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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA
WENDELL EVANGELISTA SOARES LOPES
Hans Jonas e a Diferena Antropolgica: Uma anlise da biologia filosfica
Belo Horizonte FAFICH / UFMG
2014
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WENDELL EVANGELISTA SOARES LOPES
Hans Jonas e a Diferena Antropolgica:
Uma anlise da biologia filosfica
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais, como parte dos requisitos para a obteno do ttulo de Doutor em Filosofia.
Linha de Pesquisa: Filosofia Contempornea
Orientador: Prof. Dr. Ivan Domingues. Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da UFMG.
Belo Horizonte FAFICH / UFMG
2014
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100
L864h
2014
Lopes, Wendell Evangelista Soares
Hans Jonas e a diferena antropolgica [manuscrito] :
uma anlise da biologia filosfica / Wendell Evangelista
Soares Lopes - 2014.
411 f. il.
Orientador: Ivan Domingues.
Tese (doutorado) - Universidade Federal de Minas
Gerais, Faculdade de Filosofia e Cincias.
1. Jonas, Hans, 1903-1993. 2. Filosofia Teses. 3.
Ontologia - Teses. 4. Antropologia filosfica - Teses. I.
Domingues, Ivan. II. Universidade Federal de Minas Gerais.
Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas. III. Ttulo.
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Ao Watson
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AGRADECIMENTOS
Agradecemos, antes de tudo, ao prof. Ivan Domingues, que alm de acolher a orientao da presente tese e alm das vrias conversas que tivemos sobre Jonas e filosofia em geral, nos recebeu em sua casa, onde tambm pudemos discutir horas a fio pontos do presente trabalho de pesquisa, que graas as suas observaes precisas ora recebeu maior luz para o autor, e ora se revelou em seu pontos ainda problemticos, que puderam ser retratados. Agradecimentos tambm devem ser dados ao prof. Dietrich Bhler e sua equipe do Hans Jonas Zentrum, que nos recebeu e ofereceu as melhores condies de pesquisa, disponibilizando todos os documentos que se encontram agora em preparo para a Kritische Gesamtausgabe. Dessa equipe, agradecemos, em especial, a Florian Preuger, Jens Ol Beckers e Jens Peter Brune, com os quais tivemos a oportunidade de discutir vrios pontos da edio crtica e da obra jonasiana. Agradeo tambm ao professor Vittorio Hsle, com quem pude discutir alguns pontos desta tese sobre a natureza do orgnico. Dele recebi grande encorajamento para minha pesquisa e enviando-me diligente e generosamente seu belo ensaio Objective Idealism and Darwinism bem como sua entrevista com Hans Jonas. No poderamos esquecer tambm de Roberto Franzini Tibaldeo, com quem discutimos a obra jonasiana e que gentilmente nos enviou seu volumoso e competentssimo trabalho sobre a biologia filosfica de Jonas; e tambm de Nathalie Frogneux, com quem pude discutir certos problemas da obra de Jonas nos Colquios realizados em Curitiba e Belo Horizonte, e por me enviar gentilmente dois de seus ensaios sobre a filosofia de Jonas. Agradecemos aos prof. Marco Aurlio e Jelson Oliveira pela precisa contribuio que deram ao trabalho com as anlises e intervenes que fizeram nos exames de qualificao e defesa da presente tese. Jelson, em especial, que dizponibilizou dois livros essenciais que confirmaram pontos trabalhados nesta tese. Tambm os professores Carlos Roberto Drawin e Lilian Simone Godoy ofereceram profundas contribuies durante o exame de defesa de tese, ao que deixamos aqui os mais sinceros agradecimentos. Aproveitamos para deixar aqui tambm nossos sinceros agradecimentos tanto aos colegas do Grupo Hans Jonas, com os quais a interao nos Colquios tem sido sempre de valor inestimvel, quanto aos colegas do grupo de Pesquisa do NEPC, com os quais a discusso foi sempre valiosa e contribuiu imensamente para a maturao de problemas ligados tica e s atuais biotecnologias. A esses nomes deve se acrescentar ainda os nomes de Antonio Gargano, Paolo Becchi, Henri Atlan, Vallori Rasini que tambm contriburam ora ao enviar-nos materiais importantes para pesquisa, ora nas conversas que tivemos. E, por fim, mas no menos importante, agradecemos ao Curso de ps-graduao em filosofia da UFMG, no nome da Andrea e dos professores coordenadores, Helton Adverse e Telma Birchal pela ajuda que ofereceram diligentemente sempre que precisamos, e tambm CAPES pela bolsa de estudos que durante quatro anos nos proporcionou o tempo e a estabilidade para levar a cabo a pesquisa.
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RESUMO
A presente tese oferece uma interpretao original da biologia filosfica de Hans Jonas. Mostraremos inicialmente que a filosofia jonasiana marcada pela diferena antropolgica, a partir da qual o filsofo equaciona o horizonte da filosofia moderna tal como o herda de Husserl e Heidegger, aproximando-se, entretanto, do j antigo movimento da Antropologia Filosfica, embora de modo completamente independente. A a filosofia chamada a considerar, ao lado da questo fundamental do ser enquanto tal, o problema do sujeito questionador e compreensivo do ente como um todo. No interior desse vis da filosofia alem, Jonas encontra sua originalidade e inflexo prpria ao considerar o homem como possuindo um acesso privilegiado ao ser por justamente fazer parte desse todo enquanto o vivente capaz de conhecer a vida. Neste sentido, veremos que o mtodo da filosofia jonasiana marcado pela diferena antropolgica tanto ao considerar a dimenso psquica, trao fundamental da vivncia humana, deixada de lado na considerao da cincia natural, quanto ao pensar o resto da vida desde a medida humana sem que isto se confunda com um antropomorfismo ingnuo. Uma vez demonstrado essa espcie crtica de antropocentrismo metodolgico, acompanharemos como a diferena antropolgica se evidencia na leitura existencial-dialtica da liberdade orgnica em seu avano atravs de seus estgios vegetal, animal e finalmente humano. Esta anlise nos entregar uma concepo dialtica do orgnico, que em seu momento sinttico no mais mera auto-conservao, mas auto-transcendncia, e isto quer dizer, auto-produo autnoma da forma vivente frente ao ambiente externo, mas tambm possvel transcendncia da prpria forma atual (evoluo), que, embora apenas individualmente orientada teleologicamente, encontra como fim ltimo de seu desenvolvimento o anthropos. Como estgio final e expresso mxima do processo do ser, a diferena antropolgica se revela no mais apenas como uma chave de leitura do mundo vivente, mas como o momento de uma diferena ltima, instalada no ser como todo no como um ente espiritual desenraizado, mas ainda assim trans-animal. Veremos que Jonas afirma resolutamente a diferena antropolgica como essncia, inclusive, transhistrica na histria, marcada pela faculdade simblica, que se evidencia no homo pictor, esta figura da liberdade eidtica do anthropos, o qual se realiza numa escalada potencial que vai desde a construo de ferramentas, passando pelas obras aparentemente inteis da arte, at alcanar a fora do conceito racional e da responsabilidade. Por fim, veremos que ao ser o pinculo do ser, a diferena antropolgica se torna diferena tica, dando ao homem o posto de guardio do ser, o que exige dele responder pela existncia futura da humanidade e da biosfera um humanismo tico que no se rende, entetanto, a um antropocentrismo tico ingnuo, mas concede natureza um valor prprio, e ademais se pretende uma resposta existencial-tica ao problema do niilismo.
ABSTRACT
This thesis offers an original interpretation of Hans Jonas philosophical biology. Initially we will show that jonasian philosophy is marked by the anthropological difference, from which Jonas equates the horizon of modern philosophy as it inherits from Husserl and Heidegger. Nonetheless, his thinking comes quite close to the longstanding movement of Philosophical Anthropology, although it is independent from that movement. Here philosophy is called to consider, beside the fundamental question of being as such, the problem of the being who tries to understand being as a whole. Within this bias of German philosophy, Jonas finds its own originality and inflection to consider man as having privileged access to being as such by just being part of that whole while living creature capable of knowing life. In this sense, we will see that the method of Jonas philosophy is marked by anthropological difference in considering both, the psychic dimension, fundamental trait of human experience, set aside on the account of natural science, and the rest of life from the point of view of human measure without that being confused with a naive anthropomorphism. Once demonstrated this kind of critical anthropomorfism, we will follow how the anthropological difference is evident in the existential-dialectical reading of the organic freedom, in their advance throughout all their stages. This analysis will give us a conception of organic existence as characterized by a dialectical movement, which in its synthetic moment is not mere self-preservation, but self-transcendence, and that means, autonomous self-production of the living form opposite to the external environment, including also possible transcendence of the actual form itself (evolution), which, although only teleologically oriented iin terms of the individual, finds its ultimate aim of developing in the anthropos itself. As a final stage and being the ultimate expression of the process, the anthropological difference reveals itself not only as a key to reading the living world, but ultimate difference in being as whole not as an uprooted spiritual being, but still so as a transanimal. We will see that Jonas thinks of anthropological difference as even transhistorical essence in history, marked by the symbolic faculty of the homo pictor, this figure of eidetic freedom of man, which takes place in a potential escalation ranging from building tools, apparently useless works of art, until find the strength of rational concept and human responsibility. Finally, we wil find that to be just the pinnacle of being, the anthropological difference becomes an ethical difference, giving man the place of guardian of being, which confers to him the responsibility for the survival of mankind and the biosphere an ethical humanism that does not surrenders itself whatsoever to a naive ethical anthropocentrism, but covers in his own account the value of nature as a whole, and also intends to be an existential and ethical response to the problem of nihilism as such.
