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Ivam Cabral* * *

Chove Muito lá ForaUma Arquitetura para a Morte

Gérard, a TragédiaDe Quem Sois?

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Ivam CabralColeção Primeiras Obras, 3Ivam Cabral (organizador)

Apoio Cultural

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Ivam Cabral* * *

Chove Muito lá ForaUma Arquitetura para a Morte

Gérard, a TragédiaDe Quem Sois?

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PrefácioUma Dramaturgia para a Redenção

erika riedel7

Chove Muito lá Fora13

Uma Arquitetura para a Morte31

Gérard, a Tragédia41

De Quem Sois?55

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Minha primeira impressão acerca de Ivam Cabral foi a de que ele era um dos mais talen-tosos atores que eu já havia visto em cena. Isso aconteceu em 2002, durante a encenação de De Profundis. Desde então decidi acompanhar de perto sua trajetória. Surpreendente é o mínimo que eu poderia dizer desta incrível jornada.

Ivam é muito mais do que um ator. É ence-nador, criador, dramaturgo, autor. Em essência, um homem do palco. Ler sua obra, onde quer que ela esteja, é sempre um prazer. Suas pala-vras fluem com a mesma graça e naturalidade de um rio que simplesmente segue seu curso.

Compulsivo, Ivam escreve quase na mesma proporção em que respira e sua linguagem segue a índole de sua multiplicidade. Ele nos

Uma dramaturgia para a redenção

Prefácio

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delicia sempre com seus escritos, que vão desde desabafos poéticos publicados em seu blog até minisséries de televisão. Seria preciso mais do que um livro inteiro para comentar toda a sua vasta produção. Mas quero me ater ao Ivam Ca-bral dramaturgo, que, neste livro, nos apresenta quatro de seus textos para teatro.

Antes de comentar sobre os textos, porém, gostaria de chamar a atenção do leitor para a escolha dos temas sobres os quais Ivam escre-ve. Sempre fugindo do lugar comum, ele nos oferece neste volume a possibilidade de viajar por épocas e paisagens das mais distintas e nos brinda com personagens de intensidade ímpar.

Um dos traços marcantes em sua escrita é a constatação de que a dor, inerente ao ser huma-no tanto quanto o amor, não escolhe favoritos, mas pode, a despeito de qualquer crença ou valor, irmanar a todos. Parece cruel? Mas se há crueldade na tristeza, há também poesia, e em sua obra Ivam não a deixa escapar.

Numa primeira leitura, a obra que aqui nos apresenta poderia ser considerada pessimista, no entanto, há nela também uma perspectiva

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contrária. Ainda que a solidão e a incomunica-bilidade muitas vezes levem suas personagens à morte, se vislumbra nelas uma esperança. E quando me refiro à esperança quero falar sobre afeto, sobre amor, sobre buscar, até quando as forças permitirem, um sentido que justifique a existência.

Observo nesta coleção de textos que o ine-xorável fim é precedido, quase sempre, por uma busca, uma luta, às vezes até insana, por vida. Por outra vida, talvez. Por essa chama que pare-ce sempre querer escapar. Chama que deveria aquecer não o corpo, mas a alma. Chama que insiste em iluminar as entranhas.

Este volume nos apresenta textos que fazem pensar em redenção. Mas se não há redenção possível enquanto a chama está acesa, talvez também não haja quando ela se apagar. As-sim, a melancolia se enreda na trama singela e dolorida do cotidiano... Assim, cada um tenta espantar a solidão que teima em se instalar ao lado, mesmo quando se está acompanhado...

Assim, sufocam-se dores e segue a angústia de uma busca eterna. Etérea.

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Busca que procura refúgio nos afetos es-quecidos. E só encontra dor. Uma dor que se traveste de saudade de um tempo em que a feli-cidade parecia, e talvez até tenha sido, possível.

Até que o desabafo sombrio de alguém que vai morrer nos atira no rosto a verdade irrefutá-vel de que às vezes as coisas não valem mesmo a pena.

Difícil. E perturbador. Falar sobre dor e desengano sem cair na pieguice é um desafio que Ivam vence com incrível propriedade. Por isso a leitura destes textos, embora não tenham sido escritos com essa finalidade, vai atiçar e assoprar as entranhas de cada leitor. E é preciso estar preparado para o inevitável, piegas ou não, aperto no coração.

Para finalizar preciso ainda dizer que, ao longo deste livro, Ivam nos coloca como teste-munhas de que nem sempre o que transborda alivia. E eu pergunto: E se não houver alívio possível?

Não, Ivam não vai responder. Nem eu espe-rava que o fizesse.

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Porque, no fundo, eu e você sabemos que talvez não haja realmente...

erika riedel

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Chove Muito lá Fora

“What is your substance, whereof are you made,That millions of strange shadows on you tend?”

William Shakespeare

“Há uma região onde, se ela abandona o quase silêncio, esse murmúrio do implícito onde a

mantinha a evidência clássica, é para recompor-se num silêncio sulcado de gritos, no silêncio da

interdição, da vigília e da desforra.”Michel Foucault

Dramatis Personae

Primeira MulherSegunda Mulher

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VelhoProfessora de InglêsHomem

* * *

(Noite chuvosa. No fundo do palco, uma imen-sa árvore com bolas e luzes coloridas. Uma mú-sica melancólica e nostálgica invade a cena. No lado esquerdo do palco, uma imensa cadei-ra preta. Nela, a primeira mulher penteia seus cabelos, enquanto cantarola trechos de uma canção. Do lado direito, uma cadeira, também preta, bem menor do que a primeira)

Segunda Mulher – (Entrando) Não consigo entender. Por que esta angustia? (Com dor) Por quê? Por que, meu Deus?

Primeira Mulher – (Com desdém) Você acha que Ele poderia te ouvir?

Segunda Mulher – Ele? Quem me ouviria?

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Primeira Mulher – Esse teu Deus, aí.

(Silêncio)

Segunda Mulher – Quanto tempo ainda?

Primeira Mulher – (Feliz) Meia hora!

(Entra a Professora de Inglês. Aparenta qua-renta anos. Tem óculos imensos e alguns livros embaixo do braço. Senta-se na cadeira da direi-ta do palco. Sua presença é de uma solidão e melancolia imensas)

Segunda Mulher – E esse tempo que não passa!

(Silêncio)

Professora de Inglês – What is your substan-ce, whereof are you made?

(Um telefone que toca)

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Primeira Mulher – (Num súbito) Não atenda!

(O telefone continua a tocar. Nada acontece. Silêncio)

Segunda Mulher – (Depois de muito tempo)Tenho medo.

Primeira Mulher – Não se preocupe. Agora falta pouco.

Segunda Mulher – E por que isso acontece com a gente?

Primeira Mulher – Você não precisa ter medo. Confie em mim e tudo vai dar certo.

(O telefone toca mais uma vez. Agora dois to-ques apenas)

Segunda Mulher – E se forem eles?

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(Uma música melancólica. A segunda mulher cantarola toda a canção. A musica chega ao final. Silêncio)

Primeira Mulher – Eu me lembro. Quando o telefone tocava... É, eram outros tempos...

Primeira Mulher – Então ele aparecia. Me trazia chocolates e eu então acreditava na vida.

(A Segunda Mulher corre ao telefone)

Segunda Mulher – (Tirando o telefone do gancho) Alô... (Desesperada) Não! (Desliga com fúria) Malditos!

(A Professora de Inglês gargalha enquanto fala algumas palavras ininteligíveis)

Primeira Mulher – Eu disse. Não adianta. Estamos sozinhas.

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Segunda Mulher – (Baixo) Eu quero morrer!

Primeira Mulher – Pare com isso! (Carinho-sa) Vem... vem... Deixe-me penteá-la.

Professora de Inglês – That millions of strange shadows on you tend?

(A mesma música melancólica. A Segunda Mu-lher senta-se na cadeira preta vazia. A Primeira Mulher começa a acariciá-la. Um Velho entra em cena e acende as luzes da enorme árvore. O Velho sai. Trovões)

Primeira Mulher – Não era você que não tinha medo da chuva?

Segunda Mulher – Quando papai chegava e eu estava na rua brincando com as poças d’água... (Triste depois de um tempo) Ma-mãe dizia que eu parecia com os meninos da rua...

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Primeira Mulher – Mas quem apanhava era eu. Claro, eu te defendia. (Pausa) Nossa, quanta tristeza!

Segunda Mulher – Eu era feliz!

