Hibridismo Cultural no Santuário do Bom Jesus de Matosinhos – Congonhas –
MG
Pâmela Mota Bastos1
Segundo consta na Biblioteca do IBGE, os primeiros habitantes de Congonhas
foram os mesmos portugueses que povoaram Vila Real de Queluz (atual Conselheiro
Lafaiete), seguindo o desbravamento exploratório, sob a bandeira de Bartolomeu
Bueno, na região de Paraopeba. Fixaram-se naquele lugar que era uma área localizada
na região das Congonhas que fazia limite com Campo Alegre dos Carijós, aldeamento
indígena situado em Queluz. Congonhas é o nome do arbusto de chá que havia
abundantemente naquela região. (Biblioteca do IBGE - Congonhas)
Entre esses exploradores de minérios que vieram, estava o português Feliciano
Mendes, fundador Igreja do Bom Jesus de Matosinhos e responsável ela difusão da fé
no Bom Jesus pela região.
A igreja que deu origem ao Santuário do Bom Jesus de Matosinhos começou a
ser construída em 1757, como retribuição a um milagre que lhe foi concebido ao
explorador, pelo Bom Jesus de Matosinhos. Após anos trabalhando como minerador,
Feliciano adquiriu uma grave doença, fez então uma promessa ao Senhor do Bom Jesus
de Matosinhos para que se curasse de tal enfermidade, se tal graça fosse alcançada,
passaria a vida a dedicar-se ao Santo. Curou-se da doença e, a partir daí, passou o
restante de sua vida empenhado na construção da capela. Oito anos após o início de sua
construção, a igreja estava levantada, com três altares abertos aos cultos. (FALCÃO,
1962)
A igreja era uma construção simples no estilo tradicional dos primeiros edifícios
religiosos construídos em Minas Gerais. Contudo após a morte de seu fundador,
Feliciano Mendes, em 1765 ganhou um suntuoso interior com ornamentação Rococó,
transformando sua aparência original. Em julho de 1957, o Papa Pio XII elevou a Igreja
1 Mestranda no PPGAV/EBA- UFRJ – Bolsista CAPe (CNPq)
principal à categoria de Basílica Menor, devido à importância artística, histórica e
religiosa do Conjunto. (FALCÃO, 1962)
A execução do adro dos Profetas levou em torno de treze anos para ser executada
e consumiu uma enorme quantidade de pedra para ser erigido. Essas estátuas são
consideradas o maior conjunto estatuário barroco do mundo. Também são consideradas
a maior obra-prima de Aleijadinho, que quando as esculpiu, em conjunto com alguns
ajudantes, já passava dos sessenta anos e estava extremamente debilitado pela doença
que lhe causara perda de dedos, dentes e desfiguração facial. (IPHAN)
Localizadas no adro, que constitui um lugar mediador por excelência, coloca-se
exatamente no limiar entre o espaço externo e interno, entre o privado e o público, entre
o sagrado e o profano. Por serem, essas estátuas, portadoras de valor sagrado, o que se
entende por ato de depredação ou vandalismo talvez esteja muito mais próximo à
prática dos ex-votos, ligada às tradições religiosas locais.
Fé e Religiosidade
Segundo conta a lenda, a fé no Bom Jesus de Matosinhos originou-se em Portugal
a partir de uma imagem encontrada a beira mar, na Praia de Matosinhos, distrito do
Porto. Essa fé foi posteriormente trazida para Congonhas pelos exploradores
portugueses, que para lá foram em busca de ouro.
Em Congonhas, além das comemorações da Semana Santa, há também o Jubileu
do Bom Jesus de Matosinhos, realizado há mais de duzentos e cinquenta anos
(aproximadamente desde 1757). Depois da instituição oficial do Jubileu, em março de
1779, pelo Papa Pio VI, o Jubileu do Bom Senhor Jesus de Matosinhos tornou-se o
maior evento religioso de Minas Gerais, atraindo mais de duzentos mil visitantes anuais.
