasil. Segundo a publicação, são elas: 1) o Massacre do

Carandiru, São Paulo (SP), ocorrido em outubro de 1992, que deixou 111 mortos; 2) o

Massacre em Manaus, Amazonas, ocorrido em janeiro de 2017, que deixou pelo menos 67

mortos; 3) o ocorrido na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, Boa Vista (RR), também em

janeiro de 2017, que deixou 33 mortos; 4) o ocorrido na Casa de Custódia de Benfica, Rio de

Janeiro (RJ), de maio de 2004, que deixou 31 mortos; 5) o ocorrido na Penitenciária do

Estado de São Paulo, em julho de 1987, que também deixou 31 mortos; 6) o ocorrido no

Presídio Urso Branco, em Porto Velho (RO), de janeiro de 2002, que deixou 27 mortos; 7) o

caso da Penitenciária de Alcaçuz, Nísia Floresta (RN), ocorrido em 2017, deixando 26

mortos; 8) o ocorrido no Centro Penitenciário de Recuperação do Pará, em 2018, que deixou

22 mortos; 9) o ocorrido no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, São Luís (MA), em 2010,

que deixou 18 mortos; e 10) o ocorrido no 42º Distrito Policial de São Paulo, em 1989, que

também deixou 18 mortos.

Sobre a expansão da violência nos presídios, narram Ilona Szabó e Melina Risso

(2018, S.N.):

As primeiras semanas de 2017 foram banhadas de sangue. A violência irrompeu em

diferentes prisões. O primeiro massacre ocorreu em 1º de janeiro, no Complexo

Penitenciário Anísio Jobim, em Manaus, administrado por uma empresa privada,

deixando um saldo de 56 mortos – quase todos suspeitos de filiação ao Primeiro

Comando da Capital, facção com base em São Paulo.

Dentre os inúmeros fatores que ocasionam as rebeliões e os motins, pode-se citar a

superlotação carcerária, que faz da cela um ambiente insuportável de convivência. Nesse

sentido, aliás, é o Relatório da CPI do Sistema Carcerário (2009, p. 247):

A superlotação é talvez a mãe de todos os demais problemas do sistema carcerário.

Celas superlotadas ocasionam insalubridade, doenças, motins, rebeliões, mortes,

degradação da pessoa humana. A CPI encontrou homens amontoados como lixo

humano em celas cheias, se revezando para dormir, ou dormindo em cima do vaso

sanitário.

54

O próprio ambiente carcerário se torna favorável à ocorrência de rebeliões, pois é um

local “em que impera a utilização de meios brutais, onde sempre se impõe o mais forte”

(BITENCOURT, 2004, p. 157).

A intensa atuação das organizações criminosas também é um fator que contribui para

o aumento dos níveis de violência nas prisões. Isso porque, em muitas ocasiões, as rebeliões

são motivadas por desentendimentos entre facções criminosas ou, então, são promovidas para

impedir o desmantelamento das chefias. A esse respeito, o Relatório da CPI do Sistema

Carcerário (2009, p. 63):

Em razão do poder que adquirem, as organizações criminosas atuantes nos presídios

são capazes de se organizar de modo a promoverem rebeliões com o objetivo de

impedir a desarticulação das lideranças (a exemplo das ocorridas no Mato Grosso do

Sul e na Bahia), bem como de evitar que seus integrantes sejam submetidos a regime

disciplinar diferenciado. Além de presos, muitos agentes penitenciários são mortos

quando da eclosão desses motins.

É certo que inúmeras organizações criminosas surgiram no interior dos

estabelecimentos penais, fazendo do sistema penitenciário brasileiro uma verdadeira

“indústria do crime”.

Foi no sistema carcerário que o Primeiro Comando da Capital (PCC) nasceu para se

tornar a maior facção do Brasil. Foi lá que o Comando Vermelho (CV) ressurgiu e

fortaleceu sua rede nacional de parcerias. Hoje, é atrás das grades que se organizam

dezenas de novos grupos locais, tais como a Família do Norte (FDN) e o Sindicato

do Crime (SDC) – cujo poder de articulação e instinto de crueldade impressionam

até gente experimentada no tema (LACERDA, 2018).

Ainda nesse sentido, asseveram Ilona Szabó e Melina Risso (2018, S.N.):

As principais organizações criminosas brasileiras nasceram ou se fortaleceram

dentro dos presídios – onde recrutam novos membros. Esse é o caso do Primeiro

Comando da Capital (PCC) e do Comando Vermelho (CV), por exemplo. Um dos

objetivos das prisões é reduzir a criminalidade, ao evitar que a pessoa encarcerada

continue praticando crimes, mas isso não tem ocorrido por aqui.

Além de contribuir para o surgimento de facções criminosas, o encarceramento

massivo também fortalece as chefias dessas organizações, facilitando a expansão dos grupos

para todo o país, como afirma Gil Alessi (2018):

O fortalecimento das facções criminosas no Brasil andou de mãos dadas com o

aumento vertiginoso do número de presos no país, no período de 1990 até os dias

atuais. Se 15 anos atrás o problema era circunscrito principalmente ao Rio de Janeiro

55

e São Paulo, hoje é correto afirmar que Primeiro Comando da Capital e Comando

Vermelho - as duas maiores facções brasileiras - estão presentes em quase todos os

Estados.

Não há, por parte do Estado, vontade efetiva de mudar este cenário e, desta forma, as

facções se fortalecem e adquirem autonomia para gerir seus negócios, conforme sustenta o

procurador de justiça José Ribamar da Costa Assunção (2017):

O Estado brasileiro não exerce qualquer controle sobre a situação, este é o

diagnóstico correto, não sendo aceitável que as autoridades preguem o contrário. As

facções criminosas dominam os presídios, que escolheram para montar o seu

quartel-general. Aqui, os chefes dirigem com mão de ferro todas as ações de

interesse dos grupos dominantes: lideram rebeliões, decidem quem deve morrer,

saem, quando querem; voltam quando é mais conveniente. Os diretores de presídios

são figuras decorativas e o Estado fica assistindo a tudo sofismando que controla

alguma coisa.