(Mais trovões. As luzes da árvore se apagam. Por alguns instantes a cena fica totalmente es-cura. A Professora de Inglês solta um profundo gemido)

Segunda Mulher – (Agarrando-se à Primeira Mulher) Tenho medo!

Professora de Inglês – How long!

Primeira Mulher – Meia hora. É tempo de-mais!

Segunda Mulher – Mas... e se eles não vierem?

Primeira Mulher – Voltaremos pra casa!

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Segunda Mulher – Sim. Se eles não vierem, voltaremos pra casa!

Primeira Mulher – Sabe onde fica a nossa casa?

(Pausa longa)

Primeira Mulher – (Melancólica) É. Quantas vezes não me deixaram ver a chuva. Eu chorava de medo. A solidão aumentava e o tempo parecia não passar.

(Mais uma vez o telefone toca. Cinco vezes).

Professora de Inglês – (Depois de um silên-cio) Hello... hello...

(Uma campainha que toca)

Segunda Mulher – Serão eles?

Primeira Mulher – Espere.

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(A Primeira Mulher sai de cena. A Professora de Inglês levanta-se e vai até o telefone)

Primeira Mulher – (Voltando) Um senhor... Quer falar com você.

Segunda Mulher – (Com espanto) Comigo? (Pausa) O que ele quer?

Primeira Mulher – Disse que precisa te ver.

Segunda Mulher – (Patética) E se for um deles?

Primeira Mulher – (Resoluta) Não acredito.

Segunda Mulher – (Amedrontada) Mande-o embora. Diga que não estou.

(A música melancólica volta a tocar. A Pro-fessora de Inglês dirige-se mais uma vez à sua poltrona. Cruza as pernas de maneira muito sensual)

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Primeira Mulher – Tirem essa música, pelo amor de Deus... (Num grito) Tirem essa música!

(Silêncio)

Segunda Mulher – Por que você gritou?

(Mais silêncio)

Primeira Mulher – Eu nunca sei de nada. Nunca me lembro de nada.

(Entra o Velho fechando um guarda-chuva)

Velho – Chove muito lá fora!

Segunda Mulher – Não o esperávamos agora.

Velho – Não me ouviu dizer que chove muito lá fora?

Primeira Mulher – Tirem essa música, pelo amor de Deus!

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Velho – O que há com ela?

Segunda Mulher – Perdeu o marido. O pobre coitado era doente do coração. Foi fazer uma cirurgia e não suportou....

Velho – Por isso grita desse jeito?

Segunda Mulher – Passa os dias assim. Nunca mais será a mesma... Pobrezinha!

Velho – E você?

Segunda Mulher – (Com espanto) Eu?

Velho – Você mesma. Como soube que nós a procurávamos?

Segunda Mulher – (Aponta para a Primeira Mulher) Ela... Foi ela quem me contou.

Primeira Mulher – Por favor. Vou dizer ape-nas mais uma vez. Desliguem esta música!

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(A música para. Silêncio)

Segunda Mulher – Não ligue para ela, meu senhor... (Tira dos bolsos um enorme pente. Para a Primeira Mulher) Toma. Sossegue-se!

Primeira Mulher – Mas o tempo... É verdade que meia hora passa rápido demais?

Velho – (Com piedade) Pobrezinha!

(O telefone toca. Os três olham para o telefone como autômatos. A Professora de Inglês, irrita-díssima, levanta-se e vai ao telefone)

Professora de Inglês – (Atendendo ao tele-fone) Shit! (Desliga o telefone. Volta a sua posição).

Segunda Mulher – Tudo bem, tudo bem. Agora eu gostaria que o senhor se retirasse.

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Velho – Não se preocupe. Não me demorarei, prometo. Eu só preciso esperar um pouco mais.

Segunda Mulher – O que o senhor espera?

(A Professora de Inglês cruza as pernas da mes-ma maneira sensual)

Velho – (Olhando para a Primeira Mulher com uma certa candura) Quando pequena, eu a via brincar com as poças d’água.

Segunda Mulher – Era o senhor, então?

Velho – É que estou velho demais. Quando se chega a isso, não se teme nem a morte.

Primeira Mulher – (Para a Segunda Mulher, com carinho) Por favor, peçam para desliga-rem a música, querida.

(O telefone toca novamente. Ninguém se im-porta).

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Segunda Mulher – Música? O senhor por acaso ouve alguma música aqui?

(Tocam a campainha da rua)

Velho – A campainha!

Primeira Mulher – Eu atendo! (Sai)

Velho – E se forem eles?

Segunda Mulher – O que o senhor tem a ver com isso?

Velho – É. Eu não tenho nada a ver com isso.

(Entra um Homem. A Professora de Inglês co-meça a balbuciar palavras ininteligíveis)

Segunda Mulher – (Com espanto, ao homem) Saia daqui! (Olha em volta. Em desespero) Levem-no daqui!

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Primeira Mulher – (Entrando) O que está acontecendo?

Segunda Mulher – (Desesperada) Por favor, levem-no daqui!

Homem – (Ao Velho) O que há com ela?

Velho – (Confidencial ao Homem) Ficou assim desde que perdeu o marido na guerra!

(A Primeira Mulher coloca a segunda para sentar-se na cadeira da esquerda)

Homem – E o senhor?

Velho – (Com orgulho) Amigo da família.

Homem – (Cumprimentando-o) Muito prazer!

Velho – O prazer é todo meu, senhor.

Primeira Mulher – Por favor, falem um pouco mais baixo. Ela se descontrola com muita

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facilidade. Disseram que é histérica. Eu não sei muito bem o que é isso. (Pequena pausa) Ela precisa descansar.

Velho – Perdoem-nos.

Homem – Não era a nossa intenção...

(Silêncio. A Professora de Inglês levanta-se, diz outras palavras ininteligíveis e sai de cena)

Homem – E como chove!

(Ouvem-se trovões fortes)

Segunda Mulher – Pois é. Como chove!

(A mesma música melancólica vem surgindo lentamente)

Primeira Mulher – (Envergonhada) É... esses sons... que coisa estúpida a lembrança, não acham?

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Velho – É. A música...

Homem – (Baixo) Música triste....

(A luz lentamente começa a descer enquanto a música aumenta. O Velho e o Homem saem de cena. Aos poucos, a Segunda Mulher começa a cantarolar trechos da canção e vai se sentar na imensa cadeira da esquerda, enquanto penteia seus enormes cabelos)

Segunda Mulher – Não consigo entender. Por que esta angustia? (Com dor) Por quê? Por que, meu Deus?

Primeira Mulher – (Com desdém) Você acha que Ele poderia te ouvir?

Segunda Mulher – Ele? Quem me ouviria?

Primeira Mulher – Esse teu Deus, aí.

(Silêncio)

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Segunda Mulher – Quanto tempo ainda?

Primeira Mulher – (Feliz) Meia hora!

(A luz cai em resistência, a árvore de Natal se ilumina e a música aumenta lentamente).

Fim

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Uma Arquitetura para a Morte

Uma Arquitetura para a Morte teve duas mon-tagens. A primeira estreou no Teatro Bela Vista, em São Paulo, em outubro de 1992, com a seguinte ficha técnica: Direção e Sonoplastia: Ivam Cabral. Iluminação: Rodolfo García Váz-quez. Cenário e Figurino: Camasi Guimarães. Elenco: Tatiana Szymczakowski

A segunda montagem, produzida pelo gru-po Performático Éos, com direção de Carlos Pasqualin, estreou num espaço improvisado pelo grupo no Maxi Shopping de Jundiaí/sp, em março de 1993, com a ficha técnica a seguir: Elenco: Antonio Martins, Daniela Biancardi, Juliana Fernandes, Juliana Galdino, Ricardo Grason, Rodrigo Fuentes, Silviane Ticher. Mú-sicos: Felipe Nivoloni, Eleonora Rodrigues.

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Assistência de Direção: Angela Janaina. So-noplastia: Marcel Garcia. Operação de Luz: Camila Mietto. Figurinos: Antonio Martins. Cenografia: Performático Éos. Iluminação: Sil-viane Thicher.

