Transcript
Page 1: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

DO AUTOR

O colapso do populismo no Brasil, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1993.

Ditadura e agricultura, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1992.

A ditadura do grande capital, Rio de Janeiro, Civilização Brasi­leira, 1992.

Ensaios de sociologia da cultura, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1993.

Estado e planejamento econômico no Brasil, Rio de Janeiro, Ci­vilização Brasileira, 1992.

Formação do Estado Populista na América Latina, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1993.

Imperialismo na América Latina, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1993.

Revolução e cultura, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1992. A sociedade global, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1998.

Octavio Ianni

Teorias da globalização

9- Edição

CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA

Rio de Janeiro 2001

Page 2: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

COPYRIGHT © Octávio Ianni, 1995

CAPA

Evelyn Grumach

PROJETO GRÁFICO

Evelyn Grumach e João de Souza Leite PREPARAÇÃO DE ORIGINAIS

Edson Agostinho de Souza EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Art Line

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

Ianni, Octávio, 1926-U 7 t Teorias da globalização / Octávio Ianni. - 9" ed. - Rio de 9« e ( j Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

228p

Inclui bibliografia ISBN 85-200-0397-4

1. Civilização moderna - Século XX. 2. Relações econômicas internacionais. 3. Globalização. 4. Sociologia.

I. Título.

CDD 303.4 98-1834 CDU 316.42

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem a prévia autorização por escrito.

Direitos desta edição adquiridos pela BCD União de Editoras S.A. Av. Rio Branco, 99 / 20° andar, 20040-040, Rio de Janeiro, RJ, Brasil Telefone (21) 263-2082, Fax / Vendas (21) 263-4606

PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL Caixa Postal 23.052, Rio de Janeiro, RJ, 20922-970

Impresso no Brasil 2001

PARA

ANTONIO ANA CATARINA

CLARA FRANCISCO, ANUNCIANDO O SÉCULO XXI

Page 3: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

Sumário

PREFÁCIO WC

1. Metáforas da Globalização 11 2. As Economias-Mundo 27 3. A Internacionalização do Capital 53 4. A Interdependência das Nações 73 5. A Ocidentalização do Mundo 95 6. A Aldeia Global 117 7. A Racionalização do Mundo 143 8. A Dialética da Globalização 169 9. Modernidade-Mundo 203

10. Sociologia da Globalização 235

BIBLIOGRAFIA 257

vi i

Page 4: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

Prefácio

A globalização está presente na realidade e no pensamento, desafian­

do grande número de pessoas em todo o mundo . A despeito das vi­

vências e opiniões de uns e outros , a maioria reconhece que esse p ro ­

blema está presente na forma pela qual se desenha o novo mapa do

mundo, na realidade e no imaginário.

Já são muitas as teorias empenhadas em esclarecer as condições

e os significados da globalização. Umas são um tanto t ímidas, ao

passo que outras , bastante audaciosas; algumas vezes desconhecem-

sc mutuamente , noutras , influenciam-se. Mas todas abrem perspecti­

vas para o esclarecimento das configurações e movimentos da socie­

dade global.

Vale a pena mapear as principais teorias da globalização. Permi­

tem esclarecer não só as condições sob as quais se forma a sociedade

global, mas também os desafios que se criam para as sociedades na­

cionais. Os horizontes que se descortinam com a globalização, em

termos de integração e fragmentação, podem abrir novas perspecti­

vas para a interpretação do presente, a releitura do passado e a ima­

ginação do futuro.

Os problemas da globalização naturalmente implicam um diálo­

go múltiplo, com autores e interlocutores, em diferentes enfoques

históricos e teóricos. Em larga medida, esse diálogo está registrado

neste livro, nas referências e citações.

Alguns temas foram apresentados em debates, geralmente em

ambientes universitários. E alguns capítulos publicaram-se em ver­

sões preliminares: "Metáforas da Globalização", Idéias, ano I, n°. 1,

ix

Page 5: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

Unicamp, Campinas , 1994; "A Ocidentalização do M u n d o " , sob o

t í tulo "A Modernização do M u n d o " , Margem, n°. 3 , PUC, São

Paulo, 1994; "A Aldeia Global" , sob o título "Globalização e Cul­

tu ra" , O Estado de S. Paulo, 30 de ou tubro de 1994; "Sociologia da

Global ização", sob o título "Globalização: N o v o Paradigma das

Ciências Sociais", Estudos avançados, n°. 2 1 , USP, São Paulo, 1994.

Foram esses momentos importantes de diálogo múltiplo, polifónico,

que me permitiram aprimorar tal reflexão e sua narração.

OCTAV]

X

CAPÍTULO 1 Metáforas da globalização

Page 6: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

A descoberta de que a terra se tornou mundo , de que o globo n ã o é

mais apenas uma figura astronômica, e sim o território no qual todos

encontram-se relacionados e atrelados, diferenciados e antagônicos —

essa descoberta surpreende, encanta e a temoriza. Trata-se de uma

ruptura drástica nos modos de ser, sentir, agir, pensar e fabular. Um

evento heurístico de amplas proporções, abalando não só as convic­

ções, mas também as visões do mundo .

Ocorre que o globo não é mais exclusivamente um conglomerado

de nações, sociedades nacionais, Estados-nações, em suas relações de

interdependência, dependência, colonialismo, imperialismo, bilatera-

lismo, multilateralismo. Ao mesmo tempo, o centro do mundo não é

mais voltado só ao indivíduo, tomado singular e coletivamente como

povo, classe, grupo, minoria, maioria, opinião pública. Ainda que a

nação e o indivíduo continuem a ser muito reais, inquestionáveis e

presentes todo o tempo, em todo lugar, povoando a reflexão e a ima­

ginação, ainda assim já não são "hegemônicos". Foram subsumidos,

real ou formalmente , pela sociedade global , pelas configurações e

movimentos da globalização. A Terra mundializou-se de tal maneira

que o globo deixou de ser uma figura astronômica para adquirir mais

plenamente sua significação histórica.

13

Page 7: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

Daí nascem a surpresa, o encantamento e o susto. Daí a impres­

são de que se romperam modos de ser, sentir, agir, pensar e fabular.

Algo parecido com as drásticas rupturas epistemológicas representa­

das pela descoberta de que a Terra não é mais o centro do universo

conforme Copérnico, de que o homem não é mais filho de Deus se­

gundo Darwin, de que o indivíduo é um labirinto povoado de incons­

ciente de acordo com Freud 1 . É claro que a descoberta que o pensa­

mento científico está realizando sobre a sociedade global no declínio

d o século X X não apresenta as mesmas características dessas out ras

descobertas mencionadas . Mesmo porque são diversas e antigas as

instituições e indicações mais ou menos notáveis de g lobal ização.

Desde que o capitalismo desenvolveu-se na Europa, apresentou sem­

pre conotações internacionais, multinacionais, transnacionais e mun­

diais, desenvolvidas no interior da acumulação originária do mercan­

tilismo, do colonialismo, do imperialismo, da dependência e da inter­

dependência. E isso está evidente nos pensamentos de Adam Smith,

David Ricardo, Herber t Spencer, Karl M a r x , M a x Weber e muitos

ou t ros . M a s é inegável que a descoberta de que o g lobo terres t re ,

como já disse, não é mais apenas uma figura astronômica, e sim his­

tórica, abala modos de ser, pensar, fabular.

Nesse clima, a reflexão e a imaginação não só caminham de par

em par como multiplicam metáforas, imagens, figuras, parábolas e

alegorias, destinadas a dar conta do que está acontecendo, das reali­

dades não codificadas, das surpresas inimaginadas. As metáforas pa­

recem florescer quando os modos de ser, agir, pensar e fabular mais

ou menos sedimentados sentem-se aba lados . É claro que falar em

metáfora pode envolver não só imagens e figuras, signos e símbolos,

mas também parábolas e alegorias. São múltiplas as possibilidades

abertas ao imaginário científico, filosófico e artístico, quando se des­

cortinam os horizontes da globalização do mundo , envolvendo coisas,

1 Sigmund Freud, Obras completas, 3 tomos, tradução de Luis Lopez-Ballesteros y de Torres, Editorial Biblioteca Nueva, Madri, 1981, tomo III, cap. CI: "Una Dificultad del Psicoanálisis".

M E T Á F O R A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

gentes e idéias, interrogações e respostas, explicações e intuições, in-

irrpretações e previsões, nostalgias e utopias.

O problema da globalização, em suas implicações empíricas e me­

todológicas, ou históricas e teóricas, pode ser colocado de m o d o ino­

vador, propriamente heurístico, se aceitamos refletir sobre a lgumas

metáforas produzidas precisamente pela reflexão e imaginação desa­

liadas pela globalização. N a época da globalização, o m u n d o come­

çou a ser taquigrafado como "aldeia global" , "fábrica g lobal" , "ter-

rapá t r ia" , "nave espacial" , "nova Babel" e out ras expressões. São

metáforas razoavelmente originais, suscitando significados e implica­

ções. Povoam textos científicos, filosóficos e artísticos.

Chama a atenção nesses textos a profusão de metáforas utilizadas

para descrever as transformações deste final de século: "primeira re­

volução mundial" (Alexander King), "terceira onda" (AlvinToffler),

"sociedade informática" (Adam Schaff), "sociedade amébica" (Keni-

chi Ohmae), "aldeia global" (McLuhan). Fala-se da passagem de uma

economia de high volume para outra de high value (Robert Reich), e

da existência de um universo habitado por "objetos móveis" (Jacques

Attali) deslocando-se incessantemente de um lugar a outro do plane­

ta. Por que esta recorrência no uso de metáforas? Elas revelam uma

realidade emergente ainda fugidia ao horizonte das ciências sociais. 2

H á metáforas, bem como expressões descritivas e interpretativas

fundamentadas, que circulam combinadamente pela bibliografia so­

bre a globalização: " economia -mundo" , " s i s t ema-mundo" , "shop­

ping center global", "Disneylândia global", "nova visão internacional

do t raba lho" , "moeda global" , "cidade global", "capitalismo global" ,

"mundo sem fronteiras", " tecnocosmo", "planeta Ter ra" , "desterri-

tor ia l ização", "minia tur ização" , "hegemonia global" , "fim da geo-

2 Renato Ortiz, Mundialização e cultura, Editora Brasiliense, São Paulo, 1994, p. 14.

15

Page 8: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

grafia", "fim da história" e outras mais. Em parte, cada uma dessas e

ou t ras formulações abre problemas específicos t ambém relevantes.

Suscitam ângulos diversos de análise, pr ior izando aspectos sociais,

econômicos, políticos, geográficos, históricos, geopolíticos, demográ­

ficos, culturais, religiosos, lingüísticos etc. Mas é possível reconhecer

que vários desses aspectos são contemplados por metáforas como "al ­

deia global", "fábrica global", "cidade global", "nave espacial", " n o ­

va babel" , entre outras. São emblemáticas, formuladas precisamente

no clima mental aberto pela globalização. Dizem respeito às distintas

possibilidades de prosseguimento de conquistas e dilemas da moderni­

dade. Contemplam as controvérsias sobre modernidade e pós-moder-

nidade, revelando como é principalmente a partir dos horizontes da

modernidade que se pode imaginar as possibilidades e os impasses da

pós-modernidade no novo mapa do mundo .

"Aldeia global" sugere que, afinal, formou-se a comunidade mun­

dial, concretizada com as realizações e as possibilidades de comunica­

ção, informação e fabulação abertas pela eletrônica. Sugere que estão

em curso a harmonização e a homogeneização progressivas. Baseia-se

na convicção de que a organização, o funcionamento e a mudança da

vida social, em sentido amplo, compreendendo evidentemente a glo­

balização, são ocasionados pela técnica e, neste caso, pela eletrônica.

Em pouco tempo, as províncias, nações e regiões, bem como culturas

e civilizações, são atravessadas e articuladas pelos sistemas de infor­

mação, comunicação e fabulação agilizados pela eletrônica.

Na aldeia global, além das mercadorias convencionais, sob for­

mas ant igas e a tua is , empacotam-se e vendem-se as informações .

Estas são fabricadas como mercadorias e comercializadas em escala

mundial . As informações, os entretenimentos e as idéias são produzi­

dos, comercializados e consumidos como mercadorias.

Hoje passamos da produção de artigos empacotados para o empa­

cotamento de informações. Antigamente invadíamos os mercados

estrangeiros com mercadorias. Hoje invadimos culturas inteiras com

/V A C S S , V\ ( £ Biblioteca j= '

M E T Á F O R A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O \ . /

pacotes de informações, entretenimentos e ideias. Em vista^Ua-iss^

tantaneidade dos novos meios de imagem e de som, até o jornal é

lento. 3

A metáfora torna-se mais autêntica e viva quando se reconhece

que ela praticamente prescinde da palavra, to rnando a imagem predo­

minante, como forma de comunicação, informação e fabulação. A

eletrônica propicia não só a fabricação de imagens, do mundo como

um caleidoscópio de imagens, mas t a m b é m permite jogar com as

palavras c o m o imagens. A máquina impressora é subst i tuída pelo

aparelho de televisão e outras tecnologias eletrônicas, tais como ddd,

telefone celular, fax, computador , rede de computadores , todos atra­

vessando fronteiras, sempre on Une everywhere worldwide ali time.

No próximo século, a Terra terá a sua consciência coletiva suspensa

sobre a face do planeta, em uma densa sinfonia eletrônica, na qual

todas as nações — se ainda existirem como entidades separadas —

viverão em uma teia de sinestesia espontânea, adquirindo penosa­

mente a consciência dos triunfos e mutilações de uns e outros. De­

pois desse conhecimento, desculpam-se. Já que a era eletrônica é

total e abrangente, a guerra atômica na aldeia global não pode ser

limitada. 4

Nesse sentido é que a aldeia global envolve a idéia de comunida­

de mundial , mundo sem fronteiras, shopping center global, Disney-

lândia universal.

3 Marshall McLuhan, "A Imagem, o Som e a Fúria", Bernard Rosenberg e David Manning White (organizadores), Cultura de massa, tradução de Octávio Mendes Cajado, Editora Cultrix, São Paulo, 1973, pp. 563-570; citação das pp. 564-565.

4 Marshall McLuhan e Bruce R. Powers, The Global Village, Oxford University Press, Nova York, 1989, p. 95.

17

Page 9: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

Em todos os lugares, tudo cada vez mais se parece com tudo o mais,

à medida que a estrutura de preferências do mundo é pressionada

para um ponto comum homogeneizado. 5

"Fábrica g lobal" sugere uma transformação quantitativa e quali­

tativa do capitalismo além de todas as fronteiras, subsumindo formal

ou realmente todas as outras formas de organização social e técnica

d o t raba lho , da produção e reprodução ampliada do capital . Toda

economia nacional, seja qual for, torna-se província da economia glo­

bal. O m o d o capitalista de produção entra em uma época propr ia­

mente global, e não apenas internacional ou multinacional. Assim, o

mercado, as forças produtivas, a nova divisão internacional do t raba­

lho , a r e p r o d u ç ã o ampl iada d o capi ta l desenvolvem-se em escala

mundia l . Uma globalização que, progressiva e cont radi tor iamente ,

subsume real ou formalmente outras e diversas formas de organização

das forças produtivas, envolvendo a produção material e espiritual.

Já "é evidente que os países em desenvolvimento estão agora ofere­

cendo espaços para a lucrativa manufatura de produtos industriais

destinados ao mercado mundial, em escala crescente". 6

Isto se deve a vários fatores, entre os quais destacam-se os seguintes:

Primeiro, um reservatório de mão-de-obra praticamente inesgotável

tornou-se disponível nos países em desenvolvimento nos últimos sé­

culos... Segundo, a divisão e subdivisão do processo produtivo estão

agora tão avançadas que a maioria destas operações fragmentadas

pode ser realizada com um mínimo de qualificação profissional

5 Theodore Levitt, A imaginação de marketing, tradução de Auriphebo Berrance Simões, Editora Atlas, São Paulo, 1991, p. 43.

6 Folker Frobel, Jurgen Heinrichs e Otto Kreye, The New Internatio­nal Division of Labour (Structural Unemployment in Industrialised Countries and Industrialization in Developing Countries), tradução de Pete Burgess, Cambridge University Press, Cambridge, 1980, p. 13.

¡ 8

M E T Á F O R A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

7 Folker Frobel, Jurgen Heinrichs e Otto Kreye, The Netv International Division of Labour, citado, p. 13. Consultar também: Joseph Grunwald e Kenneth Flamm, The Global Factory, The Brookings Institution, Washington, 1985.

19

adquirida em pouco tempo.. . Terceiro, o desenvolvimento das técni­

cas de transporte e comunicações cria a possibilidade, em muitos

casos, da produção completa ou parcial de mercadorias em qualquer

lugar do mundo; uma possibilidade não mais influenciada por fato­

res técnicos, organizacionais ou de custos. 7

A fábrica global instala-se além de toda e qualquer fronteira, arti­

culando capital, tecnologia, força de trabalho, divisão do trabalho so­

cial e outras forças produtivas. Acompanhada pela publicidade, a mídia

impressa e eletrônica, a indústria cultural, misturadas em jornais, revis­

tas, livros, programas de rádio, emissões de televisão, videoclipe, fax,

redes de computadores e outros meios de comunicação, informação e

fabulação, dissolve fronteiras, agiliza os mercados, generaliza o consu­

mismo. Provoca a desterritorialização e a reterritorialização das coisas,

gentes e idéias. Promove o redimensionamento de espaços e tempos.

Logo se vê que a fábrica global é tanto metáfora como realidade.

Aos poucos, sua dimensão real impõe-se ao emblema, à poética. O que

se impõe, com força avassaladora, é a realidade da fábrica da sociedade

global, altamente determinada pelas exigências da reprodução amplia­

da do capital. N o âmbito da globalização, revelam-se às vezes transpa­

rentes e inexoráveis os processos de concentração e centralização do ca­

pital, articulando empresas e mercados, forças produtivas e centros de­

cisórios, alianças estratégicas e planejamentos de corporações, tecendo

províncias, nações e continentes, ilhas e arquipélagos, mares e oceanos.

"Nave espacial" sugere a viagem e a travessia, o lugar e a dura­

ção, o conhecido e o incógnito, o destinado e o transviado, a aventu

ra e a desventura. A magia da nave espacial vem junto com o destino

desconhecido. O deslumbramento da travessia traz consigo a tensão

do que pode ser impossível. Os habitantes da nave podem ser levados

Page 10: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

a uma sucessão de perplexidades, reconhecendo a impossibilidade de

desvendar o devir.

Organizar uma entidade que abarca o planeta não é uma empresa

insignificante... Propor uma assembléia que representasse todos os

homens seria como fixar o número exato dos arquétipos platônicos,

enigma que tem ocupado durante séculos a perplexidade dos pensa­

dores. 8

A metáfora da nave espacial pode muito bem ser o emblema de co­

m o a modernidade se desenvolve no século XX, prenunciando o XXI.

Leva consigo a dimensão pessimista embutida na utopia-nostalgia es­

condida na modernidade. Pode ser o produto mais acabado, por en­

quanto , da razão iluminista. Depois de seus desenvolvimentos mais no ­

táveis, através dos séculos XIX e XX, a razão iluminista parece ter al­

cançado seu momento negativo extremo: nega-se de modo radical, ni­

ilista, anulando toda e qualquer utopia-nostalgia. E isto atinge o paro­

xismo na dissolução do indivíduo como sujeito da razão e da história.

A crise da razão se manifesta na crise do indivíduo, por meio da qual

se desenvolveu. A ilusão acalentada pela filosofia tradicional sobre o

indivíduo e sobre a razão — a ilusão da sua eternidade — está se dis­

sipando. O indivíduo outrora concebia a razão como um instrumen­

to do eu, exclusivamente. Hoje, ele experimenta o reverso dessa auto-

deificação. A máquina expeliu o maquinista; está correndo cegamen­

te pelo espaço. N o momento da consumação, a razão tornou-se irra­

cional e embrutecida. O tema deste tempo é a autopreservação,

embora não exista mais um eu a ser preservado. 9

8 Jorge Luis Borges, El libro de arena, Alianza Editorial, Madri, 1981, pp. 26-27; citação de "El Congreso".

9 Max Horkheimer, Eclipse da razão, tradução de Sebastião Uchoa Leite, Editorial Labor do Brasil, Rio de Janeiro, 1976, p. 139. Consultar também: Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, Dialética do esclare­cimento (Fragmentos Filosóficos), tradução de Guido Antonio de Al­meida, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1985.

20

M E T Á F O R A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

Aí está uma conotação surpreendente da modernidade, na época

tia globalização: o declínio do indivíduo. Ele própr io , singular e cole­

tivamente, produz e reproduz as condições materiais e espirituais da

sua subordinação e eventual dissolução. A mesma fábrica da socieda­

de global, em que se insere e que ajuda a criar e recriar cont inuamen­

te, torna-se o cenário em que desaparece.

Ocorre que a tecnificação das relações sociais, em todos os níveis,

universaliza-se. Na mesma proporção em que se dá o desenvolvimen­

to extensivo e intensivo do capitalismo no mundo , generaliza-se a ra­

cionalidade formal e real inerente ao modo de operação do mercado,

da empresa, do aparelho estatal, do capital, da administração das coi­

sas, de gentes e idéias, tudo isso codificado nos princípios do direito.

Juntam-se aí o direito e a contabilidade, a lógica formal e a calculabi-

lidade, a racionalidade e a produtividade, de tal maneira que em todos

os grupos sociais e instituições, em todas as ações e relações sociais,

tendem a predominar os fins e os valores constituídos no âmbito do

mercado, da sociedade vista como um vasto e complexo espaço de

trocas. Esse é o reino da racionalidade instrumental, em que também

o indivíduo se revela adjetivo, subalterno.

A razão universal supostamente absoluta rebaixou-se à mera racio­

nalidade funcional, a serviço do processo de valorização do dinheiro,

que não tem sujeito, até a atual capitulação incondicional das chama­

das "ciências do espírito". O universalismo abstrato da razão ociden­

tal revelou-se como mero reflexo da abstração real objetiva do

dinheiro. 1 0

N a metáfora da nave espacial esconde-se a da "torre de Babel". A

nave pode ser babélica. Um espaço caótico, tão babélico que os indiví­

duos singular e coletivamente têm dificuldade para compreender que se

acham extraviados, em declínio, ameaçados ou sujeitos à dissolução.

1 0 Robert Kurz, O colapso da modernização, tradução de Karen Elsabe Barbosa, Editora Paz e Terra, São Paulo, 1992, p. 239.

Page 11: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

N o início tudo estava numa ordem razoável na construção da Torre dej

Babel; talvez a ordem fosse até excessiva, pensava-se demais em sinali­

zações, intérpretes, alojamentos de trabalhadores e vias de comunica­

ção, como se à frente houvesse séculos de livres possibilidades de tra­

balho. (...) O essencial do empreendimento todo é a idéia de construir

uma torre que alcance o céu. Ao lado dela tudo o mais é secundário.

Uma vez apreendida na sua grandeza, essa idéia não pode mais desa­

parecer; enquanto existirem homens, existirá também o forte desejo de

construir a torre até o fim. (...) Cada nacionalidade queria ter o aloja­

mento mais bonito; resultaram daí disputas que evoluíram até lutas

sangrentas. Essas lutas não cessaram mais. (...) As pessoas porém não

ocupavam o tempo apenas com batalhas; nos intervalos embelezava-se

a cidade, o que entretanto provocava nova inveja e novas lutas. (...) A

isso se acrescentou que já a segunda ou terceira geração reconheceu o

sem sentido da construção da torre do céu, mas já estavam todos mui­

to ligados entre si para abandonarem a cidade. 1 1

A Babel escondida no emblema da nave espacial pode revelar ain­

da mais nitidamente o que há de trágico no modo pelo qual se dá a globa l ização . Nes t a a l tura da h is tór ia , p a r a d o x a l m e n t e , t odos se

entendem. H á até mesmo uma língua comum, universal, que permite

um mínimo de comunicação entre todos. A despeito das diversidades

civilizatórias, culturais, religiosas, lingüísticas, históricas, filosóficas,

científicas, artísticas e outras, o inglês tem sido adotado como a vul­

gata da globalização. Nos quatro cantos do mundo , esse idioma está

n o mercado e na mercadoria, na imprensa e na eletrônica, na prática

e n o pensamento, na nostalgia e na utopia. É o idioma do mercado

universal, do intelectual cosmopolita, da epistemologia escondida n o

computador , d o Prometeu eletrônico.

O inglês tem sido promovido com sucesso e tem sido avidamente

adotado no mercado lingüístico global. Um sintoma do impacto do

1 1 Franz Kafka, "O Brasão da Cidade", tradução de Modesto Carone, Folha de S. Paulo, São Paulo, 3 de janeiro de 1993, p. 5 do caderno "Mais".

M E T Á F O R A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

1 2 Robert Phillipson, Linguistic Imperialism, Oxford University Press, Oxford, 1992, p. 7. Consultar também: Claude Truchot, L'anglais dans le monde contemporain, Le Robert, Paris, 1990.

inglês é o empréstimo lingüístico. O inglês se impõe a todas as línguas

com as quais entra em conta to . 1 2

De repente, nessa nave espacial, uma espécie de babel-teatromún-

di, instala-se um pathos surpreendente e fascinante. Arrasta uns e ou­

tros numa travessia sem fim, com destino incerto, arriscada a seguir

pelo infinito. Algo inexorável e assustador parece ter resultado do em­

penho do indivíduo, singular e coletivo, para emancipar-se. A razão

parece incapaz de redimir, depois de tanta promessa. Mais que isso, o

castigo se revela maior que o pecado. A utopia da emancipação indi­

vidual e coletiva, nacional e mundial , parece estar sendo punida com

a globalização tecnocrática, instrumental, mercantil , consumista. A

mesma razão que realiza o desencantamento do mundo , de m o d o a

emancipá-lo, aliena mais ou menos inexoravelmente todo o mundo .

Vistas assim, como emblemas da globalização, as metáforas des­

vendam traços fundamentais das configurações e movimentos da so­

ciedade global. São faces de um objeto caleidoscópico, del ineando

fisionomias e movimentos do real , emblemas da sociedade global

desafiando a reflexão e a imaginação.

A metáfora está sempre no pensamento científico. N ã o é apenas

um artifício poético, mas uma forma de surpreender o imponderável,

fugaz, recôndito ou essencial, escondido na opacidade do real. A me­

táfora combina reflexão e imaginação. Desvenda o real de forma poé­

tica, mágica. Ainda que não revele tudo , e isto pode ser impossível,

sempre revela algo fundamental. Apreende uma conotação insuspeita-

da , um segredo, o essencial, a aura . Tan to assim que ajuda a com­

preender e explicar, ao mesmo tempo que capta o que há de dramát i ­

co e épico na realidade, desafiando a reflexão e a imaginação. Em cer­

tos casos, a metáfora desvenda o pathos escondido nos movimentos

da história.

Page 12: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

Talvez se possa dizer que as metáforas produzidas nos horizontes

da globalização entram em diálogo umas com as outras , múltiplas,

plurais, polifónicas. Uma desafia e enriquece a outra, conferindo no­

vos significados a todas. É também assim que a sociedade global ad­

quire fisionomia e significados. Desde uma realidade complexa, p r o ­

blemática e caót ica, desencantam-se os sent idos, desvendam-se as

transparências.

De metáfora em metáfora chega-se à fantasia, que ajuda a reen­

carnar o mundo , produzindo a utopia. Além do que tem de própr io ,

intrínseco, significado e significante, a utopia reencanta o real proble­

mático, difícil, caótico. Mas a utopia não é nem transcrição nem nega­

ção imediatas d o real problemático. Exorciza o caótico pela sublima­

ção. Sublimação do que já se acha sublimado na cultura, no imaginá­

rio, polifonia das metáforas que povoam as aflições e as ilusões de uns

e outros .

Esse é o horizonte em que se formam e conformam as utopias flo­

rescendo no âmbito da sociedade global, de m o d o a compreendê-la e

exorcizá-la. Podem ser cibernéticas, sistêmicas, eletrônicas, pragmáti­

cas, prosaicas ou tecnocráticas. Também podem ser românticas, nos­

tálgicas, desencantadas, niilistas ou iluministas.

Faz tempo que a reflexão e a imaginação sentem-se desafiadas

para taquigrafar o que poderia ser a globalização d o mundo . Essa é

uma busca antiga, iniciada há muito t empo, cont inuando n o presen­

te, seguindo pelo futuro. N ã o termina nunca. São muitas as expres­

sões que denotam essa busca permanente, reiterada e obsessiva, em

diferentes épocas, em distintos lugares, em diversas linguagens: civili­

zados e bárbaros , nativos e estrangeiros, Babel e humanidade, paga­

nismo e cr is tandade, Ocidente e Oriente , capital ismo e socialismo,

ocidental ização d o m u n d o , Primeiro, Segundo, Terceiro e Q u a r t o

M u n d o s , nor te e sul, m u n d o sem fronteiras, capi ta l ismo mund ia l ,

socialismo mundial , terrapátria, planeta Terra , ecossistema planetá­

rio, fim da geografia, fim da história.

São emblemas de alegorias de todo o m u n d o . Assinalam ideais,

hor izontes , possibil idades, ilusões, u topias , nostalgias . Expressam

24

M E T Á F O R A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

inquietações sobre o presente e ilusões sobre o futuro, compreenden­

do muitas vezes o passado. A utopia pode ser a imaginação do futuro,

assim como a nostalgia pode ser a imaginação do passado. Em todos

os casos está em causa o protesto diante d o presente, ou o estranha­

mento em face da realidade.

Em geral, a utopia e a nostalgia florescem nas épocas em que se

acentuam os ritmos das transformações sociais, quando se multipli­

cam os desencontros entre as mais diversas esferas da vida sócio-cul-

tural, bem como das condições econômicas e políticas. São épocas em

que os desencontros entre o contemporâneo e o não-contemporâneo

acentuam-se, aprofundam-se. Esse é o contexto em que a reflexão e a

imaginação jogam-se na construção de utopias e nostalgias.

Mas umas e outras não se apagam de um momento para ou t ro .

Ao contrár io, permanecem no imaginário. Transformam-se em pon­

tos de referência, marcas no mapa histórico e geográfico do mundo .

Inclusive podem recriar-se com novos elementos engendrados pelas

configurações e movimentos da sociedade global.

Esse é o horizonte em que as mais diversas utopias e nostalgias

constituem-se como uma rede de articulações que tecem a história e a

geografia d o mapa do mundo . "Atlânt ida" n ã o é um lugar na geogra­

fia nem um momento da história, mas uma alegoria da imaginação.

Ela se mantém escondida na rede de utopias e nostalgias que povoam

o mundo . M u d o u de nome, adquiriu outras conotações, transfigurou-

se. M a s continua um emblema excepcional do pensamento e da fabu-

lação. "Babel" também não é um lugar na geografia nem um momen­

to da história. Flutua pelo tempo e o espaço, ao acaso de imaginação

de uns e out ros , povoando as inquietações de muitos. Diante dos de­

sencontros que atravessam o tempo e o espaço, quando se acentuam

as não-contemporane idades , q u a n d o de repente t udo se precipita,

a b a l a n d o quad ros de referência, t r ans formando as bases sociais e

imaginárias de nosso tempo, dissolvendo visões do mundo , nessa épo­

ca até mesmo a alegoria babélica permite a ilusão de um mínimo de

articulação.

2 5

Page 13: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

CAPITULO 2 As economias-mundo

Page 14: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

A história moderna e contemporânea pode ser vista como uma histó­

ria de sistemas coloniais, sistemas imperialistas, geoeconomias e geo­

políticas. Cenário da formação e expansão dos mercados, da indus­

trialização, da urbanização e da ocidentalização, envolvendo nações e

nacionalidades, culturas e civilizações. Algumas das nações mais po­

derosas, em cada época, articulam colônias, protetorados ou territó­

rios em conformidade com suas estratégias, geoeconomias e geopolí­

ticas. As guerras e revoluções povoam largamente essa história, reve­

lando articulações e tensões que emergem e desdobram o jogo das for­

ças sociais " internas" e "externas" nas metrópoles, nas colônias, nos

p ro te to rados , nos ter r i tór ios , nos ent repos tos , nos enclaves e nas

nações dependentes.

É claro que a história moderna e contemporânea está ponti lhada

de países, sociedades nacionais, Estados-nações, mais ou menos de­

senvolvidos, ar t iculados, institucionalizados. Ao longo da história,

conforme ocorre depois da Segunda Guerra Mundial , a maioria dos

povos de todos os continentes, ilhas e arquipélagos está filiada a Esta­

dos nacionais independentes. E esta tem sido uma constante nas ciên­

cias sociais: a história moderna e contemporânea tem sido vista como

29

Page 15: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

u m a história de sociedades nacionais , ou Estados-nações . Mu i to s

cientistas sociais dedicaram-se e cont inuam a dedicar-se às relações

internacionais, diplomáticas, colonialistas, imperialistas e às descolo­

nizações, às dependências e interdependências. Mas no pensamento

da maioria tende a predominar o emblema do Estado-nação. Os pro­

blemas com os quais se preocupam, aos quais dedicam pesquisas, in­

terpretações e debates, relacionam-se principalmente com a forma­

ção, organização, ascensão, ruptura ou declínio do Estado-nação, sob

seus diversos aspectos.

Cada vez mais, no entanto, o que preocupa muitos pesquisadores

no século XX, em particular depois da Segunda Guerra Mundial , é o

conhecimento das realidades internacionais emergentes, ou realidades

propriamente mundiais. Sem deixar de continuar a contemplar a socie­

dade nacional , em suas mais diversas configurações, mui tos empe­

nham-se em desvendar as relações, os processos e as estruturas que

transcendem o Estado-nação, desde os subalternos aos dominantes .

Empenham-se em desvendar os nexos políticos, econômicos, geoeconô-

micos, geopolíticos, culturais, religiosos, lingüísticos, étnicos, raciais e

todos os que articulam e tensionam as sociedades nacionais, em âmbi­

to internacional, regional, multinacional, transnacional ou mundial .

A idéia de "economias-mundo" emerge nesse horizonte, diante

dos desafios das atividades, produções e transações que ocorrem tan­

to entre as nações como por sobre elas, e além dessas, mas sempre en-

volvendo-as em configurações mais abrangentes. Quando o pesquisa­

dor combina o olhar do historiador com o do geógrafo, logo revelam-

se configurações e movimentos da realidade social que transcendem o

feudo, a província e a nação, assim como transcendem a ilha, o arqui­

pélago e o continente, atravessando mares e oceanos.

O conceito de "economia-mundo" está presente em estudos de

Braudel e Wallerstein, precisamente pesquisadores que c o m b i n a m

muito bem o olhar do historiador com o do geógrafo. É verdade que

Wallerstein prefere a noção de "s is tema-mundo", ao passo que Brau­

del a de "economia-mundo" , mas ambos mapeiam a geografia e a his-

3 0

AS E C O N O M I A S M U N D O

:-. i

a com base na primazia do econômico, na idéia de que a história

ie constitui em um conjunto, ou sucessão, de sistemas econômicos

mundiais. Mundiais no sentido de que transcendem a localidade e a

província, o feudo e a cidade, a nação e a nacionalidade, cr iando e re­

m a n d o fronteiras, assim como fragmentando-as ou dissolvendo-as.

Eles lêem as configurações da história e da geografia como uma suces­

são , ou coleção, de economias-mundo. Descrevem atenta e minucio­

samente os fatos, as atividades, os intercâmbios, os mercados, as p ro­

duções, as inovações, as tecnificações, as diversidades, as desigualda­

des, as tensões e os conflitos. Apanham a ascensão e o declínio das

economias -mundo . M o s t r a m c o m o Veneza , H o l a n d a , Ing la te r ra ,

Trança, Alemanha, Estados Unidos, Japão e os demais países ou cida­

des, cada um a seu tempo e lugar, polarizam configurações e movi­

mentos mundiais. Permitem reler o mercantilismo, o colonialismo, o

imperialismo, o bloco econômico, a geoeconomia e a geopolítica em

termos de economias-mundo. Reescrevem a história do capitalismo,

como n o caso de Wallerstein, ou a história universal, c o m o n o de

Braudel, em conformidade com a idéia de economia-mundo.

Vale a pena precisar um pouco os conceitos, nas palavras de seus

autores. Logo se evidenciam as originalidades de cada um, bem como

as recorrências recíprocas.

Vejamos inicialmente o conceito de "economia-mundo" de acor­

do com Braudel:

Por economia mundial entende-se a economia do mundo globalmen­

te considerado, "o mercado de todo o universo", como já dizia

Sismondi. Por economia-mundo, termo que forjei a partir do alemão

Weltwirtschaft, entendo a economia de uma porção do nosso plane­

ta somente, desde que forme um todo econômico. Escrevi, já há mui­

to tempo, que o Mediterrâneo no século XVI era, por si só, uma (...)

economia-mundo, ou como também se poderia dizer, em alemão (...)

"um mundo em si e para si". Uma economia-mundo pode definir-se

como tripla realidade:

Page 16: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

• Ocupa um determinado espaço geográfico; tem portanto limites,

que a explicam, e que variam, embora bastante devagar. De tempos

a tempos, com longos intervalos, há mesmo inevitavelmente ruptu­

ras. Foi o que aconteceu a seguir aos Descobrimentos do final do sé­

culo XV. E foi o que aconteceu em 1689, quando a Rússia, por mer­

cê de Pedro, o Grande, se abriu à economia européia. Imaginemos

uma franca, total e definitiva abertura das economias da China e da

U.R.S.S., hoje (1985): dar-se-ia, então, uma ruptura dos limites do

espaço ocidental, tal como atualmente existe.

• Uma economia-mundo submete-se a um pólo, a um centro, repre­

sentado por uma cidade dominante, outrora um Estado-cidade, hoje

uma grande capital, uma grande capital econômica, entenda-se (nos

Estados Unidos, por exemplo, Nova York e não Washington). Aliás,

podem coexistir, e até de forma prolongada, dois centros numa mes­

ma economia-mundo: Roma e Alexandria, no tempo de Augusto, e de

Antônio e Cleópatra, Veneza e Gênova, no tempo da guerra pela pos­

se de Chioggia (1378-1381), Londres e Amsterdã, no século XVIII,

antes da eliminação definitiva da Holanda. É que um dos centros aca­

ba sempre por ser eliminado. Em 1929, o centro do mundo passou

assim, hesitante mas inequivocamente, de Londres para Nova York.

• Todas as economias-mundo se dividem em zonas sucessivas. Há o

coração, isto é, a zona que se estende em torno do centro: as Pro­

víncias Unidas nem todas, porém, quando, no século XVII, Amster­

dã domina o mundo; a Inglaterra (não toda), quando Londres, a par­

tir de 1780, suplantou definitivamente Amsterdã. Depois, vêm as

zonas intermédias à volta do eixo central e, finalmente, surgem as

margens vastíssimas que, na divisão do trabalho que caracteriza uma

economia-mundo, mais do que participantes são subordinadas e

dependentes. Nestas zonas periféricas, a vida dos homens faz lembrar

freqüentemente o Purgatório ou o Inferno. E isso explica-se simples­

mente pela sua situação geográfica. 1

1 Fernand Braudel, A dinâmica do capitalismo, tradução de Carlos da Veiga Ferreira, 2'. edição, Editorial Teorema, Lisboa, 1986, pp. 85-87. A primeira edição do original em francês é de 1985. Consultar também:

32

AS E C O N O M I A S - M U N D O

Fernand Braudel, O Mediterrâneo e o mundo mediterrâneo na época de Felipe II, 2 vols., Martins Fontes Editora, Lisboa, 1984; sem indicação do tradutor. A primeira edição do original em francês é de 1966. Fernand Braudel, Civilisation matérielle, économie et capitalisme, XVe-XVIIIe Siècles, 3 vols., Librairie Armand Colin, Paris, 1979.

2 Immanuel Wallerstein, El moderno sistema mundial (La agricultura capitalista y los origines de la economia-mundo europea en el siglo XVI), tradução de Antonio Resines, Siglo Veintiuno Editores, México, 1979.

3 3

Cabe agora refletir sobre o conceito de "s i s tema-mundo" , a par-

r das expressões de Wallerstein:

Um sistema mundial é um sistema social, um sistema que possui limi­

tes, estrutura, grupos, membros, regras de legitimação e coerência. Sua

vida resulta das forças conflitantes que o mantêm unido por tensão e o

desagregam, na medida em que cada um dos grupos busca sempre

reorganizá-lo em seu benefício. Tem as características de um organis­

mo, na medida em que tem um tempo de vida durante o qual suas

características mudam em alguns dos seus aspectos, e permanecem

estáveis em outros. Suas estruturas podem definir-se como fortes ou

débeis em momentos diferentes, em termos da lógica interna de seu

funcionamento. (...) Até o momento só têm existido duas variedades

de tais sistemas mundiais: impérios-mundo, nos quais existe um único

sistema político sobre a maior parte da área, por mais atenuado que

possa estar o seu controle efetivo; e aqueles sistemas nos quais tal siste­

ma político único não existe sobre toda ou virtualmente toda a sua ex­

tensão. Por conveniência, e à falta de melhoi termo, utilizamos o termo

"economias-mundo" para definir estes últimos. (...) A peculiaridade

do sistema mundial moderno é que uma economia-mundo tenha

sobrevivido por quinhentos anos e que ainda não tenha chegado a

transformar-se em um império-mundo, peculiaridade que é o segredo

da sua fortaleza. Esta peculiaridade é o aspecto político da forma de

organização econômica chamada capitalismo. O capitalismo tem sido

capaz de florescer precisamente porque a economia-mundo continha

dentro dos seus limites não um, mas múltiplos sistemas políticos. 2

Page 17: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

j T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

É claro que o pensamento de Braudel e Wallerstein distinguem-se

sob vários aspectos, tanto no que se refere ao universo empírico como

n o relativo ao enfoque teórico. Braudel propõe uma espécie de teoria

geral geo-histórica, contemplando as mais diversas configurações de

economias-mundo. E está influenciado pelo funcionalismo originário

de Durheim e desenvolvido por Simiand e outros, combinando histó

ria, sociologia, geografia, antropologia e outras disciplinas. Ao passo

que Wallerstein debruça-se sobre o capitalismo moderno, apoiando-

se em recursos metodológicos muitas vezes semelhantes aos do estru­

turalismo marxista.

As análises de Braudel são principalmente historiográficas e geo­

gráficas. Contemplam os acontecimentos, macro e micro, locais, pro­

vinciais, nacionais, regionais e internacionais, tendo em conta as dinâ­

micas e diversidades de espaços e tempos. A noção de "longa dura­

ç ã o " é bem expressiva das preocupações e descobertas de Braudel. A

longa duração é algo que se apreende nas temporalidades e cartogra­

fias articuladas nas tendências seculares.

A história tradicional, atenta ao tempo breve, ao indivíduo, ao even­

to, habituou-nos há muito tempo a sua narrativa precipitada, dramá­

tica, de fôlego curto. A nova história econômica e social põe no pri­

meiro plano de sua pesquisa a oscilação cíclica e assenta sobre sua

duração: prendeu-se à miragem, também à realidade das subidas e

descidas cíclicas dos preços. Hoje, há assim, ao lado do relato (ou do

"recitativo" tradicional), um recitativo da conjuntura que põe em

questão o passado por largas fatias: dez, vinte ou cinqüenta anos.

pp. 489-491. Consultar também: Immanuel Wallerstein, El moderno sis­tema mundial (II. El mercantilismo y la consolidación de la economia-mundo europea 1600-1750), tradução de Pilar López Mañez, Siglo Veintiuno Editores, México, 1984; Imannuel Wallerstein, The Modern World-System III (The Second Era of Great Expansion of The Capitalist World-Economy, 1730-1840s), Academic Press, Nova York, 1989.

AS E C O N O M I A S - M U N D O

Bem além desse segundo recitativo, situa-se uma história de respira­

ção mais contida ainda, e, desta vez, de amplitude secular: a história

de longa, e mesmo, de longuíssima duração. (...) Além dos ciclos e

interciclos, há o que os economistas chamam, sem estudá-la, sempre,

a tendência secular. Mas ela ainda interessa apenas a raros economis­

tas e suas considerações sobre as crises estruturais, não tendo sofrido

a prova das verificações históricas, se apresentam como esboços ou

hipóteses, apenas enterrados no passado recente, até 1929, quando

muito até o ano de 1870. Entretanto, oferecem útil introdução à his­

tória de longa duração. São uma primeira chave. A segunda, bem

mais útil, é a palavra estrutura. Boa ou má, ela domina os problemas

da longa duração. Por estrutura, os observadores do social entendem

uma organização, uma coerência, relações bastante fixas entre reali­

dades e massas sociais. Para nós, historiadores, uma estrutura é, sem

dúvida, articulação, arquitetura, porém mais ainda, uma realidade

que o tempo utiliza mal e veicula mui longamente. Certas estruturas,

por viverem muito tempo, tornam-se elementos estáveis de uma infi­

nidade de gerações: atravancam a história, incomodam-na, portanto,

comandam-lhe o escoamento. Outras estão mais prontas a se esface­

lar. Mas todas são, ao mesmo tempo, sustentáculos e obstáculos.

Obstáculos , assinalam-se como limites (envolventes, no sentido

matemático) dos quais o homem e suas experiências não podem

libertar-se. Pensai na dificuldade em quebrar certos quadros geográ­

ficos, certas realidades biológicas, certos limites da produtividade,

até mesmo estas ou aquelas coerções espirituais: os quadros mentais

também são prisões de longa duração. 3

3 Fernand Braudel, Escritos sobre a História, tradução de J. Guineburg e Tereza Cristina Silveira da Mota, Editora Perspectiva, São Paulo, 1978, pp. 44 e 49-50; citações do ensaio "História e Ciências Sociais: a Longa Duração", pp. 41-78.

Page 18: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

Ao passo que Wallerstein focaliza prioritariamente a anatomia e

a dinâmica das realidades econômicas e políticas do capitalismo m o ­

derno, que denomina de capitalismo histórico. São realidades vistas

em âmbi to nacional e internacional, compreendendo colonialismos,

imperialismos, dependências, interdependências, hegemonias, tensões

e conflitos. Esse o contexto das guerras e revoluções, destacando-se

em especial os movimentos anti-sistêmicos. Vejamos, pois, a dinâmi­

ca da economia-mundo, conforme escrevia Wallerstein em 1983 :

O capitalismo histórico funcionava numa economia-mundo, mas

não num Estado-mundo. Mui to pelo contrário. Como vimos, as

pressões estruturais militaram contra qualquer edificação de um

Estado-mundo. Neste sistema, sublinhamos o papel decisivo dos

múltiplos Estados — estruturas políticas as mais poderosas e, ao

mesmo tempo, como poder limitado. Por isso, a reestruturação de

determinado Estado representava, para a força de trabalho, o cami­

nho mais promissor para melhorar sua posição e, ao mesmo tempo,

um caminho de valor limitado. Devemos começar com o que enten­

demos por movimentos anti-sistêmicos. A expressão implica algum

impulso coletivo de uma natureza mais que momentânea. De fato, é

claro que ocorreram protestos ou levantes um tanto espontâneos da

força de t rabalho , em todos os sistemas históricos conhecidos.

Serviam como válvulas de escape para uma raiva contida; ou, por

vezes, um pouco mais eficazmente, como mecanismos que colocavam

limites mínimos aos processos de exploração. Mas, falando generica­

mente, a rebelião como técnica só funcionava às margens da autori­

dade central, e principalmente quando as burocracias centrais esta­

vam em fase de desintegração. (...) Quando as duas variantes de

movimentos anti-sistema se difundiram (os movimentos trabalhistas-

socialistas, a partir de poucos Estados fortes para todos os outros, e

os movimentos nacionalistas, de poucas zonas periféricas para todo

o resto), a diferença entre os dois tipos de movimento tornou-se cada

vez mais indistinta. Os movimentos trabalhistas-socialistas descobri­

ram que os temas nacionalistas eram decisivos para seus esforços de

36

AS E C O N O M I A S - M U N D O

mobilização e para seu exercício do poder no Estado. (...) Uma das

forças dos movimentos anti-sistema era o fato de que chegaram ao

poder em grande número de Estados. Isso alterou as políticas vigen­

tes no sistema mundial. Mas essa força foi também uma fraqueza,

visto que os chamados regimes pós-revolucionários continuavam a

funcionar como se fosse para a divisão social do trabalho do capita­

lismo histórico. Operavam aí, a contragosto, sob as pressões inflexí­

veis da direção para a acumulação interminável do capital. 4

Note-se que para Wallerstein a "economia-mundo" está organi­

zada com base no que ele próprio denomina "capitalismo his tór ico",

0 que M a r x havia denominado simplesmente "capital ismo" ou " m o ­

do capitalista de p rodução" e Weber denominara "capitalismo mo­

derno" . A sua originalidade está em reconhecer que o capitalismo ex­

pandiu-se cont inuamente pelas mais diversas e distantes par tes d o

mundo, o que desafia o pensamento científico no século XX, particu­

larmente nas ciências sociais. Ainda que nem sempre contemple as

interpretações que haviam sido desenvolvidas por M a r x e Weber , no

que é acompanhado por Braudel, oferece sugestões importantes para

a análise das características do capitalismo como economia-mundo:

Na história moderna, as reais fronteiras dominantes da economia-

mundo capitalista expandiram-se intensamente desde as suas origens

no século XVI, de tal maneira que hoje elas cobrem toda a Terra. (...)

Uma economia-mundo é constituída por uma rede de processos pro­

dutivos interligados, que podemos denominar "cadeias de merca­

dorias", de tal forma que, para qualquer processo de produção na ca­

deia, há certo número de vínculos para adiante e para trás, dos quais

o processo em causa e as pessoas nele envolvidas dependem. (...)

4 Immanuel Wallerstein, O capitalismo histórico, tradução de Denise Bottmann, Editora Brasiliense, São Paulo, 1985, pp. 55-56, 60 e 60-61. Note-se que a primeira edição em inglês data de 1983.

37

Page 19: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

5 Immanuel Wallerstein, The Politics of the World-Economy (The States, the Movements and the Civilizations), Cambridge University Press, Cambridge, 1988, pp. 2-3; citação do cap. 1: "World Networks and the Politics of the World-Economy".

38

AS E C O N O M I A S - M U N D O

6 Jacques Attali, Milênio, tradução de R. M. Bassols, Seix Barrai, Barce­lona, 1991; Lester Thurow, Head to Head (The Coming Economic Battle Among Japan, Europe and America), William Morrow and Company, Nova York, 1992.

3 9

Nesta cadeia de mercadorias, articulada por laços que se cruzam,

ptodução está baseada no princípio da maximização da acumulaçãi

do capital. 5

É óbvio que a economia-mundo capitalista está permeada de eco

nomias-mundo menores ou regionais, organizadas em moldes colo

niais, imperialistas, geoeconômicos e geopolíticos. Ao longo da histó

ria da economia-mundo capitalista houve e continua a haver a aseen

são e queda de grandes potências, como centros dominantes de econo

mias-mundo regionais.

Desde o século XVI, sucedem-se economias-mundo de maior ou me

nor envergadura e duração, centradas em torno de Portugal

Espanha, Holanda, França, Alemanha, Rússia (em algumas décadas

do século XX também União Soviética), Inglaterra, Japão, Estado!

Unidos. Aliás, nas últimas décadas do século XX já se prenunciam

outros arranjos de economias-mundo regionais, no âmbito da econo­

mia-mundo capitalista de alcance global. Nesta época já se esboçam

economias-mundo regionais polarizadas pelas seguintes organiza­

ções ou nações: União Européia, com alguma influência no leste

europeu e ampla ascendência sobre a África; Estados Unidos, com

ampla influência em todas as Américas, do Canadá ao Chile, natural­

mente compreendendo o Caribe; Japão, com ampla influência nos

países asiáticos do Pacífico, compreendendo também a Indonésia e a

Austrália; a Rússia, polarizando a Comunidade de Estados Indepen­

dentes (CEI), ainda muito mobilizados na transição de economias

nacionais com planejamento econômico centralizado para econo­

mias nacionais de mercado aberto. É provável que a China se torne o

centro de outra economia-mundo regional, não só no contraponto

Japão-Rússia, mas também interferindo no jogo de interesses de

outras economias-mundo regionais já presentes na Ásia, como a nor­

te-americana e a européia. Naturalmente essas economias-mundo

regionais encontram-se em diferentes estágios de organização e dina­

mização; inclusive interpenetrando-se às vezes amplamente. O Japão

tem investimentos em outras regiões, assim como na Europa e nos

Estados Unidos. Nas últimas décadas do século XX, os contornos

das economias-mundo regionais estão mais ou menos esboçados,

mas não parecem consolidados. 6

Essa impressão revela-se ainda mais acentuada devido ao fato de

que desde o término da guerra fria, quando se desagrega a economia-

mundo socialista, o mundo como um todo deixou de estar rigidamen­

te polarizado entre bloco soviético ou comunista, por um lado, e blo­

co norte-americano ou capitalista, por out ro .

T o d o esse cenário, um pouco real e um pouco imaginário, obvia­

mente é t ambém um cenário de confluencias e tensões, acomodações

e contradições. São processos que já se esboçam em alguns recantos

desse novo e surpreendente mapa do mundo em formação desde o tér­

mino da guerra fria; um mapa do mundo em que se estão desenhando

várias economias-mundo regionais no âmbito de uma economia-mun­

do capitalista global.

M a s a economia-mundo capitalista, seja de alcance regional, seja

de alcance global, continua a articular-se com base no Estado-nação.

Ainda que reconheça a importância das corporações transnacionais,

Wallerstein reafirma a importância do Estado-nação soberano, mes­

m o que essa soberan ia seja l imi tada pela in te rdependênc ia d o s

Page 20: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

Estados nacionais e pela preeminência de um Estado mais forte sobre

outros . Cabe reconhecer, diz ele, que

a superestrutura da economia-mundo capitalista é um sistema de

Estados interdependentes, sistema esse no qual as estruturas políticas

denominadas "Estados soberanos" são legitimadas e delimitadas.

Longe de significar total autonomia decisória, o termo "soberania"

na realidade implica uma autonomia formal, combinada com limita­

ções reais desta autonomia, o que é implementado simultaneamente

pelas regras explícitas e implícitas do sistema de Estados interdepen­

dentes e pelo poder de outros Estados do sistema. Nenhum Estado no

sistema, nem mesmo o mais poderoso em dado momento, é total­

mente autônomo, mas obviamente alguns desfrutam de maior auto­

nomia que outros . 7

Cabe reconhecer, no entanto, que a soberania do Estado-nação

não está sendo simplesmente limitada, mas abalada pela base. Quan­

do se leva às últimas conseqüências "o princípio da maximização da

acumulação do capital" , isto se traduz em desenvolvimento intensivo

e extensivo das forças produtivas e das relações de produção, em esca­

la mundial . Desenvolvem-se relações, processos e estruturas de domi­

nação política e apropriação econômica em âmbi to global, atraves­

sando territórios e fronteiras, nações e nacionalidades. Tan to é assim

que as organizações multilaterais passam a exercer as funções de es­

truturas mundiais de poder, ao lado das estruturas mundiais de poder

constituídas pelas corporações transnacionais. É claro que não se apa­

gam o princípio da soberania nem o Estado-nação, mas são radical-

7 Immanuel Wallerstein, The Politics of the World-Economy, citado, p. 14; citação do cap. 2: "Patterns and Prospectives of the Capitalist World-Economy". Consultar também: Immanuel Wallerstein, The Capitalist World-Economy, Cambridge University Press, Cambridge, 1991, esp. parte I: "The Inequalities of Core and Periphery".

AS E C O N O M Í A S - M U N D O

8 Joseph A. Camilleri e Jim Falk, The End of Sovereignty f (The Politics of a Shrinking and Fragmenting World), Edward Elgar Publishing, Hants, Inglaterra, 1992; Bernardo Kliksberg, Cómo transformar al Estado? (Más Allá de Mitos y Dogmas), Fondo de Cultura Económica, México, 1993.

41

un me* abalados em suas prerrogativas, tan to que se limitam drastica-

p, o u simplesmente anulam, as possibilidades de projetos de capi-

i . le mo nacional e socialismo nacional. Acontece que o capitalismo,

t ni|u.iiito modo de produção e processo civilizatório, cria e recria o

l itiulo nação, assim como o princípio da soberania que define a sua

. IH ia. Ainda que esta entidade, isto é, o Estado-nação soberano,

| H i nianeça, ou mesmo se recrie, está mudando de figura, no âmbi to

. I r . < onfigurações e movimentos da sociedade global. Aliás, não é por

li uso que se multiplicam os estudos e os debates acerca do Estado-

ii i.,.i<>, enquanto processo histórico e invenção, uma realidade persis-

i. nu r problemática; e que se encontra em crise no fim do século X X ,

Quando se dá a globalização do capital ismo. 8

Wallerstein utiliza com mais freqüência o conceito de "sistema-

niundo", em geral implícito t ambém nas expressões "sistema mun­

dial", "economia-mundo" , "capitalismo histórico" e outras . Alguns

.Ir M U S seguidores, ou mesmo críticos, referem-se ao "parad igma" de

Wallerstein como uma construção baseada no conceito de sistema-

inmido. Ocorre que às vezes ele utiliza também o conceito de "econo­

mia m u n d o " em termos semelhantes aos de Braudel. Há mesmo mo­

mentos de suas reflexões em que os dois conceitos revelam-se inter-

lambiáveis. Estão fundamentalmente apoiados na análise de relações,

processos e estruturas econômicos. Mais uma vez relembram as refle­

xões de Braudel. Isto não significa que tanto um como o out ro autor

deixem de contemplar aspectos sociais, políticos e culturais. Ao con-

n.ir io, esses aspectos das "economias -mundo" , ou "sis temas-mun­

d o " , nas palavras de Wallerstein, são amiúde levados em conta. Em

suas linhas gerais, no entanto , as reflexões de Wallerstein e Braudel

priorizam os aspectos econômicos, em âmbito geográfico e histórico.

Page 21: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

9 Klaus Knorr e Sidney Verba (editores), The International System (Theoretical Essays), Princeton University Press, Princeton, 1961; Robert O. Keohane e Joseph S. Nye, Power and Interdependence, second edi­tion, Harper Collins Publishers, Nova York, 1989; George Modelski, Long Cycles in World Politics, University of Washington Press, Seattle e Londres, 1987; Karl Deutsch, Análise das relações internacionais, tradu­ção de Maria R. Ramos da Silva, Editora Universidade de Brasília, Brasília, 1982.

4 2

AS E C O N O M I A S M U N D O

i ni.ules e multipolaridades, ciclos, épocas e tendências seculares das

ptonomias-mundo. A articulação principalmente econômica d o con­

t r i to de economia-mundo está presente inclusive em boa par te dos

comentadores, seguidores e críticos de Wallerstein e Braudel.

As economias nacionais têm-se tornado crescentemente interdepen­

dentes, e os correlatos processos de produção, troca e circulação

adquir i ram alcance global . Muitas indústrias de t ipo t r aba lho-

intensivas têm sido realocadas em regiões com estruturas de custos

de t rabalho relativamente baixas. Embora as novas tecnologias

enfatizem a disponibilidade de força de trabalho altamente qualifi­

cada, elas favorecem os desenvolvimentos recentes da capacidade

produtiva em países industrialmente avançados. Esta reestrutura­

ção das atividades econômicas beneficia-se de dois fatores a tuando

conjugadamente: a rápida mudança tecnológica e a crescente inte­

gração financeira internacional. A conseqüente divisão internacio­

nal do trabalho pode beneficiar-se das variações regionais da infra-

estrutura tecnológica, condições de mercado, relações industriais e

clima político para realizar a produção global integrada e as estra­

tégias de marketing. A corporação transnacional é o mais conspí­

cuo, mas não o único, agente significativo nesse processo. Como

Immanuel Wallerstein e outros observaram, o que estamos testemu­

nhando é ou t ro estágio no desenvolvimento de um "sis tema-

mundo" , cuja característica principal é o escopo transnacional do

capital. (...) Para Wallerstein, a "economia-mundo" é agora uni­

versal, no sentido de que todos os Estados nacionais estão, em dife­

rentes graus, integrados em sua estrutura central. (...) Uma caracte­

rística importante do sistema unificado de Wallerstein é o padrão

de estratificação global, que divide a economia mundial em áreas

centrais (beneficiárias da acumulação de capital) e áreas periféricas

(em constante desvantagem pelo processo de intercâmbio desigual).

O sistema de Estados nacionais, que institucionaliza e legitima a

divisão centro-periferia, também concretiza, por meio de uma

4 3

Cabe acrescentar, no que se refere à noção de "sistema", ou "sis

tema mundia l" , que já se acha incorporada a teoria sistêmica das rela

ções internacionais e da sociedade mundial . A "teoria sistêmica" d

mundo , ou a visão sistêmica das relações internacionais, d o transna

cionalismo ou da mundialização, corresponde a uma abordagem fun

cionalista de base cibernética, na qual sobressaem atores individuai^

coletivos ou institucionais, compreendendo opções e decisões racioj

nais com relação a fins, objetivos ou valores definidos em te rmo

pragmáticos, relacionados à definição de posições, conquista de van

tagens ou afirmação de hegemonias. Trata-se de um enfoque prioritaj

riamente sincrónico, compreendendo o cenário internacional ou munu

dial em termos de agentes concebidos como atores em um todo sistê

mico. Assim, é uma conceituação distinta daquela presente nas noçõe

de "s is tema-mundo" ou "economia-mundo" com as quais t rabalh

Wallerstein. Por isso, pode ser conveniente priorizar o conceito d

"economia-mundo" , quando se focaliza as contribuições desse autor.