Durante o evento, acontece uma extensa feira no entorno do Santuário onde
diversos tipos de produtos são vendidos. Desse comércio, muitas famílias ainda tiram
seu sustento do ano inteiro. (Diário Eletrônico Oficial de Congonhas, p.1)
Durante o Jubileu boa parte dos fiéis se dirigem à Sala dos Milagres, na lateral do
Santuário, para deixar seus ex-votos. Há aproximadamente 30 anos a entrada principal
da igreja tem permanecido fechada durante o evento, assim como o acesso ao adro dos
profetas. Somente é possível acessar o seu interior através de uma entrada lateral, onde
desde as primeiras horas da madrugada, forma-se a fila para o encontro com a imagem
do Bom Jesus, situada em sua nave. Segundo os responsáveis pelo Santuário, o acesso
ao adro permanece fechado somente durante o Jubileu, para que seja mantida a
integridade física das estátuas e do parapeito – ambos em pedra sabão – devido ao
grande número de visitantes e à relativa fragilidade do material. É por lá também que os
padres passam para realizar as missas, que durante o evento, são celebradas do lado de
fora da Basílica.
Peregrinação e tradições locais
Traçando, uma correlação entre o Jubileu do Bom Jesus de Matosinhos e a Festa
do Divino Espírito Santo, estudada por Gonçalves (2009:19), com relação ao
significado da festa em homenagem ao santo:
Na ideologia dos devotos, a festa é realizada para agradar o Divino Espírito
Santo, a partir do momento em que se faz alguma “promessa” ou quando se
pretende retribuir alguma “graça” recebida. Essas são as noções nativas por
meio das quais se expressa de modo sensível a relação de troca entre os de-
votos e o Divino Espírito Santo.
Esse deslocamento não é somente físico como também espiritual. Trata-se de uma
jornada que terminará no contato com o sagrado, como bem esclarecido por Wilson
Trajano Filho (2009: 59), quando trata do cortejo das tabancas (festejo popular realizado
nas ilhas cabo-verdianas de Santiago e Maio). A conduta por parte dos peregrinos, que
não só organiza como dá sentido à experiência, cria regras próprias que, uma vez
assimiladas, passam a fazer parte dessa tradição, sendo incorporadas às já existentes ou
criando novas regras.
A jornada afasta os peregrinos das situações ordinárias, ligadas ao pecado, às
transgressões morais e oferece recompensas não materiais para seu sacrifício.
É importante frisar que a prática desobrigadora da promessa ou voto, que
agrega como elemento material o objeto ofertado, compõe-se, na realidade,
de uma vivência que abrange diversos estágios: o momento de vicissitude
que originou o voto; a manifestação do sobrenatural; a resolução do impasse;
os preparativos para o cumprimento da promessa (encomenda ou execução
do objeto pelo miraculado, confecção de vestimenta apropriada para o
desempenho ritual, etc); a peregrinação ao centro religioso sob a invocação
do orago; e finalmente, o momento em que o crente concretiza a sua
promessa, no espaço sagrado do templo. (MAGALHÃES, 1981: 22)
Essa peregrinação pode ser dividida em dois momentos importantes: primeiro, a
partida, que se refere ao deslocamento em direção ao local sagrado, cheia de
penitências, sacrifícios e de preparações para a chegada ao Santuário. No caso de alguns
grupos, além da longa caminhada de três dias, de chinelo, enfrentando adversidades e
contando com a caridade dos donos das propriedades que atravessavam para poder se
alimentar, alguns grupos carregavam cruzes de madeira de aproximadamente três
metros, para reforçar o sacrifício empregado pelos peregrinos em sua jornada sagrada.
Essa cruz é assinada por cada um dos integrantes da romaria e deixada na Sala dos
Milagres. A chegada desses grupos ao Santuário é marcada por muita comoção por
parte de todos os participantes da festa, inclusive dos moradores e religiosos.
Além dos perigos naturais decorrentes do deslocamento por espaços físicos
desconhecidos, muitas vezes inóspitos, e de doenças de toda ordem, os
peregrinos se defrontam com perigos sociais e sobrenaturais decorrentes do
fato de sua trilha cortar fronteiras sociais, políticas e culturais em vários
níveis (local, regional e internacional), conduzindo-os por espaços tão ou
mais perigosos do que as terras dos outros. (FILHO, 2009: 59)
O segundo momento importante dessa jornada é a volta, quando o devoto quer
retornar renovado e o mais rapidamente possível ao seu ponto de origem.