* * *

(Palco em penumbra. Uma escada imensa no centro. Do lado esquerdo, algumas cruzes co-bertas por capuzes negros. Ao pé da escada, e meio cambaleante, uma mulher muito pálida e também de negro)

(Depois de um tempo)

Estou aqui de novo. (Meio sem graça) Vamos nos reunir e falar de novo. (Pausa) Se pre-ciso for, tudo de novo. (Pausa maior) Está bem, está bem. Tentarei ser breve. E clara. Muito clara. (Pausa) Não, não. Eu estou calma. (Pausa) Não, não. (Angustiada) Deve ter acontecido ainda há pouco. (Olha friamente um espectador, confidencial) Eu

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tenho medo. Apesar de tudo, tenho medo. (Tentando manter a calma) Não se surpre-endam se eu chegar ao final sem conseguir superar o meu desespero. (Brusca) Ai! E essa alergia que toma o meu corpo... (Se coça) E esse louco que me olha. (Encara novamente o mesmo espectador) Meu sapato. Onde está o meu sapato?

(Black out. Música muito alta. É um trecho de Les contes d’Hoffmann, de Jacques Offenbach – Belle nuit, ô nuit’amour. A luz sobe lenta-mente. A mulher, andando em círculo. Vagaro-samente, depois rápida e ferozmente)

(Baixo) E de que me adiantou? Já fui todas as mulheres do mundo. E por elas vivi intensamente cada minuto. Chorei. Briguei. Amei. E me desiludi por diversas vezes. Já derramei o sangue que eu não tinha para

continuar viva.

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Já apodreci infinitas vezes e outras tantas. E escorreguei, levei comigo toda a humani-

dade. E me masturbei. E gozei todos os gostos, lambi todos os cus

e paus que me apareceram. Me entreguei loucamente a homens e mu-

lheres. E embebedei. Caí, levantei, escorreguei por espelhos que

me traziam sempre um sonho ou um pesa-delo qualquer.

Viver me custou meus próprios olhos. Nem enxergar valia mais a pena. O mundo apodrecido, as pessoas cheirando

a alho. E eu? O que me restou daqueles tempos nos ba-

lanços de minha rua, quando menina?

(Para bruscamente)

E todos os caminhos escoltados por cruzes enferrujadas. (Ri alto) Apesar de abalados

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com o que aconteceu... e logo comigo, não é? (Pausa) Mas eu juro. Por minha honra que sempre me vali pelo que pensava. Não pensem vocês que me enganei. Isso nun-ca acontece. Não. E aquela coisa horrível. Olha, eu tenho explicação. E posso ser cla-ra, se me deixarem. Se desejarem. (Pausa) A porra é que me restaram trinta minutos. Apenas trinta minutos para que eu me jus-tifique, e eu não consigo. (Num grito) Não consigo, entenderam?

(Black out rápido. A mulher está, agora, no alto da escada)

(Encarando o público) Tudo bem. Vou come-çar de novo. (Pausa) Boa-noite. (Pausa) Boa-noite. (Outra pausa) Todos prontos para dormir? É... apesar de abalados com o que aconteceu... (Para um homem da plateia) Você não se importa de esperar aí fora? Eu vou lhe dizer e prefiro ser direta. Mais tar-de... muito mais tarde ela fugiu. E disseram que a encontrariam, que não me preocupas-

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se. Afinal, o mundo está apodrecido por esta coisa gosmenta que eu experimento e não me canso nunca. Não me acostumo.

(Trovões)

(Pensativa) Casa da estrada... (Imitando uma velha) Venham, vamos logo. Daqui vamos embora. (Olha friamente para o alto) Ama-nhã devo abraçar outros ares, outros ventos. Quem sabe não me liberto? (Cobre os olhos) Não pensei que fosse assim, que falasse des-sa forma. Tudo tão simples... (Imitando a voz de uma velha) Vem, vem ver seu álbum de fotografias. Você acredita nisso?

(Começa a chover)

(Tentando se proteger da chuva) Ai meus olhos, ai minha alma. Quantos e quantos sonhos alimentei em meu berço até que me apa-receram vocês. (Encara a plateia) E em que podem me ajudar? Quem pode? Já não chegam esses anos todos em que vivi

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escondida? E agora todos vocês se acotove-lam pra ver a minha desgraça? Ah, quantas noites correndo pelo lamaçal imundo da-queles quintais... Enquanto dormiam eu trazia meus preceitos. Eu os aplicava ponto a ponto em todas as almas que encontrava no meio de todas as noites que até hoje me acompanham. (Cínica) Casa da estrada. E por uma paixão. Uma paixão apenas. O florescer da noite ou a grande flor da noite? (Pausa) Estou falando sério. Vou sair pela janela. Preciso de sua ajuda e é apenas por ela. (Cabisbaixa) E é muito sério isso.

(Recomeça o mesmo trecho da ópera de Offen-bach. Agora baixo, muito baixo. Clima de an-gústia)

(Baixo) Eu vou usar a sua bicicleta. (Imitando uma voz de velha) Não esquece de escovar os dentes. (Voz de criança) Sabe de uma coisa? Agora, pensando bem, eu gosto do grande florescer da noite.

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(Black out. A música continua)

(Ainda no escuro) Minha férea. Que jeito es-tranho este de classificar as pessoas... (Num grito) Acendam esta luz. Acendam esta porra! (A luz acende rapidamente. Ela está completamente nua, acariciando seu corpo) Acho que não tenho muito o que falar. Es-tava prestes a acabar com tudo. Com minha vida, inclusive. Daí, pensei que talvez seria um gesto muito simples. Não permitiria que viessem aqui e me encontrassem muda, calada, paralisada. Coisa besta. Passei tanto tempo tentando me concentrar, mudando gestos, expressões e até minha própria ma-neira de ser. Esqueci de mim. Lutei por amores que não conhecia e só me restou esta última meia hora aqui.

(Agarra-se, agora, em um imenso pano preto. Tenta se cobrir com timidez. Parece estar muito cansada. Aos poucos inicia novamente movi-mentos circulares. Muitas fotografias espalha-das pelo chão. Às vezes, apanha uma delas.

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Caminha lentamente. Ainda nua, apenas com alguns restos de tecido que a protegem)

(Num grunhido) Força... força... força...

(Desespera-se. Começa a correr pelo palco, ain-da em círculos, desesperadamente)

Não, não.

(Depois de muito correr, falta-lhe ar, o corpo meio cambaleante parece não ter mais forças. A pele empalidecida é branca, muito branca. Um sangue começa a escorrer pelos seus poros. Cai)

Casa do campo... não... não... não fiz nada por ela. Era apenas uma brincadeira. Uma bobagem de ideia que encontrei para tirar sarro de mim mesma. Só isso. Sabe por quê? Ela não morreu. Fui eu que morri. Por ela. Entendem? (Imita a voz de uma velha) Cui-dado, hein? (Imita voz de criança) Claro, claro, querida bisavó. (Normal) Agora eu

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morri. Para que a morte dela se justificasse. Para que o corpo dela recebesse uma bela sepultura. Não precisam mais se preocupar. (Falta ar) Ai... ai...

(Lentamente levanta-se ainda cambaleante)

Estou aqui. (Voz de velha) Aqui. (Voz de crian-ça) Bem aqui. (Posição de cruz, como se esti-vesse sendo crucificada. Voz normal) Aqui.

(Uma das cruzes encapuçadas incendeia. O foco em pino na mulher desce em resistência. Vozes em off parecem anunciar uma grande festa. Música alegre. Ao fundo, muito baixo, o trecho da ópera de Offenbach, enquanto a cruz encapuçada arde em chamas)

Fim

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Gérard, a Tragédia

Dramatis Personae

MargaridaEspírito MauGérard, de NervalJennyO Tio de MortefontaineUm atorVoz em off

Cena i

(Penumbra. Num teatro em Paris, há mais de um século. Um cartaz informa que está sendo representada a tragédia Fausto, de Goethe. Sons de órgãos, cânticos)

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Margarida – Ai! Ai! Quem me dera escapar aos meus pensamentos que se erguem con-tra mim!

Espírito Mau – Que diferente eras tu, Mar-garida, quando inocente de todo, subias ao altar, murmurando as orações desse velho livro, coração balançando entre as brinca-deiras infantis e o amor de Deus!

Margarida – Ai! Ai! Quem me dera escapar aos meus pensamentos que se erguem con-tra mim!

Espírito Mau – A ira celeste deixa-te acabru-nhada! Soa a trombeta: tremem as tumbas! E o teu coração, arrancado à morte pelas chamas eternas, estremece ainda!

Margarida – Se eu me visse longe daqui! Pa-rece que o som deste órgão me asfixia; estes cânticos dilaceram-me profundamente o coração.