Não se pode negar, todavia, que em alguns casos a violência não se origina na prisão,

pois os detentos já ingressam no cárcere com tendências agressivas e violentas, reflexo do

próprio meio social no qual estavam inseridos, consoante os ensinamentos de Bitencourt

(2004, p. 228):

Aquele que ingressa na prisão também traz consigo a deformação que a sociedade

produz na agressividade do homem. Não se ignora que as frustações originadas pela

prisão são um fator que influi nas situações violentas que surgem no cárcere; porém,

também não se pode ignorar que esses internos se encontram contaminados por

outros fatores anteriores, como a violência que experimentaram em sua vida familiar

ou na sociedade. Em uma prisão da Califórnia, por exemplo, constatou-se que 71%

dos internos apresentavam antecedentes por atos violentos antes de seu

encarceramento. Não se pode esquecer que todo ato de violência tem um

componente social, mesmo o que se produz na prisão.

O fato é que o sistema penitenciário não cumpre as funções previstas nas normas

constitucionais e infraconstitucionais. O próprio Estado, ao se omitir na proteção e na

segurança dos detentos, acaba por incitar a violência nos presídios, porque permite que o

ambiente se torne propício a motins e rebeliões. Nesse sentido, Castro (2017, p. 54):

Cotidianamente, somos “golpeados” com notícias sobre a violência que se irradia

desde as prisões para as ruas. Já não é mais possível ignorarmos essa realidade. E

muito do que absorvemos e vivenciamos, se produz em razão do sistema de justiça

criminal não corresponder aos escopos assinados pela Lei de Execução Penal. Celas

superlotadas, doenças infectocontagiosas, ociosidade, demora no julgamento de

processos e torturas têm sido motivos para a deflagração de rebeliões no sistema

prisional. A garantia de direitos contemplada constitucionalmente tornou-se

promessa retórica.

56

Como já mencionado, a negligência estatal em resolver o problema penitenciário do

Brasil tem gerado graves consequências sociais, tais como a mudança dos motivos das

rebeliões carcerárias e o aumento dos níveis de criminalidade, conforme apontam Ilona Szabó

e Melina Risso (2018, S.N.):

A situação atual poderia ter sido evitada se nossas autoridades não tivessem sido

negligentes e irresponsáveis. Se antes as rebeliões aconteciam para reivindicar

melhores condições nos presídios, hoje elas ocorrem também por disputas pelo

controle do sistema penitenciário e da prática de crimes a partir da prisão. Resolver o

grave problema da situação carcerária no país é tarefa central para diminuir o atual

nível de criminalidade no Brasil.

Com efeito, convém ressaltar que as rebeliões e os motins ocorridos nos

estabelecimentos penais funcionam, em última análise, como uma vitrine para expor o

colapso do sistema penitenciário brasileiro e retratar a realidade vivenciada pelos reclusos.

Os motins carcerários são os fatos que mais dramaticamente evidenciam as

deficiências da pena privativa de liberdade. É o acontecimento que causa maior

impacto e o que permite à sociedade tomar consciência, infelizmente por pouco

tempo, das condições desumanas em que a vida carcerária se desenvolve. O motim,

uma erupção de violência e agressividade, que comove os cidadãos, serve para

lembrar à comunidade que o encarceramento do delinquente apenas posterga o

problema (BITENCOURT, 2004, p. 227).

Ademais, a crise do sistema penal não se limita aos problemas verificados nas prisões,

tendo em vista que a justiça criminal como um todo se encontra maculada por uma

mentalidade arcaica que acredita que o encarceramento em massa resolverá o problema da

criminalidade do país. Nesse sentido, aliás, Ilona Szabó e Melina Risso (2018, S.N.)

defendem:

A atual crise não é uma questão apenas do sistema penitenciário, mas de toda a

justiça criminal. Para além de solucionar o problema das prisões, cabe investir em

formas de punição que apresentam resultados positivos. Isso significa que, além de

punir, é preciso encontrar meios de fazer com que, após cumprir a pena, a pessoa se

insira na sociedade.

Conclui-se, portanto, que a violência carcerária, materializada, sobretudo, em rebeliões

e motins, é o problema que deixa as marcas mais profundas no sistema penitenciário brasileiro

e na própria vida dos detentos e de seus familiares. As mortes e as guerras sangrentas que,

diariamente, assolam as prisões do país expõem a realidade e as mazelas da pena de prisão e

revelam a falência do sistema.

57

3.4 Efeitos psicológicos da prisão

Dadas as condições do sistema penitenciário, é forçoso concluir que a prisão pode

gerar inúmeros efeitos negativos no preso. A respeito dos efeitos psicológicos da prisão,

Bitencourt (2004, p. 192) afirma:

A preocupação com os efeitos psicológicos que a prisão produz começou no início

do século XIX. As primeiras observações, como sempre, são de ordem literária.

Também a sabedoria popular chega a estabelecer uma relação de causa-efeito entre

prisão e psicose. É possível, inclusive, afirmar que o conceito de loucura carcerária

forma-se primeiro na população e depois no médico.

A privação de liberdade constitui uma verdadeira crise ao recluso, que é retirado

repentinamente do grupo social no qual estava inserido, perdendo o emprego, o contato com o

cônjuge, com os filhos, com os demais familiares e com os amigos. Nesse sentido, Alvino

Augusto de Sá (2015, p. 321) ressalta:

A prisão será então um exemplo típico de crise por perda: perda da liberdade, do

emprego, da convivência com a família, com a/o namorada/o, amigos, festas etc. Ao

longo da vida carcerária, outras crises por perda teoricamente são possíveis,

associadas ou à vida pessoal e/ou familiar (perda de um ente querido, decepção

amorosa), ou à vida carcerária como tal (perda de um benefício que havia sido

solicitado e no qual o preso tinha grande expectativa, ameaça de morte). Mesmo

porque, dada a vulnerabilidade dos encarcerados, que tende a aumentar por conta do

cárcere, eles se tornam mais sujeitos a sofrer crises, principalmente aqueles mais

fracos perante a instituição prisional.