Marcel Mauss, em seu livro “Sobre o Sacrifício” (2013: 17), desenvolve o
pensamento a respeito do sacrifício como sendo um ato de consagração de um
determinado objeto: “em todo sacrifício, um objeto passa do domínio comum ao
domínio religioso – ele é consagrado”. Há a esperança de que seu sacrifício seja
recompensado pela sua divindade, de que seu sofrimento seja aliviado, que seus pecados
sejam perdoados e de que as mazelas do corpo sejam curadas.
É o fechamento de um ciclo, quando finalmente cumpre-se a promessa feita. A
cada ano o ciclo se renova e uma parte do grupo repete o ritual anualmente.
Segundo Brandão (1985: 137):
As ocasiões de coletivização urbanizada da prática religiosa sempre foram
um momento de uso privilegiado de recursos rituais para o saldo de
compromissos (voto, promessa) assumidos com a divindade, ou com algum
santo padroeiro ou protetor de pessoas com problemas pessoais específicos.
No caso do Santuário do Bom Jesus de Matosinhos foi a história do seu
idealizador, Feliciano Mendes e a sua cura milagrosa atribuída ao Bom Jesus de
Matosinhos. Esses testemunhos de milagres aproximam o devoto de seu orago através
não só da oração, mas da aproximação com o lugar sagrado como um todo.
As relações com o sagrado, afirma Wilson Trajano Filho (2009: 60), são
orientadas por uma ética pautada nas relações de troca. Os santuários são lugares para
transações entre os homens e o sagrado. Os peregrinos oferecem o sacrifício de seu
corpo e mais uma série de bens tangíveis como os ex-votos, ou intangíveis como seu
tempo, esperando em troca, favores materiais e espirituais.
Essa tradição profética foi trazida para o Novo Mundo desde que os primeiros
missionários portugueses vieram ao Brasil para evangelizar os “selvagens”. De início o
“profeta” apareceu como uma construção negociada e a linguagem religiosa foi o campo
de mediação em que as culturas buscaram o sentido da diversidade da outra. (POMPA,
2001:.177).
Em grego prophetes em seu sentido original significava adivinho, especialista em
adivinhação, ligada a previsão de desastres e calamidades. Num segundo momento, com
o colapso de Judá, o termo passa a proclamar com os chamados profetas posteriores
(Isaias, Ezequiel, etc), uma nova ordem, um Novo Reino.
Hibridismo cultural
Entre os anos de 1547 e 1555, o alemão Hans Staden esteve no Brasil por duas
vezes. Em sua segunda viagem, a bordo de um navio espanhol, sofreu um naufrágio a
caminho de São Vicente. Conseguiu chegar em terra e lá viveu por aproximadamente
dois anos na companhia de portugueses, os quais já haviam estabelecido relações
amigáveis com índios Tupiniquins que habitavam a região (Itanhaém, também no litoral
paulista).
Certo dia quando estava procurando seu escravo que saiu atrás de caça para sua
alimentação, foi surpreendido e cercado pelos Tupinambás, que eram inimigos dos
Tupiniquins, e levado com eles. Como estava entre os portugueses aliados de seus
inimigos, foi levado para sua tribo e lá seria morto e comido em um ritual. Conseguiu a
muito custo sobreviver, convencendo-os de que não era português como os demais e
que, por tanto, não se tratava de um inimigo. Sobreviveu para contar o que presenciou e
descreveu em seu livro, com detalhes, esses rituais que envolviam o consumo de carne
humana inimiga, entre os Tupinambás.
Seu livro foi traduzido para muitos idiomas em muitas edições, o que tornou
muito conhecido o conceito de canibalismo pelo mundo inteiro.
Já havia, desde a antiguidade, a ideia estereotipada de consumo de carne humana
por povos ditos “bárbaros” ou “primitivos”. Esse estereótipo de canibal serviu por
séculos aos interesses europeus de se colocarem de forma superior (civilizados) sob
esses povos (não civilizados) e de servir como justificativa para sua dominação, o que
aconteceu também aqui no Brasil.
No Brasil, durante a Semana de Arte Moderna de 1922, Oswald de Andrade
retoma esse conceito de canibalismo em seu Manifesto Antropófago e o reinterpreta,
propondo uma reflexão crítica sobre a herança colonial no Brasil.
Durante a fase inicial do modernismo brasileiro há uma forte busca por
referenciais para a construção de uma identidade nacional, para isso, Oswald propõe
então uma descolonização.