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Espírito Mau – Esconde-te! O crime e a ver-gonha não podem ocultar-te!

Margarida – Que angústia a minha! Pesam-me estas colunas, a abóbada esmaga-me. Ar!

Espírito Mau – Esconde-te! Ar!...Luz!...Des-graçada de ti!

(Música muito alta. Black out. Tempo. Rapi-damente acende-se uma luz branca muito for-te. Margarida caída no chão. Black out. Mais uma vez acende-se a luz branca muito forte e Margarida está de joelhos, mãos prostradas no peito. Black out. Silêncio)

Cena ii

(Ruela de Paris. Um velho candeeiro se apaga. Margarida vem a correr. Para perto do candeei-ro. Entra Gérard. Está sôfrego)

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Margarida – Se és homem, tem dó da minha miséria...

Gérard – Os teus gritos vão acordar a cidade!

Margarida – E quem foi que te deu tal po-der sobre mim? Tem compaixão, deixa-me ver!

Gérard – Mas foste tu que deixaste-me. A mor-rer sob meus olhos. Tu, a mais bela de todas. Conseguirei eu resistir à vista desta dor?

Margarida – Estou inteiramente nas tuas mãos. Jamais virei a recuperar a alegria... (Pausa) Há um conto antigo que termina assim. Que ilusão é essa?

Gérard – Deixaste-me e agora acusa-me por não conseguir te liberar destas horríveis grilhetas.

Margarida – Então ajoelhamo-nos os dois para invocar os santos. (Olhando para os lados)

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Vês ali, são as chamas do inferno. E gritam de dor e choram seus corpos queimados. O barulho.... o barulho é ensurdecedor.

Gérard – Jenny...Jenny...

(Entra Jenny. Tem a mesma indumentária de Margarida e vem a correr)

Jenny e Margarida – (Ao mesmo tempo) Era a voz do meu amigo.

Jenny – Onde está ele?

Margarida – Onde está ele?

Gérard – Sou eu mesmo.

Margarida – És tu? Então torna a dizer-mo!

(Música muito alta. Black out)

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Cena iii

(Gérard está caído ao pé do candeeiro)

Gérard – Torna a dizer-mo. És tu, Jenny?

(Silêncio. Entra o Tio de Mortefontaine. Ele-gante e altivo)

O Tio de Mortefontaine – Duas coisas importantíssimas, meu caro. Não podes esquecê-las jamais. A primeira é acerca das mulheres. Podes odiá-las, com certeza, mas jamais viver sem elas. A segunda é também a respeito das mulheres. Podes amá-las, mas jamais viver com elas.

Gérard – Então é mais simples do que estava a pensar. (Pausa) Mas Jenny. Diz-me, tio, onde está Jenny?

O Tio de Mortefontaine – Então não lhe disse? Está doente. No Hades.

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Gérard – Levaram-na os espíritos de Goe-the?

O Tio de Mortefontaine – Os mesmos da tragédia que Jenny representava tão bem.

Gérard – É verdade que lá chamam-na de Margarida?

O Tio de Mortefontaine – Não. De Jenny Colon.

Gérard – Visitaram-me as duas pela madru-gada.

(Silêncio)

O Tio de Mortefontaine – (Saindo) E não podes esquecer jamais. Elas estarão sempre distantes.

Gérard – Quem?

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O Tio de Mortefontaine – (Em off) As mu-lheres, ora. As mulheres. (Risos)

Cena iv

(Um palco num teatro de Paris. Entra um ator. Está nervoso. Foco a pino)

Um Ator – Je suis le Ténebreux, le veuf, l’Inconsolé.

Le Prince d’Aquitaine à la tour abolie... Mon front est rouge encore du baiser de la

Reine... Cette chanson d’amour qui toujours recom-

mence?

(Silêncio)

Um Ator – Je suis le Ténebreux, le veuf, l’Inconsolé.

Le Prince d’Aquitaine à la tour abolie... Mon front est rouge encore du baiser de la

Reine...

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Cette chanson d’amour qui toujours recom-mence?

(Mais silêncio)

Um Ator – Je suis le Ténebreux, le veuf, l’Inconsolé.

Le Prince d’Aquitaine à la tour abolie... Mon front est rouge encore du baiser de la

Reine... Cette chanson d’amour qui toujours recom-

mence?

(O ator sai de cena a correr)

Cena v

(Cena vazia. Música alta. Gérard vem a cami-nhar muito lentamente)

Voz em Off – A décima terceira regressa, e é sempre a primeira. E é sempre a única, ou é o único momento. Pois serás, tu, a primeira ou a última? Será rei o único ou o último amante?

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(Música alta. Black out)

Cena vi

(Gérard tira do bolso um pequeno bloco. Anota algumas coisas. O candeeiro se acende. Entra Margarida. Vem a correr)

Margarida – Se és homem, tem dó da minha miséria...

Gérard – Os teus gritos vão acordar a cidade!

Margarida – E quem foi que te deu tal poder sobre mim? Já vens buscar-me?

Gérard – Não ainda.

Margarida – Tem compaixão, deixa-me vi-ver!

Gérard – Conseguirei eu resistir à vista desta dor?

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Margarida – Estou inteiramente nas tuas mãos. Jamais virei a recuperar a alegria... Cantam cantigas a meu respeito... Fazem-no por maldade!... (Pausa) Há um conto an-tigo que termina assim. Que ilusão é essa?

Gérard – Deixaste-me e agora acusas-me por não conseguir te libertar destas horríveis grilhetas.

Margarida – Então ajoelhamo-nos os dois para invocar os santos. (Olhando para os lados) Vês ali, são as chamas do inferno. E gritam de dor e choram seus corpos queimados. O barulho... o barulho é ensurdecedor.

Gérard – Jenny... Jenny...

(Entra Jenny. Tem a mesma indumentária de Margarida e vem a correr)

Jenny e Margarida – (Ao mesmo tempo) Era a voz do meu amigo.

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Jenny – Onde está ele?

Margarida – Onde está ele?

Gérard – Sim, sim, agora recordo-me. Há mesmo um conto antigo que termina assim. Que ilusão é essa?

(Black out)

Voz em Off – Será o único ou o último aman-te?

(Música alta)

Cena vii

(Música. A mesma da cena anterior. Jenny vem a correr. No candeeiro, o corpo de Gérard, enforcado, sem vida)

Jenny – Se és homem, tem dó da minha mi-séria...

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(Silêncio. Jenny cai ao pé do candeeiro. Mar-garida vem a correr. Para na frente do público. Está pálida)

Margarida – (Para o público) Era a voz do meu amigo!

(Silêncio)

Margarida – Onde está ele?

(Silêncio)

Margarida – Ninguém poderá deter-me. Que-ro voar para os seus braços.

(Silêncio)

Margarida – Ele chamou-me por meu nome, ali à porta. No meio do alarido, da algazar-ra infernal, no meio das gargalhadas dos demônios, reconheci a sua tão meia, tão querida voz!

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(Silêncio)

Margarida – (Triste. Muito triste) Mas era a voz do meu amigo. (Pausa longa) Onde está ele?

(Black out. Música alta. Rock)

Fim

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De Quem Sois?(2007) – Texto inédito

Para Cléo e Daniel

Dramatis Personae:

EleEla

(Praça da República, São Paulo. Uma terça-feira, passa um pouco das quatro e meia da tarde. Ele está sentado; ela se aproxima lenta e vagarosamente. Senta-se ao lado dele. Silêncio)

Ela – Sou uma pessoa feliz, iluminada. Eu venho aqui todo dia. Fico parada aqui. Sen-tada. Olhando.

Ele – Gostou da reforma da praça?

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(Silêncio)

Ela – Agradeço a Deus todos os dias a minha fe-licidade. Agradeço por ter as minhas pernas, a minha boa vontade. (Pequena pausa) Es-tas sacolas aqui são lixo pra reciclar. Nesta, eu coloco papéis. Nesta outra, os plásticos. Os vidros eu deixo num caixote lá em casa.

(Outro silêncio)

Ele – E vai levar as sacolas pra onde?

Ela – Eu gosto de limpeza. Limpo tudo. O quarto, a cozinha, tudo. Gosto de arrumar a minha cama. Gosto de esticar os lençóis. Nossa, como eu gosto de esticar os lençóis! Me dá muito prazer fazer isso.

Ele – A senhora não está me ouvindo?