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ABREVIATURAS1
Da bibliografia de Jonas Augustin Augustin und das paulinische Freiheitsproblem [Agostinho e o problema paulino da liberdade] (1930: foi utilizada a verso de 1965). BEN Dem bsen Ende nher [Mais prximos de um fim desastroso] (1993). Erinnerungen Erinnerungen [Memrias] (2003). EV Erkenntnis und Verantwortung [Conhecimento e responsabilidade] (1991). GR The Gnostic Religion: (1958: foi utilizada a edio de 2001). GSG I Gnosis und sptantiker Geist I [Gnose e o esprito tardoantigo I] (1934). GSG II Gnosis und sptantiker Geist II [Gnose e o esprito tardoantigo II] (1954). IR The Imperative of Responsibility (1984). KGA - Kritische Gesamtausgabe [Edio Crtica] (ainda em publicao)2. MGS Materie, Geist und Schpfung [Matria, esprito e criao] (1988). MM Mortality and Morality: a search for good after Auschwitz (1996). MOS Macht oder Ohnmacht der Subjektivitt? (1981: foi utilizada a edio de 1987). OF Organismus und Freiheit [Organismo e liberdade] (1973). PE Philosophical Essays (1974: foi utilizada a edio de 1980). PL The Phenomenon of Life (1966: foi utilizada a edio de 2001). PRVEJ Philosophie: Rckschau und Vorschau am Ende des Jahrhunderts [Filosofia: retrospectiva e prospectiva no final do sculo] (1993). PUMV Philosophische Untersuchungen und metaphysische Vermutungen [Investigaes filosficas e conjecturas metafsicas] (1992). PV Das Prinzip Verantwortung [O princpio responsabilidade] (1979: foi utilizada a edio de1984). TME Technik, Medizin und Ethik [Tcnica, Medicina e tica] (1985: foi utilizada a edio de 1987). WPE Wissenschaft als persnliches Erlebnis [Cincia como experincia pessoal] (1987). ZNE Zwischen Nichts und Ewigkeit [Entre o nada e a eternidade] (1963). De outras bibliografias Hua Husserliana (Edio completa das obras de Husserl: foram utilizados apenas alguns dos volumes) GA Gesamtausgabe [Edio completa] (de Heidegger: foram utilizados apenas alguns dos volumes) SZ Sein und Zeit [Ser e Tempo] (1927: foi utilizada a verso de 1965)
1 Os ttulos das obras as quais listamos nesta abreviatura encontram-se traduzidos para o portugus na bibliografia da presente tese. No corpo do texto, a traduo acompanhar apenas a primeira vez que aparecer o ttulo de um desses livros, especialmente dos ttulos alemes. O mesmo valer para os ttulos alemes dos ensaios de Jonas, os quais no se encontram listados acima, mas apenas na bibliografia. 2 No Apndice I, no final da tese, so fornecidos Plano de Edio e comentrio completo da Kritische Gesamtausgabe der Werke von Hans Jonas [Edio Crtica da Obra de Hans Jonas].
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NOTA SOBRE AS TRADUES E CITAES:
No que se segue, o mtodo adotado para as citaes foi o de referenciar apenas em portugus e no corpo do texto. No caso dos textos de Jonas e Heidegger, as citaes de ensaios e livros utilizados so oferecidas a partir das abreviaes listadas na pgina anterior. Para edies e tradues consultadas desses documentos, remetemos o leitor bibliografia. Nem todas as obras de Jonas e Heidegger foram citadas a partir das obras acima listadas, e nesse caso adotou-se a seguinte padronizao, que serviu tambm para todos os outros textos citados: autor, data (seguida de letras a, b, etc, caso existam textos do mesmo ano de um mesmo autor) e pgina (p. ex.: Frogneux, 2001a, p. 171). Uma vez que as datas so um elemento hermenutico importante para qualquer interpretao filosfica, considerou-se por bem utilizar o seguinte recurso: ao lado do ano da edio do livro ou ensaio utilizado foi acrescido entre [] o ano original da publicao para que o leitor tenha uma compreenso mais exata de certos desenvolvimentos histricos dos problemas abordados. Assim, a citao fica grafada nesses casos como se segue: (Hsle, 2004[1997], p. 201) a primeira data indicando o ano da edio da verso utilizada, e a segunda explicitando o ano original do trabalho do referido autor, seguida, claro, da pgina. Ademais, no caso especial de Jonas, optou-se por tambm fazer referncia a todas as verses de seus textos onde uma citao pode ser encontrada, e isto por dois motivos: o primeiro, terico, e visa apontar a permanncia da ideia citada durante diferentes perodos da obra jonasiana, o que lana luz sobre a continuidade de seu pensamento; num sentido mais prtico, tal atitude visou proporcionar ao leitor o acesso citao por mais de um texto. No caso de textos que foram escritos por Jonas tanto em ingls como em alemo, fez-se o uso de ambas as verses, tanto americana quanto alem, e isto por um fato duplo: 1) cada uma das verses lana luz sobre a outra em termos conceituais; 2) cada uma possui uma singularidade que exige ser contemplada individualmente, seja em funo de acrscimos ou de decrscimos textuais. Os documentos do Nachlass de Hans Jonas conservados atualmente no Philosophisches Archiv da Universitt Konstanz foram citados do seguinte modo: HJ 10-19-2 at 63, seguido do nmero da conferncia especfica e da pgina quando necessrio. Finalmente, no que se refere s referncias feitas aos trabalhos de Plato e Aristteles, seguiu-se a padronizao tradicional de Bekker. As verses utilizadas dos textos foram relacionadas na bibliografia.
No que toca s tradues, todas as tradues so de minha responsabilidade. As tradues inglesas, espanholas, italianas e francesas, dos livros de Jonas foram utilizadas em algumas situaes como referncia meramente comparativa e com a funo de anlise e crtica conceitual.
3 A discriminao dos documentos utilizados concernentes ao Philosophisches Archiv da Universitt Konstanz encontra-se na Bibliografia da presente tese, seo IV Inditos de (ou sobre) Hans Jonas Utilizados.
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Sumrio
INTRODUO ..................................................................................................................... 12
CAPTULO 1. A Originalidade da Biologia Filosfica ....................................................... 42
1 O lugar ambguo de Jonas na Filosofia Alem: ou Jonas um filsofo alemo? ................ 43
2 Jonas: um discpulo rebelde de Husserl e Heidegger .......................................................... 50
2.1. Husserl e a retomada original da filosofia ..................................................................... 52
2.2. Heidegger e a tragdia da filosofia ............................................................................ 60
2.3. A questo da diferena antropolgica para a fundamentao da metafsica ................... 72
3 Um Elemento Complementar para a compreenso da Filosofia Jonasiana: sua aproximao
ambgua com a Antropologia Filosfica .................................................................................... 80
3.1. A aproximao da biologia filosfica de Jonas com a Antropologia Filosfica: reflexo
ainda da questo da diferena antropolgica ....................................................................... 81
3.2. Carter original da biologia filosfica de Jonas: aspectos histrico, terico e pessoal .... 91
CAPTULO 2. Da Biologia Filosfica e seu Antropocentrismo Metodolgico .............. 102
4 Origens e desenvolvimento da Biologia Filosfica........................................................... 103
5 O que uma Biologia Filosfica? .................................................................................... 105
5.1. Filosofia da biologia ou biologia filosfica? ................................................................ 106
5.2. Biofilosofia e Filosofia Biolgica: termos imprecisos para uma Biologia Filosfica ..... 109
5.3. A relao entre filosofia e cincia e a definio nominal e negativa de uma Biologia
Filosfica ......................................................................................................................... 112
5.4. Da definio substancial e positiva da biologia filosfica enquanto ontologia ............. 126
5.5. Objetivo e tarefas de uma biologia filosfica .............................................................. 132
6 A negligncia e a sabedoria do corpo para o conhecimento da vida ................................. 134
6.1 Histria da corporeidade: da analtica do corpo at um monismo integral. ................. 134
6.1.1. O que um cadver? O problema do panvitalismo ......................................... 134
6.1.2. Nas origens do dualismo: o corpo interpretado como tmulo e crcere ........... 136
6.1.3. O dualismo cartesiano e seus sucessores .......................................................... 137
6.1.4. Idealismo, evolucionismo e os caminhos da analtica do corpo ........................ 138
6.2. Uma analtica do corpo: ou sobre como possvel conhecer a vida ............................ 147
6.2.1. O a priori corporal ....................................................................................... 148
6.2.2. A questo do antropomorfismo ...................................................................... 150
10
CAPTULO 3. A metafsica da vida: organismo e liberdade ........................................... 161
7 A Liberdade Dialtica Inerente Vida ............................................................................. 161
7.1 Tese: A Liberdade da Forma Orgnica ..................................................................... 161
7.1.1. Da identidade do corpo meramente fsico ao quebra-cabea da identidade
orgnica .................................................................................................................... 161
7.1.2. A existncia orgnica vista desde dentro: a liberdade da forma orgnica como
interioridade ............................................................................................................. 172
7.2. A liberdade necessitada: a carncia como anttese da vida e o ter-que-ser ................... 175
7.3. O Momento da Sntese: A auto-transcendncia da vida .............................................. 181
7.3.1. O Espao Biolgico ..................................................................................... 182
7.3.2. O Tempo Biolgico ..................................................................................... 189
7.3.3. A transcendncia espao-temporal como mediatez .......................................... 190
8. O Problema do Primado do Metabolismo para a Ontologia da Vida ................................. 192
9. A Questo da Teleologia: Evoluo Ortogentica? ............................................................ 201
10. A Diferena entre Planta e Animal .................................................................................. 218
CAPTULO 4. A Diferena Antropolgica: A transanimalidade como transcendncia
radical da vida ...................................................................................................................... 225
Seo I Os problemas de uma definio do Humano ....................................................................... 226
11 O homo absconditus ou o que no o homem .................................................................. 226
11.1. Anfibologia do conceito homem: a questo da transanimalidade ........................ 226
11.2. Entre Animal e Anjo ............................................................................................. 233
12 Homem sem imagem? A Histria, o homo mutabilis e o Problema da Essncia Humana . 237
12.1. O Trans-Histrico na Histria ............................................................................... 240
12.2. A Dimenso Histrica da Essncia Humana e as Possibilidades do homem .......... 245
12.3. Uma Essncia Anti-Utpica .................................................................................. 246
Seo II As mediaes do transanimal: ou das razes do Humano ................................................. 251
13 Razo terica ou razes tericas? O modelo visual, o sentido dos sentidos e a linguagem
............................................................................................................................................... 254
13.1 o Homem o homo pictor? ................................................................................... 255
13.1.1. O que uma Imagem? ................................................................................... 255
13.1.2. As Faculdades e atitudes do homo pictor ........................................................... 260
13.1.3. A nobreza da viso e o sentido dos sentidos para o ultrapassamento das aflies
das aparncias ......................................................................................................... 263
13.1.4. A imaginao produtiva e o lugar do simblico: ou a liberdade eidtica da
imaginao e da imagem ........................................................................................... 272
11
13.2. Homo faber e a Dimenso Tecnolgica do Homem ................................................. 278
13.2.1. A artificialidade da ferramenta tambm tem a imaginao ativa como condio
de possibilidade ........................................................................................................ 278
13.2.2. Tcnica e auto-conservao: a utilidade da tcnica ......................................... 284
13.2.3. A Mundanidade do mundo humano .............................................................. 285
13.3. Homo Sapiens e a Dimenso Metafsica do Humano ............................................... 289
13.3.1. Da objetivao auto-objetivao: o conceito de reflexo ............................. 289
13.4. A Antropologia filosfica e a filosofia da linguagem em Jonas ............................... 295
13.5. Animal symbolicum e animal rationale ......................................................................... 309
14 A diferena tica: a razo prtica e o modelo acstico do homo respondens........................ 317
14.1. Relao entre modelo visual e acstico: razo terica e prtica ............................... 320
14.2. O Abismo da vontade e o lugar da possibilidade da responsabilidade .................... 323
14.3. A responsabilidade pela responsabilidade: a humanidade como objeto da
responsabilidade ............................................................................................................ 329
CONCLUSO ..................................................................................................................... 333
BIBLIOGRAFIA.................................................................................................................. 344
APNDICES ....................................................................................................................... 389
I Sobre o Estatuto Editorial da Kritische Gesamtausgabe da Obra de Jonas ........................ 389
II Cronologia de Jonas ......................................................................................................... 392
III O Encontro entre Heidegger e Jonas: uma cronologia .................................................... 408
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INTRODUO
Nossa tese versar sobre a Biologia Filosfica de Hans Jonas e focalizar a questo
antropolgica. Ao longo da Introduo apresentaremos a obra do filsofo visada desta
perspectiva, bem como procuraremos circunscrever o contexto onde ela se inscreve,
contexto antes de tudo alemo, atentos, porm, sua recepo, a qual o extrapolou
largamente e qual a tese est atada. Na sequncia, o leitor encontrar uma breve
exposio da obra de Jonas, junto com o recorte pretendido e a sua justificativa, abarcando
um conjunto de consideraes exegticas e metodolgicas, bem como os captulos e as suas
principais diretrizes. No fim, encontrar as consideraes sobre a tese ou a hiptese que foi
testada no curso da pesquisa, bem como sobre a sua relevncia e originalidade. Comecemos pelo filsofo e a obra, com a inteno de demarc-la, considerando
aquelas que poderamos creditar ao jovem Jonas, como sua tese de doutorado, trabalho de
exegeta e de historiador de um tema teolgico antes de ser filosfico: a gnose, e aquele
conjunto que se pode atribuir ao filsofo, e como tal com horizontes mais amplos e voos
mais altos do que os do hermeneuta e o erudito.