“Queremos a Revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A
unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a
Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem”.
(ANDRADE, 1928:14)
Oswald então incita a que a população brasileira adote uma atitude antropófaga, ou
seja, devorar a influência europeia e misturá-la às tradições locais para, a partir desta
“deglutição”, criar um produto cultural híbrido e especificamente brasileiro.
A metáfora estabelecida por Oswald, entre o canibalismo (entendido como ato de
se alimentar da carne humana) e a antropofagia (como ritual de absorção de elementos
culturais de outros, misturado há elementos próprios, tendo como produto final algo
singular) permite ampliar a utilização desse conceito (antropofagia) para um espectro
maior, ligado especialmente às interações culturais.
Essa reformulação enfatiza o aspecto hibridizador da antropofagia, revogando
dicotomias hegemônicas, possibilitando uma interação entre diferentes elementos
culturais, como é o caso do Jubileu do Bom Jesus de Matosinhos e de suas tradições.
Parte dessas tradições foram parcialmente herdadas de seus exploradores
portugueses, como a própria fé no Bom Jesus de Matosinhos, e outras que foram sendo
constituídas, como a “fila do beijo”2, o s ex-votos e, mais especificamente, a tradição de
se registrar a pedra sabão com mensagens, que tem acontecido há muitas décadas, (pelo
menos desde o século XVII).
Expressões culturais e antropofagia
Por ter sido concebido como pagamento a uma promessa, após um milagre
recebido (um ex-voto), o Santuário tornou-se, ao longo do tempo, um espaço de
peregrinação de devotos, que aparecem de todos os cantos do Brasil e do mundo, com o
intuito de “pagar” por graça recebida. Muitos desses devotos dirigem-se à Sala dos
Milagres, na lateral do Santuário, para deixar seus ex-votos.
2 .A “Fila do Beijo” é a fila que os devotos e romeiros formam em frente a entrada lateral
da igreja, aguardando desde a madrugada (mais ou menos a partir das 03:30h), para ver de perto a
imagem do Bom Jesus.
A estimativa é de que o número de visitantes ultrapasse os 200 mil anuais
(FRANÇA, 2001:17), o que é impressionante, em uma cidade cuja população atual
(2016) é de 58. 348 habitantes. (IBGE)3
Quando a 8 de abril de 1757, Feliciano Mendes colocou a imagem do Senhor
Bom Jesus de Matosinhos no Nicho junto à grande cruz que plantara no Monte
do Alto do Maranhão, com muita festa, orações e sermão, lançou as raízes da
peregrinação que, mais tarde, passou a ser chamada Jubileu. (FRANÇA, 2001,
p. 17)
Victor Turner, em seu livro “Floresta de Símbolos” (2005, p. 49), esclarece o
sentido do termo ritual: “Por ‘ritual’, entendo o comportamento formal prescrito para
ocasiões não devotadas às rotinas tecnológicas, tendo como referência a crença em seres
ou poderes místicos.”. Cabe aqui esclarecer que o sentido para o termo “ritual” aqui
empregado se estenderá por pelo menos duas direções, que segundo Edmund Leach
(apud Brandão, 2010: 20), são: a primeira diz respeito ao fato de que o comportamento
festivo de seus integrantes não ter que, necessariamente, ser regido por normas solenes.
A expressão dos sentimentos e a possibilidade de o comportamento coletivo ser
somente irreverente, mas transgressivo, é o que dá caráter específico a certos rituais. A
segunda, o fato de não haver necessidade de uma relação explícita entre “o que se faz” e
o “a quem se faz”, (enquanto entidade mística).
Independentemente da época, lugar ou crença, o fenômeno das peregrinações tem
em comum traços suficientes para que possamos tentar compreender o que leva tantos
homens e mulheres a peregrinar e o que essas pessoas tiram dessa experiência. O mais
importante em uma peregrinação é que, uma vez realizada no quadro de um processo
quase sempre coletivo, efetivamente essa experiência é pessoal. Segundo Meslin (2014
p. 200-201): “Toda peregrinação é uma experiência individual porque voluntária”. Um
indivíduo se coloca em uma sociedade difusa que, através do tempo e do espaço,
marcou o caminho que ele segue por razões extremamente pessoais.