Inclusive p o d e ser conveniente ressa l tar as convergênc ias en t r

Wallerstein e Braudel, distinguindo-os da abordagem sistêmica, n

qua l es tão presentes e são fundamenta is concei tos or ig inár ios da

cibernética. 9

Além do mais, as contribuições de Wallerstein e Braudel conferem

importância especial à economia política da mundialização. Distin­

guem, de modo particularmente atento, as peculiaridades e complexi­

dades das tecnologias, formas de organização da produção, intercâm­

bios entre organizações econômicas nacionais e internacionais, pola-

Page 22: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

1 0 Joseph A. Camilleri e Jim Falk, The End of Sovereignty? (The Politics of a Shrinking and Fragmenting World), Edward Elgar Publishing Limited, Hants, Inglaterra, 1992, pp. 77-78.

1 1 Joseph A. Camilleri e Jim Falk, The End of Sovereignty?, citado, p. 89.

4 4

AS E C O N O M I A S - M U N D O

comentaristas, seguidores ou críticos, conferem especial a tenção às

> ondições não só econômicas como também sociais, políticas, demo­

r a íicas, geográficas, culturais e outras, em âmbitos local e nacional.

I >isiinguem e valorizam as diversidades e as hierarquias das formas

nodais de organização do t rabalho e da p rodução . Reconhecem as

dimensões sociais, políticas e culturais, além das econômicas, na pro­

dução e reprodução das condições de vida na cidade e no campo, com­

preendendo a cultura material e espiritual, a realidade e o imaginário.

N o limite, Braudel está fascinado pelo lugar que a França pode

ocupar no mundo . Em toda a sua longa viagem pela geografia e histó-

i i.i mundiais, procura o lugar e o destino da França. Passa pelos desa-

lios representados pela cidades e nações dominantes, centrais, metro­

politanas ou pólos de economias-mundo: Veneza, Amsterdã, Ingla-

itrra, Alemanha, Estados Unidos e outras. Reconhece o momento e a

importância de cada uma, c o m o centro de economia-mundo. M a s

continua a procurar o lugar e o destino da França nessa viagem sem

hm: "Eu o digo de uma vez por todas: amo a França ~om a mesma

paixão, exigente e complicada, de Jules Miche le t " . 1 2

N o limite, Wallerstein está empenhado em esclarecer o segredo da

primazia dos Estados Unidos da América do Norte no mundo capita­

lista, conforme ela se manifesta ao longo do século XX, particular­

mente desde a Segunda Guerra Mundial . Está rebuscando pretéritos,

antecedentes ou raízes de sistemas imperialistas. Quer esclarecer o

vaivém das grandes potências, como metrópoles de sistemas ou eco­

n o m i a s - m u n d o . Debruça-se sobre o tecido econômico , pol í t ico ,

demográfico, militar, tecnológico, cultural e ideológico que funda­

menta a primazia deste ou daquele sistema ou economia-mundo.

Deus, parece, abençoou os Estados Unidos três vezes: no presente, no

passado e no futuro. Digo que assim parece porque os caminhos de

1 2 Fernand Braudel, L'identité de la France, 3 vols., Arthaud-Flamma-rion, Paris, 1986, vol. I, p. 9.

intricada rede de relações legais, diplomáticas e militares, a distri­

buição do poder no cen t ro . 1 0

Para alguns, dentre os quais destaca-se Wallerstein, "hegemonia

envolve uma situação em que os produtos de dado Estado nacional

são produzidos tão eficientemente que se to rnam largamente compe­

titivos até mesmo em outros Estados centrais, o que significa que esse

d a d o Estado nacional será o principal beneficiário do cada vez mais

livre mercado m u n d i a l " . 1 1

Note-se, n o entanto , que o conceito de "economia-mundo" , o u

economia mundia l , sistema mundial , sistema econômico mundia l e

capitalismo histórico, conforme inspiram as pesquisas e as interpreta­

ções de Wallerstein e Braudel, está sempre relacionado com o emble­

ma Estado-nação. Ainda que seja evidente o empenho em desvendar

as realidades geográficas, históricas e econômicas da mundial ização,

o Estado-nação aparece todo o tempo, como agente, realidade, parâ­

metro ou ilusão. Esses autores acham-se, todo o tempo, comprometi ­

dos com a idéia de sociedade nacional, ou Estado-nação, como emble­

ma da realidade e d o pensamento, ou da geografia, da história e da

teoria. É claro que reconhecem que a sociedade nacional n ã o é capaz

de conter as forças da economia, política, geografia, geoeconomia,

geopolítica, história, demografia, cultura, mercado, negócios etc. Re­

conhecem que as fronteiras são contínua ou periodicamente rompi­

das, refeitas, ultrapassadas ou dissolvidas. Sabem que a nação é um

fato histórico e geográfico, um processo que se cria e recria continua­

mente. M a s priorizam o ponto de vista nacional, o emblema Estado-

nação, como universo empírico e teórico.

Tan to é assim que Braudel e Wallerstein, bem como muitos de seus

45

Page 23: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

Deus são misteriosos, e não pretendo estar seguro de entendê-los. As!

bênçãos de que falo são estas: no presente, prosperidade; no passado

liberdade; no futuro, igualdade. (...) O problema é que essas bênção

têm seu preço. (...) E nem sempre é óbvio que aqueles que recebem asj

bênçãos têm sido os que pagam o seu preço. (...) A América sempre;

se acreditou excepcional. E eu aderi a essa crença ao concentrar-nr

nas três bênçãos divinas. Entretanto, não só a América não é excep

cional, mas a excepcionalidade americana não é excepcional. Nã

somos o único país na história moderna cujos pensadores têm procu

rado provar que o seu país é historicamente único, diferente da mas J

sa dos outros países no mundo. Já encontrei franceses excepcionalis-

tas, assim como russos. Há hindus e japoneses, italianos e portugue­

ses, judeus e gregos, ingleses e húngaros excepcionalistas. O excep-|

cionalismo chinês e egípcio é uma verdadeira marca do caráter nacic^

nal. E o excepcionalismo polonês compete com qualquer outro. O

excepcionalismo é o tutano dos ossos de praticamente todas as civili­

zações que o nosso mundo tem produzido. 1 3

Ainda que formuladas em linguagens diversas das adotadas porj

Braudel e Wallerstein, inclusive porque utilizam-se mais amplamente

de noções provenientes do marxismo, Samir Amin e André Gunder

Frank também podem situar-se na mesma corrente. Estão examinan­

do as características das economias-mundo, compreendendo sistemas

geopolíticos, imperialismos, dependências, trocas desiguais, lutas por

liberação nacional, revoluções socialistas. As contribuições desses au­

tores são fundamentais para o mapeamento das novas características

da economia e política mundiais. Reconhecem que as transnacionais

desenvolvem-se além das fronteiras geográficas e políticas, indepen-

1 3 Immanuel Wallerstein, "America and the World: Today, Yesterday and Tomorrow", Theory and Society, n°. 21,1992, pp. 1 e 27. Também: Immanuel Wallerstein, "The USA in Today's World", Contemporary Marxism, n°. 4, San Francisco, 1982.

4 6

AS E C O N O M I A S - M U N D O

cientemente dos regimes políticos e das culturas nacionais. Reconhe­

cem que elas criam novos desafios a governos, a grupos sociais, a clas­

ses sociais, a coletividades, a povos, a nações e a nacionalidades, im­

pregnando seus movimentos sociais, part idos políticos, correntes de

opinião pública e meios de comunicação. Inclusive reconhecem que as

novas características do capitalismo mundial , como economias-mun-

do ou sistemas-mundo, suscitam problemas teóricos novos ainda não

equacionados, aguardando conceitos e interpretações. Deixam t rans­

parecer que as noções de soberania nacional, projeto nacional, impe­

rialismo e dependência, entre outras , não dão conta do que vai pelo

mundo.

M a s tan to Samir Amin como André Gunder Frank cont inuam in­

terpretando as configurações e os movimentos da sociedade global a

partir da perspectiva do Estado-nação. O seu pensamento continua a

inspirar-se pela tese de que , n o limite, podem realizar-se proje tos

nacionais, movimentos de liberação nacional ou anti-sistêmicos, de

modo a realizar-se a emancipação p o p u l a r . 1 4

N ã o se trata de negar os fatos que expressam as realidades locais,

nacionais, regionais ou multinacionais, envolvendo continentes, ilhas

e arquipélagos. O nosso século pode ser visto como um imenso mura l

de lutas populares, guerras entre nações, revoluções nacionais e revo­

luções sociais. E tudo isso continua vigente e fundamental no fim des­

te século XX, no limiar do XXI. O dilema consiste em constatar se es­

tá ou não havendo uma ruptura histórica em grandes proporções, em

1 4 Samir Amin, Giovanni Arrighi, André Gunder Frank, Immanuel Wal­lerstein, Le grand tumulte? (Les Mouvements Sociaux dans l'Économie-Monde), Éditions La Découverte, Paris, 1991; Samir Amin, La Déconnexion (Pour Sortir du Système Mondial), Éditions La Découverte, Paris, 1986; Samir Amin, L'Empire du Chaos, Éditions L'Harmattan, Paris, 1991; Andre Gunder Frank, Crisis: In the World Economy, Heine-mann Educational Books, Londres, 1980; Andre Gunder Frank, Critique and Anti-Critique (Essays on Dependence and Reformism), The MacMil-lan Press, Londres, 1984.

4 7

Page 24: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

âmbi to global, assinalando o declínio do Estado-nação e a emergência

de novos e poderosos centros mundiais de poder, soberania e hegemo­

nia. Nesta hipótese, o Estado-nação continua vigente, mas com signi­

ficados diversos dos que teve por longo tempo no pensamento liberal

e n o p e n s a m e n t o de a lgumas cor ren tes marx i s t a s , sem esquecer

sociais-democratas, neoliberais, fascistas e nazistas.

Ocorre que a economia-mundo, ou s is tema-mundo, em toda a

sua complexidade não só econômica, mas também social, política e

cultural , sempre transcende tudo o que é local, nacional e regional.

Repercute por todos os cantos, perto e longe. Os colonialismos e im­

perialismos espanhol , por tuguês , holandês, belga, francês, a lemão,

russo, japonês, inglês e norte-americano sempre consti tuíram e des­

t ruíram fronteiras, soberanias e hegemonias, compreendendo tribos,

clãs, nações e nacionalidades. São muitos os que reconhecem que os

Estados nacionais asiáticos, africanos e latino-americanos foram dese­

nhados , em sua quase totalidade, pelos colonialismos e imperialismos

europeus, segundo os modelos geo-histórico e teórico, ou ideológico,

configurado n o Estado-nação que se formou e predominou na Eu­

r o p a . 1 5

O emblema Estado-nação sempre teve as características simultâ­

neas e contraditórias de realidade geo-histórica e ficção. N a época da

globalização, e provavelmente de forma mui to marcan te , torna-se

mais ficção. Tal emblema está atravessado por relações, processos e

estruturas al tamente determinados pela dinâmica dos mercados , da

desterritorialização das coisas, gentes e idéias, enquanto a reprodução

ampliada do capital se globaliza, devido ao desenvolvimento extensi-

u Hugh Seton-Watson, Nations & States, Methuen, Londres, 1977; Da-wa Norbu, Culture and the Politics of Third World Nationalism, Rou-tledge, Londres, 1992; Eric R. Wolf, Europe and the People Without History, University of California Press, Berkeley, 1982; Peter Worsley, The Third World, The University of Chicago Press, Chicago, 1964; Roland Oliver, A experiência africana, tradução de Renato Aguiar, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1994.

48

AS E C O N O M I A S - M U N D O

vii c intensivo do capitalismo, compreendendo as forças produtivas,

I n - . (orno o capital, a tecnologia, a força de t rabalho e a divisão d o

trabalho social, sempre envolvendo as instituições, os padrões sócio-

i iiliurais e os ideais relativos à racionalização, produtividade, lucrati-

viil.ulc, quantidade.

Sob vários aspectos, as interpretações de Braudel e Wallerstein

contribuem decisivamente para o conhecimento das configurações e

movimentos da sociedade global em formação no final do século X X .

í verdade que seus escritos, bem como os de seus seguidores, freqüen­

temente priorizam os sistemas coloniais e os sistemas imperialistas,

distinguindo as grandes potências, em suas relações com as colônias e

os países dependentes. Descrevem o contraponto centro-periferia, ou

desenvolvimento-subdesenvolvimento. Focalizam a consti tuição, os

desenvolvimentos e as crises dos centros hegemônicos, most rando co­

mo esses processos afetam não só as metrópoles mas o conjunto dos

povos colonizados e dependentes. Assinalam o jogo das relações que

associam, tensionam e conflitam metrópoles emergentes e dominan­

tes, envolvendo suas colônias e dependências. Ficam mais ou menos

nítidas as linhas mestras da emergência, transformação e crise dos sis­

temas polarizados pelos países metropoli tanos, tais como Portugal ,

Espanha, Holanda , França, Alemanha, Bélgica, Itália, Rússia, J apão ,

Inglaterra e Estados Unidos. Algumas das linhas mestras da história

dos grandes descobrimentos marítimos, continuando pelo mercanti­

lismo, colonialismo, imperialismo, t ransnacionalismo e globalismo

revelam-se mais ou menos claras, articuladas e dinâmicas. Nesse sen­

tido é que as interpretações de Braudel e Wallerstein, juntamente com

as de seus seguidores, contribuem decisivamente para o conhecimen­

to das configurações e movimentos da sociedade global.

Com Wallerstein e Braudel estamos no âmbito da geo-história. As

realidades locais, provinciais, nacionais, regionais e mundiais são vis­

tas como simultaneamente espaciais e temporais. Envolvem relações,

processos e estruturas sociais, econômicos, políticos e culturais, mas

sempre focalizados em sua dinâmica geo-histórica. Os movimentos de

49

Page 25: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

50

AS E C O N O M I A S - M U N D O

mundo, tudo isso constitui o fundamento da dinâmica progressiva e

errática que se to rnam nos ciclos de longa duração , assinalando o nas­

cimento, a t rans formação , o declínio e a sucessão das economias -

mundo.

À medida que se desdobram os significados geo-históricos da teo­

ria das economias-mundo, em suas implicações empíricas e metodoló­

gicas, logo se evidenciam as continuidades e as rupturas entre o nacio­

nal e o mundial , o próximo e o remoto, o passado e o presente, o espa­

ço e o tempo. É como se o horizonte aberto pela globalização em cur­

so no final do século X X abrisse possibilidades novas e desconhecidas

sobre as formações sociais passadas, próximas e distantes, recentes e

remotas. Uns buscam continuidades e rupturas , outros descontinuida­

des e multiplicidades, no curso da geo-história, do cont raponto espa-

ço-tempo. É como se muito do que é passado adquirisse novo sentido,

ao mesmo t e m p o que ou t ro t an to d o que t ambém parece passado

tomasse significado de presente. Realidades e significados que pare­

ciam irrelevantes, secundários, esquecidos ou escondidos, reaparecem

sob nova luz. E tudo isso porque a ruptura geo-histórica que desven­

da a globalização do mundo , no final deste século, prenunciando con­

figurações e movimentos do século XXI, revela-se não só um evento

heurístico, mas uma ruptura epistemológica.

51

populações , mercadorias , técnicas produt ivas , instituições, padrõe

sócio-culturais e idéias, bem como os cont rapontos c idade-campo

agr icu l tu ra - indus t r i a , met rópole -co lôn ia , centro-per i fer ia , Leste

Oeste , Norte-Sul, Ocidente-Oriente, local-global, passado-presente

esses e outros contrapontos sempre são descritos e interpretados e

termos geo-históricos.

É n o âmbi to da geo-história que se inserem os fatos da geoecono

mia, da geopolítica, do ciclo econômico de longa duração, dos movi

mentos seculares. São fatos que se desdobram uns nos outros , concre

t izando-se em realidades locais, provinciais , nacionais , regionais

mundiais , envolvendo continentes, ilhas e arquipélagos, produzindo

configurações e movimentos das economias-mundo, sempre em mol­

des geo-históricos.

Em boa medida, a dinâmica das economias-mundo tem uma d

suas raízes nas diversidades e desigualdades com as quais se constitui

essa totalidade geo-histórica, implicando sempre o social, o político e

o cultural, além do econômico. Como em toda configuração social,

em sentido lato, o todo geo-histórico inerente à economia-mundo é

um todo em movimento, heterogêneo, integrado, tenso e antagônico.

É sempre problemático, atravessado pelos movimentos de integração

e fragmentação. Suas partes, compreendendo nações e nacionalida­

des, grupos e classes sociais, movimentos sociais e partidos políticos,

conjugam-se de m o d o desigual, articulado e tenso, no âmbito do to­

do . Simultaneamente, esse todo confere outros e novos significados e

movimentos às partes . Anulam-se e multiplicam-se os espaços e osi

tempos, já que se trata de uma totalidade heterogênea, contraditória ,

viva, em movimento.

Em síntese, é na própr ia dinâmica das economias -mundo que

emergem e se desenvolvem os processos que configuram os ciclos geo-

históricos de longa, média e curta durações. O mesmo jogo das forças

produtivas, a mesma dinâmica das lutas pelos mercados, o mesmo

empenho de inovar tecnologias e mercadorias, esses processos que se

desenvolvem cont inuam e, periodicamente n o bojo das economias-

Page 26: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

. AI-ITUL0 3 A internacionalização do capital

Page 27: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

Desde que o capitalismo re tomou sua expansão pelo mundo , em se­

guida à Segunda Grande Guerra Mundial , muitos começaram a reco­

nhecer que o mundo estava se tornando o cenário de um vasto pro­

cesso de internacionalização do capital. Algo jamais visto anterior­

mente em escala semelhante, por sua intensidade e generalidade. O

capital perdia parcialmente sua característica nacional, tais como a

inglesa, no r t e - amer i cana , a l emã , j aponesa , francesa ou o u t r a , e

adquiria uma conotação internacional. Ao mesmo tempo que come­

çavam a predominar os movimentos e as formas de reprodução do

capital em escala internacional, este capital alterava as condições dos

movimentos e das formas de reprodução do capital em âmbito nacio­

nal. Aos poucos, as formas singulares e particulares do capital, âmbi­

tos nacional e setorial, subordinaram-se às formas do capital em ge­

ral , conforme seus movimentos e suas formas de r ep rodução em

âmbito internacional. Verificava-se uma metamorfose qualitativa e

não apenas quantitativa, de tal maneira que o capital adquiria novas

condições e possibilidades de reprodução. Seu espaço ampliava-se

além das fronteiras nacionais, tan to das nações dominantes como das

subordinadas , conferindo-lhe conotação internacional, ou propria-

55

Page 28: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

56

A I N T E R N A C I O N A L I Z A Ç Ã O DO C A P I T A L

i François Perroux, "Grande Firme et Petite Nation", Économies et so­ciétés, tomo II, n° 9, Librairie Droz, Genebra, 1968, pp. 1847-1867; Raymond Vernon, Tempestade sobre as multinacionais, tradução de Waltensir Dutra, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1980; Richard J. Barnet e Ronald Muller, Poder global (A Força Incontrolável das Multi­nacionais), tradução de Ruy Jungmann, Distribuidora Record, Rio de Ja­neiro, s/d (edição original em inglês realizada em 1974); Charles-Albert Michalet, O capitalismo mundial, tradução de Salvador Machado Cordaro, Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1984; United Nations, Transnational Corporations in World Development, Nova York, 1978.

mente mundial . Essa internacionalização se tornará mais intensa e ge­

neralizada, ou propriamente mundial , com o fim da Guerra Fria, a

desagregação do bloco soviético e as mudanças de políticas econômi­

cas nas nações de regimes socialistas. A partir desse momento as eco­

nomias das nações d o ex-mundo socialista transformam-se em fron­

teiras de negócios, inversões, associações de capitais, transferências

de tecnologias e outras operações, expressando a intensificação e a

generalização dos movimentos e das formas de reprodução d o capital

em escala mundial .

O que parecia ser uma espécie de virtualidade do capi tal ismo,

como modo de produção mundial, tornou-se cada vez mais uma rea­

lidade do século XX; e adquiriu ainda maior vigência e abrangência

depois da Segunda Guerra Mundial . Sob certos aspectos, a Guerra

Fria, nos anos 1946-89, foi uma época de desenvolvimento intensivo

e extensivo do capitalismo pelo mundo . Com a nova divisão interna­

cional do t rabalho, a flexibilização dos processos produtivos e outras

manifestações do capitalismo em escala mundial , as empresas, corpo­

rações e conglomerados transnacionais adquirem preeminência sobre

as economias nacionais. Elas se constituem nos agentes e produtos da

internacionalização do capital. Tan to é assim que as transnacionais

redesenham o mapa do mundo, em termos geoeconômicos e geopolí­

ticos muitas vezes bem diferentes daqueles que haviam sido desenha­

dos pelos mais fortes Estados nacionais. O que já vinha se esboçando

n o passado , com a emergência dos monopó l io s , t rustes e car té is ,

intensifica-se e generaliza-se com as transnacionais que passam a pre­

domina r desde o fim da Segunda Guer ra Mund ia l ; inicialmente à

sombra da Guerra Fria e, em seguida, à sombra na "nova ordem eco­

nômica mundial" .

Ainda que com freqüência haja coincidências, convergências e

conveniências recíprocas entre governos nacionais e empresas, corpo­

rações ou cong lomerados , no que se refere a assun tos nac iona i s ,

regionais e mundiais, é inegável que as transnacionais libertaram-se

progressivamente de algumas das injunções ou limitações inerentes

57

aos Fstados nacionais. A geoeconomia e a geopolítica das t ransnacio­

nais nem sempre coincidem com as dos Es tados nac iona is . Al iás ,

. i instantemente se dissociam, ou mesmo colidem. São comuns os inci-

ilrntes em que se constatam as progressivas limitações d o princípio de

lobcrania em que classicamente se fundava o Estado-nação. Em esca­

la cada vez mais acentuada, em âmbito mundial , a "grande empresa"

parece transformar nações das mais diversas categorias em "pequena

nação" . 1

Na base da internacionalização do capital estão a formação, o

desenvolvimento e a diversificação do que se pode denominar "fábri-

i a g lobal" . O m u n d o transformou-se na prática em uma imensa e

loinplexa fábrica, que se desenvolve conjugadamente com o que se

pode denominar "shopping center global". Intensificou-se e generali­

zou-se o processo de dispersão geográfica da produção, ou das forças

piodutivas, compreendendo o capital, a tecnologia, a força de t raba­

lho, a divisão do t rabalho social, o planejamento e o mercado. A nova

divisão internacional d o t rabalho e da produção, envolvendo o fordis-

ino, o neofordismo, o toyotismo, a flexibilização e a terceirização, tu­

do isso amplamente agilizado e generalizado com base nas técnicas

eletrônicas, essa nova divisão internacional do t rabalho concretiza a

nlobalização do capitalismo, em termos geográficos e históricos.

A fábrica global pode ser simultaneamente realidade e metáfora.

Kxpressa não só a reprodução ampliada do capital em escala global,

Page 29: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

compreendendo a generalização das forças produtivas, mas express

t ambém a globalização das relações de produção . Globalizam-se a

instituições, os princípios jurídicos-políticos, os padrões sócio-cult

rais e os ideais que constituem as condições e os produtos civilizad

rios do capitalismo. Esse é o contexto em que se dá a metamorfose d

"industrialização substitutiva de importações" para a "industrializa

ção orientada para a expor tação" , da mesma forma que se dá a deses

tatização, a desregulação, a privatização, a abertura de mercados e

monitorização das políticas econômicas nacionais pelas tecnocracia

do Fundo Monetár io Internacional e do Banco Mundial , entre outra

organizações multilaterais e t ransnacionais . 2

É claro que o capitalismo continua a ter bases nacionais, mas es

tas já não são determinantes. A dinâmica do capital, sob todas as sua

formas, rompe ou ultrapassa fronteiras geográficas, regimes políticos

culturas e civilizações. Está em curso um novo surto de mundializaçã

d o capitalismo como m o d o de produção, em que se destacam a dinâ

mica e a versatilidade do capital como força produtiva. Entendendo

se que o capital é um signo do capitalismo, é o emblema dos grupos

classes dominantes em escalas nacional, regional e mundial . Isto é, o

capital de que se fala aqui é uma categoria social complexa, baseada

na produção de mercadoria e lucro, ou mais-valia, o que supõe todo

o tempo a compra de força de t rabalho; e sempre envolvendo institui-]

ções, padrões sócio-culturáis de vários t ipos, em especial os jurídico-

políticos que constituem as relações de produção .

2 Folker Frobel, Jürgen Heinrichs e Otto Kreye, The New International Division of Labor (Structural Unemployment in Industrialized Countries! and Industrialisation in Developing Countries), tradução de Pete Burgess, Cambridge University Press, Cambridge, 1980; Joseph Grun-wald e Kenneth Flamm, The Global Factory (Foreign Assembly in International Trade), The Brookings Institution, Washington, 1985; Ro­bert B. Reich, The Work of Nations, Alfred A. Knopf, Nova York, 1991; Alain Lipietz, Le capital et son espace, La Découverte/Maspero, Paris, 1983.

A I N T E R N A C I O N A L I Z A Ç Ã O DO C A P I T A L

Já é possível reconhecer que o significado do Estado-nação tem si­

do alterado drasticamente, quando examinado à luz da globalização

do capi ta l i smo intensificada desde o t é rmino da Segunda Gue r r a

Mundial e acelerada com o fim da Guerra Fria. Algumas das caracte­

rísticas "clássicas" do Estado-nação parecem modificadas, ou radical­

mente transformadas. As condições e as possibilidades de soberania,

projeto nacional, emancipação nacional, reforma institucional, libera­

lização das políticas econômicas ou revolução social, entre ou t r a s

mudanças mais ou menos substantivas em âmbi to nacional, passam a

estar determinadas por exigências de instituições, organizações e cor­

porações multilaterais, transnacionais ou propriamente mundiais , que

pairam acima das nações. A moeda nacional torna-se reflexa da moe­

da mundial , abstrata e ubíqua, universal e efetiva. O s fatores da pro­

dução, ou as forças produtivas, tais como o capital, a tecnologia, a

força de t rabalho e a divisão do t rabalho social, entre outras , passam

a ser organizadas e dinamizadas em escala bem mais acentuada que

antes, pela sua reprodução em âmbito mundial . Também o aparelho

estatal, por todas as suas agências, sempre simultaneamente políticas

e econômicas, além de administrativas, é levado a reorganizar-se ou

"modernizar-se" segundo as exigências d o funcionamento mundia l

dos mercados, dos fluxos dos fatores da produção, das alianças estra­

tégicas entre corporações . Da í a internacionalização das diretrizes

relativas à desestatização, desregulamentação, privatização, aber tura

de fronteiras, criação de zonas francas. 3

Um teste particularmente importante da forma pela qual se dá a in­

ternacionalização do capital está evidente na contínua e agressiva pene­

tração que esse capital realiza em cada uma e em todas as economias

3 Joseph A. Camilleri e Jim Falk, The End of Sovereignty? (The Politics of a Shrinking and Fragmenting World), Edward Elgar Publishing, Hants, Inglaterra, 1992; Bernardo Kliksberg, Cómo transformar al Esta­do? (Más Allá de Mitos y Dogmas), Fondo de Cultura Económica, México, 1993.

59

Page 30: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O A I N T E R N A C I O N A L I Z A Ç Ã O DO C A P I T A L

As relações econômicas Leste-Oeste estão intimamente ligadas ao es-

(|iiema político geral existente entre os Estados Unidos e a União So­

viética. Nesse esquema, as considerações políticas e militares sobre­

carregam as considerações econômicas e comerciais na política dos

Estados Unidos com relação à União Soviética e, em menor grau, no

i|ue se refere a sua política relativa às outras economias socialistas.

Entretanto, as transações econômicas e comerciais entre os Estados

Unidos e os países socialistas são um fator que influencia a atmosfe­

ra política. E há muito que ganhar de um relacionamento político

razoavelmente estável, em que os países socialistas participem mais

abertamente no conjunto do sistema internacional. (...) Em um mun­

do de crescente interdependência — econômica, científica e tecnoló­

gica — as trocas e o comércio estão crescendo e cont inuarão a

crescer. 4

As corporações t ransnacionais , com freqüência apoiadas pelas

agências governamentais dos países capitalistas dominantes , e tam­

bém beneficiadas pelas diretrizes de organizações multilaterais, tais

como o Fundo Monetár io Internacional e o Banco Mundial , cr iaram

os mais diversos e prementes desafios para as economias socialistas.

Além de oferecerem negócios, possibilidades de comércio e intercâm­

bio de tecnologias, também ofereceram mercados, possibilidades de

exportação das economias socialistas para as capitalistas. Aos pou­

cos, as economias centralmente planificadas viram-se estimuladas e

desafiadas pelas oportunidades de mercado oferecidas. Aos poucos, a

industrialização substitutiva de importações, que predominou em paí­

ses socialistas, foi acoplada e subordinada à industrialização orienta­

da para a exportação. O que já estava ocorrendo de maneira incipien-

4 Lawrence C. McQuade (editor), East-West Trade (Managing Encounter and Accomodation), Westview Press, Boulder, Colorado, 1977, pp. 3 e 5. Editado para "The Atlantic Council Committee on East-West Trade".

61 60

socialistas. Desde as mais diferentes técnicas de bloqueio econômico,

político e cultural até as mais diferentes propostas de intercâmbio eco­

nômico, sob todas as formas o capital pouco a pouco se torna um ele­

mento presente e essencial à organização e dinâmica de cada uma e de

todas as economias socialistas. Mesmo antes da Guerra Fria, essas

modal idades de ação já e ram efetivas. Duran t e a Segunda Guerra

Mundial foram acionados vários meios de intercâmbio. A aliança de

fato e de direito entre os Estados Unidos e a União Soviética na luta

contra o nazi-fascismo alemão, italiano e japonês beneficiou muitíssi­

m o as forças produtivas organizadas com base nos capitalismos norte-

americano e inglês. Após a Segunda Guerra Mundial , a Guerra Fria re­

velou-se uma imensa e complexa operação de diplomacia total , não só

contra-revolucionária, mas de dinamização e generalização das ativida­

des produtivas, principalmente na Europa e no Pacífico, destacando-se

os tigres asiáticos e o J apão , por um lado, e a União Européia e a

Alemanha Federal, por outro. Cabe relembrar que uma parte impor­

tante do desenvolvimento industrial ocorrido em países do "Terceiro

M u n d o " realiza-se à sombra da Guerra Fria, com apoio mais ou menos

ostensivo de governos dos países do "Primeiro M u n d o " , d o Banco

Mund ia l e do Fundo Mone tá r io Internacional . Q u a n d o te rmina a

Guerra Fria, inclusive como decorrência do modo pelo qual o capitalis­

mo estava bloqueando e penetrando o mundo socialista, o "Segundo

M u n d o " , são outros espaços que se abrem. Sob vários aspectos, é como

se o mundo todo se tornasse o cenário das forças produtivas acionadas

e generalizadas pelas corporações transnacionais, conjugadas com ou

apoiadas pelos governos dos países capitalistas dominantes.

Vale a pena examinar algumas particularidades do vasto e longo

processo através do qual o capital se torna cada vez mais presente e

essencial no mundo socialista, constituindo-se em um elemento deci­

sivo em sua t ransformação. A rigor, a metamorfose das economias

centralmente planejadas em economias de mercado aberto começou

muito antes do fim da Guerra Fria. Em 1977 colocavam-se com clare­

za as perspectivas e as vantagens que se abr iam ao capital.

Page 31: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

te em um ou out ro país paulatinamente tornou-se um processo cont

nuo , crescente e avassalador.

O verdadeiro dínamo do crescimento na China hoje é o setor indusi

trial criado pelo investimento estrangeiro, que se concentra no Sul d

China, principalmente em Guangdong... O sucesso de Guangdon

tem sido impulsionado pelas exportações, que têm crescido cerca d

3 0 % nos anos recentes. (...) Entretanto, como o fluxo exportador d

China torna-se mais e mais dependente do investimento estrangeiro*

compreendendo o controle da tecnologia, dos fundos de investimen

to e da qualidade, a burocracia estatal está paulatinamente perdend

o controle da economia. 5

A rigor, a intensa e generalizada internacionalização d o capita

ocorre no âmbi to da intensa e generalizada internacionalização d

processo produt ivo . Os "milagres econômicos" que se sucedem a

longo da Guerra Fria e depois dela são também momentos mais o

menos notáveis dessa internacionalização. Isto significa que as corpo­

rações já não se concentram nem se sediam apenas nos países domi­

nantes, metropoli tanos ou ditos centrais. As unidades e organizações

produtivas, envolvendo inovações tecnológicas, zonas de influência,

adequações culturais e outras exigências da produção , distribuição,

troca e consumo das mercadorias que atendem necessidades reais ou

imaginárias, passam a desenvolver-se nos mais diversos países, distri-

buindo-se por continentes, ilhas e arquipélagos. Assim como se mul-

5 Richard Smith, "The Chinese Road to Capitalism", New Left Review, n°. 199, Londres, 1993, pp. 55-99; citações das pp. 90-92. Consultar também: A. Koves, "Integration into World Economy and Direction of Economic Development in Hungary", Acta Oeconomica, vol. 20, n°? 1-2, 1978, pp. 107-126; András Koves "Socialist Economy and the World-Economy", Review, vol. V, n9 1, 1981, pp. 113-133; David Wen-Wei Chang, China Under Deng Xiaoping, MacMillan, Londres, 1991; The Economist, A Billion Consumers (A Survey of Asia), Londres, 30 de outubro de 1993.

A I N T E R N A C I O N A L I Z A Ç Ã O DO C A P I T A L

iiplicam e dispersam as zonas francas, multiplicam-se e dispersam-se

tis unidades e organizações produtivas. Está em curso uma nova divi­

d o internacional do t rabalho e da produção , envolvendo a comple­

mentação ou superação dos procedimentos d o fordismo, das l inhas

ile montagens de produtos homogêneos. Ao lado do fordismo e stack-

novismo, bem como dos ensinamentos d o taylor ismo e fayolismo,

ilesenvolve-se o toyotismo, a organização do processo de t rabalho e

produção em termos de flexibilização, terceirização ou subcontrata­

ção, tudo isso amplamente agilizado pela au tomação , pela robotiza­

rão ; pela microeletrônica e pela informática. Assim se generaliza o

capitalismo, t ransformando o mundo em algo que parece uma fábri­

ca global.

Acontece que o capital adquiriu novas conotações, na medida em

que se desenraiza, movendo-se por todos os cantos do mundo .

A internacionalização do capital, como relação social, estende o pro­

cesso de trabalho à escala mundial e fragmenta o trabalho social não

mais apenas em âmbitos local, regional e nacional, mas no mundo

como um todo. Os diversos componentes do computador afluem dos

mais diversos recantos do globo, de Taiwan, Coréia do Sul, Estados

Unidos, França, Grã-Bretanha, América Latina, África, segundo uma

divisão do trabalho levada ao extremo, na qual a fragmentação é o

dado geral. O mesmo ocorre na indústria automobilística. 6

A rigor, a internacionalização do capital significa simultaneamen­

te a internacionalização do processo produtivo. E é óbvio que essa in­

ternacionalização do capital produtivo envolve não só a idéia da fá­

brica global e do shopping center global, mas também a da internacio­

nalização da questão social.

6 Christian Palloix, Les firmes multinationales et le procès d'internatio­nalisation, François Maspero, Paris, 1973, p. 163.

63

Page 32: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

¿es S¿,á

Biblioteca £

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

Hoje, a internacionalização tem-se difundido não somente pelos cir-i

cuitos do capital mercadoria e do capital dinheiro, mas alcançou oi

seu estágio final, a internacionalização do capital produtivo. Isto tem!

sido habitualmente denominado internacionalização da produçãoJ

(...) No desenvolvimento histórico da internacionalização do capital,

o Estado-nação terá de considerar, com crescente seriedade, a sua ;

realidade externa, na medida em que certas partes do Estado — umas

mais do que outras — terão de submeter-se à situação internacional.

(...) A internacionalização de certas partes do Estado é plenamente

visível. (...) A luta de classes conduzida pelo capital ocorre por todo

o mundo, e o proletariado não pode mais ignorar este fato. Nesta

luta de classes em nível mundial (...) o capital tem a iniciativa. (...) É

necessário introduzir a luta de classe do proletariado na análise do:

processo de internacionalização. 7

É claro que a internacionalização do capital , compreendida co­

m o internacional ização d o processo p rodu t ivo ou da r e p r o d u ç ã o

ampl iada do capital , envolve a internacionalização das classes so­

ciais, em suas relações, reciprocidades e antagonismos. C o m o ocor­

re em toda formação social capitalista, t ambém na global desenvol­

ve-se a questão social. Q u a n d o se mundial iza o capital p rodut ivo ,

mundializam-se as forças produtivas e as relações de p rodução . Esse

é o contexto em que se dá a mundialização das classes sociais, com­

preendendo suas diversidades internas, suas distribuições pelos mais

diversos e distantes lugares, suas múltiplas e distintas características

culturais, étnicas, raciais, lingüísticas, religiosas e outras . Nesse sen-

7 Christian Palloix, "The Self-Expansion of Capital on a World Scale", The Review of Radical Political Economies, vol. 9, n°. 2, Nova York, 1977, pp. 11,13 e 16. Consultar também: Christian Palloix, Les firmes multinationales et le procès d'internationalisation, citado; Samir Amin, L'accumulation à l'échelle mondiale, Éditions Anthropos e Ifan, Paris e Dakar, 1970; Octavio Ianni, Imperialismo na América Latina, 2'. edição, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1988.

6 4

A I N T E R N A C I O N A L I Z A Ç Ã O DO C A P I T A L

lido é que as classes sociais, por seus movimentos sociais, par t idos

políticos e correntes de opinião podem t ransbordar as nações e re-

Hiócs, manifestando-se em âmbi to cada vez mais amplo . O que já é

verdade para grupos e classes dominantes , que se comunicam e art i-

i ulam cada vez mais em escala mundial , pode tornar-se t ambém rea­

lidade pa ra os grupos e as classes subal ternas , a despei to de suas

diversidades internas e de sua dispersão por todos os recantos d o

mapa do m u n d o .

Desde que se intensificou a globalização do capitalismo, com a

nova divisão internacional d o t rabalho e a dispersão territorial das

atividades industriais, tudo isso dinamizado pelas técnicas da eletrô­

nica, começou-se a falar em fim da geografia. A aceleração e generali­

zação das relações, processos e estruturas capitalistas atravessando

terri tórios e fronteiras, cu l turas e civilizações, logo deu or igem à

metáfora do fim da geografia.

O fim da geografia, como um conceito aplicado às relações financei­

ras internacionais, diz respeito a um Estado de desenvolvimento eco­

nômico em que a localização geográfica não importa mais em maté­

ria de finanças, ou importa muito menos do que anteriormente.

Neste Estado, os reguladores do mercado financeiro não mais con­

trolam seus territórios; isto é, os reguladores não se aplicam apenas a

determinados espaços geográficos, tais como o Estado-nação ou

outros territórios típicos definidos juridicamente. 8

N a época dos mercados mundiais de capitais, quando as mais

diversas formas de capital passam a movimentar-se de modo cada vez

mais acelerado e generalizado, nessa época reduzem-se os controles

nacionais. Mais do que isso, os governos nacionais, suas agências e

8 Richard O'Brien, Global Financial Integration: The End of Geography, Council on Foreign Relations Press, Nova York, 1992, p. 1.

Page 33: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

organizações que tradicionalmente administram e orientam os movi

mentos do capital, todas as instâncias ditas nacionais vêem reduzida

suas capacidades de controlar os movimentos do capital.

Acontece que as corporações transnacionais, incluindo-se natu

ralmente as organizações bancárias, movimentam seus recursos, de

senvolvem suas alianças estratégicas, agilizam suas redes e seus circui

tos informáticos e realizam suas aplicações de modo independente o

mesmo com total desconhecimento dos governos nacionais. E aind

que os governos nacionais, por si e por suas agências, tomem conhe

c imento dos movimentos t ransnacionais de capi ta is , a inda nesse

casos pouco ou nada podem fazer. As transnacionais organizam-se

dispersam-se pelo mundo segundo planejamentos próprios, geoeco

nomias independentes, avaliações econômicas, políticas, sociais e cu l |

turais que muitas vezes contemplam muito pouco as fronteiras nacio

nais ou os coloridos dos regimes políticos nacionais.

Nos primeiros anos do período pós-Segunda Guerra Mundial , o

governos apoiaram-se em controles dos movimentos de curto praz.

dos capitais, com um propósito fundamental: prover as suas econo­

mias do máximo de viabilidade de autonomia econômica, sem o

sacrifício da interdependência econômica. (...) Entre os fins dos anos !

1970 e os começos dos anos 1990, um amplo movimento, indepen

dentemente dos controles do capital, tornou-se evidente através do]

mundo industrial. O rápido crescimento líquido de fundos interna-!

cionais e a crescente globalização da produção provocaram esse pro­

cesso. Os mercados estrangeiros erodiram as barreiras financeiras

nacionais, ao mesmo tempo que mobilizaram crescentes recursos

para empresas multinacionais engajadas no processo de globalização

dos seus empreendimentos produtivos. Desse modo, elas aumenta­

ram sua capacidade para desenvolver estratégias de evasão e remes­

sa. Assim, os governos primeiro constataram que os controles tinham

de ser reforçados continuamente para serem de utilidade e, em segui-

66

A I N T E R N A C I O N A L I Z A Ç Ã O DO C A P I T A L

da, descobriram que o resultado, ou os custos econômicos potenciais

de tais reforços, logo excederam os benefícios. 9

Esse o contexto em que o capital se torna ubíquo, em uma escala

jamais alcançada anteriormente. Em instantes, ele se move pelos mais

diversos e distantes lugares do planeta, atravessando fronteiras e regi­

mes políticos, assim como mares e oceanos. Está em marcha um pro­

cesso de desterritorialização cujas implicações práticas e teóricas ape­

nas começam a ser analisadas.

Na verdade, o dinheiro não viaja de um país para outro no sentido

físico, as transferências são eletrônicas, ou seja, realizadas no mesmo

segundo que se toma a decisão por um investimento. Não há transfe­

rência física de dólares. (...) Realiza-se uma simples operação de

débito e crédito eletronicamente. O fluxo internacional de capitais

também se processa da mesma forma. Nessa imensa massa de recur­

sos, confunde-se dinheiro com origem legal e aquele que se ganhou

por atividades ilegais. 1 0

Esse é o cenário da economia política do narcotráfico. Dadas as

condições não só técnicas mas também econômicas sob as quais são

abertos mercados, agilizados os circuitos financeiros e fortalecidos os

centros decisórios das corporações transnacionais e das redes bancá­

rias, a lavagem de qualquer t ipo de dinheiro torna-se relativamente

fácil.

O desenvolvimento dos circuitos bancários informatizados e do siste­

ma de transferências eletrônicas contribui para acelerar o movimen-

9 John B. Goodmann e Louis W. Pauly, "The Obsolescence of Capital Controls? Economic Management in an Age of Global Markets", World Politics, vol. 46, n°. 1, Princeton, 1993, pp. 50-82; citação da p. 79.

if Nilton Horita, "Dinheiro Roda o Mundo Atrás de Investimen­tos", O Estado de S. Paulo, 25 de setembro de 1994, p. B12.

67

Page 34: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

1 1 Alain Labrousse e Alain Wallon (direção), La planète des drogues (organisations criminelles, guerres et blanchiment), Editions du Seuil, Paris, 1993, pp. 199-200.

68

A I N T E R N A C I O N A L I Z A Ç Ã O DO C A P I T A L

ndo, há uma dominância financeira na dinâmica econômica. Então,

neste contexto, compreenda-se que as mudanças nas finanças têm

constituído uma dinâmica internacionalizada, calcada numa verda­

deira macroestrutura financeira, de âmbito transnacional... (...) A

dominância financeira — a financeirização — é expressão geral das

formas contemporâneas de definir, gerir e realizar riqueza no capita­

lismo. Por dominância financeira apreende-se, inclusive conceitual-

mente, o fato de que todas as corporações — mesmo as tipicamente

industriais, como as do complexo metalmecânico e eletroeletrônico

— têm em suas aplicações financeiras, de lucros retidos ou de caixa,

um elemento central do processo de acumulação global de r iqueza. 1 2

A rigor, o capital financeiro parece adquirir mais força do que em

qualquer época anterior, quando ainda se encontrava enraizado em

centros decisórios nacionais, mais ou menos subordinados ao Estado-

niição. Além da mundial ização acelerada e generalizada das forças

produtivas, dos processos econômicos, da nova divisão internacional

do t rabalho , formam-se redes e circuitos informatizados, por meio

tios quais as transnacionais e os bancos movem o capital por todos os

i cntros do mundo .

O locus do poder econômico e político deslocou-se, devido à ascen­

são do capital financeiro. Tem sido dito, em especial por radicais,

que o lugar do poder na sociedade capitalista estava nos escritórios

centrais de umas poucas centenas de corporações multinacionais

gigantes. Embora não haja dúvida acerca do papel destas entidades

na alocação de recursos e outras atividades correlatas, penso que se

deve acrescentar uma consideração que merece ser enfatizada. Os

ocupantes desses escritórios centrais são eles próprios, em crescente

1 2 José Carlos de Souza Braga, "A Financeirização da Riqueza", Economia e sociedade, n°. 2, Instituto de Economia da Unicamp, Campinas, 1993, pp. 25-57; citação da p. 26.

69

to dos capitais tanto quanto limpar e reciclar o dinheiro sujo. Esta

evolução parece favorecer uma integração maior da economia i l íci"

nas atividades dos grandes bancos comerciais internacionais. 1 1

Q u a n d o se dá a internacionalização propriamente dita do capital,

este descola-se das nações, dos subsistemas econômicos nacionaisj

Ainda que guarde alguns traços importantes de sua origem ou enrai-l

zamento nacional, adquire significados que transcendem as fronteiras]

desta ou daquela nação. São várias as moedas nacionais negociadas

em todos os quadrantes , independentemente de sua filiação originá-l

ria. É claro que o iene japonês, o marco alemão, a libra esterlina ingle­

sa e o dólar norte-americano, entre outras moedas, continuam a pre-i

servar relações básicas com os subsistemas econômicos nacionais emí

que se formaram e continuam a ter vigência. M a s isto não impede qué

essas mesmas moedas adquiram significados novos, às vezes funda J

mentais, devido a sua circulação internacional. N o âmbito do merca­

do mundial , em que circulam o capital, a tecnologia e a força de tra­

balho, em formas cada vez mais rápidas e generalizadas, desenvol­

vem-se significados novos dessas forças produtivas, além do que sig­

nificam em âmbito nacional.

A rigor, o processo de internacionalização do capital é, simulta

neamente , um processo de formação d o capi ta l g lobal , en tend ido

como uma forma nova e desenvolvida do capital em geral. Ao lado

dos capitais singulares e particulares, compreendidos como nacionais

e setoriais, formas do capital em geral, subsumindo àqueles e confe-.

rindo-lhes novos significados.

É importante compreender que, mais que nunca, no capitalismo con­

temporâneo as finanças ditam o ritmo da economia (...) e, neste sen-

Page 35: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

1 3 Paul M. Sweezy, "The Triumph of Financial Capital", Monthl Review, vol. 46, n° 2, Nova York, 1994, pp. 1-11; citação das pp. 9-10'

70

M E T Á F O R A S D A G L O B A L I Z A Ç Ã O

continuam presentes e válidos, desenvolvem-se as relações, os proces-

NOS e as estruturas que consti tuem a organização e a dinâmica do capi­

tal em escala mundial . Assim se subvertem noções, conceitos, catego­

rias ou interpretações. O que parecia evidente e consol idado pode

parecer duvidoso, inacabado ou superado. De forma errática ou siste­

mática, o pensamento científico está sendo provocado pelos desafios

da globalização do capital.

71

medida, constrangidos e controlados pelo capital financeiro opera

do por meio de redes globais do mercado financeiro. Em outras pa'

vras, o poder real não está totalmente nos escritórios das corpor

ções, mas nos mercados financeiros. O que é válido para diretores

corporações é também válido para os que controlam o poder poli

co (nacional). Cada vez mais, eles também são controlados pel

mercados financeiros, no que podem e no que não podem fazer.*3

N a época da g lobal ização d o cap i ta l i smo, o capi ta l em ger

adquire maior universalidade. N ã o só subsume as mais diversas fo

mas de capital singular e particular, ou nacional e setorial, como

torna parâmetro universal das atividades e relações desenvolvidas p

indivíduos e povos, por empresas e conglomerados nacionais e t ra

nacionais , po r governos nacionais e organizações mult i la terais ,

capital em geral, cada vez mais não só internacional mas propriame

te global, passa a ser um parâmetro decisivo no modo pelo qual es

mesmo capital se produz e reproduz, em âmbito nacional, region

setorial e mundial .

O s horizontes históricos e teóricos abertos pela internacionali

ção d o capital, compreendendo uma forma desenvolvida da repro

ção ampliada deste capital, logo põem em causa as noções de econ

mia nacional, de desenvolvimento econômico nacional, de coloniali

m o , de imperialismo, de dependência, de bilateralismo, de multilat

ral ismo etc. Essas noções cont inuam de alguma ou muita val idad

permit indo descrever e interpretar realidades particulares em diferen

tes partes do mundo . Expressam relações, processos e estruturas mui

t o presentes e evidentes nas condições de vida dos indivíduos, dos gru

pos , das classes, das tr ibos, dos clãs, dos povos, das nações e naciona

lidades. Mas por dentro e por sobre a economia nacional, o imperia

lismo e o multilateralismo, além de outras realidades e conceitos qu

Page 36: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

CAPÍTULO 4 A interdependência das nações

Page 37: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

A interpretação sistêmica das relações internacionais já está bastante

desenvolvida em estudos e controvérs ias sobre a p roblemát ica da

mundialização. A teoria sistêmica parece oferecer quadros de referên­

cia consistentes, de modo a taquigrafar aspectos importantes da orga­

nização e dinâmica da sociedade mundial . Estas análises sistêmicas

começam por reconhecer que, aos sistemas nacionais, tomados um a

um, e aos regionais, combinando duas ou mais nações, superpõe-se o

sistema mundial . O sistema mundial , em curso de formação e t rans­

formação desde o final da Segunda Guerra Mundia l e francamente

dinamizado depois do término da Guerra Fria em 1989, contempla

economia e política, blocos econômicos e geopolíticos, soberanias e

hegemonias. Reconhece que o sistema-mundo tende a predominar , es­

tabelecendo poderosas injunções a uns e outros, nações e nacionalida­

des, corporações e organizações, atores e elites. Confere ao sistema

mundial vigência e consistência, já que estaria institucionalizado em

agências mais ou menos ativas, como a Organização das Nações Uni­

das (ONU), o Fundo Monetár io Internacional (FMI), o Banco M u n ­

dial (BIRD) e muitas outras . Além disso, a noção de sistema mundial

contempla a presença e a vigência das empresas, corporações e con­

glomerados transnacionais. Nesse contexto, os meios de comunicação

Page 38: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

revelam-se particularmente eficazes para desenhar e tecer o imaginá­

rio de todo o mundo . A mídia impressa e eletrônica, cada vez mais

acoplada em redes multimídia universais, constituem a realidade e a

ilusão da aldeia global.

A rigor, a sociedade mundial pode ser vista como um sistema

social complexo , n o âmbi to do qual encontram-se outros sistemas

mais ou menos simples e complexos, tanto au tônomos e relativamen­

te a u t ô n o m o s c o m o subord inados , ou subsistemas. N o âmbi to da

sociedade mundial , logo se destacam o sistema econômico e o políti­

co , mas t ambém out ros podem tornar-se relevantes, em termos da

organização e dinâmica da mundialização. T o m a d o como um sistema

de alta complexidade, a sociedade mundial pode ser vista c o m o um

produ to da diferenciação crescente decorrente da evolução dos siste­

mas que a antecedem e compõem.

Surge uma história mundial concatenada. (...) Em todos os lugares

eletricidade vale como eletricidade, dinheiro como dinheiro, homem

como homem — com as exceções que sinalizam um estado patológi­

co, atrasado e ameaçado. Em todos esses planos pode-se registrar um

rápido crescimento de coerências em escala mundial. (...) Na medida

em que esferas funcionais como a religião, a economia, a educação, a

pesquisa, a política, as relações íntimas, o turismo do lazer, a comu­

nicação de massas, se desdobram automaticamente, elas rompem as

limitações de território social às quais todas estão inicialmente sujei­

tas. (...) A constituição da sociedade mundial é conseqüência do

princípio da diferenciação social — formulando mais precisamente: a

conseqüência da estabilização eficaz desse princípio de diferenciação.

Frente a esse processo, o desenvolvimento científico-econômico-téc-

nico e a positivação do direito não são fatores autônomos, mas tor­

naram-se possíveis pela mudança estrutural. Essa tese está relaciona­

da à conclusão geral da teoria de sistemas... 1

1 Niklas Luhmann, Sociologia do Direito, 2 vols., tradução de Gustavo Ba­yer, Edições Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1985, vol. II, pp. 154-156.

76

A I N T E R D E P E N D Ê N C I A DAS N A Ç Õ E S

2 Norbert Wiener, Cibernética e sociedade (O Uso Humano de Seres Hu­manos), tradução de José Paulo Paes, Editora Cultrix, São Paulo, 1968, pp. 16, 26, 34 e 46.

77

A teoria sistêmica privilegia a funcionalidade sincrónica, a art icu­

larão eficaz e produtiva das partes sincronizadas e hierárquicas d o

lodo sistêmico cibernético. É o ambiente da escolha racional, das op­

ções mediatizadas por linguagens estabelecidas com base em sistemas

ile signos cada vez mais baseados nas técnicas da eletrônica. Permite

desenvolver todos sincronizados em todos mais amplos e abrangentes,

desde o homo economicus, politicus, sociologicus, ciberneticus até a

economia mundial , sempre no âmbito da racionalidade pragmática de

iii ores. Sim, os sistemas se compõem de atores simples e complexos,

desde indivíduos e grupos a instituições e organizações, compart i lhan­

do conjuntos de valores, comunicando-se com base em determinadas

linguagens, a tuando hedonisticamente e acomodando-se bem ou mal

ÁS regras insti tucionalizadas no mercado . Privilegia a estabi l idade,

normalidade, harmonia, equilíbrio, funcionalidade, eficácia, produt i ­

vidade, ordem, evolução. Transfere para a realidade social, micro e

macro, nacional e mundial , o princípio epistemológico que funda a

t Ibernética: entropia, homeostase, input, output, feedback etc.

A sociedade só pode ser compreendida através de um estudo das men­

sagens e das facilidades de comunicação de que disponha; e de que, no

futuro desenvolvimento dessas mensagens e facilidades de comunica­

ção, as mensagens entre o homem e as máquinas, entre as máquinas e

o homem, e entre a máquina e a máquina estão destinadas a desempe­

nhar papel cada vez mais importante. (...) O funcionamento físico do

indivíduo e o de algumas máquinas de comunicação mais recentes são

exatamente paralelos no esforço análogo de dominar a entropia atra­

vés da realimentação. (...) O sistema nervoso e a máquina automática

são, pois, fundamentalmente semelhantes no constituírem, ambos,

aparelhos que tomam decisões com base em decisões feitas no passado.

(...) Somos escravos de nosso aperfeiçoamento técnico. (...) Modifica­

mos tão radicalmente nosso meio ambiente que devemos agora modi­

ficar-nos a nós mesmos para poder viver nesse novo meio ambiente. 2

Page 39: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

Os parâmetros lógicos estabelecidos pela teoria sistêmica, ca

vez mais influenciada pela cibernética, aparecem em forma crescen

nas reflexões sobre a organização e a dinâmica da sociedade mundia

Trata-se de um m o d o de taquigrafar aspectos da realidade, permiti

do construir modelos e estratégias, ou sistemas decisórios.

O sistema político global compreende um conjunto específico de r

lações concernentes a uma escala de determinados problemas envo

vidos na consecução, ou busca organizada, de atuação coletiva e

nível global. Envolve a administração de uma rede de relações centr

da nas articulações entre a unidade líder e os que buscam ou luta

por liderança. (...) As unidades que estruturam a interação de polítí

ca global são as potências mundiais. Estas estabelecem as condiçõ '

da ordem no sistema global. Elas são as capazes e dispostas a ag !

Organizam e mantêm coalizões e estão presentes em todas as parte!

do mundo, habitualmente mobilizando forças de alcance global. Sua,

ações e reações definem o estado da política em nível global. (...)

sistema mundial é uma orientação para que se possa visualizar os

ranjos sociais mundiais em termos de totalidade. Permite pesquisa

as relações entre as interações de alcance mundial e os arranjo

sociais em níveis regional, nacional e local. 3

Na base da idéia de que a sociedade mundial pode ser vista como

um sistema coloca-se a tese de que o mundo se constitui de um siste

ma de atores, ou um cenário no qual movimentam-se e predomina

atores. São de todos os tipos: Estados nacionais, empresas transnacio

nais, organizações bilaterais e multilaterais, narcotráfico, terrorismoJ

Grupo dos 7, O N U , FMI, BIRD, FAO, OIT, AIEA e muitos outros]

compreendendo naturalmente também as organizações não-governan

mentais (ONGs) dedicadas a problemas ambientais, defesa de popula^

ções nativas, proteção de direitos humanos , denúncias de práticas de

3 George Modelski, Long Cycles in World Politics, University o Washington Press, Seattle, 1987, pp. 7-8, 9 e 20.

A I N T E R D E P E N D Ê N C I A D A S N A Ç Õ E S

Violência e tor tura . Também podem adquirir relevância regional o u

iiiinulial atores de tipo nacional, podendo entrar ativa ou passivamen­

te no jogo das pendências regionais e mundiais. Uns e outros sintetiza­

riam muito do que são as relações, controvérsias, soluções e impasses

. M I entes no âmbito da mundialização.

Mas, no sistema mundial assim concebido, os Estados nacionais

p n t i n u a m a desempenhar os papéis de atores privilegiados, ainda que

freqüentemente desafiados pelas corporações, empresas ou conglome­

rólos. Polarizam muitas das relações, reivindicações, negociações, as-

lociações, tensões e integrações que articulam o sistema mundial . Daí

i tese da interdependência das nações. Mui to do que ocorre e pode

ocorrer no âmbito da globalização sintetiza-se em noções produzidas

no jogo das relações entre países: diplomacia, aliança, pacto, paz, blo-

60, bilateralismo, multilateralismo, integração regional, cláusula de

nação mais favorecida, bloqueio, espionagem, dumping, desestabili­

zação de governos, beligerância, guerra, invasão, ocupação, terroris­

mo de Estado. Todas essas e outras noções dizem respeito à interde­

pendência das nações. Aliás, interdependência é uma idéia mui to co­

mum em análises e fantasias produzidas acerca de configurações e

movimentos da sociedade global.

A interdependência das nações focaliza principalmente as rela­

ções exteriores, diplomáticas, internacionais. Envolve Estados passio­

nais tomados como soberanos, formalmente iguais em sua soberania,

a despeito de suas diversidades, desigualdades e hierarquias. E diz res­

peito a bilateralismos, multilateralismos e nacionalismos, acomodan­

do ideais de soberania e realidades geoeconômicas e geopolíticas re­

gionais e mundiais. Apóia-se sempre no emblema, ou paradigma, da

sociedade nacional, do Estado-nação, reconhecendo que este está sen­

do desafiado pelas relações internacionais, pelo jogo das alianças ou

disputas entre os blocos geoeconômicos ou geopolíticos, pelas exigên­

cias da soberania e as lutas pela hegemonia. Essa interdependência, já

bastante teorizada, diz respeito às vantagens e responsabilidades de

nações dominantes, ou superpotências, bem como das nações depen­

dentes, subordinadas ou alinhadas. Mas também há fundamentações

Page 40: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

e alegações em que se estabelecem as responsabilidades da O N U , d

FMI e praticamente a maioria das agências, organizações e corpora

ções que povoam o cenário mundial. Também a União Européia, a Co-*

munidade dos Estados Independentes (CEI), o Tra tado de Livre Co­

mércio da América do Nor te (NAFTA), o Mercado Sul-AmericanQ

(MERCOSUL) , a Associação das Nações d o Sudoeste Asiático

(ASEAN) e a Cooperação Econômica da Ásia e do Pacífico (APEC),

entre outras fórmulas de integração regional, organizam-se e funcio­

nam com base em uma definição sistêmica de interdependência. N o

conjunto, os estudos inspirados na tese da interdependência das nações

p rocuram reconhecer aspectos mais ou menos novos e notáveis da

mundialização, mas sempre fundados no emblema da sociedade nacio­

nal, ou melhor, do Estado-nação, no suposto de que a essência desse

Estado é a soberania; uma soberania que está sendo franca e drastica­

mente redefinida no jogo das relações, processos e estruturas que cons­

tituem a sociedade global.

Sim, a tese da interdependência das nações é bem uma elaboração

sistêmica de como se desenvolve a problemática mundial . Diz respei­

to a um cenário em que a maior parte dos problemas aparece nas ra­

zões, estratégias, táticas e atividades de atores principais e secundá­

rios, todos jogando com as possibilidades da escolha racional.

Interdependência, definida em poucas palavras, significa mútua de­

pendência. Na política mundial, interdependência diz respeito a

situações caracterizadas pelos efeitos recíprocos entre nações ou

entre atores em diferentes nações. Estes efeitos com freqüência resul­

tam de transações internacionais: fluxos de dinheiro, mercadorias,

pessoas e mensagens através das fronteiras. Essas transações intensi­

ficaram-se dramaticamente desde a Segunda Guerra Mundial. (...)i As relações de interdependência sempre envolvem custos, já que a

interdependência restringe a autonomia; mas é impossível especificar

de antemão se os benefícios de uma relação irão exceder os custos.