Reconhecido isso, diremos de sada que Jonas foi no s testemunha ocular de
um sculo inteiro rico de contradies e de revolues as mais diversas e aluno de
expoentes filosficos como Husserl, Heidegger, Jaspers (e tambm do grande telogo
protestante Rudolf Bultmann), mas tambm um dos poucos filsofos a manter viva a
verdadeira tradio da filosofia alem embora a supere em muitas direes. Ainda no
plenamente conhecido no cenrio intelectual brasileiro como deveria, seu talento filosfico
fora j percebido durante o seu perodo de formao por um dos importantes mestres de
seu tempo: Karl Jaspers. J como doutor, Jonas frequentou seus cursos em Heidelberg, e o
antigo mestre, que continuar a ter grande importncia no decorrer de sua vida intelectual,
no deixa de observar ao amigo Heidegger, em carta de 4 de junho: o Dr. Jonas est em
meu seminrio. Um homem excelente! Espero ainda ouvir algo dele. Fala s do que tem
sentido. Um autntico aluno seu! (Heidegger/Jaspers, 2006, p. 81). E ainda em carta de 6
de junho: o Dr. Jonas est em meu seminrio. Parece um homem excelente. Um autntico
aluno seu, que ainda me valer alguma alegria (Heidegger/Jaspers, 2006, p. 81). Esse era o
ano de 1928. Jonas morre em 1993, e o fim de uma vida no foi seno a confirmao das
grandes expectativas do antigo mestre.
Sobre o comentrio de Jaspers a respeito do Dr. Jonas, Heidegger nada diz na carta
em que responde ao amigo de Heidelberg. Esse silncio por parte daquele que mais tarde
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Jonas considerar seu decisive teacher (cf. Jonas/Culianu, 1985, p. 141) no significava,
entretanto, o silncio sobre a qualidade do ex-aluno. Pois foi Heidegger quem abriu as
portas para o primeiro livro publicado por Jonas, ao t-lo indicado para a revista dirigida
por Bultmann. Ao contrrio do que afirmam alguns comentadores, esse livro era Augustin
und das paulinische Freiheitsproblem [Agostinho e o problema paulino da liberdade] (1930), que
trazia o contedo de um seminrio apresentado, em 1927, pelo ento aluno de Heidegger
em um curso sobre o problema da vontade em Agostinho. Nesse livro, o ainda estudante
leva a cabo aquilo que Bhler (1994) com muita felicidade chamou de uma hermenutica
da desmitologizao, mtodo que visa interpretar mitos e dogmas religiosos a partir de
experincias existenciais que se encontram no fundo daqueles, e cujo reconhecimento abre
espao ao que Jonas chamava de conscincia desmitologizada (Augustin 82). O jovem
Jonas deixa claro, por exemplo, que os dogmas do pecado original e da predestinao so
objetivaes de uma experincia existencial concreta (Augustin 88). O pecado original,
em especial, visto a como apontando para o dilema existencial interno da insuficincia
humana em relao a Deus, expresso na famosa frase de So Paulo: o bem que quero no
fao, mas o mal que no quero, este, sim, fao (Rom. 7: 19). Com sua interpretao, Jonas
conseguia no apenas a crtica racional de um mito, mas tambm salvaguardava seu
contedo profundo e problemtico, que no caso especfico era o dilema da vontade
humana.
No se pode dizer que essa perspectiva no era j uma influncia de Bultmann
sobre Jonas. Sua dvida com aquele vinha do fato de que na escola histrico-crtica
protestante, a famosa religionsgeschichtliche Schule, que aprendera com Bultmann, Jonas passou
a ver a seriedade do contedo da Bblia (especialmente do Novo Testamento) para o aqui e
agora, e tambm o fato de que a palavra de Deus precisa ser proferida por bocas humanas.
Essa era, entretanto, uma influncia j heideggeriana que chegava a Jonas atravs do
telogo protestante. Pois Heidegger quem oferecera a Bultmann, agora dissidente da
teologia dialtica de Karl Barth, a conceitualidade, ou, se se preferir, o logos adequado,
para a interpretao da no mais autoevidente mensagem Crist. E, de fato, Jonas no deixa
de esclarecer que aprendera tudo o que sabia sobre o Novo Testamento com Bultmann (cf.
Jonas, 1982[1976], p. 2), embora revele tambm, em entrevista concedida a Petru Culianu,
ao responder a uma questo sobre sua relao com Bultmann, isto , sobre quem
aprendeu de quem?, que mais tarde seu ex-professor que adotou a inspirao do jovem
Jonas de ler o gnosticismo visto atravs do espectro da ontologia existencial de
Heidegger (Jonas/Culianu, 1985, p. 144). Mesmo o conceito de desmitologizao
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(Entmythologisierung), que o telogo protestante tornou famoso na dcada de 40 no era
seno um conceito utilizado h dez anos atrs, como vimos, pelo jovem erudito nesse
campo da histria das religies e da gnose embora transformado na mo do telogo4.
Tudo isso explica o fato de a primeira obra de Jonas ter sido apenas o primeiro
captulo pblico de uma histria que comeou em um seminrio de Bultmann sobre o
Evangelho segundo So Joo, no qual Jonas apresenta de sada, exatamente no dia 9 de
julho de 1925 (cf. HJ-2-17-43), um seminrio sobre o tema gnosis Theou. A interpretao
jonasiana do gnosticismo, a qual, depois de ter-se iniciado pelo incentivo de Bultmann e
sua interveno junto a Heidegger para que este orientasse Jonas, se materializou
inicialmente com a publicao de Der Begriff der Gnosis [O conceito de Gnose] (1930), tese
de doutorado que Jonas defendera em 29 de fevereiro de 1928 sob os auspcios do j autor
de Sein und Zeit. Esse trabalho sobre a gnose se estendeu e acabou por constituir a grande e
volumosa obra Gnosis und sptantiker Geist [Gnose e Esprito Tardo-Antigo] (1934, 1954)5 e
uma srie de outras publicaes isoladas relacionadas ao tema. A grande novidade e feito da
leitura de Jonas sobre o assunto estava ligada brilhante interpretao unitria que ele, a
partir do molde analtico heideggeriano, conseguiu estabelecer para o antigo e confuso
fenmeno gnstico. Em vez de um estudo de reconstruo historiogrfica, como era o
caso dos trabalhos at ento realizados sobre o tema, Jonas ofereceu, como ele mesmo
observa no Prefcio para a segunda edio (1988) do primeiro volume de seu grande
livro, uma interpretao filosfica de um fenmeno histrico (GSG II, p. viii): no lugar
de uma mera apresentao dos diferentes aspectos e tradies que sucumbia enfatizao
do sincretismo do fenmeno gnstico, o jovem Jonas estabeleceu, a partir da sua percepo
da consistncia de um mito unitrio, um princpio organizador que possibilitou ver no mito
e smbolos gnsticos presentes nos documentos e doutrinas legadas da tardo-antiguidade a
objetivao de uma experincia existencial concreta e unitria, mas fortemente marcada
pela verso gnstica mandeiana, segundo a qual se destaca um deus absconditus (aspecto
teolgico) e um mundo visto como potncia profundamente hostil (aspecto cosmolgico),
no qual o homem (aspecto antropolgico) vive como um estrangeiro na busca de um
conhecimento salvfico (do grego, gnosis). Essa interpretao que Jonas fez do gnosticismo a
4 A diferena do significado da desmitologizao fica clara no ensaio Heidegger and theology (964), de Jonas, e tambm em Jonas/Culianu, 1985, p. 144-145. 5 Essa obra foi publicada em dois volumes. O primeiro tem como subttulo Die mythologische Gnosis e foi publicado em 1934, depois, portanto, de Jonas ter emigrado para a Palestina. E o segundo volume, Von der Mythologie zur mythischen Philosophie, apareceu apenas em 1954. Esse segundo volume trazia apenas uma primeira parte (que incorporava a antiga tese de doutorado de Jonas), mas foi acrescida de uma segunda parte na edio feita por Kurt Rudolph, publicada apenas postumamente, especificamente no ano da morte de Jonas, em 1993.