Sobre o afastamento da família, Miotto (1975, p. 385) assevera:

Pode-se observar que a família do preso, ainda que inicialmente tenha mantido

frequente contato com ele, tendo tido, mesmo, a atitude de injustificado apoio

referido no item anterior, vai paulatinamente, diminuindo a frequência dos contatos

– das visitas, das cartas... Se a prisão durar muitos anos, verifica-se que a família

chega ao ponto de completo afastamento, que se diria esquecimento, olvido. Sem

dúvida, não são todos os membros da família a se afastarem ao mesmo tempo;

tampouco se pode prever com segurança quais deles serão os que vão se afastar

antes. Entretanto pude observar que, em geral, a mãe é quem se afasta por último.

Mesmo quando a família assume aquela exagerada atitude de reprovação, não é de

excluir que a mãe ache um modo de manter contato com o filho, de fazer-lhe chegar

uma demonstração de carinho.

58

O desequilíbrio psicológico e a perturbação emocional ocasionados pelo ambiente

prisional são tão severos que podem provocar reações psicopáticas momentâneas e quadros

psicóticos intensos, consoante lição de Bitencourt (2004, p. 195):

O ambiente penitenciário perturba ou impossibilita o funcionamento dos

mecanismos compensadores da psique, que são os que permitem conservar o

equilíbrio psíquico e a saúde mental. Tal ambiente exerce uma influência tão

negativa que a ineficácia dos mecanismos de compensação psíquica propicia a

aparição de desequilíbrios que podem ir desde uma simples reação psicopática

momentânea até um intenso e duradouro quadro psicótico, segundo a capacidade de

adaptação que o sujeito tenha.

A solidão experimentada pelo preso também acaba por afetá-lo negativamente. Nesse

sentido:

O preso sofre por sentir que é só. Ele é só se, faltando-lhe contato com o mundo

exterior, com os amigos, com a família (especialmente), tampouco está integrado no

ambiente prisional. Ora, pelo que pude observar, os presos nunca se integram no

ambiente prisional; dificilmente formam amizade com outros presos, embora se

tratem como “companheiros de infortúnio” (expressão que muitas vezes ouvi usada

pelos presos). Podem chegar a fazer boa “camaradagem”, que é coisa bem diversa da

amizade; comparar a “camaradagem” com a amizade é como comparar a casta com

o cerne. Clara ou obscuramente, ele desconfia de todos e de cada um: desconfia dos

outros presos, porque são delinquentes (como se ele mesmo não fosse!); desconfia

dos funcionários, porque constituem “outro grupo”, a qual ele não pode aspirar, e

cujos “segredos” ele ignora... A permanência na prisão é transitória (embora haja de

ser longa) e não desejada; por isso, embora ele não saiba verbalizar, o preso,

consciente ou inconscientemente, não só não procura se integrar no ambiente

prisional, como evita se integrar. É a solidão psicológica, particularmente a solidão

afetiva. Essa é, aliás, a verdadeira, a amarga solidão, que constitui um dos mais

terríveis sofrimentos humanos; na sua maior intensidade, é verdadeiramente

insuportável (MIOTTO, 1975, p. 387).

Diversas são as reações carcerárias e psicopáticas verificadas nas prisões, a exemplo

da angústia, das alucinações, das reações explosivas e dos estados de irritação. Nessa

perspectiva, a propósito, Bitencourt (2004, p. 195) assevera:

Há vários tipos de reações carcerárias, sendo muitas delas passageiras, como é o

caso da reação explosiva da prisão, na qual se observa um estado de irritação que

pode chegar a acessos de delírio. Também podem apresentar-se reações psicopáticas

à prisão, que se expressam em estados de angústia com alucinações e atitudes

paranoicas.

Outra questão penitenciária que acarreta efeitos psicológicos no preso é a falta de

atividades nos estabelecimentos penais, conforme assinala Miotto (1975, p. 391):

59

A ociosidade “encomprida” o tempo: os dias não acabam nunca... Durante esses

dias, tão longos, que não acabam nunca, o preso, degenerado, brutalizado, dominado

pelos próprios instintos, imagina muitas coisas... e realiza todas aquelas que,

materialmente, pode realizar, desde infundados requerimentos dirigidos à

administração da prisão e ao juiz, ou ao governador e quiçá ao Presidente da

República, até a fabricação de dados (com pedrinhas ou ossos) cujo jogo, em si

mesmo uma indisciplina, pode conduzir e conduz a discussões, atritos pessoais,

agressões de maior ou menor gravidade... Aliás, até mesmo a simples conversa pode

servir de válvula de escape, de desabafo, para o acúmulo de tédio e tensões que a

ociosidade acentua; e então, a conversa transformada em discussão, terá análoga

evolução: atritos, agressões etc.

Os condenados a penas longas apresentam várias complicações, desenvolvendo,

inclusive, transtornos psicológicos e até depressões. A esse respeito, Bitencourt (2004, p.

197):

Os que sofrem a pena privativa de liberdade por um longo período apresentam uma

série de quadros que evidenciam claro matiz “paranoide”. Entre esses transtornos,

pode-se citar o complexo de prisão, a patologia psicossomática e as depressões

reativas. Estas são especialmente importantes, já que, por vários motivos, os

reclusos podem desenvolver um quadro depressivo clássico de indiferença, inibição,

desinteresse, perda de memória ou incapacidade para usá-la, perda de apetite, bem

como uma ideia autodestrutiva que pode chegar ao suicídio.

Até mesmo a proximidade com data da liberdade afeta os presos. A euforia com a

saída da prisão, aos poucos, vai cedendo espaço para as incertezas, uma vez que o recluso se

vê desamparado pela família, sem emprego e sem residência. Nesse sentido, Miotto (1975, p.