Isto dependerá da categoria dos atores, tanto quanto da natureza das

A I N T E R D E P E N D Ê N C I A DAS N A Ç Õ E S

relações. Nada garante que a relação que designamos de "interde­

pendência" será caracterizada como de mútuo benefício. 4

A idéia de sistema mundial reconhece as novas realidades da glo-

h«li/ação, mas persiste na tese das relações internacionais, o que rea­

firma a continuidade, vigência ou preeminência do Estado-nação. Re­

conhece as disparidades entre os Estados nacionais, quan to à capaci-

diulc de a tuação no cenário mundial , em termos políticos, econômi­

cos, militares, geopolíticos, culturais e tantos outros . Procura funda-

IIK-mar algumas características da sociedade global, no que se refere a

i t l ições internacionais, geopolíticas e geoeconômicas, bem como for­

mação e dinâmica de regionalismos. Ajuda a mapear relações, proces-

ION e estruturas específicas da mundialização. Inclusive funda-se na

Idéia de que o mundo , isto é, a coletividade das nações, em todas as

luas diversidades e desigualdades, pode ser visto como uma totalida­

de, um todo contemplando partes ou atores interdependentes. M a s

tende a ver o mundo como um todo que se volta para a interdepen­

dência negociada, administrada, pacífica. Supõe a paz entre as nações

dominantes e subordinadas, ou centrais e periféricas, como tendência

•cessaria, predominante ou ideal realizável. 5

Em algumas formulações, a tese de que o mundo pode ser visto

i onio um sistema implica certa dose de idealização. H á algo de utópi­

co na maneira pela qual algumas formulações sobre a interdependên­

cia sistêmica supõem a integração, o equilíbrio ou a harmonia entre

l l t ados nacionais, corporações, estruturas mundiais de dominação e

apropr iação, elites, classes, g rupos e ou t ros " a t o r e s " presentes n o

4 Robert O. Keohane e Joseph S. Nye, Power and Interdependence, 2* edição, HarperCollins Publishers, 1989, pp. 8,9 e 10.

5 Raymond Aron, Paz e guerra entre as nações, tradução de Sérgio Bath, Editora Universidade de Brasília, Brasília, 1986; Karl Deutsch, Análise das relações internacionais, tradução de Maria R. Ramos da Silva, Editora Universidade de Brasília, Brasília, 1982; Norberto Bobbio, A era dos direitos, tradução de Carlos Nelson Coutinho, Editora Campus, Rio de Janeiro, 1992.

80 81

Page 41: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

cenário local, nacional, regional e mundial . Uma utopia idealizando]

formação social presente e fundamentando diretrizes dest inadas M

aprimorá-la.

Assim, a comunidade mundial aparece como um "sistema", pe la

qual queremos significar uma coleção de partes interdependenteH

antes do que um grupo de entidades bastante independentes, c o m a

era o caso no passado. Como conseqüência, o distúrbio do estadfl

normal das coisas em qualquer parte do mundo logo repercute pofl

todo o mundo, conforme muitos eventos recentes claramente de­

monstram. (...) O mundo não pode mais ser visto como uma coleçãl

de (...) nações e um conjunto de blocos econômicos e políticos. Em

lugar disso, o mundo deve ser visto como um conjunto de nações I

regiões formando um sistema mundial, por meio de arranjos de inter-™

dependências. (...) O sistema mundial emergente requer uma persB

pectiva holística no que se refere ao futuro desenvolvimento mundialB

tudo parece depender de tudo, devido à trama das interdependência!

entre as partes e o todo . 6

io

ni

e

Enquanto teoria da sociedade, tomada como um sistema amplo e

como um conjunto de subsistemas, a teoria sistêmica do mundo é, era

boa medida, uma transposição da teoria sistêmica do Estado-nação]

Mui to do que já se elaborou acerca da organização e dinâmica do Es-̂

t ado nacional tem sido transposto para a análise do sistema mundialj

É claro que os autores situados nessa perspectiva teórica empenham^

se em reconhecer as originalidades e complexidades da realidade so-^

ciai mundial . Reconhecem que os problemas e dilemas da organização]

e dinâmica da mundialização nascem neste âmbi to , precisamente de­

vido às originalidades e complexidades da sociedade mundial . Mas

cont inuam a privilegiar o Estado-nação como o a tor por excelência]

6 Mihajlo Mesarovic e Eduard Pestel, Mankind at the Turning Point (The! Second Report to the Club of Rome), E.P. Dutton e Reader's Digest Press, Nova York, 1974, pp. 18-21.

82

A I N T E R D E P E N D Ê N C I A DAS N A Ç Õ E S

do sistema mundial . Ainda que reconheçam a força das empresas, cor-

I ii ações e conglomerados transnacionais, compreendendo inclusive a

•iniplitude dos espaços que ocupam ou invadem, ainda assim os a to­

res situados na perspectiva da teoria sistêmica cont inuam a privilegiar

II stado-nação. Este continua a ser o principal emblema, ou mesmo

p.u.idigma, da interpretação sistêmica da mundialização.

Um sistema internacional é um padrão de relações entre unidades

básicas da política mundial, caracterizado pelo escopo dos objetivos

almejados por aquelas unidades e as diretrizes desenvolvidas por

elas, assim como pelos meios utilizados de modo a realizar aqueles

objetivos e implementar aquelas diretrizes. Este padrão é amplamen­

te determinado pela estrutura do mundo, a natureza das forças que

operam através ou dentro das maiores unidades, bem como pela

capacidade, nível de força e política cultural dessas unidades. (...) Tal

definição corresponde às definições aceitas de sistemas políticos

nacionais, que também são caracterizados pelo escopo dos objetivos

políticos (o Estado restrito versus o Estado totalitário, o Estado do

bem-estar social versus o Estado da livre empresa) e pelos métodos de

organização do poder (relações constitucionais entre os ramos do

governo, tipos de sistemas partidários). 7

É claro que os estudos realizados na ótica da teoria sistêmica es­

tão dedicados a esclarecer problemas tais como os seguintes: interde­

pendência e dependência, alianças e blocos, bilateralismo e multilate-

ralismo, integração nacional e integração regional, geoeconomia e

geopolítica, narcotráfico e terrorismo, guerra e revolução, armamen­

tismo e pacifismo, ambientalismo e poluição, soberania e hegemonia.

Esses e outros são problemas emergentes e recorrentes n o âmbi to das

7 Stanley Hoffinann, "International Systems and International Law", pu­blicado por Klaus Knorr e Sidney Verba (editores), The International System (Theoretical Essays), Princeton University Press, Princeton, 1967, p. 207. A citação compreende também o texto da nota n° 4.

83

Page 42: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

cenário local, nacional, regional e mundial . Uma utopia idealizando

formação social presente e fundamentando diretrizes dest inadas

aprimorá-la.

Assim, a comunidade mundial aparece como um "sistema", pei

qual queremos significar uma coleção de partes interdependentes

antes do que um grupo de entidades bastante independentes, com?

era o caso no passado. Como conseqüência, o distúrbio do estad

normal das coisas em qualquer parte do mundo logo repercute po

todo o mundo, conforme muitos eventos recentes claramente de

monstram. (...) O mundo não pode mais ser visto como uma coleçã

de (...) nações e um conjunto de blocos econômicos e políticos. E

lugar disso, o mundo deve ser visto como um conjunto de nações

regiões formando um sistema mundial, por meio de arranjos de inter

dependências. (...) O sistema mundial emergente requer uma pers

pectiva holística no que se refere ao futuro desenvolvimento mundial

tudo parece depender de tudo, devido à trama das interdependência

entre as partes e o todo . 6

Enquanto teoria da sociedade, tomada como um sistema amplo

como um conjunto de subsistemas, a teoria sistêmica do mundo é, e

boa medida, uma transposição da teoria sistêmica do Estado-nação;

Mui to do que já se elaborou acerca da organização e dinâmica do Es

t ado nacional tem sido transposto para a análise do sistema mundial

É claro que os autores situados nessa perspectiva teórica empenham

se em reconhecer as originalidades e complexidades da realidade so

ciai mundial . Reconhecem que os problemas e dilemas da organizaçã

e dinâmica da mundialização nascem neste âmbi to , precisamente de

vido às originalidades e complexidades da sociedade mundial . M a |

cont inuam a privilegiar o Estado-nação como o ator por excelência]

6 Mihajlo Mesarovic e Eduard Pestel, Mankind at the Turning Point (Th Second Report to the Club of Rome), E.P. Dutton e Reader's Diges Press, Nova York, 1974, pp. 18-21.

82

A I N T E R D E P E N D Ê N C I A DAS N A Ç Õ E S

do sistema mundial . Ainda que reconheçam a força das empresas, cor­

porações e conglomerados transnacionais, compreendendo inclusive a

iimplitude dos espaços que ocupam ou invadem, ainda assim os ato-

i cs si tuados na perspectiva da teoria sistêmica cont inuam a privilegiar

0 Estado-nação. Este continua a ser o principal emblema, ou mesmo

paradigma, da interpretação sistêmica da mundialização.

Um sistema internacional é um padrão de relações entre unidades

básicas da política mundial, caracterizado pelo escopo dos objetivos

almejados por aquelas unidades e as diretrizes desenvolvidas por

elas, assim como pelos meios utilizados de modo a realizar aqueles

objetivos e implementar aquelas diretrizes. Este padrão é amplamen­

te determinado pela estrutura do mundo, a natureza das forças que

operam através ou dentro das maiores unidades, bem como pela

capacidade, nível de força e política cultural dessas unidades. (...) Tal

definição corresponde às definições aceitas de sistemas políticos

nacionais, que também são caracterizados pelo escopo dos objetivos

políticos (o Estado restrito versus o Estado totalitário, o Estado do

bem-estar social versus o Estado da livre empresa) e pelos métodos de

organização do poder (relações constitucionais entre os ramos do

governo, tipos de sistemas partidários). 7

É claro que os estudos realizados na ótica da teoria sistêmica es­

tão dedicados a esclarecer problemas tais como os seguintes: interde­

pendência e dependência, alianças e blocos, bilateralismo e multilate-

ralismo, integração nacional e integração regional, geoeconomia e

geopolítica, narcotráfico e terrorismo, guerra e revolução, armamen­

tismo e pacifismo, ambientalismo e poluição, soberania e hegemonia.

Esses e outros são problemas emergentes e recorrentes no âmbi to das

7 Stanley Hoffinann, "International Systems and International Law", pu­blicado por Klaus Knorr e Sidney Verba (editores), The International System (Theoretical Essays), Princeton University Press, Princeton, 1967, p. 207. A citação compreende também o texto da nota n°. 4.

Page 43: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

8 Inis L. Claude Jr., States and the Global System (Politics, Law and Or­ganization), MacMillan Press, Londres, 1988, p. 129. Consultar tam­bém: Robert Gilpin, La economia política de las relaciones internaciona­les, tradução de Cristina Pina, Grupo Editor Latinoamericano, Buenos Aires, 1990.

84

A I N T E R D E P E N D Ê N C I A DAS N A Ç Õ E S

É claro que os atores são diversos e desiguais quanto a sua força,

.na posição estratégica, sua amplitude de a tuação, seu monopólio de

tcniicas de poder. O Grupo das 7 nações dominantes, compreenden­

do os Estados Unidos, Japão , Alemanha, Inglaterra, França, Itália e

Canadá, inegavelmente dispõe de meios e modos para influenciar di­

rei rizes não só de Estados dependentes, periféricos, do sul ou do Ter-

iciro M u n d o , como também as organizações bi e multilaterais, com­

preendendo a O N U , o FMI, a OIT, a AIEA, entre outras.

Esse é o âmbito em que se colocam alguns problemas da maior re­

levância, às vezes novos e ainda não interpretados. Um deles diz res­

peito ao princípio da soberania do Estado-nação. É claro que a sobe­

rania do Estado-nação periférico ou do sul é em geral muito limitada,

quando não é simplesmente nula. Se é provável que alguns destes Es­

tados nacionais a lcançaram a soberania em momentos passados, é

muito mais provável que eles pouco ou nada desfrutam de soberania

na época da globalização d o mundo . A dinâmica das relações, proces­

sos e estruturas que constituem a globalização reduzem ou anulam os

espaços de soberania, inclusive para nações desenvolvidas, dominan­

tes, centrais, d o norte ou d o Primeiro M u n d o . A despeito das prerro­

gativas que preservam e inclusive procuram ampliar, é inegável que a

soberania d o Estado-nação é um princípio carente de nova jurispru­

dência, e de out ro estatuto jurídico-político.

A incapacidade dos Estados nacionais para responder a um meio glo­

bal problemático resultará na delegação de tarefas e recursos aos

fóruns e às agências internacionais e supranacionais, o que não signi­

fica que essa tendência será uniforme ou que necessariamente produ­

zirá na prática impulsos democráticos. Essa expansão institucional,

mesmo quando diretamente instigada e orientada por Estados nacio­

nais (isto é, por governos atuando em nome de Estados), provavel­

mente produzirá um intrincado padrão de cooperação e competição

que imporá ulteriores limitações à liberdade de ação dos Estados.

Quanto maior a necessidade de coordenação política, mais difícil

será para os governos seguirem sozinhos, e maior a tendência das ins-

relações internacionais, sempre envolvendo Estados nacionais, mas 1

t ambém sempre ultrapassando seus limites. Daí o empenho evidente

nos estudos sistêmicos pelo esclarecimento do significado e importân­

cia das organizações regionais e mundiais de todo t ipo, desde a O N U

e o FMI até a Organização Internacional d o Trabalho (OIT) e a Agên-!

cia Internacional de Energia Atômica (AIEA), entre muitas outras .

Cabe reiterar, no entanto, que em boa parte das análises sistêmi­

cas sobre a sociedade mundial , tomada no seu todo ou em seus sub-!

sistemas, persiste a prioridade conferida a o Estado-nação. Ainda que

ou t ros atores revelem-se poderosos , impositivos e abrangentes , em!

âmbi to nacional, regional e mundial, o Estado-nação permanece co­

mo o parâmetro principal, como o ator por excelência no jogo das re-'

lações, decisões e implementações em curso na sociedade mundial .

A função reguladora das instituições internacionais, exercendo pres­

são sobre os Estados, quando se trata da colaboração e competição

entre eles, não esgota evidentemente toda a história. O critério da sua

utilidade para os Estados sugere que, em sentido mais amplo, as

organizações internacionais devem ser concebidas como agências de

serviços. Podem ser consideradas como canais por meio dos quais os

Estados prestam-se serviços mutuamente; ou como corpos burocráti­

cos criados e mantidos pelos Estados para prover de serviços os seus

membros. (...) Os Estados mais desenvolvidos apóiam-se nos servi­

ços internacionais para facilitar a conduta da sua diplomacia e do seu

comércio internacional; e os menos desenvolvidos esperam das agên­

cias internacionais mobilização da assistência sem a qual não pode­

riam sobreviver. As organizações internacionais são elementos suple­

mentares do sistema mundial, designados a fazer pelos Estados algu­

mas das coisas que estes não podem realizar por si mesmos. 8

Page 44: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

a A teoria da estabilidade hegemônica, tal como se aplica à economiai

política internacional, define a hegemonia como preponderância de

recursos materiais. São especialmente importantes quatro grupos de

recursos. Os poderes hegemônicos devem ter controle das matérias-8

primas, controle das fontes de capital, controle de mercados e vanta-1 gens competitivas na produção de bens de valor elevado. (...) Um

Estado hegemônico deve possuir suficiente poder militar, para serl

9 Joseph A. Camilleri e Jim Falk, The End of Sovereignty? (The Política of a Shrinking and Fragmenting World), Edward Elgar Publishing,] Hants, Inglaterra, 1992, pp. 252 e 253. Consultar também: Karl W. Deu-J tsch, Las naciones en crisis, tradução de Eduardo L. Suárez, Fondo del Cultura Econômica, México, 1981; Antonio Cassese, / Diritti Umani ne\ Mondo Contemporâneo, Editori Laterza, Roma-Bari, 1988; Oscarj Schachter, International Law in Theory and Practice, Martinus Nijhoffl Publishers, Dordrecht-Boston-Londres, 1991.

86

A I N T E R D E P E N D Ê N C I A D A S N A Ç Õ E S

capaz de proteger a economia política internacional da incursão de

adversários hostis. Isto é essencial, porque os temas econômicos, se

são suficientemente cruciais para os valores nacionais básicos, po­

dem converter-se também em temas de segurança militar. (...) Não

obstante, não é necessário que o poder hegemônico exerça domina­

ção militar mundial. (...) As condições militares necessárias para a

economia hegemônica são satisfeitas se o país economicamente pre­

ponderante tem suficiente capacidade militar para impedir incursões

de outros, que lhe impediriam acesso às principais áreas de sua ativi­

dade econômica. 1 0

Note-se que as noções de soberania e hegemonia revelam-se não

só problemáticas mas centrais, nas análises sistêmicas. Grande parte

dessas análises dedica-se a codificar as condições e as possibilidades

de soberania e hegemonia. São temas da maior relevância n u m a épo­

ca em que o mundo se torna um cenário de muitas nações, em geral

polarizadas por algumas mais fortes. Em dada época, o m u n d o pode

estar polarizado em torno dos Estados Unidos e da União Soviética,

ao passo que em outra polariza-se em torno dos Estados Unidos, Ja­

pão e Alemanha, o u Europa Ocidental. M a s a Rússia polariza algu­

mas nações do ex-bloco soviético. E a China poderá tornar-se ou t ro

pólo opor tunamente . E há nações, como a África do Sul, índia, Mé­

xico, Brasil e outras que desfrutam de posições especiais em sistemas

geoeconômicos e geopolíticos. Cabe observar, ainda, que dentre as

nações-satélites são muitas as extremamente problemáticas, por seus

dilemas sociais, econômicos, políticos e culturais. Algumas não pos­

suem propriamente fisionomias de nações, já que estão atravessadas

por drásticas divisões internas, envolvendo provincianismos, localis­

mos, etnicismos, racismos ou fundamentalismos. Absorvem-se em lu­

tas internas e empenham-se em adquirir o estatuto de nações. São ato-

io Robert O. Keohane, Después de la hegemonia (Cooperación y Dis­cordia en La Política Económica Mundial), tradução de Mirta Rosen-berg, Grupo Editor Latinoamericano, Buenos Aires, 1988, pp. 50 e 59.

8 7

tituições internacionais de estabelecerem limitações adicionais àJ

opções práticas disponíveis à "soberania" dos Estados. (...) O cresci­

mento quantitativo e qualitativo de atores subnacionais, internacio­

nais e transnacionais (...) necessariamente leva a uma contínua p e n e i

tração através das fronteiras dos Estados. (...) O Estado não pode

obstar ou reverter as condições materiais que definem o sistema mun­

dial emergente: a revolução tecnológica na comunicação e transpor-V

te, a mobilidade transnacional do capital, as dimensões globais e oi

impacto da destruição ambiental. 9

N o âmbito d o sistema mundial, coloca-se também o problema da

hegemonia, isto é, do Estado-nação mais forte e influente, m o n o p o l i l

zando técnicas de poder e oferecendo ou impondo diretrizes aos ou-1

t ros. Mais uma vez, a perspectiva sistêmica privilegia o E s t a d o - n a ç ã o l

t an to o que predomina como o que se subordina. Nessa pe rspec t iva i

as relações, os processos e as estruturas características da global ização!

em geral dissolvem-se nas interpretações relativas às relações internai

cionais desenvolvidas pelas diplomacias nacionais.

Page 45: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

88

A I N T E R D E P E N D Ê N C I A DAS N A Ç Õ E S

1 1 Samuel P. Huntington, "Transnational Organizations in World Pol­itics", World Politics, vol. XXV, n° 3,1973, pp. 344 e 345-6. Consultar também: Everett E. Hagen, On the Theory of Social Change (How Economic Growth Begins), The Dorsey Press, Homewood, Illinois, 1962.

89

res problemáticos em subsistemas regionais. Note-se, no entanto, que

esse mapa do mundo contempla também múltiplas corporações priva­

das e organizações governamentais de âmbito bi e multilateral, como

atores mais ou menos fortes no jogo das lutas que se sintetizam, em

última instância, nas noções de soberania e hegemonia. Em boa medi­

da, as análises sistêmicas conferem a esse jogo de atores no cenário

mundial a responsabilidade pela organização e dinâmica do sistema

mundial , como um todo e em seus subsistemas.

Ainda que sua postura metodológica seja sempre isenta, neutra ou

equidistante, no que se refere às relações entre as partes e o todo , ou

no jogo das relações entre os atores participantes do sistema, a teoria

sistêmica envolve geralmente as noções de evolução e modernização

do capitalismo. De m o d o implícito, ou aber tamente , a maioria das

interpretações da realidade em termos da organização e dinâmica dos

sistemas e subsistemas nacionais e mundiais contempla o suposto de

que a organização e dinâmica prevalecentes tendem a pautar-se pelas

sociedades modernas mais desenvolvidas, dominantes, centrais ou he­

gemônicas. H á um evidente ocidentalismo, juntamente com o capita­

lismo, quando as interpretações esclarecem o modo pelo qual as par­

tes, as unidades, os segmentos ou os atores menos desenvolvidos, isto

é, arcaicos, periféricos ou marginais são contemplados na organização

e dinâmica da sociedade mundial . A própr ia noção de hegemonia,

conforme tem sido definida nas análises sistêmicas, supõe que o hege­

mônico não só centraliza e dirige, mas também orienta, impõe ou im­

plementa diretrizes destinadas a tornar os tradicionais em modernos.

A expansão das organizações transnacionais e a simultânea multipli­

cação de governos nacionais são, ambas, em certo sentido, respostas

às tendências de modernização social, econômica e tecnológica que

estão varrendo o mundo. Os novos desenvolvimentos da economia,

tecnologia e administração tornaram possível que organizações fun­

cionais específicas — tais como a corporação ou o serviço militar —

operassem em âmbito global. (...) Transnacionalismo é o modo nor­

te-americano de expansão. Significa "liberdade de ação" antes do que

"poder de controle". A expansão dos Estados Unidos tem sido uma

expansão pluralística, na qual uma variedade de organizações, gover­

namentais e não-governamentais, procura realizar os objetivos im­

portantes para eles no território de outras sociedades. (...) A penetra­

ção norte-americana em outras sociedades era geralmente justificada

(...) na base da superioridade tecnológica e econômica, o que deu a

grupos norte-americanos o direito presumido — e até mesmo o dever

— de realizar certas funções especializadas em outras sociedades, n

Nesta al tura da narração, logo se revelam algumas confluencias

significativas. A teoria sistêmica do mundo compreende t ambém as

noções de ocidentalismo e capitalismo. São os padrões, os ideais e as

instituições do capitalismo e ocidentalismo, ou vice-versa, que coman­

dam a organização e dinâmica da mundialização. E mundialização é

também e sempre modernização, mas modernização nos moldes d o

capitalismo ocidental.

A teoria sistêmica do mundo envolve tan to as noções de ociden­

talismo e capi ta l ismo como as de modernização e evolução, com­

preendendo integração e diferenciação; no que se refere a formas de

vida e t rabalho ou organização e dinâmica de sistemas e subsistemas,

em âmbito local, nacional, regional e mundial. Envolve o suposto de

que o sistema social mundial é ou tende a configurar-se como um todo

articulado com base no princípio da causação funcional, em que os

atores são levados a comunicarem-se entre si e a agir em termos de es­

colha racional. Uma totalidade problemática, mas tendente à integra­

ção. Supõe que a dinâmica das partes mais ou menos ativas, desenvol­

vidas ou predominantes, pode difundir-se pelas partes menos ativas,

subdesenvolvidas ou subalternas. Sob certos aspectos, é possível dizer

que a teor ia da modern ização mundia l adqui re mais consistência

Page 46: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

1 2 Niklas Lukmann, "The World Society as a Social System", Internatioi nal Journal of General Systems, vol. 8, 1982, pp. 131-138; citação dad pp. 133-134. Consultar também: Niklas Luhmann, Sociedad y sistemas la ambición de la teoria, tradução de Santiago López Petit e Dorothea Schmitz, Ediciones Paidós Ibérica, Barcelona, 1990.

90

A I N T E R D E P E N D Ê N C I A DAS N A Ç Õ E S

dos" . N a realidade, são principalmente as "elites" dominantes (envol­

vendo indivíduos, grupos, classes, organizações governamentais , or­

ganizações bi e multilaterais, corporações nacionais e transnacionais)

alguns dos principais "a to res" que concretamente agem de m o d o a

produzir, orientar e dinamizar "desvios" destinados a provocar mu­

dança ou evolução. Uma parte volumosa da produção de economis­

tas, sociólogos, cientistas políticos, geógrafos, demógrafos e demais

cientistas sociais está inspirada, aberta ou implicitamente, por "obje­

tivos" ou "previsões" destinados a produzir crescimento, desenvolvi­

mento, industrial ização, urbanização, secularização, individuação,

racionalização, modernização, evolução, progresso. N ã o se t ra ta de

duvidar da isenção ou inocência da teoria sistêmica, mas sim de reco­

nhecer que ela tem inspirado objetivos e previsões destinados à oci­

dentalização do mundo , nos moldes do capitalismo.

Dentre as características mais significativas da cultura ocidental,

no contexto do sistema social internacional, destaca-se:

O desenvolvimento de quadros de referência normativos e institucio­

nalizados de organização da sociedade secular desenvolvida; ao pas­

so que a maioria das culturas não ocidentais mais importantes tem

deixado maior espaço para o "tradicionalismo", o que se evidencia

nas economias predominantemente camponesas, pela posição social

especial das aristocracias hereditárias, pelo relativamente baixo ou

mesmo ausente nível de educação de todos, menos uma pequena eli­

te etc. Sejam quais forem as mais profundas bases culturais do predo­

mínio dos valores ocidentais (e para mim estão em última instância

enraizados em orientações religiosas), a conseqüência primeira de seu

presente significado está na imensa ênfase na importância de dois

níveis preliminares da operativa organização das modernas socieda­

des, isto é, da "modernização" efetiva da estrutura política da socie­

dade e da economia. N o caso da política, o impulso no sentido do

desenvolvimento de um "Estado moderno" está, acima de tudo, na

efetiva organização de caráter burocrático, o que significa a elimina­

ção ou drástica redução da influência dos grupos "tradicionais" de

quando se complementa, o u sofistica, com a teoria sistêmica d o mun­

do. Podem ser tomadas c o m o as duas faces da mesma moeda, isto é,

da mesma forma de refletir sobre a constituição e dinâmica da reali­

dade social, em âmbito local, nacional, regional e mundial; nos mol-j

des do capitalismo, muitas vezes apresentado como ocidentalismo ouj

modernismo.

Talvez se possa dizer que a teoria sistêmica apresenta uma versão

mais elaborada da teoria da modernização, já que naquela e scondem!

se alguns dos valores, ou padrões , ideais e instituições, que se mos­

tram muito mais explícitos d o que nesta.

O sistema social pode mudar as suas estruturas somente pela evolu­

ção. Evolução pressupõe reprodução auto-referenciada, e muda as

condições estruturais de reprodução pelos diversos mecanismos dei

diferenciação, tais como variação, seleção e estabilização. Alimenta

desvios da reprodução normal. Tais desvios são em geral acidentais,

mas, no caso dos sistemas sociais, podem ser intencionalmente pro­

duzidos. A evolução, no entanto, opera sem um objetivo e sem previ-»

são. Pode produzir sistemas de mais alta complexidade. A longo pra­

zo, pode transformar eventos improváveis em prováveis; e algum

observador pode ver isto como "progresso" (se o seu próprio sistema

de referência persuadi-lo disso). Somente a teoria da evolução pode j

explicar a transformação estrutural da segmentação à estratificação e !

da estratificação à diferenciação funcional; o que levou à sociedade

mundial de hoje . 1 2

Note-se que "desvios" destinados a provocar mudança social, ou

mesmo evolução sistêmica, podem ser " intencionalmente produzi- l

Page 47: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

poder. (...) O outro contexto importante é a modernização da econo­

mia, que tem significado, mais ou menos, uma prioridade à industria­

lização, como nós a entendemos, com o seu uso da organização buro­

crática, de uma ágil e tecnicamente treinada força de trabalho, exten­

são das transações monetárias e da organização do mercado, além de

várias outras características do gênero . 1 3

Cabe observar, ainda, que as interpretações sistêmicas do mundo ,

como um todo e em seus múltiplos subsistemas, são provavelmente as

mais comuns entre as utilizadas praticamente pelos "a tores" ou pelas

"elites" dominantes, tanto em sociedades nacionais como na sociedade

mundial . Elas respondem, de modo sintético e técnico, às várias exigên­

cias desses atores ou elites. Permitem taquigrafar as complexidades e

contradições das mais diferentes formações sociais, de modo a eleger

fatores, atributos, indicadores ou variáveis, principais e secundários,

q u a n d o se t r a t a de p rovoca r ou induzir "desv ios" e "p rev i sões" .

Podem ser tomadas como elaborações mais ou menos sofisticadas da

razão subjetiva, instrumental ou técnica, construindo esquemas, mode­

los, estratégias ou jogos, por meio dos quais formulam-se diagnósticos

e prognósticos, planos e projetos, diretrizes e implementações.

A capacidade de sobrevivência dos sistemas sociais humanos depende,

em grande medida, da sua capacidade de adaptar-se à realidade mutá­

vel. (...) Já que as modas de pensamento e crenças (...) são mutáveis,

os sistemas sociais são constantemente ameaçados desde dentro. (...)

Os sistemas sociais são ameaçados também do exterior, pois que

outros sistemas ameaçam mudá-lo ou destruí-lo. (...) Os sistemas es­

tão sempre sujeitos a pressões do exterior e do interior e devem perma­

necer sempre alerta, se querem preservar a própria sobrevivência a

longo prazo . 1 4

1 3 Talcott Parsons, Politics and Social Structure, The Free Press, Nova York, 1969, pp. 305-306. Citação extraída do cap. 12: "Order and Community in the International Social System", pp. 292-310.

1 4 Ervin Laszlo, La Visione Sistêmica del Mondo, tradução de Davide Cova, Grupo Editoriale Insieme, Recco, Itália, 1991, pp. 92-93.

92

A I N T E R D E P E N D Ê N C I A DAS N A Ç Õ E S

Sob vários aspectos, as interpretações sistêmicas do mundo cons-

tituem-se em ingredientes não só ativos, mas fundamentais, do m o d o

polo qual está ocorrendo a globalização. Consti tuem um vasto e com­

plexo tecido de interpretações, orientando as atividades e os ideários

de muitos atores e elites presentes e atuantes nos mais diversos luga­

res. Ajudam a taquigrafar e codificar, organizar e dinamizar, ou dese­

nhar e cristalizar o mapa do mundo, em conformidade com a perspec­

tiva e os interesses daqueles que predominam no jogo das forças pre­

sentes e atuantes nas configurações e nos movimentos da sociedade

global.

Page 48: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

CAPÍTULO 5 A ocidentalização do mundo

(

Page 49: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

Desde que a civilização ocidental passou a predominar nos quat ro can­

tos do mundo , a idéia de modernização passou a ser o emblema do de­

senvolvimento, crescimento, evolução ou progresso. As mais diversas

formas de sociedade, compreendendo tribos e nações, culturas e civili­

zações, passaram a ser influenciadas ou desafiadas pelos padrões e

valores sócio-culturais característicos da ocidentalidade, principalmen­

te sob suas formas européia e norte-americana. As noções de metrópo­

le e colônia, império e imperialismo, interdependência e dependência,

entre outras, expressam também o vaivém do processo histórico-social

de ocidentalização ou modernização do mundo . As noções de país

desenvolvido e subdesenvolvido, industrial e agrário, central e periféri­

co, do Primeiro, Segundo e Terceiro Mundos , do nor te e do sul ou

moderno e arcaico, essas e as demais noções que povoam e continuam

a povoar o imaginário mundial no século XX, já nos primórdios do

XXI, trazem consigo a idéia de modernização do mundo . As noções de

revolução de expectativas, dualidades estruturais, t rocas desiguais,

deteriorização das relações de intercâmbio, terceiro-mundismo, nasse-

rismo, maoísmo, castrismo, populismo, socialismo, comunismo, refor­

ma e revolução, entre muitas outras, também trazem consigo esta mes­

ma idéia de modernização, em níveis nacionais, regionais e mundiais.

97

Page 50: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

1 CE . Black, The Dynamics of Modernization (A Study in Comparative) History), Harper & Row Publishers, Nova York, 1966, p. 139. Consul-) tar também: Serge Latouche, L'occidentalisation du monde, La Décou-j verte, Paris, 1989; Jean Chesneaux, Modernité-monde, La Découverte, Pa-j

S 8

A O C I D E N T A L I Z A Ç Ã O DO M U N D O

A tese da modernização do mundo sempre leva consigo a tese de

sua ocidentalização, compreendendo principalmente os padrões , va­

lores e instituições predominantes na Europa Ocidental e nos Estados

Unidos. É uma t radução da idéia de que o capitalismo é um processo

civilizatório não só "superior" , mas também mais ou menos inexorá­

vel. Tende a desenvolver-se pelos quatro cantos do mundo , generali­

zando padrões, valores e instituições ocidentais. É claro que sempre se

acomoda ou combina com os padrões, valores e instituições com as

quais se defronta nas mais diferentes tribos, sociedades, nações, na­

cionalidades, cul turas e civilizações. Pode conviver mais ou menos

tensa ou pacificamente com outras formas de organização da vida e

trabalho; mas em geral predominando.

A teoria da modernização está na base de muitos estudos, deba­

tes, prognósticos, práticas e ideais relativos à mundialização. Tem por

suposto fundamental que tudo que é social se moderniza ou tende a

modernizar-se, nos moldes do ocidentalismo, a despeito dos impasses,

ambigüidades, dualidades ou retrocessos. Modernizar pode ser secu­

larizar, individualizar, urbanizar, industrializar, mercantilizar, racio­

nalizar. Implica o suposto de que o que já ocorreu e continua a ocor­

rer na Inglaterra, Alemanha, França, Estados Unidos, Canadá , Japão

e em outras nações, naturalmente em diferentes gradações, certamen­

te es tará o c o r r e n d o em todas as demais nações da E u r o p a , Ásia,

Oceania, África, América Latina e Caribe. O mesmo capitalismo que

se consolida e desenvolve nos países centrais, do norte, metropolita­

nos ou dominantes tende a espalhar-se pelo mundo , impregnando as

sociedades coloniais, subdesenvolvidas, agrárias, dependentes, perifé­

ricas, do sul, do Terceiro M u n d o . Sem esquecer que no ideário da teo­

ria da modernização estão presentes a democracia, os direitos de cida­

dania; a institucionalização das forças sociais em conformidade com

padrões jurídico-políticos de negociação e acomodação; o estabeleci­

mento das condições e limites das mudanças sociais; as garantias con-

ris, 1989; Samir Amin, L'eurocentrisme (Critique d'une Idéologie), An-thropos, Paris, 1988.

99

A própria a tuação da Organização das Nações Unidas (ONU), pon

suas diversas organizações filiadas, no que se refere à economia, políti­

ca, cul tura , educação e out ras esferas da vida social, tem sido uma'

a tuação destinada a apoiar, incentivar, orientar ou induzir à modernH

zação, nos moldes do ocidentalismo. D o mesmo modo as empresasj

corporações e conglomerados transnacionais operam de modo a incen-j

tivar e induzir a modernização das atividades e mentalidades. É claro

que a mídia impressa e eletrônica, organizada em redes internacionaisJ

transnacionais ou planetárias, exerce papéis decisivos na formulação,

difusão, a l te ração e legit imação de padrões , valores e instituições!

modernos, modernizados, modernizáveis e modernizantes.

A modernização do mundo implica a difusão e sedimentação dos

padrões e valores sócio-culturais predominantes na Europa Ocidental

e nos Estados Unidos. Estão em causa os princípios da liberdade e

igualdade de proprietários articulados no contra to juridicamente esta-j

belecido. Estão em causa os processos de urbanização, de industriali-j

zação , de mercanti l ização, de secularização e de individuação. N o

âmbi to do ocidentalismo, predominam n ã o só a individuação, mas<

também e principalmente o individualismo. Em distintas gradações,!

tendem a predominar as figuras do homo economicus e do homo poli\

ticus, subsumindo as mais diversas formas e possibilidades da vida so­

cial. O individualismo possessivo, relativo à propriedade, à apropria-j

ção e ao mercado, expressa boa parte d o t ipo de personalidade que!

tende a predominar na sociedade moderna , modernizada, moderni-j

zante ou modernizável. "A concepção de m u n d o moderno , prevale-.'

cente nas sociedades avançadas da Europa Ocidental e nas sociedades!

de fala inglesa, ganhou a dianteira na formação de instituições inter™

nacionais e na transformação do mundo , em resultado da generaliza­

da adoção dos seus valores e insti tuições." 1

Page 51: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

t ra as idéias revolucionárias traduzidas em práticas; a precedência da

l iberdade econômica em face da política; a primazia da c idadania

política em face da social e cul tural 2 .

Pode-se dizer que a teoria da modernização tem por base também

o pr inc íp io da " m ã o invisível", imaginado pela pr imeira vez por

Adam Smith. Na medida em que se desenvolve a divisão do t rabalho

social em escala nacional, regional, internacional e global, promove-

se a difusão dos fatores produtivos, das capacidades produtivas, dos

produtos produzidos e do bem-estar geral. N o limite, a mão invisível

pode garantir a felicidade geral de uns e outros, em todo o mundo , em

conformidade com os princípios do mercado, do ideário do liberalis­

m o e neol ibera l ismo: economia e l iberdade; l iberdade econômica

como condição de liberdade política; liberdade e igualdade de pro­

prietários garantidos pelo contrato codificado no direi to. 3

O neoliberalismo dos tempos da globalização do capitalismo re­

toma e desenvolve os princípios que se haviam formulado e posto em

prática com o liberalismo ou a doutrina da m ã o invisível, a part ir do

século XVIII. Mas o que distingue o neoliberalismo pode ser o fato de

que ele diz respeito à vigência e generalização das forças do mercado

capitalista em âmbito global. É verdade que alguns de seus pólos do­

minantes e centros decisórios localizam-se nos Estados nacionais mais

fortes. Em escala crescente, no entanto, formam-se pólos dominantes

e centros decisórios localizados em empresas, corporações e conglo­

merados transnacionais. Aí nascem diretrizes relativas à desestatiza-

ção , desregulação, privatização, liberalização e regionalização. São

2 David C. McClelland, The Achieving Society, Irvington Publishers, Nova York, 1976; C.B. Macpherson, The Political Theory of Possessive In­dividualism, Oxford University Press, Oxford, 1990; T.H. Marshall, Ci­dadania, classe social e status, tradução de Meton Porto Gadelha, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1967, esp. cap. Ill: "Cidadania e Classe Social".

3 John Eatwell, Murray Milgate e Peter Newman (editores), The In­visible Hand, The MacMillan Press, Londres, 1989; Milton Friedman, Capitalismo e liberdade, tradução de Luciana Carli, Abril Cultural, São Paulo, 1984.

A O C I D E N T A L I Z A Ç Ã O DO MUNDO

diretrizes que principalmente o Fundo Monetár io Internacional (FMI)

e o Banco Mundial (BIRD) encarregam-se de codificar, divulgar, im­

plementar e administrar. Enquanto o liberalismo baseava-se no prin­

cípio da soberania nacional, ou ao menos tomava-o como parâmet ro ,

o neoliberalismo passa por cima dele, deslocando as possibilidades de

soberania para as organizações, corporações e outras ent idades de

âmbito global.

São "elites" de vários tipos que organizam e dinamizam as insti­

tuições multilaterais e as corporações transnacionais, além de outras

entidades de alcance mundial . Formam tecnoestruturas a rmadas de

recursos científicos e tecnológicos, em condições de produzir informa­

ções, análises, diagnósticos, prognósticos, diretrizes e práticas relati­

vos a diferentes problemas e desafios, em escala mundial. É evidente

que a modernização do mundo , em geral na esteira da globalização d o

capitalismo, confere tarefas fundamentais aos quadros ou elites inte­

lectuais. 4 i

Sim, a teoria da modernização confere um papel especial às elites

modernizantes e deliberantes. Podem ser elites intelectuais, empresa­

riais, militares, religiosas e outras, vistas em separado e em conjunto.

Seriam os grupos que inovam, mobilizam, organizam, dirigem, expli­

cam e põem em prática. O povo, as massas, os grupos e classes sociais

são induzidos a realizar as diretrizes estabelecidas pelas elites moderni­

zantes e deliberantes. Daí a necessidade de alfabetizar, profissionalizar,

urbanizar, secularizar, modificar instituições e criar novas, reverter

expectativas e out ras diretrizes, de m o d o a viabilizar a execução e

d inamização dos objetivos e meios de modern ização , m o d e r n o s ,

modernizantes. Há algo de schumpeteriano na teoria da modernização

4 John K. Galbraith, The New Industrial State, Hamish Hamilton, Lon­dres, 1967, especialmente o cap. VI; Richard N. Gardner e Max F. Mili-kan (editores), The Global Partnership (International Agencies and Eco-nomic Development), Frederick A. Praeger Publishers, Nova York, 1968; Alvin W. Gouldner, El futuro de los intelectuales y el ascenso de la nue­va clase, tradução de Néstor Miguez, Alianza Editorial, Madri, 1985.

101 100

Page 52: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

d o mundo caminhando na esteira da globalização do capitalismo. "<j

problema crucial é a presença ou ausência, em uma ou diversas esferas

institucionais, de um ativo grupo especial de 'empreendedores ' , o J

uma elite apta a oferecer soluções para a nova escala de problemas."*

N a época da globalização, mundializam-se as instituições mais

t ípicas e sedimentadas das sociedades capitalistas dominan tes . O I

princípios envolvidos no mercado e no contrato generalizam-se, tor-l

nando-se padrões para os mais diversos povos, as mais diversas for |

mas de organização social da vida e do t rabalho, independentemente

das culturas e civilizações. Princípios que se tornam progressivamente

patr imônio de uns e outros, em ilhas, arquipélagos e continentes: mer-l

cado , livre empresa, produtividade, desempenho, consumismo, lucra-j

tividade, tecnificação, automação, robotização, flexibilização, infor­

mática, telecomunicações, redes, técnicas de produção de realidades]

virtuais. Esse é o contexto em que as coisas, as gentes e as idéias pas­

sam a ser atravessados pela desterri torialização, isto é, por outras

modalidades de territorialização.

N a medida em que se desenvolvem e generalizam, os processos

envolvidos na modernização ultrapassam ou dissolvem fronteiras de

todo o t ipo, locais, nacionais, regionais, continentais; ultrapassam ou]

dissolvem as barreiras culturais, lingüísticas, religiosas ou civilizató-i

rias. Por sobre tudo o que é local e nacional, desenvolvem-se relações,

processos e estruturas dinamizadas pela modernização, em geral tra­

duzida em técnicas sociais de produção e controle. Mui to do que se;

5 S.N. Eisenstadt, "Social Change, Differentiation and Evolution", Ame­rican Sociological Review, vol. 29, n° 3,1964, pp. 375-386; citação da p. 384; S.N. Eisenstadt, Modernização: protesto e mudança (Modernização de Sociedades Tradicionais), tradução de José Gurjão Neto, Zahar Edito­res, Rio de Janeiro, 1969; Clark Kerr, John T. Dunlop, Frederick H. Harbison e Charles A. Myers, Industrialism and Industrial Man (The Problem of Labor e Management in Economic Growth), Harvard University Press, Cambridge, 1960; Joseph A. Schumpeter, The Theory of Economic Development, tradução de Redvers Opie, Oxford Uni-versify Press, Nova York, 1961, esp. cap. II: "The Fundamental Pheno­menon of Economic Development".

A O C I D E N T A L I Z A Ç Ã O DO M U N D O

faz e pensa no mundo passa a pautar-se pelo que é, parece ou pode ser

moderno. E o que parece ou pode ser moderno , modernizado, moder-

nizável ou modernizante traduz-se necessariamente em prático, prag­

mático, técnico, instrumental.

A tecnologia, como uma forma de organizar a produção, como uma

totalidade de instrumentos, esquemas e inventos que caracterizam a

era da máquina, é, pois, ao mesmo tempo, um modo de organizar e

perpetuar (ou mudar) as relações sociais, as manifestações predomi­

nantes do pensamento, os padrões de comportamento e um instru­

mento de controle e dominação. 6

Esse é o reino da razão instrumental, técnica ou subjetiva, per­

meando progressivamente todas as esferas da vida social, em âmbito

local, nacional, regional e mundial. N o mesmo curso da modernização

do mundo , simultaneamente à globalização do capitalismo, prossegue

a generalização do pensamento pragmático ou tecnocrático. Cami­

nham juntos, mais ou menos conjugados ou desencontrados, espalhan­

do-se pelo mundo. Esse o modo de pensar e agir que se generaliza.

Relaciona-se essencialmente com meios e fins, com a adequação de

procedimentos a propósitos mais ou menos tidos como certos e que

se presumem auto-explicativos. Concede pouca importância à inda­

gação de se os propósitos como tais são racionais. Se essa razão se

relaciona de qualquer modo com os fins, ela tem como certo que

estes são também racionais no sentido subjetivo, isto é, de que ser­

vem ao interesse do sujeito quanto à autopreservação — seja a do

indivíduo isolado ou a da comunidade de cuja subsistência depende

a preservação do indivíduo. A idéia de que um objetivo possa ser

6 Herbert Marcuse, "Some Social Implications of Modern Technology", Studies in Philosophy and Social Science, vol. IX, n° 3, Nova York, 1941, pp. 4i4-439 ; citação da p. 414. Consultar também: Herbert Marcuse, One-Dimensional Man, Beacore Press, Boston, 1966.

103 102

Page 53: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

racional por si mesmo — fundamentada nas qualidades que se I podem discernir dentro dele — sem referência a qualquer espécie de I lucro ou vantagem para o sujeito, é inteiramente alheia à razão sub- I jetiva, mesmo quando esta se ergue acima da consideração de valores I utilitários imediatos e se dedica a reflexões sobre a ordem social I como um todo . 7

Por sob o ideário da modernização universal está presente a idéia

de evolução progressiva, diferenciação crescente, aperfeiçoamento ili­

mi tado. Nessa perspectiva, a mundialização seria um desdobramento

possível, necessário e inevitável do processo de modernização ineren­

te ao capitalismo, entendido como processo civilizatório dest inado a

realizar uma espécie de coroamento da história da humanidade. Aos

poucos, modernizar e evoluir tornam-se reciprocamente referidos, in­

tercambiáveis, correspondentes. N a esteira da modernização, colo­

cam-se a evolução e o crescimento, o desenvolvimento e o progresso,

sempre n o âmbi to da sociedade de mercado, d o capi tal ismo. Uma

idéia antiga, já presente nos primórdios d o liberalismo e d o positivis­

mo , readquire vigência e força no âmbito dos problemas práticos e

teóricos suscitados pela globalização do capitalismo.

O evolucionismo subjacente à idéia de modernização já n ã o é

apenas aquele formulado por Herbert Spencer, um tanto linear, deter­

minístico e eurocêntrico. Nem o que se acha implícito no positivismo

de Auguste Comte, também unilinear, determinístico e eurocêntrico.

O neo-evolucionismo formulado desde meados d o século X X é mais

nuançado, contempla rupturas e reorientações, além das diferencia­

ções e mudanças da realidade social, como um todo e em suas diver­

sas dimensões econômicas, políticas, culturais e outras . Está fertiliza-

7 Max Horkheimer, Eclipse da razão, tradução de Sebastião Uchoa Leite, Editorial Labor do Brasil, Rio de Janeiro, 1976, pp. 11-12. Consultar também: Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, Dialética do esclare­cimento, tradução de Guido Antonio de Almeida, Jorge Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1985.

104

A O C I D E N T A L I Z A Ç Ã O DO M U N D O

do pelas controvérsias com o marxismo e out ras teorias. M a s guarda

um compromis so essencial c o m o funcional ismo. N o s e s t u d o s de

cunho evolucionista, a globalização aparece como coroamento neces-

•nrio, mais ou menos harmônico e funcional. Combina recorrências e

lincronias, caminhando sempre para diferenciações necessárias, cada

vez mais complexas, integradas e aperfeiçoadas. Supõe uma tendência

predominante de articulação harmônica entre as partes e o t o d o , as

sociedades nacionais e a sociedade global.

Há algo desse evolucionismo na " tese" do fim da história. Ela im­

plica o suposto de que a humanidade estaria alcançando, o u já teria

alcançado, seu pa tamar superior, seu clímax, superando contradições

e rupturas estruturais. A despeito dos problemas ainda remanescen­

tes, e mesmo de out ros emergentes, a humanidade estaria en t r ando

em uma época de realização mais livre d o progresso, dedicando-se

principalmente ao própr io aperfeiçoamento. Uma espécie de ante-sala

do paraíso.

À medida que a humanidade se aproxima do fim do milênio, as crises

paralelas do autoritarismo e do socialismo centralizado deixaram no

ringue um só competidor, como uma ideologia de validade potencial­

mente universal: a democracia liberal, a doutrina da liberdade indivi­

dual e da soberania popular. Duzentos anos depois de terem dado vida

às Revoluções Francesa e Americana, os princípios de liberdade e

igualdade mostram-se não apenas duráveis, mas também ressurgentes.

(...) O sucesso da democracia numa extensa variedade de lugares e

entre muitos povos diferentes indicaria que os princípios de liberdade

e igualdade nos quais eles se baseiam não são acidentes ou resultados

de preconceito etnocêntrico; são na verdade descobertas sobre a natu­

reza do homem como homem, cuja verdade não diminui, mas se torna

mais evidente à medida que o ponto de vista fica mais cosmopolita. 8

8 Francis Fukuyama, O fim da História e o último homem, tradução de Aulyde Soares Rodrigues, Editora Rocco, Rio de Janeiro, 1992, pp. 72-73 e 82.

105

Page 54: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

9 Perry Anderson, O fim da História (De Hegel a Fukuyama), traduçã de Alvaro Cabral, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1992, p. 11.

106

A O C I D E N T A L I Z A Ç Ã O DO M U N D O

1 0 Talcott Parsons, Sociedades (Perspectivas Evolutivas e Comparativas), tradução de Dante Moreira Leite, Livraria Pioneira Editora, São Paulo, 1969, pp. 12-13 e 171. Consultar também: S.N. Einsenstadt, "Theories of Social and Political Evolution and Development", publicado por Unesco, The Social Sciences (Problems and Orientations), Mouton, The Hague, Paris, 1968, pp. 178-191.

N a época de globalização do capitalismo, entra em cena a ideolo­

gia neoliberal, como seu ingrediente, p roduto e condição. Q u a n d o se

criam, fortalecem e generalizam as estruturas globais de poder , porj

sobre os Estados nacionais, cria-se a ilusão de que a época conturba-j

da do capitalismo alcançou seu limite, de que chegou o fim da históA

ria. Imaginar-se-ia

que a humanidade atingiu o ponto final de sua evolução ideológica

com o triunfo da democracia liberal ocidental sobre todos os seus]

concorrentes no final do século XX. O fascismo, outrora um podero­

so rival, tinha sido categoricamente destruído na Segunda Guerra

Mundial. O comunismo, o grande adversário do pós-guerra, estava j

em visível colapso, rendendo-se como sistema ao capitalismo que ti- j

nha outrora procurado derrubar. Desacreditadas essas duas alterna-

tivas globais, restaram apenas resíduos locais do passado histórico:

nacionalismos sem conteúdo social definido ou pretensão universal, I

fundamentalismos confinados a comunidades religiosas específicas

em zonas subdesenvolvidas do Terceiro Mundo. A vitória do capita- •!

lismo liberal foi alcançada não só na Europa, com a derrota do nazis­

mo e a desintegração do stalinismo, mas também no igualmente im-

portante campo de batalha da Ásia, com a transformação do Japão j

no pós-guerra, a liberalização em curso na Coréia do Sul e, em Tai­

wan, a crescente mercantilização da China. 9

Talvez se possa dizer que, em essência, o evolucionismo funda-se 1

em uma historicidade um tanto linear, automática, produzida pela di-i

ferenciação interna das atividades e funções. Transfere para a realida­

de social, ou propriamente histórica, o princípio epistemológico for-1

mulado pelo evolucionismo darwinista, relativo à biologia humana , à

fauna e à flora. Contém uma espécie de organicismo e implica umaj

visão naturalística da vida social, da historicidade do social.

Em nosso estudo de sociedades seremos orientados por uma perspec­

tiva evolutiva. (...) Concebe o homem como integrante do mundo or­

gânico, e a sociedade humana e a cultura como analisadas correta­

mente no quadro geral adequado ao processo da vida. Use-se, ou

não, o adjetivo "biológico", o princípio da evolução é firmemente es­

tabelecido como aplicável ao mundo das coisas vivas. Aqui deve ser

incluído o aspecto social da vida humana. Alguns conceitos básicos

da evolução orgânica — por exemplo, variação, seleção, adaptação,

diferenciação e integração — constituem, quando adequadamente

ajustados ao aspecto social e cultural, o centro de nosso interesse. A

evolução sócio-cultural, como a evolução orgânica, avançou, através

de variação e diferenciação, de formas simples a formas progressiva­

mente mais complexas. (...) A nossa perspectiva evidentemente

supõe (...) que as sociedades intermediárias são mais adiantadas que

as sociedades primitivas, e que as sociedades modernas (...) são mais

adiantadas que as sociedades intermediárias. 1 0

( Assim se procura conferir maior consistência científica à teoria d a

modernização do mundo. Além de ser racional, ou pragmática, apóia-

se no paradigma evolucionista. Um evolucionismo não isento de dar ­

winismo social, envolvendo eurocentrismo e racismo em diferentes

gradações, sempre a partir da "tese" de que o mundo evolui para o

modelo ou pa râme t ro representado pelas sociedades dominan te s .

Trata-se de sociedades nas quais predomina o neoliberalismo econô­

mico, principalmente, e o político, secundariamente.

A fase "imperialista" das relações da sociedade ocidental com o res­

to do mundo foi transitória. Hoje, a tendência para a modernização

Page 55: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

tomou-se mundial. Especificamente, as elites da maioria das socieda­

des não-modernas aceitam aspectos cruciais dos valores da moderni­

dade, principalmente o desenvolvimento econômico, a educação, a

independência política e certa forma de "democracia". Embora a ins­

titucionalização de tais valores seja desigual e cheia de conflitos — e

assim deva permanecer por longo tempo —, provavelmente conti­

nuará a tendência para a modernização no mundo não-ocidental. 1 1

Aliás, o evolucionismo tem sido um estado de espírito freqüente e

generalizado nas ciências sociais. Aparece explícito e subjacente em

conceitos, categorias e interpretações. Desde os fundadores das ciên­

cias sociais, e também em seus continuadores, são comuns as intui­

ções e interpretações que ressoam uma visão evolucionista da socieda­

de, da cultura, da economia, da política, da geografia, da história, do

pensamento. Há algo de evolucionista na teoria sistêmica, assim como

na teoria da modernização , ambas beneficiárias do funcionalismo

presente ou subjacente às idéias de Herbert Spencer, Charles Darwin

e Auguste Comte, para citar alguns.

Cabe reconhecer , p o r t a n t o , que a teor ia da modern ização d o

mundo , com seus ingredientes evolucionistas, leva consigo a idéia de

ocidentalização do mundo . Ao mesmo tempo que implica a generali­

zação do capitalismo, implica a ocidentalização, como processo civi-

lizatório. Em praticamente todos os autores que interpretam as reali­

dades sociais em termos de modernização, ou teorizam sobre as con­

dições, dificuldades e objetivos da modernização, encontram-se pre­

sentes os ideais de europeização ou americanização.

O modelo ocidental de modernização contém elementos e seqüências

cuja relevância é global. Em todos os lugares, por exemplo, a crescen­

te urbanização tende a elevar a alfabetização; a elevação da alfabeti­

zação tende a aumentar a exposição dos indivíduos à mídia; a cres-

1 1 Talcott Parsons, O sistema das sociedades modernas, tradução de Dante Moreira Leite, Livraria Pioneira Editora, São Paulo, 1974, p. 165.

108

A O C I D E N T A L I Z A Ç Ã O DO M U N D O

cente exposição à mídia tem sido acompanhada de maior participa­

ção econômica (renda per capita) e participação política (voto). O

modelo desenvolvido no Ocidente é um fato. O mesmo modelo bási­

co reaparece em virtualmente toda sociedade em modernização, em

todos os continentes do globo, independentemente das variações de

raça, cor, c r edo . . . 1 2

Juntamente com a modernização em marcha com o capitalismo e

0 ocidentalismo, generaliza-se o predomínio das mais diversas tecno­

logias de produção e controle sociais. Toda tecnologia, na medida em

que é inserida na vida da sociedade ou no jogo das forças sociais, logo

transforma-se em técnica social; podendo servir a distintas finalida­

des. M a s , como técnica monopolizada ou administrada pelos que de­

têm o poder , em sociedades atravessadas por desigualdades sociais,

econômicas, políticas e culturais, é evidente que ela tende a ser mani­

pulada de m o d o a reiterar e desenvolver as estruturas prevalecentes,

em suas diversidades e desigualdades. Esse é o contexto em que as tec­

nologias da eletrônica, entre outras , intensificam e generalizam a ra­

cionalização das mais diversas formas sociais de vida e t rabalho, dos

mais diferentes modos de ser e pensar. Aos poucos, a sistemática da

tecnologia povoa e organiza também o imaginário de indivíduos e co­

letividades. Ao entrar na fábrica de simulacros e virtualidades, a tec­

nologia ajuda a instituir parâmetros de pensamento e imaginação 1 3 .

Em suas linhas básicas, a teoria da modernização do mundo pode

ser vista como uma versão mais conspícua da " teor ia" da ocidentali-

1 2 Daniel Lerner, The Passing of Traditional Society (Modernizing the Middle East), The Free Press, Nova York, 1966, p. 46. Consultar tam­bém: David E. Apter, The Politics of Modernization, The University of Chicago Press, Chicago, 1965.

1 3 Pierre Levy, La machine univers (Création, Cognition et Culture In­formatique), La Découverte, Paris, 1987; Neil Postman, Technopoly (The Surrender of Culture to Technology), Vintage Books, Nova York, 1993. Uma das primeiras versões da noção de técnica social: Karl Mannheim, Man and Society in an Age of Reconstruction, Harcourt, Brace and Co, Nova York, 1949, Part V, cap. I: "The Concept of Social Technique".

109

Page 56: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

1 4 Samir Amin, L'eurocentrisme (Critique d'une Ideologic), Anthropos, Paris, 1988, p. 18. Consultar também: Edward W. Said, Orientalismo (O Oriente como Invenção do Ocidente), tradução de Tomás Rosa Bueno, Companhia das Letras, São Paulo, 1990; K. M. Panikkar, Asia and West­ern Dominance, George Allen & Unwin, Londres, 1959; Eric R. Wolf, Europe and the People Without History, University of California Press, Berkeley, 1982.

110

A O C I D E N T A L I Z A Ç Ã O DO M U N D O

Levada às ú l t imas conseqüênc ias , a tese da m o d e r n i z a ç ã o d o

inundo também permite contemplar as diversidades locais, nacionais

c regionais, da mesma forma que as sociais, econômicas, políticas e

nilturais. Ainda que a modernização tenda a impor-se às mais diver­

gis formas de organização social da vida e t rabalho, isto não se dá de

modo abrup to , inexorável, monolít ico. Enquanto processo civilizató-

rio abrangente, tem convivido com os mais diferentes padrões, va lo­

res e instituições. Contempla as mais distintas modalidades de confi­

gurações culturais, religiosas, lingüísticas, étnicas, sociais, políticas e,

lambem, econômicas. O s padrões , valores e instituições da moderni ­

zação não se efetivam a não ser no cont raponto com padrões , valores

e instituições diferentes, "es t ranhos" , "orientais" , "arcaicos" , "exót i ­

cos". São múltiplas e diferenciadas as formas sociais e culturais, ou ci-

vilizatórias, com as quais se defrontam os padrões, valores e institui­

ções modernos ou modernizantes. N ã o só na Ásia, Oceania, África,

América Latina e Caribe, mas também na América do Nor te (Estados

Unidos e Canadá) , tan to quan to nas sociedades nacionais da Europa

Ocidental, são múltiplas e diferenciadas as formas sociais e culturais ,

ou civilizatórias, com as quais se defrontam os padrões, valores e ins­

tituições envolvidos n o processo de modernização. M a s este processo

tende a p r edomina r , es tabelecendo condições e possibi l idades, o u

inaugurando tendências. A modernização traz consigo as idéias de

crescimento, desenvolvimento, progresso ou evolução. Funda-se n o

suposto de que as mais diversas esferas da vida social podem ser m o ­

dificadas no sentido de secularização e individuação, compreendendo

a mercantilização, industrialização, urbanização, propriedade priva­

da, liberdade e igualdade de proprietários organizados em con t ra to

juridicamente estabelecido. Também pode contemplar as noções de

legitimidade, legalidade, representatividade, governabilidade, sufrá­

gio, par t ido político, divisão de poderes governamentais em legislati­

vo, executivo e judiciário, o que pode propiciar as condições de cons­

trução da soberania, da hegemonia e da cidadania.

Cabe observar, no entanto , que no âmbito da modernização, da

formação social moderna ou modernizante, convivem várias e contra-

111

zação d o mundo . Uma substitui a outra , mas sem que esta seja aban-j

donada . Ocorre que a teoria da ocidentalização não escondia, ou esj

condia muito mal, o eurocentrismo e o etnocentrismo do pensamento)

europeu; elementos esses depois assumidos, em boa média, pelo pen«i

samento norte-americano. Além disso, as ciências sociais desenvoH

vem-se, tornam-se mais sofisticadas, elaboram conceitos e interpreta»

ções que parecem mais isentos, neutros. A teoria da modernização Í

bem assim: uma formulação "científica" que contempla alguns do i

valores do ocidentalismo. Articulada em termos lógicos e teóricos, co«i

difica e estabelece parâmetros que, simultaneamente, explicam a tra»

jetória das sociedades ocidentais e apontam as condições e possibili*1

dades da evolução das outras sociedades. Nos dois casos, em se tra­

tando de ocidentalização e modernização, prevalece o compromisso!

essencial com a formação, o desenvolvimento e a consolidação do ca»'

pitalismo, em escala local, nacional, regional, internacional e global.