15
partir da anlise heideggeriana do Dasein foi tambm o que possibilitou que ele invertesse a
lgica, e fizesse uma interpretao do existencialismo moderno desde uma chave de leitura
extrada do fenmeno gnstico. Essa inverso se encontra no ensaio Gnosticism and
Modern Nihilism (1952)6. E, de fato, a leitura de Jonas sobre o gnosticismo era to
abrangente que mesmo pensadores como Orgenes e Plotino no escaparam ao princpio
unitrio jonasiano embora o prprio Jonas saliente que, no caso de Plotino, sua
interpretao no estava completamente realizada. Como o prprio Jonas lembrou a Petru
Culianu, entretanto, sua interpretao filosfica tinha feito afirmaes muito ousadas e ele
confessa, para desgosto de seu entrevistador, que com a chegada dos materiais de Nag
Hammadi seu livro iria se tornar obsoleto (Jonas/Culianu, 1985, p. 138)7. De qualquer
modo, essa ltima declarao no apaga o fato de a interpretao jonasiana ter ganhado
no s entre um crculo de especialistas considervel notoriedade com esses trabalhos
eruditos sobre a histria das religies e em especial sobre o gnosticismo, trabalhos dos
quais Jaspers certamente pde ouvir a fama que esperava, tornando-se ele mesmo junto
com Bultmann um dos grandes mbiles para que Jonas continuasse a publicao de
outros ainda nessa rea, mesmo em perodos posteriores (cf. PE Preface xiv).
Jaspers morreu em 26 de fevereiro de 1969, e se os trabalhos de Jonas sobre o
gnosticismo lhe tinham dado bastante da alegria que esperava do aluno, o tempo,
entretanto, impediu que ele visse totalmente realizada sua expectativa. Esta se cumpriria
dez anos mais tarde com o sucesso e fama estrondosas que Das Prinzip Verantwortung (1979)
fez em terra alem, a antiga ptria do filsofo, a qual, no sem a amargura do destino
fatdico que o regime Nazi deu a seus pais e a seu povo, ele deixara para trs, mas que
ironicamente recompensou-lhe com o louvor merecido. Com esse livro, que vendeu mais
de 130.000 exemplares s no pas dos teutos, o ento maduro filsofo de 76 anos at
certo ponto, repetindo o exemplo de Kant , entrou para o hall dos filsofos ilustres da
Alemanha. Embora no tenha, como ele mesmo no deixou de lembrar em sua entrevista a
Petru Culianu, constitudo uma escola (cf. Jonas/Culianu, 1985, p. 148), como foi o caso
com Husserl e Heidegger, o renome e sucesso de Jonas e sua importncia para a disciplina
tica na Alemanha renderam-lhe, por exemplo, o direito de estar entre os filsofos alemes
que tero a honra de uma edio de suas obras completas publicada. Nessa fase de
maturidade intelectual, que se inicia j no final dos anos 60, e na qual se desenvolve uma
6 Reeditado com novo ttulo em ZNE, PL e OF. 7 Jonas chegou a publicar, inclusive, um ensaio sobre esses escritos descobertos no mar morto (cf. Jonas 1962b; GR XII). A razo que ele oferece para sua opinio de que sua interpretao estaria obsoleta era que os escritos referidos colocavam em xeque a estrutura muito geral e unitria que Jonas estabeleceu para o fenmeno gnstico.
16
nova tica do futuro (Zukunftsethik), Jonas desempenhou um papel fundamental para a
reflexo tica na Alemanha, contribuindo e mesmo estabelecendo a base para o
desenvolvimento de toda uma poltica ambiental que colocou o conceito de
responsabilidade no centro do pensamento tico-poltico de um modo tal que nem mesmo
Max Weber poderia esperar t-lo conseguido. Sua conhecida tica da responsabilidade ,
como gostamos de chamar, uma tica fundamental, vez que busca fundamentar
metafisicamente a premissa de toda a tica: a existncia futura de possveis agentes morais.
Trata-se, ademais, de uma teoria tica que carrega uma inspirao deontolgico-kantiana
sem perder de vista, entretanto, os elementos de uma tica consequencialista e de uma tica
da virtude, reinterpretada agora em termos coletivos, j que a obra da responsabilidade pelo
futuro no pode ser levada a cabo seno no terreno em ltima instncia poltico, nem
muito menos individual. Essa obra de maturidade rendeu a Jonas, na Alemanha, no sem
motivo, o epteto de filsofo da responsabilidade e o tornou conhecido tambm como o
filsofo da conscincia ecolgica.
Se sua tica da responsabilidade, entretanto, no teve o mesmo impacto nos EUA,
no deixa de ser, de certa forma, emblemtico o fato de que em seu importante livro The
Birth of Bioethics (1998), um dos principais testemunhos da emergncia da disciplina biotica,
Albert Jonsen observe, em meio a uma lista relativamente grande de outros intelectuais,
como Samuel Gorovitz, K. Danner Clouser, Daniel Callahan, Stephen Toulmin, que Hans
Jonas foi o primeiro filsofo de eminncia a chegar ao cenrio da tica mdica (Jonsen,
1998, p. 77). Convidado a participar em um estudo sobre a tica da experimentao que a
Academia Americana de Artes e Cincias tinha iniciado, ele apresenta, entre os dias 26-28
de setembro de 1968, o famoso ensaio Philosophical Reflections on Experimenting with
Human Subjects, que viria a ser publicado no ano seguinte e que representa um
importante marco da reflexo biotica desde seus primrdios. Jonas ainda publicou vrias
contribuies para esse campo, as quais mais tarde foram reunidas no seu livro intitulado
Technik, Medizin und Ethik: zur Praxis des Prinzips Verantwortung [Tcnica, Medicina e tica:
para a prxis do princpio responsabilidade] (1985), no qual o filsofo aborda temas
extremamente importantes para a reflexo de questes ticas levantadas por biotecnologias
como, por exemplo, a clonagem e o DNA recombinante. Alm do extremo valor
intelectual que representa para a contempornea filosofia continental, os trabalhos de Jonas
nessa rea tm sido debatido j por importantes obras da tradio analtica, como From
Chance to Choice (2001), de Allen Buchanan et al, e Enhancing Evolution (2007), de John Harris.
17
No todo, as contribuies de Jonas para a disciplina tica no podem ser
consideradas seno como inestimveis, e no apenas j possuem profundo impacto no
metabolismo poltico do globo, como o atestam o discurso das autoridades dos diversos
pases que estiveram representados na Rio+208, mas oferecem tambm um ponto de
partida profundamente promissor para a reflexo relacionada tica ambiental, tica da
economia e biotica trs das grandes subreas da reflexo tica em nossa poca.
No obstante tudo isso, h entre o jovem Jonas, historiador da religio gnstica, e o
Jonas maduro, da tica da responsabilidade, um Jonas esquecido estranha e injustamente
esquecido. Um Jonas que largou sua infncia filosfica e se tornou um homem de
filosofia, um verdadeiro filsofo. Trata-se do homem que em tempos de guerra lanou-se
em sua maioridade intelectual e construiu uma verdadeira filosofia do orgnico, uma
biologia filosfica, que no seno o outro nome que ele deu para a filosofia, a qual deve
partir da centralidade do orgnico (humano) e estender-se tanto escala vital abaixo como
at os ltimos picos da especulao filosfica em que se pode encontrar conjeturalmente a
ideia de um fundamento divino do Ser. Essa maioridade filosfica ganhou a luz do dia,
depois de longo perodo embrionrio, com a obra The Phenomenon of Life (1966) e sua verso
alem levemente remodelada, Organismus und Freiheit (1973), ambas levando no subttulo a
inteno de ensaio de uma biologia filosfica.
A presente tese pretende, para alm dos importantes legados da primeira e terceira
fases do pensamento de Jonas, resgatar essas obras esquecidas dessa fase da maioridade
jonasiana. Para tanto, devemos de sada justificar quais so as razes desse estranho e
injusto esquecimento e por que ele precisa ser superado. S ento estaremos livres para
introduzir o trabalho hermenutico que desenvolveremos nesta tese.
No que toca ao primeiro ponto, no difcil compreender a ingrata fortuna desse
perodo da obra do filsofo. Trs razes acenam basicamente para explic-la, duas mais
superficiais e uma mais profunda. O primeiro fator, e talvez no to decisivo, da
desateno a esse perodo intermdio deve ser buscado em sua conturbada trajetria
biogrfica. Depois de ter concludo sua formao filosfica como estudante em solo
alemo, o jovem Jonas se viu obrigado, com a ascenso de Hitler ao poder, de buscar uma
nova ptria, e isso o levou a integrar uma fora armada, junto ao exrcito britnico
(enquanto membro da Jewish Brigade Group entre 1944-45), contra o Nazismo. em meio
segunda guerra que ele escreve, em cartas endereadas a sua esposa, as primeiras e no
8 bem verdade que a Rio +20 endossou, entretanto, no o PR, mas o Princpio da Precauo. De qualquer forma, no se pode esquecer que o PP parte de PR, e nesse sentido o princpio responsabilidade se encontra em parte acolhido. Ao contrrio do que facilmente se pode pensar, o PR no a afirmao de uma tica prudencial (em sentido estritamente aristotlico) antes que uma tica da precauo.
18
pouco substanciais linhas de sua nova jornada intelectual, a qual viria chamar de biologia
filosfica. A realizao dessa jornada se estendeu por vrias emigraes primeiro para o
Canad, depois para os EUA e encontrou uma publicao apenas muito tarde, em 1966 e,
depois, em 1973, quando Jonas j trabalhava a todo vapor em sua tica. A esse fato se soma
o aparecimento subsequente do j referido Das Prinzip Verantwortung, cujo sucesso
simplesmente contribuiu ainda mais para eclipsar a ateno aos trabalhos anteriores e isto
apesar da estreita relao no que se refere fundamentao ontolgica que integrava aquela
obra. Se essas razes j tinham de per si um peso, haver uma terceira, e com maior peso
ainda: a pouca ateno biologia filosfica se deve, assim o pensamos, na radical
inatualidade desse projeto filosfico. Uma inatualidade dupla. Por um lado, a inatualidade
de seu tema fundamental, a ideia de uma ontologia geral concebida a partir de um pensar
biolgico-filosfico. E, por outro lado, se soma a tambm inatual defesa ps-kantiana de
uma fundamentao metafsica da tica e de uma empresa filosfica, que, por fim, no
deixa de se entregar a uma tarefa quase medieval, a teologia especulativa.