396):

Uns e outros desejam muito, esperam ansiosamente o dia da liberdade; na medida,

porém, em que à saída da prisão, não têm um endereço certo, para onde ir, na

medida em que não contam com trabalho, angustiam-se, desejam protelar a data

aliás tão desejada, tão esperada... A alegria, a satisfação, o entusiasmo por causa da

próxima liberdade são perturbados, são até anulados pela tristeza, abatimento, temor

e outros sentimentos análogos. Se as notícias da família são escassas ou nenhumas

(ou não têm família, ou pelos mais diversos motivos não podem contar com ela), os

sentimentos negativos serão intensificados e acrescidos; e o preso se perguntará:

“Que é que me espera lá fora? encontrarei trabalho, ou não? serei bem recebido ou

repelido? terei onde morar? confiarão em mim?” Tudo isso faz o preso sofrer.

É comum que os presos manifestem desejo ao suicídio, o que, em certa medida,

comprova a gravidade dos efeitos psicológicos gerados pela privação da liberdade. Nessa

perspectiva, Bitencourt (2004, p. 197-198):

A elevada taxa de suicídios nas prisões é um problema universal comprovado por

estatísticas confiáveis de países tão diferentes como França e Japão. A grande

ocorrência de suicídios nas prisões é um bom indicador sobre os graves prejuízos

60

psíquicos que a prisão ocasiona e autoriza a dúvida fundada sobre a possibilidade de

obtenção de algum resultado positivo em termos de efeito ressocializador,

especialmente quando se trata de prisão tradicional, cuja característica principal é a

segregação total.

Também é comum que os presos provisórios sofram grande impacto emocional e

psicológico, como ressalta Castro (2017, p. 41):

As pessoas em prisão preventiva sofrem grandes tensões pessoais como resultado da

perda de renda e a separação forçada de sua família e comunidade; ademais,

padecem do impacto psicológico e emocional do próprio fato de estarem privadas de

liberdade sem terem sido condenadas, e, em geral, são expostas a um entorno de

violência, corrupção, insalubridade e condições desumanas presentes nas prisões da

região. Inclusive, os índices de suicídios cometidos em prisões são maiores entre os

presos em prisão preventiva.

Ademais, diversos detentos apresentem comportamentos infantis no ambiente

penitenciário, motivados, sobretudo, pela monotonia e regulamentação minuciosa da prisão,

conforme aduz Bitencourt (2004, p. 198): “Outro dos efeitos negativos da prisão sob o ponto

de vista psicológico é que os reclusos tendem com muita facilidade a adotar uma atitude

infantil e regressiva. Essa atitude é o resultado da monotonia e minuciosa regulamentação a

que está submetida a vida carcerária”.

A própria experiência no crime também pode ensejar a imaturidade psicológica do

preso, conforme pontuado por Alvino Augusto de Sá (2015, p. 78):

No entanto, na contramão de todo esse raciocínio de estabelecer um nexo causal

entre imaturidade, infantilismo e crime, talvez se deva estabelecer um nexo causal,

porém de direção inversa: a experiência na vida no crime (com toda a estigmatização

dela decorrente), incluída aí a vida carcerária, certamente é um fator fortemente

propiciador de um processo de regressão, de imaturidade psicológica, de

infantilização. Portanto, o crime não seria o consequente, mas o antecedente.

O regime fechado, em razão da segregação social, produz sérias consequências

psicológicas nos presos. A esse respeito, Bitencourt (2004, p. 198-199) preleciona:

A ausência de verdadeiras relações humanas, a insuficiência ou mesmo a ausência

de trabalho, o trato frio e impessoal dos funcionários penitenciários, todos esses

fatores contribuem para que a prisão converta-se em meio de isolamento crônico e

odioso. As prisões que atualmente adotam o regime fechado, dito de segurança

máxima, com total desvinculação da sociedade, produzem graves perturbações

psíquicas aos reclusos, que não se adaptam ao desumano isolamento. A prisão

violenta o estado emocional, e, apesar das diferenças psicológicas entre as pessoas,

pode-se afirmar que todos os que entram na prisão – em maior ou menor grau –

encontram-se propensos a algum tipo de reação carcerária.

61

Não é apenas o ambiente penitenciário que provoca efeitos psicológicos nos presos. A

família do recluso, ao adotar postura de reprovação exagerada, acaba por afetá-lo

negativamente, ocasionando revolta, amargura e agressividade, tal como relatado por Miotto

(1975, p. 383):

A família do preso, pelos mais diversos motivos, inclusive de ordem psicológica ou

de ordem social, às vezes – não tão raras como se possa pensar – assume essa atitude

de exagerada reprovação, abrangendo não somente o delito cometido, mas

envolvendo também a pessoa de seu pai, filho, irmão, parente autor do delito. Ora,

quando a reprovação abrange a pessoa, deixa de ser reprovação, para ser repulsa,

aversão, ódio e outros sentimentos análogos. O preso, sentindo essa atitude de sua

família, fica amargurado, revoltado – e a sua revolta se dirige contra tudo e contra

todos; pode chegar também a traduzir-se em agressividade, que o preso pode voltar

contra as coisas (produzindo danos materiais) e contra as pessoas (produzindo lesões

corporais e até homicídios).

Os efeitos negativos do encarceramento, dentre os quais os psicológicos, os

sociológicos e tantos outros, conduzem ao questionamento sobre a eficácia da pena de prisão

e sobre a efetivação de sua função ressocializadora. O preso se vê desamparado pelo Estado e

pela sociedade, o que, em muitos casos, acaba por incentivá-lo a voltar a delinquir.

3.5 A privatização dos presídios

Apontada por especialistas como uma das possíveis soluções para o problema

penitenciário, a privatização dos presídios é um tema controverso e muito debatido

atualmente. Defensores e críticos dividem opiniões e fomentam discussões sobre a medida,

que será brevemente analisada neste tópico.