“a multiplicidade dos testemunhos arqueológicos, dos ex-votos, das inscrições,
atesta a existência de peregrinações de terapia bem antes do cristianismo e de
seus santos curadores.” (MESLIN, 2014: 210)
3 Fonte: Disponível em:
http://cidades.ibge.gov.br/xtras/temas.php?codmun=311800&idtema=130 Acesso em 01/05/2017.
Mesmo atualmente, em sociedades materialmente confortáveis nas quais um
peregrino não enfrenta mais lobos, bandidos, fome, sede ou intempéries mais extremas,
como se costumava séculos atrás, o mesmo enfrenta obstáculos e provações ligadas ao
seu estado psicológico ou às novas “dificuldades contemporâneas”, como a falta de
tempo, por exemplo. A fé no poder divino que encontrarão na chegada ao local sagrado
é o que anima os peregrinos, fé que foi, talvez desde o início, esperança naquele que
pode curar um mal físico, quando a medicina humana falha e mostra-se impotente,
Conclusão
Apesar de não fazer parte das tradições oficiais do catolicismo, a prática dos ex-
votos faz-se presente nas tradições ditas populares, como um corolário dessa
peregrinação, a comprovação física da passagem do peregrino pelo Santuário, o efetivo
pagamento da promessa realizada, que somente termina quando o devoto chega ao local
sagrado, especificamente no caso de Congonhas e do Jubileu do Bom Jesus de
Matosinhos, essa culminância acontece na subida ao adro, onde não só encontra-se a
entrada da Basílica e a Sala dos Milagres, como as imagens das estátuas dos doze
Profetas de Aleijadinho. Sendo assim, o ex-voto (originalmente voto cumprido), torna-
se testemunho, daí sua grande importância dentro dos rituais religiosos locais, sendo a
pedra - o arquétipo da permanência, da durabilidade - a superfície ideal para que seja
feito o registro dessa passagem.
A história do Santuário tem mostrado que as expressões de religiosidade popular,
em especial a prática dos ex-votos, são de fundamental importância para tentarmos
compreender o ato de registrar mensagens nas áreas em pedra sabão do Santuário, como
parte de uma tradição ligada às peregrinações e romarias, que culminam com o
pagamento de promessa por graça recebida. As estátuas dos doze profetas seriam as
mediadoras entre os devotos e seus santos de devoção – nesse caso o Bom Jesus de
Matosinhos – para isso, requerem durante as celebrações, uma aproximação física, o
que não é comumente aceito em relação aos objetos considerados artísticos.
No livro “A Reconquista de Congonhas”, Lourival Gomes Machado (1960: 46,
grifo meu) afirma que tais inscrições seriam “deploráveis danos causados por
romeiros ignorantes a cada setembro e ao decorrer do ano, com a ponta do
canivete”. Essa foi até agora a única referência encontrada sobre tais registros.
Essa interpretação aproxima o ato de registrar mensagens no parapeito e estátuas
do adro, dos atos conscientes de depredação, que atualmente vincula-se ao conceito de
vandalismo. Ao mesmo tempo, aponta para uma relação direta entre o ato de registrar
apedra sabão e o Jubileu do Bom Jesus de Matosinhos (que acontece em setembro entre
os dias 7 e 14).
O fato de o tombamento ter agregado um novo status ao Santuário, o de “obra de
arte”, além dos que já haviam sido construídos pelos antigos usuários (moradores,
romeiros), permite-nos refletir sobre até que ponto o conflito existente entre essas
instâncias de legitimação (IPHAN, Igreja, etc) teria culminado em uma hierarquização
de valores simbólicos, tendo o valor artístico sido sobreposto aos demais. Diante desse
quadro, o que já existia como expressão cultural local, tornou-se não só marginalizada,
como foi proibida por lei. No entanto, o que se percebe é que, mesmo com repressão, os
registros sob apedra sabão continuam sendo feitos no parapeito e estátuas do Santuário.