Essa fortuna ingrata precisa ser superada. E, de fato, ainda que com um longo
atraso, o destino da ontologia de Jonas parece comear a encontrar um solo mais frtil, em
decorrncia de pelo menos dois motivos. Antes de tudo, o interesse por sua tica tem
atrado os espritos filosficos a um retorno ao momento ontolgico da obra do autor de
Das Prinzip Verantwortung, j que ele anterior no apenas temporalmente como tambm
sistematicamente, exigindo dos comentadores um passo atrs. Ao faz-lo, um bom nmero
deles notou que, sem a ontologia, o ltimo perodo dedicado especialmente reflexo tica
no poderia sequer se desenhar completamente, primando o filsofo por seu propsito de
proporcionar uma fundamentao metafsica da tica. Alm disso, no se pode deixar de
salientar que o clima cultural hoje tambm mais favorvel s pesquisas voltadas para a
filosofia da natureza e antropologia filosfica. O avano da biologia molecular, que
patrocinou o desenvolvimento crescente das biotecnologias abriu no apenas questes
ticas, mas foi responsvel pela prpria reabertura da questo antropolgica, de modo que
a filosofia de The Phenomenon of Life e Organismus und Freiheit pode ser apreciada mesmo
que criticamente sob uma nova luz9. Mais: no se pode deixar de destacar a atualidade
dessa empresa ontolgica jonasiana, que encontrou, por exemplo, um grande admirador
9 interessante lembrar, inclusive, que em razo de seu trabalho de uma biologia filosfica que Jonas encontra sua porta de entrada ao novo campo da biotica ento emergente, tal como o revela Jonsen do seguinte modo: o professor Jonas no tinha ainda elaborado sua tica da responsabilidade em 1966. Ainda
assim, sua reputao enquanto um pensador e sua concentrao nas questes profundas levantadas pela biologia e tecnologia o tornaram um apropriado convidado para participar em um estudo sobre a tica da experimentao que a Academia Americana de Artes e Cincias tinha iniciado (Jonsen, 1998, p. 77).
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num dos grandes cientistas de nosso tempo, Francisco Varela, que em seu livro El fenmeno
de la vida (2001), assume, por exemplo, sobre o ttulo de seu livro:
um intertexto obra magistral de Jonas, The phenomenon of life, que aparecera publicado em 1966. Vim a descobrir Jonas h poucos anos, quando as ideias deste livro j estavam estabelecidas. Com paixo encontrei uma filosofia da biologia que, de forma at agora inigualada, dava uma amplitude a precisamente todo o fenmeno da vida. Por isso mesmo, esse pensador, embora pouco conhecido, deu-me a confiana em minhas prprias intuies. Trago-o aqui como figura tutelar que segue sendo fonte de inspirao. Onde Jonas foi um precursor, e onde este livro se situa em continuidade, abre-se hoje em dia um enorme espao de trabalho cientfico filosfico que toca j os fundamentos mesmos da cincia (Varela, 2010, p. 15)10.
Mas muito alm dessas justificaes indiretas, a biologia filosfica possui uma
importncia intrnseca. Essa importncia pode ser verificada com a seguinte confisso de
Jonas em suas Erinnerungen [Memrias], publicadas postumamente em 2003: se algum
quiser falar sobre minha filosofia, ento deve comear no pela gnose, mas por meu
empreendimento de uma biologia filosfica (Erinnerungen 117), pois com os trabalhos
sobre a gnose no estava em obra uma filosofia jonasiana independente (Erinnerungen
117). De qualquer forma, no podemos deixar de salientar que essa uma afirmao forte,
j que algo dessa primeira fase assimilada positivamente para a filosofia independente de
Jonas. Esse novo pensar biolgico-filosfico, entretanto, marca no apenas um pontap
inicial do jogo da independncia filosfica de Jonas, mas marca, para ele, tambm uma
reorientao do filosofar como tal. A confirmao disso pode, mais uma vez, ser
encontrada em suas Erinnerungen, em que o filsofo afirma o seguinte sobre as duas verses
americana e alem de seu ensaio para uma biologia filosfica:
embora do ponto de vista da escrita, o livro tenha sido trazido a termo de modo incompleto,
porque no fora projetado como um todo, considero-o minha obra filosfica mais importante, porque nele a proposio de uma nova ontologia est desenvolvida. Estava dominado pela mesma ambio que o Process and Reality de Whitehead e consagrado minha temtica essencial que vai ao corao das coisas e se pergunta pela natureza do ser. Minha tese sustentava que a essncia da realidade se exprime de maneira mais completa na existncia propriamente orgnica do organismo, no no tomo, nem na molcula, nem no cristal, nem mesmo nos planetas, sis e etc., mas no organismo vivo, que sem dvida corpo [Krper], mas que carrega consigo algo que mais do que o mero ser mudo da matria. A partir desse ponto se tornava possvel em geral desenvolver uma teoria do ser. Tinha claro que a partir da devia seguir investigando e rastrear as consequncias. E por isso o livro termina com um eplogo que delineia por que uma filosofia do orgnico precisa conduzir forosamente a uma tica (Erinnerungen 315-316).
Com o pensar biolgico-filosfico de Jonas, portanto, estamos mesmo diante de
uma nova visada da essncia da filosofia, uma nova ontologia centrada no orgnico (uma
filosofia orgnica, para falar com Whitehead). Enfim, para Jonas, assim como tambm para
10 Devo o destaque desse importante testemunho a meu colega Jelson Oliveira, quem me chamou a ateno, pela primeira vez, para esse texto de F. Varela, assim como para a considerao do livro de Eric Pommier, a ser referido posteriormente.
20
Whitehead, a metafsica era ainda um tema srio apesar de todo positivismo vigente e da
emergncia da filosofia analtica no mundo anglo-saxo em que ele penetrava, depois de
seu estabelecimento nos EUA. Essa ntida superioridade de importncia dada ao trabalho
ontolgico, vale lembrar, uma proposio que reflete muito claramente uma herana
heideggeriana: filosofia antes de tudo ontologia e se ocupa do ser. Essa herana reluz de
maneira clara em uma rememorao de Reinhart Maurer a respeito do que lhe escrevera o
prprio Heidegger sobre sua tentativa de partir com aquele em direo a uma filosofia
prtica: o Ser, diz o autor de Sein und Zeit, no se rebaixa a tais platitudes prticas
(Maurer, 2000, p. 421). Essa atitude de Heidegger era tambm a razo de sua crtica a Marx
e tcnica moderna11.
No sem motivo, ento, nos dedicamos aqui ao incio e ncleo fundamental da filosofia
de Jonas, a qual ele designou notadamente de biologia filosfica. Precisamos agora elucidar
a tese que defenderemos, e para isso buscaremos contextualiz-la tanto no interior da
recepo de sua obra e do contingente de interpretaes sobre esse momento maior de seu
pensamento, quanto luz do corpus jonasiano e no interior do desenvolvimento de sua vida
intelectual como um todo.
A primeira coisa a se constatar, ento, para uma interpretao abrangente da
maioridade do pensar biolgico-filosfico de Jonas, que se, de fato, as pesquisas sobre
essa fase do pensamento jonasiano ainda esto no incio e mesmo sua obra completa
(incluindo-se a parte no publicada) est longe de ter vindo luz, no deixa de ser tambm
verdade que um nmero considervel de trabalhos foi dedicado a ou pelo menos
abordou esse perodo. Tais empreendimentos, entretanto, padecem em maior ou menor
medida de inconsistncias quanto integrao entre escopo e amplitude. Em sua maioria
eles buscam apresentar a obra jonasiana como um todo, isto , em todo seu
desenvolvimento intelectual, comeando da gnose, passando pela biologia filosfica, at
chegar tica da responsabilidade, ou reservando ateno apenas s duas ltimas fases do
pensamento do filsofo, a saber: a biologia filosfica e a tica. A ontologia a tratada,
entretanto, seja como uma mera parte subsidiria para compreenso da fundamentao da
tica, seja como mera parte do todo da obra jonasiana a ser interpretada ento desde uma
chave hermenutica forada. Oferecemos abaixo um rpido sobrevoo sobre esses
11 No despropositado lembrar ainda que tambm Arendt mostrou um mesmo humor filosfico de cunho heideggeriano ao rejeitar ser alinhada ao crculo dos filsofos e atribuir a si mesma apenas o ttulo de cientista poltica esse era ainda um perodo anterior a seu livro The Life of the Mind (1978), publicado postumamente. No fundo, essa atitude no era seno impulsionada por uma concepo da filosofia como contemplao terica.
21
principais intentos de viso englobante, deixando de lado os vrios ensaios dedicados a
Jonas que no se enquadram nessa perspectiva.
O primeiro modelo interpretativo salientado o predominante em solo alemo
embora existam excees. Assim , por exemplo, com o trabalho Ontologie und Ethik bei
Hans Jonas (1996), de Bernd Wille, que, apesar de em seu ttulo sugerir um tema amplo, d
inegavelmente o privilgio tica, e isto a tal ponto que a parte dedicada ontologia
aparece como representando apenas as condies/premissas ontolgicas [ontologische
Voraussetzungen] da tica, ttulo da primeira parte do livro. Fogem levemente a essa regra os
livros de Franz J. Wetz, Hans Jonas zur Einfuhrung (1994) e de Wolfgang Erich Mller, Hans
Jonas: Philosoph der Verantwortung (2008), os quais, no entanto, no pretendem muito mais
que uma introduo a toda a obra de Jonas. No caso do segundo especialmente, o ttulo
marca o foco.
Fora do crculo germnico, projeto igualmente abrangente e nico desse tipo nos
EUA o livro Hans Jonas: the integrity of thinking (2002), de David Levy, que, apesar de
excelentes anlises do pensamento jonasiano, no traz propriamente uma tese
compreensiva do filsofo. Antes o livro de Levy , na verdade, uma apresentao e um
chamado aos intelectuais de lngua inglesa para o reconhecimento da obra filosfica de
Jonas, que segundo ele seria mais salutar que Heidegger e Wittgenstein para poca atual.
Tal grandeza se encontraria no que o autor chamou de Integridade do Pensar, isto ,
tanto no escopo e poder da reflexo de Jonas quanto na honestidade e clareza de sua
exposio. Com um impulso tambm introdutrio, e de pretenses ainda menores que a de
Levy, h o pequenino livro de Olivi Depr, Hans Jonas (2003), que apenas apresenta
algumas notcias biogrficas e teses principais dos livros de Jonas.