Ao impor-se em escala mundial, o capitalismo criou uma dupla exi4

gência de universalismo. Por um lado, no plano da análise científica

da sociedade, a descoberta das leis universais que comandam a evo­

lução de todas as sociedades. E, por outro lado, a formulação de um

projeto humano igualmente universal, permitindo ultrapassar os li­

mites históricos (das sociedades atrasadas). (...) Esta ótica inspira

fatalmente uma percepção "etapista" da evolução necessária: as so­

ciedades capitalistas atrasadas (periféricas) devem "reproduzir" o

modelo avançado, caso contrário podem ser surpreendidas pelos

desafios representados pelos novos desenvolvimentos possíveis, ou

mesmo necessários, deste modelo avançado. 1 4

Page 57: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

ditórias temporalidades. São diversos os passados, próximos e remo­

tos , presentes no curso da modernização, seja qual for seu nível de

realização. Modernizar , muitas vezes, é tornar contemporâneo o que

é pretérito; e, às vezes, são diversos os pretéritos herdados ou recria­

dos em configurações presentes. Simultaneamente, modernizar é inau­

gura r o novo ou o desconhecido, seja proveniente "de fora" , seja

or iundo de mudanças "internas". Em todos os casos, está em causa o

cont raponto contemporâneo e não-contemporâneo. E são muitas as

situações nas quais a modernização significa a busca, ou imposição,

da contemporane idade . Deflagram-se ou intensificam-se processos

destinados a tornar indivíduos, grupos, classes, coletividades ou po­

vos contemporâneos de seu tempo; entendendo-se que o parâmetro de

contemporaneidade é dado pela sociedade "mais desenvolvida", ou

simplesmente dominante. Mas nada impede que subsistam, natural­

mente em distintas gradações, as mais diferentes formas de diversida­

des e desigualdades, em termos não só de tempos mas também de es­

paços. N o mesmo curso da modernização, assim como no âmbito da

formação social moderna ou modernizada, desenvolve-se a não-con-

temporaneidade, ou a pluralidade dos tempos.

Ainda que os processos de globalização e modernização desenvol­

vam-se simultânea e reciprocamente pelo mundo afora, também pro­

duzem desenvolvimentos desiguais, desencontrados, contradi tórios.

N o mesmo curso da integração e homogeneização, desenvolve-se a

fragmentação e a contradição. Ao encontrar outras formas sociais de

vida e t rabalho, compreendendo culturas e civilizações, logo se cons­

tituem as mais surpreendentes diversidades. Tan to podem reavivar-se

as formas locais, tribais, nacionais ou regionais como podem ocorrer

desenvolvimentos inesperados de ocidentalidade, capitalismo, racio­

nalidade. O mesmo vasto processo de globalização do mundo é sem­

pre um vasto processo de pluralização dos mundos .

O que cria a ilusão da integração, ou homogeneização, é o fato

indiscutível da força do ocidentalismo, conjugado com o capitalismo.

Tan to a filosofia, ciência e arte de origem ocidental como as forças

produtivas e as relações de produção desenvolvidas com o capitalismo

1 1 2

A O C I D E N T A L I Z A Ç Ã O DO M U N D O

« Xavier Polanco (org.), Naissance et Development de la Science-Mon­de, Éditions la Découverte, Paris, 1990; Ernest B. Haas, Mary Pat Wil­liams e Don Babai, Scientists and World Order (The Uses of Technical Knowledge in International Organizations), University of California Press, Berkeley, 1977; V. A. Vinogradov e outros, "Toward an Interna­tional Information System", International Social Science Journal, vol. XXXIII, n°. 1,1981, pp. 10-49.

113

espalham-se pelo mundo , muitas vezes de m o d o conjugado. H á cen-

ii os de poder, agências de difusão e implementação a tuando mais ou

menos universalmente, em termos do que se define como moderno ,

racional, científico, técnico, p ragmát ico . 1 5

Esse é o cenário em que floresce uma parte importante da retóri­

ca sobre a pós-modernidade. Fala-se de pós-modernidade t an to em

Paris como na Cidade do México, em Nova York como na cidade do

Cabo, em Moscou como em Nova Delhi, em Tóquio como em Pe­

quim, em Hong Kong como em Porto Príncipe. Q u a n d o se confun­

dem modernização e modernidade, logo fica fácil falar em pós-moder­

nidade, esquecendo que ainda não é possível falar-se em pós-moder-

nização. Mas isso não impede que muitos, quando pretendem ser su­

perlativos a propósito de modernização, apelem à idéia de pós-moder­

nidade. Mesclam o processo histórico-social como o m o d o de ser,

agir, pensar, imaginar; o modo de organizar a vida social com o esta­

do de espírito; as determinações das formas de sociabilidade vigentes,

ou em realização, com os horizontes filosóficos, científicos e artísticos

que podem transcender as configurações sociais. Sim, a modernidade

diz respeito a um modo de ser, agir, pensar e imaginar, ou seja, a um

estado de espírito, envolvendo dilemas e horizontes filosóficos, cientí­

ficos e artísticos. Desenvolve-se de modo fragmentário e contradi tó­

rio, principalmente nas sociedades da Europa Ocidental. Simultanea­

mente, e depois cada vez mais, difundiu-se pelas mais diversas tr ibos,

nações e nacionalidades. Inclusive passa a adquirir desenvolvimentos

notáveis em outros lugares, originalmente não-ocidentais. N o s tem­

pos da globalização, continua a desenvolver-se de modo fragmentário

e contraditório. Trata-se de um modo de ser, um estado de espírito,

Page 58: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

A modernidade pode ser algo que subsiste e desenvolve-se de per­

meio às mais diversas modalidades de modernização. Mas cabe reco­

nhecer que a modernização, nos termos em que ocorre pelo mundo

afora, está predominantemente determinada pela racionalidade do ca­

pitalismo, enquanto racionalidade pragmática, técnica, automática.

Em lugar de emancipar indivíduos e coletividades, em suas possibili­

dades de realização e imaginação, produz e reproduz sucedâneos, si­

mulacros, virtualidades ou espelhismos. É verdade que os sucedâneos,

os simulacros, as virtualidades ou espelhismos, juntamente com as co­

lagens, as montagens, as bricolagens, as desconstruções, os pastiches

e outras linguagens, podem ser tomados como manifestações ou pre­

núncios de pós-modernidade. Mas também é verdade que essas lin-

1 6 Marshall Berman, Tudo que é sólido desmancha no ar (A Aventura da Modernidade), tradução de Carlos Felipe Moisés e Ana Maria L. Ioriatti, Companhia das Letras, São Paulo, 1986, p. 15. Consultar também: David Harvey, Condição pós-moderna, tradução de Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves, Edições Loyola, São Paulo, 1992; Jean-François Lyotard, O pós-moderno, tradução de Ricardo Corrêa Barbosa, José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1986.

114

A O C I D E N T A L I Z A Ç Ã O DO M U N D O

guagens podem ser tomadas como manifestações extremas, mui tas

vezes inesperadas e ainda não adequadamente codificadas, de moder­

nidade. São as linguagens da desterritorialização das coisas, gentes e

idéias, além das fronteiras cul turais e civilizatórias, por meio das

quais se estabelecem os horizontes da modernidade-mundo.

J

115

em que se expressam horizontes excepcionais de emancipação e alie­

nação .

Ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura,

poder, alegria, crescimento, autotransformação e transformação das

coisas em redor — mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que

temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos. A experiência da

modernidade anula todas as fronteiras geográficas e raciais, de classe

e nacionalidade, de religião e ideologia; nesse sentido, pode-se dizer

que a modernidade une a espécie humana. Porém, é uma unidade

paradoxal, uma unidade de desunidade: ela nos despeja a todos num

turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e contra­

dição, de ambigüidade e angústia. 1 6

Page 59: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

CAPÍTULO 6 A aldeia global

Page 60: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

Quando o sistema social mundial se põe em movimento e se moderni­

za, então o mundo começa a parecer uma espécie de aldeia global.

Aos poucos, ou de repente, conforme o caso, tudo se articula em um

vasto e complexo t odo moderno , modernizante , modern izado . E o

signo por excelência da modernização parece ser a comunicação, a

proliferação e general ização dos meios impressos e eletrônicos de

comunicação , ar t iculados em teias mul t imídia a lcançando t o d o o

mundo .

A noção de aldeia global é bem uma expressão da globalidade das

idéias, padrões e valores sócio-culturais, imaginários. Pode ser vista

como uma teoria da cultura mundial , entendida como cultura de mas­

sa, mercado de bens culturais, universo de signos e símbolos, lingua­

gens e significados que povoam o m o d o pelo qual uns e out ros si­

tuam-se no mundo, ou pensam, imaginam, sentem e agem.

Em decorrência das tecnologias oriundas da eletrônica e da infor­

mática, os meios de comunicação adquirem maiores recursos, mais

dinamismos, alcances muito mais distantes. Os meios de comunicação

de massa, potenciados por essas tecnologias, rompem ou ultrapassam

fronteiras, culturas, idiomas, religiões, regimes políticos, diversidades

e desigualdades sócio-econômicas e hierarquias raciais, de sexo e ida-

Page 61: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

de . Em poucos anos , na segunda metade d o século X X , a indústria

cultural revoluciona o mundo da cultura, transforma radicalmente o

imaginário de todo o mundo . Forma-se uma cultura de massa mun­

dial, t an to pela difusão das produções locais e nacionais como pela

criação diretamente em escala mundial . São produções musicais, cine­

matográficas, teatrais, literárias e muitas outras, lançadas diretamen­

te n o m u n d o como signos mundiais ou da mundialização. Difundem-

se pelos mais diversos povos, independentemente das suas peculiari­

dades nacionais, culturais, lingüísticas, religiosas, históricas ou ou­

tras . São produções às vezes cercadas de aura científica ou filosófica,

como os boatos sobre o fim da história, o fim da geografia, a gênese

da te r ra-pát r ia , as maravi lhas da sociedade informática, o m u n d o

como paraíso livre do castigo d o t rabalho alienado.

N o próximo século, a terra terá a sua consciência coletiva elevada da

superfície da Terra para uma densa sinfonia eletrônica, em que todas

as nações — se continuarem a existir como entidades separadas —

viverão um feixe de sinestesia espontânea. (...) Mais e mais pessoas

entrarão no mercado de informações, perderão as suas identidades

privadas nesse processo, mas irão emergir com capacidade para inte­

ragir com qualquer pessoa da face do globo. Referendum eletrônicos

massivos e espontâneos atravessarão continentes. O conceito de

nacionalismo declinará e também os governos regionais cairão, como

conseqüência política da criação de um governo mundial por satélite

artificial. O satélite será usado como o mais importante instrumento

mundial de propaganda na guerra pelos corações e mentes dos seres

humanos. 1

N o âmbito da aldeia global, prevalece a mídia eletrônica c o m o

um poderoso instrumento de comunicação, informação, compreen-

i Marshall McLuhan e Bruce R. Powers, The Global Village (Transform­ation in World Life and Media in the 2 1 s t Century), Oxford University Press, Nova York-Oxford, 1989, pp. 95 e 118.

120

A A L D E I A G L O B A L

são, explicação e imaginação sobre o que vai pelo mundo . Jun tamente

com a imprensa, a mídia eletrônica passa a desempenhar o singular

papel de intelectual orgânico dos centros mundiais de poder, d o s gru­

pos dirigentes das classes dominantes . Ainda que media t izada , in­

fluenciada, quest ionada ou assimilada em âmbito local, nacional e re­

gional, aos poucos essa mídia adquire o caráter de um singular e insó­

lito intelectual orgânico, articulado às organizações e empresas t rans­

nacionais predominantes nas relações, nos processos e nas estruturas

de dominação política e apropriação econômica que tecem o m u n d o ,

em conformidade com a "nova ordem econômica mundia l" , ou as no­

vas geopolíticas e geoeconomias regionais e mundiais.

A angústia crítica em que vivem hoje todos os homens é, em grande

medida, o resultado dessa zona interfacial que existe entre uma cul­

tura mecânica, fragmentada e especializada em decadência, e uma

nova cultura integral, que é completa, orgânica e macrocósmica. Es­

ta nova cultura não depende em absoluto das palavras. De fato, a lin­

guagem e o diálogo já tomaram a forma de interação entre todas as

zonas do mundo. (...) O computador suprime o passado humano,

convertendo-o por inteiro em presente. Faz com que seja natural e

necessário um diálogo entre culturas, mas prescindindo por comple­

to do discurso. (...) A palavra individual, como depósito de informa­

ção e sentimento, já está cedendo à gesticulação macrocósmica. 2

É claro que a mídia global não é monolítica. Está atravessada por

injunções locais, nacionais e regionais, bem como por divergências

políticas, culturais, religiosas e outras. Compõe-se de empresas, cor­

porações e conglomerados compet indo nos mercados , d i spu tando

clientes, audiências, públicos, extratos sociais. São sensíveis às reivin­

dicações de diferentes grupos e classes sociais, movimentos sociais e

2 Marshall McLuhan, Quentin Fiore y Jérôme Agel, Guerra y paz en la aldea global, tradução de José Méndez Herrera, Ediciones Martinez Roca, Barcelona, 1971, pp. 72-73 e 98-99.

121

Page 62: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

part idos políticos, igrejas e governos. Sob esse aspecto, e tomada em

nível mundia l , a mídia expressa mui to d o que vai pelo m u n d o , na

o n d a da integração e f ragmentação, n o âmbi to das diversidades e

desigualdades, no jogo dos conflitos e das acomodações.

Simultaneamente, no entanto, uma par te dessa mesma mídia ope­

ra em consonância com centros de poder de alcance mundia l . Está

acoplada às organizações e empresas transnacionais. Com freqüência,

apresenta o mundo como um vasto videoclipe, um caleidoscópio apa­

rentemente sem nexo, transfigurando e refigurando os acontecimen-,

tos c o m o um espetáculo, no qual todo e qualquer dramat i smo fica

subjetivado, no qual as dimensões épicas dos acontecimentos dissol­

vem-se na pirotécnica do audiovisual, t an to simulacro e virtual como

desterritorializado e a-histórico.

A verdade é que a indústria cultural também adquiriu alcance glo­

bal. Atravessa fronteiras de todo o t ipo, geográficas, políticas, cultu­

rais, religiosas, lingüísticas e outras . Transformou-se em um podero­

so setor de produção, no sentido de produção de mercadoria, lucro ou

mais-valia. Emprega milhares de intelectuais de todas as especialida­

des, dos mais diferentes campos de conhecimento, como assalariados,

t rabalhadores produtivos cuja força de t rabalho produz excedente, lu­

cro ou mais-valia. Transfigura o jornalista, o escritor, o cientista so­

cial, o publicitário, o locutor, o âncora, o cenógrafo, o técnico de som,

o especialista em efeitos visuais coloridos e sonoros, o artífice da esté­

tica eletrônica e muitos outros em um vasto t rabalhador coletivo, um

intelectual o rgân ico a inda p o u c o conhec ido . S imul taneamente , a

indústria cultural produz e reproduz signos, símbolos, imagens, sons,

formas, cores, movimentos , tudo isso nas mais inovadoras o u inó­

cuas, prosaicas ou surpreendentes combinações, povoando o imaginá­

rio de muitos, em todo o mundo .

N o âmbito da aldeia global, tudo tende a tornar-se representação

estilizada, realidade pasteurizada, simulacro, virtual. A indústria cul­

tural transforma-se em um poderoso meio de fabricação de represen­

tações, imagens, formas, sons, ruídos, cores e movimento. De manei­

ra cada vez mais livre, arbitrária ou imaginosa, o m u n d o que aparece

122

A A L D E I A G L O B A L

na mídia tem muito de um mundo virtual, algo que existe em abst ra­

to e por si, em si. Muitas vezes tem apenas uma remota ressonância d o

que poderiam ser os acontecimentos, as configurações e os movimen­

tos da sociedade, em nível local, nacional, regional ou global.

Em princípio, a informação é agora imediatamente disponível por

todo o globo e pode ser estocada e recuperada, desde que haja a ele­

tricidade necessária. O tempo e o espaço não se acham mais restritos

à troca de informações. A aldeia global de McLuhan é tecnicamente

realizável. 3

T u d o se globaliza e virtualiza, como se as coisas, as gentes e as

idéias se transfigurassem pela magia da eletrônica. A onda moderni­

zante não pára nunca, espalhando-se pelos mais remotos e recônditos

cantos e recantos dos modos de vida e t rabalho, das relações sociais,

das objetividades, subjetividades, imaginários e afetividades. McLuhan

viu a tecnologia como uma extensão do corpo. Da mesma forma que

a roda é uma extensão do pé, o telescópio uma extensão do olho,

assim a rede de comunicações é uma extensão do sistema nervoso.

Assim como a rede de comunicações espalhou-se pelo mundo, assim

ocorreu com a nossa rede neural. A televisão tornou-se os nossos

olhos, o telefone a nossa boca e ouvidos. Nossos cérebros são elos de

um sistema nervoso que se estende através do mundo todo . 4

É como se cada indivíduo passasse a ser elo de múltiplas redes de

3 Mark Poster, The Mode of Information: Poststructuralism and Social Context, Polity Press, Cambridge, 1990, p . 2. Citado por Benjamin Wooley, Virtual Worlds (A Journey in Hype and Hyperreality), Penguin Books, Londres, 1992, p. 124. Consultar também: Armand Mattelart, La communication-monde (Histoire des Idées et des Stratégies), Éditions La Découverte, Paris, 1992, especialmente o cap. 6: "Du Progrès à la Communication: les Métamorphoses Conceptuelles".

4 Benjamin Wooley, Virtual Worlds (A Journey in Hype an Hyper­reality), Penguin Books, Londres, 1992, pp. 124-125.

123

Page 63: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

comunicação, informação, interpretação, divertimento, aflição, eva­

são. Cada indivíduo pode ser um feixe de articulações locais, nacio­

nais, regionais e mundiais, cujos movimentos e centros de emissão es­

tão dispersos e desterritorializados m u n d o afora. Seu m o d o de ser,

compreendendo ações, relações, reflexões e fantasias, passa a ser cada

vez mais povoado pelos signos espalhados pela aldeia global.

N o âmbito da sociedade mundial em formação, quando se reve­

lam cada vez mais numerosos e generalizados os sinais da globaliza­

ção , também multiplicam-se os pastiches, os simulacros e as virtuali­

dades. As mais diversas realidades sociais, em suas expressões econô­

micas, políticas e culturais, adquirem configurações desconhecidas e

inimaginadas, não só pelo público em geral, mas também pelos cien­

tistas sociais. Em todas as esferas da vida social, compreendendo evi­

dentemente as empresas transnacionais e as organizações multilate­

rais, os meios de comunicação de massa e as igrejas, as bolsas de valo­

res e os festivais de música popular, as corridas automobilísticas e as

guerras , t udo se tecnifica, organiza-se e le t ronicamente , adqui re as

características do espetáculo produzido com base nas redes eletrôni­

cas informáticas automáticas instantâneas universais.

A aldeia global pode ser uma metáfora e uma realidade, uma con­

figuração histórica e uma utopia. Sim, pode ser simultaneamente to­

das essas possibilidades. Desde que as técnicas da eletrônica propicia­

ram a intensificação e a generalização das comunicações, além de to­

da e qualquer fronteira, acelerou-se um processo que já vinha desen­

volvendo-se no âmbito das relações internacionais, das organizações

multilaterais e das corporações transnacionais. O que o mundo já co­

nhecia, em fins do século XIX e começo do XX, como monopólios ,

trustes e cartéis, tecendo geoeconomias e geopolíticas de sistemas im­

perialistas, ou economias-mundo, prenunciavam os primeiros contor­

nos do que seria no fim do século XX a aldeia global. Na medida em

que se desenvolvem as relações, os processos e as estruturas de domi­

nação e apropriação consti tuindo a sociedade global, o que se intensi­

fica e generaliza com a crescente mobilização de técnicas eletrônicas,

muitos começam a perceber o mundo como uma vasta e insólita ou

idílica aldeia global.

A A L D E I A G L O B A L

A aldeia global está sendo desenhada, tecida, colorida, sonorizada

I movimentada por todo um complexo de elementos díspares, conver­

gentes e contraditórios, antigos e renovados , novos e desconhecidos.

Formam redes de signos, símbolos e linguagens, envolvendo publica­

ções e emissões, ondas e telecomunicações. Compreendem as relações,

os processos e as estruturas de dominação política e de apropriação

econômica que se desenvolvem além de toda e qualquer fronteira, des-

territorializando coisas, gentes e idéias, realidades e imaginários.

Esse é o horizonte em que se cria e generaliza a cultura da mun-

dialização, como produ to e condição dessa mesma mundial ização.

São elementos também díspares, convergentes e contraditórios, anti­

gos e renovados, novos e desconhecidos: Carnaval , Fórmula 1, Mil

Milhas, Copa do M u n d o , Ol impíada, música global, cinema sobre as

diversidades dos mundos sócio-culturais, mercados de obras de ar te e

artistas, de produções científicas e cientistas, de ídolos da cultura po ­

pular mundia l , manifestações de igrejas e letrônicas , marketing de

mercadorias mundiais levando consigo signos da cultura da mundia­

lização, bebidas e refrigerantes, cigarros e perfumes, roupas e equipa­

mentos eletrônicos, etiquetas e estilos, palavras e imagens, simulacros

e virtualidades.

A ação do mercado tem um efeito igualmente corrosivo no outro eixo

da tradição poética: o temporal. A proeminência do agora lima os

laços que nos unem ao passado. A imprensa, a televisão e a propagan­

da oferecem diariamente imagens do que está passando agora mesmo

aqui e lá, na Patagônia, na Sibéria e no bairro vizinho; as pessoas

vivem imersas num agora que pisca sem cessar e que nos dá a sensa­

ção de um movimento contínuo e acelerado. Afinal, nos movemos

realmente ou só giramos e giramos no mesmo lugar? Ilusão ou reali­

dade, o passado se afasta vertiginosamente e desaparece. Por sua vez,

a perda do passado provoca fatalmente a perda do futuro. (...) Depois

da Segunda Guerra Mundial, as atividades artísticas se multiplicaram:

museus, galerias, bienais, leilões internacionais, rios de ouro, oceanos

125

Page 64: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

de publicidade. Outras coisas acontecem, embora em escala muito

menor, no campo editorial. Contudo, tanto nas artes visuais como na

literatura, predominam os estereótipos. (...) Embora as causas desta

situação sejam múltiplas e complexas, acredito firmemente que uma

das principais é a transformação do antigo comércio literário e artísti­

co em um moderno mercado financeiro. Esta mudança econômica

coincide com outra de ordem moral e política nas democracias do

Ocidente: a conversão dos cidadãos em consumidores. 5

Em um nível mais do que evidente, o principal tecido da aldei

global tem sido o mercado, a mercantilização universal, no sentido d

que tudo tende a ser mercantilizado, produzido e consumido com

mercadoria. Cabe observar, no entanto, que na base da aldeia global

seja qual for sua realidade ou idéia, está a informatização, estão a"

técnicas eletrônicas compondo uma vasta e labiríntica máquina uni­

versal que opera múltiplas mensagens e está presente em todos os lu

gares. Trata-se das tecnologias da inteligência e imaginação, caracte­

rizando a era da informática e permitindo desenhar, tecer, colorir, so­

norizar e movimentar a aldeia global. Produzem um mundo digital,

digitalizado, virtual, instantâneo, ubíquo, plenamente esférico ou to­

talmente plano, unidimensional e multidimensional, sem cronologia,

história ou biografia. Um mundo concebido como um texto, emara­

nhado de interfaces, um hipertexto somente inteligível pelas tecnolo­

gias da eletrônica informática cibernética universal.

Esta é a mágica: o caos transfigura-se em um sistema de signos,

s ímbolos, linguagens, metáforas, emblemas, alegorias; s imultanea­

mente, este sistema transfigura-se em um texto complexo, um hiper­

t ex to ; um hiper texto que pode ser l ido, t r a d u z i d o , pa ra f raseado ,

transliteralizado.

5 Octávio Paz, A outra voz, tradução de Waldir Dupont, Editora Siciliano, São Paulo, 1993, pp. 108 e 110-111.

126

A A L D E I A G L O B A L

6 Pierre Levy, As tecnologias da inteligência (O Futuro do Pensamento na Era da Informática), tradução de Carlos Irineu da Costa, Editora 34, Rio de Janeiro, 1993, p. 33.

7 Pierre Levy, As tecnologias da inteligência, citado, p. 3 8 .

127

Tecnicamente, um hipertexto é um conjunto de nós ligados por cone­

xões. Os nós podem ser palavras, páginas, imagens, gráficos ou par­

tes de gráficos, seqüências sonoras, documentos c o m p l e x o s que

podem eles mesmos ser hipertextos. Os itens de informação não são

ligados linearmente, como em uma corda com nós, m a s cada um

deles, ou a maioria, estende suas conexões em estrela, d e modo reti­

cular. Navegar em um hipertexto significa portanto desenhar um

percurso em uma rede que pode ser tão complicada quan to possível.

Porque cada nó pode, por sua vez, conter uma rede inteira. 6

Assim se realiza a metamorfose do caos em sistema e do s is tema em

texto, ou hipertexto.

N o limite, a informatização do mundo permite a t r ans fo rmação

dos fatos, compreendendo relações, processos e e s t ru tu ras , e m um

vasto h iper texto . E n o mesmo processo dessa t r a n s f o r m a ç ã o já se

constituem as condições de sua leitura, sua t radução, sua paráf rase ou

t rans l i teração. De repente , c o m o em u m passe de m á g i c a , o c aos

transfigura-se em sistema, as configurações e movimentos d a socieda­

de mundial em aldeia global. Uma aldeia desenhada, tecida, color ida ,

sonorizada e movimentada como em uma invenção lúdica.

Um mapa global não estaria arriscado a tornar-se ilegível a partir de

uma certa quantidade de conexões, a tela cobrindo-se de l inhas entre­

cruzadas, em meio às quais não seria possível distinguir mais nada?

Algumas pesquisas contemporâneas parecem mostrar que represen­

tações de conexões em três dimensões seriam menos embaraçadas e

mais fáceis de consultar, dada uma mesma quantidade, que as repre­

sentações planas. O usuário teria a impressão de en t ra r em uma

estrutura espacial, e nela deslocar-se como dentro de um volume. 7

Page 65: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

Dentre todos os elementos que se mobilizam na organização e na

dinâmica da aldeia global, no entanto, logo sobressai uma categoria

de intelectuais. São eles que pensam os meios e modos de operação do

todo e de suas partes, colaborando para que se articulem dinamica­

mente , de modo a constituir a aldeia como um sistema global. São

esses intelectuais que promovem a t radução da organização e dinâmi­

ca das forças sociais, econômicas, políticas e culturais que operam em

âmbi to mundial , t r anspondo fronteiras, regimes políticos, idiomas,

religiões, culturas e civilizações. Para isso operam as tecnologias da

inteligência, cada vez mais indispensáveis, q u a n d o se t rata de dese­

nhar , tecer, colorir, sonorizar e movimentar a aldeia global, traduzin­

do as configurações e os movimentos da sociedade mundial.

A aldeia global seria ininteligível, como realidade ou imaginação,

sem a colaboração ativa de toda uma multidão de intelectuais traba­

lhando em todo o mundo, nas mais diversas organizações e corporações

públicas e privadas, nacionais, regionais, transnacionais e propriamen­

te globais. São pesquisadores, analistas, estrategistas, executivos, con­

sultores, assessores, técnicos, especialistas, juniors e seniors, formados

nos mais diferentes campos do saber, sempre mobilizando conhecimen­

tos científicos para o desenvolvimento e a implementação de técnicas.

Trata-se dos think-tanks de todos os tipos, organizados para pen­

sar na organização e na dinâmica da sociedade global, em seu todo e

em suas partes, no Ocidente e Oriente, ao norte e no sul, centro e peri­

feria, tendo em conta a prosperidade e a crise, o mercado e o planeja­

mento, o previsível e o inesperado, o acaso e a escolha racional, a paz

e a guerra. Representam uma argamassa importante, muitas vezes não

só indispensável, mas decisiva para a operação das organizações e

corporações, em escala local, nacional, regional e mundial . Compõem

as tecnocracias e as tecnoestruturas que equacionam e implementam

muitas das decisões fundamentais relativas à sistemática da aldeia glo­

bal, como um todo e em suas múltiplas partes.

Os processos de decisão em curso nas políticas mundiais já indicam

que o conhecimento especializado está influenciando a ação política,

128

A A L D E I A G L O B A L

sendo que as diretrizes de atuação estão passando por mudanças sig­

nificativas. (...) Os especialistas não estão substituindo os políticos,

mas estão orientando os políticos sobre questões que nunca estiveram

na agenda internacional; e estão delineando programas de pesquisa e

ação com potencial para alterar a maneira pela qual se pode interpre­

tar o sistema internacional. As suas interpretações constituem um dos

principais componentes simbólicos da interpretação coletiva d o

homem, acerca do seu lugar e evolução neste planeta. (...) Conheci­

mento para ação, pois, é a área ocupada predominantemente por es­

pecialistas, consultores, planejadores. São as pessoas nas quais

apóiam-se os que decidem, quando se trata de obter informação, con­

tribuições sobre viabilidades, projeções sobre oferta e demanda, e so­

bre modelos relativos às cadeias de causação envolvidas na realização

de objetivos políticos. Em outros termos, o especialista domina os

meios considerados relevantes para promover políticas. O político,

n o entanto, mantém a preeminência na definição dos objetivos da

ação e, portanto, domina a conceptualização dos fins. Assim, o futu­

ro da ordem mundial depende de modo crucial da capacidade dos

especialistas em convencer os políticos a aceitar as suas metáforas. 8

Já são inúmeros e espalhados por t o d o o m u n d o os centros e ins­

titutos especializados em estudos, pesquisas, análises, diagnósticos,

p rognós t i cos , i m p l e m e n t a ç ã o , ava l i ação , a c o m p a n h a m e n t o e t c ,

dedicados a colaborar com organizações e corporações públicas e pri­

vadas.

A vida em um think-tank é abençoada. Os melhores combinam pro­

fundidade intelectual, influência política, uma razoável publicidade,

confortáveis condições e um tanto de excentricidade. Mas cuidado.

8 Ernst B. Haas, Mary Pat Williams e Don Babai, Scientists and World Order (The Uses of Technical Knowledge in International Organi­zations), University of California Press, Los Angeles, 1977, pp. 12 e 48-49.

129

Page 66: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S D A G L O B A L I Z A Ç Ã O

As qualidades opostas — pedant ismo, despropósito, obscuridade,

pobreza e convencionalismo — também florescem.9

Cabe, por tanto , refletir u m pouco mais, e com novos elementos,

sobre a tese de que a globalização dos meios de comunicação, dinami-j

zada e generalizada pelas técnicas da eletrônica, leva consigo a forma­

ção e a preeminência de um intelectual orgânico de alcance mundial.

Trata-se de um intelectual orgânico que expressa as formas excepcio-j

nais adquiridas pela produção, reprodução e universalização da cultu-l

ra de massa, subverte radicalmente as condições da vida política dos

povos e atinge diretamente as condições de p rodução e vigência de

hegemonias políticas.

Note-se que a globalização dos meios de comunicação, envolven­

d o empresas, corporações e conglomerados, bem como procedimen-1

tos , linguagens, técnicas de informação, elaboração e análise, promo­

ve a formação de equipes de intelectuais bastante complexas e abran-j

gentes. São intelectuais de todos os tipos, das mais diversas especiali-J

dades, a tuando nos mais distantes lugares, articulados em redes ele-J

t rônicas informáticas telemáticas on Une worldwide. É c o m o se o ]

mundo todo , em sua organização e dinâmica, em suas articulações, I

tensões e fragmentações, fosse continuamente, minuto a minuto, des­

crito e interpretado, fotografado e divulgado, taquigrafado e codifica­

do ou representado e imaginado por uma coletividade de intelectuais

especializados em traduzir fatos, acontecimentos , crises, impasses, j

realizações, façanhas, revoluções e guerras. Aos poucos, a opinião pú­

blica forma-se e conforma-se com os signos, os símbolos, os emble-1

mas , as figuras, as metáforas, as parábolas e alegorias produzidos e 1

divulgados como a realidade do acontecido acontecendo no momen-

to momentoso em qualquer parte do m u n d o . O mesmo processo de

9 "The Good Think-Tank Guide", The Economist, Londres, 21 de de­zembro de 1992, pp. 79-85; citação da p. 79. Consultar também: "Think-Tanks: The Carousels Power", The Economist, Londres, 25 de maio de 1991, pp. 27-30.

A A L D E I A G L O B A L

descrever e interpretar, ou representar e imaginar, produz uma ima­

gem da realidade, uma visão do mundo . Em geral, dá a impressão de

que tudo é presente presentificado, lugar sem raiz, fato sem história

nem memória.

Com o desenvolvimento dos meios eletrônicos, a indústria da cons­

ciência converteu-se em marcapassos do desenvolvimento sócio-eco-

nômico na sociedade pós-industrial. Infiltra-se em todos os demais

setores da produção, assume cada vez mais funções de comando e de

controle, e determina a norma da tecnologia dominante. (...) Todas

as citadas técnicas (satélites de comunicação, televisão a cabo, vídeos

etc.) formam combinações entre si e com as técnicas mais antigas

como imprensa, rádio, cinema, televisão, telefone, teletipo, radar etc.

Esses meios se combinam cada vez mais para constituírem um siste­

ma universal. 1 0

Esse é um processo de p rodução , reprodução e universalização

cul tural cada vez mais in tenso, sistemático e genera l izado, já que

extremamente potenciado pelas mais diversas tecnologias. Trata-se de

um processo que também se beneficia amplamente da mobilização de

conhecimentos científicos de todos os tipos, e não apenas das ciências

sociais, de m o d o a apr imorar as descrições e interpretações, as taqui­

grafias e codificações, as fotografias e divulgações ou as representa­

ções e as imaginações. Sob vários aspectos, recursos científicos são

t raduz idos em técnicas as mais diversas, em conformidade c o m a

organização e dinâmica de empresas, corporações e conglomerados

dedicados aos meios de comunicação, à cultura de massa, à indústria

cultural.

Esse é o contexto em que se dá a metamorfose da mídia em um

vasto, complexo e global intelectual orgânico. Um intelectual orgânico

1 0 Hans Magnus Enzensberger, Elementos para uma teoria dos meios de comunicação, tradução de Helena Parente Cunha e Moema Parente Augel, Edições Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1978, p. 43.

131 130

Page 67: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

das estruturas de poder prevalecentes em âmbito mundial, traduzindo

as imagens da realidade e as visões do mundo de blocos de poder, com­

posições de classes e grupos sociais que detêm meios e modos de orga­

nizar, influenciar, induzir ou dinamizar as estruturas de dominação

política e apropriação econômica prevalecentes na sociedade global.

Essa faculdade da mídia globalizada explica-se, em boa medida,

porque o mundo da cultura diz respeito ao m o d o pelo qual o indiví­

duo , o grupo, a classe, a coletividade, o povo, a t r ibo, a nação, a na­

cionalidade, a comunidade ou sociedade tendem a ver-se, imaginar-se

ou traduzir-se. Toda realidade mais ou menos complexa, problemáti­

ca ou não , sempre se t raduz em representações, imagens, metáforas,

parábolas e alegorias, assim como em descrições e interpretações. E é

por meio das linguagens que isto ocorre, envolvendo palavra, ima­

gem, som, forma, movimento etc. Por isso é que os meios de comuni­

cação colocam-se diretamente no âmago do m u n d o da cultura, das

condições e possibilidades de representação e imaginação.

Aquele que t rabalha com os meios de representação, principal­

mente quando pode manipular as mais diversas linguagens e as mais

diferentes técnicas, pode levar as representações a extremos de paro­

xismos. Por isso a língua, a imprensa, o telégrafo, o jornal, o rádio, a

televisão e os outros meios e técnicas adquirem importância crescente

na organização e dinâmica da vida do indivíduo, do grupo, da classe,

do povo ou sociedade. Essa é uma história antiga. "A língua sempre

foi a companheira do impér io . " 1 1 Uma história antiga e recente. "A

suprema glória de Napoleão III terá sido provar que qualquer pessoa

pode governar uma grande nação assim que obtém o controle do telé­

grafo e da imprensa nac iona l . " 1 2 Uma história antiga, recente e atua-

1 1 Antonio de Nebrija, citado por Tzvetan Todorov, A conquista da América (A Questão do Outro), tradução de Beatriz Perrone Moisés, Martins Fontes Editora, São Paulo, 1983, p. 120.

1 2 Baudelaire, citado por David Harvey, Condição pós-moderna (Uma Pesquisa sobre as Origens da Mudança Cultural), tradução de Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves, Edições Loyola, São Paulo, 1992, p. 215.

A A L D E I A G L O B A L

líssima. Nesta altura da história, na época da eletrônica, todos têm de

"viver em um m u n d o em que o microcomputador e o satélite estão

levando velozmente as boas novas da liberal-democracia para quase

todos os cantos do m u n d o " . 1 3

Assim se formam as hegemonias de alcance mundial , os projetos

de gestão dos problemas e orientações de âmbito mundial . Hegemôni­

ca é toda imagem da realidade, toda visão do mundo , que expressa os

interesses dos que detêm os meios de mando , ou dominação e apro­

priação, mas simultaneamente contempla, isto é, leva em conta os in­

teresses de setores sociais subordinados ou subalternos. Taquígrafa e

codifica a organização e a dinâmica da realidade, as condições e as

possibilidades de uns e outros , de tal m o d o que o m u n d o parece con­

formar-se com a imagem ou visão dele própr io que se expressa n o

projeto de gestão de problemas, na dirigencia do todo e das partes, na

orientação e reorientação do curso dos acontecimentos, reivindica­

ções e movimentos.

N a época da Guerra Fria, ao longo dos anos de 1946 a 1989, já

em franco processo de globalização, a mídia construía uma visão d o

mundo bipolarizada, maniqueísta. O capitalismo e o socialismo eram

contrapostos em termos de " m u n d o livre e mundo totali tário", "de­

mocracia e c o m u n i s m o " , "sociedade aber ta e sociedade fechada",

"reino d o bem e reino do m a l " . Depois, a partir de 1989, quando a

mídia impressa e eletrônica globalizada invade ainda mais todas as

esferas da vida social, em todo o mundo , nessa época o que prevalece

é a idéia de "nova ordem econômica mundia l " , "fim da his tór ia" ,

"fim da geografia". É assim que a metáfora da "mão invisível", idea­

lizada pelo liberalismo clássico nos horizontes do Estado-nação, res­

surge idealizada pelo neoliberalismo nos horizontes da globalização.

Aos poucos , as produções e reproduções da cultura de massa em esca­

la mundial criam a ilusão de uma universalização das condições e pos­

sibilidades d o mercado e da democracia, do capital e da cidadania.

1 3 The Economist, Londres, 28 de setembro de 1991, p. 21 .

133

Page 68: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

1 4 Antonio Gramsci, Maquiavel, a política e o Estado moderno, tradução de Luiz Mário Gazzaneo, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1968, p. 6. Citação do cap. I: "O Moderno Príncipe".

134

A A L D E I A G L O B A L

A sofisticação da tecnologia de persuasão no último meio século

modificou as velhas regras da comunicação humana. À medida que a

indústria da publicidade e relações públicas tornava-se cada vez mais

hábil em controlar a opinião pública, as posturas, as crenças e os sis­

temas de valores, tornou-se um imperativo manter o segredo e capa­

citar a população a reprimir a consciência daquilo que os manipula­

dores estão tramando. O controle da percepção não pode ser alcan­

çado se for reconhecido, o que fez com que proliferassem os contro­

les perceptivos em níveis conscientes e inconscientes. (...) A suscetibi-

lidade humana à persuasão ideológica é baseada na promessa eterna­

mente não cumprida de sentido e ordem, uma resposta estereotipada

à solidão, à monotonia, ao medo e às ameaças de fome, doença, inse­

gurança e caos político, moral ou social. Estas ameaças são incessan­

temente suscitadas pela mídia comercial. A mensagem constante da

mídia com estas ameaças mantém a busca compulsiva por perguntas

e respostas, causas e efeitos, e compromissos ideológicos. A mensa­

gem da mídia indica a última direção do consumo, do divertimento,

da política, dos negócios, da indústria, das questões militares e da re­

ligião; com suas relativas promessas de reduzir a ansiedade. Liber­

dade é um Datsun (...), um voto em um candidato político, uma con­

tribuição para algum profeta religioso ( . . . ) . 1 5

É claro que tudo isso subverte as formas tradicionais ou clássicas

de organização e ações políticas. O par t ido, a opinião pública, o exer­

cício d o vo to , a governabil idade, a estabilidade ou instabilidade de

»5 Wilson Bryan Key, A era da manipulação, tradução de Iara Biderman, Scritta Editorial, São Paulo, 1993, pp. 313 e 319. Consultar também: Cynthia Schneider e Brian Wallis (editores), Global Televisión, Wedge Press, Nova York, 1988; Anthony Smith, La geopolítica de la infor­mación (Cómo la Cultura Occidental Domina el Mundo), tradução de Juan José Utrilla, Fondo de Cultura Económica, México, 1984; Armand Mattelart, La communication-monde (Histoire des Idées et des Stra­tégies), Éditions La Découverte, Paris, 1992; Annand Mattelart, L'inter­nationale publicitaire, Éditions La Découverte, Paris, 1989.

135

T o m a d a como intelectual orgânico da globalização, em condições

de construir hegemonias de alcance mundial , a mídia revela-se uma

nova figuração do "príncipe" de quem falaram Maquiavel e Gramsci.

Para Maquiavel , o príncipe era um indivíduo excepcional, do tado de

virtú, isto é, talento moral e político, bem como de fortuna, isto é, ca­

pacidade de aproveitar as condições e possibilidades emergentes na

vida política de uma cidade, reino, nação ou Estado. Para Gramsci, o

príncipe pode ser o part ido político. " O moderno príncipe, o mito-

príncipe, não pode ser uma pessoa real, um indivíduo concreto; só po­

de ser um organismo; um elemento complexo de sociedade no qual já

tenha se iniciado a concretização de uma vontade coletiva reconheci­

da e fundamentada parcialmente na ação. Este organismo já é deter­

minado pelo desenvolvimento histórico, é o part ido político: a primei­

ra célula na qual se aglomeram germes de vontade coletiva que ten­

dem a se tornar universais e t o t a i s . " 1 4

Essa figura transforma-se no curso da história, na medida em que

se desenvolvem as forças que organizam e dinamizam a vida da socie­

dade. N a época da universalização dos meios de comunicação, quan­

do o discurso do poder passa a ser formulado e divulgado por inter­

médio da mídia impressa e eletrônica, algo de essencial pode ter-se

modificado. Ao lado do líder e do par t ido , ou acima e além deles,

coloca-se a mídia, entendida como o emblema de um intelectual cole­

t ivo de amplas proporções , espalhado pelo m u n d o , influenciando

mentes e corações. A metáfora revive de modo inesperado, quando a

mídia assume a figura da estranha e surpreendente figura de príncipe

da modernidade-mundo. Combinado ou não com indivíduos, movi­

mentos sociais, part idos políticos, igrejas, governos, corporações, ou

outras pessoas, coletividades e organizações, esse príncipe da moder­

nidade-mundo pode influenciar às vezes decisivamente ódios e pai­

xões, correntes de opinião pública, estados de espírito, visões do mun­

do , mentes e corações.

Page 69: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

136

A A L D E I A G L O B A L

1« Mark Wossner, "Success and Responsability", publicado por Bertels­mann, Annual Report 1992/93, Gutersloh, Alemanha, 1993, pp. 4-7; ci­tação da p. 4. Cabe observar que a Bertelsmann é uma transnacional da mídia, ativa na produção de papel, livros, revistas, publicidade e serviços, e presente em países da Europa, Américas, Ásia e Africa.

1 7 Robert Phillipson, Linguistic Imperialism, Oxford University Press, Oxford, 1992; Claude Truchot, L'anglais dans le monde contempo-

137

as idéias políticas e culturais, e contribui para formar a opinião e o

consenso democráticos. Hoje, a sociedade utiliza a mídia para exer­

cer uma forma de autocontrole. 1 6

Nesse sentido é que a mídia adquire e expande sua influência n o

imaginário de muitos, da grande maioria . Ela detém amplo controle

nobre o m o d o pelo qual os fatos importantes ou secundários, locais,

nacionais, regionais ou mundiais, reais o u imaginários, difundem-se

pelo m u n d o , influenciando mentes e corações . Pode transfigurar o

real em virtual, da mesma maneira que o vir tual em real.

É evidente que esse intelectual orgânico de alcance mundial fala,

escreve e pensa principalmente em inglês. A despeito de ser compos to

por inúmeros intelectuais individuais provenientes das mais diversas

nações e culturas e até mesmo civilizações, enquan to intelectual cole­

tivo, múlt iplo, ubíquo e polifónico, fala, escreve e pensa principal­

mente em inglês.

É verdade que o inglês começou a mundializar-se como idioma do

imperialismo britânico, o que ocorreu de m o d o particularmente acen­

tuado no século XIX e primeiras décadas d o XX. Em seguida, desde o

término da Primeira Guerra Mundial (1914-18) e, mais ainda, desde o

término da Segunda Guerra Mundial (1939-45), difundiu-se também

como idioma oficial do imperialismo norte-americano. N o fim do sécu­

lo XX, continua a servir a esses imperialismos, ainda que com outros

significados, em especial devido à crise e decadência dessas grandes

potências, assim como pela emergência de outros pólos mundiais de

poder. Sob vários aspectos, é possível comprovar que a crescente mun-

dialização do inglês desenvolveu-se na esteira desses imperialismos. 1 7

regimes políticos, a magnitude ou irrelevância de fatos sociais, econô­

micos, políticos e culturais, tudo isso passa a depender, em a lguma

escala, da forma pela qual a mídia descreve e interpreta, fotografa e

divulga, taquígrafa e codifica ou representa e imagina fatos, aconteci­

mentos , realizações, impasses, crises, perspectivas, narcotráfico, ter­

ror ismo, recessão, desemprego, produtividade, prosperidade, golpe de

Estado, revolução, contra-revolução, guerra, comunismo, socialismo,

islamismo, cristianismo, budismo, ocidentalismo, orientalismo, neoli-

beral ismo, capitalismo. Subvertem-se as condições de a tuação e a s

possibilidades de influência de partidos; igrejas; movimentos sociais;

correntes de opinião pública; processos eleitorais; análises da realida­

de social , econômica , polí t ica e cu l tura l ; diretr izes e mensagens .

Transfiguram-se as linguagens e as técnicas do discurso do poder, da

dirigencia, da hegemonia.

Cada uma das corporações mundiais da mídia, e todas em con­

junto , certamente exercem influências mais ou menos decisivas nas

formas pelas quais os indivíduos, os grupos, as classes, as coletivida­

des e os povos situam-se diante das configurações e movimentos da

realidade social, em âmbito local, nacional, regional e mundial . É ób ­

vio que há convergências e contradições, hiatos e divergências, na for­

ma pela qual as corporações da mídia informam, interpretam, entre­

tém e distraem indivíduos e povos. Mas há sempre alguma influência,

mais ou menos decisiva, no modo pelo qual a mídia registra, selecio­

na, interpreta e difunde o que vai pelo mundo .

Vivemos em uma época de profundas mudanças políticas, econômi­

cas e culturais. (...) As mudanças que varrem o mundo alimentam a

insegurança. Exigem que os indivíduos reavaliem e mudem suas ati­

tudes, para dominar os novos desafios. Os indivíduos anseiam por

orientação e informação, mas têm inclusive uma forte necessidade de

entretenimento e recreação. Para fazer face a essas diferentes exigên­

cias, uma corporação global da mídia tem responsabilidades espe­

ciais. A comunicação é um elemento básico de qualquer sociedade. A

mídia torna essa comunicação possível, ajuda a sociedade a entender

Page 70: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

N a época da globalização do mundo, quando se intensificam e ge­

neralizam as relações, os processos e as estruturas do capitalismo, o in­

glês com o qual se fala, escreve e pensa adquire novos significados,

transforma-se na vulgata da mundialização. A despeito de suas conota­

ções ainda imperialistas, quando se trata de interesses norte-america­

nos, britânicos, canadenses e de outras nações pertencentes à comuni­

dade britânica ou à geoecpnomia norte-americana, é inegável que o in­

glês descola-se bastante de suas origens, lançando-se como uma espécie

de jargão universal. É o idioma por excelência da aldeia global tecida

pelas técnicas da eletrônica, pelos intercâmbios mercantis, pela geopo­

lítica da Guerra Fria, pela nova ordem econômica mundial formulada

pelo neoliberalismo e pelas redes da indústria cultural mundializada.

O inglês tem uma posição dominante na ciência, tecnologia, medici­

na e computação; na pesquisa, livros, periódicos e software; nos

negócios transnacionais, comércio, navegação e aviação; na diploma­

cia e organizações internacionais; na cultura de massa e no esporte; e

nos sistemas educacionais, como a língua estrangeira que mais

amplamente se aprende. (...) A difusão do inglês é excepcional, tan­

to em termos de alcance geográfico como no que se refere à profun­

didade da sua penetração. 1 8

Note-se a contemporaneidade e o cont raponto: língua da globali­

zação e eletrônica do mundo sem fronteiras.

A difusão do inglês é tão significativa como o uso moderno de com­

putadores. Quando o volume de informações que precisavam ser

rain, Le Robert, Paris, 1990; Renato Ortiz, Mundialização e cultura, Edi­tora Brasiliense, São Paulo, 1994, especialmente o cap. VI: "Legitimida­de e Estilos de Vida"; Octávio Ianni, Imperialismo e cultura, Editora Vo­zes, Petrópolis, 1976, especialmente a Primeira Parte: "A Indústria Cul­tural do Imperialismo". 1 8 Robert Phillipson, Linguistic Imperialism, citado, p. 6.

A A L D E I A G L O B A L

processadas excedeu às capacidades humanas, o computador apare­

ceu em cena, transformando os processos de planejamento e cálculo.

Quando a necessidade de uma comunicação global começou a exce­

der os limites estabelecidos pelas barreiras das línguas, a difusão do

inglês acelerou-se, transformando os padrões vigentes de comunica­

ção internacional. 1 9

Sim, a língua de fato da aldeia global tem sido principalmente o

inglês. A maior parte das comunicações, envolvendo todo tipo de in­

tercâmbio, desde as mercadorias às idéias, das moedas às religiões,

realiza-se nessa língua. Grande par te da produção científica, filosófi­

ca e artística está formulada nessa língua, por suas versões originais

ou por suas traduções. Mui to do que são os fatos sociais, econômicos,

políticos e culturais circulam como notícias faladas, escritas e pensa­

das em inglês, ou traduzidas para essa língua. É bastante sintomático

que alguns dos jornais e revistas mais característicos da mundializa­

ção em curso no fim do século XX estão escritos nessa língua, da mes­

ma forma que as emissões de cadeias de televisão e rádio de alcance

mundial . Praticamente tudo que se refere à eletrônica, compreenden­

do informática, computação, telecomunicações, automação, robótica,

microeletrônica e outras tecnologias criadas ou aprimoradas a part ir

da eletrônica, tudo isso tem sua production, marketing and imple-

mentation in Englisb.

A mídia impressa, eletrônica e informática, bem como produtos

como o disco, o cinema e os programas televisionados desempenham

um papel fundamental na difusão do inglês. Representam de longe o

principal meio de pôr-se em contato com esta língua, que alcança o

maior número de pessoas, que as toca mais freqüentemente e de

maneira mais variada. (...) Esta presença do inglês manifesta-se como

»9 C A . Ferguson, "Foreword", in B. B. Kachru (editor), The OtherTon-gue: English Across Cultures, Pergamon, Oxford, 1983, pp. vii-xi, cita­ção da p. ix.

138 139

Page 71: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

2 0 Claude Truchot, L'anglais dans le monde contemporain, Le Robert, Paris, 1990. p. 173.

140

A A L D E I A G L O B A L

das mudanças sociais. (...) Cada época e cada grupo social têm seu

repertorio de formas de discurso na comunicação sócio-ideológica.

(...) A língua vive e evolui historicamente na comunicação verbal

concreta, não no sistema lingüístico abstrato das formas da língua

nem no psiquismo individual dos falantes. 2 1

A universalização d o inglês, por tanto , não significa automatica­

mente a homogeneização dos modos de falar, escrever e pensar , ou

ser, agir, sentir, imaginar e fabular. Ainda que a forma pela qual está

ocorrendo a globalização do capitalismo leve consigo essa tendência,

ninda que a idéia de aldeia global implique essa conotação, é inegável

que as mais diversas modalidades de organizar a vida e o t rabalho , as

heranças e as tradições, as façanhas e as derrotas, ou os t rabalhos e os

dias, cont inuarão a produzir e a desenvolver as diferenças, as diversi­

dades e as polifonias.

2 1 Mikhail Bakhtin (Volochinov), Marxismo e filosofia de linguagem, tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira, 2*. edição, Editora Hucitec, São Paulo, 1981, pp. 41 ,43 ,44 e 124.

141

a própria língua das mídias. Além disso, as mídias propagam em in­

glês a reprodução da realidade do mundo contemporâneo ( . . . ) . 2 0

Esse tem sido não só o idioma da aldeia global, mas também e

simultaneamente o idioma da Babel global. Nessa Babel, atravessada

pelas mais surpreendentes diversidades e desigualdades, polarizada

por movimentos de integração e fragmentação, todos se entendem e

desentendem principalmente em inglês. Podem ser japoneses e chine­

ses, indianos e árabes, africanos e latino-americanos, franceses e indo­

nésios, alemães e russos, mas tendem a entender-se ou a desentender-

se principalmente nesse idioma.

Natura lmente as outras línguas não só permanecem mas desen­

volvem-se, transformam-se e até mesmo podem enriquecer-se. N a me­

dida em que é um momento essencial da cultura, do m o d o de ser, pen­

sar, agir, sentir, imaginar ou fabular, toda língua é necessariamente

vida, movimento, devir, transfiguração. O diálogo, o monólogo e a

polifonia estão sempre no âmago da sintaxe e semântica, do signo e

significado, do dito e desdito. Mais ainda porque o diálogo, o monó­

logo e a polifonia envolvem necessariamente as outras línguas, os ou­

tros modos de ser, pensar, agir, sentir, imaginar ou fabular. D o inter­

câmbio entre as diferentes línguas como momentos essenciais das di­

ferentes culturas, dos diferentes modos de ser, tan to se produzem mu­

tilações e reiterações como recriações e transfigurações.

As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos

e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios.

(...) A palavra constitui o meio no qual se produzem lentas acumula­

ções quantitativas de mudanças que ainda não tiveram tempo de

adquirir uma nova qualidade ideológica, que ainda não tiveram tem­

po de engendrar uma forma ideológica nova e acabada. A palavra é

capaz de registrar as fases transitórias mais íntimas, mais efêmeras

Page 72: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

CAPÍTULO 7 A racionalização do mundo

Page 73: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

h i . d e o princípio, o processo de desenvolvimento do capitalismo é

miiuiltaneamente um processo de racionalização. Com o vaivém, de

|x i meio às mais surpreendentes situações, juntamente com as rela-

çocs, os processos e as estruturas próprias do capitalismo, ocorre o

di .( nvolvimento de formas racionais de organização das atividades

iodais em geral, compreendendo as políticas, as econômicas, as jurí­

dicas, as religiosas, as educacionais e out ras . Aos poucos , as mais

diversas esferas da vida social são burocratizadas, organizadas em ter­

mos de calculabilidade, contabilidade, eficácia, produtividade, lucra­

tividade. Juntamente com o mercado, a empresa, a cidade, o Estado e

o direito, também as atividades intelectuais são racionalizadas. A ri­

gor, os desenvolvimentos das ciências ditas naturais e sociais, t raduzi­

dos em tecnologias de todos os t ipos, revelam-se s imultaneamente

condições e produtos de um vasto complexo processo de racionaliza­

ção do mundo .

Desde que se formou o moderno capitalismo, o mundo passou a

ser influenciado pelo pad rão de racionalidade gerado com cul tura

desse mesmo capitalismo. A administração das coisas, gentes e idéias,

ii calculabilidade do dever-e-haver, a definição jurídica dos direitos e

das responsabilidades, a codificação do que é privado e do que é pú-

145

Page 74: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

1 Max Weber, Historia económica general, tradução de Manuel Sán­chez Sarto, 2 a . edição, Fondo de Cultura Económica, México, 1956, p, 298.

146

A R A C I O N A L I Z A Ç Ã O DO M U N D O

complexo processo social, econômico, político e cultural. Ainda que

possa ser caracterizado pela racionalização das ações e relações, das

Instituições e organizações, para que esta racionalização ocorra e de-

u-nvolva torna-se indispensável que se modifiquem práticas e ideais,

padrões e valores sócio-culturais, transformando-se o imaginário e as

«tividades de uns e outros . N a medida em que se forma, consolida e

expande, o capitalismo pode influenciar, criar, tensionar, modificar,

recobrir ou mesmo dissolver outras formas de organização das ativi­

dades produtivas e da vida sócio-cultural.

Existe capitalismo onde quer que se realize a satisfação de necessida­

des de um grupo humano com caráter lucrativo e por meio de empre­

sas, qualquer que seja a necessidade de que se trate. Em especial,

dizemos que uma exploração racionalmente capitalista é uma explo­

ração com contabilidade de capital, é uma ordem administrativa por

meio da contabilidade moderna, com base no balanço, exigência for­

mulada pela primeira vez no ano de 1698 pelo teórico holandês

Simon Stevin. Naturalmente uma economia individual pode orientar-

se de modo diferente da capitalista; parte da satisfação de suas neces­

sidades pode ser capitalista e parte não-capitalista, ou seja, de orga­

nização artesanal ou senhorial. (...) A premissa mais geral para a

existência do capitalismo moderno é a contabilidade racional do

capital como norma para todas as grandes empresas lucrativas que se

ocupam da satisfação das necessidades cotidianas. As premissas des­

sas empresas, por sua vez, são as seguintes: 1) apropriação dos bens

materiais de produção (a terra, aparelhos, instrumentos, máquinas

etc.) como propriedade de livre disposição por parte de empresas

lucrativas autônomas; 2) a liberdade mercantil, ou seja, a liberdade

de mercado em face de toda limitação irracional de intercâmbio; 3)

técnica racional, ou seja, contabilizável ao máximo e, em conseqüên­

cia, mecanizada; 4) direito racional, ou seja, direito calculável. Para

que a exploração econômica capitalista se processe racionalmente

precisa confiar em que a justiça e a administração seguirão determi­

nadas normas; 5) trabalho livre, ou seja, que existam pessoas, não só

147

blico, tudo isso passa a constituir a t rama das relações sociais, o p |

d r ão predominante de organização das ações sociais. A racionalidadl

originada com o mercado, a empresa, a cidade, o Estado e o direita

tende a organizar progressivamente os mais diversos círculos de rela*

ções sociais, compreendendo os grupos sociais e as instituições em que

se inserem, da fábrica à escola, da agência do poder estatal à família t

dos sindicatos aos part idos políticos, dos movimentos sociais às cofi

rentes de opinião pública. Aos poucos, t udo se burocratiza segunda

um padrão burocrático racional legal. Esse é o padrão que salta d l

Europa aos Estados Unidos da América do Nor te . Em forma errática

e contraditória, no curso dos anos, décadas e séculos, esse padrão sr

estende pelos out ros países ou povos, compreendendo continentes,

ilhas e arquipélagos.

C o m freqüência, a dominação racional está convivendo c o m i

dominação tradicional e a dominação carismática. A realidade social!

sempre complexa, múltipla, caótica e infinita, pode ser lida nas perM

pectivas abertas por esses três t ipos de dominação . Eles podem sei

verificados não só na Europa Ocidental e nos Estados Unidos, mal

t ambém nas outras sociedades, nações, nacionalidades, tribos, comuy

nidades ou povos, em diferentes gradações. N a Ásia, Oceania, África!

América Latina e Caribe, apresentam-se em múltiplas combinações. I

são comuns as situações nas quais prevalece o padrão carismático, om

o tradicional. M a s também são evidentes as situações nas quais a do-,

minação racional predomina amplamente, segundo o padrão inaugu­

rado com o moderno capitalismo europeu e progressivamente mun­

dial. " O que o capitalismo criou, em definitivo, foi a empresa dura-!

doura e racional, a contabilidade racional, a técnica racional, o direi-]

t o racional; a tudo isto haveria que acrescentar a ideologia racional, a

racionalização da vida, a ética racional na economia . " 1

Note-se , pois , que o capital ismo compreende t o d o um vasto e

Page 75: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

2 Max Weber, Historia econômica general, citado, pp. 236-238. 3 Benjamin Nelson, "On Orient and Occident in Max Weber", Social

Research, Spring 1976, Nova York, pp. 114-129; citação da p. 117.