Ela – Demoro muito pra arrumar a minha cama. Estico, estico, estico. Estico o lençol, o máximo que eu consigo. Depois amarro

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nos cantos. Os quatro cantos. Faço nozi-nhos. Bem apertados. Um a um. Depois tro-co as fronhas dos travesseiros. Troco todas, todos os dias. Só pra demorar mais. Depois estico o sobre-lençol. E depois os coberto-res. Não importa se faz frio ou calor. Durmo sempre com dois cobertores.

(Silêncio)

Ela – Claro que eu estou te ouvindo. Já não disse? Fico parada, olhando. E não sou sur-da. Graças ao bom Deus. E por isso escuto também. Mas sabe o que é. É que eu não sei se posso falar com o senhor. Sim, porque até agora, e embora eu tivesse falando, poderia o senhor pensar que eu sou uma louca e que estava falando sozinha. Eu não me importo de ser chamada de louca. Não tem proble-ma. Nenhum problema com isso. Mas igno-rada... Isso nunca. Odeio ser ignorada. Por isso me faço de louca mesmo. Mas eu vou dar uma chance ao senhor. Vou sim. (Pe-quena pausa) O senhor vem sempre aqui?

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Ele – Pode me chamar de você.

Ela – (Pequena pausa) Então você vem sempre aqui?

Ele – Todo dia. Moro aqui perto.

Ela – E tem muitos amigos, você?

Ele – Não muitos. Não sou bom de conversa.

Ela – Já eu sou. Falo muito, falo até sozinha. Adoro ficar conversando comigo mesma.Não me importo nem um pouco em falar sozinha.

Ele – É meu aniversário, hoje.

Ela – Ah, então vai ter festa.

Ele – (Vai falando meio aos trancos, com mui-tas pausas) Não, nenhuma festa. Mas gosto. É que este dia também me traz boas lem-branças, sabe? Da minha infância. Quando

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era dia de ganhar um bolinho da madrinha Maria. Que na verdade nem era minha madrinha. Era madrinha do meu irmão mais velho. Ela nunca se esquecia dos nos-sos aniversários. Fazia sempre um bolinho, cozido num fogareiro a álcool. Então era praxe. A gente vinha da escola, almoçava, e lá ia à casa da madrinha Maria buscar o nosso bolinho, nos dias dos nossos aniver-sários. Eu sempre chegava como se nada tivesse acontecido. E ela sempre fazia a mesma brincadeira. Que eu sempre acre-ditava. Nossa hoje é seu aniversário e eu me esqueci do seu bolo! Depois vinha com os dois braços abertos e me enlaçava num grande abraço. Era hora de desejar feliz ani-versário e entregar o bolinho, muito peque-no mesmo, que eu levava pra casa. Então cantavam o parabéns pra você, que era pra mim. E a gente devorava aquele bolinho. Nesta época, nunca tive uma festa de ani-versário. Engraçado, mas minha mãe nunca se importou muito com aniversários. Não se esquecia da gente porque tinha a madrinha

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Maria que se antecipava sempre. Então hoje eu acordei com saudade. Saudade de ir buscar o meu bolinho cozido no fogareiro a álcool na casa da madrinha postiça.

Ela – Por isso ta andando por aí sem destino?

Ele – É que eu estou triste.

Ela – Porquê?

Ele – (Sorrindo) Não sei. Acho que é de nas-cença.

Ela – Também penso nisso às vezes. Mas não sou triste, não. Sou bem alegrinha. Mas pensar, penso.

Ele – Na tristeza?

Ela – É. Na tristeza. Tenho medo de acordar, às vezes. É quando eu me lembro de uma história. De uma pequenina história que a minha mãe me contava quando era pe-

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quenina. Daí elas chegaram. Uma voz lhes pergunta: Quem sois? E então elas assusta-das respondem: somos as Marias e viemos buscar o corpo de Jesus. A voz volta a lhes falar: ides, alegrai-vos, pois Ele ressuscitou. (Pausa) Não é lindo isso?

Ele – Eu não entendi.

Ela – É só uma história. Estava aqui te ouvindo e me lembrei dessa história. É a minha mãe que me contava.

Ele – É, a gente sempre se lembra das coisas...

Ela – Ufa, que você gosta de falar. Espera. Na verdade nem era isso que eu queria dizer. Me desculpe. Me desculpe, do fundo do meu coração. É que... na verdade eu queria ir arrumando conversa. Tava de passagem, precisava passar por aqui e me encontrei com você. E eu não queria que você fosse embora, sabe? Quer dizer, não é que eu quis ser grosseira. Mas queria que você soubesse

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que eu adoro conversar. É que às vezes não sei como começar. Por isso não tenho ami-gos. Quer dizer... Não tenho, assim, muitos amigos...

Ele – Mas eu não entendi a história. Essa da tua mãe.

Ela – Ah, me lembrei que ela me contava essa história das Marias. É só uma lembrança. É que ela era uma mulher muito séria, sabe? E religiosa também. Muito. Me lembro de uma vez. Meu pai chegou com flores. Ela estava na cozinha preparando o jantar. Meu pai entregou as flores. Eu não gosto de flores, ela disse. Então o meu pai foi dormir.

Ele – E não jantou?

Ela – Não, nem quis saber.

Ele – Esquisita, ela. A sua mãe.

Ela – É que ela não gostava do meu pai. Quan-

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do ele morreu, parece que ela ficou mais animada, mais feliz.

Ele – Ele morreu?

Ela – Morreu.

Ele – Morreu do quê?

Ela – Câncer. Depois da morte dele eu fiquei sem lavar o rosto. Eu não lavo o rosto há dez anos. Não tem água na minha cara há dez anos.

Ele – Nossa!

Ela – Tantas coisas que a gente faz, né? Mas é que eu fiquei com medo. O câncer dele era no rosto. As feridas foram corroendo tudo. Ele ficou deformado, com a cara desse tamanho. E disseram que era por causa da água. Por isso nunca mais lavei o rosto.

Ele – Dez anos, já?

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Ela – Dez anos, imagina. E parece que foi ontem. Parece que foi ontem. Dele dizendo que tava doendo, que sabia. E que se pudes-se, arrancaria do meu peito. A dor. E que se pudesse, ainda, reverteria tudo e me daria amor, somente. Foi então que descobri...

Ele – Descobriu o quê?

Ela – Que a vida da gente é sempre da gente, de mais ninguém. E as dores também.

Ele – É, as dores também...

(Silêncio) Ela – Tadinho. Tão sozinho ele, ali.

Ele – Muito triste tudo isso.

Ela – Sim, triste mesmo.

Ele – E a sua mãe?

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Ela – Morreu também. Se suicidou. Um ano depois da morte dele, o meu pai.

Ele – Que triste!

Ela – Não, não é tão triste não. Pelo menos ela escolheu o caminho dela. O meu pai, não. Morreu de dores. Nossa, como sofreu!

Ele – Mas foram felizes, vocês?

Ela – Não muito. Eles eram tristes. Não adianta, né? Tem pessoas que nasceram pra ser tristes.

Ele – Isso é verdade.

Ela – Ainda bem que nasci alegre. Sou muito alegre, sabia? A família do meu pai que era toda triste.

Ele – Toda a família?

Ela – Toda. E feios. Meu Deus, como eram feios!

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Ele – Você é engraçada.

Ela – Ué, verdade seja dita. Era uma família feia mesmo.

Ele – Você não tem dó deles?

Ela – Mas como pode se ter dó da feiúra dos outros? Ora, uns nascem bonitos, outros feios, outros pobres, outros ricos. Outros tris-tes, outros felizes como eu. É assim a vida.

Ele – Seu pai era feio?

Ela – Sabe que até era bonitinho. Feia mesmo era a Antoninha.

Ele – Sua mãe?

Ela – Não, a Antoninha era a minha madrinha de crisma e irmã do meu pai. Morava num sitiozinho pequenino lá na cidade onde nas-ci. Era casada com o João, um homenzinho franzino, curvado e que fazia tudo muito de-

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vagar. Falava pausadamente também. Mas era um bom homem, trabalhador que só. Eles viviam numa casa de madeira também muito pequenina e a cozinha ocupava qua-se metade daquele lugar. Tinham ali dois quartos e uma dispensa. E uma sala e uma varanda. Na entrada para a cozinha, tinha um caramanchão com um imenso pé de maracujá. Eles não tinham energia elétrica e o rádio, sempre ligado, era alimentado por uma espécie de bateria com umas pilhas es-quisitas que nunca mais vi. As pilhas, depois de usadas, eram enterradas num barranco onde brotava o maracujazeiro. Aos domin-gos, a gente pegava o ônibus das nove e meia e a gente descia no quilômetro 12. Minha mãe levava sempre um pacote de macarrão e uma lata de massa de tomate para ajudar no almoço, que era preparado num fogão à lenha. Meus padrinhos matavam um fran-go caipira e almoçávamos felizes. E como tinha gatos naquela cozinha! Todos fran-zinos e esquisitos. Muitos. E gostavam de ficar perto do fogão, onde era quentinho.