Coisa distinta acontece com alguns trabalhos publicados nos pases francofnicos e
na Itlia. Aqui, encontramos o segundo modelo interpretativo referido. No primeiro caso
francofnico, dois trabalhos abrangentes e de viso integral se destacam. Em Hans Jonas ou
la vie dans le monde (2001), Nathalie Frogneux elaborou, talvez, a leitura mais audaciosa da
obra jonasiana at o momento. Com o duplo pressuposto de uma unidade da obra e de um
percurso filosfico em movimento, a autora prope uma leitura cronolgica sem
fracionamento temtico. Para tanto, o combate ao dualismo desde uma chave de leitura
antropolgica feito fio condutor suscetvel de revelar o percurso filosfico polimorfo
da obra de Jonas. A partir dessa chave hermenutica, ela tenta mostrar, primeiro, como
para Jonas o dualismo gnstico no se define especialmente em oposio ao monismo, mas
antes pela ruptura entre homem e mundo. Num segundo passo, o ocidente dualista, com
22
seus monismos unilaterais herdeiros do dualismo cartesiano que encontra a crtica
jonasiana em sua tentativa de conceber uma ontologia da comum medida entre homem e
mundo, sem cair, entretanto, na armadilha de pensar a diferena antropolgica seja como
estrangeirismo (tranget) anti-natural, seja a partir de uma reduo naturalista. Como ltimo
passo, ela se encaminha ao ultrapassamento tico do dualismo, firmado com uma tica da
co-presena do homem e do mundo. Para alm dessa unidade, Frogneux sugere ainda um
movimento do pensar jonasiano no qual ela identifica a existncia no de um, nem de dois,
mas de quatro inflexes ou deslocamentos, sustentando que eles refletem uma posio
sempre mais metafsica, de modo que o filsofo teria mesmo, por fim, operado uma
virada idealista.
Por sua vez, Marie-Genevive Pinsart levou tambm a cabo uma interpretao
unificante em seu livro Jonas et la libert: dimensions thologiques, ontologiques, thiques et politiques
(2002). A autora se vale do conceito de liberdade como ncleo unificador dos diferentes
aspectos da obra de Jonas. Tal unidade explicitada atravs de orientaes que buscam
pensar a liberdade como princpio e conceito com significao existencial e circunstancial
seja para o aspecto teolgico, no qual a liberdade desempenha seu papel na deciso divina
de criar o mundo, seja para a parte ontolgica, em que ela pensada como manifestao
sempre mais diversificada e intensa da subjetividade e da finalidade, e por fim, para o
aspecto tico-poltico, que no trataria seno da limitao da liberdade pela
responsabilidade.
Na Itlia, um empreendimento unificante, como os dois ltimos, ficou
principalmente sob a responsabilidade de Francesco Borgia, o qual, entretanto, no se
estende at os trabalhos de Jonas sobre a gnose. Em seu instigante livro Luomo senza
immagine: la filosofia della natura di Hans Jonas (2006), ele no apenas sugere a existncia de
uma verdadeira filosofia da natureza em Jonas, mas tambm privilegia o conceito de
natureza como chave hermenutica de sua interpretao da obra filosfica de Jonas. Sua
leitura enfatiza, de incio, o conceito de natureza da cincia moderna em contraposio s
concepes anteriores (antiga, medieval) dessa noo. Em seguida, busca mostrar como tal
natureza mecanizada, que a moderna, torna-se objeto da crtica e mesmo o ponto de
partida da biologia filosfica ou mesmo filosofia da natureza (como o quer Borgia) em
Jonas. De acordo com ele, com este intuito, o filsofo se vale de uma reabilitao da
teleologia para pensar a natureza e termina por redirecionar a prpria tica, que agora, ao
saltar a viso de uma natureza mecnica e sem valor como aquela da cincia moderna, no
23
pode ser mais matria de simples avaliao subjetiva do homem, mas possui um
fundamento ontolgico.
A todos esses empreendimentos no se pode deixar de atribuir grandes mritos
analticos. Pensamos, entretanto, que falham, como dissemos acima, em seu escopo.
Quanto ao modelo que diminui a importncia original da biologia filosfica, ao torn-la
mera parte subsidiria para a compreenso da fundamentao da tica, j dissemos o
suficiente: ela no subsidiria, mas inicial e nuclear sistematicamente. O empreendimento
que se vale de uma chave hermenutica para pensar toda a obra jonasiana , entretanto,
pretensioso e forado demais para que possa ser sustentado sem atropelos e mal
entendidos. Anlises desse tipo tm seus mritos ao revelarem temas que reaparecem
constantemente, mostrando sua importncia para a obra jonasiana, mas do ponto de vista
do acerto interpretativo falham por forarem um ncleo errneo ao pensamento filosfico.
Para mostrarmos isso, vejamos algumas fragilidades claras que elas deixam transparecer.
No caso da tese de Frogneux o carter forado transparece com o estranho fato de que,
apesar do fio condutor utilizado, o combate ao dualismo, tudo se passa como se o percurso
filosfico de Jonas progredisse da crtica antropolgica inicial ao dualismo at uma sempre
maior queda no dualismo antropolgico da fase final. No caso de Pinsart, por sua vez, a
primeira fase da obra jonasiana estranhamente vinculada com a mais especulativa reflexo
metafsica de Jonas como resultado do impulso unificador da autora, e a responsabilidade
no pode ser pensada por si mesma, mas a mera contrapartida da liberdade. Esse ltimo
caso recorre em Borgia, que embora afirme que a natureza seja concebida pelo autor de
Das Prinzip Verantwortung como possuindo direitos e valores que devero vincular a ao
humana (Borgia, 2006, p. 14) e mesmo essa frase no totalmente correta no pode
deixar de ser pego em grave dificuldade, pois, como ele mesmo o sabe, o que o imperativo
categrico jonasiano tem em seu centro aquele j famoso que haja uma humanidade.
Para que se entenda a dificuldade dessa visada interpretativa abrangente, fcil indicar que
alm das trs teses principais salientadas, pode-se ainda, por exemplo, discorrer sobre
Hans Jonas contra o Niilismo, tomando o niilismo como tema central, de modo que em
sua primeira fase ele se volta contra o niilismo gnstico, passando em seguida a deflagrar o
niilismo da viso moderna (tanto cientfica como existencialista) de mundo (indiferente,
frio, sem valor e inspito), e, por fim, suas consequncias ticas nefastas, as quais ele tenta
responder com a fundamentao metafsica da tica de modo a no deixar que a queda dos
valores atinja at mesmo o ncleo do humano, que, caso contrrio, estaria a um passo de se
tornar ento manipulvel. Mas mesmo esse tema do niilismo, que aparece em todas as
24
fases, no pode ser seno foradamente tomado como ncleo interpretativo da obra
jonasiana: ele no mximo o niilismo pensado desde uma perspectiva jonasiana, e no a
prpria filosofia de Jonas. Do mesmo modo, o dualismo, a liberdade e a natureza no so o
ncleo, mas uma perspectiva a partir da qual se pode pensar certamente a obra de Jonas.
Que se possa encontrar uma unidade no resultado, eis o que no precisamos discutir. Coisa
diferente, e a nosso ver equivocada, a afirmao de que essa unidade foi projetada e
levada a cabo sempre mais adiante pelo prprio filsofo.
Por todas essas razes explicitadas, defendemos a impossibilidade de uma leitura da
integridade da obra de Jonas (e com isso inclumos a hermenutica do gnosticismo) luz de
uma nica chave hermenutica como as utilizadas. Mesmo no caso mais especfico de
Borgia, o qual possui um escopo muito mais acertado, uma vez que visa abordar a filosofia
de Jonas e no sua obra intelectual como um todo, a afirmao da existncia de uma
filosofia da natureza em Jonas no passa totalmente sem problemas se no se elucida de
maneira muito particular o que isso quer dizer. Borgia no est sozinho a esse respeito.
Tambm Vittorio Hsle (1994, 1998, e 2001) j tinha alinhado Jonas filosofia da natureza
( sugestiva a esse respeito a epgrafe de seu ensaio sobre a filosofia de Jonas: uma citao
de Fichte) e no deixou de faz-lo tambm em sua reflexo sobre o lugar de Jonas na
filosofia alem (cf. Hsle, 2003, 2008). Do mesmo modo Wille (1996) utiliza o termo
Naturphilosophie para identificar a ontologia jonasiana. Sob a responsabilidade de Marc
Ballanfat, foi realizada em Paris, no dia 10 de dezembro de 2004, uma jornada de estudo
que levava o sugestivo ttulo de Hans Jonas: une nouvelle philosophie de la nature pour le
XXIe sicle. E seguindo uma mesma linha de raciocnio, Nicola Russo no evita a
tentao de tomar como epgrafe de seu livro uma citao de Schelling, extrada
especialmente da filosofia da natureza. Esse ltimo autor, entretanto, sabe bem que em
Jonas trata-se de partir de uma filosofia da natureza declinada como ontologia da vida e
culminante na antropologia filosfica (Russo, 2004, p. 23 [grifo nosso]). E, de fato,
preciso dizer que a ideia de uma filosofia da natureza s se aplica a Jonas se pensada
como sinnimo de ontologia. No se pode dizer, entretanto, que no h em Jonas um
impulso para um tal programa filosfico, nem que ele no tenha tocado de maneira
negativa em importantes aspectos filosficos que concernem a tal programa. No obstante,
perde-se assim a nfase de um pensamento que se quer biolgico-filosfico.
Em face de tudo isso, tm muitos mritos os livros La Biologia Filosofica di Hans Jonas
(2004), de Nicola Russo, e La Rivoluzione Ontologica di Hans Jonas: uno studio sulla genesi e il
significato di Organismo e Libert (2009), de Roberto Franzini Tibaldeo, os dois nicos
25
trabalhos dedicados especialmente nova ontologia jonasiana. O primeiro ofereceu uma
anlise bastante compreensiva da metafsica jonasiana; o segundo colocou em destaque o
carter verdadeiramente revolucionrio dessa ontologia que, como vimos, inclusive
reclamado pelo filsofo12. Apesar de um escopo mais restringido, o que permitiu uma
anlise do projeto biolgico-filosfico de forma mais detalhada e meticulosa, enfatizando
de maneira clara a verdadeira razo da revoluo ontolgica jonasiana, o livro de Tibaldeo
(2009) peca por deixar passar quase intocado a nuclearidade da antropologia no projeto
filosfico de Jonas, algo bem mais enfatizado por Pommier (2013). Por sua parte, embora
se concentre na apresentao da obra verdadeiramente filosfica de Jonas, Russo (2004) se
estende at a metafsica (entendida aqui como theologia naturalis) e ameaa a atitude
precavida de Jonas de mant-la, como veremos, como projeto em separado. Ademais,
veremos como a declinao jonasiana da filosofia da natureza vai muito mais longe do que
ele pensa, uma vez que coloca a diferena antropolgica e no apenas biolgica como
ncleo peculiar, principal, paradigmtico e mesmo tensional da metafsica (agora no mais
no seu sentido teolgico) ou ontologia jonasiana: eis a um ponto to importante quanto
esquecido pelos comentadores e crticos de Jonas.