148

A R A C I O N A L I Z A Ç Ã O DO M U N D O

parecendo característico do hemisfério norte, também expande-se pelo

hemisfério sul. Desde o mercantilismo, o colonialismo e o imperialis­

mo, vastos processos por meio dos quais se tecem laços, comunicações,

redes, geoeconomias e geopolíticas desenhando o mapa d o m u n d o ,

sempre compreendendo culturas e civilizações também muito diferen­

tes entre si e das ocidentais, desde esses vastos processos todo o mun­

do foi sendo permeado por padrões, valores, instituições e organiza­

ções mais ou menos característicos do capitalismo. Em certos casos,

tomo no do Japão, o capitalismo tanto floresce, que até mesmo inova

e desafia as próprias matrizes originais desse modo de produção. Aos

poucos, as "ou t ras" culturas e civilizações revelam-se "compatíveis"

com os padrões e valores, as instituições e organizações, mais caracte­

rísticos do capitalismo. Aí nascem e desenvolvem-se a empresa, o mer­

cado, o planejamento, a administração, a contabilidade, as técnicas de

produção e controle, a divisão do trabalho social, o taylorismo, o fayo-

lismo, o fordismo, o toyot ismo, a flexibilização, a produtividade, a

lucratividade e a acumulação , t udo isso ar t iculado nos moldes da

racionalidade capitalista. Sem prejuízo das peculiaridades sócio-cultu-

rais de cada povo, praticamente todas as tribos, nações e nacionalida­

des do mundo foram alcançadas, envolvidas, impregnadas, transfor­

madas ou recriadas pelas relações, processos e estruturas de organiza­

ção da produção e da vida social mais característicos do capitalismo.

Aqui , novamente , recoloca-se o cont raponto "ét ica-economia"

ou "religião-capitalismo". Esse foi um tema t ra tado classicamente por

Weber, para o qual também contribuíram de modo notável os estudos

de Sombart , Troeltsch e Tawney, entre outros . Examinaram tanto as

configurações históricas que Weber havia anal isado c o m o ou t r a s ,

além de empenharem-se em desenvolver o contraponto protestantis-

mo-catolicismo-judaísmo-capitalismo. 4

4 E. Troeltsch, El protestantismo y el mondo moderno, tradução de Euge­nio Imaz, Fondo de Cultura Económica, México, 1951; Werner Sombart, El Burgués, tradução de Victor Bernardo, Ediciones Oresme, Buenos Aires, 1953; R.H. Tawney, A religião e o surgimento do Capitalismo, tra­dução de Janete Meiches, Editora Perspectiva, São Paulo, 1971.

149

em seu aspecto jurídico mas também no econômico, obrigadas a ven­

der livremente sua atividade em um mercado; 6) comercialização da

economia, sob cuja denominação compreende-se o uso geral de títu­

los de valor, para os direitos de participação nas empresas e igual­

mente para os direitos patrimoniais. Em resumo, a possibilidade de

uma orientação exclusiva, no que se refere à satisfação das necessida­

des, no sentido mercantil e da rentabilidade. 2

O que cabe ressaltar, neste ponto, é que o padrão de sociabilidade

envolvido no processo de racionalização das ações, relações, institui-'

ções, organizações e formações sociais pode influenciar, tensionar, mo­

dificar, recobrir ou mesmo dissolver os padrões de sociabilidade não-

capitalistas, tais como o carismático e o tradicional. Ainda que estes

padrões com freqüência subsistam, reapareçam ou mesmo formem-se à margem ou por dentro do padrão racional, ou burocrático legal, ainda

assim cabe reconhecer que este se apresenta dominante na história

moderna européia e mundial. Devido à força, complexidade, abrangên

cia e expansividade do capitalismo como processo civilizatório, as mais

diversas formas de organização das atividades produtivas e da vida

social tendem a ser recobertas, subordinadas, modificadas ou dissolvi­

das por esse processo. "A racionalização tem sido a força decisiva no

mundo moderno. O seu progresso no âmbito da conduta, da empresa,

da organização, da tecnologia, da lei e da ciência tem resultado no pro­

fundo desencantamento do cosmos que caracteriza a nossa época ." 3

Se é verdade que o capitalismo nasceu na Europa Ocidental, am­

bientado no protestantismo, desenvolvendo-se inclusive nos Estados

Unidos impregnados desse mesmo protestantismo, é também verdade

que o capitalismo tem se expandido progressivamente por outras na­

ções e nacionalidades, culturas e civilizações, atravessando continen­

tes, ilhas e arquipélagos. O que parecia característico e peculiar do

Ocidente, logo se revela compatível e até mesmo próspero no Oriente;

Page 76: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

5 Maxime Rodinson, Islam y capitalismo, tradução de Marta Rojzman, Siglo Veintiuno Editores, Buenos Aires, 1973; Michio Morishima, Capi­talisme et confucionisme (Technologie Occidentale et Éthique Japonai-

A R A C I O N A L I Z A Ç Ã O DO M U N D O

se), tradução de Anne de Ruff e Pierre-Emmanuel Dauzat, Flammarion, Paris, 1986; World Development, vol. 8, n<* 7/8, Pergamon Press, Ox­ford, número especial dedicado a "Religious Values and Development".

Cabe sempre reconhecer e reiterar que a sociologia das religiões

mundiais desenvolvida por Weber é também e principalmente urna

sociologia da cultura, uma sociologia de estilos de vida e visões do

mundo constituídos culturalmente e sintetizados nas religiões. É claro

que as religiões podem envolver os mais distintos e opostos elementos,

tais como Deus e diabo, natureza, sociedade e sobrenatural , religiosi­

dade e magia, misticismo e profetismo, Igreja e seita, sagrado e profa­

no, pecado e castigo, rotinização e secularização, teologia e cosmogo­

nia. N o jogo das relações sociais e na t rama dos padrões e valores cul­

turais, tendo em conta processos e estruturas também econômicos e

políticos, as mais diversas formas de vida religiosa não só são levadas

a inserir-se e redefinir-se no âmbito da sociedade como um todo como

podem rotinizar-se e secularizar-se, constituindo segmentos mais ou

menos básicos da cultura. Acontece que os processos de rotinização e

secularização historicamente desenvolvem-se de par-em-par, tensa e

combinadamente, com outros processos, tais como individuação, ur­

banização, mercantilização, industrialização e racionalização. E esses

processos com freqüência ultrapassam fronteiras geográficas e histó­

ricas, atravessando culturas e civilizações.

De fato, o capitalismo pode ser visto como um processo de am­

plas proporções e acentuadamente expansivo, inaugurando e desen­

volvendo uma época excepcionalmente singular da história européia e

mundial. Ainda que se configure inicialmente como uma singularida­

de européia, decisivamente influenciada pela ética protestante, logo

passa a influenciar outras partes do mundo. Mais do que isso, desde o

início já há nele algo de mundializado.

É possível dizer, com Weber, que o capitalismo pode ser visto como

um processo civilizatório gerado no Ocidente mas espalhando-se pelo

Oriente, originário do norte mas difundindo-se pelo sul, marcadamen­

te ocidental mas progressivamente mundial. Assim, a mundialização em

curso no século XX, em especial depois da Segunda Guerra Mundial e

151 1 5 0

Posteriormente, outros pesquisadores dedicaram-se à problema

ca inaugurada por Weber. Mas preocupando-se particularmente coffl

os contrapontos "islamismo-capitalismo", "confucionismo-capitaIii>

m o " e "hinduísmo-capitalismo", além de outros. Dedicaram-se e con-

t inuam a dedicar-se a esclarecer as relações entre religião e economia,

ou ética religiosa e racionalidade econômica, ou ainda profissão e se»

cularização da ética religiosa, de modo a desvendar o enigma "reli»

gião-capitalismo". Empenham-se em analisar o ideário do islamismOjj

do hinduísmo e do confucionismo, entre outras religiões, para desven*

dar seus componentes de ascetismo e pragmatismo, de modo a escla»

recer os eventuais elementos ou as potencialidades mais ou menot

compatíveis e incompatíveis com a racionalidade dos processos de tra*l

balho, produção, distribuição, troca e consumo característicos do cai

pitalismo. Alguns pesquisadores colocam-se o dilema "religião-capitM

l ismo" de uma forma um tanto imediata e direta, deixando de contem»

piar outras dimensões da realidade social abrangente. Outros , no e m

tanto , ampliam e diversificam seu horizonte de reflexão, contemplan»

d o aspectos sociais, políticos, culturais e históricos também relevanteaj

Note-se que o contraponto "religião-capitalismo", envolvendo éti­

ca religiosa e comportamento econômico, ou visão religiosa do mundo

e racionalização do trabalho e da produção, não se desenvolvem em

abstrato, mas no âmbito do jogo das relações, processos e estruturas so­

ciais, culturais e outras que constituem a sociedade. Sempre que Webefj

se refere à religião, que pode ser protestantismo, catolicismo, judaísmo]

islamismo, hinduísmo, confucionismo ou mesmo as demais, o que está

em causa é tanto a religião como a cultura; cultura esta da qual a reli-!

gião é uma dimensão privilegiada, mas não única. Sim, para Weber a

religião pode ser compreendida como um elemento nuclear da cultura.

O estilo de vida e a visão do mundo envolvidos sinteticamente na reli­

gião em geral correspondem às dimensões essenciais da cultura. 5

Page 77: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

6 Bryan S. Turner, "The Two Faces of Sociology: Global or National?", publicado por Mike Featherstone (editor), Global Culture (Nationalism, Globalization and Modernity), Sage Publications, Londres, 1990, pp. 343-358; citação da p. 353.

A R A C I O N A L I Z A Ç Ã O DO M U N D O

O sistema econômico capitalista, com a sua calculabilidade, levou o

controle burocrático ao seu mais extremo desenvolvimento. M a x

Weber observou que quanto mais "desumanizada" se torna a burocra­

cia, melhor ela desenvolve as características valorizadas pelo capitalis­

mo. As suas técnicas tornam-se mais refinadas, quanto mais eliminam

das ocupações oficiais o amor, o ódio e todos aqueles elementos pura­

mente pessoais, irracionais e emocionais que desafiam o cálculo. (...) A

invenção de um aparato de tal precisão, como meio de controle, exclui

a possibilidade de qualquer outro sistema. A complexidade da socieda­

de industrial não permite a não ser a administração burocrática, o que

torna o destino das massas ligado ao contínuo funcionamento do apa­

relho burocrático. (...) Uma vez plenamente estabelecida, a burocracia

é uma daquelas estruturas sociais mais difíceis de serem destruídas. 7

Nesse contexto em que se formam, generalizam e predominam as

tecnoestruturas dest inadas a diagnost icar , planejar e implementar

diretrizes gerais e decisões especiais. As tecnoestruturas reúnem pro ­

fissionais sofisticados de todas as qualificações, d o economista ao

matemático, d o sociólogo ao publicitário, de m o d o a pensar as condi­

ções e perspectivas dos mercados efetivos e potenciais, das condições

7 Henry Jacoby, The Bureaucratization of the World, University of California, Berkeley, 1976, pp. 148-9, 149 e 150. Consultar também: Wolfgang J. Mommsen, The Age of Bureaucracy (Perspectives on the Political Sociology of Max Weber), Harper & Row Publishers, Nova York, 1974.

153

mais ainda em seguida ao término da Guerra Fria, pode ser vista com

um novo surto de mundialização da racionalidade própria da civiliza

ção capitalista ocidental. Mas com uma peculiaridade: nesta época

racionalidade própria desse processo civilizatório já adquire catego "

global. Uma racionalidade global, com dinamismo próprio, que já incu

te nas sociedades nacionais algo novo, distinto, próprio da socieda

global. A tecnocracia internacional, transnacional ou mundial é be

uma expressão dessa globalização. Há empresas, corporações e congl

merados, bem como agências multilaterais, desde a O N U ao FMI e

OIT, que expressam muito bem os primórdios e os horizontes da raci

nalização possível, almejada, realizada ou em curso em escala global.

Para Weber, a força globalizante do capitalismo traduz-se na teori

da racionalização global. A combinação do capitalismo protestan

com o racionalismo ocidental produziu uma força irresistível, que ir

lenta mas seguramente convertendo o mundo em um sistema sócia

regulado e organizado, no qual haverá pouco espaço para a tradição,

a magia ou o carisma. O desencantamento do mundo tornará tudo,

em princípio, sujeito ao cálculo racional. Embora muitas cultura

tenham "antecipado" tais mudanças, somente na Europa pós-calvi

nista e nas culturas protestantes da América do Norte a força espiri

tual do racionalismo instrumental floresceu plenamente. 6

Ocorre que o capitalismo, como produto e condição da ampla e g

neralizada racionalização do mundo , logo se impõe ou sobrepõe às

mais diversas formas de organização da vida social. Tanto pode convi­

ver como absorver, tanto modificar como recriar as mais diferentes mo­

dalidades de organização social do trabalho e da produção. As forma­

ções sócio-culturais de tribos e clãs, nações e nacionalidades, províncias

p regiões, muitas vezes sedimentadas por séculos de história, tradições e

nulos, tudo pode ser alterado, abalado, mutilado ou recriado pelas rela­

ções, processos e estruturas que constituem a organização e a dinâmica

• capitalismo como processo civilizatório. Em geral, t udo isso está

marcado pela calculabilidade, contabilidade, administração, ordena­

mento jurídico, desempenho, eficácia, produt ividade, lucratividade,

MI íonalidade. Está em curso a burocratização do mundo.

152

Page 78: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

sociais, políticas, culturais e econômicas para a seleção e implementa­

ção de investimentos, operações publicitárias, inauguração de temas,

preparação da opinião pública, em conformidade com decisões que

podem interessar a governos, corporações, igrejas, lobbings, correntes

de opinião pública e outras instituições e organizações.

A sociedade econômica moderna só pode ser entendida como um

esforço, inteiramente bem-sucedido, de sintetizar na organização

uma personalidade de grupo muito superior (para os seus objetivos)

à de uma pessoa natural e com a vantagem adicional da imortalida­

de. A necessidade de tal personalidade de grupo começa pela circuns­

tância de que, na indústria moderna, um grande número de decisões

e todas as que são importantes valem-se de informações possuídas

por mais de um homem. De modo típico, se valem do conhecimento

científico e técnico especializado, da experiência e das informações

acumuladas e do sentido intuitivo ou artístico de muitas pessoas. Isso

é norteado por outras informações que são reunidas, analisadas e

interpretadas por profissionais que utilizam um equipamento alta­

mente técnico. (...) Deverá haver homens cujo conhecimento lhes

permita prever as necessidades e garantir uma oferta de mão-de-

obra, materiais e outros requisitos de produção; homens que saibam

planejar estratégias de preços e cuidem de que os consumidores este­

jam apropriadamente persuadidos a comprar a esses preços; homens

que, nos níveis mais altos da tecnologia, estejam tão informados que

possam trabalhar eficientemente com o Estado, de modo que este

seja convenientemente dirigido; homens, por fim, que possam orga­

nizar o fluxo de informações que as tarefas acima mencionadas e

muitas outras exigem. 8

As tecnoestruturas podem ser vistas como organizações sistêmi­

cas, expressando muito do que é a racionalidade instrumental ou téc-

8 John Kenneth Galbraith, O novo Estado industrial, tradução de Alvaro j Cabral, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1968, pp. 70 e 72. Citações do cap. VI, intitulado "A Tecnoestrutura".

A R A C I O N A L I Z A Ç Ã O DO M U N D O

nica predominante no capitalismo. Elas podem ser locais, nacionais ,

regionais e mundiais, operando em esferas como as da economia, p o ­

lítica, cultura, geopolítica, geoeconomia, indústria cultural e ou t ras .

Talvez sejam as formas mais desenvolvidas das estruturas decisórias

que articulam as partes e o todo , nas mais diferentes esferas da vida

social. Transformam recursos científicos e tecnológicos em diretrizes,

decisões, planejamentos e práticas destinados a organizar, dinamizar

e modificar o jogo das forças sociais, em conformidade com os inte­

resses prevalecentes nas estruturas de dominação política e apropr ia­

ção econômica. Formaram-se e desenvolveram-se n o âmbito da eco­

nomia, envolvendo empresas, corporações e conglomerados operan­

d o em escala local, nacional, regional e mundial .

Note-se que as tecnoestruturas das corporações transnacionais e das

organizações multilaterais aperfeiçoam e desenvolvem suas ativida­

des beneficiando-se bastante das contribuições dos think-tanks, ou

seja, das produções de equipes de intelectuais dedicados, em geral de

modo exclusivo e sistemático, à realização de estudos, diagnósticos e

prognósticos relativos aos mais distintos problemas locais, nacionais,

regionais e mundiais. Em escala crescente no século XX, e em forma

cada vez mais sistemática e generalizada depois da Segunda Guerra

Mundial, os think-tanks floresceram e multiplicaram-se por todo o

mundo, em geral, pensando, falando e escrevendo em inglês. Trata-se

de equipes de intelectuais, combinando cientistas e técnicos, seniors e

juniors, especializados em problemas relativos à sociedade e à natu­

reza, desde a geologia e a astronomia à demografia e ao marketing,

cujos conhecimentos se traduzem em diagnósticos e prognósticos, ou

planos, programas e projetos, sempre em conformidade com os pro­

blemas suscitados por corporações e organizações privadas e públi­

cas, nacionais, regionais e mundiais. É no âmbito dos think-tanks,

assim como no das tecnoestruturas, de forma independente ou com­

binadamente, que se dá a tradução de conhecimentos científicos em

técnicas de produção e controle, relativamente a problemas econômi­

cos, políticos, culturais, demográficos, religiosos, raciais, ecológicos,

155

Page 79: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

geoeconômicos, geopolíticos e outros, nos mais distintos e distantes

países, envolvendo nações e nacionalidades, povos e coletividades,

culturas e civilizações. Dessa maneira, desenvolve-se, aprimora-se e

generaliza-se a racionalização do mundo, ainda que de modo irregu­

lar, fragmentário e contraditório, mas em geral inexorável. 9

Uma parte fundamental da racionalização da sociedade é desem­

penhada pelo direito, pela codificação jurídica das responsabilidades,

normas e procedimentos, estipulando os parâmetros das ações e rela­

ções, das instituições e organizações. A partir dos princípios da liber­

dade e igualdade de proprietários, formalizados no contrato , institu­

cionalizam-se, generalizam-se e cristalizam-se as condições e possibi­

lidades formais do intercâmbio, negociação, parlamentação, contro­

vérsia, prémio e punição. Independentemente das peculiaridades não

apenas sociais, econômicas e políticas, mas também culturais e civili-

zatór ias , as t r ibos, clãs, nacionalidades e nações podem tomar por

referência critérios da racionalidade básica indispensável à interde­

pendência.

Juntamente com a racionalização do mercado, da empresa, da ci­

dade, d o Estado, do ensino, da cultura e da religião, desenvolve-se e

generaliza-se o direito racional. Os códigos de todos os tipos, traduzi­

dos em estatutos, normas e diretrizes, estabelecendo direitos e obriga­

ções, prêmios e punições, t raduzem os padrões e os valores sócio-cul-

turais do ascetismo originário do capitalismo em disposições racio­

nais secularizadas impostas e válidas para todos , independentemente

das diferenças de classe, religião, raça, sexo e idade. Sob outras for­

mas, pois, está em curso a racionalização das ações e relações, institui­

ções e organizações, em escala local, nacional, regional e mundial .

9 The Economist, "The Good Think-Tank Guide", Londres, 21 de janei­ro de 1992, pp. 79-85; Alvin W. Gouldner, El futuro de los intelectuales y el ascenso de la nueva clase, tradução de Néstor Miguez, Alianza Edi­torial, Madri, 1985; Ernst B. Haas, Mary Pat Williams e Don Babai, Scientists and World Order (The Uses of Technical Knowledge in Inter­national Organizations), University of California Press, Berkeley, 1977.

A R A C I O N A L I Z A Ç Ã O DO M U N D O

1 0 Max Weber, Economia e sociedade, 2 vols., tradução de Régis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa, Editora Universidade de Brasília, 1991, vol. 1, especialmente o cap. III; "Os Tipos de Dominação".

157

A calculabilidade econômica, ou a contabil idade cada vez mais

sistemática, rigorosa e mecanizada, é uma espécie de concret ização

efetiva, cotidiana e generalizada das exigências da racionalidade geral

que constitui e dinamiza ações sociais com relação a fins e valores típi­

cos da ordem social capitalista. Mas cabe reconhecer que o direito se

consti tui em uma espécie de pa râmet ro universal da sociabi l idade

característica da ordem social capitalista. Em todas as esferas da vida

social, da empresa ao Estado, do mercado à cidade, da escola à igre­

ja, em todas essas e outras esferas da vida social está presente o parâ­

metro constituído pelas disposições jurídicas que ordenam e discipli­

nam as ações e relações de uns e outros em moldes racionais.

Talvez se possa dizer que, para Weber, o direito racional é o co­

roamento do processo de racionalização inerente ao desenvolvimento

do capitalismo como processo civilizatório. A racionalidade possível

na empresa e no mercado, envolvendo o capital, a tecnologia, a força

de t rabalho e os outros fatores da produção codifica-se em última ins­

tância no direito racional. Ele é o parâmetro universal das atividades,

ações, relações, instituições e organizações, envolvendo indivíduos e

coletividades, nações e nacionalidades. Ainda que na mesma socieda­

de subsistam distintos tipos de dominação, tais como o carismático e

o tradicional, entre outros, quando a dominação racional começa a

predominar , ela tende a influenciar, recobrir, tensionar, modificar,

recriar ou mesmo dissolver outras modalidades de organização das

atividades produtivas e da vida soc ia l . 1 0

Esse é o universo em que predomina o princípio da quant idade. O

mesmo princípio que funda a racionalidade da empresa e do mercado,

da cidade e do Estado, aos poucos impregna todos os outros círculos

da vida social, compreendendo o part ido político e o sindicato, a mí­

dia e a escola, a Igreja e a família. Aos poucos, o princípio da qualida­

de subordina-se ao da quantidade. Ainda que a qualidade jamais seja

156

Page 80: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

1 1 Daniel Bell, The Cultural Contradictions of Capitalism, Basic Books, Nova York, 1978; Colin Campbell, The Romantic Ethic and the Spirit of Modern Consumerism, Basil Blackwell, Oxford, 1989.

158

A R A C I O N A L I Z A Ç Ã O DO M U N D O

Sob todos os aspectos, pode-se dizer que o conceito de racionali­

dade está na base do pensamento de Weber, tan to n o que se refere às

suas reflexões teóricas c o m o n o que diz respeito às suas análises his­

tóricas. T u d o que é social, em qualquer época e lugar, pode ser anali­

sado em termos de formas e gradações de racionalidade das ações so­

ciais de indivíduos, g rupo ou coletividades. Os conceitos típico-ideais

de ação social tradicional e ação social afetiva adquirem maior clare­

za quando em cont raponto com os conceitos de ação racional com re­

lação a valores e ação racional com relação a fins. Em out ro nível, o

conceito de dominação racional legal ajuda a clarificar os de domina­

ção tradicional e dominação carismática. A rigor, os conceitos de em­

presa, cidade, mercado, Estado e direito são elaborados por Weber de

modo a esclarecer distintas formas e gradações de racionalidade, co­

mo configuração típico-ideal e como processo histórico. Racionalida­

de é a matriz da sua teoria da história.

A idéia de racionalidade é o grande tema unificador da obra de M a x

Weber. Os seus estudos empíricos aparentemente díspares conver­

gem para um objetivo subjacente: caracterizar e explicar o desenvol­

vimento da racionalidade específica e peculiar que distingue a civili­

zação ocidental moderna de todas as outras. As suas pesquisas meto­

dológicas enfatizam a capacidade universal dos homens para agir

racionalmente e a conseqüente força da ciência social para com­

preender essa a ç ã o . 1 2

A mesma racional idade q u e singulariza a civilização ocidental

transforma-se em parâmet ro de análise de todas as outras civilizações

1 2 Rogers Brubaker, The Limits of Rationality (An Essay on the Social and Moral Thought of Max Weber), George Allen & Unwin, Londres, 1984, p. 1. Consultar também: Ralph Schroeder, Max Weber and the So­ciology of Culture, Sage Publications, Londres, 1992; Wolfgang J. Mom-msen, The Age of Bureaucracy, citado; Henry Jacoby, The Bureaucrati­zation of the World, citado; Benjamin Nelson, "On Orient and Occident in Max Weber", citado.

159

suprimida, ela perde prerrogativas na maioria dos espaços públicos, e

tende a perdê-las também em espaços privados.

O paradoxo está em que o princípio da qualidade subjacente ao as­

cetismo presente na origem do espírito do capitalismo progressivamen­

te foi sendo substituído pelo princípio da quantidade. A mesma dinâ­

mica deflagrada com a ética protestante, com a profissão como realiza­

ção da vocação, ou com a atividade econômica disciplinada e produti­

va como missão, essa mesma dinâmica engendra a substituição da qua­

lidade pela quantidade. Há um momento em que a montanha de mer­

cadorias produzidas precisa ser consumida para realizar-se, como valor

de uso e de troca, sem o que não se realiza o lucro. Para que o capital

possa concretizar-se e desenvolver-se como lucrat ividade, torna-se

necessário que o consumo se efetive, intensifique e generalize. Isto sig­

nifica que o princípio da quant idade também estava subjacente, na

mesma origem do espírito do capitalismo, determinando a seculariza-

ção da ética protestante e a metamorfose do ascetismo e consumismo.

De fato, é inegável a contradição entre ascetismo e consumismo, se

pensamos no capitalismo em perspectiva weberiana. Ao longo da his­

tória, à medida que se desenvolve o capitalismo, o ascetismo parece

declinar e o consumismo hedonista, crescer. Isto significa que a matriz

originária do capitalismo, sintetizada na ética protestante, na profissão

como vocação e no ascetismo como negação do hedonismo, progressi­

vamente rotiniza-se, seculariza-se e dissolve-se no jogo das forças

sociais presentes e crescentes no mercado. Assim, aos poucos, o consu­

mismo se constitui em outra esfera de dinamização das ações, relações,

instituições e organizações sociais, em escala local, nacional, regional e

mundial. N o âmbito do consumismo é que se desenvolve a sociedade

de consumo, a sociabilidade consumista, em que indivíduos e multi­

dões imaginam que estão realizando a cidadania, confundindo a liber­

dade e a igualdade de consumidores com os direitos do c idadão . 1 1

Page 81: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

ou formações sociais diferentes da ocidental. Aliás, o própr io Oci­

dente é analisado a partir desse parâmetro. É como se muito do que se

situa no Ocidente só aos poucos se tornasse racional, organizado se­

gundo as características da dominação racional legal. Simultaneamen­

te, é como se muito do que é tradicional, carismático, patrimonial ou

oriental só aos poucos se deixasse penetrar por características da do­

minação racional legal. Essa é a perspectiva simultaneamente metodo­

lógica e histórica em que Weber se situa para refletir sobre a China, a

índia, o Egito, a Grécia, sobre Roma, Idade Média européia e outras

configurações sociais ou civilizatórias recentes, remotas ou presentes.

Essa é a perspectiva concomitantemente metodológica e histórica

em que Weber se coloca para refletir sobre o socialismo. Em forma

breve, para ele o socialismo distingue-se principalmente como uma

forma ou gradação de exercício da racionalidade na organização das

atividades econômicas, políticas, culturais e sociais. A estatização da

economia, ou a expropriação da propriedade privada das empresas,

bem como o planejamento da produção e mercado, além de outras

características do socialismo que já se ensaiava nos primeiros anos de

vida da União Soviética, tudo isso poderia traduzir-se em novas for­

mas ou gradações de racionalidade; algo perfeitamente inteligível na

ótica aberta pelo tipo de dominação racional legal burocrática. Em lu­

gar de propiciar a emancipação do trabalhador, do povo e da socieda­

de, poderia reforçar e aprofundar o poder da empresa, do aparelho

estatal, ou dos grupos sociais, instituições e organizações que detives­

sem os meios de controle, decisão e implementação.

Onde quer que o funcionário especializado moderno venha a predo­

minar, sua força se revela praticamente indestrutível, pois toda orga­

nização e mesmo a satisfação da necessidade mais elementar foi

adaptada ao seu modo de operação. Uma eliminação progressiva do

capitalismo privado é teoricamente concebível, ainda que certamente

não seja tão fácil como o fazem supor os sonhos de alguns Hterati que

desconhecem o assunto. Essa eliminação, com toda certeza, não será

uma das conseqüências desta guerra (1914-18). Mas suponhamos

A R A C I O N A L I Z A Ç Ã O DO M U N D O

que no futuro o capitalismo privado seja eliminado. Qual seria o re­

sultado prático? A destruição da estrutura de aço do trabalho indus­

trial moderno? Não! A abolição do capitalismo privado significaria

simplesmente que também a alta administração das empresas nacio­

nalizadas ou socializadas tomar-se-ia burocrática. (...) A burocracia

estatal reinaria absoluta se o capitalismo privado fosse eliminado. As

burocracias privada e pública, que agora funcionam lado a lado, e

potencialmente uma contra a outra, e assim se restringem mutua­

mente até certo ponto, fundir-se-iam numa única hierarquia. Este Es­

tado seria então semelhante à situação no antigo Egito, mas ocorre­

ria de uma forma muito mais racional e por isso indestrutível. 1 3

Para Weber , o socialismo se caracteriza po r criar novas formas e

gradações de racionalização das atividades, instituições e organiza­

ções, o que reforça o poder da burocracia e d o burocrata, tan to no

que se refere à gestão do aparelho estatal e da empresa como no rela­

tivo à estrutura de aço na qual o t rabalhador é inserido.

Semelhante estatização, quer dizer, uma associação forçada em car­

téis de empresários de todos os setores e a participação do Estado nes­

ses cartéis com uma quota de lucro relativo (em troca da renúncia ao

direito de controle) significaria de fato, em tempos de paz, o domínio

do Estado por parte da indústria antes que o domínio da indústria

por parte do Estado. Tudo isto poderia tomar uma força malsã. N o

interior das associações empresariais, os representantes do Estado se

sentariam à mesma mesa que os industriais, muito mais capacitados

que eles em matéria de habilidade profissional, adestramento comer­

cial e capacidade de defender seus próprios interesses. 1 4

1 3 Max Weber, Ensaios de sociologia e outros escritos, seleção de Mau­rício Tragtenberg, Abril Cultural, São Paulo, 1974, pp. 30-31; citação extraída de "Parlamentarismo e Governo numa Alemanha Reconstruí­da", pp. 7-91.

1 4 Max Weber, "Conferência sobre o Socialismo"; em: Émile Dürk­heim e Max Weber, Socialismo, organização de Luis Carlos Fridman, Relu-me Dumará, Rio de Janeiro, 1993, pp. 85-128; citação extraída da p. 105.

161 160

Page 82: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

Sob essas condições, alteram-se as condições de trabalho e produção,

assim como as de reivindicação e luta por parte dos trabalhadores.

Contra o Estado não é possível fazer greve alguma, e portanto com

esse tipo de socialismo de Estado a dependência do operário seria n

realidade notavelmente aumentada. Este é um dos motivos pelo

quais a social-democracia rejeitou esse tipo de "intervenção estatal"

na economia, ou essa forma de socialismo em geral. Tal socialism

nada mais seria do que uma comunidade de cartéis. 1 S

A racionalidade de que fala Weber desenvolve-se de uma forma

excepcionalmente intensa e generalizada na empresa, corporação e

conglomerado, de modo a produzir mercadoria e lucro. A produtivi­

dade crescente, cada vez mais intensificada pelas mais diversas tecno­

logias mecânicas, elétricas, eletrônicas, administrativas, psicológicas,

sociológicas, culturais e gerenciais, é um lema universal. Esse o signi­

ficado de processos produtivos como o manchester iano, taylorista

fordista, stakanovista e toyotista, além de muitos mais. São diferente

modalidades de aperfeiçoamento da organização social e técnica d

t rabalho e da produção, de modo a acelerar e a generalizar a raciona­

lidade produtiva, a multiplicação do lucro.

Aí está uma das ironias da história. O Estado Soviético, organiza

do em um país em que a revolução burguesa se havia realizado de for­

ma precária e incompleta, foi levado a realizar tarefas que a revoluçã

burguesa não havia cumprido, ou havia realizado apenas parcialmen

te. A necessidade de desenvolver e generalizar o padrão capitalista d

organização da economia, em um país parcialmente feudal, levou

governo soviético a transformar o Estado em um imenso, poderoso

1 5 Max Weber, "Conferência sobre o Socialismo", citado, p. 106. Con sultar também: Wolfgang J. Mommsen, The Political and Social Theo of Max Weber, Polity Press, Oxford, 1989, esp. cap. 4: "Capitalism and Socialism: Weber's Dialogue with Marx"; Wolfgang J. Mommsen, The Age of Bureaucracy, citado, especialmente cap. Ill: "The Alternative td Marx: Dynamic Capitalism instead of Bureaucratic Socialism".

1 6 2

A R A C I O N A L I Z A Ç Ã O DO M U N D O

singular capitalista coletivo. O lema em que se dizia que o soviete

mais a eletrificação produziriam o socialismo, ado tado com a nova

política econômica, em seguida à revolução, sintetizou mui to bem a

exigência de acelerar e generalizar um padrão de dinamização e orga­

nização das forças econômicas, de um sistema econômico nacional ,

integrado e fluente. Daí a admiração pelos procedimentos e tecnolo­

gias d o fordismo, ou americanismo, o que se desdobrou no s tachano-

vismo, um padrão avançado e dinâmico de racionalização do proces­

so de t rabalho e produção.

Se Alexej Stachanov, aquele homem a respeito do qual se afirma ter

extraído, na noite de 31 de agosto de 1935, na região do rio Donez,

102 toneladas de carvão num turno de cinco horas e 45 minutos, tor­

nou-se o modelo soviético e um mito do trabalho, ele personifica com

isso precisamente o princípio capitalista de um dispêndio abstrato de

força de trabalho, em cuja esfera de influência existe o trabalho como

atividade que, de forma tautológica, traz sua finalidade em si mesma.

Só que o caráter naturalista da "ideologia de toneladas" expressa

esse princípio em quantidades abstratas de matérias e produtos que

são privados de suas qualidades sensíveis. Portanto, é lúcida a obser­

vação de Thomas Mann, que em junho de 1919, ao refletir sobre a

composição de seu romance A montanha mágica, escreve: "Fiquei

pensando, a esse respeito, que a diferença ética entre o capitalismo e

o socialismo é insignificante, porque ambos consideram o trabalho o

princípio supremo, o absoluto ." 1 6

De fato, nas condições adversas sob as quais se organizou o Esta­

do soviético, o taylorismo e o fordismo acabaram por encontrar con­

dições particularmente propícias para implantação e desenvolvimen­

to. Tratava-se de criar, acelerar e generalizar processos produtivos na-

1 6 Robert Kurz, O colapso da modernização (Da Derrocada do Socialis­mo de Caserna à Crise da Economia Mundial), tradução de Karen Elsabe Barbosa, Editora Paz e Terra, São Paulo, 1992, pp. 23-24.

163

Page 83: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

cionais, de modo a desenvolver a economia soviética, isto é, central­

mente planificada, já que o que se havia herdado da época tzarista era

uma economia apenas parcialmente industrial izada, no sentido do

a p o i o em forças p rodu t ivas e relações de p r o d u ç ã o propr iamente

capitalistas. Sob a direção do apara to estatal, com base no planeja­

mento centralizado e no princípio da produtividade e quantidade, o

taylorismo e o fordismo marcaram bastante as relações de produção,

compreendendo a disciplina e a hierarquia na organização técnica e

social das relações de t rabalho.

Lênin reconhecia o papel do taylorismo no aumento da exploração,

mas acreditou que pela melhora da produtividade do trabalho sob o

socialismo os trabalhadores seriam liberados para assumir uma par­

te maior na gestão da sociedade e do Estado. Entretanto, a ausência

de uma avaliação crítica das relações sociais na fábrica acabou por

provocar conseqüências teóricas e práticas de vulto. Não resultou so­

mente na incapacidade para transformar os métodos de trabalho, no

que se refere às relações entre trabalho manual e mental. Também

alimentou inevitavelmente outras tendências, tais como o declínio do

comitê de fábrica, a erosão do controle operário e a sua substituição

pela direção unipessoal. (...) Trotsky expressou perfeitamente o pon­

to de vista tecnicista, quando disse: as formas soviéticas de proprie­

dade, na base das mais modernas formas de técnicas americanas

transplantadas para todas as formas da vida econômica, isto, de fato,

poderá ser o primeiro estágio do socialismo. 1 7

Em síntese, "as relações de t rabalho nas sociedades de t ipo sovié­

tico revelam amplo leque de similaridades com as do Ocidente: hierar­

quia, coerção pela produção por peça, subordinação dos produtores

d i r e t o s " . 1 8

1 7 Paul Thompson, The Nature of Work (An Introduction to Debates on the Labour Process), 2! edição, MacMillan, Londres, 1989, pp. 60-61. 1 8 Paul Thompson, The Nature ofWork, citado, p. 248.

164

A R A C I O N A L I Z A Ç Ã O DO M U N D O

1 9 Max Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo, tradução de M. Irene de Q. F. Szmrecsanyi e Tamás J. M. K. Szmrecsanyi, Livraria Pioneira Editora, São Paulo, 1967, p. 1.

165

C o m o se depreende das reflexões de Weber sobre o socialismo e

o capitalismo, a idéia de racionalidade pode ser tomada como matriz

de sua teoria da história. Trata-se de uma teoria da história universal,

ainda que construída principalmente a partir da singularidade, ou ex­

cepcionalidade, d o Ocidente. A despeito da perspectiva aberta pela

chamada civilização ocidental, é inegável que para Weber a idéia de

racionalização serve de base pa ia pensar o passado recente, remoto e

presente, em âmbi to local, nacional, regional e mundial . " N o estudo

de qualquer problema da História universal, um filho da moderna ci­

vilização européia sempre estará sujeito à indagação de qual a combi­

nação de fatores a que se pode atribuir o fato de na civilização ociden­

tal, e somente na civilização ocidental, haver aparecido fenômenos

culturais dotados (como queremos crer) de um desenvolvimento uni­

versal em seu valor e s ignif icado." 1 9

Está em curso o desencantamento do mundo . O que era um pro­

cesso circunscrito a alguns países da Europa, e t ransplantado para os

Estados Unidos, logo se revela mais ou menos generalizado e, às ve­

zes, avassalador, em escala mundial . Nesta altura da história, a metá­

fora iluminista aparece como realidade cotidiana e universal, de nor­

te a sul, d o ocidente ao oriente. À força de desenvolver-se por todos

os cantos e recantos da vida social, ao mesmo tempo que mutiplican-

do sua capacidade de influenciar, disciplinar, diversificar e potenciar

as ações e relações, bem como as instituições e organizações de todos

os t ipos e em todas as partes do mundo , o processo de racionalização

passa a submeter o indivíduo, singular e coletivamente, aos produtos

de sua criatividade. De produto , meio ou instrumento, a tecnologia

transforma-se em finalidade, objetivo por excelência, numa surpreen­

dente inversão de meios e fins. Essa é a metamorfose provocada pela

racionalização que configura um estágio avançado do desencanta­

mento do mundo , quando de repente o indivíduo e a coletividade se

vêem encerrados na gaiola de ferro que construíram, na qual n ã o dei-

Page 84: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

x a r a m nem porta nem janela, no empenho de levar a racionalização

ao ext remo da perfeição. Q u a n d o o ascetismo foi

transferido para a vida profissional, passando a influenciar a morali­

dade secular, fê-lo contribuindo poderosamente para a formação da

moderna ordem econômica e técnica ligada à produção em série atra­

vés da máquina, que atualmente determina de maneira violenta o es­

tilo de vida de todo indivíduo nascido sob esse sistema, e não apenas

daqueles diretamente atingidos pela aquisição econômica, e, quem

sabe, o determinará até que a última tonelada de combustível tiver

sido gasta. De acordo com a opinião de Baxter, preocupações pelos

bens materiais somente poderiam vestir os ombros do santo como um

tênue manto, do qual a toda hora se pudesse despir. O destino iria

fazer com que o manto se transformasse numa prisão de ferro. Desde

que o ascetismo começou a remodelar o mundo e a nele se desenvol­

ver, os bens materiais foram assumindo uma crescente e, finalmente,

uma inexorável força sobre os homens, como nunca antes na história.

Hoje em dia — ou definitivamente, quem sabe — seu espírito religio­

so safou-se da prisão. O capitalismo vencedor, apoiado numa base

mecânica, não carece mais de seu abrigo. (...) Ninguém sabe ainda a

quem caberá no futuro viver nessa prisão, ou se, no fim desse tremen­

do desenvolvimento, não surgirão profetas inteiramente novos, ou um

vigoroso renascimento de velhos pensamentos e idéias, ou ainda se

nenhuma dessas duas — a eventualidade de uma petrificação mecani­

zada caracterizada por esta convulsiva espécie de autojustificação. 2 0

A metáfora da gaiola de ferro torna-se realidade cotidiana, prosaica

e generalizada, à medida que se desenvolvem as tecnologias da produ­

ção e reprodução material e espiritual, envolvendo progressivamente j

todos os círculos da vida social e funcionando, cada vez mais, também

2 0 Max Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo, citado, pp. 130-131. Consultar também: Ralph Schroeder, Max Weber and the So-1 ciology of Culture, citado, especialmente o cap. 4: "The Iron Cage of Modern Rationalism".

166

A R A C I O N A L I Z A Ç Ã O DO M U N D O

2 1 Herbert Marcuse, "Some Social Implications of Modern Technology", Social Studies in Philosophy and Social Science, vol. IX, n°. 3, The Institute of Social Research, Nova York, 1941, pp. 414-439; citação das pp. 418-419. Consultar também: Norbert Wiener, Cibernética e sociedade (O Uso Humano de Seres Humanos), tradução de José Paulo Paes, Editora Cultrix, São Paulo, 1968; David S. Landes, The Unbound Prometheus (Technolo­gical Change and Industrial Development in Western Europe from 1750 to the Present), Cambridge University Press, Cambridge, 1987; Jacques Ellul, The Technological Society, Alfred A. Knopf, Nova York, 1967.

167

como técnicas de controle social. Todos os círculos da vida social, desde

a empresa à escola, do mercado ao Estado, da Igreja à família, são pro­

gressivamente organizados e dinamizados pelas tecnologias da raciona­

lização, compreendendo recursos das ciências naturais e sociais, da

cibernética à psicologia. À medida que corre o século XX, atravessando

guerras e revoluções, nacionalidades e nações, culturas e civilizações, o

capitalismo intensifica e generaliza o desencantamento do mundo.

O mundo tem sido racionalizado em tal escala, e esta racionalização

tornou-se uma força de tanto poder, que o indivíduo nada pode fazer

de melhor senão ajustar-se a isso sem reservas. (...) Os fatos que diri­

gem o pensamento e ação do homem não são os da natureza, que pre­

cisam ser aceitos a fim de que possam ser dominados, ou os da socie­

dade, que precisam ser mudados porque não mais correspondem às

necessidades e potencialidades humanas. Antes, são aqueles proces­

sos tecnificados, que se apresentam como a corporificação da racio­

nalidade e da eficácia. (...) Não há qualquer possibilidade individual

de escapar ao aparato que mecanizou e estandardizou o mundo. Tra­

ta-se de um aparato racional, combinando eficácia e conveniência,

economizando tempo e energia, removendo desperdícios, adaptando

todos os meios ao objeto, antecipando conseqüências, garantindo cal-

culabilidade e segurança. (...) Não há espaço para autonomia. A

racionalidade individualista desenvolveu-se em uma eficiente confor­

midade com o preestabelecido continuum de meios e fins. Os fins

absorvem os esforços liberadores do pensamento, e às várias funções

da razão convergem para a incondicional manutenção do apara to . 2 1

Page 85: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

A dialética da globalização

Page 86: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

Desde o princípio, o capitalismo revela-se c o m o um m o d o de produ­

ção internacional. Um processo de amplas proporções que, ul t rapas­

sando fronteiras geográficas, históricas, culturais e sociais, influencia

feudos e cidades, nações e nacionalidades, culturas e civilizações. Ao

longo de sua história, desde o século XVI, teve seus centros dinâmicos

e dominantes na Holanda , na Inglaterra, n a França, na Alemanha ,

nos Estados Unidos, no Japão e em outras nações, e em qualquer caso

sempre ul t rapassou fronteiras de todos os t ipos . Mais d o que isso,

sempre recobriu, deslocou, dissolveu, recriou ou inventou fronteiras.

Em sua marcha pela geografia e história, influenciou decisivamente os

desenhos dos mapas do mundo , com os desenvolvimentos da acumu­

lação originária, do mercantilismo, do colonialismo, do imperialismo,

do multinacionalismo, d o transnacionalismo e do globalismo. Ainda

que tenha sido sucessiva e simultaneamente nacional , regional e inter­

nacional, juntamente com sua vocação colonialista e imperialista, o

capi ta l ismo se to rna n o século X X um m o d o de p r o d u ç ã o n ã o só

internacional, mas propriamente global.

Ocorre que o capitalismo é um processo simultaneamente social,

econômico, político e cultural de amplas proporções , complexo e con­

tradi tório, mais ou menos inexorável, avassalador. Influencia todas as

171

Page 87: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

formas de organização d o t rabalho e vida social com as quais entra

em conta to . Ainda que se preservem economias de subsistência, arte­

sanatos , patrimonialismos, tribos, clãs, nacionalidades e nações, entre

out ras formas de organização da vida e do t rabalho, ainda assim o

processo capitalista influencia, tensiona, modifica, dissolve ou recria

todas e quaisquer formas com as quais entra em contato . Exerce in­

fluência moderada ou avassaladora, dependendo do Estado em que se

encontra , bem como da formação social do Estado com o qual se de­

fronta.

Acontece que o m o d o capitalista de produção funda-se no jogo

das forças produtivas liberadas com o declínio do feudalismo, a ace­

leração da acumulação originária, a reprodução ampliada do capital,

o desenvolvimento intensivo e extensivo da p rodução , da distribui­

ção , da troca e do consumo. As forças produtivas básicas, tais como o

capital , a tecnologia, a força de t rabalho, a divisão do t rabalho social,

o mercado e o planejamento, entre outras, entram em contínua e am­

pla conjugação, desenvolvendo-se de forma intensiva e extensiva, ul­

t r apassando fronteiras geográficas e históricas, regimes políticos e

modos de vida, culturas e civilizações. Na medida em que se torna do­

minante , o m o d o capitalista de produção lança luz e sombra, formas

e movimentos, cores e sons, sobre muito do que encontra pela frente.

O mundo continua povoado de múltiplas e distintas formas cul­

turais , l ínguas, religiões, tradições e visões d o m u n d o , ao lado das

mais diferentes formas de vida e de t rabalho. Os hindus cont inuam

imbuídos de hinduísmo e budismo; da mesma forma que os árabes de

islamismos; e os europeus de cristianismos. As tradições culturais, re­

ligiosas, lingüísticas e outras permanecem ou mesmo se reiteram e, às

vezes, se expandem. Mas tudo se modifica. N o curso da história da

globalização do capitalismo, muito do que se encontra pelo caminho

se altera, tensiona, modifica, anula, mutila, recria ou transfigura.

N o capitalismo, as forças produtivas, compreendidas sempre co­

mo forças sociais, encontram-se todo o tempo em interação dinâmica.

A competição entre os capitais, a busca de novos processos produti­

vos, a conquista de outros mercados e a procura de lucros provocam

172

A D I A L É T I C A DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

i Karl Marx, Wage-Labour and Capital, International Publishers, Nova York, 1933, pp. 33 e44 .

173

a dinamização das forças produtivas e da forma pela qual elas se com­

binam e aplicam nos mais diversos setores de produção, nas mais dife­

rentes nações e regiões do mundo . Estão em marcha os processos de

concentração do capital, o que implica a contínua reinversão dos ga­

nhos no mesmo ou em outros empreendimentos, e os de centralização

ilo capital, o que implica a contínua absorção de outros capitais, p ró­

ximos e distantes, pelo mais ativo, dinâmico ou inovador.

N o capitalismo,

da mesma forma que o método de produção e os meios de produção

são constantemente ampliados, revolucionados, assim também a di­

visão do trabalho necessariamente provoca maior divisão do traba­

lho, o emprego de maquinaria provoca maior emprego de maquina­

ria, o emprego de trabalho em ampla escala provoca o emprego de

trabalho em escala ainda mais ampla. Esta é a lei que continuamente

empurra a produção capitalista além dos seus velhos limites e compe­

le o capital a mobilizar sempre mais forças produtivas de trabalho,

pela mesma razão que ele já as mobilizou anteriormente. (...) Portan­

to, se compreendermos esta agitação febril como ela opera no merca­

do mundial como um todo, estaremos em condições de compreender

como o crescimento, a acumulação e a concentração do capital tra­

zem consigo uma cada vez maior renovação das velhas máquinas e

uma constante aplicação de novas máquinas: um processo que segue

ininterruptamente, com uma velocidade febril e em uma escala cada

vez mais gigantesca. 1

Esse é o contexto em que se formam e desenvolvem as atividades

econômicas lucrativas, organizadas em moldes competitivos e mono-

políticos, nacionais e internacionais. A medida que se liberam e agili­

zam as forças produtivas, juntamente com as relações de produção

Page 88: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

2 Karl Marx, Elementos fundamentales para la crítica de la economia po lítica (borrador) 1857-1858, 3 vols., tradução de José Arico, Migue Murmis e Pedro Scarón, Siglo Veintiuno Editores, México, 1971-1976 2° vol., pp. 30-31.

A D I A L É T I C A DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

A partir dessa perspectiva, o modo capitalista de produção pode

ser visto como um todo complexo, desigual, contraditório e dinâmi­

co, uma totalidade aberta ou propriamente histórica. Está sempre em

movimento, no sentido de que se transforma e expande, entra em cri­

se e retoma sua expansão, de maneira errática mas progressiva, com

freqüência inexorável.

Como totalidade histórica e teórica, o modo capitalista de produ­

ção pode ser sintetizado a partir dos seguintes elementos, visto de for­

ma encadeada, determinando-se reciprocamente:

O resultado a que chegamos não é que a produção, a distribuição, a

troca e o consumo sejam idênticos, mas que constituem as articula­

ções de uma totalidade, diferenciações dentro de uma unidade. A pro­

dução transcende além de si mesma na determinação da produção,

assim como mais além de todos os outros momentos. A partir dela, o

processo recomeça sempre novamente. Compreende-se que a troca e

o consumo não podem ser o transcendente. E o mesmo se pode dizer

da distribuição, enquanto distribuição dos produtos. Mas, como dis­

tribuição dos agentes da produção, constitui um momento da produ­

ção. Uma produção determinada, portanto, determina um consumo,

uma distribuição, uma troca determinada e relações recíprocas deter­

minadas destes diferentes momentos. Em verdade, também a produ­

ção, sob sua forma unilateral, está por sua vez determinada pelos

outros momentos, por exemplo, quando o mercado, ou seja, a esfera

da troca estende-se, a produção amplia seu âmbito e se subdivide

mais em profundidade. Quando se dão transformações da distribui­

ção, ocorrem mudanças na produção, como no caso, por exemplo, da

concentração do capital, ou de uma diferente distribuição da popula­

ção na cidade e no campo etc. Finalmente, as necessidades do consu­

mo determinam a produção. Entre os diferentes momentos, ocorre

uma ação recíproca. Isto ocorre sempre nos conjuntos orgânicos. 3

3 Karl Marx, Elementos fundamentales para la crítica de la economía política (borrador) 1857-1858, citado, 1° vol., p. 20.

175

demarcando as condições de liberdade e da igualdade dos p rop r i e t t

rios de capital e força de trabalho, organizados em forma contratual,

intensifica-se e generaliza-se a reprodução ampliada do capital . Ao

longo da história, desde o século XVI ao XX, e já prenunciando o sé­

culo XXI , multiplicam-se as empresas, corporações e conglomerado8|

compreendendo monopólios, trustes, cartéis, multinacionais e trans­

nac iona is . São empreendimentos que es tão sempre u l t rapassando

fronteiras geográficas e históricas, atravessando mares e oceanos, ins«f

talando-se em continentes, ilhas e arquipélagos. Assim, se é verdade

que o mercantilismo, o colonialismo e o imperialismo t inham raízei

no nacionalismo e ajudaram a difundir o modelo de Estado-nação pe-f

lo m u n d o afora, é também verdade que quebraram fronteiras de tri­

bos, clãs, povos, nacionalidades, culturas e civilizações. Nesse sentido

é que o capitalismo entra decisivamente no desenho e redesenho do

mapa do mundo , cr iando nações e colônias, metrópoles e impérios,

geoeconomias e geopolíticas, ocidentes e orientes.

Enquanto que o capital, por um lado, deve tender a destruir toda bar­

reira espacial oposta ao comércio, isto é, ao intercâmbio, e a conquis­

tar toda a Terra como um mercado, por outro lado tende a anular o

espaço por meio do tempo, isto é, a reduzir a um mínimo o tempo

tomado pelo movimento de um lugar a outro. Quanto mais desenvol­

vido o capital, quanto mais extenso é portanto o mercado em que cir­

cula, mercado que constitui a trajetória espacial de sua circulação,

tanto mais tende simultaneamente a estender o mercado e a uma

maior anulação do espaço através do tempo. (...) Aparece aqui a ten­

dência universal do capital, o que o diferencia de todas as formas an­

teriores de produção. 2

Page 89: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

É claro que toda essa dinâmica é comandada pelo capital, pelos

que detêm a propriedade e os movimentos do capital, em âmbito na­

cional e mundial . A forma pela qual o capital se articula e desdobra,

inclusive pelos vários setores da economia, confere a ele a preeminên­

cia sobre as outras forças produtivas. Ainda que o capital não possa

nunca atuar de maneira independente e, além disso, dependa em es­

sência da capacidade da força de trabalho produzir valor, é inegável

que pode determinar as direções e os ritmos da reprodução ampliada.

Para que se realize a reprodução ampliada do capital, compreenden­

do setores econômicos, economias nacionais, economias internacio­

nais e a economia mundial como um todo, o capital desenvolve-se,

desdobra-se e articula-se em distintas formas de organização do tra­

balho e da produção. Adquire configurações singulares, particulares e

gerais, reciprocamente referidas e determinadas, mas cada vez mais

sob a influência do capital em geral, simultaneamente abstrato e real.

N o âmbito da economia global, desenvolve-se ainda mais a forma ge­

ral do capital, uma espécie de síntese e matriz do singular e do parti­

cular, todos reciprocamente referidos, mas determinados pelo geral . 4

À medida que se desenvolve o capitalismo, pela dinamização e ge­

neralização das forças produtivas e das relações de produção, o capi­

tal em geral adquire maior relevância, influenciando cada vez mais as

condições e as possibilidades dos capitais singulares e particulares, em

âmbitos nacional e setorial, regional e internacional. Nesse sentido é

que a globalização do capitalismo pode ser vista como produto e con­

dição do capital em geral, no qual se realizam e multiplicam todas as

outras formas de capital. Nessa perspectiva, os ocupantes dos escritó­

rios centrais das corporações, por exemplo,

4 Karl Marx, Elementos fundamentales para la crítica de la economia política (borrador) 1857-1858, citado, 1° vol., pp. 409-410. Consultar também: Rudolf Hilferding, O capital financeiro, tradução de Reinaldo Mestrinel, Nova Cultural, São Paulo, 1985.

176

A D I A L É T I C A DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

5 Paul M. Sweezy, "The Triumph of Financial Capital", Monthly Re­view, vol. 46, n? 2, Nova York, 1994, pp. 1-11; citação da p. 10.

6 The Economist, Londres, 19 de setembro de 1992, p. 5. Citação do suplemento intitulado "Fear of Finance", pp. 1-50.

7 Karl Marx, Elementos fundamentales para la crítica de la econo­mia política (borrador) 1857-1858, citado, vol. 1, p. 27.

são eles próprios, em crescente medida, constrangidos e controlados

pelo capital financeiro operado por meio de redes globais do merca­

do financeiro. Em outras palavras, o poder real não está totalmente

nos escritórios das corporações, mas nos mercados financeiros. O

que é válido para os diretores de corporações é também válido para

os que controlam o poder político nacional: cada vez mais, eles tam­

bém são controlados pelos mercados financeiros, no que podem e no

que não podem fazer. 5

O que M a r x observava como algo incipiente em seu t empo , na

medida em que se desenvolve o capitalismo, revela-se crescentemente

efetivo e generalizado. O capital, sob formas novas e renovadas, de­

senvolveu-se e fortaleceu-se assinalando a sua lógica pelos qua t ro can­

tos d o mundo . N o fim do século XX adquire características propria­

mente globais. Nas últimas décadas desse século "dissolvem-se muitas

fronteiras entre os mercados financeiros nacionais, e emerge um ver­

dadeiro mercado global de capi ta is" . 6

Essa vocação do capital fica mais evidente se lembramos que o di­

namismo da reprodução ampliada do capital, ou seu caráter progres­

sivo, influencia contínua e reiteradamente as mais diferentes formas

de organização social e técnica do t rabalho e da produção.

Em todas as formas de sociedade existe uma determinada produção

que confere a todas as outras sua correspondente posição e influên­

cia; uma produção cujas relações conferem a todas as outras a posi­

ção e a influência. É uma iluminação geral, em que se banham todas

as cores, e que modifica as particularidades destas. 7

Page 90: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

8 A propósito dos processos de "concentração" e "centralização", con­sultar: Karl Marx, El capital, 3 tomos, tradução de Wenceslao Roces, Fondo de Cultura Económica, México, 1946-1947, especialmente o tomo I, caps. 23 ,24 e 25; Nikolai I. Bukharin, A economia mundial e o imperialismo, tradução de Raul de Carvalho, Abril Cultural, São Paulo, 1984, especialmente cap. X; Rosa Luxemburg, A acumulação do capital, tradução de Marijane Vieira Lisboa e Otto Erich Walter Maas, Nova Cultural, São Paulo, 1985, especialmente a Seção III; Ernest Mandel, O capitalismo tardio, tradução de Carlos Eduardo Silveira Matos, Régis de Castro Andrade e Dinah de Abreu Azevedo, Abril Cultural, São Paulo, 1982, especialmente os caps. 10 e 11.

A D I A L É T I C A DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

179

e recria, contínua e reiteradamente, as forças produtivas e as relações

de produção, seja pelo desenvolvimento extensivo como pelo intensi­

vo. As novas tecnologias, por exemplo, podem tornar as outras tecno­

logias obsoletas, da mesma forma que podem tornar obsoletas out ras

formas de mobilização da força de t rabalho. As várias forças produt i ­

vas, bem como as instituições e organizações que configuram as rela­

ções de produção, podem tornar-se dispensáveis, técnica e socialmen­

te obsoletas. A dinâmica da reprodução ampliada do capital, envol­

vendo concentração e centralização, produz e reproduz o desenvolvi­

mento desigual e combinado, em escala nacional, regional e mundial .

Na medida em que essa dinâmica se realiza, provoca necessariamente

a reiteração de algo estruturalmente semelhante à acumulação origi­

nária, como uma espécie de " revolução" que periodicamente t rans­

forma ou moderniza as mais diversas formas sociais e técnicas de

organização do t rabalho e da produção.

Vejamos, pois, o elemento nuclear da acumulação originária, um

processo que se desenvolve e reitera ao longo da história:

O divórcio entre o produto do trabalho e o próprio trabalho, entre as

condições objetivas de trabalho e a força subjetiva de trabalho é,

pois, como sabemos, a premissa real dada, o ponto de partida do

processo capitalista de produção. (...) O processo capitalista de pro­

dução reproduz, portanto, pelo seu próprio mecanismo, o divórcio

entre a força de trabalho e as condições de trabalho, reproduzindo e

eternizando desta maneira as condições de exploração do trabalha­

dor. Obriga constantemente o trabalhador a vender a sua força de

trabalho para viver e permite constantemente ao capitalista comprá-

la para enriquecer-se. (...) O regime do capital pressupõe o divórcio

entre os trabalhadores e a propriedade das condições de realização de

seu trabalho. Quando já se move por seus próprios pés, a produção

capitalista não só mantém esse divórcio como o reproduz e acentua

em uma escala cada vez maior. Portanto, o processo que engendra o

capitalismo somente pode ser um: o processo de dissociação entre o

trabalhador e a propriedade sobre as condições de trabalho, proces-

O predomínio do m o d o capitalista de produção, implicando seu

desenvolvimento intensivo e extensivo, de forma progressiva e fre­

qüentemente avassaladora, traduz-se nos processos de concentração e

centralização do capital. A dinâmica da reprodução ampliada realiza-

se pela contínua concentração, ou reinversão do excedente, isto é, da

mais-valia, e pela contínua centralização, ou absorção de outros capi­

tais pelo mais ativo, forte ou inovador. Esses são processos que tor­

nam o capitalismo uma realidade histórica e geográfica, atravessando

fronteiras, mares e oceanos. Ainda que desenvolvendo-se de maneira

desigual, combinada e contraditória, o capitalismo expande-se pelas

mais diferentes nações e nacionalidades, bem como culturas e civiliza­

ções, d inamizado pelos processos de concent ração e centralização,

concretizando sua globalização. O que já se anunciava nos primeiros

tempos do capitalismo revela-se claro no século XIX e mais ou menos

avassalador no X X . 8

N a medida em que se desenvolve, o capitalismo tanto revolucio­

na as outras formas de organização social e técnica do t rabalho e da

produção com as quais entra em contato , como transforma reiterada­

mente as formas de organização social e técnica d o t rabalho e da pro­

dução já existentes em moldes capitalistas. Isto significa que a acumu­

lação originária pode ser vista como um processo simultaneamente

genético e estrutural, inerente ao capitalismo, desenvolvendo-se todo

o tempo, em todas as partes. A dinâmica desse m o d o de produção cria

178

Page 91: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

9 Karl Marx, El capital, citado, tomo I, pp. 645-646,653 e 802. Nesse li­vro, consultar especialmente o cap. 24: "La Llamada Acumulación Ori­ginaria". Consultar também: Ernest Mandel, O capitalismo tardio, cita­do, especialmente o cap. 2: "A Estrutura do Mercado Mundial Capita­lista".