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E minha madrinha Antoninha, que eu cha-mava mesmo de tia, fazia queijos horríveis, muitos queijos horríveis. E a gente levava pra casa, religiosamente, aos domingos, um queijo branco de um gosto horrível que era todo consumido já na segunda-feira. Eles viviam neste sítio. Um lugar feio, muito feio, com uma vegetação também feia. E eles eram feios também. Tinham muitos filhos, todos feios, que se casaram com outros feios.

Ele – Mas você fala assim da feiúra deles?

Ela – Falo. Eram feios mesmo. A última con-versa que eu tive com a minha mãe, antes dela morrer foi essa, sobre a feiúra da nossa família. E ela concordou comigo. E rimos muito de nossas feiúras. E me deu uma saudade, muita saudade. Da pobreza. Da feiúra. E dos maracujás e daquelas pilhas esquisitas.

(Silêncio)

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Ela – E então ela morreu.

Ele – A sua tia?

Ela – Não, a minha mãe.

Ele – Nossa, você é esquisita...

Ela – Sou nada. Sou normal.

Ele – É esquisita, sim. Imagina ficar falando da feiúra das pessoas. Ainda mais da família. Família é sagrada.

Ela – Sei que é sagrada.

Ele – Você tem muitos parentes?

Ela – Muitos. É o que mais tenho.

Ele – Se dá bem com eles?

Ela – Mais ou menos. Quase não vejo. Mas tenho uma tia... Agora ela tem 86 anos e é

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a irmã mais velha do meu pai. E é a única viva de uma família imensa de 12 filhos. Não é tão feia. Aliás, a feia mesmo era a Anto-ninha. A Canela foi sempre uma mulher forte, determinada. Era conhecida na famí-lia como uma espécie de Santo Antônio de saias. Queria arrumar casamento pra toda a família. Eu tenho vários primos solteirões. Um deles, o João, filho da Antoninha e do João, que é muito feio também, tem hoje uns 70 anos e vive sozinho naquele sítio feio em que nasceu. A Francisca, outra prima minha, filha mais velha da Ana, outra irmã do meu pai, também é solteirona. E tem mais ou menos a mesma idade do João. Pois não é que, tia Canela cismou em fazer o casamento dos dois? Foi assim. O João estava meio doente, precisando de alguém que cuidasse dele. Então a tia Canela, não sei por que cargas d´água, botou na cabeça que deveria ser da Francisca esta responsabi-lidade. Claro, já tinha em mente o namoro dos dois. E tadinha da Francisca que foi pro sítio do João cuidar dele. Daí a tia Canela,

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na cama há mais de 10 anos e sem poder se levantar da cama, pedia para a Solange, solteirona também e irmã mais nova da Francisca, fiscalizar as coisas. Vai lá e vê se os dois já fizeram nenê. Mas a tia Canela já estava ficando caduca e a Solange, que a gente descobriu naquele momento estar apaixonada pelo primo João, obedecia os caprichos da tia. Passou o tempo. Um dia a Solange acordou muito triste. E começou a chorar. Primeiro baixinho, um choro mirra-dinho. Mas com o passar do tempo o choro foi aumentando e a Solange começou a chorar alto. E não parou mais. Até hoje. É capaz de rir enquanto chora. E quando as pessoas perguntam a ela a causa daquele choro estranho ela responde: É por causa da Francisca. Eu queria tanto que ela tivesse sido feliz. É. Aquela estada da Francisca na casa do João não correu muito bem, não. Ficou lá por duas semanas. Só duas sema-nas. Um dia, por insistência da tia Canela, a Francisca tentou seduzir o João. Colocou o melhor vestido dela, se pintou e ligou o

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rádio. Daí foi dançar pro João que começou a caçoar dela. Coisa feia isso, Francisca. Pára de dançar desse jeito. E toda pintada assim, parece uma palhaça. Francisca ficou tão nervosa, mas tão nervosa que começou a jogar no João tudo o que via pela fren-te. Jogou farinha de milho, jogou arroz. E quando pegou soda cáustica para jogar em cima do João, teve uma coceira nos olhos e esfregou com tudo uma quantidade absur-da de soda nos olhos. Ficou cega. A partir deste dia a Solange começou a chorar. E a tia Canela, lá na cama dela, adora contar esta história pra todo mundo. E ri, ri muito.

Ele – Mas eu não achei graça.

Ela – Sabe que você foi o primeiro?

Ele – O primeiro o quê?

Ela – Que não riu dessa história? Todo mundo adora. Eu mesma. To rindo até agora.

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Ele – Você é sempre assim, alegre?

Ela – Tenho um segredo. Faço a terapia do sorriso.

Ele – Terapia do sorriso?

Ela – Rio por 30 minutos, todos os dias. Na frente do espelho. Por isso acordo sempre assim, animadinha.

Ele – É, percebi.

Ela – E também hoje é dia de levar o lixo. Me alegro quando tenho que levar o lixo. Sabia que não deixo ninguém fazer isso pra mim?

Ele – Eu perguntei pra onde você tava levando o lixo e você nem respondeu.

Ela – Mas naquela hora eu tava com medo de você, né? Não disse que comecei a falar sozinha com medo de que você não quisesse falar comigo?

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Ele – Mas eu tava querendo falar. Você é que não respondia.

Ela – Viu só? Já ta querendo brigar comigo. E a gente ainda nem se conhece direito.

(Silêncio)

Ela – Você não acha isso aqui estranho?

Ele – O que é estranho?

Ela – Essa praça. Depois da reforma a praça ficou linda de se ver. Mas não existem mais bancos por ali.

Ele – Muito triste.

Ela – Nossa, nunca vi isso, uma praça sem bancos.

Ele – Mas as pessoas se sentam por aí mes-mo. Se sentam nas grades que protegem os canteiros das flores. Desconfortavelmente, mas sentam.

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Ela – E você não se cansa?

Ele – De ficar sentado desconfortavelmente?

Ela – É, sim. De sentar desse jeito, de mal jeito?

Ele – Sabe que sim. Me canso, sim.

Ela – To levando o lixo pro depósito de reci-clagem de Pinheiros.

Ele – Até Pinheiros?

Ela – E por que o espanto?

Ele – Você não acha muito longe?

Ela – Vou andando, gosto de andar. E vou cantando os nomes das ruas.

Ele – Cantando os nomes das ruas? Como assim?

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Ela – Ué, você nunca fez isso? Todo mundo faz isso.

Ele – Cantar os nomes das ruas?

Ela – Sim, todo mundo fez isso pelo menos uma vez na vida.

Ele – Não, eu nunca fiz.

Ela – Mas eu faço. Pego uma música qualquer, uma melodia qualquer. Daí vou colocando o nome da rua. Só mudo a letra quando a muda a rua. É divertido e passa o tempo.

Ele – Mas no seu prédio não tem o esquema de reciclagem do lixo?

Ela – Ter, tem. Mas eu gosto de andar um pouco. Sabe como é. Pra ter mais coisas pra fazer.

Ele – Mais coisas pra fazer? Como assim?

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Ela – É um compromisso. Não disse que tenho horas pra tudo? Anoto até na minha agenda. Então fico arrumando coisas pra fazer. Hoje é terça-feira, não é?

Ele – Sim, hoje é terça-feira.

Ela – Então, dia de levar o lixo pro depósito de reciclagem de Pinheiros. Olhe só, ta anotado aqui na minha agenda. (Pausa) Terças e quintas são dias sagrados. É o dia em que trabalho mais. Vou andando daqui até Pinheiros.

Ele – Entender, entender mesmo, eu não en-tendo.

Ela – É que eu gosto de andar sempre ocu-pada. Gosto de ter muitas coisas pra fazer.

Ele – Também gosto de me ocupar com coisas.

Ela – E de receber correspondências, você gosta?

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Ele – Não sei se gosto. Quase não recebo nada assim muito especial.