Tambm de inestimvel valor para o estudo da filosofia jonasiana o livro Ontologie
de la vie et thique de la responsabilit selon Hans Jonas (2013), de Eric Pommier, que explora a
intuio ontolgico-tica de Jonas, colocando a vida como chave de sua filosofia. Para o
autor tambm em funo da articulao entre antropologia e ontologia que Jonas
abandona o status de estudioso da Gnose e inicia sua prpria filosofia. Pommier mostra
que o interesse de Jonas corre na esteira do problema que Heidegger encontra em Kant,
mas que aquele responde o problema a partir de uma ruptura com Heidegger. Sem
abandonar a diferena antropolgica, sustenta o referido autor, Jonas a restaura e a repensa
no horizonte da vida, condio sem a qual seria impossvel superar o niilismo e refundar
um humanismo prtico. Com essa conscincia, a obra de Pommier a que mais se
aproxima de nossa prpria interpretao da filosofia de Jonas, tal como apresentaremos a
seguir, e tem o mrito de se estender apresentao da reflexo tica de Jonas, coisa que
aqui abandonamos por uma questo de limite da extenso do trabalho. Uma marca muito
peculiar do trabalho de Pommier se encontra tambm na forma que o autor escolheu para
a apresentao de seu trabalho. Os captulos so como que discusses de questes pontuais
da filosofia jonasiana com outros pensadores, seja com o intuito de pensar Jonas desde
12
Tambm Claudio Bonaldi defendeu uma tese de doutorado intitulada Hans Jonas: per uma fenomenologia del
vivente, defendida no ano acadmico 2000/2001, na Universidade de Milo. Infelizmente, no nos foi possvel ter acesso a essa tese, que ao que parece no foi publicada em livro.
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aproximaes bem como de distines. Destaque tambm deve ser dado ao fato de
Pommier tambm utilizar o termo diferena antropolgica, embora para ele a expresso
tenha uma conotao meramente ontolgica: indica a diferena existente entre o homem e
o resto da vida, e pensada numa direo muito prxima a de Frogneux como
sugerindo uma crescente autonomizao da diferena antropolgica em relao ao resto da
vida durante o desenvolvimento da obra de Jonas, de modo que se salienta que a prpria
responsabilidade no aparece como equipamento ontolgico da humanidade nas primeiras
obras (cf. Pommier, 2013, p. 19n2).
Tentando evitar as dificuldades apontadas e concentrando-nos nessa pista de um
lugar paradigmtico da diferena antropolgica no interior da biologia filosfica, enquanto
proposio da prpria filosofia de Jonas, poderemos assim o cremos trazer uma nova
luz sobre seu pensamento e despertar um novo modo de pensar sua filosofia. bem
verdade que Frogneux, por sua parte, percebeu que a partir de uma preocupao
antropolgica que Jonas assume sua tarefa filosfica (Frogneux, 2001, p. 4). Mas ela no
oferece explicao para essa centralidade seno meramente enunciando que o homem um
ser no mundo. E, ademais, estende a tarefa filosfica at os tempos do jovem Jonas,
historiador do gnosticismo e da religio extenso que, como vimos, rejeitada e criticada
pelo prprio filsofo. Que Jonas continue publicando textos sobre gnose mesmo depois de
ter se deslocado para outros campos de investigao, como lembra a autora, em nada altera
o fundamental, uma vez que j vimos que tal esforo era expresso de compromissos
firmados e sempre renovados pelo incentivo contnuo de seus antigos mestres Bultmann e
Jaspers. Desse modo, vale a pena mostrar como, em contraposio s teses anteriores,
estabelecemos o nosso prprio ncleo interpretativo. Se estamos certos, o erro
hermenutico das anlises anteriores sobre Jonas at agora que elas pecam, de maneira
mais geral, por justamente no conseguirem apreender o verdadeiro e novo elemento
filosfico do pensamento jonasiano em toda sua radicalidade. A razo para isso deve ser
buscada no fato de no terem dado a devida importncia e ateno biologia filosfica e ao
contexto de produo intelectual de Jonas. Assim, para buscar um maior acerto com a
chave hermenutica que adotamos, para alm da anlise negativa dos trabalhos anteriores,
precisamos partir de uma contextualizao do verdadeiro impulso filosfico de Jonas tal
vai ser o desafio da tese, e cuja primeira formulao procuraremos fornecer na sequncia da
Introduo.
A primeira coisa a se notar que Jonas um filsofo judeu-alemo. O significado
dessas palavras mais forte do que a mera caracterizao biogrfico-profissional de
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enciclopdia. Ele aponta antes para um aspecto existencial importante do pensar de Jonas
enquanto filsofo. Para assimilarmos primeiro o peso da tradio judaica sobre o filsofo,
precisamos, mesmo que apenas brevemente, voltar ao incio de sua vida em busca de
compreenso13. Jonas nativo de Mnchengladbach, que quela poca era uma vila
industrial e comercial da Alemanha. Esse destino fortuito se explica pela vida de seu pai,
que, primeiro filho de um total de dez irmos, desde o incio se viu obrigado a trabalhar
pesado para oferecer o sustento sua pobre famlia. A vida recompensou o esforo de
Gustav Jonas, que, homem de dever e fiel tradio judaica, conseguiu o retorno
financeiro necessrio para integrar a sociedade burguesa de Mnchengladbach, agora como
homem de negcios. Ele, que no tivera direito a uma educao decente em funo do
esforo altrusta que fizera pela famlia, no poupou esforos para que seu filho Hans
recebesse toda a formao que o pai no pode ter. Depois de alimentar o interesse pela
poesia e o desenho, o ainda jovem filho de Gustav Jonas se voltou aos livros sobre a
histria do judasmo e tambm sobre filosofia em boa parte por influncia do tio por
parte de me, Leo Horowitz. J muito cedo, em funo tanto do forte peso de um
ambiente familiar judaico e de uma destacada perspiccia intelectual, que chamava a
ateno das reunies familiares ao recitar de memria vrios poemas, Hans comeava
tambm a ter, aos 17 anos, opinio prpria. A contragosto de seu pai, que quela poca
ainda acreditava com grande esperana na assimilao dos judeus sociedade alem, o
jovem Jonas, ao contrrio, mostrava j grande suspeita a respeito de tal possibilidade e
passara a frequentar reunies do movimento sionista, o qual militava em favor de um
Estado judeu. O engajamento ultrapassou a esfera da mera militncia e alcanou tambm
tremendo dispndio intelectual: como sionista engajado, Jonas publicou, ainda jovem, seus
primeiros ensaios todos de forte teor judaico. No volume recm publicado da Kritische
Gesamtausgabe [Edio Crtica] das obras de Jonas, que traz o ttulo muito sugestivo de
Herausforderungen und Profile. Jdisch-deutscher Geist in der Zeit gegen die Zeit [Desafios e Perfis.
O Esprito Judeu-Alemo no Tempo Contra o Tempo] (2013), os editores resgataram, na
primeira parte, praticamente todos os textos de Jonas em que o esprito judaico aparece
representado. So exemplares para o nosso propsito atual os textos de juventude
intitulados Die Idee der Zerstreuung und Wiedersammlung bei den Propheten [A ideia
de disperso e reagregao nos profetas] (1922), Das jdische Schulwesen in Palstina [O
sistema educativo judaico na Palestina] (1923), e Die jdische Missionsidee [A ideia de
13 No que se segue faremos apenas um breve esboo da vida de Jonas sem, entretanto, termos uma inteno biogrfica. Para o leitor interessado em mais informaes dessa histria, remetemos ao Apndice I desta tese. Ali oferecemos uma cronologia extensa dos dados biogrficos do filsofo, na qual se pode encontrar tambm as referncias bibliogrficas orientadoras para uma pesquisa mais ampla da vida de Jonas.
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misso judaica] (1926), que no passou de fato do esboo de um escrito para seminrio
(Referatsskizze). Pelos meros ttulos desses ensaios, no difcil entender que os estudos de
filosofia no podiam ter sido levados a cabo sem um estudo de religio comparada. Que
entre os perodos de 1921, em que estuda em Freiburg (com Husserl e Heidegger), e 1924,
sob os auspcios do Heidegger de Marburg, Jonas suba at Berlin, no teve outra motivao
seno a necessidade de seguir adiante com tais estudos judaicos. Dessa poca de estudos na
Universidade de Berlin se conservou e foi recentemente publicado no volume III/2 da
Edio Crtica referida acima (com o ttulo An Eduard Spranger) o esboo de carta
quase completamente elaborada, escrito por Jonas, para seu antigo professor Eduard
Spranger, em 1922, em que o jovem Jonas confessa o real significado de seu engajamento
judaico nos tempos em que era ainda estudante: sinto algo do esprito e da vocao dos
profetas vetero-testamentrios em mim (KGA III/2, texto 11, p. 173). Essa uma forte
confisso e posterior ao contato com o Lehrerwirkung de Heidegger, o qual Jonas conheceu
j em 1921. Para no falar do papel de Jonas na guerra at a constituio do Estado de
Israel, do qual o testemunho mais eloquente o j referido discurso Unsere Teilnahme an
diesem Kriege: Ein Wort an jdische Mnner [Nossa parte nesta guerra: uma palavra aos
homens judeus], de 6 de outubro de 1939 (cf. KGA III/2, texto 4, p. 61-76), algo dessa
vocao proftica pode ser detectado ainda no perodo de maturidade, quando o Jonas
eticista no se abstm da profecia do pior como poder filosfico de reorientao da
realidade histrica (cf. TME III 53-55). Essa vocao transparece tambm na famosa
passagem do Pregador, lana seu po sobre as guas (Ec. 11:1), da qual Leo Kass (1997,
p. 4; 2001, p. 52) recorda ter ouvido de Jonas, que por sua prpria parte no deixou de
express-la, criticamente contra Arendt, no final de seu ensaio festivo sobre o que, para ele,
era a obra filosfica de sua velha amiga (cf. Jonas, 1977, p. 42-43). No mero destino
fortuito que, com a ascenso de Hitler, Jonas se lance em exlio at chegar Palestina,
lutando contra o nazismo na II Guerra Mundial e retornando a Jerusalm, de onde s saiu
em funo das dificuldades pessoais e financeiras que encontrou e no conseguiu vencer.