180

A D I A L É T I C A DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

1 0 Folker Frobel, Jürgen Heinrichs e Otto Kreye, The New International Division of Labour, tradução de Pete Burgess, Cambridge University Press, Cambridge, 1980; Lawrence C. McQuade (editor), East-West Trade, Westview Press, Boulder, Colorado, 1977; Vito Tanzi (editor), Transition to Market (Studies in Fiscal Reform), International Monetary Fund, Washington, 1993; David Wen-Wei Chang, China Under Deng Xiaoping, MacMillan, Londres, 1991; Robert Kurz, O colapso da modernização, tradução de Karen Elsabe Barbosa, Editora Paz e Terra, São Paulo, 1992;

181

so que, de um lado converte em capital os meios sociais de vida e de

produção, e por outro converte os produtores diretos em trabalhado­

res assalariados. A chamada acumulação originária não é, portanto,

mais do que o processo histórico de dissociação entre o produtor e os

meios de produção. 9

O que já se revelava uma característica fundamental da gênese do

capitalismo europeu no século XVI, revela-se uma característica tam­

bém fundamental dos desenvolvimentos do capitalismo global no sé­

culo X X . A despeito das muitas diversidades sociais, políticas e cultu­

rais, evidentes nos desenhos e movimentos das nações e nacionalida­

des, continua a realizar-se e generalizar-se reiteradamente o divórcio

entre a força de t rabalho, ou seja, o t rabalhador, e as condições de tra­

balho, ou seja, a propriedade dos meios de produção.

São vários e encadeados os processos que caracterizam a globali­

zação do capitalismo, desde a acumulação originária à concentração

e centralização do capital; do desenvolvimento quanti tat ivo e qualita­

tivo das forças produtivas ao desenvolvimento e à modernização das

relações de produção; da nova divisão internacional do t rabalho e da

produção à constituição do mercado mundial , influenciando ou arti­

culando mercados nacionais e regionais; das formas singulares e par­

ticulares do capital ao capital em geral.

N o fim do século XX, reabrem-se espaços e fronteiras, inespera­

dos ou recriados, disponíveis ou forçados. Juntamente com a desagre­

gação do bloco soviético, com a dissolução do mundo socialista, gene­

ralizam-se políticas de desestat ização, desregulação, pr iva t ização,

abertura de mercados, fluxo cada vez mais livre das forças produtivas,

modernização das normas jurídico-políticas e das instituições que or-

ganizam as relações de produção, tudo isso universalizando mais do

que nunca o m o d o capitalista de produção; e o capitalismo como pro­

cesso civilizatório.

A ironia da história é que a globalização do capitalismo t o m o u

um papel decisivo na desagregação do bloco soviético e na transição

de cada uma e de todas as nações socialistas de economias central­

mente planificadas para economias de mercado. N a s últimas décadas

do século X X , as corporações t ransnacionais , bem c o m o o F M I , o

BIRD e a União Européia, entre outras organizações multilaterais e

transnacionais, passam a desempenhar um papel crescente e decisivo

na institucionalização e dinamização da economia de mercado, volta­

do ao capitalismo, nas nações que haviam desenvolvido sistemas eco­

nômicos centralmente planificados; sistemas estes considerados bási­

cos para a construção da sociedade socialista. O desenvolvimento in­

tensivo e extensivo do capitalismo, conforme se havia verificado du­

rante a Guerra Fria, acelerou-se ainda mais quando esta terminou, de­

vido à Perestroika, à Glasnost, à queda d o M u r o de Berlim, à reunifi­

cação da Alemanha e à reativação dos movimentos das forças produ­

tivas e das trocas em âmbito mundial . Nessa ocasião, o Leste Euro­

peu, a Rússia, as repúblicas formadas com a desagregação da União

Soviética, a China, o Vietnã e outras nações com regimes socialistas

tornaram-se fronteiras de desenvolvimento intensivo e extensivo d o

capitalismo. Um capitalismo que já encontrou forças produtivas bas­

tante desenvolvidas, mas que precisou criar, desenvolver e consolidar

relações de produção conseqüentes com as exigências da dinâmica d o

mercado, da reprodução ampliada do capital em escala g loba l . 1 0

Page 92: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

Peter Galuszka, Patricia Kranz e Stanley Reed, "Russia's New Capita­lism", Business Week, 10 de outubro de 1994, pp. 36-40; Peter Engardio e Bruce Einhorn, "Vietnam: Asia's Next Tiger?", Business Week, 23 de maio de 1994, pp. 48-55; The Economist, Londres, 30 de outubro de 1993: "A Billion Consumers", suplemento sobre a Ásia, pp. 1-26. 1 1 Carta de Marx a Engels, datada de Londres, 8 de outubro de 1858, pu­blicada em: Marx e Engels, Selected Correspondence, Progress Pu­blishers, Moscou, 1965, pp. 110-111; citação da p. 111.

A D I A L É T I C A DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

1 2 Arthur MacEwan, "Notes on U.S. Foreign Investment and Latin Ame­rica", Monthly Review, vol. 45, n°. 8, Nova York, 1994, pp. 15-26; cita-c io das pp. 15-16.

183

A ironia está em que a globalização do capitalismo é um proces­

so cujos primórdios M a r x havia esboçado em várias passagens de seus

escritos sobre a Irlanda, Polônia, Rússia, China, índia, Estados Uni­

dos , México, Egito e outras nações, nacionalidades ou colônias e de­

pendências d o capitalismo europeu e norte-americano. Em suas análi­

ses sobre a dinâmica do capitalismo, sobre a reprodução ampliada do

capital , compreendendo a expansão e potenciação das forças produti­

vas, bem como a generalização das relações capitalistas de produção,

em todas as suas análises está a constatação, ou o suposto teórico, de

que a vocação d o capitalismo é mundial, com tendência a influenciar

mais o u menos decisivamente todas as formas de organização d o tra­

balho e vida social. "A tarefa específica da sociedade burguesa é o es­

tabelecimento do mercado mundial , ao menos em suas linhas gerais, e

da produção baseada neste mercado mundial . Como o mundo é re­

dondo , isto parece já ter sido completado pela colonização da Cali­

fórnia e Austrália e a abertura da China e J a p ã o . " 1 1

O caráter internacional do capitalismo, que já se prenunciava des­

de seus inícios, e revela-se evidente no século XIX, torna-se particular­

mente efetivo na segunda metade do século X X , quando adquire to­

das as características de um m o d o de produção global.

A grande mudança que define a era econômica do fim do século XX

é que o mundo tornou-se crescentemente capitalista, interligado em

um sistema de relações de comércio e investimentos. Virtualmente,

em todas as partes do mundo a produção é baseada no trabalho

assalariado e está organizada para o lucro. (...) Com o fim da União

182

Soviética, o abandono da pretensão de socialismo através do Leste

Europeu e o abandono de tudo menos a pretensão na China, não há

virtualmente nenhuma alternativa evidente ao capitalismo em cena.

N o que tradicionalmente chamamos Terceiro Mundo — os países

que estabeleceram as suas relações com o capitalismo pela domina­

ção colonial — as relações capitalistas de produção estão generaliza­

das. Enquanto as nações do Terceiro Mundo por longo tempo têm

estado enredadas em relações comerciais capitalistas, a emergência

das relações capitalistas de produção simplesmente tornaram-se ple­

namente dominantes nas décadas recentes. Por toda a economia

mundial, a produção doméstica, fora do nexo capitalista, está rapi­

damente dando lugar à atividade mercantil. (...) Portanto, o amplo

debate sobre a "globalização" da vida econômica significa principal­

mente a universalização do capitalismo. As relações econômicas no

comércio e investimento estão bem estabelecidas há pelo menos um

século, mas o que é novo na presente era é o grau em que esses laços

mercantis tornaram-se conexões no âmbito do sistema capitalista

mundial ( . . . ) . 1 2

A forma pela qual se dá a globalização do capitalismo reabre, re­

cria e supera a controvérsia "imperialismo ou interdependência". Pa­

ra que se esclareça, em suas linhas principais, é indispensável que a

controvérsia seja vista em perspectiva simultaneamente histórica e

teórica.

Vista em perspectiva histórica ampla, a globalização vem de lon­

ge e envolve diversas formas de organização e dinamização das forças

produtivas e das relações de produção: acumulação originária, mer­

cantilismo, colonialismo, imperialismo, interdependência, transnacio­

nal ismo e globalismo. São várias, diferentes e inter-relacionadas as

formas pelas quais o capitalismo se desenvolve, transforma e genera-

Page 93: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

liza, ao longo da história e da geografia. São configurações também

assinaladas pelas monarquias universais portuguesa e espanhola, bem

como pela preeminência da Holanda e Inglaterra, eventualmente de­

safiada pela França, Alemanha, Rússia e Japão , mas progressivamen­

te superadas pela preeminência dos Estados Unidos; o que se concre­

tiza de maneira crescente no século XX. Depois da Segunda Guerra

Mundia l , no curso da Guerra Fria, a hegemonia dos Estados Unidos é

disputada apenas pela União Soviética, já que esta liderava o mundo

socialista, com um modo de produção "não-capitalista", que envolvia

ou t ro padrão de organização e dinamização das forças produtivas e

relações de produção. Com o fim da Guerra Fria, as nações que com­

punham o ex-mundo socialista transformaram-se em fronteiras de ex­

pansão do capitalismo, sob a liderança dos Estados Unidos; uma lide­

rança que se divide progressivamente, de maneira mais ou menos di­

plomática, com o Japão e a Alemanha, bem como com as corporações

transnacionais.

N a época da globalização propr iamente dita do capital ismo, o

que se concretiza com o fim da Guerra Fria, ou a desagregação do blo­

co soviético, é a adoção da economia de mercado por praticamente

todas as nações do e x - m u n d o socialista; nessa época ocor re u m a

transformação quantitativa e qualitativa do capitalismo, como m o d o

de produção e processo civilizatório. Uma transformação quanti tat i­

va e qualitativa no sentido de que o capitalismo se torna concretamen­

te global, influenciando, recobrindo, recriando ou revolucionando to­

das as outras formas de organização social do t rabalho, da produção

e da vida. Isto não significa que tudo o mais se apaga ou desaparece,

mas que tudo o mais passa a ser influenciado, ou a deixar-se influen­

ciar, pelas instituições, padrões e valores sócio-culturais característi­

cos do capitalismo. Aos poucos, ou de maneira repentina, os princí­

pios de mercado, produtividade, lucratividade e consumismo passam

a influenciar as mentes e os corações de indivíduos, as coletividades e

os povos.

É claro que o globalismo não anula nem a interdependência nem

o imperial ismo. Essas são duas dimensões da real idade histórica e

184

A D I A L É T I C A DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

geográfica do capitalismo que se reproduzem e se recriam com maior

força ainda. Mais do que nunca, essas categorias são generalizadas,

no sentido de que abarcam indivíduos, coletividades e povos em todos

os continentes, ilhas e arquipélagos. São determinações que se repro­

duzem todo o tempo, rei terando, modificando ou mesmo aprofun­

dando as desigualdades sociais, econômicas , políticas e cu l tura is .

Pode-se mesmo dizer que a d inâmica da reprodução ampl iada d o

capital, em escala mundial, tem propiciado uma acentuada concentra­

ção do poder econômico, agravando a questão social em âmbi to tam­

bém mundial .

M a s a interdependência e o imperialismo deixaram de estar basi­

camente determinados pelo jogo das relações entre nações dominan­

tes , cen t ra i s , desenvolv idas ou indus t r i a l i zadas , p o r um l a d o , e

nações dependentes, periféricas, subdesenvolvidas ou agrár ias , por

outro . Ocorre que a industrialização espalhou-se pelo mundo , inclu­

sive provocando uma crescente dissolução do mundo agrário. A nova

divisão internacional do t rabalho, agilizada pelos meios de comuni­

cação e t ransporte , cada vez mais apoiados em técnicas eletrônicas,

t ransformou o mundo em uma fábrica e um shopping center globais.

São globalismos decisivamente baseados na organização e dinâmica

das corporações transnacionais, que desenvolvem suas geoeconomias

e suas geopolí t icas em moldes mais ou menos independentes dos

Estados nacionais . M a s , é claro que sempre levam em conta esses

Estados, tan to os dominantes como os dependentes, sempre em con­

formidade com as exigências estabelecidas em seus diagnóst icos e

prognós t icos sobre mercados reais e potenciais , bem c o m o sobre

investimentos próprios e associados. As transnacionais são corpora­

ções simultaneamente localizadas e desterritorializadas. Enraízam-se

nos mais diversos e distantes lugares, mas também se movem de um

a ou t ro todo o tempo, de acordo com a dinâmica das forças produt i­

vas, segundo as exigências da concentração e centralização do capi­

tal, concret izando a reprodução ampliada do capital em moldes cres­

centemente globais.

Esse é o contexto mais amplo, histórico e teórico, em que a inter-

185

Page 94: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

dependência e o imperialismo desenvolvem-se além dos próprios limi­

tes. N a mesma medida em que a globalização redefine e subordina os

Estados nacionais, inclusive os mais fortes, nessa mesma medida a in­

terdependência e o imperialismo são recriados e superados. De fato

cresce mais do que nunca a interdependência. As nações e as naciona­

lidades, assim como os indivíduos e as coletividades, tornam-se mais

interdependentes do que nunca. As coisas, as gentes e as idéias dester-

ritorializam-se, a despeito de parecerem enraizadas. N a mesma medi­

da em que se ampliam os mercados, agilizam-se as forças produtivas,

concretizadas na nova divisão internacional do t rabalho, na fábrica e

no shopping center globais. Sendo assim, o imperialismo também se

acentua, generaliza e muda de figura. Ainda que os Estados nacionais

mais fortes continuem a desempenhar tarefas imperialistas, formular

geoeconomias e geopolíticas, suas prerrogativas já não são mais aque­

las do imperialismo "clássico". Ao lado dos Estados nacionais, mes­

mo os mais fortes, já se colocam e impõem as corporações transnacio­

nais, que se t ransformaram inclusive em estruturas mundiais de po­

der. N a medida em que as corporações adquirem a força, a versatili­

dade e a generalidade que se concretizam com a globalização do capi­

talismo, nessa mesma medida reduzem-se ou subordinam-se as possi­

bilidades dos Estados nacionais, que eram as figuras por excelência do

imperialismo e da interdependência.

Esse dilema se torna um pouco mais claro quando reconhecemos

que as organizações multilaterais, tais como a O N U , o FMI e a OIT,

entre outras, situam-se cada vez mais na confluência dos Estados na­

cionais e corporações transnacionais. Ainda que instituídas em termos

multilaterais, o que significa a participação ativa dos Estados, essas

organizações contemplam crescentemente os interesses e os papéis das

corporações. As organizações multilaterais, enquanto estruturas mun­

diais de poder, desenvolvem suas atividades reconhecendo também as

transnacionais como estruturas mundiais de poder. Assim, a interde­

pendência e o imperialismo são recriados e superados pelo globalis­

mo. O globalismo progressivamente subsume boa parte das relações,

186

A D I A L É T I C A DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

1 3 David G. Becker, Jeff Frieden, Sayre P. Schatz e Richard L. Sklar, Pos-timperialism (International Capitalism and Development in the Late Twentieth Century), Lynne Rienner Publishers, Boulder & Londres, 1987; James Manor (editor), Rethinking Third World Politics, Long­man, Londres, 1991; V.I. Lenin, Imperialism, The Highest Stage of Ca­pitalism, International Publishers, Nova York, 1939.

187

processos e estruturas característicos da interdependência e do impe­

rialismo, assim como do nacionalismo e do regionalismo. 1 3

Nos termos em que se desenvolve o capitalismo no fim do século

XX, desde o término da Guerra Fria, logo se reabre a controvérsia

"mercado ou planejamento". Na medida em que os países que com­

punham o ex-mundo socialista transformam-se em "fronte i ras" de

expansão do capitalismo, reabre-se a controvérsia. Ela não é apenas

teórica e doutrinária, mas simultaneamente prática, como se pode ob ­

servar por seus desdobramentos efetivos em cada um e todos esses

países. Envolve governos dos países em que havia regimes socialistas,

ou nos quais o regime político se define como socialista, mas todos

empenhados na transição do planejamento estatal ao mercado aber to .

Envolve empresas estatais e setores sociais de diversos desses países,

ao mesmo tempo que em corporações transnacionais e organizações

multilaterais. Dentre estas destacam-se evidentemente o FMI, o BIRD

e a União Européia (UE), mas cabendo papel especial ao Banco de Re­

construção e Desenvolvimento da Europa do Leste (BERD) criado pe­

la Europa do Oeste. É claro que aí entram inclusive governos de paí­

ses capitalistas dominantes reunidos principalmente no Grupo dos 7 e

os think-tanks reanimados com as perspectivas de produção de diag­

nós t icos e p rognós t i cos . M u i t o s economis tas e ou t ro s c ient is tas

sociais, situados em diferentes perspectivas teóricas ou doutr inárias ,

participam mais ou menos ativamente das discussões.

A globalização do capitalismo reaviva a controvérsia mercado ou

planejamento no nível dos setores produtivos, das economias nacio­

nais, dos blocos regionais e, obviamente, da economia mundial como

um todo. É claro que essa é uma controvérsia mais ou menos perma-

Page 95: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

1 4 Albert Waterston, Development Planning (Lessons of Experience), The Johns Hopkins Press, Baltimore, 1969; editado para "The Economic De­velopment Institute: International Bank for Reconstruction and Develop­ment"; Edward S. Mason, Economic Planning in Underdeveloped Areas: Government and Business, Fordham University Press, Nova York, 1958; Everett E. Hagen (org.), Planeacion del desarrollo económico, tradução de Fernando Rosenzweig, Fondo de Cultura Económica, México, 1964; Andrew Shonfield, Modern Capitalism (The Changing Balance of Public and Private Power), Oxford University Press, Nova York, 1965.

188

A D I A L É T I C A DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

volver políticas mais ou menos drásticas e gerais de desestatização,

desregulação, privatização ou liberalização, de m o d o a intensificar a

formação de mercados abertos. Tratava-se de favorecer a dinamiza­

ção dos fatores da produção, criar as condições da competi t ividade,

multiplicar as iniciativas empresariais, oferecer quantidades e diversi­

dades crescentes de mercadorias, incentivar o consumo. T u d o isso

envolve necessariamente a adoção de novas e renovadas técnicas p ro ­

dutivas e de t rabalho, assim como de marketing, além da mudança de

mentalidade de empresários, técnicos, assalariados e consumidores .

Uma espécie de "revolução", envolvendo forças produtivas e relações

de produção, compreendendo padrões e valores sócio-culturais, p ro ­

movendo a substituição de um princípio organizatório básico e geral

como o do "planejamento" por ou t ro princípio organizatório básico

e geral como o do "mercado" . Uma parte importante da guerra ideo­

lógica desenvolvida com a Guerra Fria está sintetizada nessa cont ro­

vérsia, que no fim do século X X parece vencida pelo princípio d o

mercado.

Mas seria ilusório pensar que o princípio do planejamento está

simplesmente descartado, para todos os efeitos. A realidade é que está

mais vivo do que nunca, ainda que em out ro lugar. As corporações

transnacionais, precisamente as maiores beneficiárias da liberalização

e generalização dos mercados, são especialistas em planejamento. Ba­

seiam todas as suas atividades, desde os estudos sobre mercados à mo­

bilização de fatores produtivos, unidades produtivas, filiais, revende­

dores , terceir ização e t c , em estudos de viabi l idade, d iagnóst icos ,

prognósticos, planos, programas e projetos. T u d o se planeja com ri­

gor e sistemática nas corporações transnacionais , inclusive levando

em conta as diversidades e as potencialidades dos mercados, as pecu­

liaridades de regimes políticos nacionais, os padrões e valores sócio-

culturais de diferentes grupos sociais, classes sociais, coletividades,

povos, nações e nacionalidades. Aliás, cabe observar que as corpora­

ções mobilizam ativamente todos os recursos intelectuais, científicos e

técnicos necessários pa ra apr imorar seus planejamentos, l ançando

mão tanto dos conhecimentos acumulados pelas ciências sociais como

189

nente na história da economia política, ainda que seja reaberta de for­

m a mais clara em a lgumas conjunturas . Logo depois da Segunda

Guerra Mundia l , foi generalizada a adesão de governantes, empresá­

rios, políticos, tecnocratas, economistas e outros cientistas sociais ao

planejamento governamental , como técnica de reconstrução de eco­

nomias nacionais e de industrialização substitutiva de importações em

países d o então Terceiro M u n d o . O Plano Marshall faz parte dessa

história, assim como o FMI e o BIRD (também chamado Banco Inter­

nacional de Reconstrução e Desenvolvimento) criados no fim da déca­

da de 1940 e engajados ativamente em projetos de desenvolvimento

econômico planificado em países do então Terceiro M u n d o . Fortale­

cer as economias dos países dominantes e desenvolver as dos que

compunham o Terceiro M u n d o , principalmente a índia, a África do

Sul e o Brasil, entre outros estrategicamente situados no mundo capi­

talista, produzia vários resultados importantes: reduziam-se ou con­

trolavam-se tensões sociais potencialmente revolucionárias em países

"subdesenvolvidos" ; criavam-se ou desenvolviam-se mercados , em

sentido lato, convenientes para as economias dos países dominantes ,

o u "desenvolvidos"; e dinamizava-se o capitalismo como um todo ,

fortalecendo-o em face do mundo social ista. 1 4

A controvérsia mercado ou planejamento foi colocada de forma

part icularmente estridente com a desagregação do bloco soviético e

d o conjunto do mundo socialista, quando se colocaram em causa as

economias centralmente planejadas. As economias socialistas, apoia­

das no planejamento estatal sistemático e impositivo, passam a desen-

Page 96: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

pelas potencialidades das técnicas da eletrônica, sem esquecer os refi­

namentos do marketing.

É claro que o mercado permanece no espaço da competição, as­

sim como do monopól io , do oligopólio, do truste, do cartel, d o mo-

nopsônio e de outras manifestações de competição e poder no âmbito

da economia e da sociedade. São contínuas e reiteradas as disputas en­

tre corporações e seus produtos no mercado. Aí estão presentes, todo

o t empo, as pequenas e médias empresas, os bancos e seus financia­

mentos , as agências governamentais e suas diretrizes. Também o FMI,

o BIRD e a Organização Mundia l do Comércio (OMC) , herdeira do

Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT), são organizações mul­

tilaterais empenhadas na preservação, consolidação e generalização

dos mercados nacionais, regionais e mundiais, além de sua missão de

guardiães do capital em geral.

M a s o princípio do mercado não elimina o princípio do planeja­

mento . Ambos subsistem todo o tempo no âmbi to do capitalismo, em

seus níveis setoriais, nacionais, regionais e mundiais . Mesmo quando

os governos reduzem sua interferência no jogo das forças produtivas,

mesmo nesses casos subsistem diretrizes, estímulos, restrições e puni­

ções que orientam decisões e opções dos proprietários dos meios de

produção; o que sempre envolve a institucionalização e o controle das

condições sociais e jurídico-políticas da força de t rabalho.

A Nike está fabricando seus famosos e caros tênis atléticos na Indo­

nésia, onde suas operárias trabalham longas horas por um magro

salário mensal de 38 dólares. Wal-Mart, K-Mart e Sears, os grandes

símbolos norte-americanos da venda a varejo, têm as suas camisas

feitas em Bangladesh por mulheres islâmicas culturalmente passivas

trabalhando sessenta horas por semana e ganhando menos que trin­

ta dólares por m ê s . 1 5

1 5 Terry Collingsworth, F. William Gold e Pharis F. Harvey, "Labor and Free Trade: Time for a Global New Deal", Foreign Affaire, vol. 73, n°. 1, Nova York, 1994, pp. 8-13; citação da p. 8.

A D I A L É T I C A DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

É raro , ou apenas uma possibilidade ideal, que os governos e as

agências governamentais se ausentem totalmente do jogo das forças

produtivas e das relações de produção, garant indo oferta de força de

trabalho constante, barata e disciplinada, ou submissa.

Esse cenário em que passam a desenvolver as forças produtivas e

as relações de produção que se produzem e reproduzem, rei teram e

generalizam, como o m o d o capitalista de produção, em âmbi tos na­

cional, regional e mundial . A globalização do capitalismo contempla,

todo o tempo, o cont raponto mercado-planej amento . O pleno predo­

mínio do princípio do mercado seria o caos. Para evitar que o caos ir­

rompa de m o d o avassalador, governantes, proprietários dos meios de

produção, gerentes, técnicos, organizações multilaterais, ou seja, tec-

noest ruturas t ransnacionais ou propr iamente mundiais planejam a

expansão e a consolidação dos empreendimentos, a competição e a

política anti-cíclica, o certo e o incerto. E para isso tudo mobilizam

amplamente os tbink-tanks, como fermentos e agentes dinâmicos das

tecnoestruturas que pensam e implementam o jogo das forças sociais,

econômicas, políticas e culturais que operam no mercado e no plane­

jamento.

Conforme já dizia Tinbergen em 1968, o planejamento é uma téc­

nica de organização e dinamização das forças do mercado.

A planificação do desenvolvimento tornou-se uma atividade regular

para grande número de corporações, tanto quanto para entidades

governamentais de vários níveis, particularmente governos nacio­

nais. Chegou o tempo de formularem-se propostas de criação de uma

organização para todas estas atividades no mais alto nível, isto é, em

nível mundia l . 1 6

1 6 Jan Tinbergen, "Wanted: A World Development Plan", publicado por Richard N. Gardner e Max F. Millikan (editores), The Global Partnership (International Agencies and Economic Development), Frederick A. Praeger Publishers, Nova York, 1968, pp. 417-431; citação da p. 417.

191

Page 97: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

O planejamento é uma técnica versátil, p o d e n d o influenciar a

rac ional ização das forças produt ivas , inclusive funcionando como

técnica anticíclica. N a medida em que se t raduz em diretrizes, normas

de ação e instituições, envolvendo padrões e valores sócio-culturais e

jurídico-políticos, influencia as relações de produção também em ter­

mos de racionalização, sempre em conformidade com as exigências da

reprodução ampliada do capital.

Ocorre que se aplica às economias capitalistas nacionais, tanto

quan to à economia capitalista mundial , a noção de excedente econô­

mico potencial. Trata-se de um excedente realizável, desde que a con­

jugação das forças produtivas seja a mais eficaz, tendo-se em conta as

relações de produção prevalecentes, que também podem ser moderni­

zadas. Em uma interpretação diversa da proposta por Baran, mas ins­

pirada na dele, pode-se afirmar que na economia capitalista o plane­

j amen to pode ser mobi l izado c o m o uma técnica de real ização do

excedente econômico potencial , naturalmente dos quadros de uma

ordem social burguesa.

Excedente econômico potencial, isto é, a diferença entre o produto

social que poderia ser obtido em um dado meio natural e tecnológi­

co, com o auxílio dos recursos produtivos realmente disponíveis, e o

que se pode considerar como consumo indispensável. A transforma­

ção desse excedente potencial em efetivo pressupõe a reorganização

mais ou menos drástica da produção e distribuição do produto social

e implica profundas mudanças da estrutura da sociedade. 1 7

N a sociedade burguesa, da mesma forma, ocorrem reorganiza­

ções mais ou menos drásticas das forças produtivas e das relações de

produção, de maneira a racionalizar e dinamizar a produtividade e a

1 7 Paul A. Baran, A economia política do desenvolvimento econômico, tradução de S. Ferreira da Cunha, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1960, pp. 35-36; citação do cap. 2: "O Conceito de Excedente Econômico".

192

A D I A L É T I C A DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

193

lucratividade, sem que necessariamente também haja mudanças drás­

ticas na distribuição d o p rodu to social.

Em larga medida, as políticas de "modernização" e "racionaliza­

ç ã o " , assim como as de "desregulação", "desestatização" e "liberali­

zação" preconizadas pelo FMI e o BIRD, juntamente com as corpora­

ções transnacionais, em geral secundados po r ideólogos d o neolibera-

lismo, significam também a criação de condições para a realização do

excedente econômico potencial. Ainda que a expressão "planejamen­

t o " nem sempre esteja explícita, a realidade é que as políticas e dire­

trizes, ou diagnósticos e prognósticos, das organizações multilaterais

e das corporações destinam-se a orientar e disciplinar o uso de recur­

sos, a mobilização de fatores, a modernização de instituições, a racio­

nalização de mentalidades e práticas, tudo isso de maneira a aperfei­

çoar e dinamizar a produtividade e a lucratividade. Sob várias moda­

lidades, permeando inclusive o cont raponto mercado-planejamento,

estão em curso os processos de concentração e centralização d o capi­

tal , em escala nacional, regional e mundial .

Para M a r x , a técnica é uma poderosa força produt iva , concreti­

zando e dinamizando as potencialidades da ciência. A tecnologia, sob

todas as suas formas, desde a eletrônica à sociologia, p o d e ser uma

força decisiva na potenciação da força de t rabalho. É c laro que a tec­

nologia não adquire o caráter de força produtiva a n ã o ser a o lado d o

capital, da força de t rabalho , da divisão do t rabalho social, do mer­

cado e do planejamento, entre as principais forças produt ivas . M a s

pode ser fundamental , no sentido de potenciar as ou t ra s forças p ro­

dutivas, em especial a força de t rabalho como a força produt iva por

excelência.

Sob a influência da tecnologia, seja na forma de ferramenta ou

computador , seja na de taylorismo ou psicologia d o t r a b a l h o , a força

de t rabalho não só pode ser potenciada como pode intensificar a efe­

t ivação de t rabalho excedente e, simultaneamente, d iminui r a d o ne­

cessário. Se reconhecemos que o t rabalho necessário destina-se à re­

posição da força de t rabalho, é claro que a potenciação d a capacida­

de produtiva desta força aumenta o excedente que ela p o d e produzir ,

Page 98: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

em favor d o proprietár io dos meios de produção . Essa potenciação

efetiva-se com base em equipamentos, processos produtivos, formas

de organização e disciplina dos processos de t rabalho, quando se mo­

bilizam os recursos científicos e técnicos das ciências sociais, envol­

vendo desde a adminis t ração à psicologia, desde a ant ropologia à

política.

As metamorfoses da ciência em técnica e da técnica em força pro­

dutiva correspondem a um desenvolvimento fundamental do m o d o

capitalista de produção . São metamorfoses que multiplicam ampía­

la mente as condições e as possibilidades de reprodução ampliada do ca­

pital , intensificando o caráter "civilizatório" deste.

Se o processo produtivo torna-se esfera de aplicação da ciência, então

/ (...) a ciência torna-se um fator, uma função, do processo produtivo.

Cada descoberta converte-se na base de novos inventos, ou de um

novo aperfeiçoamento das formas de produção. O modo capitalista

de produção coloca desde o início as ciências naturais a serviço ime­

diato do processo de produção, ao passo que o desenvolvimento da

produção oferece, em troca, os instrumentos para a conquista teóri­

ca da natureza. A ciência alcança o reconhecimento de ser um meio

de produzir riqueza, um meio de enriquecimento. Desta maneira, os

processos produtivos apresentam-se pela primeira vez como proble­

mas práticos, que somente podem ser resolvidos cientificamente. A

experiência e a observação (e as necessidades do próprio processo

produtivo) alcançam agora, pela primeira vez, um nível que permite

e torna indispensável o emprego da ciência. (...) O desenvolvimento

das ciências naturais (que também formam a base de qualquer conhe­

cimento), como o de qualquer noção (que se refira ao processo pro­

dutivo), realizam-se, por sua vez, com base na produção capitalista

que, pela primeira vez, oferece em ampla medida às ciências os meios

materiais de pesquisa, observação e experimentação. Os homens de

ciência, na medida em que as ciências são utilizadas pelo capital

como meio de enriquecimento e, portanto, convertem-se elas mesmas

em meios de enriquecimento, inclusive para os homens que se ocu-

A D I A L É T I C A DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

pam do desenvolvimento da ciência, competem entre si nos intentos

de encontrar uma aplicação prática da ciência. 1 8

As metamorfoses da ciência em técnica e da técnica em força pro­

dutiva adquirem ritmos crescentes e surpreendentes no século XX. E

na segunda metade desse século, com os desenvolvimentos das ciên­

cias naturais e sociais, e suas transformações em técnicas, tudo isso,

agilizado e generalizado pelas conquistas da eletrônica e da informá­

tica, impõe outros surtos de potenciação da força produtiva do t raba­

lho, em todos os setores da economia, em âmbitos nacional, regional

e mundial .

Esta pode ser considerada uma das características mais notáveis

da globalização do capitalismo: as técnicas eletrônicas, compreenden­

d o a microeletrônica, a au tomação , a robótica e a informática, em

suas redes e vias de alcance global, intensificam e generalizam as capa­

cidades dos processos de t rabalho e produção. N o mesmo curso da

dispersão geográfica das fábricas, usinas, montadoras e zonas francas,

simultaneamente à nova divisão internacional do t rabalho e p rodu­

ç ã o , intensificam-se e general izam-se as tecnologias des t inadas a

potenciar a capacidade produtiva de todas as formas sociais de t raba­

lho e produção.

Note-se, no entanto , que as maravilhas da ciência e da técnica não

se t raduzem necessariamente na redução ou eliminação das desigual­

dades sociais entre grupos, classes, coletividades ou povos. Ao contrá­

r io, em geral preservam, recriam ou aprofundam as desigualdades.

T a n t o é assim que, nas últimas décadas do século XX, as ciências so­

ciais estão e laborando conceitos como os de "desemprego estrutural" ,

subclasse", e " Q u a r t o M u n d o " , ou recuperando noções como as de

"marg ina l idade" , "perifer ia" , "pobreza" , "misér ia" e "exc lusão" ,

1 8 Karl Marx, Progresso técnico y desarrollo capitalista, tradução de Raul Crisafio e Jorge Tula, Ediciones Pasado y Presente, México, 1982, pp. 191-193; citação do "Cuaderno XX. Continuación del Cuaderno XIX", escrito por Marx em 1863, pp. 172-193.

195 194

Page 99: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

para caracterizar as condições sociais de vida não só de grupos e clas­

ses, mas de amplas coletividades e, às vezes, povos inteiros. Aliás, é

t a m b é m m u i t o s in tomát ico que na época da global ização sur jam

m o v i m e n t o s sociais t r ansnac iona i s mobi l i zados pa ra preservar e

recriar patr imônios ecológicos ou ecossistemas, ameaçados pelo uso

predatório de recursos naturais ou do meio ambiente principalmente

por parte de corporações transnacionais. "A difusão das atividades

econômicas industriais e dos seus estilos de vida estão exaur indo a

riqueza ecológica básica do nosso planeta, mais rapidamente do que

pode ser restituída. Estão em perigo os recursos naturais dos quais

depende a crescente população m u n d i a l . " 1 9

Sim, as metamorfoses da ciência em técnica e da técnica em força

produtiva permitem intensificar a reprodução do capital e, simulta­

neamente, contribuir para a concentração e a centralização do capi­

tal. C o m o essas metamorfoses realizam-se sob o controle das corpo­

rações transnacionais, muitas vezes apoiadas e estimuladas por go­

vernos nacionais e organizações multilaterais, as maravilhas da ciên­

cia e da técnica não se t raduzem em diretrizes ou realizações destina­

das a reduzir ou eliminar desigualdades sociais, econômicas, políticas

e culturais.

Hoje em dia, tudo parece levar no seu seio a sua própria contradição.

Vemos que as máquinas, dotadas da propriedade maravilhosa de

reduzir e tornar mais frutífero o trabalho humano, provocam a fome

e o esgotamento do trabalhador. As fontes de riqueza recém-desco-

bertas se convertem, por artes de um estranho malefício, em fontes de

privações. Os triunfos da arte parecem adquiridos ao preço de quali­

dades morais. O domínio do homem sobre a natureza é cada vez

maior; mas, ao mesmo tempo, o homem se transforma em escravo de

outros homens ou da sua própria infâmia. Até a pura luz da ciência

19 The Group of Green Economists, Ecological Economics (A Practical Programme for Global Reform), Zed Books, Londres, 1992, p. 16.

196

A D I A L É T I C A DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

2 0 Karl Marx, "Discurso pronunciado na festa de aniversário do People's Paper", em K. Marx e F. Engels, Textos, 3 vols., Editora Alfa-ômega, São Paulo, 1977, vol. Ill, pp. 298-299. Consultar também: Ashis Nandy (editor), Science, Hegemony and Violence (A Requiem for Modernity), The United Nations University, Tóquio, 1990; Loren Baritz, The Ser­vants of Power (A History of the Use of Social Science in American In­dustry), John Wiley & Sons, Nova York, 1965.

1 9 7

parece só poder brilhar sobre o fundo tenebroso da ignorância. To­

dos os nossos inventos e progressos parecem dotar de vida intelectual

as forças materiais, enquanto reduzem a vida humana ao nível de

uma força bruta. Este antagonismo entre a indústria moderna e a

ciência, de um lado, e a miséria e a decadência, de outro, este antago­

nismo entre as forças produtivas e as relações sociais da nossa época

é um fato palpável, esmagador e incontrovertível. 2 0

São várias as formas de alienação que se desenvolvem e multipli­

cam com o capitalismo, visto como processo civilizatório. N a medida

em que transforma continuamente as condições sociais de vida nos

países em que ele já se encontra enraizado, e revoluciona as condições

sociais de vida em tribos, clãs, nacionalidades e nações nos quais não

havia chegado ou encontrava-se pouco desenvolvido, o m o d o capita­

lista de produção provoca a emergência de outras formas de sociabi­

lidade. Algumas formas de sociabilidade são realmente inovadoras ,

liberadoras ou deslumbrantes. Abrem novas possibilidades de eman­

cipação individual e coletiva, permit indo outras formas de cr iação

também individuais e coletivas. Florescem idéias filosóficas, científi­

cas e artísticas, ao mesmo tempo que se criam distintas condições so­

ciais de individualização, mobil idade social, organização de movi­

mentos sociais e correntes de opinião pública. Também os movimen­

tos artísticos podem dispor de outras condições de emergência, desen­

volvimento e generalização. A multiplicação dos meios de comunica­

ção e as possibilidades de circulação das coisas, gentes e idéias, em

âmbitos nacional, regional e mundial , abrem outros horizontes para

Page 100: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

2 1 David S. Landes, The Unbound Prometheus (Technological Change and Industrial Development in Western Europe from 1750 to the Present), Cambridge University Press, Cambridge, 1987; Jacob Schmookler, Invention and Economic Growth, Harvard University Press, Cambridge, Mass., 1966.

1 9 8

A D I A L É T I C A DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

marca mais ou menos profundamente as configurações e os movimen­

tos da sociedade, em níveis local, nacional, regional e mundial .

A burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente os ins­

trumentos de produção e, por conseguinte, as relações de produção,

portanto todo o conjunto das relações sociais. (...) O contínuo revo­

lucionar da produção, o abalo constante de todas as condições so­

ciais, a incerteza e a agitação eternas distinguem a época burguesa de

todas as precedentes. Todas as relações fixas e cristalizadas, com seu

séquito de crenças e opiniões tornadas veneráveis pelo tempo, são

dissolvidas, e as novas envelhecem antes mesmo de se consolidarem.

Tudo o que é sólido e estável se volatiliza, tudo o que é sagrado é pro­

fanado, e os homens são finalmente obrigados a encarar com sobrie­

dade e sem ilusões sua posição na vida, suas relações recíprocas. A

necessidade de mercados cada vez mais extensos para seus produtos

impele a burguesia para todo o globo terrestre. Ela deve estabelecer-

se em toda parte, instalar-se em toda parte, criar vínculos em toda

parte. Através da exploração do mercado mundial, a burguesia deu

um caráter cosmopolita à produção e ao consumo de todos os países.

Para grande pesar dos reacionários, retirou de baixo dos pés da in­

dústria o terreno nacional. As antigas indústrias nacionais foram des­

truídas e continuam a ser destruídas a cada dia. São suplantadas por

novas indústrias, cuja introdução se torna uma questão de vida ou

morte para todas as nações civilizadas; indústrias que não mais em­

pregam matérias-primas locais, mas matérias-primas provenientes

das mais remotas regiões, e cujos produtos são consumidos não so­

mente no próprio país, mas em todas as partes do mundo. Em lugar

das velhas necessidades, satisfeitas pela produção nacional, surgem

necessidades novas, que para serem satisfeitas exigem os produtos

das terras e dos climas mais distantes. Em lugar da antiga auto-sufi-

ciência e do antigo isolamento local e nacional, desenvolve-se em to­

das as direções um intercâmbio universal, uma universal interdepen­

dência das nações. E isso tanto na produção material quanto na inte­

lectual. Os produtos intelectuais de cada nação tornam-se patrimô-

indivíduos e coletividades. Paralelamente à emergência de formas de

soc iab i l idade i novadora s , l iberadoras ou mesmo des lumbran tes ,

desenvolvem-se também as que limitam, inibem ou propriamente alie­

nam. Elas podem ser totalmente novas, ou acrescentam-se às preexis­

tentes, podendo recriá-las ou agravá-las. Nestes casos, intensificam as

limitações ou mesmo as mutilações que atingem indivíduos e coletivi­

dades, ou mesmo nações e nacionalidades.

Sob vários aspectos, é possível dizer que o capitalismo desacor-

rentou Prometeu do castigo que lhe havia imposto Zeus , por ensinar

aos homens o segredo do fogo, para que pudessem emancipar-se das

forças da natureza. Mas também é possível dizer que Prometeu esca­

pou da tutela de Zeus e foi colocado sob a tutela do Capital. O misté­

rio da metáfora não foi desfeito, desenvolveu-se, foi refei to. 2 1

Para Marx , o capitalismo é um processo civilizatório, influencian­

do mais ou menos radicalmente todas as outras formas de organização

do trabalho e da vida com as quais entra em contato. Configura-se co­

mo um modo de produção que nasce, desenvolve-se e generaliza-se,

atravessando as crises, realizando-se por ciclos de curta, média e longa

durações, e transformando-se continuamente. Tanto cria e recria algu­

mas de suas determinações estruturais, como transforma-se crescente­

mente. Além das forças produtivas que mobiliza todo o tempo, tais

como o capital, a tecnologia, a força de trabalho, a divisão do trabalho

social, o mercado, o planejamento e a violência, entre outras, também

desenvolve e recria simultânea e necessariamente as relações de produ­

ção, compreendendo as instituições em geral, as instituições jurídico-

políticas em especial, envolvendo os padrões sócio-culturais, os valores

e os ideais; tudo isso compondo um todo em movimento e complexo,

integrado e contraditório. N o limite, o modo capitalista de produção

Page 101: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

nio comum. A unilateralidade e a estreiteza nacionais tornam-se cada

vez mais impossíveis, e das numerosas literaturas nacionais e locais

forma-se uma literatura mundial . 2 2

Para M a r x , o capitalismo é um processo civilizatório mundia l .

Ainda que desenvolva pólos mais ou menos poderosos, como na H o ­

landa, na Inglaterra, na França, na Alemanha, nos Estados Unidos, no

Japão e em outras nações, esses mesmos pólos formam-se e desenvol­

vem-se com base em um vasto sistema de relações com tribos, clãs, po ­

vos, nações e nacionalidades, próximos e remotos , em continentes,

ilhas e arquipélagos. Trata-se de um processo civilizatório que "invade

todo o g lobo" , envolve " o intercâmbio universal" e cria as bases de

"um novo m u n d o " , influenciando, destruindo ou recriando outras for­

mas sociais de trabalho e vida, outras formas culturais e civilizatórias.

O período burguês da história está chamado a assentar as bases ma­

teriais de um novo mundo: a desenvolver, de um lado, o intercâmbio

universal, baseado na dependência mútua do gênero humano, e os

meios para realizar esse intercâmbio; e, de outro, desenvolver as for­

ças produtivas do homem e transformar a produção material num

domínio científico sobre as forças da natureza. A indústria e o comér­

cio burgueses vão criando essas condições de um novo mundo do

mesmo modo que as revoluções geológicas criavam a superfície da

Ter ra . 2 3

N ã o se trata de pensar que a sociedade global já estava em M a r x .

Trata-se apenas de reconhecer que algumas das intuições e interpreta-

2 2 Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto do Partido Comunista, tradu­ção de Marco Aurélio Nogueira e Leandro Konder, Editora Vozes, Petrópolis, 1988, pp. 69-70; citação do cap. I: "Burgueses e Proletários". Cabe observar que a primeira edição desse texto data de 1848.

2 3 Karl Marx, "Futuros Resultados do Domínio Britânico na índia", publicado em: Karl Marx e Friedrich Engels, Textos, 3 vols., Edições Sociais, São Paulo, 1977, vol. III, pp. 292-297; citação da p. 297.

200

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

ções desenvolvidas em seus escritos contemplam as dimensões mun­

diais do capitalismo, como modo de produção e processo civilizatório.

N o pensamento de M a r x e de alguns de seus continuadores podem en­

contrar-se recursos metodológicos e teóricos fundamentais para a in­

teligência da globalização. Nessa perspectiva, a sociedade global pode

aparecer complexa e evidente, caótica e transparente; uma totalidade

problemática, contraditória, em movimento. É assim que a sociedade

global, vista em suas configurações e em seus movimentos, revela-se o

novo pa tamar da história. Este é o horizonte a partir do qual se pode

reler o passado, interpretar o presente e imaginar o futuro.

201

Page 102: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

CAPÍTULO 9 Modernidade-mundo

Page 103: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

A formação da sociedade global reabre a problemática da modernida­

de em suas implicações filosóficas, científicas e artísticas. N o âmbi to

da globalização de coisas, gentes e idéias, modificam-se os quadros so­

ciais e mentais de referência. Tudo que é evidentemente local, nacional

e regional revela-se também global. As relações, os processos e as es­

truturas característicos da globalização incutem em praticamente to­

das as realidades preexistentes novos significados, outras conotações.

N a medida em que se dá a globalização do capital ismo, c o m o

modo de produção e processo civilizatório, desenvolve-se simultanea­

mente a sociedade global, uma espécie de sociedade civil global em

que se cons t i t uem as condições e as poss ibi l idades de c o n t r a t o s

sociais, formas de cidadania e estruturas de poder de alcance global.

Nessa mesma medida, desenvolvem-se as relações e os processos ca­

racterísticos da globalização, formam-se as estruturas do poder eco­

nômico e político também característicos da globalização.

Evidentemente a global ização é problemát ica e con t rad i tó r ia ,

compreendendo integração e fragmentação, nacionalismo e regiona­

lismo, racismo e fundamentalismo, geoeconomia e geopolítica. Nesse

sentido é que as diversas teorias da globalização oferecem subsídios

para a compreensão de distintos aspectos da sociedade global em for-

205

Page 104: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

mação . São teorias que priorizam aspectos tais como os seguintes: |

interdependência das nações, a modernização do mundo , as econo-

mias-mundo, a internacionalização do capital, a aldeia global, a ra«]

cionalização do m u n d o e a dialética da globalização, entre outros.

Elas acentuam aspectos sociais, econômicos, políticos, culturais, geoe-

conômicos, geopolíticos e outros da sociedade global em formação.

Ainda que enfatizem os papéis do Estado-nação, a importância de Es­

tados hegemônicos e dependentes, as condições da integração regio­

nal e mundial , as tensões que produzem a fragmentação e a guerra,

ainda que enfatizem este ou aquele aspecto do nacionalismo e regio­

nalismo, ou racismo e fundamentalismo, todas oferecem alguma con­

tr ibuição para a inteligência das condições sob as quais se forma a

sociedade global.

Esse é o horizonte em que se reabre a problemática da moderni­

dade . C o m o a globalização abala mais ou menos profundamente os

parâmetros históricos e geográficos, ou as categorias de tempo e espa­

ço, que se haviam elaborado com base no Estado-nação, nas configu­

rações e movimentos da sociedade nacional, logo se reabre a proble­

mática da continuidade ou não-continuidade da modernidade; assim

como o debate modernidade ou pós-modernidade. Mui to do que tem

sido a controvérsia sobre "o pequeno relato e o grande re la to" , "o in­

dividualismo metodológico e o holismo metodológico" , ou "as inter­

pretações micro e macro" , entre outros dilemas, tem algo a ver com a

ruptura epistemológica provocada pela globalização, quando se aba­

lam os quadros sociais e mentais de referência com os quais muitos se

haviam habi tuado.

Aliás, é bastante provável que uma parte da produção e do deba­

te acerca da pós-modernidade emerja precisamente na época em que

se acentuam os sinais da globalização de coisas, gentes e idéias. Simul­

taneamente ao desenvolvimento das relações, processos e estruturas

que abalam os quadros de referência habituais, ocorre um surto de

amplas proporções sobre aspectos filosóficos, científicos e artísticos

da pós-modernidade. Muitos imaginam que está instalado o reino da

fragmentação, da descontinuidade, de desconstrução, da bricolagem,

M O D E R N I D A D E - M U N D O

i Jean Chesneaux, Modernité-monde, Éditions La Découverte, Paris, 1989, pp. 196,198 e 199.

207

do simulacro, da realidade virtual, da dissolução d o t empo e d o espa­

ço, do fim da geografia e d o fim da história. A drástica e ampla rup­

tura dos quadros sociais e mentais de referência logo provoca a o n d a

da pós-modernidade.

A verdade é que a formação da sociedade global, de par-em-par

com a global ização d o capi ta l i smo, compreend ido c o m o m o d o de

produção e processo civilizatório, logo reabre a problemática da m o -

dernidade-mundo.

N o final de contas, pois, é a sua globalidade simultaneamente estru­

tural e planetária que define a modernidade no fim do século XX

como um momento singular. (...) Esta, portanto, é a mutação funda­

mental realizada pela modernidade: com a mundialização da econo­

mia, o tecnocosmo, a internacionalização da vida social, cria-se um

sistema global sem equivalente na história da humanidade. (...) M o ­

mento histórico singular: a modernidade-mundo impôs também a

sua singularidade à reflexão histórica e ao saber histórico. 1

Boa parte das produções e controvérsias sobre a modernidade-na-

ção , assim como sobre a modernidade-mundo, coloca o t empo e o es­

paço como categorias essenciais; sempre presentes na filosofia, ciência

e a r te . A mode rn idade , e n q u a n t o m o d o de ser de coisas , gentes e

idéias, sempre envolve essas categorias. Elas permitem articular a his­

toricidade e a territorialidade, a biografia e a história, o território e o

planeta, a continuidade e a descontinuidade, a sincronia e a diacronia,

a multiplicidade dos espaços e a pluralidade dos tempos, a comunida­

de e a sociedade, a evolução e o progresso, a complementaridade e a

ant inomia, a reforma e a revolução, o norte e o sul, o leste e o oeste,

o centro e a periferia, o Ocidente e o Oriente, ou eu e o ou t ro , o local

e o global, o mágico e o fantástico.

Page 105: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

Sob muitos aspectos, o tempo e o espaço situam-se no centro da

problemática da modernidade.

Existe um tipo de experiência vital — experiência de tempo e espaço, de

si mesmo e dos outros, das possibilidades e perigos da vida — que é com­

partilhado por homens e mulheres em todo o mundo, hoje. Designarei

esse conjunto de experiências como "modernidade". Ser moderno é

encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria, cres­

cimento, autotransformação das coisas em redor — mas ao mesmo tem­

po ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que

somos. A experiência ambiental da modernidade anula todas as frontei­

ras geográficas e raciais, de classe e nacionalidade, de religião e ideologia:

nesse sentido, pode-se dizer que a modernidade une a espécie humana.

Porém, é uma unidade paradoxal, uma unidade de desunidade: ela des­

peja a todos num turbilhão de permanente desintegração e mudança, de

luta e contradição, de ambigüidade e angústia. Ser moderno é fazer par­

te de um universo no qual, como disse Marx, "tudo que é sólido desman­

cha no ar" . 2

Dentre as diversas características da modernidade-mundo, logo se

destacam as novas e surpreendentes formas do tempo e espaço ainda

pouco conhecidas. Além do localismo, nacionalismo e regionalismo,

em geral constituídos com base em noções de tempo e espaço acentua­

damente influenciadas pela historicidade e territorialidade do Estado-

2 Marshall Berman, Tudo que é sólido desmancha no ar (A Aventura da Modernidade), tradução de Carlos Felipe Moisés e Ana Maria L. Ioriatti, Companhia das Letras, São Paulo, 1986, p. 15. Consultar também: Renato Ortiz, Mundialização e cultura, Editora Brasiliense, São Paulo, 1994, especialmente o cap. III: "Cultura e Modernidade-Mundo"; David Harvey, A Condição pós-moderna, tradução de Adail Ubirajara Sobral e Maria Stella Gonçalves, Edições Loyola, São Paulo, 1992, especialmente a parte III: "A Experiência do Espaço e do Tempo"; Jurgen ijabermas, O discurso filosófico da modernidade, tradução de Ana Maria Bernardo, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1990.

2 0 8

M O D E R N I D A D E - M U N D O

nação, o globalismo abre outros horizontes de historicidade e terri to­

rialidade. Como a globalização envolve relações, processos e estrutu­

ras de dominação política e apropriação econômica de alcance global,

próprios das condições e horizontes que se abrem com a generalização

do capitalismo, é evidente que logo se instituem outras possibilidades

de realização e imaginação do tempo e espaço. O que já se prenuncia­

va nos primeiros tempos do desenvolvimento do capi tal ismo, revela-

se mu i to mais aber ta e general izadamente em fins d o século X X ,

influenciando decisivamente as configurações e os mov imen tos da

sociedade global.

Enquanto que o capital, por um lado, deve tender a destruir toda bar­

reira espacial oposta ao comércio, isto é, ao intercâmbio, e a conquis­

tar toda a Terra como um mercado, por outro lado tende a anular o

espaço por meio do tempo, isto é, a reduzir a um mínimo o tempo

tomado pelo movimento de um lugar a outro. Quanto mais desenvol­

vido o capital, quanto mais extenso é, portanto, o mercado em que

circula, mercado que constitui a trajetória especial de sua circulação,

tanto mais tende simultaneamente a estender o mercado e a uma

maior anulação do espaço através do tempo. (...) Aparece aqui a ten­

dência universal do capital, o que o diferencia de todas as formas

anteriores de produção. 3

Desde que se acelerou o processo de global ização d o m u n d o ,

modificaram-se as noções de espaço e tempo. A crescente agilização

das comunicações, mercados, fluxos de capitais e tecnologias, inter­

câmbios de idéias e imagens, modifica os parâmetros herdados sobre

a realidade social, o modo de ser das coisas, o andamento d o devir. As

fronteiras parecem dissolver-se. As nações integram-se e desintegram-

3 Karl Marx, Elementos fundamentales para la crítica de la economia política (borrador) 1857-1858, 3 vols., tradução de José Aricó, Miguel Murmis e Pedro Scarón, Siglo Veintiuno Editores, México, 1971-1976, vol. 2, pp. 30-31.

2 0 9

Page 106: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

se. Algumas transformações sociais, em escalas nacional e mundial,

fazem ressurgir fatos que pareciam esquecidos, anacrônicos. Simulta­

neamente, revelam-se outras realidades, abrem-se outros horizontes.

É como se a história e a geografia, que pareciam estabilizadas, voltas­

sem a mover-se espetacularmente, além das previsões e ilusões.

É nesse contexto, visto assim em escala global, que se revelam no­

vas formas sociais do espaço e tempo. São múltiplas, novas e recria­

das, as formas do espaço e tempo desvendadas pelos desdobramentos

da globalização: o local e o global, o micro e o macro, a homogenei­

dade e a diversidade, a primazia do presente e a recriação do passado,

a contemporaneidade e a não-contemporaneidade, o norte e o sul, o

Ocidente e o Oriente, o real e o virtual, a experiência e o simulacro, a]

desterritorialização e a miniaturização, a mensagem e o videoclipe, a

velocidade e o instante, o fugaz e o silêncio.

N o âmbito da sociedade global, as formas sociais do espaço e do

tempo modificam-se e multiplicam-se. Dado que a globalização arti­

cula, tensiona e dinamiza configurações sociais locais, nacionais, re­

gionais, internacionais e transnacionais, multiplicam-se as possibili­

dades do espaço e do tempo. Pluralizam-se e entrecruzam-se em mol­

des desconhecidos, ainda não codificados. Surpreendem pelas possibi­

lidades potenciais escondidas e pelas criações inesperadas. Deslocam

pontos e lugares, ritmos e andamentos, modos de ser e devir.

Todas as velocidades revelam -se não só ultrapassáveis, mas são

de fato ultrapassadas. O trem, automóvel, avião, telefone, telégrafo

tornam-se mais velozes, deixam de ser mecânicos, a vapor ou elétricos

e tornam-se eletrônicos. Correm atrás do computador , fax, telefax,

rede eletrônica, comunicação contínua on Une everywbere tbrough

tbe worldall time in English. A eletrônica e a informática tecem as re­

des invisíveis que a tam e desatam coisas, gentes, idéias, palavras, ges­

tos, sons e imagens, em todo o mundo . De repente a velocidade excep­

cional produz o instante desconhecido, algo momentâneo e fugaz, in­

serido no novo mapa do mundo e do movimento da história, anulan­

do e inaugurando fronteiras reais e invisíveis, imaginárias e virtuais.

Em qualquer momento, em qualquer lugar, em todo o mundo , a ele-

2 1 0

M O D E R N I D A D E MUNDO

trónica relaciona e prende, ata e desata pessoas, coisas, idéias, pala­

vras, gestos, sons e imagens. A velocidade dissolve-se no instante, a

demora apagada pelo fugaz.

Agora o planeta Terra pode ser concebido como plenamente esféri­

co, ou plenamente plano, dá na mesma. Os meios de comunicação, in­

formação, locomoção ou intercâmbio reduzem as distâncias, obliteram

as barreiras, equalizam os pontos dos territórios, harmonizam os mo­

mentos da velocidade, modificam os tempos da duração, dissolvem os

espaços e tempos conhecidos e codificados, inaugurando outros, desco­

nhecidos e inesperados. Assim se tem a impressão de que se dissolvem

fronteiras, montanhas, desertos, mares, oceanos, línguas, religiões, cul­

turas, civilizações. Cria-se a ilusão de que o mundo se tornou finalmen­

te esférico, ou plano. Dissolvem-se as realidades, diversidades e desi­

gualdades no mundo dos simulacros e virtualidades, a despeito de que

se reafirmam e desenvolvem as realidades, diversidades e desigualdades.

Mu i to s imaginam que começou a era da pós -modern idade . A

fragmentação do real disperso pelo espaço e despedaçado no tempo

desafia a razão e a imaginação geradas desde o iluminismo. Q u a n d o se

acelera o processo de globalização, dando a impressão de que a geo­

grafia e a história chegam ao fim, muitos pensam que entrou a pós-

modernidade, declinou a razão e soltou-se a imaginação. Troca-se a

experiência pela aparência, o real pelo virtual, o fato pelo simulacro, a

história pelo instante, o território pelo dígito, a palavra pela imagem.

T u d o se desterritorializa. Coisas, gentes e idéias, assim como pa­

lavras, gestos, sons e imagens, tudo se desloca pelo espaço, atravessa

a duração , revelando-se flutuante, itinerante, volante. Desenraízam-se

dos lugares, esquecem os pretéritos, presentificam-se nos quat ro can­

tos do mundo . A sociedade global transforma-se em um vasto merca­

do de coisas, gentes e idéias, bem como de realizações, possibilidades

e ilusões, compreendendo também homogeneidades e diversidades,

obsolescências e novidades.

Ao fim desta difícil mutação, o homem se converterá ao mesmo tempo

em portador de objetos nômades e nômade-objeto ele próprio. Seu corpo

2 1 1

Page 107: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

se cobrirá de próteses e logo ele por sua vez se converterá em prótese, até

vender-se e comprar-se como objeto. 4

O mundo transforma-se em território de todo o mundo. T u d o se

desterritorializa e reterritorializa. N ã o somente muda de lugar, desen-

raíza-se, circulando pelo espaço, atravessando montanhas e desertos,

mares e oceanos, línguas e religiões, culturas e civilizações. As frontei­

ras são abolidas ou tornam-se irrelevantes e inócuas, fragmentam-se e

mudam de figura, parecem mas não são. Os meios de comunicação,

informação, transporte e distribuição, assim como os de produção e

c o n s u m o , agil izam-se universa lmente . As descober tas científicas,

transformadas em tecnologias de produção e reprodução material e es­

piritual, espalham-se pelo mundo. A mídia impressa e eletrônica, aco­

pladas à indústria cultural, transforma o mundo em paraíso das ima­

gens, videoclipes, supermercados, shopping centers, Disneylândias.

Esse é o universo da fragmentação. Fragmentam-se o espaço e o

tempo, o pensado e o pensamento, a realidade e a virtualidade, o todo

e a parte . Dissolvem-se modos de ser sedimentados e formas de pen­

sar cristalizadas. As linguagens caminham para outras formas de ex­

pressar, narrar , soar, desenhar, ilustrar. A narração é atravessada pela

dispersão dos signos, significados e conotações. Inauguram-se novas

formas narrativas: montagem, colagem, bricolagem, videoclipe, afo­

rismo, pastiche, simulacro, virtualismo. O grande relato se revela in­

satisfatório, ultrapassado, insuficiente. Em lugar da grande narrat iva,

articulação abrangente ou histórica, coloca-se o método aforístico, a

colagem, bricolagem, montagem, videoclipe, pastiche, a pequena nar­

ração, a folclorização do singular, a ilusão da ident idade. 5

4 Jacques Attali, Milenio, tradução de R.M. Bassols, Seix Barral, Barcelona, 1991, p. 87.

5 Jean-François Lyotard, O pós-moderno, tradução de Ricardo Corrêa Barbosa, José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1986; Fredric Jameson, El posmodernismo o la lógica cultural dei capitalismo avanzado, tradução de José Luis Pardo Torio, Ediciones Paidos, Barcelona, 1991.