Ela – Já eu recebo. E adoro. Preencho todos os formulários, todos os cupons que eu vou en-contrando por aí. Só pra receber cartas. Às vezes eu compro revistas só pra responder formulários. Depois adoro receber em casa aqueles envelopes grandalhões, cheinhos de anúncios e fotos e páginas. Nossa, dá um gosto!

(Silêncio. De um alto-falante de um coreto co-meça a tocar “Melodia Sentimental”, de Villa-Lobos e Dora Vasconcelos, na interpretação de Bidu Sayão. Só depois que a música termina é que os dois voltam a se falar. A música chega à cena em volume baixo, como se viesse de muito longe, quase distorcida)

Ela – Cinco horas, já.

Ele – A mesma música, sempre.

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Ela – É, a mesma música. Todo o dia, às cinco horas.

Ele – É...

(Mais silêncio)

Ela – Sabia que eu era manca quando peque-na?

Ele – Não sabia, não.

Ela – Meus pais ficaram preocupados. Me levaram pro médico e tudo. E não desco-briam. E eu vivia mancando. Manquei dos quatro ao seis anos.

Ele – Mancava, é?

Ela – Muito. Descobriram depois. Minha mãe me deixava com uma vizinha quando saía pro trabalho. A vizinha era manca e eu imi-tava ela. (Pausa longa) Engraçado isso, né?

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Ele – É, engraçado.

(Silêncio)

Ela – Qual a sua cor preferida?

(Mais silêncio)

Ela – A minha é verde. Adoro verde. Tudo pra mim tem que ser verde. Compro pasta de dente verde, chiclete verde. Adoro bebidas verdes também.

(Silêncio)

Ela – E as verduras, então? Verdes. Adoro.

(Silêncio)

Ela – Deixa a vida mais feliz, sabe? Eu sou uma pessoa animada, feliz. Tenho meus compro-missos. E a minha agenda sempre cheinha de coisas pra fazer. E sou organizada. Ah, isso eu sou, sim. Tudo pra mim tem que ter

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horário. Tenho dia e horário pra tudo. Até pra abrir minhas correspondências. Isso eu faço três vezes por semana, às segundas, quartas e sextas. Acho bonito uma pessoa organizada, limpa, dedicada. É assim que eu sou.

(Mais silêncio)

Ela – Não quer mais conversar?

Ele – Tava aqui pensando no meu pai. Você falou do seu, acabei me lembrando do meu.

Ela – É, a gente sempre se lembra dos nossos pais...

Ele – Tava me lembrando aqui... Do dia em que ele apareceu... Depois de dias, ele apa-receu. Veio sorrindo, embora eu soubesse um pouco da sua dor. Eu disse a ele. Sei que dói. Não onde nem como. Mas sei que dói. Daí eu peguei ele pelas mãos. Vamos conversar, eu falei. Ficamos sentados ali,

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olhos nos olhos, mãos nas mãos. Foi então que suas mãos molharam. Minha alma molhou. E eu lhe disse pra continuar, que a vida era do caralho... Mas ele não me ouvia. E eu me despedi dele assim, depois de um silêncio. Eu sabia que tava doendo. Não onde nem como. Mas tinha dor ali. Tinha, sim.

Ela – Mas ele morreu do que?

Ele – Não morreu, não. Só sumiu por aí.

Ela – Isso aí é triste. Se pelo menos tivesse morrido, né?

Ele – Não sei se é triste. Mas dá saudade. Daí ele tinha uma amiga. Aparecia de vez em quando em casa. Depois começou a encher o saco e eu gritei com ela. Não aparece mais aqui, eu disse. Ficou sumida. Depois apareceu outra vez e mais outra. Na semana passada veio. Ficou me esperando, sentada na mureta do prédio. Nos últimos tempos

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tem me esperado muito. Fica sentada ali em silêncio, me olhando. E me segue, me persegue. Está sempre ao meu lado, me vigiando. Quer meu tempo, meu ócio, meu amor, meu dinheiro. E eu dou dinheiro, amor, ócio e tempo. Mas às vezes faço cor-tes profundos ali. Então eu ouvi, ninguém me contou. Um choro doído pela rua. Era a sua barriga de fome que gritava. E eu saí correndo. Não olhei pra trás.

Ela – Nossa, você tem aí umas histórias legais.

Ele – As suas são legais também.

Ela – Agora a gente aposta pra ver quais his-tórias são mais legais. Mas tristeza mesmo não tem na vida, não. Tem na televisão, no teatro. Reparou que as histórias que a gente vê no cinema, no teatro são sempre mais tristes do que as nossas?

Ele – Reparei, não.

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Ela – É sim. Um dia eu fui assistir a uma peça. Tinha um nome esquisito. “Cleide, Eló e as Pêras”, era o nome da peça. Fui assistir ao espetáculo e fui sozinha. Faço isso sempre. Mas o que vivi lá, sentada numa das últi-mas fileiras do teatro, foi uma experiência, sabe? Saí do teatro com vontade de ir pra casa, ficar sozinha. A peça gritava na minha cabeça. Revirava dentro de mim. Uma his-tória de amor, triste, triste. E me deu uma vontade louca de amar. Sim, procurar uma mangueira, uma estação de trem, comer uma pêra... Tinha mangueira e estação de trem e pêras na peça. Saí do teatro com uma vontade enorme de gritar ao mundo o meu amor. Todos os amores. Mas não tive cora-gem e fiquei em silêncio. Saí em silêncio. E nessa noite eu não fui pra casa. Não tive coragem de ir pra casa. Fiquei pela vida, pelas ruas. Depois eu fui parar nas Mimosas, o bar das putas, e fui bebendo com as putas e com um violeiro que cantava sem parar uma canção triste, muito triste. Engraçado é que ele ficou muito tempo ali. E cantava

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uma única canção. Tadinho... Então eu vo-mitei escondida no banheiro e fui pra casa, tropeçando. Pelas ruas, ia pensando no meu amor, em todos os meus amores. E tentando identificar, nos rostos que ia encontrando, a minha Cleide, o meu Eló. Não encontrei nada e fiquei com os meus sonhos. Só.

(Silêncio)

Ela – Depois deste dia nunca mais consegui ficar em casa sem fazer nada. Comecei a arrumar a minha cama. Então quando não tinha nada pra fazer lá ia eu arrumar a cama. E se a cama já estava arrumada, eu ia lá, desarrumava pra poder arrumar nova-mente. Fazia isso várias vezes ao dia. (Pausa) Teve um dia que arrumei a cama dezenove vezes. (Pausa) Depois li numa revista sobre a terapia do sorriso. E comecei a treinar. Meia hora por dia em frente ao espelho.

(Silêncio)

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Ela – Mas naquele dia... No dia em que arru-mei a casa dezenove vezes... Naquele dia... À meia-noite era o aniversário da Blanche, que é minha amiga e que andava triste de dar dó. Seu Maestro, o gatinho angorá de dois anos, havia morrido um dia antes quan-do não resistiu a uma vacina. Falaram que ele teve uma parada cardíaca. Mas eu acho que morreu de medo, de pavor. Eu penso que entendo um pouco a dor que a Blanche sentiu. Tenho gatos e já perdi muitas coisas pela vida.

Ele – Você conheceu a Blanche?

Ela – Quem não conhece a Blanche? O mun-do inteiro conhece a Blanche. E eu conhe-ço, sim. A gente é vizinha de prédio.

Ele – Ela vivia no meu prédio. Nesse dia da morte do seu Maestro... A Blanche tava tomando cerveja. Estava sozinha. Preciso beber, hoje. Mas você não gosta de cer-veja. Tudo bem, não tenho dinheiro pro

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vinho; porque de vinho eu entendo, né? Os que gosto são muito caros. Eu fiquei ali, em silêncio. Eu sabia que ela precisava se embebedar naquela noite. Disse pra ela que tinha um Santa Helena, chileno, lá no escritório. Se quiser, busco pra você. Se você tomar comigo, aceito. Eu disse a ela que não ia beber naquela noite, que tinha muito trabalho me esperando. Trabalho às duas da manhã? Eu disse que tava termi-nando um relatório importante. Ela ficou em silêncio. Um silêncio constrangedor. Não tava entendendo direito. Sabe que se pudesse voltar ao tempo eu teria estudado? É mesmo? E estudaria o quê? Acho que teria sido médica. Meu Deus, seria uma mudança radical. Ela me responde que tal-vez tivesse ganhado dinheiro, talvez tivesse sido feliz. Eu pergunto se ela não é feliz. Hoje não. O mundo às vezes desaba na cabeça da gente. Então eu disse a ela que iria buscar o vinho no escritório. Eu tomo cerveja. E vamos nos embebedar. Às seis da manhã a gente tava na Vieira de Carvalho.