Ao interpretar o ato de registrar a pedra sabão dentro do contexto das interações
culturais ligadas a religiosidade local, especialmente ao Jubileu do Bom Jesus
(lembremos que o adro permanece fechado somente durante o Jubileu e em nenhum
outro momento) podemos concluir: primeiro, como resultado de uma hibridização
cultural, na qual as tradições religiosas trazidas de Portugal para Congonhas foram
misturando-se às tradições que já existiam aqui, transformando-se em algo próprio;
segundo, que o a tradição de registrar a pedra sabão pode ser lida como uma resistência
aos elementos externos a essa cultura, já que durante muitos anos, registrar a pedra era
permitido e, mesmo após sua proibição, houve - e talvez ainda haja – uma certa
permissividade com relação a isso, tendo em vista o fato de elas ainda acontecerem,
mesmo sendo proibido e estando o Santuário sob vigilância permanente.
Segundo Becker (2008:15) há uma enorme quantidade de regras que podem ser
formalmente promulgadas na forma da lei; em outros casos, tratam-se de acordos
informais. Aquele que desvia as regras, o outsider, ou melhor, desviante, tem sido
objeto de estudo científico, entretanto, sem que se questione esse rótulo. O termo
geralmente é aplicado a atos ou pessoas particulares, aceitando-se assim, os valores do
grupo que formulou o julgamento. Se o meio científico ignora o caráter variável do
processo de julgamento, os tipos de teorias e o tipo de compreensão que se pode ter dos
fatos, acabam sendo limitados.
As sociedades modernas são organizações complexas, em que grupos sociais
criam regras específicas, as quais nem todos concordam com relação ao que são ou às
suas aplicações. São diferenciadas entre linhas de classes sociais, étnicas, ocupacionais
e culturais distintas. Esses diferentes grupos dificilmente partilhas as mesmas regras,
devido aos problemas que enfrentam ao lidar com seu ambiente, a história e as tradições
que carregam, tudo conduz a diferentes conjuntos de regras. A medida que as desses
diferentes grupos se chocam e/ou se contradizem, haverá desacordo quanto ao que seria
o comportamento “adequado”, seja qual for a situação.
Para Wagner (2012: 111) o termo “contexto” deve ser ampliado e aplicado “a
qualquer punhado de elementos simbólicos que ocorram juntos de alguma maneira”,
formando uma sequência ou entidade reconhecível ou entrando em oposição, como
aspectos contrastantes de uma distinção. Cabe também salientar que para o autor, tanto
a comunicação quanto os significados são mantidos por meio de uso de elementos
simbólicos, sejam eles palavras, imagens ou gestos, e quando esses elementos são
isolados de seu contexto e visto como coisas em si, perdem significação. Esses
elementos somente têm significado, sendo associados ou opostos uns aos outros em toda
sorte de contextos. O significado seria uma função das maneiras pelas quais criamos e
experienciamos esses contextos. Sendo assim, interpretar ao registros feitos sob a pedra
sabão sem levar em conta o contexto no qual elas estão inseridas – o religioso – seria
ignorar suas possibilidades de compreensão.
Voltando ao conceito de antropofagia Oswaldiana, no qual a heterogeneidade da
cultura brasileira é exaltada, e propondo uma articulação com a reflexão sobre
hibridização cultural de Homi K. Bhabha (apud Grun, 2014: 30), podemos interpretar o
ato de registrar apedra sabão dentro desse espectro de interações culturais e de
resistência.
Segundo Bhabha no hibridismo ocorre uma inversão estratégica do processo de
dominação, em que o colonizado não se adapta totalmente a cultura do colonizador, eles
se apropriam de elementos da cultura da metrópole, transformando-a ao integrá-los em
sua própria cultura. Nesse “terceiro espaço” acontece uma renegociação de símbolos
culturais. (Bhabha, apud Grun, 2014: 30).
Ao interpretar os registros que têm sido feitos sobre as áreas em pedra sabão no
adro dos profetas de Aleijadinho, não considerando o contexto religioso em que elas
estão inseridas, e levando em consideração somente o aspecto artístico atribuído à elas,
em que qualquer interferência em suas propriedades físicas é diretamente proibido,
ignora-se toda uma relação simbólica que não condiz com qualquer tentativa de
vandalização. Levemos em conta ainda, o fato de não haver qualquer registro sobre
pichações ou até mesmo registros quaisquer escritos nas paredes do próprio adro ou do
Santuário como um todo. Percebe-se que ligação da grande maioria dos visitantes
limita-se ao sagrado ou ao valor artístico, não havendo, até o momento razões para
acreditar que registrar a passagem pelo adro carregue qualquer marca de transgressão
intencional.
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