De proêmio, cabe ressaltar que o movimento de privatização das prisões teve início

nos Estados Unidos, como uma tentativa de superar o problema da superlotação carcerária e

de reduzir os custos dos detentos, conforme leciona Greco (2017, p. 238):

[...] os Estados Unidos, a partir da década de 80, foram os grandes propulsores no

que diz respeito à privatização do sistema prisional. Naquela época, havia não

somente uma preocupação com relação à superlotação carcerária, mas também com

relação aos custos gerados pelos presos.

62

A respeito da crise carcerária enfrentada pelos Estados Unidos na década de 80,

Laurindo Dias Minhoto (2000, p. 47-48) afirma:

Desde a década de 80, o sistema prisional norte-americano tem se defrontado com os

problemas da superpopulação das prisões e dos custos crescentes do

encarceramento. Com relação à superpopulação, em 1985 estimava-se que cerca de

450.000 presos cumpriam pena e outros 250.000 aguardavam julgamento em cadeias

locais. A população carcerária da União e dos Estados cresceu 250% desde 1950.

Apenas no período entre 1976 e 1986, a população prisional cresceu 115%.

Desde então, diversos países aderiram ao movimento e “passaram a privatizar suas

prisões, a exemplo do que ocorreu com França, Canadá, Alemanha, Inglaterra, Escócia,

Austrália, Japão e Brasil” (GRECO, 2017, p. 238).

Nesse mesmo sentido:

A partir de meados da década de 80, primeiramente nos EUA, e a seguir em outros

países industrializados, como Inglaterra, França, Canadá e Austrália, a política de

privatização de prisões torna-se uma realidade no combate à crise generalizada do

sistema penitenciário das sociedades capitalistas avançadas do Ocidente. Em 1992,

já na esteira da “experiência internacional”, discute-se também no Brasil a

viabilidade da ação das prisões privadas como resposta à crise do sistema

penitenciário brasileiro (MINHOTO, 2000, p. 25).

Com efeito, é possível identificar basicamente dois modelos prisionais privados: o

norte-americano e o francês. No primeiro, o Estado se abstém de qualquer atuação, cabendo à

empresa privada a construção e o gerenciamento das penitenciárias. No segundo modelo,

porém, Estado e empresa privada dividem atribuições e dirigem o sistema penal

conjuntamente. A esse respeito, Greco (2017, p. 239) afirma:

Ao contrário do que ocorre com o modelo prisional privado norte-americano, no

qual a empresa privada se encarrega da construção, bem como da administração do

sistema carcerário, o modelo francês se baseia em um sistema de dupla

responsabilidade, ou seja, tanto o Estado quanto a empresa privada administram, em

conjunto, o sistema prisional. Esse também é o sistema adotado no Brasil.

Sobre o modelo norte-americano de privatização, Minhoto (2000, p. 81) pontua:

Ainda que até certo ponto limitada, a experiência norte-americana no campo da

privatização de presídios tem assumido um caráter marcadamente controvertido. O

debate sobre as prisões privadas (como tem sido referido pela literatura) está

circunscrito prioritariamente à administração privada total de estabelecimentos

penitenciários e se concentra basicamente no questionamento de dois pontos: de um

lado, a promessa da eficiência e da redução dos custos feita pelos defensores da

privatização; de outro, a possibilidade e mesmo a oportunidade e conveniência da

63

delegação do poder de execução da pena às empresas privadas, envolvendo razões

de ordem jurídica, política, ética e simbólica.

No que tange ao modelo francês de privatização, Alves, Santos e Borges (1995, p. 80-

81) concluem:

O modelo de privatização francês buscou uma solução diferente da encontrada pelos

Estados Unidos. Na França, a responsabilidade pelo gerenciamento e administração

cabe tanto ao Estado quanto ao grupo empresarial que irá ser contratado. Com o

“Projeto 15.000” surgiu a possibilidade de serem criadas 15.000 vagas em diferentes

novos estabelecimento penitenciários.

No Brasil, porém, a política de privatização dos presídios foi proposta pelo Conselho

Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) em 1992, consoante lição de Minhoto

(2000, p. 168):

É no âmbito desse contexto que o Conselho Nacional de Política Criminal e

Penitenciária (CNPCP), órgão subordinado ao Ministério da Justiça e encarregado

da formulação de linhas diretrizes para a área, propõe formalmente, em janeiro de

1992, a adoção das prisões privadas no Brasil.

A respeito das características do modelo proposto, Geisa de Assis Rodrigues (1995, p.

31) assevera:

Nesse projeto, os servidores do sistema penitenciário continuariam sendo servidores

estatais. A empresa privada construiria a prisão dentro dos parâmetros da

Administração e gerenciaria o centro penal. Também poderia explorar o trabalho

remunerado dos presos. Estes contribuiriam com seu trabalho para a manutenção do

estabelecimento. Seria não só para presos condenados, mas também, para os presos

provisórios. Os lucros obtidos com o produto dos investimentos seriam auferidos

pelo grupo ou empresa privada. Os contratos não seriam superiores ao período de 10

anos. Os terrenos seriam concedidos pelo Governo Federal e as construções e

benfeitorias poderiam ser incorporadas ao patrimônio da empresa privada.

A contratação das empresas privadas se faria por meio de concorrência pública e a

gestão dos estabelecimentos penais seria mista, conforme preleciona Minhoto (2000, p. 169):

A admissão das empresas seria feita por concorrência pública e os direitos e

obrigações das partes seriam regulados por contrato. O setor privado passaria a

prover serviços penitenciários, tais como alimentação, saúde, trabalho e educação

aos detentos, além de poder construir e administrar os estabelecimentos. A

administração se faria em sistema de gestão mista, ficando a supervisão geral dos

estabelecimentos com o setor público, cuja atribuição básica seria a de supervisionar

o efetivo cumprimento dos termos fixados em contrato.