212

M O D E R N I D A D E M U N D O

Esse é o clima da pós-modernidade: a história substi tuída pelo

efêmero, pela imagem do instante, pelo lugar fugidio. T u d o se dissol­

ve no momen to presente, imediatamente superado pela ou t ra ima­

gem, colagem, bricolagem, montagem, mensagem. Assim se deteriora

o passado remoto e imediato. N ã o se interrompem as seqüências nem

as descontinuidades, apenas apagam-se d o horizonte, deixam de ser,

esgarçadas, anuladas. Privilegia-se o dado imediato, evidente, cotidia­

no, inesperado, prosaico, surpreendente, fugaz. A violência urbana e

a guerra, da mesma forma que o show da televisão, o futebol, o shop­

ping center, ou a Disneylândia são imagens espetaculares d o espetácu­

lo cotidiano sucedâneo da experiência da vida das tensões dos movi­

mentos da história.

N o âmbito da pós-modernidade, dissolvem-se os espaços e tem­

pos herdados do iluminismo, sedimentados na geografia e história, ar­

ticulados nas formas de pensamento, organizados nas práticas de gru­

pos e classes, part idos e movimentos, nações e nacionalidades, cultu­

ras e civilizações. Fragmentam-se as realidades, recorrências e desen­

contros, seqüências e descontinuidades; multiplicando-se os espaços e

os tempos imaginários, virtuais, simulacros.

Cada um inventa o espaço e o tempo que quer. Essa l iberdade

multiplica-se muitíssimo na segunda parte do século XX, no limiar do

século X X I . As conquis tas da ciência, t raduzidas em tecnologias ,

abrem muitas possibilidades práticas e imaginárias. Tan to assim que

alguns, os que dispõem de meios e informações, podem desprender-se

dos parâmetros sedimentados, das explicações acumuladas. Podem li­

dar com o espaço e o tempo em moldes desconhecidos, tendo a ilusão

de que os parâmetros podem ser modificados à vontade, imaginando

a pós-modernidade.

M a s as metamorfoses do espaço e do tempo não são inocentes.

N ã o ocorrem apenas como produtos da tecnologia, como conquistas

da ciência, já que com freqüência levam o contrabando da ideologia.

N ã o só podem sublimar a experiência como pasteurizar a realidade,

elegendo o simulacro como experiência de fato.

213

Page 108: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

Uma sociedade capitalista exige uma cultura baseada em imagens.

Necessita fornecer quantidades muito grandes de divertimentos a fim

de estimular o consumo e anestesiar os danos causados pelo fato de

pertencermos a determinada classe, raça ou sexo. E necessita igual­

mente reunir quantidades ilimitadas de informação, explorar os recur­

sos naturais de modo eficiente, aumentar a produtividade, manter a

ordem, fazer a guerra e proporcionar empregos aos burocratas. A du­

pla capacidade da câmara de tornar subjetiva e objetiva a realidade sa­

tisfaz essas necessidades de forma ideal, e reforça-as. A câmara define

a realidade de dois modos indispensáveis ao funcionamento de uma

sociedade industrial avançada: como seus óculos (para as massas) e

como objeto de vigilância (para os dirigentes). A produção de imagens

fornece também uma ideologia dominante. A transformação social é

substituída por uma transformação das imagens. A liberdade de con­

sumir uma pluralidade de imagens e bens equivale à própria liberda­

de. A contração da liberdade de opção política em liberdade de consu­

mo econômico exige a produção ilimitada e o consumo de imagens. 6

Esse é um processo que vem de longe, desde que a produção, cir­

culação, troca e consumo das mercadorias passaram a atender às ne­

cessidades reais e imaginárias de uns e outros, desde que uns e outros

p a s s a r a m a delei tar-se o u resignar-se às exigências e delícias das

necessidades reais e imaginárias t rabalhadas, criadas ou recriadas pela

publicidade universal. Nesse momento a experiência se empobrece e a

aparência enriquece.

Pobreza de experiência: não se deve imaginar que os homens aspirem

a novas experiências. Não, eles aspiram a libertar-se de toda expe­

riência, aspiram a um mundo em que possam ostentar tão pura e tão

claramente sua pobreza externa e interna, que algo de decente possa

resultar disso. (...) A natureza e a técnica, o primitivismo e o confor-

6 Susan Sontag, Ensaios sobre a fotografia, tradução de Joaquim Paiva, Editora Arbor, Rio de Janeiro, 1981, p. 171.

214

M O D E R N I D A D E - M U N D O

to se unificam completamente, e aos olhos das pessoas, fatigadas com

as complicações infinitas da vida diária e que vêem o objetivo da vida

apenas como o mais remoto ponto de fuga numa interminável pers­

pectiva de meios, surge uma existência que se basta a si mesma, em

cada episódio, do modo mais simples e mais cômodo, e na qual um

automóvel não pesa mais que um chapéu de palha, e uma fruta na

árvore se arredonda como gôndola de um balão. (...) Ficamos pobres.

Abandonamos uma depois da outra todas as peças do patrimônio

humano, tivemos que empenhá-las muitas vezes a um centésimo do

seu valor para recebermos em troca a moeda miúda do "atual" . 7

N o âmbi to de u m mesmo e vasto processo, ocorre a substituição

da experiência pela aparência, do fato pelo simulacro, do real pelo

virtual, da palavra pela imagem. É claro que todas essas instâncias

cont inuam válidas e presentes, mas assim revertidas, invertidas. A me­

dida que se acelera e generaliza o processo de racionalização das orga­

nizações e atividades, das relações e estruturas sociais, com base na

técnica, eletrônica, robótica, informática, telemática, a aparência, o

simulacro, o virtual e a imagem adquirem preeminência na vida social

e povoam o imaginário de todo o mundo . Esse é o ambiente da mídia

impressa e eletrônica, da indústria cultural, da cultura de massa, em

escalas local, nacional e global. Um ambiente em que cidadão, povo,

indivíduo, t rabalhador , negro, branco, árabe, europeu, asiático, lati­

no-americano, mulher, homem, adul to , jovem, criança, islâmico, bu­

dista, cristão, hindu e assim por diante aparecem como multidão.

As observações de Le Bon sobre a psicologia das multidões torna­

ram-se obsoletas, pois é possível apagar a individualidade de cada

um e uniformizar-lhe a racionalidade em sua própria casa. O manejo

7 Walter Benjamin, Magia e técnica, arte e política (Ensaios sobre Litera­tura e História da Cultura), tradução de Sérgio Paulo Rouanet, Editora Brasiliense, São Paulo, 1985, pp. 118-119; citação do ensaio intitulado "Experiência e Pobreza".

215

Page 109: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

teatral das massas ao estilo de Hitler tornou-se supérfluo: para trans­

formar o homem em ninguém (e numa criatura que se orgulha de ser

ninguém) já não é preciso afogá-lo na massa nem alistá-lo como

membro real de uma organização de massa. Nenhum método de des­

personalizar o homem, de privá-lo dos seus poderes humanos, é mais

eficaz do que o que parece preservar a liberdade da pessoa e os direi­

tos da individualidade. E quando o condicionamento é posto em prá­

tica separadamente para cada indivíduo, na solidão do seu lar, em

milhões de lares isolados, é incomparavelmente mais eficaz. 8

Nesse sentido é que a mídia se converte em uma espécie nova, sur­

preendente, insólita e eficaz de intelectual orgânico dos blocos de po ­

der que se articulam em escala global. O que já ocorre largamente em

âmbito nacional passa a ocorrer largamente em âmbito mundial . Da

mesma forma que a mídia se globaliza, junto com a economia e polí­

tica, a indústria cultural e os meios de comunicação, a eletrônica e a

informática, nessa mesma escala globalizam-se interesses e objetivos,

ideologias e visões do m u n d o daqueles que detêm meios polít icos,

econômicos, sociais e culturais de mando e desmando em escala glo­

bal. Tan to é assim que o planeta Terra pode parecer esférico ou pla­

no, indiferentemente.

Ocorre que o mundo não se conforma com a pós-modernidade

imaginária ou sonhada . Ao mesmo tempo que solta a imaginação,

articula-se mais ou menos r igorosamente segundo as exigências da

prática pragmática tecnocrática. N a mesma escala em que se solta a

8 Gunther Anders, "O Mundo Fantasmático da TV", Bernard Rosenberg e David Manning White (orgs.), Cultura de massa, tradução de Octavio Mendes Cajado, Editora Cultrix, São Paulo, 1973, pp. 415-425; citação da p. 417. Cabe-se lembrar aqui a frase de Baudelaire: "A suprema gló­ria de Napoleão III terá sido provar que qualquer pessoa pode governar uma grande nação assim que obtém o controle do telégrafo e da impren­sa nacional." Conforme David Harvey, Condição pós-moderna, tradu­ção de Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves, Edições Loyola, São Paulo, 1992, p. 215.

216

M O D E R N I D A D E - M U N D O

pós-modernidade no mundo , o mundo articula-se cada vez mais de

acordo com as exigências da razão instrumental.

Aos poucos, a razão instrumental articula os espaços e tempos ,

modos de produzir e consumir , ser e viver, pensar e imaginar . N o

mesmo ambiente em que se solta a pós-modernidade, solta-se a racio­

nalidade. Ordenam-se racionalmente o mercado, a produção e a re­

produção, da mesma forma que as condições de vida e as possibilida­

des da imaginação. As atividades das pessoas, dos grupos e das clas­

ses, da mesma maneira que a vida das nações e nacionalidades, das

empresas e igrejas, dos part idos e universidades, passam a organizar-

se segundo padrões universais de racionalidade, eficácia, produtivida­

de, lucratividade. 9

O tempo eletrônico tece cada vez mais a vida de todo o m u n d o .

Aceleram-se e diversificam-se as possibilidades dos diálogos e m o n ó ­

logos, comunicações e desentendimentos, simultaneamente aos inter­

câmbios e comércios, trocas e negócios. A razão instrumental torna-se

eletrônica, tecendo o mundo de m o d o sistemático, pragmático, tudo

sob medida, quantificado. O predomínio do princípio da quant idade

acelera-se por todos os níveis da vida social, generaliza-se por todo o

mundo . N a época da globalização do capitalismo, dos mercados, das

exigências dos negócios, das condições de produtividade e lucro, o

princípio da quantidade estende-se a todas as atividades, produções

culturais, modos de ser, visões do mundo .

Assim como o espaço, o tempo é uma mercadoria provida pelo com­

putador, um material para ser moldado tanto quanto possível aos fins

humanos. (...) Um relógio convencional produz somente uma série de

idênticos segundos, minutos e horas; um computador transforma

9 Max Horkheimer, Eclipse da razão, tradução de Sebastião Uchoa Lei­te, Editorial Labor do Brasil, Rio de Janeiro, 1976. Consultar também: Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, Dialética do esclarecimento, tradução de Guido Antonio de Almeida, Jorge Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1985.

217

Page 110: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

segundos, microssegundos ou não-segundos em informação. A enor­

me velocidade desta transformação põe a operação do computador

em um universo de tempo que está fora da experiência humana. (...)

O tempo eletrônico é o ponto mais avançado deste desenvolvimento

(do homem ocidental), a mais abstrata e matemática noção de tempo

jamais incorporada à máquina; leva a escala de tempo muito além do

limite inferior da percepção humana. Representa o triunfo final da

perspectiva européia ocidental, quando o próprio tempo se torna

uma mercadoria, um recurso para ser trabalhado tanto quanto um

engenheiro de estruturas trabalha o aço ou o a lumínio. 1 0

T o d o esse universo de coisas, gentes, idéias, realizações, possibili­

dades e ilusões articula-se no mercado global tecido principalmente

pelo idioma inglês. O m u n d o transformado em território de que todo

m u n d o fala, pensa e age principalmente por intermédio desse código.

Em geral, o inglês t raduz o pensamento e o pensado, a informação e a

decisão, a compra e a venda, a possibilidade e a intenção.

Uma análise global de expansão da língua inglesa aponta para sua

efetiva cristalização como segundo idioma — 8 5 % das ligações inter­

nacionais são conduzidas em inglês, 7 5 % da correspondência mun­

dial é em inglês e mais de 8 0 % dos livros científicos publicados são

em inglês. Os executivos japoneses conduzem suas negociações glo­

bais em inglês e contam com mil escolas só em Tóquio. N o Japão o

inglês é matéria obrigatória por seis anos. Em Hong Kong, nove de

cada dez alunos estudam inglês. Na China 250 milhões de pessoas

estudam inglês. Até mesmo na França, onde há pouco interesse por

idiomas estrangeiros, a École des Hautes Études Commerciales ago­

ra oferece seu clássico curso de gerenciamento comercial em inglês.

Na Europa, aliás, em recente pesquisa encomendada pela Comissão

do Mercado Comum Europeu, o inglês apareceu como o segundo

1 0 J. David Bolter, Turing's Man (Western Culture in the Computer Age), Penguin Books, Middlesex, Inglaterra, 1986, pp. 101,102-103 e 108.

218

M O D E R N I D A D E - M U N D O

11 Paulo Sanchez, "Executivos Adotam o Idioma Inglês", O Estado de S. Paulo, São Paulo, 23 de julho de 1993, p. 1, caderno "Empresas".

1 2 Pier Paolo Pasolini, Os jovens infelizes, organização de Michel Lahud, tradução de Maria Betânia Amoroso, Editora Brasiliense, São Paulo, 1990, pp. 45-46; citação de "Análise Lingüística de um Slogan".

2 1 9

idioma mais falado e ensinado, com 5 1 % contra 4 2 % do francês,

3 3 % do alemão, 2 1 % do italiano e 18% do espanhol . 1 1

O inglês pode ser o idioma da globalização. A maior par te dos

acontecimentos, relações, atividades e decisões expressa-se nesse idio­

ma, ou nele se traduz. Assim se articula a eletrônica, da mesma manei ­

ra que a mídia e o mercado, grande parte da ciência, tecnologia, filo­

sofia e arte. Na época da globalização, o inglês se universaliza, comu­

nicativo e pragmático, expressivo e informático.

Assim, a linguagem do mercado espalha-se pelo mundo acompa­

nhando o mercado. Torna-se presente em muitos lugares, invade qua­

se todos os círculos de relações sociais. O mesmo processo de mercan-

tilização universal universaliza determinado modo de falar, taquigra-

far, codificar, pensar. Cria-se uma espécie de língua franca universal:

econômica, racional e moderna, ou prática, pragmática e telemática.

O mesmo processo de globalização do capitalismo mundializa signos

e símbolos, logotipos e slogans, qualificativos e estigmas.

Existe apenas um caso de expressividade — mas de expressividade

aberrante — na linguagem puramente comunicativa da indústria: é o

caso do slogan. De fato, para impressionar e convencer, o slogan

deve ser expressivo. Mas sua expressividade é monstruosa porque se

torna imediatamente estereotipada e se fixa numa rigidez que é o

contrário da expressividade, que é eternamente mutável e se oferece

a uma interpretação infinita. A falsa expressividade do slogan é assim

o ponto extremo da nova língua técnica que substitui a língua huma­

nística. É o símbolo da vida lingüística do futuro, isto é, de um mun­

do inexpressivo, sem particularismos nem diversidade de culturas,

perfeitamente padronizado e aculturado. 1 2

Page 111: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

1 3 Jean Chesneaux, Modernité-monde, Éditions La Découverte, Paris, 1989, p. 196.

220

M O D E R N I D A D E - M U N D O

1 4 Anthony Giddens, As conseqüências da modernidade, tradução de Raul Fiker, Editora Unesp, São Paulo, 1991, pp. 69-70.

221

O mundo já está tecido por muitos tecidos, diferentes laços e laça­

das, visíveis e invisíveis, reais e imaginários. São redes eletrônicas, in­

formáticas, telemáticas, on Une alltime everywhere worldwide in En-

glish. São transnacionais conglomeradas, aliadas e estrategicamente

planejadas produzindo e reproduzindo as forças produtivas organiza­

das na nova divisão internacional da produção e trabalho flexível do

pós-fordismo global. São inúmeros supermercados, shopping centers,

Disneylândias, distribuídos no novo mapa do mundo , exibindo merca­

dorias globais destinadas às necessidades reais e imaginárias multipli­

cadas. O marketing global encarrega-se de anunciar e pronunciar tudo

que é "bom-melhor-ótimo-indispensável-maravilhoso-fantástico".

O mesmo cenário criado com a mundialização do capitalismo ins­

titui o m o d o se ser característico da modernidade-mundo; uma mo­

dernidade na qual predominam os princípios da mercantilização uni­

versal, da tecnificação das condições de vida e t rabalho e da quantifi­

cação generalizada em detrimento do princípio da qualidade.

N o final das contas, é a sua globalidade simultaneamente estrutural

e planetária que define a modernidade no fim do século XX como um

momento singular. Globalidade social de um capitalismo onipresen­

te e de um sistema social fundado na imbricação e interconexão de

múltiplos processos, estes também cada vez mais complexos.

Globalidade espacial do planeta tecido por redes, pelo mercado mun­

dial e pelo tecnocosmo. 1 3

O clima que está sendo criado com a globalização d o capitalismo,

visto como processo civilizatório, cria s imultaneamente o clima da

modernidade-mundo. São padrões e valores sócio-culturais, al tera­

ções nas formas de sociabilidade, desenraizamentos de coisas, gentes

e idéias, tudo isto constituindo algo, ou mui to , do estado de espírito

da modernidade-mundo.

A modernidade é inerentemente globalizante. (...) A globalização

pode assim ser definida como a intensificação das relações sociais em

escala mundial, que ligam localidades distantes de tal maneira que

acontecimentos locais são modelados por eventos ocorrendo a mui­

tas milhas de distância e vice-versa. Este é um processo dialético por­

que tais acontecimentos locais podem se deslocar numa direção

anversa às relações muito distanciadas que os modelam. A transfor­

mação local é tanto uma parte da globalização quanto a extensão

lateral das conexões sociais através do tempo e do espaço . 1 4

Mas esse não é um processo t ranqüilo. Desenvolve-se de m o d o

problemático. Ao mesmo tempo que impulsiona a homogeneização,

equalização ou integração, provoca fragmentações, rupturas , contra­

dições. Multiplicam-se desencontros de todos os t ipos, em âmbi tos

local, nacional e mundial , envolvendo relações, processos e estruturas

sociais, econômicos, políticos e culturais. As configurações e movi­

mentos da sociedade global descortinam outras possibilidades da geo­

grafia e história, novas formas de espaço e tempo, às vezes límpidos e

transparentes, outras vezes caleidoscópicos e labirínticos.

N a época da globalização, as coisas, gentes e idéias ent ram em

descompasso com os espaços e tempos instituídos pela eletrônica. O

andamento das relações, processos e estruturas, das vivências e exis­

tências, dos indivíduos e coletividades, das nações e nacionalidades,

das culturas e civilizações, ficou para t rás , ul t rapassado pelo anda­

mento simbolizado pela eletrônica, instituindo outros pontos e redes,

out ros r i tmos e velocidades. As fronteiras não são abolidas, dissol­

vem-se; as línguas continuam a existir, traduzidas em geral para o in­

glês; as moedas nacionais cont inuam a circular, sempre referidas a

uma moeda abstrata geral mundial; as cartografias são redesenhadas

pelo computador ; as histórias são recontadas desde os horizontes da

globalização; as experiências traduzem-se em virtualidades, simula­

cros; as palavras progressivamente recobertas pelas imagens.

Page 112: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

222

M O DE RN ID A D E - M U N D O

1« K.M. Panikkar, A dominação ocidental na Ásia, tradução de Nemésio Salles, 3! edição; Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1977; Joseph Ki-Zerbo, História da África negra, 2 vols., T. edição, Publicações Europa-América, Lisboa, s/d; J.H. Elliott, El Viejo Mundo y el Nuevo (1492-1650), tradução de Rafael Sánchez Mantero, Alianza Editorial, Madri, 1984; Jacques Lafaye, Los conquistadores, tradução de Elsa Cecilia Frost, 3'. edição, Siglo Veintiuno Editores, México, 1978.

223

E o império da não-contemporaneidade. O passado e o presente,

da mesma maneira que o espaço e o tempo, embaralham-se por todos

os cantos e recantos. A velocidade de algumas transformações é diver

sa das outras . Umas realidades modificam-se em dado ri tmo, ao pas­

so que outras em ritmo diferente, além das direções que podem ser di­

vergentes. São diversos, muito diversos, os ritmos sob os quais cami­

nham coisas, gentes e idéias, assim como realizações, possibilidades e

ilusões. Ampliam-se e generalizam-se os desencontros. Assim como

muitas coisas se equalizam, muitas coisas se desencontram. São pa­

drões e valores, modos de ser e agir, de pensar e imaginar, que simul­

taneamente combinam-se e tensionam-se. N o âmbito da globalização,

a eletrônica, informática e telecomunicação invadem as atividades e

as relações de todo o mundo . Modernizam-se antes procedimentos do

que temperamentos, antes modos de agir do que de pensar, antes for­

mas de imaginar do que de sentir.

Ocorrem defasagens, desníveis, fraturas, anacronismos, dissonân­

cias, assincronias, desencontros, tensões. O residual mescla-se com a

novidade, o pretérito com o predominante, o que era com o que não

é. Multiplicam-se as descontinuidades e as repetições, os desencontros

e as tensões. Tudo se estilhaça, despedaça. O espaço e o tempo diver­

sificam-se de modo surpreendente, multiplicando-se ao acaso, de mo­

do conjugado e disparatado.

Nesse sentido é que o século XX produz um manancial de obso­

lescência, simultaneamente às novidades, às inovações de todos os ti­

pos , "modern idades" e "pós-modernidades" . N o mesmo sentido é

que as rupturas que acompanham o surto da globalização em curso

no fim do século XX, quando se anuncia o século XXI, inauguram

obsolescências e novidades de cunho social, econômicas, políticas e

culturais, em âmbito individual e coletivo, nacional e mundial . As cri­

ses, guerras e revoluções não só expressam rupturas históricas como

revelam e aprofundam as t ramas da não-contemporaneidade. De um

momento para outro , grupos, classes, movimentos, part idos, corren­

tes de opinião pública, interpretações da realidade social, estilos de

pensamento, visões do mundo podem tornar-se anacrônicos, exót i -

cos, estranhos, inconvenientes, dispensáveis. Decreta-se o novo e o ve­

lho, o arcaico e o moderno , instituindo-se as tradições e obsolescên­

cias, novidades e inovações, modernidades e pós-modernidades. Ins­

tauram-se outras t ramas de não-contemporaneidade, além das que se

produzem e reproduzem cont ínua ou periodicamente com os movi­

mentos da história.

É no âmbito da ruptura histórica, com freqüência envolvendo cri­

se, guerra ou revolução, que se inaugura o monumento e a ruína, de­

marcando o presente privilegiado e o passado tolerado, recriado ou

simplesmente rejeitado. O s vários surtos de expansão d o capitalismo

no mundo podem ser vistos como arrancadas de criação de novidades

e obsolescências, modernidades e anacronismos, heróis e t ra idores ,

santos apóstatas, monumentos e ruínas. O mercantilismo, o colonia­

lismo e o imperialismo, que atravessam a geografia e a história desde

o Renascimento, a Reforma e a Contra-Reforma, ou os pr imórdios d o

capi ta l i smo, en tendido t a m b é m c o m o processo civil izatório, insti­

tuem muitas t ramas de não-contemporaneidade, produzindo ruínas

pelos qua t ro cantos do mundo ; ruínas não só no sentido literal, mas

também como metáforas e a legor ias . l s

É bem no seio da não-contemporaneidade que se revelam as ruí­

nas, como obras de arte originais, diferentes de suas formas pretéritas

e de suas áureas primordiais. São marcas de lugares e épocas que assi­

nalam as metamorfoses do espaço e do tempo, das configurações so­

ciais passadas, dos estilos de vida remotos, das visões do m u n d o esba­

tidas pela pátina dos tempos. Nas ruínas, a batalha dos tempos carre­

ga consigo a batalha entre à natureza e a sociedade, o telúrico e a cul­

tura . O mesmo espírito que conforma a natureza à imaginação logo

Page 113: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

assiste à revolta dessa mesma natureza, transfigurando a obra de ar te

primordial em obra de arte de outra época, com forma diferente e au­

ra surpreendente. A ruína não é um fragmento, algo muti lado, destro­

çado , só parecendo assim quando vista na ótica do passado. Vista na

ótica d o presente, ela é original, incomparável, surpreendente, preci­

samente porque é um produto da imaginação pretérita transfigurado

pela pát ina dos tempos, recriado pelo olhar presente.

A ruína aparece como a vingança da natureza pela violência que lhe

fez o espírito ao conformá-la à sua própria imagem. O processo his­

tórico da humanidade como um todo consiste em uma gradual apro­

priação da natureza pelo espírito, a qual encontra-se fora dele, mas

também de certa maneira dentro dele. (...) O encanto da ruína con­

siste em que uma obra humana é percebida, em definitivo, como se

fosse um produto da natureza. As mesmas forças, que pela erosão,

desagregação, submersão e expansão da vegetação deram às monta­

nhas o seu aspecto, demonstram também aqui a sua eficácia nos

muros. (...) O encanto fantástico e supra-sensível da pátina fez-me

basear na misteriosa harmonia pela qual o objeto se embeleza, devi­

do a um processo químico-mecánico, e o projeto deliberado do ho­

mem converte-se de modo não-deliberado e imprevisível em algo no­

vo, com freqüência mais belo, constituindo uma nova unidade. 1 6

Sob vários aspectos, as t ramas da não-contemporaneidade permi­

tem desvendar formas insuspeitadas do tempo escondidas na pát ina

da história. A não-contemporaneidade pode ser um momento excep­

cionalmente heurístico, quando se trata de surpreender as formas so-

1 6 Georg Simmel, Sobre la aventura (Ensayos Filosóficos), tradução de Gustau Muñoz e Salvador Mas, Ediciones Península, Barcelona, 1988, pp. 117,119 e 120; citações de "Las Ruinas". Consultar também: Cario Carena, "Ruína/Restauro", Enciclopédia Einaudi, vol. 1, "Memória-História", Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Porto, 1985, pp. 107-129; Ian Knizek, "El Extraño Encanto de las Ruinas", Plural, n°. 186, México, 1987, pp. 31-38.

224

M O D E R N I D A D E - M U N D O

ciais do tempo, as configurações e os movimentos da sociedade. N a

época da globalização, ela se revela novamente emblemática, desa­

fiando ciência, filosofia e arte.

Esse é o ambiente em que germinam nostalgias e utopias, umas

pretéritas e outras futuras. Diante do novo, inesperado e surpreenden­

te surto de globalização, quando as nações, nacionalidades, culturas e

civilizações são desafiadas, mesclam-se, embaralham-se, reafirmam-se

e modificam-se modos de ser, pensar, agir, sentir, fabular. São muitos

os que ficam com saudade do passado, ou do futuro. Às vezes, apenas

negam o presente. M a s outras vezes podem utilizar a nostalgia ou a

utopia para refletir melhor sobre o presente. Em todos os casos, elas

podem ser vistas como sinais de configurações atravessadas pela não-

con temporane idade . Desvendam dimensões heurísticas escondidas

nos desencontros de espaços e tempos gerados pela g loba l ização . 1 7

Note-se que o tema da não-contemporaneidade reaparece de m o ­

do particularmente acentuado e generalizado na época da globaliza­

ção. Q u a n d o se dá um novo surto de expansão do capitalismo, em es­

cala mundial , quando o capital reaparece como agente "civilizador",

todas as outras formas sociais de organização da vida e t rabalho são

desafiadas, levadas a subordinar-se formal ou realmente, em certos

casos marginalizar-se. N a medida em que o capitalismo é um proces­

so civilizatório de ampla envergadura, combatividade e agressividade,

logo se criam e recriam configurações sócio-culturais atravessadas de

não-contemporaneidade. São aglutinações, integrações e convergên­

cias, simultaneamente a desencontros, excludências e antagonismos,

revelando-se em escalas local, nacional e mundial . Um fenômeno que

está sempre presente na realidade social e que tem sempre desafiado o

pensamento científico, filosófico e artístico reaparece muito forte nes-

»7 Roland Robertson, Globalization (Social Theory and Global Culture), Sage Publications, Londres, 1992, especialmente o cap. 10: "Globaliza­tion and the Nostalgic Paradigm"; Fredric Jameson, El posmodernismo o la lógica cultural del capitalismo avanzado, citado, especialmente o cap. II: "La Posmodernidad y el Pasado".

Page 114: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

ta época em que se dá um novo surto de globalização, na esteira do

desenvolvimento intensivo e extensivo do capitalismo em escala mun­

dial. Mais uma vez, recoloca-se a problemática do desenvolvimento

desigual, contraditório e combinado, atravessando a geografia e a his­

tória, desafiando a teoria e a prática nos horizontes da globalização.

" N e m todos estão presentes no tempo presente. Estão apenas exte­

r io rmente , pois que podemos vê-los hoje. M a s não é por isso que

vivem no mesmo tempo que os outros. Ao contrár io, carregam consi­

go um passado que se inf i l t ra ." 1 8

Vista assim, no contraponto contemporaneidade-não-contempo-

rane idade , a história se revela plena de possibil idades e surpresas.

Além das regularidades e recorrências, das descontinuidades e ruptu­

ras, contam-se as reorientações e retrocessos. N o âmbito da dinâmica

da vida social, do movimento das forças sociais, compreendendo tam­

bém suas dimensões econômicas, políticas e culturais, o tempo pode

revelar-se múlt iplo e cont radi tór io , progressivo e regressivo, inter­

rompido e vazio. A ilusão do progresso, da evolução ou moderniza­

ção tem sido atravessada por fraturas e reorientações, re tomadas e

regressões, estabilidades e atonias. Há conjunturas em que o jogo das

forças sociais pode provocar tanto a diversificação como a aceleração,

tan to o declínio como a dissolução. Esse é o contexto em que o con­

t raponto contemporaneidade-não-contemporaneidade reaberto pela

globalização revela-se particularmente heurístico, desafiando as ciên­

cias sociais, a filosofia e as artes. Permite repensar as formas sociais

do tempo, descobrir algumas de suas formas insuspeitadas, inclusive

sublimadas, como as que se escondem na nostalgia e na utopia.

1 8 Ernst Bloch, Héritage de ce temps, trad. de Jean Lacoste, Payot, Paris, 1978, p. 95. Citação extraída da segunda parte, intitulada "Non-con-temporanéité et enivrement", pp. 37-187. Ainda sobre o problema da não-contemporaneidade: Eric Hobsbawm e Terence Ranger, A invenção das tradições, trad. de Celina Cardim Cavalcante, Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1984; Arno J. Mayer, A força da tradição (A Persistência do Antigo Regime), trad. de Denise Bottmann, Companhia das Letras, São Paulo, 1987; Paul Ricoeur (org.), As culturas e o tempo, Editora Vozes, Petrópolis, 1975.

226

M O D E R N I D A D E - M U N D O

1 9 Jorge Luis Borges, Historia de la eternidad, Alianza Editorial, Madri, 1971, p. 24. Richard O'Brien, "La Fin de la Géographie?", publicado por Marie-Françoise Durand, Jacques Lévy e Denis Retaillé, Le monde: espaces et systèmes, Presses de la Fondation Nationale des Sciences Politiques & Dalloz, Paris, 1992, pp. 169 e 173. Francis Fukuyama, O fim da Historia e o último homem, tradução de Aulyde Soares Rodri­gues, Editora Rocco, Rio de Janeiro, 1992. Perry Anderson, O fim da Historia (De Hegel a Fukuyama), tradução de Alvaro Cabral, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1992.

227

N e m chegou o fim da história nem chegou o fim da geografia. É

apenas ilusória a impressão de que chegou o reino da eternidade. Tan­

to é assim, que o planeta Terra não alcançou ainda uma forma acaba­

da, podendo parecer plenamente esférico ou plenamente p lano. Mui ­

tos podem agir, pensar e sentir conforme sua imaginação. M a s esse

mesmo planeta continua atravessado por montanhas e desertos, ma­

res e oceanos, ilhas e continentes, nações e nacionalidades, línguas e

religiões, culturas e civilizações. Apenas o mundo fragmentou-se ou­

tra vez, num momento , de repente. Os que sonham com a eternidade

escondida n o fim da história e da geografia esquecem que ela se dis­

persa pelo espaço e despedaça no t e m p o . 1 9

O s horizontes abertos pela globalização iluminam o presente e re­

criam o passado. Grande parte do passado conhecido e desconhecido

é recriada pelo presente. Uma ruptura histórica excepcional, como a

globalização em curso no limiar do século XXI, institui todo um novo

parâmetro para a inteligência e a invenção do passado. É como se o

presente fosse longe, lá longe, em busca de suas origens, raízes. Ao

mesmo tempo que se nega ou recria o passado reconhecido, busca-se

o primordial escondido. Um passado que pode surgir como história e

memória, identidade e pluralidade, simbolizado em heróis e santos,

façanhas e glórias, vitórias e derrotas, monumentos e ruínas. São me­

táforas dispersas pelo espaço, despedaçadas no tempo.

As marcas do espaço e tempo podem ser metáforas da mundiali-

zação, ou signos da universalidade descortinada desde os horizontes

da globalização: a queda da Bastilha e a queda do M u r o de Berlim, a

Page 115: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

2 2 8

M O D E R N I D A D E - M U N D O

indiferença: não se t rata de chegar primeiro a um limite preesta­

belecido; ao contrário, a economia do tempo é uma coisa boa, por­

que quanto mais tempo economizamos, mais tempo poderemos per­

d e r a

A despeito das diversidades e dos desencontros das formas sociais

do tempo, das multiplicidades dos tempos, todos estão relacionados à

vida social, às at ividades dos indivíduos e coletividades, aos movi­

mentos da história. Todos se consti tuem e manifestam no âmbito da

fábrica da sociedade, d o t rabalho social. Apresentam-se como condi­

ção e p roduto da vida social, compreendendo a comunidade e socie­

dade, t r ibo e nação , sociedade nacional e sociedade global. Sabendo

ou não sabendo, podendo ou não organizá-los, tendo que administrá-

los em condições adversas ou precisando submeter-se a suas determi­

nações, a realidade é que as diversas e múltiplas formas do tempo p ro -

duzem-se c o m o condição e resul tado d o t r aba lho social, d o m o d o

pelo qual opera a fábrica da sociedade global.

M a s cabe reconhecer que aqueles que detêm os meios de mando e

comando , ou dominação e apropr iação, muitas vezes podem também

instituir o r i tmo das atividades, a duração do t rabalho, a comensura-

bilidade das coisas. Esse é o contexto em que se desenvolve o predo­

mínio d o princípio da quan t idade , em det r imento d o princípio da

qualidade.

Tomar apenas a quantidade de trabalho como medida de valor, sem

levar em conta a qualidade, supõe que o trabalho simples se tornou o

fulcro da indústria. Supõe que os trabalhos são equalizados pela

subordinação do homem à máquina ou pela divisão extrema do tra­

balho; supõe que os homens se apagam diante do trabalho; supõe

que o movimento do pêndulo tornou-se a exata medida da atividade

20 Italo Calvino, Seis propostas para o próximo milênio, tradução de Ivo Barroso, Companhia das Letras, São Paulo, 1990, pp. 58 e 59; citação do cap. 2: "Rapidez".

i 229

Mura lha da China e as Pirâmides do Egito, o cabo da Boa Esperanç

e os estreitos de Magalhães, Gibraltar, Suez e Panamá, o Ganges, o

Nilo e o Amazonas, os Andes e o Himalaia, a Revolução Industrial,

Revolução Francesa e a Revolução Soviética, a Reforma, a Contra

Reforma e a Renascença, a Batalha de Mara tona e a Bomba de Hiro

shima, Jerusalém, Roma e Meca, o Velho M u n d o , o Novo Mundo ,

Ásia e a África, Oriente e Ocidente, o Céu, o Inferno e o Paraíso,

Atlântida e o Olimpo. Em lugar da eternidade a humanidade, da mes

ma forma que em lugar do fato a metáfora. Onde não alcança a refle

xão , lá pode chegar a imaginação.

Cada tempo inventa seu tempo. O tempo é uma criação social, u

p roduto da atividade humana, uma invenção cultural. É claro que sã

várias, múltiplas, congruentes e contraditórias as formas sociais d

tempo. Tan to assim que ele pode ser cósmico, geológico, sazonal, his­

tór ico, biográfico, mítico, épico, dramát ico, subjetivo, cronológico,

mecânico, elétrico, eletrônico. Mas todos são criações sociais, inven­

ções culturais. Mesmo aqueles altamente determinados pela natureza,

cósmicos, telúricos, geológicos ou sazonais, podem ser reelaborados

pela atividade humana, pela t rama das relações sociais, compreenden­

do processos e estruturas de dominação e apropriação. Todos estão

presentes na vida social dos indivíduos e coletividades, nações e nacio­

nalidades, sociedades e comunidades. É verdade que são diversos pelo

r i tmo e andamento , força e localização, irrelevância e repercussão.

Significam diferentemente, coexistem, convergem, ressoam e negam-

se. Há situações em que uns dão a impressão de recobrir ou suprimir

os outros, mas logo os outros reaparecem, revelam-se.

Numa época em que outros media triunfam, dotados de uma veloci­

dade espantosa e de um raio de ação extremamente extenso, arris­

cando reduzir toda comunicação a uma crosta uniforme e homogê­

nea, a função da literatura é a comunicação entre o que é diverso pelo

fato de ser diverso, não embotando mas antes exaltando a diferença,

segundo a vocação própria da linguagem escrita. (...) Na literatura,

o tempo é uma riqueza de que se pode dispor com prodigalidade e

Page 116: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

relativa de dois operários, da mesma maneira que o da velocidade de

duas locomotivas. Então, não há por que dizer que uma hora de urfl

homem equivale a uma hora de outro homem; deve-se dizer que O

homem de uma hora vale tanto quanto outro homem de uma hora-

O tempo é tudo, o homem não é nada — quando muito, é a carcaça

do tempo. Não se discute a qualidade. A quantidade decide tudo:

hora por hora, jornada por jornada. 2 1

A mesma racionalização que articula progressivamente as mais

diversas esferas da vida social, acentua e generaliza a alienação de unS

e outros , também em âmbito universal. O que já era um dilema evi '

dente no século XIX, acentua-se no XX e promete aprofundar-se nO

século XXI. A marcha da racionalização caminha de par-em-par com

a alienação, uma e outra determinando-se reciprocamente.

O predomínio da razão instrumental, técnica ou pragmática gene­

raliza-se por todos os setores da vida social. Em escala crescente, aS

conquistas da ciência são traduzidas em técnicas de produção e con '

trole social, conforme o jogo das forças sociais, segundo as estruturas

de dominação e apropr iação prevalecentes. Esse é o contexto em que

os desenvolvimentos da ciência, traduzidos em técnicas, aprofundam

e generalizam as mais diversas modalidades de alienação, do p a u p c

r ismo à muti lação.

Hoje em dia, tudo parece levar no seu seio a sua própria contradição.

Vemos que as máquinas, dotadas da propriedade maravilhosa de

reduzir e tornar mais frutífero o trabalho humano, provocam a fome

e o esgotamento do trabalhador. As fontes de riqueza recém-desco-

bertas se convertem, por artes de um estranho malefício, em fontes de

privações. Os triunfos da arte parecem adquiridos ao preço de quali­

dades morais. O domínio do homem sobre a natureza é cada vez

maior; mas, ao mesmo tempo, o homem se transforma em escravo de

2 1 Karl Marx, Miséria da Filosofia, tradução de José Paulo Netto, Editora Ciências Humanas, São Paulo, 1982, pp. 57-58.

M O D E R N I D A D E - M U N D O

outros homens ou da sua própria infâmia. Até a pura luz da ciên< ia

parece só poder brilhar sobre o fundo tenebroso da ignorância^

Todos os nossos inventos e progressos parecem dotar de vida intele<

tual as forças materiais, enquanto reduzem a vida humana ao nível

de uma força material b ru ta . 2 2

O mesmo processo que carrega consigo a racionalização e a alie

nação promove o predomínio do princípio da quantidade, em detri­

mento do princípio da qualidade, e realiza a crescente inversão nas re

lações entre os indivíduos e os produtos de suas atividades, produzin­

do a subordinação do criador à criatura. A crescente disciplina e 0

progressivo ritmo das organizações, empresas e mercados espalha-se

por todos os cantos e recantos da vida social, impregnando modos de

ser, agir, sentir, pensar e imaginar.

Desde que o ascetismo começou a remodelar o mundo e a nele se

desenvolver, os bens materiais foram assumindo uma crescente e,

finalmente, uma inexorável força sobre os homens, como nunca

antes na história. Hoje em dia — ou definitivamente, quem sabe —

seu espírito religioso safou-se da prisão. O capitalismo vencedor,

apoiado numa base mecânica, não carece mais de seu abrigo. (...)

Ninguém sabe ainda a quem caberá no futuro viver nessa prisão, ou

se, no fim desse tremendo desenvolvimento, não surgirão profetas

inteiramente novos, ou um vigoroso renascimento de velhos pensa­

mentos e idéias, ou ainda se nenhuma dessas duas — a eventualidade

de uma petrificação mecanizada caracterizada por esta convulsiva

espécie de autojustificação. 2 3

2 2 Karl Marx, "Discurso pronunciado na festa de aniversário do People's Paper" no dia 14 de abril de 1856, conforme K. Marx e F. Engels, Textos, 3 vols., Edições Sociais, São Paulo, 1977, vol. 3, pp. 298-299.

2 3 Max Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo, tra­dução de M. Irene de Q. F. Szmrecsanyi e Tamás J.M.K. Szmrecsanyi, Pioneira Editora, São Paulo, 1967, p. 131.

231 2 3 0

Page 117: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

2 4 Norbert Elias, Sobre el tiempo, tradução de Guillermo Hirata, Fondo de Cultura Económica, México, 1989, p. 16.

232

M O D E R N I D A D E - M U N D O

pitai, mesmo quando articulada pela sofisticação sistemática eletrôni­

ca e telemática.

Tanto o tempo como o espaço são definidos por intermédio da orga­

nização de práticas sociais fundamentais para a produção de merca­

dorias. Mas a força dinâmica da acumulação (e superacumulação) do

capital, aliada às condições da luta social, torna as relações instáveis.

Em conseqüência, ninguém sabe bem quais podem ser "o tempo e o

lugar certo para tudo" . Parte da insegurança que assola o capitalismo

como formação social vem dessa instabilidade dos princípios espa­

ciais e temporais em torno dos quais a vida social poderia ser or­

ganizada (quando não ritualizada à feição das sociedades tradicio­

nais). Durante fases de troca máxima, as bases espaciais e temporais

de reprodução da ordem social estão sujeitas à ruptura mais severa. 2 5

N o âmbito da sociedade global descortinam-se outras possibilida­

des de real ização e imaginação dos r i tmos e ciclos da vida social.

Alteram-se as regularidades e recorrências da história, assim c o m o

suas condições de fraturas e rupturas. A longa duração pode revelar-se

em toda sua amplitude, da mesma maneira que o instante pode adqui­

rir sua universa l idade . Q u a n d o se globaliza o m u n d o , q u a n d o a

máquina do mundo passa a funcionar em sua globalidade, o andamen­

to de coisas, gentes e idéias, províncias e nações, culturas e civilizações

adquire out ras realidades, diferentes possibilidades. Pode-se pensar

tudo novamente: a longa e a curta durações, o instante e o fugaz, o

ciclo e a era, a regularidade e a recorrência, a continuidade e a ruptu­

ra, a diversidade e a contradição, o passado e o presente, o próximo e

o remoto, a racionalização e a alienação, o indivíduo e a humanidade.

2* David Harvey, Condição pós-moderna, tradução Adail Ubirajara Sobral e Maria Stella Gonçalves, Edições Loyola, São Paulo, 1992, p. 218.

A mesma racionalização que prioriza o tempo, o r i tmo, a veloci­

dade e a produtividade produz a subordinação do indivíduo à máqui­

na, ao sistema, às estruturas de dominação e apropriação prevalecen­

tes, promovendo sua alienação. Mais uma vez, o criador é levado a

subordinar-se à criatura.

Já não se pergunta por que nem de que maneira chegou-se a apare­

lhos precisamente regulados que medem o tempo em dias, horas e se­

gundos, e ao correspondente modelo de autodisciplina individual im­

plícito no conhecer que hora é. Compreender as relações entre a es­

trutura da sociedade, que possui uma imprescindível e inevitável rede

de determinações temporais, e a estrutura de uma personalidade, que

tem uma finíssima sensibilidade e disciplina de tempo, não constitui

para os membros de tal sociedade nenhum problema grave. Expe­

rimentam, em toda a sua crueza, a pressão do tempo horário de cada

dia; e em maior grau — conforme vão crescendo — a pressão dos

anos do calendário. E isto, convertido em segunda natureza, parece

um destino que todos devem assumir. 2 4

Esse o contexto em que se produzem, insti tuem, desenvolvem,

transformam ou declinam as mais diversas formas sociais de tempo:

sazonal, biográfico, genealógico, histórico, mítico, dramático, épico,

cronológico, mecânico, elétrico, eletrônico. Correspondem a distintas

formas de organização social da vida e t rabalho, distintos níveis de or­

ganização técnica do processo produtivo, distintas estruturas de apro­

priação e dominação. Nesse sentido é que alguns signos são emblemá­

ticos. Ao longo dos tempos, o significado de time is money é instituí­

do , modificado, dinamizado, generalizado, priorizado ou universali­

zado. Inclusive pode tensionar, desorganizar ou romper formas de so­

ciabilidade, modos de ser. É sempre instável, ou mesmo precária, a ra­

cionalidade instituída pelas regras do mercado, pela dinâmica d o ca-

Page 118: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

CAPITULO 10 Sociologia da globalização

Page 119: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

Nesta altura da história, no declínio do século X X e limiar do XXI, as

ciências sociais se defrontam com um desafio epistemológico novo .

Seu objeto transforma-se de m o d o visível, em amplas proporções e,

sob certos aspectos, espetacularmente. Pela primeira vez, são desafia­

das a pensar o m u n d o como uma sociedade global. As relações, os

processos e as estruturas econômicas, políticas, demográficas, geográ­

ficas, históricas, cul turais e sociais, que se desenvolvem em escala

mundial , adquirem preeminência sobre as relações, processos e estru­

turas que se desenvolvem em escala nacional. O pensamento científi­

co , em suas produções mais notáveis , e l aborado pr imord ia lmente

com base na reflexão sobre a sociedade nacional, não é suficiente para

apreender a constituição e os movimentos da sociedade global.

O paradigma clássico das ciências sociais foi constituído e conti­

nua a desenvolver-se com base na reflexão sobre as formas e os movi­

mentos da sociedade nacional. Mas a sociedade nacional está sendo

recoberta, assimilada ou subsumida pela sociedade global, uma reali­

dade que não está ainda suficientemente reconhecida e codificada. A

sociedade global apresenta desafios empíricos e metodológicos, o u

históricos e teóricos, que exigem novos conceitos, outras categorias,

diferentes interpretações.

237

Page 120: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

i Immanuel Wallerstein, Unthinking Social Science (The Limits of Nine­teenth-Century Paradigms), Polity Press, Cambridge, 1991, p. 246. Citação retirada do cap. 18: "Call for a Debate about the Paradigm", pp. 236-256.

238

S O C I O L O G I A DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

nos estudos e interpretações sobre: relações internacionais, geopolíti­

ca, integração regional, s istema-mundo, economia-mundo, três mun­

dos, quatro mundos , Guerra Fria, fim da Guerra Fria, fim da história,

nova divisão internacional do t rabalho, fábrica global, cidade global,

aldeia global, shopping center global, Disneylândia global , p laneta

Te r r a , nor te e sul , O N U , U N E S C O , U N I C E F , F A O , F M I , BIRD,

G A T T , O T A N , N A F T A , M E R C O S U L , Casa da E u r o p a , Es tados

Unidos da Europa, espaço europeu, espaço do Pacífico, imperialismo,

pós-imperialismo, dependência, nova dependência, interdependência,

multilateralismo, multinacional, t ransnacional, ascensão e queda das

grandes potências, Ocidente e Oriente, ciclo Kondratieff, telecomuni­

cações, mídia mundial , indústria cultural, cultura internacional popu­

lar, marketing global, globalização e fragmentação, novo m a p a d o

mundo , modernidade-mundo, pós-modernidade.

Este é um momento epistemológico fundamental : o pa rad igma

clássico, fundado na reflexão sobre a sociedade nacional, está sendo

subsumido formal e realmente pelo novo paradigma, fundado na re­

flexão sobre a sociedade global. O conhecimento acumulado sobre a

sociedade nacional não é suficiente para esclarecer as configurações e

os movimentos de uma realidade que já é sempre internacional, mul­

tinacional, t ransnacional, mundial ou propriamente global. É obvio

que a sociedade nacional continua a ter vigência, com seu terr i tório,

sua população, seu mercado, sua moeda, seu hino, sua bandeira, seu

governo, sua constituição, sua cultura, sua religião, sua história, e de­

mais formas de organização social e técnica do t rabalho, façanhas, he­

róis, santos, monumentos , ruínas. Ela constitui o cenário no qual seus

membros movimentam-se, vivem, t raba lham, lutam, pensam, fabu­

lam, morrem. Tan to assim que subsistem e ressurgem nacionalismos,

p rov inc ian i smos , reg iona l i smos , e tn ic ismos, fundamenta l i smos e

identidades em muitos lugares, nos diversos quadrantes d o m u n d o .

Mas a sociedade nacional não dá conta, nem empírica nem metodolo­

gicamente, nem histórica ou teoricamente, de toda a realidade na qual

se inserem indivíduos e classes, nações e nacionalidades, culturas e ci­

vilizações. Aos poucos, e às vezes de repente, a sociedade global sub-

239

Sempre houve um enorme debate sobre como a sociedade e o Estado

relacionam-se, qual deveria subordinar o outro e qual encarnar os

valores morais mais elevados. Assim, ficamos acostumados a pensar

que as fronteiras da sociedade e do Estado são as mesmas ou, se não,

poderiam (e deveriam) ser. (...) Vivemos em Estados. Há uma socie­

dade sob cada Estado. Os Estados têm história e portanto tradições.

(...) Esta imagem da realidade social não era uma fantasia, tanto

assim que teóricos colocados em perspectivas ideográficas e nomoté-

ticas desempenhavam-se com razoável desenvoltura, utilizando esses

enfoques acerca da sociedade e do Estado e alcançando alguns resul­

tados plausíveis. O único problema era que, à medida que o tempo

corria, mais e mais "anomalias" revelavam-se inexplicadas nesse

esquema de referência; e mais e mais lacunas (de zonas da atividade

humana não pesquisadas) pareciam emergir, l

Ocorre que a sociedade global não é a mera extensão quanti tat i­

va e qualitativa da sociedade nacional. Ainda que esta continue a ser

básica, evidente e indispensável, manifestando-se inclusive em âmbi to

internacional , é inegável que a sociedade global se consti tui c o m o

uma realidade original, desconhecida, carente de interpretações.

A sociedade global já tem sido objeto de estudos e interpretações,

em seus aspectos históricos, políticos, econômicos, culturais, geográ­

ficos, demográficos, geopolíticos, ecológicos, religiosos, lingüísticos,

artísticos e filosóficos. Além das indicações e intuições que freqüente­

mente aparecem nos estudos sobre a sociedade nacional, multiplicam-

se as reflexões sobre as configurações e os movimentos da sociedade

global. Já são muitos os que pensam a sociedade em âmbi to t ransna­

cional, mundial ou propr iamente global, mesmo q u a n d o não estão

utilizando esta noção, mesmo quando cont inuam a pensar a nação.

Em forma sintética, pode-se dizer que essa problemática está presente

Page 121: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

sume formal ou realmente a sociedade nacional, compreendendo indi­

víduo, grupo, classe, movimento social, cultura, língua, religião, moe­

da, mercado, formas de t rabalho, modos de vida. Tudo isto continua

vigente, c o m o nacional, com toda sua força original. M a s tudo isto,

s imultaneamente, articula-se dinâmica e contradi tor iamente com as

configurações e os movimentos da sociedade global. Como totalidade

geográfica e histórica, espacial e temporal , em suas dimensões sincrô-

nicas e diacrônicas, a sociedade global se constitui como um momen­

to epistemológico fundamental, novo, pouco conhecido, desafiando a

reflexão e a imaginação de cientistas sociais, filósofos e ar t is tas . 2

O s estudos e as interpretações da sociedade global apresentam al­

gumas características que merecem ser registradas. Cada uma de per

se, e todas em conjunto, permitem visualizar um pouco melhor tan to

a originalidade do novo objeto das ciências sociais como as dificulda­

des epistemológicas que suscita.

Pr imeiro , baseiam-se principalmente nos ens inamentos das se­

guintes teorias, mui to correntes nas ciências sociais: evolucionismo,

funcionalismo, sistêmica, estruturalista, weberiana e marxista. Essas

são as que predominam, às vezes em termos bastante sistemáticos, ou­

tras vezes utilizadas de m o d o fragmentário. Também há tentativas de

combinar elementos de várias teorias, em formulações ecléticas. Em

muitos casos, no entanto, fica evidente a dificuldade que alguns au to­

res enfrentam para libertar-se dos quadros de referência representa­

dos pela sociedade nacional, como emblema do paradigma clássico, e

pensar a sociedade global em toda sua originalidade.

Segundo, priorizam determinados aspectos da sociedade global:

econômicos, financeiros, tecnológicos, informáticos, culturais , reli­

giosos, políticos, geopolíticos, ecológicos, sociais, históricos, geográ­

ficos e outros . São poucos os que formulam abordagens gerais, abran­

gentes, integrativas. Também são poucos os que reconhecem que o

conjunto das relações, processos e estruturas, que descrevem e inter-

2 Octávio Ianni, A sociedade global, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1992. A T. edição é de 1993.

S O C I O L O G I A DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

241

pre tam, diz respeito a um objeto novo , const i tuído pela sociedade

global.

Terceiro, a maioria situa-se em perspectiva que se pode denomi­

nar de convencional. Focaliza este ou aquele aspecto da sociedade glo­

bal, priorizando antecipadamente uma perspectiva: a superpotência

mundial; uma ou várias das nações dominantes ou centrais no cenário

mundial; uma ou várias nações do ex-Terceiro M u n d o , do sul ou da

periferia, tais como as asiáticas, africanas, latino-americanas e inclu­

sive remanescentes do ex-bloco soviético do Leste Europeu; a comuni­

dade européia; a classe ou as classes dominantes; as classes subalter­

nas, compreendendo trabalhadores assalariados em geral, proletaria­

do e campesinato; as etnias "minori tár ias"; a luta pela soberania na­

cional, com base em projeto capitalista, socialista ou "terceira via"; a

rede intra e in te rcorporações , cong lomerados ou empresas , com­

preendendo muitas vezes alianças estratégicas entre elas; a nova divi­

são internacional do trabalho e da produção; a mídia internacional;

um ou ou t ro fundamentalismo religioso, incluindo-se o islamismo,

catolicismo, protestantismo e outros; a luta pela hegemonia mundial

por parte desta ou daquela nação.

Q u a r t o , o método comparat ivo evidentemente está na base de

praticamente todos os estudos e interpretações. Comparam-se nações

e continentes, tecnologias e mercadorias, regimes políticos e políticas

governamentais , indicadores econômicos, financeiros, políticos, so­

ciais e culturais, economias estatizadas, mistas e de empresa privada,

mercado e planejamento. Há casos em que a comparação elege rela­

ções, processos e estruturas, procurando combinar configurações sin­

crónicas e diacrônicas. Em outros casos, comparam-se índices, indica­

dores, variáveis. É claro que o recurso ao método comparativo apóia-

se, em última instância, em uma das diversas teorias mobilizadas para

a pesquisa: evolucionismo, funcionalismo, sistêmica, estruturalista,

weberiana ou marxista. Em geral, a comparação toma como referên­

cia aberta ou implícita este ou aquele país "moderno" , "desenvolvi­

d o " , " industr ial izado", "pós-industrial".

Quin to , são poucos, muito poucos, os que se posicionam nos ho-

Page 122: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O S O C I O L O G I A DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

tua-se a distância entre a realidade e o ideal. A diversidade cultural e

o freqüente desentendimento mútuo parece caracterizar o mundo

real. O método comparativo tornou-se central na sociologia precisa

mente como resposta a essa experiência. Foi a realidade do desenvol

vimento social que mudou essa situação. Desde a Segunda Guerra

Mundial, tem havido um crescente reconhecimento, entre sociólogos,

de que a população mundial está envolvida em um único sistema

mundial. "Sociedade", como tal, passa a compreender uma multidão

de "sociedades" que, no contexto de um sistema mais amplo, podem

somente encontrar uma autonomia relativa e condicionada, em gran­

de medida como nações-Estados estreitamente entrelaçados. 3

Revertem-se perspectivas e possibilidades de ser de uns e outros ,

em todo o mundo . O local e o global determinam-se reciprocamente,

umas vezes de m o d o congruente e conseqüente, outras de m o d o desi­

gual e desencontrado. Mesclam-se e tensionam-se singularidades, par

ticularidades e universalidades.

A globalização pode assim ser definida como a intensificação das

relações sociais em escala mundial, que ligam localidades distantes de

tal maneira que acontecimentos locais são modelados por eventos

ocorrendo a muitas milhas de distância e vice-versa. Este é um pro­

cesso dialético porque tais acontecimentos locais podem se deslocar

numa direção anversa às relações muito distanciadas que os mode­

lam. A transformação local é tanto uma parte da globalização quan­

to a extensão lateral das conexões sociais através do tempo e espaço.

Assim, quem quer que estude as cidades hoje em dia, em qualquer

parte do mundo, está ciente de que o que ocorre numa vizinhança

local tende a ser influenciado por fatores — tais como dinheiro mun-

3 Martin Albrow e Elizabeth King (editores), Globalization, Knowledge and Society (Readings from "International Sociology"), Sage Publications, Londres, 1990, p. 155. Citação de "One World Society", introdução de uma das partes da coletânea reunindo textos de diferentes autores.

243 242

rizontes da desterritorialização, uma perspectiva que pode passar pelas

convencionais, mas não se fixa em nenhuma, como a que seria priori­

tária, privilegiada ou mais "avançada". Dado o fato de que esse novo

objeto das ciências sociais não só é novo mas é também muito proble­

mático, seria apressado estabelecer uma perspectiva como prioritária

ou exclusiva. A fecundidade possível da reflexão sobre a sociedade glo­

bal, em suas configurações e movimentos, pode ampliar-se bastante se

o sujeito do conhecimento não permanece no mesmo lugar, deixando

que seu olhar flutue livre e a ten to por mui tos lugares, p róx imos e

remotos, presentes e pretéritos, reais e imaginários.

Sim, a sociedade global é o novo objeto das ciências sociais. Ao

lado da sociedade nacional, vista como um todo e também em suas

partes , as ciências sociais começam a se debruçar sobre a sociedade

global, vista como um todo e também em suas partes. São dois obje­

tos presentes, um dos quais bastante conhecido, codificado, interpre­

t ado , ao passo que o ou t ro ainda por conhecer-se, explicar-se. A so­

ciedade nacional, que pode ser vista como o emblema do paradigma

clássico das ciências sociais, com o qual elas nascem, amadurecem e

cont inuam a desenvolver-se, enquanto que a sociedade global pode

ser vista como o emblema de um paradigma emergente. Envolve um

novo parad igma, t a n t o po rque a sociedade global encontra-se em

constituição, em seus primórdios, como porque carece de conceitos,

categorias, interpretações.

Acontece que a globalização em curso no fim do século X X pode

ser algo muito novo, a despeito da impressão de que parece apenas

cont inuidade. A humanidade de que se falava no passado era uma

idéia, uma hipótese, u m a u topia . A global ização que prenuncia o

século XXI está aí, dada , evidente, esperando ser pensada, revelando

a humanidade como ela começa a ser.

A idéia de humanidade é um pensamento antigo e persistente. Mas

foi uma idéia potencialmente realizável, ou como um ideal a ser pro­

curado, que empolgou a atenção de filósofos. N o entanto, na medida

em que se expande a sociedade ocidental, desde o século XVI, acen-

Page 123: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

4 Anthony Giddens, As conseqüências da modernidade, tradução de Raul Fiker, Editora Unesp, São Paulo, 1991, pp. 69-70.

244

S O C I O L O G I A DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

dências nesse mesmo cenário. Há vínculos antigos e novos que atre­

lam nações umas às outras , não só em condições de igualdade, mas

principalmente de desigualdades. Também as organizações interna­

cionais, compreendendo regionalismos e globalismos, exercem suas

atividades priorizando interesses de nações com maior poder econô­

mico, político, militar, cultural . Essa cont inua a ser uma dimensão

importante do cenário mundial . Simultaneamente, n o entanto , decli­

nam e reformulam-se as condições de soberania e hegemonia, em to ­

dos os quadrantes . Mesmo porque já há centros de poder, em escala

global, que sobrepassam soberanias e hegemonias. As empresas, cor­

porações e conglomerados transnacionais, em suas redes e alianças,

em seus planejamentos sofisticados, o p e r a n d o em escala regional ,

continental e global, dispõem de condições para impor-se aos diferen­

tes regimes políticos, às diversas estruturas estatais, aos distintos p ro­

jetos nacionais.

Esse é o horizonte das noções e metáforas que as ciências sociais

estão sendo desafiadas a criar: aldeia global, fábrica global, cidade

global, nave espacial, desterritorialização, reterri torialização, redes

inter e intracorporações, alianças estratégicas de corporações, nova

divisão internacional do t rabalho, neofordismo, acumulação flexível,

zona franca, mercado global, mercadoria global, moeda global, pla­

nejamento global, tecnocosmo, planeta Terra , sociedade civil mun­

dial, cidadania mundial , contrato social universal.

N ã o é suficiente transferir conceitos, categorias e interpretações

elaborados sobre a sociedade nacional para a global. Quando se t ra ta

de movimentos , relações, processos e es t ru turas característicos da

sociedade global, não basta utilizar ou adaptar o que se sabe sobre a

sociedade nacional. As noções de sociedade, Estado, nação, par t ido,

sindicato, movimento social, identidade, território, região, t radição,

história, cul tura , soberania, hegemonia, urbanização, industrializa­

ção , arcaico, moderno e out ras não se transferem nem se adap tam

facilmente. As relações, processos e estruturas de dominação e apro­

priação, integração e antagonismo característicos da sociedade global

exigem também novos conceitos, categorias, interpretações.