Tudo isso, entretanto, no significou e nem significa que se deva alinhar o
propsito de Jonas a uma filosofia judaica. preciso saber equacionar a herana judaica e a
argumentao filosfica no pensamento jonasiano. Sua filosofia laica e marcada por uma
espcie de atesmo metodolgico. o que se pode extrair da entrevista de Jonas concedida
a Herlinde Koebl:
o filsofo precisa levar a cabo seu prprio negcio, o pensar, de maneira totalmente livre de
vnculos e pr-conceitos herdados. Ele est comprometido apenas com o pensar. A filosofia precisa ser atestica no mtodo. Isto no significa afirmar dogmaticamente que Deus no existe. Mas
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significa no se permitir dizer nada desde a perspectiva de uma f [religiosa]. Que se possa ser ao mesmo tempo filsofo e judeu eis a uma certa tenso da qual no h que se duvidar (Jonas/Koelbl, s.d., p. 170; KGA III/2, texto 9, p. 156).
O atesmo metodolgico, entretanto, no impediu o filsofo de incorporar de
maneira transformadora elementos extremamente filosficos do judasmo. Apesar do
laicismo da filosofia jonasiana, no se pode esquecer que impossvel no perceber como o
genuinamente filosfico se combina com o esprito judaico e carrega em boa medida o
peso de tal tradio resignificada na medida do pensar filosfico. Nesse contexto mais
do que claro, alm do elemento proftico que destacamos acima, a resignificao filosfica
e mesmo metafsica das ideias de criao e de imago Dei isto para no falar de termos mais
marginais como os de temor e reverncia14. Essas so apenas algumas indicaes. Um
trabalho laborioso e de grande competncia a esse respeito foi feito por Christian Wiese em
seu livro The Life and Thought of Hans Jonas: jewish dimensions (2007), em que o autor defende a
tese de que no se pode ignorar a dimenso judaica sem perder uma parcela significativa
da prpria experincia biogrfica e das intenes filosficas de Jonas (Wiese, 2007, p.
xxiii)15.
Esse forte background judaico no pode fazer o estudioso perder de vista, entretanto,
que mesmo se h uma espcie de auto-compreenso judaico-filosfica, a filosofia que
molda o elemento judaico e no o contrrio. Isto fica particularmente claro com as
indicaes de Jonas a respeito de como o judasmo possui muito menos elementos
problemticos e mesmo vantagens frente ao cristianismo para permanecer coerente em
face das novas descobertas da cincia moderna (cf. Jonas, 1982[1976], p. 11-12). A esse
respeito, o que se deve entender que a auto-compreenso judaico-filosfica no se assenta
apenas na linha moral, isto , no meramente auto-compreenso tico-religiosa, que
agrega o compromisso social-tico e a misso moral do judasmo, mas integra e estabelece
de maneira livre e independente (no ortodoxa) principalmente a relao de uma f
particular com o modus operandi racional e universalista da filosofia16. Na frmula precisa de
Alan Rubenstein, sua religiosidade enfatizou os elementos universais poder-se-ia dizer
filosficos da herana judaica (Rubenstein, 2010, p. 16). Na resoluo de uma vida entre
14 F. Mann escreveu um belo ensaio em que mostra que boa parte da terminologia de Jonas toca o campo do sagrado (1992, p. 240). 15 Tambm Alan Rubenstein escreveu uma excelente resenha englobando tanto a traduo das Erinnerungen para o ingls, publicada com o ttulo de Memoirs, bem como o livro de Wiese. Rubenstein rejeita, entretanto, certos resultados ambguos do foco judaico de Wiese para a compreenso da filosofia jonasiana (cf. Rubenstein, 2010, esp. p. 18-21). 16 Pode-se enfatizar, por exemplo, as grandes relaes do desenvolvimento do universalismo na religio judaica e na cultura grega. Para o caso de tal evoluo no interior da cultura judaica, cf. Guararibe, 2001, esp. p. 207-242. Para o caso grego, os textos de Plato, especialmente aquele da Repblica, so eloquentes o bastante.
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os profetas e os filsofos, portanto, Jonas, muito alm da vocao proftica que vamos
despontar no perodo de juventude, no deixa de enfatizar, por fim, a reflexo filosfica
como vocao escolhida (Jonas/Koelbl, s. d., p. 171; KGA III/2, texto 9, p. 156). Um
belo exemplo do ultrapassamento do elemento judaico na vida intelectual de Jonas
oferecido em sua ltima conferncia, intitulada The Outcry of Mute Things (1993), em
que ele mostra tambm que h uma solidariedade alm daquela de uma nao, de um povo
e de uma raa: a solidariedade com o todo do Ser e a mudez de seu clamor, que s o
humano pode escutar. Mais importante de se salientar que o atesmo do mtodo,
entretanto, observa ele, no resultou no atesmo como ponto de vista e nem em um
agnosticismo completamente neutro, mas antes numa metafsica com uma conjectura
testica (Jonas/Koelbl, s. d., p. 171; KGA III/2, texto 9, p. 156). E se aqui a suspeita da
herana judaica no pode ser completamente abandonada, tambm o no religioso, pensa
Jonas, no pode se considerar isento de pr-conceitos que orientam sua resposta questo.
Essa ltima confisso importante como suscitadora de um intricado elemento do
pensamento jonasiano e nos serve de passagem das consideraes contextuais histrico-
biogrficas at a elucidao do impulso propriamente filosfico de Jonas e a extenso dessa
empresa filosfica que em ltima instncia no teme e mesmo exige corajosamente o
avano at as profundezas da metafsica. Precisamos esclarecer o sentido dessa orientao.
A palavra metafsica nem sempre foi bem recebida em tempos contemporneos, nos
tempos em que Jonas participava ativamente da cena filosfica17. Mas o impulso metafsico
do audacioso pensar jonasiano, enquanto testemunho pessoal de um filsofo que desafia o
Zeitgeist e sua moda em um tempo to pouco filosfico, no pode ser confundido, como
vimos, com o impulso de uma filosofia judaica, nem muito menos pode, de maneira justa,
ser considerado vtima de arcasmo, como parece sugerir Franz J. Wetz, ao pensar que Jonas
deva ser lido como uma espcie de tradicionalista filosfico, que em contraposio ao
prevalecente Zeitgeist se apega tenazmente s antigas perguntas pelo homem, o mundo e
Deus (Wetz, 1994, p. 9).
Se pudssemos resumir em uma frase o intento filosfico de Jonas, seramos
obrigados a dizer que ele busca renovar a metafsica sem dispensar as conquistas da
modernidade filosfica e cientfica. Como prova disso, trs elementos profundamente
modernos e complementares podem e devem ser observados. O primeiro deles o
17 bem verdade que a situao se transformou enormemente de uns tempos para c. Mesmo do lado da filosofia analtica temos visto um avano formidvel da reflexo metafsica. Os trabalhos de David Lewis e Roderick Chisholm, por exemplo, so grande envergadura metafsica e desafiam os antigos padres dessa tradio. No se pode esquecer as inmeras publicaes na rea atualmente, em especial os Oxford Studies in Metaphysics, srie de volumes editada por Dean Zimmerman (cf. Zimmerman, 2004, 2006, 2007, 2008, 2010).
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pleno dilogo e assimilao da cincia moderna por parte do filsofo. Se a biologia
filosfica se permite estender at os picos da metafsica, ela no deixa de estar ancorada
numa discusso com a cincia, a qual no fica sob a tutela tirana da filosofia. O segundo
elemento, que no pode ser visto seno como resultado e expresso do primeiro, deve ser
colocado na conta de uma aguda e renovada conscincia crtico-kantiana e crtico-
lingustica. So exemplares a esse respeito, e reforam o atesmo metodolgico primordial
da empresa intelectual jonasiana, suas consideraes metodolgicas sistemticas sobre a
hermenutica dos fenmenos religiosos para a tese sobre o conceito de Gnose, publicado
s recentemente por Claudio Bonaldi, em que se pode ler: do ponto de vista
metodolgico no permitido admitir nenhuma razo de explicao que venha de fora
desse mbito [o mundo], nem esperar realidade ultramundana que de algum modo
rompa tal clausura [Geschlossenheit](cf. Jonas 2006[1927-30], p. 60). Esse , como observa
Jonas, o princpio de imanncia que d seu primeiro passo a partir do renascimento e
ganha sua expresso filosfica mais conhecida na Kritik der reinen Vernunft, especialmente na
dialtica transcendental. Consequncia dessa conscincia crtico-kantiana tambm a
necessidade de salientar a distino entre filosofia e metafsica (pensada aqui como theologia
naturalis)18, que dispensa a primeira das amarras da segunda a qual, no obstante,
permanece ainda possvel de ser pensada. Essa independncia teolgica no evocada
apenas para uma hermenutica dos fenmenos religiosos, mas aparece tambm explicitada
no Prefcio das duas verses de seu ensaio de uma biologia filosfica para avisar ao
leitor mais positivisticamente inclinado de que, apesar da maior concentrao da anlise e
descrio fenomenolgica, o livro no se privou da especulao metafsica onde a
conjectura sobre questes ltimas e indemonstrveis (mas de maneira alguma sem sentido)
pareceram necessrias (cf. PL Preface xxiv; OF Vorwort 4). Tal independncia fica ainda
mais clara com as referncias que o filsofo oferece com os ttulos de dois de seus livros,
nos quais se enfatiza claramente a separao entre os dados cosmolgicos e as
conjecturas cosmognicas no caso do subttulo de Materie, Geist und Schpfung [Matria,
Esprito e Criao] (1988) , ou, se se preferir, entre as investigaes filosficas e as
conjecturas metafsicas, elementos do ttulo do ltimo livro publicado pelo prprio
18 preciso estar atento, entretanto, ao fato de que o conceito de metafsica em Jonas polissmico. Em um primeiro sentido (metodolgico e ontolgico a um s tempo), sua forma adjetivada se refere esfera alm do fsico, isto , o psquico o