64

Além disso, dentre os compromissos assumidos pela empresa privada estão:

[...] a) construção da penitenciária; b) colocação de todos os móveis necessários ao

seu funcionamento; c) manutenção de serviços médicos e dentários; d) criação de

áreas de lazer; e) fornecimento de alimentação, roupas, medicamentos etc.; f)

segurança interna, realizada por pessoal contratado, ou mesmo por funcionários

registrados pela empresa privada; g) fornecimento de assistência jurídica gratuita

para os presos; h) possibilidade de assistência religiosa. Enfim, tudo o que diz

respeito ao normal funcionamento do sistema prisional competirá à empresa privada

(GRECO, 2017, p. 239).

A Administração Pública, por sua vez, também possui responsabilidades, dentre as

quais:

[...] a fiscalização continua sendo exercida pelo Ministério Público, bem como pelo

Poder Judiciário; o diretor do presídio não é indicado pela empresa privada, mas sim

pelo governo; quando houver necessidade de deslocamento do preso até algum outro

lugar fora do sistema prisional, a vigilância externa será realizada pelos policiais

pertencentes ao Poder Público; o juiz de direito é quem tem o poder de determinar a

progressão de regime de cumprimento de pena, bem como a concessão de algum

benefício legal, como, por exemplo, saídas temporárias em épocas festivas, para

visitas familiares, ou mesmo o livramento condicional etc. (GRECO, 2017, p. 239).

Cabe, nesse passo, ressaltar que diversas críticas são feitas à política de privatização

dos presídios desde a sua concepção no país. A Ordem dos Advogados do Brasil, por

exemplo, reprovou o modelo proposto. Nesse sentido, Minhoto (2000, p. 172) assevera:

A Ordem dos Advogados do Brasil condenou a proposta governamental, num

documento preliminar, de abril de 1992, alegando em síntese que: a. a experiência

está longe de ser moderna, antes, constituindo um retrocesso histórico em termos de

desenvolvimento da política criminal; b. a execução da pena é uma função pública

intransferível; c. a proposta violaria direitos e garantias constitucionais dos presos;

d. a política de privatização de presídios poderia dar margem a uma superexploração

do trabalho prisional, uma vez que, segundo disposição expressa da Lei de Execução

Penal, o trabalho dos detentos é considerado relação jurídica de natureza

administrativa, não estando sujeito ao regime da Consolidação das Lei do Trabalho

(art. 28, § 2º).

Há, ainda, quem sustente que a privatização das prisões elevaria o nível de

encarceramento, uma vez que: “privatizando as prisões, e tendo elas um fim lucrativo,

aumentaríamos sensivelmente o número de pessoas presas, a exemplo do que ocorreu nos

Estados Unidos” (GRECO, 2017, p. 239).

Alguns críticos sustentam que não é possível delegar a função de executar penas,

tendo em vista que se trata de um poder exclusivamente estatal, conforme assevera Erivan

Santiago França Filho (1995, p. 36-37):

65

O princípio da jurisdição única atribui ao Estado o monopólio da imposição e da

execução de penas ou outras sanções. Inconcebível seria que o Estado executasse a

tutela jurisdicional, representado por autoridade que não se reveste de poderes

suficientes para tanto. O Estado, seja do ponto de vista moral, seja do ponto de vista

jurídico positivista, não está legitimado para transferir a uma pessoa física ou

jurídica o poder de coação de que está investido e que é exclusivamente seu, por ser,

tal poder, violador do direito de liberdade.

E ainda:

No mesmo sentido, uma coletânea de artigos inteiramente dedicada ao tema da

privatização, publicada em 1995, sob a coordenação de João Marcello de Araujo Jr.,

procura enfatizar, a partir de uma abordagem eminentemente técnico-jurídica, a

inconstitucionalidade da proposta do CNPCP, uma vez que a execução da pena é

considerada atividade jurisdicional e, nesses termos, indelegável (MINHOTO, 2000,

p. 173).

Outro argumento contrário à privatização é que “nos países onde reina a corrupção nos

Poderes Públicos, a delegação não somente da construção, mas da manutenção do sistema

prisional privado, geraria um custo excessivo para o Estado, em virtude do superfaturamento

das obras e dos serviços prestados” (GRECO, 2017, p. 242).

Referido problema deve ser enfrentado, sobretudo, por meio da fiscalização ostensiva

dos órgãos responsáveis, conforme assinala Greco (2017, p. 242): “Nos países que possuem

uma cultura política corrupta, deverá haver uma maior fiscalização pelos órgãos competentes,

principalmente a realizada pelo Ministério Público”.

É possível afirmar, portanto, que a privatização das prisões representa uma tentativa de

solucionar – ou, ao menos, abrandar – a crise do sistema penitenciário. Ademais, levando-se

em conta que se trata de uma temática sensível, por óbvio que a medida não está imune a

críticas da comunidade jurídica, devendo ser, por isso mesmo, debatida e aperfeiçoada.

66

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do que foi exposto, é inevitável concluir que o sistema penitenciário brasileiro

enfrenta um severo período de crise. A prisão, ao contrário do que previsto na legislação,

transformou-se em um ambiente tóxico e deplorável.

Isso porque, conforme apontado principalmente ao longo do terceiro capítulo, nos

estabelecimentos penais, os detentos se veem obrigados a passar por situações desumanas e

degradantes, motivadas por problemas de todas as ordens, tais como: a superlotação

carcerária, a precariedade do ambiente físico, as falhas assistenciais e a violência nas prisões.

De todos os problemas penitenciários, a superlotação carcerária talvez seja o mais

grave, tendo em vista que é responsável por desencadear tantos outros. O sistema penal lida,

hoje, com uma quantidade de presos além do que pode suportar, fazendo com que inúmeras

complicações surjam a partir daí. As celas lotadas favorecem a proliferação de doenças

contagiosas e faz com que os suprimentos se tornem escassos. A situação beira o absurdo.

Nesse cenário, diversos direitos fundamentais são violados diariamente pelo Estado,

aquele que, ironicamente, deveria ser o responsável por preservar a dignidade da pessoa

humana. A pena de prisão não desempenha a sua função de ressocializar o apenado, pois o

deixa estigmatizado e vulnerável; tampouco efetiva seu caráter coercitivo e inibitório, já que

inúmeros egressos voltam a delinquir.