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E a gente não tava mais sozinho. A gente tinha conhecido umas pessoas por ali, na noite. Uma mulher recém chegada de Três Corações. Parece que havia abandonado o marido e duas filhas. Um michê chileno e uma ex-iluminadora do teatro Odeon, aquele que faz teatro sexo explícito. Foi ela quem interrompeu a nossa música que a gente tava cantando. Tá vindo, tá vindo, eu tô com medo, ela gritou assustada. Eu fiquei em pânico. Olhei em volta e nada de estranho tava acontecendo. Só estávamos nós na rua. O grito da nossa amiga ilumi-nadora soou com dor. Muita dor. Perguntei o que tava acontecendo e ela só gritava: tá desabando, tá desabando tudo. Foi quando a Blanche segurou a iluminadora pelos bra-ços. Deu um tablefe em sua cara. Desaba, mas a gente reconstrói, disse severamente. A iluminadora caiu em lágrimas. Foi de-sabando até cair na calçada, aos prantos. E a Blanche dizia: não pode, não pode desabar. E ia repetindo isso enquanto nos-sos corações ficavam apertados. A mulher

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de Três Corações segurou nossas mãos. Fizemos uma corrente, em plena Vieira de Carvalho. O michê tinha os olhos la-crimejantes. Eu, ali, pensando que aquela madrugada não teria mais fim. E foi ela, a Blanche, quem sugeriu a oração: vamos rezar um Padre Nosso. E foi assim, com o sol nascendo e o barulho dos feirantes da praça da República que começavam a montar as suas barracas é que a gente rezou. Nós, excluídos, vendo nossos mun-dos desabando. E foi uma oração bêbada, chorosa, medrosa...

Ela – E acabou assim, a história?

Ele – Não, tempos depois eu reencontrei o michê chileno. Depois de quase dois anos. Eu encontrei ele no metrô Tiradentes. Ele se aproximou e quase que eu não reconheço ele. E então, desabou? E depois começou a rir enquanto abria seus braços para um abraço. A gente se abraçou e veio junto no metrô até à Praça da República. Falamos

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de vários assuntos. Quando a gente já tinha chegado no nosso destino ele me revelou, pedindo segredo: Sabe que eu acho que o que nos salvou naquela noite foi aquele Pa-dre Nosso daquela mulher? Eu quis saber o porquê. Então ele me respondeu enquanto se despedia: porque naquele dia eu tinha fei-to um pacto com o Demônio. Aquela reza me salvou. E a vocês também. Porque sabe Deus do que eu teria sido capaz. E sumiu rua Ipiranga a dentro.

Ela – E a Blanche?

Ele – Depois disso arrumou outro gatinho. O Gael. Parece que viveu feliz lá em sua casa.

Ela – Mas ela é só sua amiga mesmo?

Ele – Amiga mesmo. A minha maior amiga. A Blanche era travesti. Ouvi dela uma das coisas mais importantes da minha vida. Foi ela quem me disse que no silêncio o amor morre.

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Ela – E disse também: sabemos que tudo acaba. Mas existem coisas que sangram mais.

(Silêncio)

Ele – E sangrou mesmo.

Ela – O que sangrou mesmo?

Ele – O dia em que ela morreu. Eu fiquei ali, ao seu lado. Ela era muito bonita. Olhos atentos no início e desanimados ao final, suspirava o tempo todo. Um suspiro peque-nino, doído, que vinha de vez em quando. E eu, ali, ao seu lado, fazendo de conta que nada percebia, que de nada entendia. Que-rendo dizer coisas pra ela, querendo abraçar ela. Mas saí correndo, depois. Não queria me confrontar com seus suspiros. Embora doces, eram tristes.

Ela – Nossa, a Blanche morreu?

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Ele – E tinha um monte de gente ali perto. Ninguém suspirou, ninguém se esmoreceu. Impávidas, com caras colocadas em suas solidões de dores passageiras. 

Ela – Só isso?

Ele – Só isso. Mais nada.

Ela – E morreu como?

Ele – De tristeza, eu acho. Começou a ficar triste, triste. Triste que só vendo. Foi depois daquele dia em que fui tomar café.

Ela – Que dia?

Ele – É que teve um dia que eu não agüentei mais. Sempre tem este dia, né? O dia em que você dá um basta e resolve mudar tudo. Nesse dia meu coração disparou. Eu fiquei pensando que não queria mais me lembrar daquele dia. Mas comecei a falar. Daí eu saí de casa pra tomar café. Só pra tomar

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café. E então ela ficou me ligando no ce-lular o dia todo. Preocupada. Queria saber com quem eu tinha tomado café. Porque eu tinha saído de casa sem tomar café com ela. O que ela não entende é que eu estou cansado. Cansado de comer bolacha todo o dia. Queria café com pão e manteiga. E em dez anos esta foi a minha primeira vez. Demorei dez anos pra fazer isso. Saí de casa e fui pra uma padaria. Pedi logo dois pães com manteiga. Depois pedi mais dois. E café, muito café. Nunca um café da ma-nhã foi tão saboroso. (Pausa) Me lembrei do meu pai que sumiu pela vida. (Pausa) Então não fui trabalhar e pensei que não queria mais. Nunca mais. E comecei a andar por aí. Vim parar aqui.

(Silêncio)

Ela – Ah, então o senhor é casado?

Ele – No papel, não.

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Ela – Mas mora junto?

Ele – Moro.

Ela – Então é casado sim.

Ele – Depende do ponto de vista.

Ela – É casado, sim. Claro que é. Por acaso o nome dela é Blanche?

Ele – Não, Blanche era a minha amiga travesti que morreu.

Ela – (Olhando para ele desconfiada) Morreu, é?

Ele – Morreu, não disse?

Ela – Você só sabe falar disso, é?

Ele – Disso o que?

Ela – De morte, de tristeza?

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Ele – Foi você quem começou a falar dessas coisas. Contou até a história do suicídio da sua mãe.

Ela – Mas isso não é triste.

Ele – Um suicídio não é triste?

Ela – Claro que não. Ela optou, teve coragem. Foi lá e pronto. Isso não é tristeza.

(Silêncio)

Ela – (Olhando um relógio) Nossa, cinco e meia. Preciso ir, estou atrasada. É que eu tenho horário pra tudo, sabe? Pra acordar, pra tomar o café da manhã, pra tudo.

(Mais silêncio)

Ela – E de sexo, você gosta?

(Silêncio)

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Ela – Eu não parei aqui por isso, não. Porque eu mesma odeio sexo. E jamais faria sexo com você. Você não é o meu tipo.

(Ela se afasta. Lenta e vagarosamente enquan-to olha mais uma vez as horas)

Fim

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Coleção Primeiras Obras

1. Otávio Martins2. Gabriela Mellão3. Ivam Cabral4. Sérgio Roveri5. Vera de Sá6. Sergio Mello7. Rudifran Pompeu8. Marcos Damaceno9. Lucianno Maza10. Dramamix 2007

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Foi feito o depósito legal na Biblioteca Nacional (lei n. 10.994, de 14.12.2004)Proibida a reprodução total ou parcial sem a autorização prévia dos editoresDireitos reservados e protegidos (lei n. 9.610, de 19.02.1998)

Impresso no Brasil 2010

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© Ivam Cabral, 2009

Crédito de fotografia: Lucas Arantes

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação(Biblioteca da Imprensa Oficial)

Cabral, IvamChove muito lá fora; Uma arquitetura para a morte; Gerárd, a tragédia; De

quem sois? / Ivam Cabral [Organização de Ivam Cabral]. – São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009. 104 p. – (Coleção Primeiras Obras, 3)

isbn 978-85-7060-803-1Apoio: Grupo Satyros Literatura

Associação dos Artistas Amigos da Praça

1. Teatro – Brasil 2. Literatura – Teatro 3. Textos literários i. Cabral, Ivam ii. Título iii. Série.

cdd 808.2

Índice para catálogo sistemático:1. Textos literários 808.2

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formato 105 x 155 mm

tipologia Electra

papel miolo Chamois Fine Dunas 85 g/m2

papel capa Cartão Supremo 250 g/m2

número de páginas 104

tiragem 1500

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