245

dial e mercados de bens — operando a uma distância indefinida da vizinhança em questão. 4

Esse é o contexto em que todas as ciências sociais são postas dian­

te de novo desafio epistemológico. Muitos de seus conceitos, catego­

rias e interpretações são postos em causa. Alguns tornam-se obsole­

tos , out ros perdem parte de sua vigência e há os que são recriados.

Mas logo se coloca o desafio de criar novos. N a medida em que a rea­

lidade social passa por uma verdadeira revolução, quando o objeto

das ciências sociais se t ransfigura, nesse con tex to descort inam-se

outros horizontes para o pensamento.

Há noções que sofrem uma espécie de obsolescência, em certos

casos parcial, em outros total. O Estado-nação, por exemplo, entra

em declínio, como realidade e conceito. N ã o se trata de dizer que dei­

xará de existir, mas que está realmente em declínio, passa por uma fa­

se crítica, busca reformular-se. As forças sociais, econômicas, políti­

cas, culturais, geopolíticas, religiosas e outras, que operam em escala

mundial , desafiam o Estado-nação, com sua soberania, como o lugar

da hegemonia. Sendo assim, os espaços do projeto nacional, seja qual

for sua tonalidade política ou econômica, reduzem-se, anulam-se ou

somente podem ser recriados sob outras condições. A globalização

cria injunções e estabelece parâmetros, anula e abre horizontes. Mas

o pensamento científico parece um tanto t ímido, surpreso ou mesmo

atôni to , diante das implicações epistemológicas da globalização.

As noções de interdependência, dependência e imperialismo tam­

bém estão postas em causa, se admitimos que o Estado-nação está em

crise, enfrenta uma fase de declínio, busca reformular-se. As grandes

e pequenas nações, centrais e periféricas, dominantes e subordinadas,

ocidentais e orientais, ao sul e ao norte, todas se deparam com o dile­

ma da reformulação das condições de soberania e hegemonia. É claro

que há blocos geopolíticos, imperialismos, dependências e interdepen-

Page 124: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

5 Talcott Parsons, "Evolutionary Universals in Society", American Sociolo­gical Review, vol. 29, n°. 3, Nova York, 1964; Talcott Parsons, Politics and Social Structure, The Free Press, Nova York, 1969, cap. 12: "Order and Community in the International Social System"; Harold D. Lasswell, "World Organization and Society", Daniel Lerner e Harold D. Lasswell (editores), The Policy Sciences, Stanford University Press, Stanford, 1965, cap. VI; Alex Inkles, "The Emerging Social Structure of the World", World Politics, vol. XXVII, n°. 4, Princeton, 1975, pp. 467-495; Wilbert E. Moore, "Global Sociology: The World as a Singular System", The American Jour­nal of Sociology, vol. LXXI, n°. 5, Chicago, 1966, pp. 475-482; Niklas Luh-mann, "The World Society as a Social System", International Journal of General Systems, vol. 8,1982, pp. 131-138; Robert W. Cox, "On Thinking About Future World Order", World Politics, vol. XXVIII, n° 2, Princeton, 1976, pp. 175-196; C.E. Black, The Dynamics of Modernization (A Study in Comparative History), Harper & Row Publishers, Nova York, 1966.

246

S O C I O L O G I A DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

247

Ocorre que a problemática da globalização encontra-se a inda em

processo de equacionamento empírico, metodológico e teórico. Mais

que isso, apenas começa a ser percebida em suas implicações episte­

mológicas. Trata-se de uma realidade que pode ser vista c o m o uma

totalidade em formação. Constitui-se como um jogo de relações, p ro­

cessos e estruturas de dominação e apropr iação, integração e contra­

dição, soberania e hegemonia, configurando uma totalidade em movi­

mento, complexa e problemática. Trata-se de um universo múltiplo,

uma sociedade desigual e contraditória, envolvendo economia, políti­

ca, geografia, história, cultura, religião, língua, t radição, identidade,

etnicismo, fundamentalismo, ideologia, utopia. Nesse horizonte, mul­

tiplicam-se as possibilidades e as formas do espaço e tempo, o contra­

pon to par te- todo, a dialética singular e universal.

São ainda poucas as indicações, intuições e interpretações de que

a sociedade global corresponde a uma nova realidade, uma totalidade

abrangente, subsumindo formal ou realmente as nacionais.

A idéia central é a de que existe um sistema global com vida própria,

independentemente das sociedades nacionais constituídas que exis­

tem dentro de suas fronteiras. (...) Embora os estudos sobre o moder­

no sistema mundial envolvam grandes divergências quanto ao obje­

to , horizontes temporais e metodologias, todos estão de acordo

quanto a duas questões. Primeiro, reconhecem que um sistema mun­

dial ou global existe além das sociedades nacionais, que podem ser

estudadas de per se. Reconhecem que a economia mundial, ou o Es­

tado do sistema internacional, possuem vida e dinâmica estrutural

próprias, podendo ser identificados e interpretados. Segundo, este

sistema-mundo exerce influência sobre o desenvolvimento e, mais

importante ainda, o subdesenvolvimento das sociedades nacionais

inseridas nas estruturas globais. Não há apenas um sistema-mundo

"lá", mas ele determina o desenvolvimento de áreas dentro das suas

fronteiras. Com efeito, o desenvolvimento ou subdesenvolvimento de

um país tem mais a ver com a sua localização hierárquica na divisão

do trabalho mundial do que com a própria taxa de desenvolvimento

Logo fica evidente que não se trata de dois objetos distintos, com

tessituras e dinâmicas próprias e alheias. Implicam-se reciprocamente,

em articulações sincrónicas e diacrônicas diversas, desde convergentes

e antagônicas. Envolvem possibilidades diferentes no que se refere às

formas do espaço, às durações do tempo. São duas totalidades bastan­

te articuladas, cada uma a seu modo, mas reciprocamente referidas,

sendo que a global tende a subsumir formal ou realmente a nacional.

É claro que há autores que reconhecem que as ciências sociais en­

contram-se em face das modificações radicais em seu objeto. Reco­

nhecem que a globalização implica desafios empíricos, metodológi­

cos , teór icos e, p ropr iamente , epistemológicos. M a s agarram-se a

conceitos, categorias e interpretações acumulados com base na refle­

x ã o sobre os p rob lemas da sociedade nacional , d o Es tado-nação .

Procuram transferir ou reformular esse patr imônio, induzindo a idéia

de que a sociedade global significa uma ampliação da nacional, quan­

do não simplesmente uma soma de nacionais. Inclusive há aqueles que

t o m a m as sociedades "mais desenvolvidas", dominantes ou hegemô­

nicas como parâmetro do que pode ser o mundo . Nestes casos, a glo­

balização tende a ser vista como europeização, americanização ou

ocidentalização, ainda que se fale em modernização, secularização,

individuação, urbanização, industrialização ou modern idade . 5

Page 125: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

interno. (...) Denominamos esta ciência emergente da dinâmica glo­

bal como globologia, o que simplesmente significa a ciência de distin­

tos processos globais, sejam econômicos, políticos ou culturais. Se a

sociologia é a ciência dos sistemas sociais, então globologia é a ciên­

cia do sistema global. Globologia, pois, é análoga à sociologia e refe­

re-se aos estudos de estruturas e processos do sistema-mundo como

um todo, da mesma forma que a sociologia se refere ao estudo de

estruturas e processos sociais. 6

H á autores, no entanto , que sistematizam de m o d o mais ou me­

nos consistente e convincente suas idéias sobre a sociedade global, co­

m o um todo em algumas de suas partes. Ultrapassam o nível das indi­

cações ou intuições preliminares. Focalizam diretamente a problemá­

tica da globalização, colaborando no sentido de equacionar essa pro­

blemática em suas implicações empíricas, metodológicas, teóricas e,

em certos casos, também epistemológicas. "Globalização diz respeito

a todos os processos por meio dos quais os povos do mundo são in­

co rporados em uma única sociedade mundia l , a sociedade global .

Globalismo é uma das forças que a tuam no desenvolvimento da glo­

ba l ização ." 7

A reflexão sobre a sociedade global, em suas configurações e mo­

vimentos, t ransborda os limites convencionais desta ou aquela ciência

social. Ainda que haja ênfases e prioridades, quanto a este ou aquele

aspecto da globalização, logo fica evidente que qualquer análise en­

volve necessariamente várias ciências. A economia da sociedade glo­

bal envolve também aspectos políticos, históricos, geográficos, demo­

gráficos, culturais e outros. A cultura da globalização passa pela cul-

6 Albert Bergesen, "The Emerging Science of the World-System", International Social Science Journal, vol. XXXIV, n". 1, Unesco, 1982, pp. 23-36; citação das pp. 23-24.

7 Martin Albrow, "Globalization, Knowledge and Society", publi­cado por Martin Albrow e Elizabeth King (editores), Globalization, Knowledge and Society (Readings from "International Sociology"), Sage Publications, Londres, 1990, pp. 3-13; citação da p. 9.

S O C I O L O G I A DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

tura de massa, indústria cultural, mídias impressa e eletrônica, reli­

giões e línguas, além de outros aspectos que t ransbordam limites con­

vencionais d a antropologia e sociologia. N e m sempre, mas em muitos

casos, os estudos e as interpretações sobre globalização reabrem ques­

tões epistemológicas que pareciam resolvidas, quando as ciências so­

ciais t raba lhavam principalmente com a sociedade nacional , c o m o

emblema do paradigma clássico.

A questão diante de nós, hoje, é se há algum critério que possa ser usa­

do para assegurar, com relativa clareza e consistência, as fronteiras

entre as quatro presumidas disciplinas de antropologia, economia,

ciência política e sociologia. A análise dos sistemas-mundo responde

com um inequívoco 'não' a esta pergunta. Todos os critérios presumí­

veis — níveis de análise, objeto, métodos, enfoques teóricos — ou não

são mais verdadeiros na prática ou, se mantidos, são obstáculos a

conhecimentos posteriores, antes do que estímulos para a sua criação. 8

As noções de espaço e tempo, fundamentais para todas as ciências

sociais, estão sendo revolucionadas pelos desenvolvimentos científi­

cos e tecnológicos incorporados e dinamizados pelos movimentos da

sociedade global. As realidades e os imaginários lançam-se em outros

horizontes, mais amplos que a província e a nação, a ilha e o arquipé­

lago, a região e o continente, o mar e o' oceano. As redes de articula­

ções e as alianças estratégicas de empresas, corporações, conglomera­

dos, fundações, centros e institutos de pesquisas, universidades, igre­

jas, part idos, sindicatos, governos, meios de comunicação impressa e

eletrônica, tudo isso constitui e desenvolve tecidos que agilizam rela­

ções, processos e estruturas, espaços e tempos, geografias e histórias.

8 Immanuel Wallerstein, "World-Systems Analysis", publicado por An­thony Giddens e Jonathan H. Turner (editores), Social Theory Today, Polity Press, Cambridge, 1987, pp. 309-324; citação da p. 312; consultar também: Immanuel Wallerstein, Unthinking Social Science (The Limits of Nineteenth-Century Paradigms), Polity Press, Cambridge, 1991, espe­cialmente a parte VI: "World-Systems Analysis as Unthinking".

249 248

Page 126: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

9 Milton Santos, Técnica, espaço, tempo (Globalização e Meio Técnico-Científico Informacional), Editora Hucitec, São Paulo, 1994, p. 31 .

250

S O C I O L O G I A DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

bal colocam esse problema. A reflexão sobre a diversidade n ã o pode

estar ausente, já que implica aspectos empíricos, metodológicos, teó­

ricos e propriamente epistemológicos. Logo que se reconhece que a

sociedade global é uma realidade em processo, que a globalização

atinge as coisas, as gentes e as idéias, bem como as sociedades e as

nações, as culturas e as civilizações, desde esse momento está pos to o

p r o b l e m a d o c o n t r a p o n t o g loba l i zação-d ivers idade , ass im c o m o

diversidade e desigualdade, ou integração e antagonismo.

M a s ocorrem posicionamentos exacerbados. Alguns chegam ao

extremo de autonomizar o diferente, o diverso, o suigeneris. Apegam-

se ao local e esquecem o global, imaginando que o singular prescinde

d o universal. Enfatizam a diferença, to rnando-a original, es t ranha,

exótica; ou elegendo-a primordial , isenta, ideal. Incorrem no etnocen-

t r ismo ocidentalizante que pretendem criticar, t o m a n d o o " o u t r o " ,

que querem resgatar e proteger, em um ente abstra to , descolado da

realidade, da t rama que o constitui como diferente. Alimentam u m a

nostálgica utopia escondida no própr io imaginário. Outros subordi­

n a m toda diversidade à globalidade. Reconhecem a diversidade, mas

n ã o a contemplam, n ã o percebem sua originalidade. Esquecem que o

local pode não só afirmar-se como recriar-se no cont raponto com o

global. Natura lmente entre esses dois extremos, uns priorizando o lo­

cal e out ros o global, há toda uma gama de posições. Revelam-se nas

reflexões sobre os mais diversos aspectos da realidade.

Nesse contexto metodológico é que se si tuam algumas das con­

trovérsias correntes nas ciências sociais. Uns preocupam-se com a di­

versidade, procurando a identidade e protestando contra a globalida­

de . Out ros contrapõem o saber local ao global, falando em

"indigenização" ou "crioulização" das ciências sociais, fazendo

reservas ou oposição à "ocidentalização". /

H á u m a

crescente demanda pela "indigenização" das ciências sociais n o

Oriente Médio e no Sudoeste Asiático, em substituição à ocidentali-

251

O local e o global estão distantes e próximos, diversos e iguais. As

identidades embaralham-se e multiplicam-se. As articulações e as ve­

locidades desterritorializam-se e reterritorializam-se em outros espa­

ços, com outros significados. O m u n d o se torna mais complexo e mais

simples, micro e macro , épico e dramático.

Há, hoje, um relógio mundial, fruto do progresso técnico, mas o tem-

po-mundo é abstrato, exceto como relação. Temos, sem dúvida, um

tempo universal, tempo despótico, instrumento de medida hegemôni­

co, que comanda o tempo dos outros. Esse tempo despótico é respon­

sável por temporalidades hierárquicas, conflitantes, mas convergen­

tes. Nesse sentido todos os tempos são globais, mas não há um tem­

po mundial. O espaço se globaliza, mas não é mundial como um

todo, senão como metáfora. Todos os lugares são mundiais, mas não

há um espaço mundial. Quem se globaliza, mesmo, são as pessoas e

os lugares. 9

A rigor, a reflexão sobre a sociedade global reabre questões episte­

mológicas fundamentais: espaço e tempo, sincronia e diacronia, micro

e macro, singular e universal, individualismo e holismo, pequeno relato

e grande relato. São questões que se colocam a partir do reconhecimen­

to da sociedade global como uma totalidade complexa e problemática,

articulada e fragmentada, integrada e contraditória. Simultaneamente

às forças que operam no sentido da articulação, integração e até mesmo

homogeneização, operam forças que afirmam e desenvolvem não só as

diversidades, singularidades ou identidades, mas também hierarquias,

desigualdades, tensões, antagonismos. São forças que alimentam ten­

dências integrativas e fragmentárias, compreendendo nação e naciona­

lidade, grupo e classe sociais, provincianismo e regionalismo, localismo

e cosmopolitismo, capitalismo e socialismo.

É óbvio que a globalização envolve o problema da diversidade.

Praticamente todos os estudos e interpretações sobre a sociedade glo-

Page 127: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

K> Mona Abaza e Georg Stauth, "Occidental Reason, Orientalism, Isla­mic Fundamentalism: A Critique", publicado por Martin Albrow e Elizabeth King (editores), Globalization, Knowledge and Society, citado, pp. 209-230; citação da p. 211.

1 1 Roland Robertson, Globalization (Social Theory and Global Cul­ture), Sage Publications, Londres, 1992, p. 173. Consultar: International Social Science Journal, n°. 117, Unesco, 1988, número especial sobre "The Local-Global Nexus"; Clifford Geertz, Savoir local, savoir global (Les Lieux du Savoir), tradução de Denise Paulme, Presses Universitaires de France, Paris, 1986.

252

S O C I O L O G I A DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

Em bom entendimento, não se t rata de priorizar um ou ou t ro mo­

mento da realidade e da reflexão. É claro que a análise da sociedade

global envolve sempre a t r ibo, nação e nacionalidade, a história e geo­

grafia, a cultura e civilização, o indivíduo, grupo e classe, o sindicato,

o part ido político, o^movimento social e corrente de opinião pública,

a indústria e agricultura, o mercado e planejamento, o campo e cida­

de, a identidade, a diversidade, a desigualdade e contradição, a sobe­

rania e hegemonia, a reforma e revolução, a paz e guerra.

Em todos os casos está em causa o cont raponto local-global, par­

te e todo , micro e macro, individualismo e holismo. Em todos os ca­

sos, os momentos lógicos da reflexão científica necessariamente en­

volvem a dialética singular e universal. N ã o se trata de priorizar um

m o m e n t o , em det r imento do ou t ro , mas reconhecer que ambos se

constituem reciprocamente, articulados harmônica, tensa e contradi­

tor iamente , envolvendo múltiplas mediações. São mediações indis­

pensáveis e secundárias, evidentes e insuspeitadas, próximas e remo

tas. Podem ser signos com sinais t rocados, reversos, recriados.

Nesses termos é indispensável que toda reflexão sobre a socieda­

de global contemple tanto a diversidade como a globalidade, reconhe­

cendo que ambas se constituem simultânea e reciprocamente. Q u a n d o

isso não ocorre, a reflexão arrisca-se a permanecer na mera descrição,

ideologizar este ou aquele momento da análise, ou ficar a meio cami­

nho da interpretação. É difícil, na verdade impossível, que o conceito,

a categoria ou a interpretação deixem de contemplar o cont raponto

singular-universal . 1 2

N o conjunto, os estudos e as interpretações sobre a sociedade glo­

bal, em suas configurações e em seus movimentos, permitem algumas

12 Charles Bright e Michael Geyer, "For a Unified History of the World in the Twentieth Century", Radical History Review, n°. 39,1987, pp. 69-91; George E. Marcus, "Past, Present and Emergent Identities: Require­ments for Ethnographies of Late Twentieth-Century Modernity World­wide", Anais da 17a. Reunião, Associação Brasileira de Antropologia, Florianópolis, 1990, pp. 21-46.

zação e importação das ciências sociais "distorcidas". Recentemente

deflagrou-se um clamor pela pureza dos traços culturais. Aqueles, no

entanto, que pedem autenticidade pela "indigenização" podem não

estar ainda cientes de que o saber local, sobre o qual querem cons­

truir uma alternativa, há muito tempo tem sido parte das estruturas

globais; ou de que desempenham uma parte do jogo da cultura glo­

bal, que também pede a "essência" da verdade local.io

Neste ponto , cabe relembrar que o problema da diversidade está

sempre presente nas configurações e movimentos da sociedade global.

Seria impossível imaginar a globalização sem a multiplicidade dos

indivíduos, grupos, classes, tr ibos, nações, nacionalidades, cul turas

etc. São estes que se globalizam, ao acaso ou por indução, sabendo ou

não. Da mesma forma que são estes que vivem, agem, pensam, ade­

rem, protestam, mudam, transformam-se.

O capitalismo global simultaneamente promove e é condicionado

pela homogeneidade cultural e pela heterogeneidade cultural. A pro­

dução e consolidação da diferença e variedade é um ingrediente

essencial do capitalismo contemporâneo, que é, em todos os casos,

crescentemente envolvido na múltipla variedade de micromercados

(nacional, cultural, racial e étnico, de gênero, socialmente estratifica­

do e assim por diante). Ao mesmo tempo, o micromercado ocorre no

contexto das crescentes práticas econômicas universais-globais. 1 1

Page 128: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

observações do ma io r interesse pa ra o esclarecimento desse novo

objeto das ciências sociais.

Primeiro, a sociedade global se constitui desde o início como uma

total idade problemática, complexa e contraditória, aberta e em movi­

mento . Está impregnada e atravessada por totalidades t ambém notá­

veis, às vezes também decisivas, ainda que subsumidas formal ou real­

mente pela totalidade mais ampla, abrangente, global: Estado-nação,

bloco geopolítico, sistema econômico regional, grande potência, em­

presa t ransnacional , O N U , FMI, BIRD, indústria cultural e outras;

t ambém tr ibo, nação, nacionalidade, etnia, religião, língua, cultura e

outras realidades também fundamentais. As próprias formas de pen­

samento inserem-se na dinâmica da sociedade global, em seu todo ou

em suas partes, operando no sentido da constituição de todos os su­

bordinados, ou da constituição da sociedade global como uma totali­

dade abrangente, sempre problemática, complexa e contraditória.

Segundo, a sociedade global é o cenário mais amplo do desenvol­

vimento desigual, combinado e contradi tór io . A dinâmica do todo

não se distribui similarmente pelas partes. As partes, enquanto distin­

tas totalidades também notáveis, consistentes, t an to produzem e re­

produzem seus próprios dinamismos como assimilam diferencialmen-

te os dinamismos provenientes da sociedade global, enquanto totali­

dade mais abrangente. É no nível do desenvolvimento desigual, com­

binado e contradi tór io , que se expressam diversidades, localismos,

singularidades, particularismos ou identidades. Às vezes, os localis­

mos, provincianismos ou nacionalismos podem exacerbar-se, precisa­

mente devido aos desencontros, às potencialidades e dinâmicas pró­

prias de cada um, de cada parte; e t ambém devido às potenciações

provenientes da dinâmica da sociedade global, das relações, processos

e estruturas que movimentam o todo abrangente. Sob vários aspectos,

a ressurgência de nac ional i smos , regional ismos, p rov inc ian i smos ,

etnicismos, fundamental ismos e identidades são fenômenos que se

esclarecem melhor quando vistos nos horizontes dos rearranjos e ten­

sões provocados pela emergência da sociedade global. N a medida em

que esta debil i ta o Es t ado -nação , reduz os espaços da sobe ran i a

S O C I O L O G I A DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

nacional, transforma a sociedade nacional em província global, nessa

medida reflorescem identidades pretéritas e presentes, novas e anacrô­

nicas. Também por isso a globalização não significa nunca homoge­

neização, mas diferenciação em outros níveis, diversidades com ou­

tras potencialidades, desigualdades com outras forças. Nesse horizon­

te, a sociedade global pode ser vista como uma totalidade desde o iní­

cio problemática, no sentido^ de complexa e contraditória; atravessa­

da pelo desenvolvimento desigual, combinado e contraditório, que se

especifica no âmbi to de indivíduos, grupos , classes, t r ibos , nações ,

sociedades, culturas, religiões, línguas e outras dimensões singulares

ou particulares.

Terceiro, na medida em que se constitui e desenvolve a sociedade

global, como emblema de um novo paradigma das ciências sociais, al­

guns conceitos, categorias e interpretações podem tornar-se obsole­

tos, exigir reelaborações ou ser articulados com novas noções suscita­

das pela reflexão sobre a globalização. Já são diversas as noções que

começam a povoar o pensamento global: globalização, desterritoriali-

zação , re terr i tor ia l ização, minia tur ização, cul tura mundia l , aldeia

global, cidade global, shopping center global, Disneylândia global, fá­

brica global, nova divisão internacional do t rabalho, redes de articu­

lações intra e intercorporações, alianças estratégicas de corporações,

modernidade-mundo, s is tema-mundo, economia-mundo, comunica-

ção-mundo, publicidade global, espaço europeu, espaço do Pacífico,

capitalismo global, moeda global, capital global, terceiromundializa-

ção do Primeiro M u n d o , exército industrial ativo e de reserva global,

planeta Terra , sociedade civil mundial , c idadão do mundo , cont ra to

social mundial , pensamento universal.

Qua r to , nos horizontes abertos pela sociedade global, a história

universal deixa de ser uma fantasia, metáfora ou utopia. N a medida

em que se organiza e movimenta, as histórias das nações e nacionali­

dades inserem-se de forma cada vez mais dinâmica nos movimentos

da história universal. As nações e as nacionalidades cont inuam a de­

senvolver-se com r i tmos marcados por suas singularidades e t rad i ­

ções, forças, dinâmicas, historicidades, míticas. Simultaneamente, no

254 255

Page 129: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

entanto , umas e outras são influenciadas pelos andamentos da histó­

ria universal. Esse é o contexto em que se instauram algumas das no­

vas condições da duração, curta, média ou longa, histórica ou mítica.

Já não é mais apenas a grande potência, a metrópole imperialista, que

incute de m o d o mais ou menos exclusivo seu andamento neste ou na­

quele segmento, ou em grande parte do mundo . Desde que se forma e

desenvolve a sociedade global, com sua economia política, sua dinâ­

mica sócio-cultural, desde esse momento as histórias nacionais ten­

dem a ser, em alguma medida, subsumidas pela história universal.

Quin to , é no âmbito da sociedade global, com sua economia polí­

tica, dinâmica sócio-cultural, historicidade complexa e contraditória,

é no âmbito dessa sociedade que se concretizam as possibilidades do

pensamento global. O que era fantasia, metáfora ou utopia, quando o

pensamento se propunha pensar o mundo, equacionar a razão univer­

sal, imaginar o cosmopolit ismo, diagnosticar as contradições univer­

sais, mergulhar nas opacidades do real, quando se forma a sociedade

global, tudo isso pode adquirir outro significado, novas possibilida­

des. Nesse sentido é que a emergência da sociedade global permite re­

pensar a dialética da história esboçada por M a r x ; ou a teoria da racio­

nalização generalizada sugerida por Weber. Talvez se possa dizer que

sem Weber e Marx , fundamentalmente mas não exclusivamente, não

é possível pensar, em toda sua abrangência e complexidade, a socie­

dade global que se forma no limiar do século XXI. Out ra vez, no en­

tan to , isto não significa que se torna possível a transferência ou adap­

tação pura e simples de conceitos, categorias, interpretações. Pode-se

af i rmar que as obras de M a r x e Weber cons t i tuem duas matr izes

excepcionalmente fecundas para pensar-se configurações e movimen­

tos da sociedade global. Pensar, compreender e explicar essa socieda­

de, tan to em suas singularidades e particularidades como nos horizon­

tes da história universal.

256

Bibliografia

Abaza, Mona e Stauth, Georg, "Occidental Reason, Orientalism, Islamic Fundamentalism: A Critique", em: Martin Albrow e Elizabeth King (editores), Globalization, Knowledge and Society, Sage Publications, Londres, 1990.

Adorno, Theodor W. e Horkheimer, Max, Dialética do esclareci­mento, trad, de Guido Antonio de Almeida, Jorge Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1985.

Albrow, Martin, "Globalization, Knowledge and Society", publi­cado por Martin Albrow e Elizabeth King (editores), Glo­balization, Knowledge and Society, citado.

Albrow, Martin e King, Elizabeth (editores), Globalization, Knowledge and Society (Readings from "International So­ciology"), citado.

Amin, Samir, La Déconnexion (Pour Sortir du Système Mondial), Éditions La Décourverte, Paris, 1986. , L'Empire du Chaos, Éditions L'Harmattan, Paris, 1991. . L'accumulation à l'échelle mondiale, Éditions Anthropos e Ifan, Paris e Dakar, 1970. , L'eurocentrisme (Critique d'une Idéologie), Anthropos, Paris, 1988.

Amin, Samir, Arrighi, Giovanni, Frank, André Gunder e Wallers-tein, Le grand tumulte? (Les Mouvements Sociaux dans l'Économie-Monde), Éditions La Découverte, Paris, 1991.

Anders, Gunther, "O Mundo Fantástico da TV", publicado por Bernard Rosenberg e David Manning White (orgs.), Cul­tura de massa, trad, de Octavio Mendes Cajado, Editora Cultrix, São Paulo, 1973.

Anderson, Perry, O fim da História (De Hegel a Fukuyama), trad, de Alvaro Cabral, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1992.

Apter, David E., The Politics of Modernization, The University of Chicago Press, Chicago, 1965.

Aron, Raymond, Paz e guerra entre as nações, trad, de Sérgio Bath, Editora Universidade de Brasília, Brasília, 1986.

257

Page 130: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

Attali, Jacques, Milenio, trad, de R.M. Bassoles, Seix Barral, Bar­celona, 1991.

Bakhtin, Mikhail (Volochínov), Marxismo e filosofia da lingua­gem, trad, de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira, 2". edi­ção, Editora Hucitec, São Paulo, 1981.

Baran, Paul A., A economia política do desenvolvimento econô­mico, trad, de S. Ferreira da Cunha, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1960.

Baritz, Loren, The Servants of Power (A History of the Use of So­cial Science in American Industry), John Wiley & Sons, Nova York, 1965.

Barnet, Richard J. e Muller, Ronald, Poder global (A Força Incontrolável das Multinacionais), trad, de Ruy Jungmann, Distribuidora Record, Rio de Janeiro, s/d (edição original em inglês realizada em 1974).

Baudelaire, citado por David Harvey, Condição pós-moderna, tradução de Adail U. Sobral e Maria S. Gonçalves, Edições Loyola, São Paulo, 1992.

Becker, David G., Frieden, Jeff, Schatz, Sayre P. e Sklar, Richard L., Postimperialism (International Capitalism and Devel­opment in the Late Twentieth Century), Lynne Rienner Pu­blishers, Boulder e Londres, 1987.

Bell, Daniel, The Cultural Contradictions of Capitalism, Basic Books, Nova York, 1978.

Benjamin, Walter, Magia e técnica, arte e política (Ensaios sobre Literatura e Historia da Cultura), trad, de Sérgio Paulo Rouanet, Editora Brasiliense, São Paulo, 1985; especial­mente "Experiência e Pobreza", pp. 114-120.

Bergesen, Albert, "The Emerging Science of the World-System", publicado em International Social Science Journal, vol. XXXIV, n? 1, Unesco, Paris, 1982, pp. 23-36.

Berman, Marshall, Tudo que é sólido desmancha no ar (A Aventura da Modernidade), trad, de Carlos Felipe Moisés e Ana Maria L. Ioriatti, Companhia das Letras, São Paulo, 1986.

Bertelsmann, Annual Report 1992/93, Gütersloh, Alemanha, 1993.

Black, C. E., The Dynamics of Modernization (A Study in Com­parative History), Harper & Row Publishers, Nova York, 1966.

Bloch, Ernst, Héritage de ce Temps, trad, de Jean Lacoste, Payot, Paris, 1978; especialmente "Non-contemporanéité et eni­vrement", pp. 37-187.

Bobbio, Norberto, A era dos direitos, trad, de Carlos Nelson Coutinho, Editora Campus, Rio de Janeiro, 1992.

258

B I B L I O G R A F I A

Bolter, J. David, Turing's Man (Western Culture in the Compuu-i Age), Penguin Books, Middlesex, Inglaterra, 1986.

Borges, Jorge Luis, El libro de arena, Alianza Editorial, Madri, 1981; especialmente "EI Congreso", pp. 21-38. . Historia de la Eternidad, Alianza Editorial, Madri, 1971.

Braga, José Carlos de Souza, "A Financeirização da Riqueza", publicado em Economia e Sociedade, n° 2, Instituto de Economia, Unicamp, Campinas, 1993, pp. 25-57.

Braudel, Fernand, A dinâmica do capitalismo, trad, de Carlos da Veiga Ferreira, 2! edição, Editorial Teorema, Lisboa, 1986. . O Mediterrâneo e o mundo mediterrâneo na época de Fe­lipe II, 2 vols., Martins Fontes Editora, Lisboa, 1984; sem indicação do tradutor. , Civilisation matérielle, économis et capitalisme, XVe-XVIIIe Siècle, 3 vols., Librairie Armand Colin, Paris, 1979. , Escritos sobre a História, trad, de J. Guinsburg e Tercza Cristina Silveira da Mota, Editora Perspectiva, São Paulo, 1978; especialmente "Historia e Ciências Sociais: a Longa Duração", pp. 41-78. , L'identité de la France, 3 vols., Arthaud-Lammarion, Paris, 1986.

Bright, Charles e Geyer, Michael, "For a Unified History of the World in the Twentieth Century", Radical History Re­view, n". 39,1987.

Brubaker, Rogers, The Limits of Rationality (An Essay on the So­cial and Moral Thought of Max Weber), George Allen & Unwin, Londres, 1984.

Bukharin, Mikolai I., A economia mundial e o imperialismo, trad, de Raul de Carvalho, Abril Cultural, São Paulo, 1984.

Calvino, ítalo, Seis propostas para o próximo milênio, trad, de Ivo Barroso, Companhia das Letras, São Paulo, 1990.

Camilleri, Joseph A. e Falk, Jim, The End of Sovereignty? (The Politics of a Shrinking and Fragmenting World), Edward Elgar Publishing, Aldershot, Inglaterra, 1992.

Campbell, Colin, The Romantic Ethic and the Spirit of Modern Consumerism, Basil Blackwell, Oxford, 1989.

Carena, Carlo, "Ruína/Restauro", Enciclopédia Einaudi, vol. 1, "Memória-História", Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Porto, 1985; o verbete "Ruina/Restauro" foi traduzido por Mario Feliciano e Teresa Bento.

Cassese, Antonio, 7 diritti umani nel mondo contemporáneo, Editori Laterza, Roma-Bari, 1988.

Chang, David Wen-Wei, China Under Deng Xiaoping, MacMil-lan, Londres, 1991.

259

Page 131: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

Chesneaux, Jean, Modernité-monde, Éditions La Découverte, Paris, 1989.

Claude Jr., Inis L., States and the Global System (Politics, Law and Organization), MacMillan Press, Londres, 1988.

Collingsworth, Terry, Gold, F.William e Harvey, Pharis F., "La­bor and Free Trade: Time for a Global New Deal", Foreign Affairs, vol. 73, n° 1, Nova York, 1994, pp. 8-13.

Cox, Robert W., "On Thinking About Future World Order", World Politics, vol. XXVIII, n°. 2, Princeton, 1976, pp. 175-196.

Deutsch, Karl, Análise das relações internacionais, trad, de Maria R. Ramos da Silva, Editora Universidade de Brasília, Brasília, 1982. . Las naciones en crisis, trad, de Eduardo L. Suarez, Fondo de Cultura Económica, México, 1981.

Eisenstadt, S. N., "Social Change, Diferentiation and Evolution", American Sociological Review, vol. 29, n° 3, 1964, pp. 375-386. . Modernização: protesto e mudança (Modernização de So­ciedades Tradicionais), trad, de José Gurjão Neto, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1969. , "Theories of Social and Political Evolution and Develop­ment", publicado por: Unesco, The Social Sciences (Pro­blems and Orientations), Mouton, The Hague, Paris, 1968, pp. 178-191.

Elias, Norbert, Sobre el tiempo, trad, de Guillermo Hirata, Fondo de Cultura Económica, México, 1989.

Elliott, J. H., El Viejo Mundo y el Nuevo (1492-1650), trad, de Rafael Sanchez Mantero, Alianza Editorial, Madri, 1984.

Ellul, Jacques, The Technological Society, trad, de John Wilkin­son, Alfred A. Knopf, Nova York, 1967.

Engardio, Peter e Einhorn, Bruce, "Vietnam: Asia's Nest Riger?", Business Week, 23 de maio de 1994, pp. 48-55.

Enzensberger, Hans Magnus, Elementos para uma teoria dos meios de comunicação, trad, de Helena Parente Cunha e Moema Parente Angel, Edições Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1978.

Estwell, John, Milgate, Murray e Newman, Peter (editores), The Invisible Hand, MacMillan Press, Londres, 1989.

Featherstone, Mike (editor), Global Culture (Nationalism, Glo­balization and Modernity), Sage Publications, Londres, 1990

260

B I B L I O G R A F I A

Ferguson, CA., "Foreword" em: B.B. Kachru (editor), The Other Tongue: English Across Cultures, Pergamon, Oxford, 1983, citado por Robert Phillipson, Linguistic Imperia­lism, Oxford University Press, Oxford, 1992.

Frank, Andre Gunder, Crisis: In the World Economy, Heine-mann Educational Books, Londres, 1980. , Critique and anti-critique (Essays on Dependence and Re­formism), The MacMillan Press, Londres, 1984.

Freud, Sigmund, Obras completas, 3 tomos, trad, de Luis Lopez Ballesteros y de Torres, Editorial Biblioteca Nueva, Madri, 1981, especialmente tomo III, cap. CI: "Una Dificultad del Psicoanálisis!^—-

Friedman, Milfon, Capitalismo e liberdade, trad, de Luciana Carli, Abril Cultural, São Paulo, 1984.

Froebel, Folker, Heinrichs, Jürgen e Kreye, Otto, The New International Division of Labour (Structural Unemploy­ment in Industrialised Countries and Industrialization in Developing Countries), trad, de Pete Burgess, Cambridge University Press, Cambridge, 1980.

Fukuyama, Francis, O fim da História e o último homem, trad, de Aulyde Soares Rodrigues, Editora Rocco, Rio de Janeiro, 1992.

Galbraith, John Kenneth, O novo Estado industrial, trad, de Al­varo Cabral, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1968.

Galuszka, Peter, Kranz, Patricia e Reed, Stanley, "Russia's New Capitalism", Business Week, 10 de outubro de 1994, pp. 36-40.

Gardner, Richard N. e Milikan, Max F. (editores), The Global Partnership (International Agencies and Economic Deve­lopment), Frederick A. Praeger Publishers, Nova York, 1968.

Geertz, Clifford, Savoir local, savoir global (Les Lieux du Savoir), trad, de Denise Paulme, Presses Universitaires de France, Paris, 1986.

Giddens, Anthony, As conseqüências da modernidade, trad, de Raul Fiker, Editora Unesp, São Paulo, 1991.

Giddens, Anthony e Turner, Jonathan H. (editores), Social Theory Today, Polity Press, Cambridge, 1987.

Gilpin, Robert, La economia política de las relaciones internacio­nales, trad, de Cristina Pina, Grupo Editor Latinoamerica­no, Buenos Aires, 1990.

Goodmann, John B. e Pauly, Louis W., "The Obsolescence of Cap­ital Controls? Economic Management in an Age of Global

261 V

Page 132: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

Markets", World Politics, vol. 46, n°. 1, Princeton, 1993, pp. 50-82.

Gouldner, Alvin W., El futuro de los intelectuales y el ascenso de la nueva clase, trad, de Néstor Miguez, Alianza Editorial, Madri, 1985.

Gramsci, Antonio, Maquiavel, a política e o Estado moderno, trad, de Luiz Mario Gazzaneo, Editora Civilização Brasi­leira, Rio de Janeiro, 1968.

Grunwald, Joseph e Flamm, Kenneth, The Global Factory (Fo­reign Assembly in International Trade), The Brookings Ins­titution, Washington, 1985.

Haas, Ernst B., Williams, Mari Pat e Babai, Don, Scientists and World Order (The Uses of Technical Knowledge in Inter­national Organizations), University of California Press, Berkeley, 1977.

Habermas, Jürgen, O discurso filosófico da modernidade, trad, de Ana Maria Bernardo, Publicações Dom Quixote, Lis­boa, 1990.

Hagen, Everett E., On the Theory of Social Change (How Econo­mic Growth Begins), The Dorsey Press, Home wood, Illinois, 1962. , (Org.), Planeación del desarrollo económico, trad, de Fernando Rosenzweig, Fondo de Cultura Económica, México, 1964.

Harvey, David, Condição pós-modema (Uma Pesquisa sobre as Origens da Mudança Cultural), trad, de Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves, Edições Loyola, São Paulo, 1992.

Hilferding, Rudolf, O capital financeiro, trad, de Reinaldo Mestrinel, Nova Cultura, São Paulo, 1985.

Hobsbawm, Eric e Ranger, Terence (orgs.), A invenção das tradições, trad, de Celina Cardim Cavalcante, Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1984.

Hoffmann, Stanley, "International Systems and International Law", publicado por Klaus Knorr e Sidney Verba (edi­tores), The International System (Theoretical Essays), Prin­ceton University Press, Princeton, 1967.

Horita, Nilton, "Dinheiro Roda o Mundo Atrás de Investimen­tos", O Estado de S. Paulo, São Paulo, 25 de setembro de 1994, p. B-12.

Horkheimer, Max, Eclipse da razão, trad, de Sebastião Uchoa Leite, Editorial Labor do Brasil, Rio de Janeiro, 1976.

Huntington, Samuel P., "Transnational Organizations in World Politics", World Politics, vol. XXV, n°. 3,1973.

262

B I B L I O G R A F I A

Ianni, Octavio, A sociedade global, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1992. A T. edição é de 1993. . Imperialismo na América Latina, 2" edição, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1988. . Imperialismo e cultura, Editora Vozes, Petrópolis, 1976.

Inkles, Alex, "The Emerging Social Structure of the World", World Politics, vol. XXVII, n° 4, Princeton, 1975, pp. 467-495.

International Social Science Journal, n°. 117, Unesco, Paris, 1988, edição especial sobre "The Local-Global Nexus".

Jacoby, Henry, The Bureaucratization of the World, trad, de Eveline L, Kanes, University of California Press, Berkeley, 1976 . /^

Jameson, F^edric, El posmodernismo o la lógica cultural del capi­talismo avanzado, trad, de José Luis Pardo Torio, Edicio­nes Paidós, Barcelona, 1991.

Kafka, Franz, "O Brasão da Cidade", trad, de Modesto Carone, Folha de S. Paulo, São Paulo, 3 de janeiro de 1993, p. 5 do caderno "Mais".

Keohane, Robert O., Después de la hegemonia (Cooperación y Discordia en la Política Económica Mundial), trad, de Mirta Rosenberg, Grupo Editor Latinoamericano, Buenos Aires, 1988.

Keohane, Robert O. e Nye, Joseph S., Power and Interdepen­dence, 2". edição, Harper Collins Publishers, Nova York, 1989.

Kerr, Clark, Dunlop, John T., Harbison, Frederick H. e Myers, Charles A., Industrialism and Industrial Man (The Pro­blem of Labor and Management in Economic Growth), Harvard University Press, Cambridge, 1960.

Key, Wilson Bryan, A era da manipulação, trad, de Iara Bi-derman, Scritta Editorial, São Paulo, 1993.

Ki-Zerbo, Joseph, História da África negra, 2 vols., 2a. edição, Pu­blicações Europa-América, Lisboa, s/d.

Kliksberg, Bernardo, Cómo transformar al Estado? (Más Allá de Mitos y Dogmas), Fondo de Cultura Económica, México, 1993.

Knizek, Ian, "El Extraño Encanto de las Ruinas", Plural, n°. 186, México, 1987, pp. 31-38.

Knorr, Klaus e Verba, Sidney (editores), The International System (Theoretical Essays), Princeton University Press, Princeton, 1961.

Koves, András, "Integration into World Economy and Direction of Economic Development in Hungary", Acta Oeconomi-ca, vol. 20, n°.* 1-2, pp. 107-126.

263

Page 133: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

. "Socialist Economy and the World-Economy", Review, vol. V, n? 1,1981, pp. 113-133.

Kurz, Robert, O colapso da modernização, trad, de Karen Elsabe Barbosa, Editora Paz e Terra, São Paulo, 1992.

Labrousse, Alain e Walion, Alain (Direction), La planète des dro­gues (Organisations Criminelles, Guerres et Blanchiment), Editions du Seuil, Paris, 1993.

Lafaye, Jacques, Los conquistadores, trad, de Elsa Cecilia Frost, Siglo Veintiuno Editores, México, 1978.

Landes, David S., The Umbound Prometheus (Technological Change and Industrial Development in Western Europe from 1750 to the Present), Cambridge University Press, Cambridge, 1987.

Laszlo, Ervin, La visione sistêmica del mondo, trad, de Davide Cova, Grupo Editoriale Insieme, Recco, Itália, 1991.

Latouche, Serge, L'occidentalisation du monde, Éditions La Découverte, Paris, 1989.

Lenin, V.l., Imperialism, The Highest Stage of Capitalism, Inter­national Publishers, Nova York, 1939.

Lerner, Daniel, The Passing of Traditional Society (Modernizing the Middle East), The Free Press, Nova York, 1966.

Lerner, Daniel e Lasswell, Harold D. (editores), The Policy Scien­ces, Stanford University Press, Stanford, 1965.

Levitt, Theodore, A imaginação de marketing, trad, de Auriphe-bo Berrance Simões, Editora Atlas, São Paulo, 1991.

Levy, Pierre, La Machine Univers (Création, Cognition et Culture Informatique), Éditions La Découverte, Paris, 1987. , As tecnologias da inteligência (O Futuro do Pensamento na Era da Informática), trad, de Carlos Irineu da Costa, Editora 34, Rio de Janeiro, 1993.

Levy, Jacques e Retaille, Denis, Le monde: espaces et systèmes, Presses de la Fondation Nationale des Sciences Politiques &Dalloz, Paris, 1992.

Lipietz, Alain, Le capital et son espace, Éditions La Découverte-Maspero, Paris, 1983.

Luhmann, Niklas, Sociologia do direito, 2 vols., trad, de Gustavo Bayer, Edições Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1985. . Sociedad y sistema: la ambición de la teoria, trad, de Santiago López Petit e Dorothée Schmitz, Ediciones Paidós Ibérica, Barcelona, 1990. ; "The World Society as a Social System", International Journal of General Systems, vol. 8,1982, pp. 131-138.

Luxemburg, Rosa, A acumulação do capital, trad, de Marijane Vieira Lisboa e Otto Erich Walter Maas, Nova Cultural, São Paulo, 1985.

264

B I B L I O G R A F I A

Lyotard, Jean-François, O pós-moderno, trad, de Ricardo Corrêa Barbosa, José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1986.

MacEwan, Arthur, "Notes on U.S. Foreign Investment and Latin America", Monthly Review, vol. 45, n° 8, Nova York, 1994, pp. 15-26.

Macpherson, C.B., The Political Theory of Possessive Individ­ualism, Oxford University Press, Oxford, 1990.

Mandei, Ernest, O capitalismo tardio, trad, de Carlos Eduardo Silveira Matos, Regis de Castro Andrade e Dinah de Abreu Azevedo, Abril Cultural, São Paulo, 1982.

Mannheim, Kan, Man and Society in an Age of Reconstruction, Harcouft, Brace and Co, Nova York, 1949.

Manor, James (Editor), Rethinking Third World Politics, Long­man, Londres, 1991.

Marcus, George E., "Past, Present and Emergent Identities: Re­quirements for Ethnographies of Late Twentieth Century Modernity Worldwide", Anais da 17a. Reunião, Associa­ção Brasileira de Antropologia, Florianópolis, 1990, pp. 21-46.

Marcuse, Herbert, One-Dimensional Man, Beacon Press, Boston, 1966. . "Some Social Implications of Modern Technology", Stud­ies in Philosophy and Social Science, vol. DC, n". 3, Nova York, 1941, pp. 414-439.

Marshall, T. H., Cidadania, classe social e status, trad, de Meton Porto Gadelha, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1967.

Marx, Karl, Wage-Labour and Capital, International Publishers, New York, 1933. Sem indicação do tradutor. , Elementos fundamentales para la critica de la economia política (Borrador) 1857-1858, 3 vols., trad, de José Aricó, Miguel Murmis e Pedro Scarón, Siglo Veintiuno Editores, México, 1971-1976. . El capital, 3 tomos, trad, de Wenceslao Roces, Fondo de Cultura Económica, México, 1946-47. . "Carta" a Engels, datada de Londres, 8 de outubro de 1858, em Marx e Engels, Selected Correspondence, Pro­gress Publishers, Moscou, 1965, pp. 110-111. . Progreso técnico y desarrollo capitalista, trad, de Raul Crisafio e Jorge Tula, Ediciones Pasado y Presente, Mé­xico, 1982. , "Discurso pronunciado na festa de aniversário do Peo­ple's Paper, em: Marx e Engles, Textos, 3 vols., Edições Sociais, São Paulo, 1977, vol. Ill, pp. 298-299.

Page 134: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

266

B I B L I O G R A F I A

Mommsen, Wolfgang J., The Age of Bureaucracy (Perspective» on the Political Sociology of Max Weber), Harper ix Kow Publishers, Nova York, 1974. . The Political and Social Theory of Max Weber, Polity Press, Oxford, 1989.

Moore, Wilbert E., "Global Sociology: The World as a Slngultl System", The American Journal of Sociology, vol. I.XXI, n? 5, Chicago, 1966.

Morishima, Michio, Capitalisme et Confiicionisme (Technologic Occidentale et Éthique Japonaise), trad, de Anne de Rufl <• Pierre Emmanuel Dauzat, Flammarion, Paris, 1986.

Nandy, Ashis (Editor), Science, Hegemony and Violence (A Requiem for Modernity), The United Nations University, Tokyo, 1990.

Nebrija, Antonio de, citado por T. Todorov, A conquista da América, trad, de Beatriz Perrone Moisés, Martins FontM Editora, São Paulo, 1983.

Nelson, Benjamin, "On Orient and Occident in Max Weber", .S'o cial Research, Spring 1976, Nova York, pp. 114-129.

Norbu, Dawa, Culture and the Politics of Third World National ism, Routledge, Londres, 1992.

O'Brien, Richard, Global Financial Integration: The End of Geo­graphy, Council on Foreign Relations Press, Nova York, 1992.

Oliver, Roland, A experiência africana, trad, de Renato Aguiar, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1994.

Ortiz, Renato, Mundialização e cultura, Editora Brasiliense, S3o Paulo, 1994.

Palloix, Christian, Les firmes multinationales et le procès d'inter­nationalisation, François Maspero, Paris, 1973. . "The Self-Expansion of Capital on a World Scale", The Review of Radical Political Economy, vol. 9, n° 2, Nova York, 1977, pp. 128.

Panikkar, A dominação ocidental na Ásia, trad, de Nemésio Sal­les, Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1977,3'. edição.

Parsons, Talcott, Politics and Social Structure, the Free Press, Nova York, 1969. . Sociedades (Perspectivas Evolutivas e Comparativas), trad, de Dante Moreira Leite, Livraria Pioneira Editora, São Paulo, 1969. . O sistema das sociedades modernas, trad, de Dante Moreira Leite, Livraria Pioneira Editora, São Paulo, 1974.

267

. "Futuros Resultados do Domínio Britânico na índia", em: Marx e Engels, Textos, 3 vols., Edições Sociais, São Paulo, 1977, vol. Ill, pp. 292-297. . Miséria da filosofia, trad, de José Paulo Netto, Editora Ciências Humanas, São Paulo, 1982.

Marx, Karl e Engels, Friedrich, Selected Correspondence, Pro­gress Publishers, Moscou, 1965. . Textos, 3 vols., Edições Sociais, São Paulo, 1977. Sem in­dicação do tradutor. . Manifesto do Partido Comunista, trad, de Marco Aurélio Nogueira e Leandro Konder, Editora Vozes, Petrópolis, 1988.

Mason, Edward S., Economic Planning in Underdeveloped Areas: Government and Business, Fordham University Press, Nova York, 1958.

Mattelart, Armand, La Communication-Monde (Histoire des Idées et des Stratégies), Éditions La Découverte, Paris, 1992. L'internationale publicitaire, Éditions La Découverte, Pa­

ris, 1989. Mayer, Arno J., A força da tradição (A Persistência do Antigo Re­

gime), trad, de Denise Bottmann, Companhia das Letras, São Paulo, 1987.

McClelland, David C , The Achieving Society, Irvington Publishers, Nova York, 1976.

McLuhan, Marshall, "A Imagem, o Som e a Fúria", em: Bernard Rosenberg e David Monning White (orgs.), Cultura de massa, trad, de Octávio Mendes Cajado, Editora Cultrix, São Paulo, 1973, pp. 563-570.

McLuhan, Marshall e Powers, Bruce R., The Global Village (Transformation in World Life and Midia in the 21st Cen­tury), Oxford University Press, Nova York-Oxford, 1989.

McLuhan, Marshall, Fiore, Quentin e Agel, Jerome, Guerra y paz en la aldea global, trad, de José Méndez Herreras, Ediciones Martinez Roca, Barcelona, 1971.

McQuade, Lawrence (editor), East-West Trade (Managing En­counter and Accomodation), Westview Press, Boulder, Colorado, 1977.

Mesarovic, Mihajlo e Pestel, Eduard, Mankind at the Turning Point (The Second Report to the Club of Rome), E. P. Dut-ton and Reader's Digest Press, Nova York, 1974.

Michalet, Charles-Albert, O capitalismo mundial, trad, de Sal­vador Machado Cordaro, Editora Paz e Terra, Rio de Ja­neiro, 1984.

Modelski, George, Long Cycles in World Politics, University of Washington Press, Seattle e Londres, 1987.

Page 135: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

. "Evolutionary Universais in Society", American Sociolo­gical Review, vol. 29, n? 3, Nova York, 1964, pp. 339-357.

Pasolini, Pier Paolo, Os jovens infelizes, organização de Michel Lahud, trad, de Maria Betânia Amoroso, Editora Brasi­liense, São Paulo, 1990.

Paz, Octavio, A outra voz, trad, de Wladir Dupont, Editora Sici­liano, São Paulo, 1993.

Perroux, François, "Grande Firme et Petite Nation", Economies etsociétés, tomo II, n? 9, Librairie Droz, Genève, 1968, pp. 1847-1867.

Phillipson, Robert, Linguistic Imperialism, Oxford University Press, Oxford, 1992.

Polanco, Xavier (org.), Naissance et development de la science-monde, Editions La Découverte, Paris, 1990.

Poster, Mark, The Mode of Information: Poststructuralism and Social Context, Polity Press, Cambridge, 1990.

Postman, Neil, Technopoly (The Surrender of Culture to Technology), Vintage Books, Nova York, 1993.

Reich, Robert B., The Work of Nations (Preparing Ourselves for 21st Century Capitalism), Alfred A. Knopf, Nova York, 1991.

Ricoeur, Paul (org.), As culturas e o tempo, trad, de Gentil Titton, Orlando dos Reis e Ephraim Ferreira Alves, Editora Vozes, Petrópolis, 1975.

Robertson, Roland, Globalization (Social Theory and Global Culture), Sage Publications, Londres, 1992.

Rodinson, Máxime, Islam y Capitalismo, trad, de Marta Rojz-man, Siglo Veintiuno Editores, Buenos Aires, 1973.

Rosenberg, Bernard e White, David Manning (orgs.), Cultura de massa, trad, de Octavio Mendes Cajado, Editora Cultrix, São Paulo, 1973.

Said, Edward W., Orientalismo (O Oriente como Invenção do Ocidente), trad, de Tomás Rosa Bueno, Companhia das Letras, São Paulo, 1990.

Sanchez, Paulo, "Executivos Adotam o Idioma Inglês", O Estado de S. Paulo, São Paulo, 23 de julho de 1993, p. 1 do cader­no "Empresas".

Santos, Milton, Técnica, Espaço, Tempo (Globalização e Meio Técnico-Científico Informacional), Editora Hucitec, São Paulo, 1994.

Schachter, Osear, International Law in Theory and Practice, Martinus Nijhoff Publishers, Dordrecht-Boston-Londres, 1991.

268

B I B L I O G R A F I A

Schmookler, Jacob, Invention and Economic Growth, Harvard University Press, Cambridge, 1966.

Schneider, Cynthia e Wallis, Brian (editores), Global Television, Wedge Press, Nova York, 1988.

Schonfield, Andrew, Modern Capitalism (The Changing Balance of Public and Private Power), Oxford University Press, Nova York, 1965.

Schroeder, Ralph, Max Weber and the Sociology of Culture, Sage Publications, Londres, 1992.

Schumpeter, Joseph A., The Theory of Economic Development, trad, de Redvers Opie, Oxford University Press, Nova York, 1961.

Seton-Watson, Hugh, Nations & States, Methuen, Londres, 1977.

Simmel, Georg, Sobre la Aventura (Ensayos Filosóficos), trad, de Güstau Muñoz e Salvador Mas, Ediciones Peninsula, Bar­celona, 1988, especialmente "Las Ruinas", pp. 117-125.

Smith, Anthony, La geopolítica de la información (Cómo la Cul­tura Occidental Domina el Mundo), trad, de Juan Utrilla, Fondo de Cultura Económica, México, 1984.

Smith, Richard, "The Chinese Road to Capitalism", New Left Review, n". 199, Londres, 1993, pp. 55-99.

Sombart, Werner, El Burgués, trad, de Victor Fernando, Edi­ciones Oresme, Buenos Aires, 1953.

Sontag, Susan, Ensaios sobre a fotografía, trad, de Joaquim Pai­va, Editora Arbor, Rio de Janeiro, 1981.

Sweezy, Paul M., "The Triumph of Financial Capital", Monthly Review, vol. 46, n? 2, Nova York, 1994, pp. 1-11.

Tanzi, Vito (Editor), Transition to Market (Studies in Fiscal Re­form), International Monetary Fund, Washington, 1993.

Tawney, R.H., A Religião e o surgimento do capitalismo, trad, de Janete Meiches, Editora Perspectiva, São Paulo, 1971.

The Economist, Londres: 25 de maio de 1991; 28 de setembro de 1991; 21 de janeiro de 1992; 19 de setembro de 1992; 30 de outubro de 1993.

The Group of Green Economists, Ecological Economics (A Practical Programme for Global Reform), Zed Books, Lon­dres, 1992.

Thompson, Paul, The Nature of Work (An Introduction to De­bates on the Labour Process), 2 a edição, MacMillan, Lon­dres, 1989.

Thurow, Lester, Head to Head (The Coming Economic Battle Among Japan, Europe and America), William Morrow and Company, New York, 1992.

269

Page 136: IANNI, Otavio - Teorias da Globalização

T E O R I A S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O

Tinbergen, Jan, "Wanted: A World Development Plan", publica­do por Richard N. Gardner e Max F. Millikan (editores), The Global Partnership (International Agencies and Econ­omic Development), Frederick A. Praeger Publishers, Nova York, 1968, pp. 417-431.

Todorov, Tzvetan, A conquista da América (A Questão do Ou­tro), trad, de Beatriz Perrone Moisés, Martins Fontes Edi­tora, São Paulo, 1983.

Troeltsch, E., El protestantismo y el mondo moderno, trad, de Eu­genio Imaz, Fondo de Cultura Económica, México, 1951.

Truchot, Claude, L'anglais dans le monde contemporain, Le Ro­bert, Paris, 1990.

Turner, Bryan S., "The Two Faces of Sociology: Global or Nation­al?", publicado por Mike Featherstone (editor), Global Culture (Nationalism, Globalization and Modernity), Sage Publications, Londres, 1990, pp. 343-358.

United Nations, Transnational Corporations in World Develop­ment, Nova York, 1978.

Vernon, Raymond, Tempestade sobre as multinacionais, trad, de Waltensir Dutra, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1980.

Vinogradov, V. A. e outros, "Toward an International Informa­tion System", International Social Science Journal, vol. XXXIII, n° 1,1981, pp. 10-49.

Wallerstein, Immanuel, El moderno sistema mundial, vols. l e u , trad, de Antonio Resines e Pilar Lopes Manez, Siglo Vein­tiuno Editores, México, 1979 e 1984. . The Modern World-System, vol. Ill, Academic Press, Nova York, 1989. , O capitalismo histórico, trad, de Denise Bottmann, Editora Brasiliense, São Paulo, 1985. , The Politics of the World Economy, Cambridge Universi­ty Press, Cambridge, 1988. . The Capitalist World Economy, Cambridge University Press, Cambridge, 1991. . "America and the World: Today, Yesterday and Tomor­row", Theory and Society, n". 21,1992, pp. 1-28. , "The USA in Today's World", Contemporary Marxism, a". 4, San Francisco, 1982, pp. 11-17. , Unthinking Social Science (The Limits of Nineteenth-Century Paradigms), Polity Press, Cambridge, 1991. . "World-Systems Analysis", publicado por Anthony Giddens e Jonathan H.Turner (editores), Social Theory To­day, Polity Press, Cambridge, 1987, pp. 309-324.

270

B I B L I O G R A F I A

Waterston, Albert, Development Planning (Lessons of Experi­ence), The John Hopkins Press, Baltimore, 1969.

Weber, Max, Historia económica general, trad, de Manuel Sán­chez Sarto, 2". edição, Fondo de Cultura Económica, México, 1956. . Economia y sociedad, 2 tomos, trad, de José Medina Echavarria, Juan Roura Parella, Eduardo García Máynez, Eugenio Imaz e Jose Ferrater Mora, 2". edição, Fondo de Cultura Económica, México, 1964. . Ensaios de sociologia e outros escritos, seleção de Mauri­cio Tragtenberg, Abril Cultural, São Paulo, 1974. , "Conferência sobre o Socialismo", publicado em: Émile Dürkheim e Max Weber, Socialismo, organização de Luis Carlos Fridman, Relume Dumará, Rio de Janeiro, 1993, pp. 85-Î28. , Â ética protestante e o espirito do capitalismo, trad, de M. Irene de Q. F. Szmrecsanyi e Tamas J. M. K. Szmrecsanyi, Livraria Pioneira Editora, São Paulo, 1967.

Wiener, Norbert, Cibernética e sociedade (O Uso Humano de Se­res Humanos), trad, de José Paulo Paes, Editora Cultrix, São Paulo, 1968.

Wolf, Eric R., Europe and the People Without History, University of California Press, Berkeley, 1982.

Wooley, Benjamin, Virtual Worlds (A Journey in Hype and Hy-perreality), Penguin Books, Londres, 1992.

World Development, vol. 8, m 7/8, Pergamon Press, Oxford, 1980, edição especial dedicada a "Religious Values and Development".

Worsley, Peter, The Third World (Culture and World Develop­ment), The University of Chicago Press, Chicago, 1964.

Wossner, Mark, "Success and Responsability", publicado por Bertelsmann, Annual Report 1992/92, Gütersloh, Alema­nha, 1993, pp. 4-7.

271