No tocando ao Estado de Coisas Inconstitucional, reconhecido no Brasil através da

ADPF nº 347, infere-se que essa técnica de decisão é, em última análise, uma reação do Poder

Judiciário à grave situação carcerária do país, vivenciada há anos. Além disso, o ECI constitui

uma forma de se efetivar os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal e nas

demais normas do ordenamento jurídico pátrio.

Sobre a questão do ativismo judicial que permeia o instituto, cabe ressaltar que, à vista

do princípio da separação de poderes, é evidente que o Poder Judiciário não deve substituir os

Poderes Executivo e Legislativo no cumprimento de suas funções típicas. No entanto, referido

princípio deve ser interpretado de modo a permitir o diálogo entre os poderes estatais. Assim,

em situações excepcionais e em havendo omissões reiteradas por parte dos demais poderes, o

Poder Judiciário estaria autorizado a intervir com um único intuito: assegurar as liberdades e

os direitos fundamentais dos cidadãos.

67

De fato, incumbe ao Poder Público o dever de zelar pelo bom funcionamento da

máquina penitenciária, devendo adotar medidas efetivas para combater o caos instaurado no

sistema. Não se deve perder de vista que, a despeito da gravidade do crime e de suas

consequências, o condenado não deixa de ser titular de direitos e deveres, merecendo,

portanto, ser tratando de acordo com o disposto na lei vigente, porque, do contrário, para que

serviriam as normas constitucionais e infraconstitucionais que lhe asseguram proteção?

Não se quer com este debate fazer juízo de valor sobre o merecimento, por parte

daquele que cometeu o ilícito, de sofrer penas rígidas, já que para alguns “bandido bom é

bandido morto”. Antes, porém, propõe-se a reflexão a respeito da discrepância existente entre

o previsto na legislação e o visto na prática.

A partir do momento em que o Brasil, nos termos de sua própria Constituição, se

afirma como um Estado Democrático de Direito e toma para si o dever de zelar pelos direitos

de todas as pessoas sem distinção de qualquer natureza, sejam elas ricas ou pobres, livres ou

presas, toda conduta que vier em direção oposta a esses preceitos padeceria de patente

inconstitucionalidade.

É utópico pensar que a crise do sistema penitenciário brasileiro será superada em

algum momento da história. É ainda mais utópico – e até pretensioso – pensar que o presente

trabalho traria a solução definitiva para o problema. Entretanto, certo é que a Administração

Pública deve atuar com o objetivo de impedir que o que já é ruim se torne cada vez pior.

Desta forma, medidas como o investimento em políticas públicas, a construção de

novas unidades prisionais, o acompanhamento dos egressos e o manejo de material e pessoal

especializado podem ser de grande valia nesta longa batalha, na qual apenas uma vitória

importa: a da dignidade da pessoa humana.

68

REFERÊNCIAS

AGUIRRE, Carlos. Cárcere e sociedade na América Latina, 1800-1940. In: MAIA, Clarissa

Nunes et al. História das prisões no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2009, p. 20-41.

ALARCÓN, Pietro de Jesús Lora. O estado de coisas inconstitucional no constitucionalismo

contemporâneo: efetividade da Constituição ou ativismo judicial? In: PRETTO, Renato

Siqueira de; KIM, Richard Pae; TERAOKA, Thiago Massao Cortizo. Interpretação

constitucional no Brasil. São Paulo: Escola Paulista da Magistratura, 2017, p. 85-118.

Disponível em: <https://bit.ly/2BmAor3>. Acesso em: 03 nov. 2018.

ALESSI, Gil. Prisões em massa, o motor das facções que afetam a vida de metade dos

brasileiros. El País, São Paulo, 31 de janeiro de 2018. Disponível em:

<https://bit.ly/2xBmSh0>. Acesso em: 21 fev. 2019.

ALMEIDA, Guilherme Assis de; APOLINÁRIO, Silvia Menicucci de Oliveira Selmi.

Direitos humanos. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2011.

ALVES, Alexandre Ferreira de Assumpção; SANTOS, Eliane Costa dos; BORGES,

Rosângela Maria Sá. O modelo de privatização francês. In: ARAUJO JUNIOR, João Marcello

de (Coord.). Privatização das prisões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 67-88.

_____, Leonardo Barreto Moreira. Processo penal: parte geral. 8. ed. Salvador: Juspodvm,

2018.

ANDRÉA, Gianfranco Faggin Mastro. Estado de coisas inconstitucional no Brasil. Rio de

Janeiro: Lumen Juris, 2018.

ASSUNÇÃO, José Ribamar da Costa. Violência em presídios decorre de ausência de

vontade governamental. Consultor Jurídico, 17 de janeiro de 2017. Disponível em:

<https://bit.ly/2SVKqd6>. Acesso em: 23 fev. 2019.

BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos

fundamentais e a construção do novo modelo. 7. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Hunter Books, 2012.

69

BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 3. ed. São

Paulo: Saraiva, 2004.

______. Tratado de direito penal: parte geral, 1. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

BRASIL. Congresso Nacional. Câmara dos Deputados. Comissão Parlamentar de Inquérito

do Sistema Carcerário. CPI sistema carcerário. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições

Câmara, 2009. Disponível em: <https://bit.ly/1Ie51YS>. Acesso em 19 fev. 2019.

______. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília,

DF: Senado, 1988.

______. Lei de Execução Penal (1984). Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Brasília, DF:

Senado, 1984.

______. Supremo Tribunal Federal. ADPF 347 MC/DF: inteiro teor do acórdão. Brasília: 09

de setembro de 2015. Disponível em: <https://bit.ly/2NGyVPo>. Acesso em: 17 nov. 2018.

______. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito

Fundamental nº 347: petição inicial. Rio de Janeiro: 26 de maio de 2015. Disponível em:

<https://bit.ly/2KigX5p>. Acesso em: 17 nov. 2018.

______. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 85.237. Relator Ministro Celso de

Mello, Brasília, 17 de março de 2005.

CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Estado de coisas inconstitucional. Salvador:

Juspodivm, 2016.

CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: volume 1, parte geral (arts. 1º a 120). 19. ed. São

Paulo: Saraiva, 2015.

______. Curso de processo penal. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

CARVALHO, Ilona Szabó de; RISSO, Melina Íngrid. Segurança pública para virar o jogo.

Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

CARVALHO NETO, Inacio de. Aplicação da pena. 4. ed. São Paulo: Método, 2013.

70

CASTILHO, Ricardo. Direitos humanos. 6. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018a.

______. Direitos humanos. 5. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018b.

CASTRO, Bruno Ronchetti de. Relatório de gestão: supervisão do departamento de

monitoramento e fiscalização do sistema carcerário e do sistema de execução de medidas

socioeducativas – DMF. Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2017. Disponível em:

<https://bit.ly/2UTfV3V>. Acesso em: 12 fev. 2019.

CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido

Rangel. Teoria geral do processo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2009.

CUNHA, Rogério Sanches. Manual de direito penal: parte geral (arts. 1º ao 120). 4. ed.

Salvador: Juspodivm, 2016.

CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Estado de coisas inconstitucional. 2015. Disponível em:

<https://bit.ly/2QgElpH>. Acesso em: 02 nov. 2018.

CNPCP. Diretrizes básicas para arquitetura prisional. Brasília: CNPCP, 2011. Disponível

em: < https://bit.ly/2X6jUvQ>. Acesso em: 14 fev. 2019.

DEPEN. Levantamento nacional de informações penitenciárias. INFOPEN. Brasília:

Ministério da Justiça e Segurança Pública. Departamento Penitenciário Nacional, 2017.

Disponível em: <https://bit.ly/2Txk2Tx>. Acesso em: 09 fev. 2019.

FOCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 37. ed. Petrópolis: Vozes, 2009.

FRANÇA FILHO, Erivan Santiago. Da ilegalidade das prisões privadas. In: ARAUJO

JUNIOR, João Marcello de (Coord.). Privatização das prisões. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 1995, p. 35-39.

GIORGI, Raffaele de; FARIA, José Eduardo; CAMPILONGO, Celso. Estado de coisas

inconstitucional. Estadão, São Paulo, 19 set. 2015. Opinião. Disponível em:

<https://bit.ly/2zdLX2n>. Acesso em: 18 nov. 2018.

GRECO, Rogério. Sistema prisional: colapso atual e soluções alternativas. 4. ed. Niterói:

Impetus, 2017.

71

GUERRA, Sidney. Direitos humanos: curso elementar. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

LACERDA, Ricardo. Como as cadeias viraram fábricas de facções criminosas.

Superinteressante, 21 de maio de 2018. Disponível em: <https://abr.ai/2KM3AK2>. Acesso

em: 21 fev. 2019.

LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 22. ed. São Paulo: Saraiva Educação,

2018.

LIMA, Alberto Jorge Correia de Barros. Direito penal constitucional: a imposição dos

princípios constitucionais penais. São Paulo: Saraiva, 2012.

MARCÃO, Renato. Curso de execução penal. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2018.

MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade:

estudos de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

MINHOTO, Laurindo Dias. Privatização de presídios e criminalidade: a gestão da

violência no capitalismo global. São Paulo: Max Limonad, 2000.

MIOTTO, Armida Bergamini. Curso de direito penitenciário. São Paulo: Saraiva, 1975.

NADER, Paulo. Filosofia do direito. 23. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015.

NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de execução penal. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense,

2018.

______. Manual de direito penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015.

NUNES, Adeildo. Da execução penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013.

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 16. ed. São

Paulo: Saraiva, 2016.

PIRES, Antonio Fernando. Manual de direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Forense,

2016.

72

PORTO, Roberto. Crime organizado e sistema prisional. 1. ed. São Paulo: Atlas, 2008.

RODRIGUES, Geisa de Assis. Privatização de prisões: um debate necessário. In: ARAUJO

JUNIOR, João Marcello de (Coord.). Privatização das prisões. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 1995, p. 23-33.

SÁ, Alvino Augusto de. Criminologia clínica e execução penal: proposta de um modelo de

terceira geração. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de

direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2018.

SARMENTO, George. Interceptação telefônica como limitação ao direito à intimidade e à

vida privada. In: CRUZ, Ariele Chagas; SARMENTO, George; SEIXAS, Taysa Matos.

Direitos humanos fundamentais: estudos sobre o art. 5º da Constituição de 1988. São Paulo:

Saraiva, 2014, p. 13-29.

STRECK, Lenio Luiz. Estado de coisas inconstitucional é uma nova forma de ativismo.

Consultor Jurídico, São Paulo, 24 de outubro de 2015. Disponível em:

<https://bit.ly/2vjLcBV>. Acesso em: 18 nov. 2018.

______. O que é preciso para (não) se conseguir um habeas corpus no Brasil. Consultor

Jurídico, São Paulo, 24 de setembro de 2015. Disponível em: <https://bit.ly/2Klqj0e>. Acesso

em: 18 nov. 2018.

VEJA algumas das maiores rebeliões ocorridas em presídios do Brasil. Folha de São

Paulo, São Paulo, 10 abr. 2018. Disponível em: <https://bit.ly/2Ax9axA>. Acesso em 19 fev.

2019.

VIEIRA JUNIOR, Ronaldo Jorge Araujo. Separação de poderes, estado de coisas

inconstitucional e compromisso significativo: novas balizas à atuação do Supremo Tribunal

Federal. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, 2015. Disponível em:

<https://bit.ly/2BkJVyG>. Acesso em: 03 nov. 2018.

WEYNE, Bruno Cunha. O princípio da dignidade humana: reflexões a partir da filosofia de

Kant. São Paulo: Saraiva, 2013.

73

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal

brasileiro: parte geral. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.


Recommended